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“ENTRE LEÃO E UNICÓRNIO”: UM CONTO DE FADA MODERNO * Cristian Pagoto Drielly da Fonseca Ramos** Jacqueline Marcelli Cordeiro Wagner*** RESUMO Apresentam-se algumas características dos contos de fadas modernos de Marina Colasanti, por meio da leitura e análise do conto “Entre Leão e Unicórnio”, incluído no livro Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento. Os resultados obtidos demonstram que o texto mantém ligação com o mundo maravilhoso das fadas, mas também constitui uma reinvenção dos contos de fadas tradicionais, apresentando novas possibilidades de leitura, devido sua linguagem simbólica e hieroglífica. Palavras-chave: Marina Colasanti. Conto de fadas. Símbolos. INTRODUÇÃO Os contos de fadas de Marina Colasanti possuem características semelhantes aos contos de fadas tradicionais. Seus ambientes e seus cenários medievais, a presença de reis, príncipes e princesas, as provas e tarefas por que passam o herói e a heroína, bem como o processo iniciático sofrido por eles, contribuem para que essas histórias sejam confundidas com as narrativas feéricas (SILVA, 2003, p. 31). Embora haja semelhanças com os contos de fadas tradicionais, * Professora assistente do Colegiado de Letras da Universidade Estadual do Paraná - campus FAFIPAR. E-mail: [email protected]. * * Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Paraná - campus FAFIPAR. E-mail: [email protected]. *** Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Paraná - campus FAFIPAR.E-mail: [email protected]. Diálogos & Saberes, Mandaguari, v. 9, n. 1, p. 61-74, 2013 61 há também algumas diferenças, pois enquanto nestes torna-se quase impossível determinar uma autoria segura e são contos provenientes da tradição oral, os contos de fadas de Colasanti possuem autoria própria e foram escritos basicamente para apreciação individual. A escritora dá a seus contos características pessoais, deixando sua imaginação fluir, ao contrário dos tradicionais, portanto, que foram influenciados por várias pessoas. Na estrutura dos contos de Colasanti, vemos uma estreita ligação com a estrutura mítica, devido, sobretudo, à presença do maravilhoso - lembremos, mais uma vez, que há uma relação primordial entre mito e conto de fadas, como podemos perceber na origem das fadas. Salma Silva (2003, p. 31), diz que “os contos de Marina Colasanti não criam novos mitos, os atualizam”. As características literárias das obras de Marina Colasanti apenas tornam seus contos mais modernos, sem que os mesmos percam a essência ou até a magia que os tradicionais possuem. Seus contos são considerados contos de fadas modernos porque, diferentemente dos tradicionais, nem sempre a princesa se casa com o príncipe, nem sempre os finais são aqueles que esperamos, são por muitas vezes felizes, mas não do jeito que imaginamos ou do jeito que estamos acostumados a ver. ENTRE LEÃO E UNICÓRNIO Durante as décadas de 60 a 80, o Brasil viveu um dos piores períodos de sua história: a ditadura. A ditadura foi imposta durante o golpe militar em 1964 e se estendeu até 1985, período no qual o país foi governado por militares. O período de ditadura que o Brasil viveu ficou conhecido pela perseguição política vivida, pela falta de democracia e pela punição daqueles que se mostravam contra o governo; não era permitido expor pensamentos, principalmente se fossem ideais de liberdade e de democracia, a censura estava atenta a tudo o que era publicado e divulgado e o povo perdeu os seus direitos de cidadão. Só era permitido fazer aquilo que era imposto pelo governo ditador. Em tal ambiente repressivo, a literatura continuou a florescer, embora vigiada. Nesse momento, gêneros literários, sobretudo a poesia e a literatura infantil, Diálogos & Saberes, Mandaguari, v. 9, n. 1, p. 61-74, 2013 62 assumiram posições importantes, pois através da linguagem simbólica e metafórica era possível e “permitido” desvelar o autoritarismo do governo ou da sociedade, como fica evidente na música “Cálice”, de Chico Buarque. O livro Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento, de Marina Colasanti, foi publicado pela primeira vez em 1978, portanto durante o regime militar. Por ter sido escrito no período árduo para o país, os seus contos trazem alguns elementos implícitos que podem ser relacionados com a ditadura, com a “prisão” vivida pelos brasileiros, enfim, com seu contexto histórico de produção. Sem, contudo, deixar de serem textos universais, falando a qualquer época, pois falam de dilemas humanos. O conto de fadas “Entre Leão e Unicórnio”, do livro citado acima, de Colasanti, surgiu de um sonho da própria autora, sendo assim, pode-se dizer que se trata de um conto biográfico. Na entrevista de Colasanti (2008), a Thiago Belotto (2008) a autora diz: Eles [contos] nascem de emoções, às vezes de coisas muito pequenas, às vezes de uma palavra, às vezes de um som. Sei lá, Entre Leão e Unicórnio é a soma de duas coisas diferentes. Um dia acordando com o Affonso e contando a ele 'Não imagina eu tive um sonho, uma loucura, assim, assim, assim [...]' E aí ele rindo, e aí eu falei 'Muito estranho ser casado com essa mulher, que te acorda cheia de sonhos com seres maravilhosos! Era um sonho cheio de pássaros, enche a tua cama de pássaros e abelhas e tal'. Aí ele riu, eu disse 'Faz um conto!', aí ele fez de brincadeira. Aí eu estava lendo um livro, acho que do Bacelar, era um ensaio e havia a citação de um mito e o mito dizia [...] não se é um mito ou uma frase bíblica, já não sei [...] Mas eu estava lendo com relação a mitos e a frase diz 'Quando o leão chegar, pega a espada e corta-lhe as patas!' Eu fiquei muito emocionada com essa frase, mas muito emocionada com essa frase, achei uma frase lindíssima! Mas não me pergunte porque, uma vez que eu também não me pergunto porque. Aí eu anoto, e boto numa caixa e esqueço. Aí quando eu Diálogos & Saberes, Mandaguari, v. 9, n. 1, p. 61-74, 2013 63 decido que vou fazer um livro, aí eu pego a caixa e começo a fiar, começo a andar envolta daquilo, interrogo para ver o que me traz e Entre Leão e Unicórnio tem um leão. 'Quando o leão vier, pega a espada e corta-lhe as patas' e tem um sonho que alimenta o sonho dela, que alimenta ele. Eu fiz a fusão das duas coisas. Como se nota, a partir da citação acima, uma experiência real desencadeou um processo criativo. O sonho de Colasanti transformou-se em matéria-prima para a tessitura do conto que será analisado. O conto narra a história de uma jovem rainha que não podia sonhar, pois havia um leão que guardava o seu sono, não deixando que nenhum sonho entrasse ou saísse. Quando ela se casa, o rei, seu marido, descobre a presença do guardião dos sonhos da esposa e para ajudá-la corta as patas do animal. Sem a presença do leão para lhe impedir de sonhar, a jovem começa a ter os mais variados sonhos, sendo o primeiro com beija-flores e com um enxame de abelhas. Este sonho assusta o rei, que logo se acalma, pois a rainha diz que sonha com isso por viver dias doces ao seu lado. Passado esta “surpresa” o rei se depara no meio da noite com algo mais fantástico ainda: um unicórnio. A rainha diz a ele que se trata da “montada de sua imaginação” (COLASANTI, 2006, p. 18) e assim, o rei se aproxima e passa a viver dias incríveis junto ao unicórnio. A mulher percebe que está perdendo o marido e pede para que uma dama de companhia costure a pata do leão, e esta assim o faz. Dessa forma o unicórnio voltou a ficar preso dentro dos sonhos da rainha e a mesma nunca mais voltou a ter sonhos, sendo suas noites ocas novamente. Percebe-se que o conto possui uma e fabulação linear, ou seja, os fatos são descritos de forma em que a trama siga uma sequência tradicional com princípio, meio e fim. Sequência esta, natural no gênero narrativo conto de fadas, que é o gênero tratado aqui. Ao ler o conto, podem-se perceber vários elementos próprios dos contos de fadas tradicionais, como os personagens (o rei e a rainha), o cenário (o castelo), o elemento maravilhoso (o unicórnio), a atmosfera medieval, dentre outros que serão destacados no decorrer da análise. Diálogos & Saberes, Mandaguari, v. 9, n. 1, p. 61-74, 2013 64 As personagens do conto são denominadas de personagens-tipo (planas), que são aquelas personagens próprias dos contos de fadas e dos contos maravilhosos, e que o leitor identifica facilmente, exemplos comuns são: rainha, reis, sapos, etc. Na narrativa de Colasanti, o rei e a rainha, figuras típicas dos contos de fadas tradicionais, surgem sem nomes próprios, tornando-se universais. O espaço encontrado neste conto não influencia o desfecho da trama, pois a única função dele é estética, ou seja, função apenas de cenário, de criar um ambiente, trazer ao conto um “ar” de verdade, de realidade. O espaço, identificado num castelo, remete a um tempo medieval, comum nos contos de fadas. Segundo Coelho (2000, p. 7980), há dois tipos de tempo vividos pelo homem: o interior e o exterior. No conto, percebemos que há referências ao tempo cronológico, como confirmam as expressões “manhã seguinte”, “Durante algum tempo”, “Muitos meses se foram tranquilos” (COLASANTI, 2006, p. 17). Outro fator da estrutura deste conto que pode ser descrita é a linguagem das personagens, que utilizam da linguagem simbólica para apresentar experiências “reais”, pois “reproduz uma experiência vivida no mundo real cotidiano ou natural, que é o nosso” (COELHO, 2000, p. 82). O conto de fadas tem como seu principal leitor/ouvinte as crianças, mas isso não impede que qualquer pessoa, de qualquer idade possa desfrutar de suas fantásticas histórias. O conto inicia-se com o trecho “No meio da noite de núpcias” (COLASANTI, 2006, p. 16). Trata-se de um início pouco convencional, pois a grande maioria dos contos de fadas, que apresenta tramas amorosas, retrata as provações vividas por um príncipe para conquistar a sua amada e termina com o clássico final feliz. Este inicia sua trama exatamente no momento depois do “e viveram felizes para sempre”, exatamente no “meio da noite de núpcias” (COLASANTI, 2006, p. 16). Sabemos que tradicionalmente a noite de núpcias é a mais esperada tanto para a noiva, como para o noivo, pois é nesta noite que ambos se conhecem completamente e assim tornam-se simbolicamente um só, num elo matrimonial. Dessa forma os segredos são revelados, fazendo, assim, com que haja uma cumplicidade entre ambos, enfim os dois são “um só corpo e uma só carne”. Diálogos & Saberes, Mandaguari, v. 9, n. 1, p. 61-74, 2013 65 Logo no primeiro parágrafo, no entanto, esta aparente harmonia é quebrada por uma imagem assustadora: o rei se depara com a figura do leão. No princípio, ao vê-lo, o rei pensa que está tendo um pesadelo: “ Na certa - pensou o rei mais surpreso do que assustado -, estou tendo um pesadelo” (COLASANTI, 2006, p. 16). Depois volta a dormir e esquece disso, mas na noite seguinte percebe que se trata de um leão de verdade.A esposa do rei diz que o leão “Mora na porta do meu sono, e não deixa ninguém entrar ou sair. Por isso não tenho sonhos, e minhas noites são escuras e ocas como um poço”. O leão é descrito aqui, como dito no conto, “como um cruel carcereiro” (COLASANTI, 2006, p. 16) e por si só provoca medo e temor em todos que se aproximam dele pelo fato de ser um animal feroz e ainda por ser conhecido, simbolicamente, como o rei das selvas. Neste conto ele assume a posição de guardião dos sonhos da jovem rainha, proibindo que os sonhos entrem ou saiam dela, estando sempre “vigilante” e acompanhando-a “desde sempre”. Como citado acima, nesse sentido, o leão poderia metaforizar uma sociedade vigilante, poderia estar se referindo ao fato de que a sociedade estaria sempre a observar os pensamentos femininos, até mesmos os seus sonhos, os secretos e ocultos sonhos. Desta forma, com a presença de seu “fiel companheiro”, ela não pode sonhar, imaginar coisas diferentes, ou até mesmo sonhar com um mundo diferente, por isto ela diz que as suas “noites são escuras e ocas como um poço” (COLASANTI, 2006, p. 16) - os adjetivos “escuras” e “ocas” remetem ao negativo e ao vazio. É como se ela estivesse presa numa crua realidade, sem fantasias, uma vez que o leão é o seu “cruel carcereiro” (COLASANTI, 2006, p. 16). A palavra “carcereiro” já remete a uma prisão. Portanto, a mulher, metaforicamente, está aprisionada num mundo sem sonhos. Ela está encarcerada no mundo real, objetivo, sem possibilidades de sonhar. O leão representaria, ainda, levando-se em conta o contexto histórico-social, a própria ditadura, pois está impedindo a liberdade de sonhos, trazendo tristeza e matando a imaginação da rainha. Assim como no período da ditadura, há uma “prisão” de portas abertas, em que todos têm “liberdade” mas não podem usufruir da mesma, pois parecem existir sempre olhos vigilantes. O conto diz que o rei acorda no “meio da noite” (COLASANTI, Diálogos & Saberes, Mandaguari, v. 9, n. 1, p. 61-74, 2013 66 2006, p. 16), esse termo nos lembra o escuro, o obscuro, o sombrio, momento em que não se pode enxergar com clareza. À noite poderia estar associada a ideia de inconsciente. Nesse momento ele descobre que sua rainha guardava um segredo: o leão. Quando o rei lhe indaga sobre o leão, ela pede que corte as suas patas, ao fazer isso à rainha pede auxílio ao homem, fazendo com que ele assuma o seu papel de companheiro, sendo aquele que auxilia a mulher. Ela lhe dá uma ordem e ele obedece para poder ajudá-la a se ver livre do que lhe aprisiona. E ao atender ao pedido da rainha e cortar as patas do leão, o marido, simbolicamente, lhe dá a “liberdade” que ela tanto almejava. E assim ela passa a sonhar. Nota-se neste momento que o rei, comovido e encorajado pela esposa, e auxiliado por “sua espada mais afiada” (COLASANTI, 2006, p. 17), personifica a coragem e a força masculinas: “zac! Decepou as patas da fera de um só golpe” (COLASANTI, 2006, p. 17). Sem as patas o leão não pode andar, não pode se mover, e assim, perde sua função de guardião e vigilante. E por que o leão surge no meio da noite para vigiar os sonhos da rainha? Seria talvez uma espécie de encantamento? O primeiro sonho que a rainha tem, livre do leão que a encarcerava, é com “beija-flores” e com “um enxame de abelhas” (COLASANTI, 2006, p. 17). Este sonho representa a sua felicidade matrimonial, pois ela vive feliz ao lado do marido, assim como no sonho, sua vida estava doce e florida. Por outro lado, à mulher parece ser permitido apenas sonhar sonhos delicados como os “beija-flores” e doces como o mel. Sonhos aparentemente inofensivos e delicados, como a imagem tradicionalmente vinculada ao feminino, relembrando o mito do eterno feminino. Ao ver essa “bicharada” (COLASANTI, 2006, p. 17), o marido se assusta, assim como se assusta no início ao se deparar com o leão, os dois sustos tomados foram diferentes, um foi de surpresa - “pensou o rei mais surpreso do que assustado” - (COLASANTI, 2006, p. 17), já o outro foi de medo mesmo - “Depressa cobriu a cabeça com o lençol, e debaixo daquela espécie de mortalha atravessou as horas que ainda o separavam do nascer do dia” (COLASANTI, 2006, p. 17). Será que os sonhos da mulher assustam o homem? Será que o que ela pensa ou idealiza causa, de alguma forma, espanto ao homem? Diálogos & Saberes, Mandaguari, v. 9, n. 1, p. 61-74, 2013 67 No decorrer da narrativa podemos perceber que o rei não tem nenhum sonho próprio. Por várias vezes ele acorda durante as noites, depara-se com vários bichos, frutos dos sonhos de sua esposa, mas não há nenhum sonho próprio dele. O próximo sonho que ela tem é com um unicórnio azul, a primeira reação do rei ao vê-lo é de pura perplexidade e afastamento: “Perplexo, saiu para o terraço, fechou rapidamente as portas envidraçadas, e encolhido num canto esperou que a manhã lhe permitisse interpelar a rainha” (COLASANTI, 2006, p. 18). Ele fica pasmo, pois não conhecia aquele sonho de sua esposa. Quando ela lhe diz que é a “montada de sua imaginação” e “leva seus sonhos lá onde eu não tenho acesso” (COLASANTI, 2006, p. 18), o rei fica maravilhado e apropriase do sonho da esposa. O homem passa, a partir daí,a nutrir-se dos sonhos da esposa, toma para si o sonho dela. Quem sonha é a mulher, mas quem “vive”estes sonhos, tão lindos e tão maravilhosos, é o marido, pois é ele quem sai a galopar com o unicórnio, enquanto ela fica apenas a dormir. O rei começa a viver a partir dos sonhos dela, ele se apropria dos desejos da mulher. O unicórnio azul é outro ser pertencente, indiscutivelmente, ao universo dos contos de fadas, ao mundo maravilhoso e mítico, fruto da imaginação das pessoas, como dito no conto “Não ousou tocar animal tão inexistente” (COLASANTI, 2006, p. 18). O unicórnio azul representa a liberdade, conforme o sentimento do rei ao galopar no animal: “livre como unicórnio”.Com representação de liberdade, o unicórnio azul refere-se à idealização e sonho de uma sociedade diferente daquela que os brasileiros estavam vivendo. No regime militar, o povo não podia expor seus pensamentos, mas podia sonhar e “galopar” por qualquer lugar que quisesse, sem medo e sem impedimento.O unicórnio oferece esta liberdade, porém, numa sociedade ainda dominada pelo patriarcalismo, à mulher é negada esta liberdade. Ela pode sonhar, contudo não pode concretizar seus sonhos. Com toda a “liberdade” que o unicórnio lhe proporcionava a rainha sentia que estava perdendo o seu rei, como está expresso neste trecho: “Sonhei que vossa majestade fugia com a montada de minha imaginação - disse a rainha ao esposo, de manhã” (COLASANTI, 2006, p. 18), então, com a ajuda de sua dama de companhia, a rainha decide Diálogos & Saberes, Mandaguari, v. 9, n. 1, p. 61-74, 2013 68 costurar as patas do leão. Ao costurar as patas do leão, ele retorna a sua posição de guardião. A dama de companhia é outro ser que pertence ao conto de fadas, pois ela é encarregada de costurar as patas do leão com fios de sedas, remetendo assim, a ideia da mulher arcana, a mulher que tece, que se encarrega dos trabalhos domésticos, próprio dos contos de fadas tradicionais. Durante a ditadura o povo brasileiro desejava liberdade, almejava por isso. Quando este tempo de privação de opiniões e de liberdade acabou, o povo, parecia, não soube o que fazer com esta sonhada liberdade que agora tinha “nas mãos”. Este conto mostra isso, pois quando a rainha conseguiu finalmente aquilo que mais queria, que era poder sonhar, ela não soube o que fazer, além disso, ela estava perdendo o seu marido, por isso, busca o mais rápido possível costurar as patas do seu carcereiro, perdendo assim, mais uma vez, a sua liberdade em sonhar. O conto deixa claro o que aconteceu com o leão e com o unicórnio, mas o que terá acontecido com o rei? No último parágrafo vemos o que aconteceu com o leão: “Aquele levantou a cabeça, sacudiu a juba e firme sobre as patas retomou a sua tarefa de guardião. Nenhum sonho mais sairia das noites da rainha. Nenhum entraria”;com o unicórnio: “Nem mesmo aquele em que um unicórnio azul galopava e galopava”; mas e o rei, será que ele ficou preso com o unicórnio, como está escrito no último trecho: “levando no dorso um rei para sempre errante?” (COLASANTI, 2006, p. 21). Como vemos, estão presentes no conto dois animais simbolicamente opostos: o leão, com sua ferocidade e agressividade, “fulvo e vigilante” (COLASANTI, 2006, p. 16), e o unicórnio, com sua delicadeza e suavidade, “com seu chifre de cristal, batendo de leve os cacos, pronto para a partida” (COLASANTI, 2006, p. 18). De acordo com Chevalier e Gheerbrant (1995, p. 920), na alquimia o leão e o unicórnio são figuras opostas, representam, respectivamente, o enxofre e o mercúrio. Como o título indica, os personagens estão “entre” um e outro, ou seja, entre a rudeza, a objetividade e o cárcere do leão, e a delicadeza e a liberdade do unicórnio. Entre o sonho e a realidade. A mulher optou pelo retorno à realidade, enquanto o rei tomou o caminho do sonho, “para sempre” (COLASANTI, 2006, p. 21). Diálogos & Saberes, Mandaguari, v. 9, n. 1, p. 61-74, 2013 69 Como os contos de fadas de Marina Colasanti apresentam uma linguagem altamente simbólica e metafórica, podemos associar esta narrativa à vida conjugal.Apenas no momento em que o rei e a rainha vão morar juntos é que surgem os problemas. O aparecimento do leão simbolizaria, neste sentido, a primeira crise matrimonial. Resolvido este problema inicial, vivem um tempo felizes e em comunhão: “Durante algum tempo dormiu todas as noites até de manhã, sem sobressaltos”. Em seguida, nova crise, simbolizada pela adversativa “Mas” (COLASANTI, 2006, p. 17) e pelo aparecimento da “bicharada” (COLASANTI, 2006, p. 14). E, assim, “Muitos meses se foram, tranquilos” (COLASANTI, 2006, p. 17), metaforizando novo momento de paz conjugal. Posteriormente, surge outra crise, indicada pela palavra “Porém” e pelo “unicórnio azul”. Quando a esposa decide costurar as patas do leão, ela metamorfoseia o retorno ao processo inicial, ou seja, ao momento de solteira. E o rei, como indica a expressão “para sempre errante” (COLASANTI, 2006, p. 21), distancia-se da mulher. O conto “Entre Leão e Unicórnio” metaforiza a união conjugal, os problemas advindos da convivência, do dia a dia. E, neste caso, o final não é aquele tradicional. A narrativa iniciou-se no momento do “felizes para sempre”, mas encerrou-se de modo oposto, mostrando a difícil convivência entre dois indivíduos opostos, representados simbolicamente pelas figuras antagônicas do leão e do unicórnio. Fica evidente na narrativa o confronto como o seu duplo. Nesse caso, a união dos amantes sempre implica a anulação de um dos dois e a consequente separação. O sujeito, que deveria estar voltado para fora de si e conjugar sua força libidinal com a do outro, visando a um enriquecimento para ambos, se volta sobre os seus próprios desejos e pretere o valor do companheiro, infligindo-lhe um aprisionamento ou uma aniquilação (SILVA, 2003, p. 71). Notamos que, a princípio, há no conto uma tentativa de união amorosa e de entendimento um com o outro. Primeiro o rei, “Penalizado” (COLASANTI, 2006, p. 16) com a vigilância do leão, pergunta-lhe o que fazer para ajudá-la. A rainha, então, aceita sua ajuda e pede para o esposo Diálogos & Saberes, Mandaguari, v. 9, n. 1, p. 61-74, 2013 70 cortar as patas de seu “cruel carcereiro” (COLASANTI, 2006, p. 16). Depois, ao sonhar com os beija-flores e com o enxame de abelhas, o rei “desvanecido com tanto amor, pousou-lhe um beijo na testa” (COLASANTI, 2006, p. 17). No entanto, com a convivência e a troca de valores materiais e espirituais, comum numa relação amorosa, o rei apropria-se egoisticamente do sonho da rainha e, consequentemente, destrói sua identidade e aprisiona a mulher numa triste e doentia solidão, pois passa, daí em diante, a se distanciar da esposa: E a cada noite, mais diferente (o rei) ficou. Já não queria guerrear, nem dançar nos salões. Já não se interessava por caçadas ou tesouros. Trancado sozinho na sala do trono durante horas, pensava e pensava, galopando na lembrança, livre como o unicórnio. Ressentia-se porém a rainha com aquela ausência (COLASANTI, 2006, p. 19). Como se percebe na citação acima, o rei desinteressa-se totalmente do mundo real e das “obrigações” reais, como guerrear, caçar, dançar nos salões. Pensava unicamente no unicórnio. Ao fazer a opção pelo unicórnio azul, o rei despreza tanto a realidade quanto a esposa real que ele encontra durante o dia e, dessa forma, ele mergulha na noite e no inconsciente da rainha (SILVA, 2003, p. 73). Ao galopar no unicórnio, tornando-se seu senhor, pois é ele quem monta o animal, simbolizaria a tomada do inconsciente da mulher, uma vez que o unicórnio, figura “tão inexistente” (COLASANTI, 2006, p. 18), seria metaforicamente o lado mais profundo e obscuro do pensamento feminino: “Leva meus sonhos lá onde eu não tenho acesso” (COLASANTI, 2006, p. 18). O advérbio de lugar intensifica o distanciamento da realidade. O rei, assumindo uma posição egoísta na convivência com o outro, apenas apropria-se do sonho da esposa, não lhe dá, contudo, a mesma chance, ou seja, não lhe oferece seus sonhos em troca. “Assim procedendo, o rei serve-se de sua mulher egoisticamente ao invés de se entregar ao mesmo tempo em que recebe as dádivas da Diálogos & Saberes, Mandaguari, v. 9, n. 1, p. 61-74, 2013 71 esposa” (SILVA, 2003, p. 73). Não há, neste sentido, a entrega mútua entre os companheiros, o que acaba provocando a separação dos amantes. Parece, ainda, que a relação amorosa ora é dominada pela mulher, aliada à figura do leão, ora pelo homem, associado à imagem do unicórnio. Assim, o título menciona a difícil e complicada arte de viver a dois. Ora a mulher manipula, como quando ordena cortar as patas do leão - “pegue a espada e corte-lhe as patas” (COLASANTI, 2006, p. 17, grifo nosso) os verbos destacados intensificam o desejo de ordem -; ora o homem mantém as rédeas da situação - “só desejava montar naquele dorso e, azul no ar azul, descobrir novos rumos” (COLASANTI, 2006, p. 18-19). Ainda podemos destacar, neste conto, as invariantes descritas por Propp (COELHO, 2000), com suas variantes distintas, segue o quadro com uma possível interpretação das invariantes e das variantes: Quadro 1 - As invariantes segundo Propp. Invariante 1 - Desígnio Variante A jovem rainha almejava poder sonhar todas as noites, sem que o guardião de seus sonhos a impedisse. 2 - Viagem O rei espera sua jovem esposa dormir para então “viajar” nos sonhos dela. 3 - Desafio ou Obstáculo O rei se encanta pela montada da imaginação de sua esposa e começa a pensar somente em cavalgar com ela. Seu distanciamento e a solidão da rainha tornam -se um desafio para ela. 4 - Mediação Natural A mediação acontece através da criada da rainha, que a seu pedido, costura as patas decepadas do leão com fios de seda, retomando a figura da fiandeira ou das Parcas. 5 - Conquista do objetivo A criada faz o que a rainha pediu e, assim, o leão volt a a guardar os sonhos dela e o unicórnio nunca mais sairá e o rei não pensará mais somente na montada esquecendo-se de sua esposa. Diálogos & Saberes, Mandaguari, v. 9, n. 1, p. 61-74, 2013 72 De acordo com o que ficou exposto, o conto “Entre Leão e Unicórnio” apresenta algumas características que o aproximam dos contos de fadas tradicionais. Sem, contudo, deixar de ser uma narrativa moderna, o conto resgata temas mitológicos e feéricos, criando uma tessitura intertextual e simbólica. Percebemos que neste conto há a presença de características apontadas por Coelho (2003) que definem os contos de fadas, como, por exemplo: a problemática gira em torno do lado espiritual/ético/existencial, pois há o desejo de uma realização interior, tanto da rainha quanto do rei; embora apresentado de forma problemática, o tema gira em torno do amor, ou da relação conjugal; e há a presença do cavaleiro - o rei - e de sua amada - a rainha -, que buscam a união. No conto “Entre Leão e Unicórnio”, portanto, encontramos um rei que salva a sua esposa de um terrível carcereiro. A princípio o rei se mostra assustado, temeroso, o que demonstra que este não conhecia a sua esposa, pois segredos são revelados na primeira noite do casal. Ele então a salva de terríveis noites sem sonhos, uma das características típicas de um conto tradicional, na qual o rei sempre está destinado a salvar a donzela em perigo. Durante o decorrer do conto, mais uma vez o rei se mostra temeroso e assustado, este tenta fugir ao defrontar-se com um belíssimo unicórnio que aparece em seu castelo, mal sabia o rei que era fruto da imaginação de sua esposa, assim, o rei parece ser despreparado e inseguro. Em seu desfecho fica um mistério, pois não se sabe se o rei ficou com a sua esposa, ou se ele se perdeu nos sonhos dela e de lá jamais saiu, a autora deixa este critério ao leitor decidir se teve ou não um final feliz um final aberto que contradiz de modo geral o final previsível ou direto dos contos de fadas tradicionais. "BETWEEN LION AND UNICORN": A MODERN FAIRY TALE ABSTRACT We present some characteristics of modern fairy tales Marina Colasanti, through reading and analysis of the story "Between Lion and Unicorn", included in the book Twelve Kings and the Labyrinth Lady Wind. The Diálogos & Saberes, Mandaguari, v. 9, n. 1, p. 61-74, 2013 73 results show that the text maintains liaison with the wonderful world of fairies, but is a reinvention of traditional fairy tales, presenting new possibilities for reading, because their symbolic language and hieroglyphics. Keywords: Marina Colasanti. Fairytale. Symbols. REFERÊNCIAS CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A.Dicionário de símbolos. Trad. de Vera da Costa e Silva et al. 9. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1995. COELHO, N. N. O conto de fada: símbolos, mitos, arquétipos. São Paulo: DCL, 2003. COELHO, N. N. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Ed. Moderna, 2000. COLASANTI, M. Doze reis e a moça no labirinto do vento. 12. ed. São Paulo: Global, 2006. COLASANTI, M. Entrevista: 2008. Museu da Pessoa. [Entrevista concedida a Thiago Belotto]. Disponível em: <http://www.museudapessoa.net/mdl/memoriasDaLiteratura/entrevista .cfm?autor_id=59>. Acesso em: 30 out. 2010. SILVA, S. O mito do amor em Marina Colasanti. Goiânia: Cânone Editorial, 2003. Diálogos & Saberes, Mandaguari, v. 9, n. 1, p. 61-74, 2013 74