Número 3, Outubro 2013

Transcrição

Número 3, Outubro 2013
“Conflito sírio: Como os EUA se alinharam com o
Resto do Mundo” por Sandra Coelho
“Rotas de Transição: Segurança Humana na
China” por André R. Cunha
Informédia - Síria
Para além dos acontecimentos mais recentes na área do
State Building and Fragility!
Newsletter nº 3 - Outubro de 2013
Índice
Editorial
A Equipa
III
Director Editorial
Nuno Canas Mendes
Cronologia Fotográfica
IV
“Conflito sírio:
Como os EUA se alinharam
com o Resto do Mundo”
(Sandra Coelho)
VI
Nuno Ferreira
“Rotas de Transição: Segurança Humana na China”
(André R. Cunha)
XI
Edição e Revisão
Informédia - Síria
XV
Errata
XIX
Director Executivo
Sandra Coelho
II
Índice & Equipa
Editorial
C
om o presente número da Newsletter, a equipa do State Building and Fragility
Monitor apresenta dois artigos, que têm entre si nexos evidentes, em que é
importante atentar: a crise na Síria e a segurança humana na República Popular da
China. Todos eles têm no centro duas realidades incontornáveis: os efeitos perversos do
relativismo dos valores e a importância de tornar o Homem o protagonista das relações
internacionais.
De há muito que se discute a urgência de encarar o Direito Internacional não como
um corpo de regras anquilosado mas como um ordenamento maleável, dinâmico e capaz de corresponder às exigências do tempo, para já não falar da insegurança humana
na China.
A catástrofe humanitária da Síria, tratada pela Sandra Coelho, com enfoque no papel dos Estados Unidos, veio de forma gritante e mais do que dramática expor as agruras da aplicação de novos conceitos como o da responsabilidade de proteger. E a China,
por seu turno, sempre ciosa da sua herança da coexistência pacífica, e muito empenhada na defesa de um status-quo na Síria e dentro de fronteiras, persiste na pena de morte, nas transmigrações ou numa já perigosa política do filho único, só para citar alguns
exemplos. É sobre isto que escreve o André Roseta Cunha, cuja tese de Mestrado, brilhantemente defendida há pouco, abarca, com grande profundidade, a temática.
À Sandra dou as boas-vindas, pois veio muito recentemente integrar a equipa,
sempre tão proficientemente orientada pelo Nuno Ferreira. Os textos põe bem em evidência estas tensões e estes nexos. A habitual secção da Cronologia Fotográfica testemunha, com a força das imagens, os acontecimentos mais prementes da actualidade.
Boas leituras!
Nuno Canas Mendes
III
Editorial
Cronologia Fotográfica
E
mbora os momentos mais conturbados pareçam já ter acabado, no Egipto, a
ordem social ainda não foi reposta, com o Presidente deposto, Morsi, a en-
frentar múltiplas acusações em tribunal, enquanto a organização que presidia, a Irmandade Muçulmana, também enfrenta dificuldades, com os seus bens confiscados e
uma ordem de tribunal, para a sua dissolução, pendente.
Também com problemas está a Aurora Dourada, na Grécia, com vários dos seus
líderes à espera de julgamento com acusações várias e suspeitas de ligações ilegais com
sectores da Polícia e das Forças Armadas (que levaram a investigações, prisões e demissões nestas organizações). Isto numa altura em que os partidos de extrema-direita crescem na Europa.
Já na Assembleia Geral da ONU a Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, fez um
longo discurso acusatório, devido às práticas ilegais dos EUA no campo da recolha de
informações. Um discurso que se tornou em acção, quando cancelou indeterminadamente a sua visita diplomática a Washington.
Também na Assembleia Geral da ONU, começou-se a desenhar o novo caminho do
Irão, com uma tentativa de aproximação aos EUA (inédito desde o derrube do Xá) e a
abertura para novas negociações sobre o programa nuclear iraniano.
IV
Cronologia Fotográfica
Na Síria, com a guerra civil ainda intensa, conseguiu-se evitar uma intervenção externa, liderada pelos EUA. Tendo esta ameaça sido feita devido a um ataque com armas
químicas (cujo autor não foi possível determinar), a Rússia conseguiu promover um
acordo (após um muito “badalado” artigo de Putin, no New York Times) em que o regime
sírio entregasse as suas armas químicas para destruição. Processo que tem estado a
correr suficientemente bem para que fosse entregue o Prémio Nobel da Paz à Organização para a Proibição das Armas Químicas (que lidera o processo e a que a Síria passou
a pertencer, depois de Putin também ter sido nomeado devido ao seu papel no acordo).
Devido a todos os problemas que grassam no Médio Oriente e em África, o número
de imigrantes que continua a chegar à Europa tem vindo à aumentar, levando a mais
um desastre em Lampedusa, com dezenas de mortos. Tragédia que levou a uma nova
discussão sobre como é que os Estados europeus podem minimizar o problema.
No Azerbeijão, as últimas eleições correram com grandes suspeitas de corrupção
(tendo chegado a sair resultados antes de se iniciar o acto eleitoral e sem que a EU enviasse qualquer escrutinador) e com a esperada vitória do Presidente Ilham Aliyev.
E mais uma vez, o Prémio Mo Ibrahim voltou a não ter nenhum vencedor, devido à
falta de condições dos candidatos (presidentes africanos eleitos democraticamente e que
saiam no fim do seu mandato).
Por fim, numa acção inesperada, a Arábia Saudita recusou o assento disponível
para o Conselho de segurança da ONU, por considerar que as diferenças de direitos
dentro do órgão não lhe permitiriam fazer o seu trabalho (fazendo claras referências à
solução encontrada para a Síria e à continua indefinição da questão palestiniana). Isto
depois de um longo período de campanha para alcançar o lugar...
Fontes das Imagens:
Imagem número 1- http://images.thenews.com.pk/updates_pics/morsi-egypt-trial-protesterdeath_10-9-2013_121818_l.jpg
Imagem número 2- http://www.dw.de/image/0,,17121539_303,00.jpg
Imagem número 3- http://s1.reutersmedia.net/resources/r/?
m=02&d=20130924&t=2&i=796952724&w=&fh=&fw=&ll=460&pl=300&r=CBRE98N145T00
Imagem número 4- http://images.thenews.com.pk/updates_pics/Iran-ready-nuclear-talks_8-72013_112731_l.jpg
Imagem número 5- http://i4.mirror.co.uk/incoming/article2274518.ece/ALTERNATES/s615/
CS47797694TOPSHOTS-US-Secre-2274518.jpg
Imagem número 6- http://static.guim.co.uk/sys-images/Guardian/Pix/audio/
video/2013/10/3/1380797683971/Body-bags-containing-migr-016.jpg
Imagem número 7- http://azerbaijanfreexpression.org/wordpress/wp-content/uploads/2010/11/
Azerbaijan-Elections-2010-c-Matthias-Catón-500x230.jpg
Imagem número 8- http://imgs.sapo.pt/gfx/555649.gif
Imagem número 9- http://www.jpost.com/HttpHandlers/ShowImage.ashx?
id=228557&h=236&w=370
V
Cronologia Fotográfica
Conflito sírio:
Como os EUA se alinharam com o Resto do Mundo
por Sandra Coelho,
Aluna do Mestrado em Estratégia no ISCSP
E
m Janeiro de 2011, a par da Primavera Árabe, verificaram-se os primeiros
protestos pró-democráticos contra o regime de Bashar al-Assad. Porém, foi no
dia 18 de Março, que nasceu o conflito na Síria quando milhares de indivíduos se manifestaram, em Damasco e Deraa, contra o presidente Assad, exigindo a sua demissão, e
foram reprimidos violentamente pelas forças de segurança sírias.1 2 Nos meses seguintes, o governo efectuou algumas reformas no regime, numa tentativa de controlar o descontentamento social, das quais se destacam: o levantamento do Estado de Emergência
(que durou 48 anos)3; a legalização de vários partidos políticos; e a liberalização das
eleições nacionais e locais. Contudo os protestos mantiveram-se e eram reprimidos com
extrema violência, causando dezenas de mortos.4
A situação na Síria chamou a atenção da comunidade internacional, nomeadamente da União Europeia (UE), que decretou várias sanções, que incluíam o congelamento dos bens de altos funcionários sírios e a aplicação de um embargo de armas a
todo o país.5 A crescente violência na Síria acabou por causar o isolamento internacional da mesma, uma vez que não só os países da UE, como os EUA, a Turquia e a Organização das Nações Unidas (ONU) condenaram o regime de Bashar al-Assad e pediram
para que este se afastasse da presidência.6 No entanto, no caso da ONU, a Rússia e a
China, na qualidade de membros permanentes do Conselho de Segurança, vetaram resoluções que condenassem oficialmente a Síria.7 A nível regional, a Liga Árabe, solicitou
ao governo sírio a libertação dos presos políticos e a retirada de veículos armados das
ruas, para que os actos de violência terminassem.8
Em Dezembro de 2011, o presidente Assad acabou por autorizar a entrada de monitores da Liga Árabe, para que estes implementassem um plano de paz na Síria.9 A primeira análise foi positiva, o que gerou diversas críticas por parte da oposição síria e
grupos de defesa dos direitos humanos, acusando o governo sírio de manipulação dos
resultados. Inevitavelmente a credibilidade da missão foi diminuindo e, em Janeiro de
2012, acabou por ser suspensa devido ao aumento da insegurança no terreno.10
Ao longo de 2012 os incidentes entre governo sírio e as forças anti-regime tornaram-se cada vez mais violentos, e, como tal, a ONU, em conjunto com a Liga Árabe, designou como representante, Kofi Annan (antigo secretário-geral nas Nações Unidas), paVI
Artigo 1 - Conflito sírio
ra que este conduzisse as negociações de cessar-fogo entre o regime sírio e a oposi-
ção.11 Todavia, as negociações de paz falharam, o conflito voltou a agravar-se, levando
o Comité Internacional da Cruz Vermelha a classifica-lo como guerra civil.12 Em Agosto
Annan demitiu-se do cargo de enviado da paz, e como forma de protesto, a Inglaterra,
França, Espanha, Itália, o Canadá, entre outros, expulsaram embaixadores e diplomatas sírios, dos seus respectivos territórios.13
Em Novembro de 2012, formou-se a Coligação Nacional Síria, cujo principal objectivo é o derrube do regime de Bashar al-Assad. O movimento foi reconhecido por diversos países, designadamente a Turquia, o Qatar, os EUA, França e Inglaterra, como o
representante legítimo do povo sírio.14 Nesta fase, o Observatório Sírio para os Direito
Humanos estimou que cerca de 40.000 pessoas tinham perdido a vida na guerra síria,
dos quais metade seriam civis e a outra metade dividia-se entre as tropas do governo e
rebeldes.15 Devido ao alarmante número de fatalidades e às constantes violações dos
direitos humanitários, os EUA definiram que a utilização de armas químicas por parte
do governo da Síria seria o limite, admitindo uma possível intervenção (ainda que limitada) no país, caso essa fronteira fosse ultrapassada.16
O desenvolvimento do confronto civil tornou claro quem eram os aliados e os inimigos da Síria. A Coligação Nacional Síria, não só é legitimada por grande parte dos
países do Ocidente e por alguns países do Médio Oriente, mas também é financiada pelos mesmos, particularmente pela Turquia, pelo Qatar, pela Arábia Saudita, pelos EUA,
pela Inglaterra e por França.17 18 Já o governo sírio é apoiado militarmente pelo Irão,
pelo Hezbollah libanês e pela Rússia, e mantém boas relações com a China, com o Líbano, com a Jordânia e com o Iraque, embora estes países sejam oficialmente neutros
no conflito.
19
Ao longo dos dois anos de guerra, foi debatida uma possível intervenção militar na
Síria, verificando-se a inclinação da comunidade internacional para a não ingerência.
Apesar do Ocidente condenar as acções do regime de Assad, é possível atribuir a não
intervenção a três razões: em primeiro lugar, os EUA definem que a utilização de armas
químicas é a sua fronteira da não ingerência, como já foi referido anteriormente. Esta
“linha” traçada pelos EUA acabou por ser interiorizada pela comunidade internacional,
adiando o momento em que esta seria obrigada a tomar uma decisão – intervir ou não
intervir. Em segundo lugar, procurou-se evitar uma ingerência sem o aval das Nações
Unidas. A utilização do veto, pela Rússia e pela China, para impedir a aprovação de resoluções contra a Síria, causam o bloqueio do Conselho de Segurança, o que significa,
que uma intervenção no conflito não seria legitimada pela Organização. Por fim, as forças de oposição na síria são compostas por uma enorme diversidade de elementos, noVII
Artigo 1 - Conflito sírio
meadamente grupos islâmicos extremistas, com ligações a organizações terroristas, co-
mo a Al-Qaeda.20 Ou seja, armar os rebeldes poderá significar armar terroristas, portanto, o Ocidente tem evitado esta opção, oferecendo apenas apoio internacional em vez
de recursos materiais.
No entanto, a barreira moral foi transposta com os ataques químicos de 21 de
Agosto de 2013, em Ghouta. Os EUA estimam que terão morrido cerca de 1.400 pessoas, intoxicadas pelo gás sarin.21 Apesar do presidente Assad e a Coligação Nacional Síria trocarem acusações relativamente à autoria dos ataques, até hoje ainda não foi possível encontrar o responsável. Há correntes que defendem que os rebeldes não possuíam os recursos para executar o ataque e como tal responsabilizam o regime sírio pelos
ataques, enquanto, outras correntes defendem que a oposição utilizou as armas químicas como forma de obrigar o Ocidente, a intervir na guerra civil contra Bashar al-Assad.
Os EUA, a Inglaterra e França, defendem que Assad é responsável pelos ataques, e como tal, a sua posição tornou-se mais rigorosa quanto à intervenção na Síria.
Portanto, a Administração Obama, estava determinada quanto à entrada na guerra
contra a Síria, admitindo estar preparada para uma intervenção unilateral.22 Todavia
não conseguem convencer a opinião pública, quer nacional, quer internacional, a apoiar essa decisão. Embora, fosse apoiado, na Europa pela Inglaterra e pela França e no
Médio Oriente por Israel, pela Turquia, pela Arábia Saudita e pelo Qatar, a resistência
da restante comunidade internacional e a inviabilidade da participação na guerra, pelos
motivos referidos anteriormente, foram mais fortes.23 A oposição a qualquer operação
militar na Síria, liderada pelo presidente russo, Vladimir Putin, e apoiada pela China,
abre caminho para a diplomacia como solução para o conflito sírio. Perante a pressão
interna e externa, Barack Obama aceita a proposta russa, que consiste em pôr o arma-
mento químico da Síria sob vigilância internacional. A proposta também é aceite por
Damasco.24
Verificamos então que os EUA, que tradicionalmente persuadem a comunidade
internacional a apoiar este género de missões no Médio Oriente, acabam por ser influenciados pela última, invertendo a sua posição na balança de poderes. O fio condutor
da política externa norte-americana é a manutenção da liderança mundial, e na sua visão, parte integrante dessa liderança é a capacidade material e imaterial de conservar o
equilíbrio da ordem internacional. Portanto a não intervenção na guerra civil da Síria a
favor da via diplomática, cedendo à pressão internacional poderá ter duas leituras: por
um lado, os EUA estão a abdicar da liderança mundial, a favor da estabilidade da comunidade internacional; ou por outro lado, os EUA só não realizam uma intervenção
unilateral, porque, na realidade, não tem a capacidade económica para a executarem.
VIII
Artigo 1 - Conflito sírio
Independentemente do ponto de vista é de facto histórico o alinhamento dos EUA à co-
munidade internacional e não o inverso.
http://www.jornaldenegocios.pt/
2 http://www.bbc.co.uk/
3 Ibid.
4 https://www.cia.gov/
5 http://www.britannica.com/
6 Ibid.
7 http://www.bbc.co.uk/
8 http://www.britannica.com/
9 http://www.bbc.co.uk/
10 http://www.britannica.com/
11 Ibid.
12 http://www.bbc.co.uk/
13 Ibid.
14 Ibid.
15 http://www.huffingtonpost.com/
16 http://www.cbc.ca/
17 A UE não renovou o embargo de armas na Síria, em 2013, para possibilitar aos Estados-membros o
fornecimento de armamento às forças rebeldes. Fonte: http://www.bbc.co.uk/news/world-middle-east14703995
18 http://www.aljazeera.com/
19 Ibid.
20 http://www.policymic.com/
21 http://www.bbc.co.uk/
22 Ibid.
23 Ibid.
24 Ibid.
1
IX
Artigo 1 - Conflito sírio
Referências Bibliográficas
http://www.aljazeera.com/indepth/interactive/2013/08/201383111193558894.html [[último
acesso no dia 13 de Outubro de 2013]
http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2013/09/20139110403930571.html [último acesso
no dia 8 de Outubro de 2013]
http://www.bbc.co.uk/news/world-middle-east-23927399 [último acesso no dia 12 de Outubro de
2013]
http://www.bbc.co.uk/news/world-middle-east-23849587 [último acesso no dia 13 de Outubro de
2013]
http://www.bbc.co.uk/news/world-middle-east-18849362 [último acesso no dia 10 de Outubro de
2013]
http://www.bbc.co.uk/news/world-middle-east-1470399 [último acesso no dia 11 de Outubro de
2013]
http://www.cbc.ca/news2/interactives/syria-dashboard/index.html [último acesso no dia 11 de
Outubro de 2013]
https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/sy.html [último acesso no dia
8 de Outubro de 2013]
http://www.britannica.com/EBchecked/topic/1781371/Syrian-Civil-War [último acesso no dia 8
de Outubro de 2013]
http://www.huffingtonpost.com/2012/11/23/more-than-40000-killed-s_n_2176865.html [último
acesso no dia 11 de Outubro de 2013]
http://www.jornaldenegocios.pt/economia/detalhe/siria_a_cronologia_dos_conflitos.html [último
acesso no dia 9 de Outubro de 2013]
http://www.policymic.com/articles/42317/who-are-the-syrian-rebels-a-basic-intelligence-briefingon-the-assad-resistance [último acesso no dia 11 de Outubro de 2013]
X
Artigo 1 - Conflito sírio
Rotas de Transição: Segurança Humana na China
por André R. Cunha,
Investigador Assistente no Observatório de Segurança Humana
Q
uando a dinastia Zhou derrubou a dinastia Shang séculos antes de a China
poder sequer aspirar à hegemonia regional não havia teoria política que apoi-
asse uma transição legítima do poder político. Transição e legitimidade eram por isso o
fruto proibido da China Ancestral que até então ninguém se atrevera a colher.
A teorização do conceito de Mandato do Céu pelos Zhou resolveu o problema ao associar fenómenos naturais como cheias, desertificação de terrenos agrícolas, fome e peste, à
manifestação divina dos Céus do desagrado para com a dinastia no poder, legitimando
assim fenómenos subversivos. A partir daqui, o uso e desenvolvimento do conceito de
Mandato do Céu caminharia de mãos dadas com fenómenos de transição política na
China, e se nos libertarmos de chauvinismos científicos por um momento podemos facilmente perceber o grau de precisão técnica quando chegamos ao momento de aplica-
ção do mesmo.
Sendo a China desde a fundação até ao limiar do século XXI um Estado cuja economia depende da pujança da sua agricultura, a manutenção de sistemas hidráulicos
avançados como barragens e diques e o seu equilíbrio com o ambiente circundante colocavam sobre a elite no poder um desafio de complexidade elevada – ainda hoje nos debatemos com ele – que lenta mas seguramente acabava por influenciar a degeneração e
queda da mesma. A verdade é que sistemas hidráulicos avançados eram caros de manter, causavam um efeito de águas paradas e de acumulação de resíduos difícil de resol-
ver, e tinham resultados na vitalidade dos terrenos circundantes. Combinando isto com
a deflorestação descontrolada destinada a fazer a manutenção desses sistemas hidráulicos e a aumentar a área agrícola sem a qual seria praticamente impossível alimentar
uma população sempre em expansão, a longo-prazo a fertilidade declinava enquanto a
desertificação avançava, o output agrícola tornava-se insuficiente, e os recursos necessários à manutenção dos sistemas hidráulicos eram cada vez mais difíceis de adquirir.
O seu colapso levava a cheias, perdendo-se colheitas e originando-se situações de fome
e doença, bem como a revolta generalizada dos camponeses pela incapacidade do regime em manter os diques e em assegurar a prosperidade. A legitimidade da dinastia erodia-se e era posta em prova com cada novo movimento subversivo que competia com
ela pelo poder político.
O Mandato dos Céus explicava por isso tudo isto de forma simples, conferindo a
XI
Artigo 2 - Segurança Humana na China
problemas materiais uma configuração abstracta e semimística de fácil compreensão
pela população e por grupos com aspirações à captura do poder de uma realidade que
se tornava óbvia a cada nova manifestação “divina”: a elite perdera legitimidade, e tinha
que ser alterada.
Mas o que tem isto a ver com Segurança Humana?
A verdade é que apesar dos seus méritos o Mandato do Céu acaba, na sua tentativa de simplificar a realidade, por confundir causas com consequências. O declínio das
condições materiais relevantes para a actividade económica chinesa não era motivado
pelo declínio da capacidade organizacional do Estado, mas antes o contrário. E apesar
de a transição despoletada ter sempre ou quase sempre um efeito catártico na sociedade chinesa, a verdade é que este sempre veio a grande custo humano e material, um
pouco como acabava por acontecer noutras regiões do globo até há bem pouco tempo.
E é precisamente isto que a Segurança Humana procura evitar.
O conceito é novo e altamente polémico entre especialistas na grande temática da
Segurança, Relações Internacionais ou Ciência Política, mas a sua abordagem é nova
por aplicar uma perspectiva multissectorial que procura securitizar outros campos da
actividade social que não apenas a acumulação e uso estratégico de poder bélico.
Mas até onde deve ir este alargamento da esfera de Segurança? Nem todos os teóricos da Segurança Humana concordarão comigo, mas tal como Hobbes eu acredito que
quanto mais aspectos da vida social o Leviatã securitizar menos livre o individuo se torna. Como tal, a principal aspiração metodológica da Segurança Humana deve estar em
criar limites mínimos de Segurança (“thresholds”) em sectores bem definidos de actividade social a partir dos quais uma determinada questão passa a ser tratada na esfera
do debate e compromisso político normal, evitando o constrangimento estrutural de li-
berdades individuais e o surgimento de clivagens perigosas para a estabilidade política.
A meu ver, e justifiquei-o metodologicamente noutra ocasião (Cunha, 2013), a Segurança Humana deve criar limites mínimos de segurança em quatro sectores distintos
mas relacionáveis, sendo eles a Segurança Alimentar, a Segurança Societal, a Segurança Ambiental e a Segurança Política.
Em linha com episódios anteriores na História da China, o Grande Salto em Frente
e a Revolução Cultural que se lhe seguiu trouxeram consigo um elevado grau de irracionalidade na prossecução da política agrícola Chinesa, entre os quais a remoção de incentivos materiais à produção para os agricultores individuais, a má utilização de recursos naturais, a remoção de trocas inter-regionais e intrarregionais de bens alimentares em linha com o principio de autonomia, e o planeamento central por quotas que
não tinha em conta especificidades agrícolas locais e que levavam a elevados níveis de
XII
Artigo 2 - Segurança Humana na China
ineficiência económica, à fraca especialização da produção e por isso a uma diversidade
alimentar residual e pouco nutritiva (Lardy, 1983). Não é possível compreender o estado
da Segurança Alimentar na China actual sem antes ter uma noção elementar do passado recente do sector primário naquele país.
As reformas do sector agrícola que se iniciaram na segunda metade dos anos 70 e
que continuam até hoje descentralizaram a decisão, devolveram alguns direitos sobre a
produção e a propriedade aos agricultores, reabriram mecanismos de transferências entre regiões, permitiram a reintrodução de mercados locais e deram aos agricultores o
poder de cobrar mais pelos bens produzidos, melhorando as suas condições de vida e a
sua capacidade para reinvestir na produção. Dos quatro sectores acima referenciados, e
apesar dos haver problemas para a sustentabilidade da política agrícola chinesa no longo-prazo, hoje o limite mínimo atribuído à Segurança Alimentar é o que se encontra plenamente satisfeito, sendo que em 2002 a China atingia o consumo per capita de 2,905
calorias por dia, bem acima do mínimo estipulado pelo Banco Mundial de 2,300 calorias por dia e até acima da média mundial, a rondar na altura as 2,804 calorias por dia.
O mesmo não pode ser dito relativamente à Segurança Societal e à Segurança Ambien-
tal. A China tem nas últimas décadas prosseguido uma política étnica altamente ambivalente e de alto-custo relativamente às minorias presentes nas periferias do país, em
particular em Xinjiang com a minoria uyghur, na Mongólia Interior com os mongóis e
no Tibete para com os tibetanos. Tratam-se de regiões que têm vindo a ser receptoras
de elevados níveis de investimento económico para a extracção de recursos naturais como gás e carvão e que por isso têm visto uma elevada afluência da maioria étnica Han,
causando clivagens sociais perigosas com os locais, que se sentem discriminados
(HRIC, 2007).
Contudo, boa parte da discriminação é percepcionada como tal devido ao fracasso
dos governos regionais em integrar as minorias no processo de modernização do país.
Podemos exemplificar no Tibete. Tal como na Europa oitocentista, a China está a prosseguir uma política escolar centralizadora e laica que procura criar uma Escola Pública
com programas uniformes para o país inteiro e que por isso têm pouca sensibilidade
para com contextos locais. Tendo em conta que até aqui os Mosteiros Budistas colmatavam a educação escolar das crianças tibetanas e que o governo não oferece esferas alternativas de manifestação e educação cultural, os tibetanos sentem que o governo central está a procurar neutralizar o Budismo na China. Isto é agravado pelo historial com
o Dalai Lama, pelo belicismo irracional do PCC e pela sua incapacidade de aprender
com exemplos históricos chineses de acomodação de minorias étnicas que ainda hoje
persistem noutros pontos do país.
XIII
Artigo 2 - Segurança Humana na China
Quanto à Segurança Ambiental, o cerceamento de lagos durante o Grande Salto
em Frente, o abuso de pesticidas pelos agricultores, a deflorestação descontrolada mal
colmatada por uma política ineficiente baseada em monoculturas e a construção abusiva de grandes barragens – entre as quais a altamente polémica Três Gargantas — colocam sobre pressão a fertilidade dos terrenos e ampliam a desertificação, que em simultâneo com a urbanização têm levado a uma diminuição preocupante da percentagem de
terra arável e de água potável na China (Economy, 2004).
Tudo isto poderia parcialmente ser resolvido se a Segurança Política na China,
contida pelo limite mínimo do Estado de Direito, estivesse em boas condições. Mas apesar de os tribunais chineses julgarem anualmente cerca de 8 milhões de casos por ano
e de a maioria dos veredictos estarem em conformidade com a Lei, a incapacidade técnica dos juízes no interior, a falta de recursos e a dependência excessiva dos tribunais
para com financiamento local, e a inexistência de uma definição jurídica de conceitos
como “subversão” levam a falhas de justiça graves que descredibilizam o regime no seu
todo (Peerenboom, 2010).
Apesar de fracos, já existem grupos com aspiração política e potencial subversivo
no país. O Partido Democrático Chinês e a Fundação Federal da China são dois exemplos. Resta saber se quando o regime actual perder o Mandato do Céu a transição seguirá os moldes tradicionais com elevados custos humanos e materiais, ou se a securitização correcta e atempada de limites mínimos de Segurança possibilitará uma transferência pacífica pela criação de instituições robustas capazes de evitar o caos que se
segue ao esvaziamento violento do poder político.
Referências Bibliográficas
CUNHA, André R. (2013a), The A rt of Security: Human Security and W hy China Needs It, Lisboa, Edição
do Autor, disponível na biblioteca do ISCSP-UTL
ECONOMY, Elizabeth (2004), The River Runs Black: The Environmental Challenge to China’s Future,
Ithaca & London, Cornell University Press
HRIC (2007), China: Minority Exclusion, Marginalization and Rising Tensions, MRG
LARDY, Nicholas R. (1983), A griculture in China’s Modern Economic Development, New York, Cambridge University Press
PEERENBOOM, Randall P. (ed.) (2010), Judicial Independence in China: Lessons for Global Rule of Law
Promotion, Cambridge, Cambridge University Press
XIV
Artigo 2 - Segurança Humana na China
Informédia
“A Informação via multimédia!”
Síria
P
rosseguindo no nosso objectivo de trazer informação mais detalhada (e especializada) via conteúdos multimédia, neste número procuramos aprofundarmo-
nos no conflito mais discutido nos últimos tempos: a guerra civil síria.
Para tal, recorremos (uma vez mais) ao Stratfor, para vos trazer mais três vídeos de
especialistas sobre o assunto. O primeiro vídeo, com a analista do Startfor Reva Bhalla,
analisa as consequências económicas que poderiam advir de uma intervenção norteamericana na Síria. O segundo vídeo, também com a analista Reva Bhalla, acompanhada por Rodger Baker, analista do Stratfor para a Ásia-Pacífico, analisa a proposta e posição da Rússia em relação ao conflito sírio e as consequências de tal proposta, tendo
em atenção as repercussões que podem vir a existir nas posições iraniana e nortecoreana (em relação aos seus próprios projectos armamentistas). Este vídeo, tal como o
primeiro, são anteriores ao acordo entre a Rússia e os EUA, analisando assim posições
que já começam a ser descartadas (não deixando, no entanto, de ser importantes para
uma análise séria do conflito). O terceiro vídeo, com Ashley Lindsey, analista do Stratfor
para o Médio Oriente, analisa as actividades do grupo jihadista “Islamic State of Iraq in
the Sham” (ISIS) na Síria, que embora, teoricamente, lutem contra o regime, também
têm combatido forças rebeldes, com intuito de criar o máximo de instabilidade possível.
1- Economic Effects of a Syria Strike — http://www.stratfor.com/video/economiceffects-syria-strike
2-
Conversation:
The
Consequences
of
a
Syrian
Intervention
—
http://
www.stratfor.com/video/conversation-consequences-syrian-intervention
3– Syria: Multi-front War by an al Qaeda Franchise — http://www.stratfor.com/
sample/video/syria-multi-front-war-al-qaeda-franchise
“These videos are republished with permission of Stratfor.”
XV
Informédia - Síria
Errata
Com o nosso maior pedido de desculpas (aos autores e leitores) seguem, abaixo,
correcções em relação ao 1º e 2º números da ‘Newsletter’.
1º Número:
No artigo “A queda do governo na Bulgária”, a última frase ficou cortada. Sendo
assim, (onde se lê «Com a queda do governo fica visível que as sociedades do Leste Europeu co-»,) dever-se-ia ler: «Com a queda do governo fica visível que as sociedades do Leste Europeu começam a ter níveis de exigência de boa governação semelhantes àqueles que
já existem noutros Estados membros da União.»
2º Número:
No artigo “Relações entre Portugal e Turquia”, o início do artigo foi adulterado (tendo
-lhe sido acrescentado o primeiro parágrafo do artigo “O Mapa Cor-de-Rosa do Século XXI:
O desenvolvimento económico de Angola e Moçambique” ( «Como sabemos, nos finais do século XIX, muitos foram os desafios enfrentados por Portugal, principalmente, na manutenção do seu extenso império ultramarino. O império ultramarino português era cobiçado pelas restantes potências europeias. Potências essas, que com a Conferência de Berlim (1884-
1885), tinham mais poder de adquirir colónias, tornando-se o continente africano o grande
protagonista de uma divisão historicamente feita “ a régua e a esquadro”.»), do mesmo número. Como tal, apenas o restante texto pertence ao artigo.
XVI
Errata

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