da liberdade como condenação à ambiguidade

Transcrição

da liberdade como condenação à ambiguidade
Nº 3, volume 10, artigo nº 3, Julho/Setembro 2015
D.O.I: http://dx.doi.org/10.6020/1679-9844/v10n3a3
DA LIBERDADE COMO CONDENAÇÃO À AMBIGUIDADE
DESVELADORA: AS CAUSAS EXISTENCIAIS DA LIBERDADE
FROM FREEDOM AS CONDEMNATION TO THE UNVEILING
AMBIGUITY: THE EXISTENTIAL CAUSES OF FREEDOM
Márcia Regina Viana1, Gilberto Gomes2
1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pós-Doutoranda na Universidade Estatual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro, email:
[email protected]
2
Universidade Estatual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro; Professor do Programa de PósGraduação em Cognição e Linguagem; Campos dos Goytacazes-Rio de Janeiro, email:
[email protected]
Resumo: Abordamos a contradição entre “condenado” (privado de liberdade) e “livre”,
presente da formulação de Sartre (retomada por Galen Strawson): o ser humano não é livre
para não ser livre. Numa abordagem neurofilosófica, discutimos as vertentes do pensamento
compatibilista e incompatibilista quanto à relação entre liberdade e determinismo. A
“condenação” aparece então como uma determinação estrutural e biológica, decorrente
tanto da capacidade cerebral humana, quanto do desenvolvimento do indivíduo no meio
social. A capacidade de antever, tanto as condições externas, como sua própria ação, bem
como as consequências dessa ação, levam à possibilidade de determinar, embora dentro de
certos limites, sua ação, tanto prática quanto mental, de modo a não poder deixar de fazer
escolhas e determinar sua ação por essas escolhas. Por último, focalizamos a posição de
Simone de Beauvoir, que contempla a condição paradoxal de ser livre em um mundo
determinado por outras presenças e a ambiguidade da solidão existencial entre sujeitos que
desvelam a liberdade no dado do mundo. Segundo ela, embora não possa deixar de
defrontar-se com sua liberdade, o ser humano é livre para renunciar a ela e demitir-se de
ser. A neurofilosofia, com sua forma própria de apreciar a resolução existencial do indivíduo,
mostra um modo diferenciado de considerar a experiência de liberdade vivenciada pelo
indivíduo. De acordo com seu ponto de vista, o ser humano não reúne em si mesmo
tamanha autonomia de decisão. Esta noção – a da soberana liberdade da vontade – seria
uma ilusão alimentada pela tradicional noção de supremacia da razão cultivada desde os
tempos modernos.
Palavras-chave:
determinismo.
liberdade,
vontade
livre,
Simone
de
Beauvoir,
existencialismo,
Abstract: We address the contradiction between "condemned" (deprived of freedom) and
"free", present in Sartre’s formulation (reconsidered by Galen Strawson): the human being is
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not free not to be free. In a neurophilosophical approach, we discuss the aspects of
compatibilist and incompatibilist thought concerning the relationship between freedom and
determinism. "Condemnation" then appears as a biological and structural determination, due
both to the human brain capacity, and the development of the individual in the social
environment. The ability to predict both the external conditions and one’s own action, as well
as the consequences of this action, lead to the possibility of determining one’s actions, both
practical and mental, though within certain limits. Thus, one cannot fail to make choices and
determine one’s own action by these choices. Finally, we focus on the position of Simone de
Beauvoir, which addresses the paradoxical condition of being free in a world determined by
other presences, and the ambiguity of existential loneliness among subjects who unveil
freedom in the given of the world. According to her, although one cannot fail to face one’s
freedom, one is free to give it up and resign from being. The neurophilosophy with its own
way to appreciate the existential resolution shows a different way to consider the experience
of freedom experienced by the individual. According to its view, the human being does not
possess in itself such autonomy of decision. This notion - the sovereign freedom of the will would be an illusion fueled by the traditional notion of the supremacy of reason cultivated
since the modern times.
Key-words: freedom, free will, Simone de Beauvoir, existentialism, determinism.
Introdução
O problema da liberdade humana sempre foi tema de investigação entre os
filósofos. Desde a Antiguidade encontramos esse debate presente nos tratados de
filosofia. Os escritos de Aristóteles (384-322 a.C.) sobre Ética e Política configuram
os primeiros grandes tratados sobre o comportamento humano nos aspectos
pessoal e social.
Seu pensamento apresenta uma doutrina ética que tem como
pressuposto a razão humana como tutora de sua conduta. A razão aristotélica é um
conceito impregnado de ideais teleológicos que envolvem o convívio do ser com o
outro e do ser com o meio em que vive, pois Aristóteles pensou o homem numa
ontologia da physis. Isto significa que se insere na teoria das causalidades naturais,
mas é no homem que a physis se manifesta em supremacia perante outros seres.
Na Idade Moderna surge o pensamento dualista de René Descartes,
apresentando a oposição das funções de corpo e mente. Esta ideia marcava a
negação de qualquer relação de dependência do pensamento humano em relação à
natureza física. Com Descartes o cogito adquiriu supremacia sobre o fisicalismo e a
noção de cultivo da virtude ética e política, incluindo a mediania aristotélica como
telos do comportamento humano, foi posta de lado, sendo substituída por uma
noção mecanicista segundo a qual o indivíduo tem um movimento próprio, que não
necessita ou não depende de outro movimento maior (o da natureza).
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No final da Idade Moderna, Kant apresenta seu idealismo transcendental que
em essência postula que o indivíduo conserva em si mesmo formas e conceitos a
priori, independentes da experiência concreta. A partir deste postulado, formula o
imperativo categórico que normatiza o comportamento moral com a máxima "age de
maneira tal que o fundamento de tua ação sempre possa valer como princípio de
uma lei universal."
Esta breve abordagem acerca de três paradigmas da ideia de liberdade é
importante para situarmos a origem da frase sartreana “somos condenados a ser
livres”. Como era de se esperar, Sartre herdou a sistematização filosófica tradicional
e em sua afirmação é possível entrever algumas nuances das noções supracitadas:
a ideia do homem em meio a uma natureza - a situação existencial; a ideia de razão
soberana - a escolha (racional) de exercer sua liberdade; a ideia de imperativo,
presente na própria frase “condenado a ser livre”.
A seguir são traçadas algumas considerações sobre o existencialismo.
O pensamento existencialista
É reconhecido haver vertentes diferenciadas do existencialismo e estas
distinções irão flutuar entre os fundamentos eleitos para nortear a tendência de qual
aspecto da existência é tomado como problema original1. Entretanto, pelo menos
duas qualidades parecem ser fundamentais para caracterizar esta linha de
pensamento: a primeira é a opção por analisar a condição humana sem
intermediações conceituais e observá-la em seu desenrolar cotidiano. A segunda
acaba se destacando como consequência da primeira: o existencialismo inaugura
uma ruptura com as metafísicas essencialistas ao privilegiar a facticidade existencial
antes de qualquer apreciação conceitual, como durante muitos séculos foi
observado acontecer ao se pensar o ser humano, desde os gregos até o
pensamento moderno – o longo período em que se estudou a essência humana
como que desvinculada de seu nicho existencial factual.
Talvez o tema mais caro ao existencialismo seja a atribuição da existência
como possibilidade ontológica de liberdade. O ser humano é liberdade que vai se
1
Essas diferenças podem ser exemplificadas pela singularidade de pensamento de Kierkgaard, Karl Jaspers ou
Gabriel Marcel, filósofos existencialistas, mas de orientações diferenciadas.
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construindo ao longo da trajetória existencial. A liberdade não é uma característica
que se adquira, mas é inerente ao ser; o ser é liberdade em processo de realização.
É por isso que o homem não é uma essência pronta, acabada, mas é uma
existência que vai se constituindo num mundo ambíguo e paradoxal.
Jean-Paul Sartre toma a existência humana especialmente sob o ângulo da
liberdade. Ser humano é ser livre. Sendo inteligente e capaz de tomar decisões, não
há como não ser livre: o ser é condenado à liberdade. A liberdade dá a si própria um
projeto de existência. É por isso que o homem não é essência dada e sim existência
em construção. O resultado do exercício da liberdade é imprevisível: o homem pode
construir-se ou destruir-se. Por isso a liberdade é angústia.
A frase de Sartre – “Somos condenados a ser livres”
“...o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se
criou a si próprio; e no entanto, livre porque, uma vez lançado no
mundo, é responsável por tudo quanto fizer (SARTRE, 1973, p.15)”.
Nesta afirmação entende-se que a ideia sartreana de liberdade é a de que ela
é uma condição humana absoluta. Desde que o ser humano surge no mundo como
tal, ele está fadado à liberdade. Note-se, entretanto, que fica por definir que
momento é este: se esta destinação à liberdade está já presente no infante (o bebê
que não fala), em sucessão à evolução biológica, ou se se manifestaria somente
mais tarde. A partir do momento em que a evolução biológica e social reconhece no
existente a competência de decisão, então sua condenação à liberdade está
lograda. Podemos entretanto ponderar que o “momento” de conquista da dita
competência existencial, na verdade, não é exatamente um momento; refere-se
antes ao processo de amadurecimento biológico e social, trajetória em que o
indivíduo adquire gradativamente o status de indivíduo adulto e responsável e por
isso, “condenado à liberdade”.
O homem não pode ser senão livre – é condenado a ser livre. O sentido
originário da expressão é não haver outra possibilidade existencial, a não ser a
liberdade. Pode parecer contraditório ou pelo menos surpreendente encontrarmos,
em um pensamento que se propõe a afirmar a liberdade humana, vocábulo que
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contenha em si mesmo a negação desta ideia. A liberdade pode ser vista como a
qualidade de não estar submetido a qualquer tipo de impedimento para agir e ser
livre é gozar de liberdade pessoal. Fala-se muitas vezes em liberdade pessoal no
sentido de não se estar sujeito a autoridade, controle, interferência, restrição,
condições estorvantes etc. Um indivíduo é livre desde que ninguém o force a agir ou
o proíba de agir de certa maneira. Com definições como essas deduzir-se-ia que o
homem é condenado a não estar submetido a qualquer impedimento para agir,
condenado a gozar de liberdade pessoal, condenado a não estar sujeito a
autoridade, controle, interferência, restrição, etc. O termo condenado impõe o
sentido de que não há outra alternativa para o homem que não seja ser livre, e isto
consistiria em exercer as possibilidades apresentadas acima ou escolher não
exercer nenhuma dessas possibilidades, o que ainda assim constituiria liberdade:
aquela de fazer-se objeto de outrem.
A filosofia existencialista em sua época de ouro – meados do século passado,
orientou um singular estilo de vida entre seus adeptos. Reconhecia-se ao longe um
existencialista pelo modo de vestir-se, expressar-se e comportar-se (o que não era
diferente do modo de afirmação que as mais variadas “tribos” utilizavam e ainda
utilizam para construir “identidade”). Os existencialistas clamavam por “ocuparem”
suas existências em plenitude: preenchê-las ao máximo com a intensidade de
momentos “cheios de vida e emoção”: falas incisivas em longas noites esfumaçadas
e “problematizadas”, algumas atitudes de desafio à normatização social, pois
cunhava-se o existencialista como alguém “mais” livre e despojado e por isso,
poderia situar-se acima das normas. O pensamento popular reflete essa visão do
existencialista, por exemplo, na marchinha Chiquita Bacana: “Existencialista (com
toda a razão), só faz o que manda o seu coração”. Este estereótipo do
existencialista como aquele que se dá mais liberdade que os demais – no sentido de
não submeter-se a normas ou convenções que cerceariam a liberdade de suas
escolhas – parece revelar algo da ideologia de vida associada a essa corrente
filosófica.
O estilo existencialista originou-se no desconforto psíquico observado na
sociedade marcada pelas duas guerras mundiais.
Era um momento em que as
sociedades ansiavam superar a barbárie vivida, tanto nos fronts quanto nas cidades,
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pela constante ameaça de prisões, ataques inimigos, repressão social. Neste clima
de desesperança social aparece a figura do intelectual engajado, de pensadores
imbuídos da responsabilidade de transformar a realidade caótica de indivíduos
comandados em sujeitos livres. Surgem pensadores como Jean-Paul Sartre, Simone
de Beauvoir, Merleau-Ponty, Raymond Aron, Albert Camus, entre muitos outros que,
movidos pelo sentimento de restauração da liberdade, fundam um movimento
intelectual que logo pulula como estilo de vida. Sartre, Beauvoir, Merleau-Ponty,
Aron, Michel Leiris e outros, fundam, em 1945, “Les Temps Modernes” – revista que
representava este sentimento. O nome faz menção ao filme de Charles Chaplin,
cujo título chamava a atenção para a automação dos tempos modernos.
Sartre pensa a existência como um projeto em que o indivíduo idealiza hoje
seu devir. Sua condenação reside no fato de ter que constituir indefinidamente seu
projeto. Ter que constituir seu projeto é a única ação possível ao homem porque
necessária. Não há o existir sem projeto, mesmo que tal projeto se constitua em
não agir. Segundo Sartre, “a liberdade não se trata de uma qualidade sobreposta ou
uma propriedade de minha natureza; é bem precisamente a textura do meu ser”
(SARTRE, 1997, p. 543). Como contradição à ideia de liberdade existencial Sartre
apresenta a ideia de má-fé. É a tentativa de fuga da condição original do ser
humano de ser livre.
A liberdade sartreana exige do sujeito o empenho em projetar-se adiante no
mundo da vida e afirma o fato de não ter como fugir disso. Só existe este
movimento: lançar-se adiante, daí a condenação à liberdade. Má-fé é tentar
escamotear este movimento e recusar a escolha de ser – a condenação de ter de
fazer-se como possibilidade ontológica projetiva. Por exemplo, no que tange à
questão da diferenciação na realização entre os sexos, Sartre afirmava ser a mulher
vítima e cúmplice de sua condição2, assim como todos os seres humanos, e não que
a mulher fosse inferior por ser mulher, como a tradição do pensamento acenava,
acabando por estabelecer diferenças comportamentais. Quando o indivíduo “finge”
não ser livre (por instâncias “superiores” às próprias escolhas como atribuir ao
2
Não é sem a intenção de marcar esta ambiguidade existencial que, no segundo volume de Le Deuxième Sexe,
Beauvoir cita, em epígrafe, a frase de J. - P. Sartre, sobre a mulher: “Metade vítimas, metade cúmplices, como
todo mundo”. Esta frase sintetiza a expectativa de uma moral existencialista que, tanto Beauvoir quanto Sartre
partilham e que, como Sartre deixa claro, deve ser vista como uma característica inerente a qualquer ser
humano, não específica da condição feminina.
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código genético características de personalidade ou ao ambiente as causas do agir),
age de má-fé.
Galen Strawson e a frase de Sartre
Galen Strawson, filósofo da atualidade, é partidário da teoria de que há um
determinismo das ações. Em seu estudo The impossibility of moral responsability
(STRAWSON, 1994) expõe seu argumento básico de que não há como ter certeza
de que haja responsabilidade moral pelas ações. Não ser moralmente responsável
pelas ações equivaleria a dizer que as ações não são escolhidas pelo sujeito que
age, já que este sujeito não é moralmente responsável por elas. Assim, não
haveria diferença entre pensar o determinismo como falso ou verdadeiro. De
qualquer modo não haveria como definir a responsabilidade subjetiva das escolhas.
Parece que para Strawson o problema não seria saber se a liberdade é
legítima ou não. Mas antes que não há a possibilidade de haver liberdade porque as
escolhas já estariam determinadas. Não existiria a responsabilidade moral de ter a
liberdade de escolher a ação, dado que escolher a ação implicaria em escolher ser
como é, uma vez que a escolha requer uma razão que a fundamente e, segundo
Strawson, esta razão fundamental deveria ser escolhida anteriormente para que lhe
fosse atribuída a qualidade de moralmente responsável. Parece um jogo de
palavras, mas em essência o debate constitui-se na hipótese de que, para que o
sujeito tenha a responsabilidade moral das escolhas – e para que essa escolha
tenha o cunho de escolha racional é preciso que seja imputado ao sujeito a
responsabilidade por ela – seria necessário que o sujeito tivesse escolhido ou
tivesse sido responsável moralmente pela razão que lhe dá bojo à existência.
A afirmação sartreana da condenação à liberdade tem a ver com este ponto
onde se reconhece um possível “surgimento” da responsabilidade moral no sujeito.
Segundo sua argumentação, Strawson não pensa ser possível alguém ser
moralmente responsável por suas ações, pois, para tanto, o sujeito deveria ser
capaz de ser moralmente responsável por (escolher) cada estado mental em que se
encontrasse, o que o faria responsável por sua natureza humana em última
instância, condição implausível para Strawson. Segundo ele, ninguém poderia
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escolher ser do modo que é, a menos que possua alguns princípios de escolha
básicos, como preferências, valores, atitudes, ideais, à luz dos quais escolheria
como ser. A partir disso, podemos indagar: não seriam estes os pressupostos
kantianos para o entendimento e sensibilidade, faculdades responsáveis pelos juízos
sintéticos a priori? Como herdeiro da tradição filosófica continental e, em especial,
da autonomia kantiana, atribuindo por isso à condição humana as qualidades que
caracterizam esta condição, Sartre reafirma esta ideia em sua máxima de que a
existência precede a essência, ou ainda, de que se deve partir da subjetividade. Se
a existência está condicionada à subjetividade (a condição humana), então esta tem
os atributos necessários para o exercício de sua liberdade, uma vez que está
condenada a ela.
Em seus estudos sobre o determinismo das ações, G. Strawson propõe um
experimento do pensamento, cujo cerne é apresentado a seguir. Às vésperas de
Natal, suponha que alguém queira comprar um bolo com sua única nota de cinco
reais. Todas as lojas estão se fechando. Sobrou apenas um bolo que custa cinco
reais. Nos degraus da loja alguém está balançando uma latinha de doações. Parece
claro que depende somente de você aquilo que você fará a seguir – que você é
realmente livre para escolher e será responsável pelo que escolher. Você pode
colocar o dinheiro na latinha ou entrar e comprar o bolo, ou simplesmente ir embora.
(Você não está apenas completamente livre para escolher. Você não está livre para
não escolher).
Vê-se aí a ideia de condenação da liberdade, mas de modo diferenciado da
ideia sartreana. Sartre reclama por uma condenação à escolha, reconhecendo a
responsabilidade moral por ela. Já para Strawson, essa escolha é apenas ilusória,
pois o que você efetivamente fizer terá sido aquilo que foi determinado por seus
estados anteriores, pelos quais você não é em última instância responsável. Como
admite a inviabilidade de uma verdadeira escolha entre oferecer a doação ou
comprar o bolo, qualquer ação realizada não apresentaria nenhuma diferenciação
em seu valor moral. Para Strawson, “escolher” entre estas alternativas já configura
determinismo (não haveria outra coisa a fazer).
Refletindo sobre a situação de escolha ilustrada por Strawson, entretanto,
vemos que um elemento fundamental nela é a consciência do sujeito. Ele considera
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e avalia conscientemente as três alternativas (fazer a doação, comprar o bolo ou ir
embora) e essa reflexão consciente nos parece essencial para o resultado.
Deveríamos considerar essa consciência como um mero epifenômeno de processos
neurais, epifenômeno este cuja eficiência causal seria meramente ilusória (AUTOR)?
O fato de uma escolha se basear nessa consideração consciente de alternativas
possíveis de serem adotadas não poderia, ao contrário, bastar para caracterizá-la
como livre? Em sua argumentação, Strawson (1994) mantém reiteradamente que
para que um sujeito pudesse ser considerado responsável por uma ação ele
precisaria ser responsável, em última instância (em inglês, ultimately) por sua forma
de ser e por todos os fatores causais que a determinaram, o que seria obviamente
impossível. O que ele não justifica, entretanto, é essa exigência de uma regressão à
última instância. Não bastaria, para que o sujeito possa ser considerado responsável
por sua ação, que ele tenha sido responsável pela decisão consciente que a
determinou?
A ideia sartreana de condenação pode até confundir-se com o conceito de
determinismo: não há possibilidade de que as coisas aconteçam de modo diferente
do que é determinado pela causa que as originou; mas a condenação à liberdade
não implica em não ser possível escolher a ação, mas antes em ter que escolher
uma ação o tempo todo, ou seja, não ser possível deixar de escolher. A causa da
condenação é a liberdade e o efeito desta liberdade é estar condenado a escolher
constituir-se. Mas a liberdade não é causada, existe como condição existencial do
sujeito, é um absoluto desvelando-se na existência.
Uma abordagem neurofilosófica da ideia de liberdade3
Refletir sobre liberdade implica falar em liberdade de escolha da ação, a
situação em que o sujeito age como decidiu e por isso envolve a capacidade de
decisão. A decisão para agir, por sua vez, está implicada com o aspecto moral. As
escolhas do agir humano comportam decisões de cunho ético por estarem inseridas
em meio intersubjetivo, estando intimamente associadas à responsabilidade moral.
Por isso está no âmbito dessas discussões investigar o grau de responsabilidade
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Esta abordagem neurofilosófica da ideia de liberdade tem origem na filosofia anglo-saxônica, que utiliza com
mais frequência o termo vontade livre (free will), também traduzido como livre arbítrio.
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moral que o individuo apresenta em suas decisões e qual seria sua possibilidade de
agir diferentemente. Questiona-se ser o indivíduo livre para escolher agir segundo
sua vontade ou se suas ações são determinadas por algum elemento alheio à sua
capacidade de decidir sobre o que fazer.
Há a ideia de que a ação humana é um evento natural e por isso submetida a
lei de causa e efeito e assim determinada pela causalidade da natureza, daí não ser
fruto de escolha do sujeito. Segundo o fisicalismo, todo evento natural é causado
por outros eventos naturais; ao se considerar a ação humana como parte do mundo
natural e por isso causada, ela se enquadraria na classificação de evento, submetida
à relação de causa e efeito. Isto descredenciaria a ideia da voluntariedade e
autonomia da ação, característica da posição de pensadores que acreditam na
capacidade humana de liberdade de escolha (como Sartre e Kant, já citados nesse
estudo). Todos os eventos seriam causados e assim determinados. Não existiriam
eventos incausados, o que parece excluir a racionalidade da escolha livre.
Nas últimas décadas o radical neuro esteve em evidência nas discussões
acadêmicas. Tal fato é consequente às descobertas das neurociências sobre o
funcionamento cerebral, incrementadas pelas tecnologias de imagens internas do
corpo humano, especificamente do Sistema Nervoso Central (SNC). A primeira a
denominar esta discussão com o termo neurofilosofia foi Patrícia Churchland em seu
livro Neurophilosophy, de 1986. A neurofilosofia surge como a nova disciplina e
espaço de contemplação daquelas descobertas; novos conceitos apareciam
advindos
desses
novos
aparatos
do
conhecimento:
neurotransmissores,
neuroimagem, neuroestímulos, etc. A partir desses estudos um novo procedimento
dos cientistas surge quando da apreciação destas informações inovadoras que
revelavam o comportamento de elementos ao já explorado discernimento acerca da
liberdade da ação.
A discussão sobre o livre arbítrio ou vontade livre, em grande parte, repousa
hoje sobre estes “novos” aspectos discutidos pela neurofilosofia e constitui-se em
tema controverso. Segundo estas discussões, o indivíduo com vontade livre tem a
capacidade de escolher o curso de suas ações. Assim, agente é aquele que reúne
as faculdades de razão e volição. Este conceito se aproxima da qualidade inerente
ao sujeito de ser moralmente responsável por suas escolhas, uma vez que livre
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arbítrio é a capacidade do agente racional escolher entre uma ação e outra, e nessa
escolha está implícita a ideia de juízo de valor, já que o agente não escolherá o que
não julgar ser bom. A grande questão que emerge neste ponto e o constitui como
um dos mais conflitantes é: o ser humano tem livre arbítrio de fato ou suas escolhas
estão totalmente submetidas ao determinismo, seja causal ou nomológico (físico;
biológico; psicológico), seja estrutural (social; teológico)?
O problema tem se mostrado dividido em três grandes vertentes: aqueles que
negam o determinismo em prol da confirmação de existência da vontade livre;
aqueles que aceitam o determinismo, mas aceitam sua compatibilidade com a
existência da vontade livre; e aqueles que aceitam o determinismo e negam sua
compatibilidade com a vontade livre (AUTOR). Estas vertentes são chamadas de
libertaristas, compatibilistas e deterministas rígidos, respectivamente.
De acordo com o determinismo causal ou nomológico, o futuro é inteiramente
determinado pela conjunção do passado com as leis naturais. Nesse ponto a
questão que se coloca é se as ações humanas são eventos causados ou se são
autônomas. Para os compatibilistas, é possível um agente ser determinado por
eventos e ainda assim realizar escolhas livres. Da mesma forma como existem
causas para o que se sucede no mundo físico, para as ações também haverá
causas. Se considerarmos que o indivíduo é um ser dependente tanto do mundo
natural quanto da estrutura social para realizar sua existência, esta ideia não soa tão
absurda.
Para os adeptos do determinismo rígido, a existência da vontade livre é
incompatível com a verdade do determinismo. Se o mundo possível é determinado,
então nenhum agente deste mundo tem vontade livre, pois se existisse vontade livre,
não seria determinada por qualquer outro fator independente dela mesma. A
liberdade que parece existir ao tomarmos uma decisão seria mera ilusão que se
segue ao desconhecimento de suas causas reais.
Os libertaristas rejeitam as
conclusões do determinismo, principalmente a ideia de que todo evento tem uma
causa. Nada poderia garantir que esta afirmação tenha validade universal. Para os
libertaristas o agente é livre porque sabe que pode decidir de outro modo. Na teoria
da agência, defendida por Roderick Chisholm (CHISHOLM, 1982), o agente é a
causa de seus atos e não necessita de condições antecedentes que sejam
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suficientes para justificar a ação. Esta teoria preserva a noção de livre agência mas
não elucida o processo de decisão, a não ser por interrogação ao próprio eu.
Conforme cada uma dessas posições acerca da presença ou não do livre
arbítrio, o problema recai sobre a responsabilidade moral das ações. Pode um ser
determinado ser considerado moralmente responsável por suas ações?
A liberdade compatibilista trata do fato de ser capaz de agir da maneira como
se prefere, dado o modo como se é. Como sua nomenclatura sugere, é compatível
com o determinismo, ainda que este considere a ideia de que cada aspecto do
caráter e tudo o que alguém possa fazer já possa estar determinado ao nascer.
As condições de exercício da liberdade em situação, como é a ideia da
filosofia existencial e em cujo cenário de discussão – a existência – também se
enquadram situações como a analisada no experimento de pensamento discutido
acima, precisam ser observadas com um cuidado específico. Todas as
circunstâncias limitam de algum modo as opções das pessoas. É verdade que
algumas circunstâncias limitam estas opções muito mais drasticamente do que
outras; mas não implica que a pessoa, em tais circunstâncias, não seja livre para
escolher. Apenas a compulsão literal, o pânico ou o impulso incontrolável realmente
alienam a liberdade de escolher e de (tentar) fazer o que mais se quer fazer, de
acordo com seu caráter ou personalidade. Segundo os compatibilistas o livre arbítrio
é simplesmente uma questão de ter genuínas opções e oportunidades de ação, e de
ser capaz de escolher entre elas de acordo com o que se quer ou o que se acha
melhor.
O que é definir a liberdade de modo que seja compatível com o
determinismo? É dizer que um indivíduo pode ser um agente livre mesmo que suas
ações estejam determinadas a acontecer como aconteceram, por eventos que
ocorreram antes que ele surgisse no mundo: há então o sentido claro de que, em
algum momento, não poderia ter agido diferentemente de como agiu (AUTOR). Mas
este argumento do determinismo toma as ações do indivíduo apenas como
facticidade. Que ações estão em questão? É bastante óbvio reconhecer e admitir
que algumas ações são de fato determinadas, como aquelas que se referem a
processos naturais (fuga de perigo iminente, reações emocionais a situações já
aprendidas, como sorrir por uma boa notícia, chorar de tristeza). Poderíamos
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continuar a lista de ações consideradas determinadas, mas estas ações são
constituintes tanto da condição humana como da situação existencial. Até as
reações sinápticas concorrem à evidência desta condição. Humanos são humanos
e não deuses, cujas ações poderiam ser independentes de fatos determinísticos que
a biologia de seres mortais determina. Dentro de tal determinismo existem as
reações que ocorrem nas sinapses nervosas.
Determinismo rígido e aleatoriedade
Muitas discussões filosóficas sobre a liberdade pressupõem que o
determinismo rígido é inerente à visão da ciência natural sobre o mundo. Nessa
concepção, todos os eventos são precisa e exaustivamente determinados por
eventos anteriores, de modo que nada do que ocorre poderia ocorrer de forma
diferente. Este é o chamado universo de Laplace, lembrando a afirmação desse
pensador de que uma inteligência que conhecesse a posição e a velocidade de
todas as partículas do universo, num determinado momento, bem como todas as leis
naturais, poderia deduzir todos os estados passados e futuros do mesmo. Esta não
é, entretanto, a única visão científica que se pode ter sobre o mundo (PRIGOGINE,
2003).
Uma outra concepção é de que a causalidade natural compreende uma certa
dose de aleatoriedade. Desse ponto de vista, eventos como os descritos pela
mecânica newtoniana – paradigmáticos para o determinismo rígido – seriam apenas
eventos cuja probabilidade é igual ou extremamente próxima a 1. Nem todos es
eventos naturais, entretanto, poderiam ser descritos por teorias tão rigidamente
deterministas como a mecânica newtoniana, pois nem todos têm probabilidade tão
próxima a 1.
Pensando dessa forma, não seria válida a crítica do compatibilismo feita por
Galen Strawson, entre outros, de que a aceitação da determinação natural das
ações humana leva inevitavelmente à conclusão de que todas essas ações já
estavam fadadas a acontecerem mesmo antes de a pessoa que as decide existir.
Em outras palavras, de que quando uma pessoa faz algo, mesmo tendo a impressão
de que coube a ela decidir pela execução dessa ação, na verdade ela não poderia,
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de forma alguma, ter feito algo diferente do que fez. Se existe uma certa dose de
aleatoriedade, ainda que pequena, nos eventos naturais, então uma pessoa se
constitui ao longo de um desenvolvimento que inclui inúmeras bifurcações em seu
um percurso, em cada uma das quais o rumo tomado por eventos microscópicos foi
aleatoriamente determinado, de tal forma que o que ela é hoje não poderia ser
previsto nem pelo estado do universo um ano atrás, nem muito menos pelo estado
do universo antes de ela existir.
Uma pessoa, assim, é algo que se constitui ao longo de sua história, não algo
mecanicamente determinado pelo curso dos eventos. A própria escolha de uma
ação, além disso, pode incluir uma certa dose de aleatoriedade, por mais que ela
seja também determinada por influências externas ou por motivos internos.
Pensando assim, o sujeito que é responsável por uma ação se constitui no próprio
momento da ação, ele não é algo que preexista a ela, embora sua identidade
pessoal se mantenha ao longo desses momentos constitutivos.
É claro que, ao agirmos livremente, vivemos nossas ações como algo
determinado por nós mesmos, não como algo que ocorre por acaso. Ao escolher
fazer algo, cada um de nós tem a experiência que essa escolha foi inteiramente
determinada por si mesmo. Fui eu que escolhi fazer isso, pensamos, mas o que é
esse eu? Se esse eu se constituiu, em parte (ainda que em pequena parte), na
própria escolha da ação, não estamos errados, ainda que essa escolha tenha tido
uma certa dose de aleatoriedade em sua gênese. “Eu não poderia ter feito outra
coisa”, teria dito Lutero, em relação a uma importante decisão de sua vida. Mas
talvez o Lutero que conhecemos tenha se constituído em grande parte por essa
própria decisão, de modo que o “eu” de sua frase faz referência a um sujeito que só
existiu a partir dessa mesma decisão, sem que ele deixasse de ser ele mesmo.
Em certos momentos, agimos pela convicção de que essa é a única ação que
levará ao resultado que desejamos, ou que é coerente com o que achamos certo.
Nossa ação parece ser inteiramente determinada por nossos desejos, por nossa
crenças a respeito do mundo e de nós mesmos, e pela razão, que nos leva a
deduzir, a partir dessas crenças, qual o caminho que nos levará à realização de
nossos desejos ou à coerência com nosso julgamento moral. Em outros momentos,
entretanto, não estamos certos a respeito do que fazer, mas decidimos mesmo
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assim. “Alea jacta est", disse César ao decidir atravessar o Rubicão, sem ter certeza
de qual seria o resultado dessa decisão. Nesses momentos, encaramos a vida até
certo ponto como um jogo, em que fazemos uma aposta, embora achemos que
também poderíamos ter apostado em outro curso de ação.
Diria o determinista rígido que mesmo ao escolher, ao acaso, um número da
roleta no qual apostar, estamos sujeitos a um determinismo total que esteve
presente nos processos que nos levaram a escolher precisamente esse número e
não outro. O acaso, nessa visão, é apenas aparente, ilusório. O probabilista, por
outro lado, pode confiar nessa experiência de acaso e, ao contrário, duvidar da
experiência que temos, em outros casos, de que nossa escolha foi totalmente
determinada por nossos desejos, crenças, valores e razão. Podemos perfeitamente
admitir que alguma dose de aleatoriedade tenha estado presente, por exemplo, nos
processos que levaram Lutero a decidir não retratar-se, embora ele não tivesse
qualquer consciência da mesma.
O compatibilista é aquele que acredita que a liberdade é compatível com o
determinismo. Mas que determinismo é esse? O próprio uso do adjetivo ao falarmos
em determinismo rígido sugere que pode haver um determinismo que não seja
rígido. Talvez melhor seria falar em compatibilidade entre a liberdade e a
causalidade dos processos decisórios, admitindo nessa causalidade uma certa
medida de aleatoriedade, ou seja, pensando-a como causalidade probabilística, e
fugindo da concepção do determinismo rígido (AUTOR). Dessa forma, ficam
invalidados os argumentos incompatibilistas mencionados acima, segundo a qual a
aceitação universal da causalidade levaria a admitir que todas as ações de uma
pessoa já estariam determinadas antes mesmo de ela nascer e que, portanto, ela
nunca poderia ter agido de maneira diferente do que fez.4
A ideia de liberdade em Simone de Beauvoir
Simone de Beauvoir é uma filósofa que pensa a existência centrando sua
discussão no problema da liberdade. Assim como para Sartre, a liberdade
beauvoireana é imposta, pois é determinada pela sua condição humana (de sujeito
4
Esta seção é de autoria do segundo autor. As demais são de autoria do primeiro autor, com intervenções e
acréscimos do segundo.
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livre). Para Beauvoir, a liberdade é inseparável da consciência humana – a
consciência surge na existência como um estado de liberdade. Tal noção constitui a
liberdade como possibilidade de transcendência, de projeto. E de ausência de
anterioridade.
Beauvoir afirma que nenhuma ação pode ser moral se esta não
visar unicamente a liberdade. Em sua ética Simone de Beauvoir afirma:
“Ser livre e conhecer o ser representam a mesma escolha; por esta
razão, a liberdade representa um passo positivo e construtivo que
leva o ser a superar a existência num movimento que é uma
constante superação (BEAUVOIR, 1947, p.114)”.
O pensamento de Simone de Beauvoir é sustentado por dois conceitos
fundamentais: um positivo, que é a assunção da liberdade e um negativo, que é a
demissão desta condição de ser livre. A trajetória humana constitui-se como
resultado da dialética íntima entre estas duas escolhas que o ser pode realizar:
constituir-se um sujeito livre ou demitir-se dessa liberdade5 (AUTOR).
O
ser é quando é livre para ser; porém, quando escolhe não ser, demite-se da
existência, mas continua sendo alguma coisa (ser o estado resultante de não ter
assumido a responsabilidade moral da escolha). Se houvesse a pretensão de se
criar uma frase, aproveitando a nomenclatura existencialista, que tentasse resumir a
filosofia de Simone de Beauvoir, seria possível dizer que, para ela “o ser humano é
condenado à ambiguidade”.
Em sua condição de liberdade em que surge no mundo, na qual o ser margeia
sua constituição nos limites das possibilidades oferecidas por ele (o mundo), sua
escolha sempre se fundará no ambíguo traço existente entre o dado e o constituído
por si, entre a possibilidade de demitir-se ou assumir sua condição de sujeito livre. É
esta escolha que caracteriza seu livre arbítrio para ser (livre ou não). A ambiguidade
beauvoireana assenta na situação existencial que todo sujeito experimenta, que é a
de estar entre todos os existentes que constituem sua realidade e ao mesmo tempo
ser um existente solitário. Nesta situação, ele deve escolher entre seguir as
escolhas já realizadas por outros ou realizar a sua própria.
Fica claro a partir de seus escritos que a filosofia de Simone de Beauvoir
acredita que a liberdade ontológica é desejada pelo sujeito, e que por vezes, essa
5
A liberdade para Simone de Beauvoir equivale a responsabilidade moral entre os movimentos característicos
da transcendência: a assunção e a demissão de existir. A superação do momento de ser é a escolha entre
afirmar-se como liberdade, e por isso moralmente responsável por constituir-se, ou demitir-se e não
responsabilizar-se pela escolha de ser.
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liberdade é preterida por requerer um trabalho ontológico do sujeito em confirmá-la,
pois, ao lado do fato de esta liberdade ser uma realidade, um dado existencial do
humano, ela também precisa ser confirmada, o que significa que o sujeito só se
mantém livre pelo movimento próprio em confirmar-se livre.
A confirmação da liberdade é o movimento ontológico que o sujeito
empreende e que é constituído por dois momentos: o de desvelar-se e o de desvelar
o dado do mundo, e em várias passagens Simone de Beauvoir afirma que o ser quer
desvelar o ser. Dizer que o ser quer desvelar o ser e que isto equivale a dizer que o
ser quer ser livre é falar de intencionalidade ontológica. Tomando a afirmação de
Beauvoir de que “existir autenticamente não é negar o movimento espontâneo de
minha transcendência, mas somente recusar perder-me nele” (BEAUVOIR, 1947,
p.19), entendemos que a filósofa aceita a experiência sensível e a moral proveniente
da razão subjetiva como os formadores de um estado de liberdade, porque o ser
beauvoireano desvela-se no mundo dado, desvelando o mundo segundo seu projeto
ontológico.
Esse estado de liberdade não suprime os instintos, os desejos, as
paixões, enfim elementos óbvios da presença em carne e osso, entretanto não toma
como absolutos os fins a que a transcendência humana se lança. Se essa
transcendência tem por fim a realização subjetiva, esta realização deve acontecer
através dos sentidos de que o homem se reconhece como ser natural e que o
estabelece no mundo da vida. Essa posição se opõe, por exemplo, ao estoicismo,
que afirmava que a realização seria alcançada mediante a ataraxia, a uma pretensa
desconsideração das sensações causadas pela situação vivida.
O sujeito se torna livre existindo em um mundo dado, cujas escolhas ônticoontológicas, constituirão seu mundo de realizações subjetivas. O ser almeja a
superação do mesmo, que é a situação de não desvelamento, originado pelo não
movimento ontológico. É o mesmo porque já está desvelado, já fez parte de um
projeto do sujeito, e por isso, não guarda mais a possibilidade de desvelamento. O
mesmo levará o sujeito ao abismo do não-ser, que é o não-movimento, e por isso, o
não-sentido de sua existência. O mesmo, ou seja, aquele dado do mundo já
revelado pelo sujeito e que por isso, esgotou sua possibilidade de desvelamento,
não contém mais as possibilidades ontológicas que desvelam o ser, que é o que doa
sentido à existência do sujeito. Por isso o ser quer superar-se, para não se perceber
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coincidindo consigo mesmo no instante além do instante atual.
O fato de ser livre dá ao sujeito a única possibilidade de superação do
mesmo. O novo constantemente o seduz, porque sempre lhe apresenta novas
possibilidades de sentido, uma vez que o passado não fica retido em seu instante
atual. O instante passado é superado porque é o mesmo, não é novo e por isso, é
dissolvido pela inconsistência do nada. Estar livre impele o sujeito a querer um
projeto novo, a desejar este projeto por ver nele sempre uma possibilidade de
felicidade, que para Beauvoir, é o mesmo que realização ontológica. Para ela, o
desejo original de desvelar-se está impregnado de um natural estado de alegria.
Originalmente, o ser quer desvelar-se e se compraz disso. Ela afirma esse estado
de alegria original do ser em Pour une morale de l’ambiguïté quando afirma:
“Todo homem se lança no mundo fazendo-se falta de ser; assim ele
contribui para revesti-lo de significação humana, ele o desvela; e o
mais deserdado experimenta às vezes nesse movimento a alegria de
existir: ele manifesta então a existência como uma felicidade e o
mundo como uma fonte de alegria (BEAUVOIR, 1947, p.60)”.
A ação humana é motivada pelo desejo do ser em desvelar-se, em lançar-se
ao mundo e revelar-se na possibilidade de ser que o mundo dado oferece.
Este
desvelamento do ser, que acaba por defini-lo enquanto existente é, portanto, um
movimento, cuja amplitude propicia as escolhas ontológicas, uma vez que tal
movimento mostra as possibilidades de realização.
Assim como existem os movimentos corporais que caracterizam a
movimentação física do corpo, há também os movimentos ontológicos do sujeito,
aqueles que caracterizam sua plasticidade, isto é, aquela capacidade anteriormente
mencionada de o sujeito constituir-se novo a partir do dado do mundo, a partir das
novas situações oferecidas pelo mundo da vida. Tratar-se-ia assim de um
movimento original da vontade, resultante da história individual, cujo bojo reuniria em
si as possibilidades de escolhas de ação, as quais seriam derivadas do empenho
intelectual e físico do sujeito, e de seu projeto existencial. Se o indivíduo escolhe
como projeto existencial ser um atleta, seu movimento ontológico terá a amplitude
desta escolha, isto é, sua vontade de ser será preenchida pelo objetivo de praticar
treinamentos que o levem a alcançar a excelência física desejada. Cada resultado
alcançado será o ponto de partida para o próximo objetivo – a superação do anterior.
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Mas para que haja a superação, é preciso que o sujeito “retorne” à originalidade de
seu projeto.
No caso do atleta, tal projeto consiste em alcançar o melhor
desempenho físico, pois se não houver esse retorno, tanto o dado desvelado quanto
o momento vivido não serão transcendidos, uma vez que preenchidos ainda pelo
dado revelado - haveria uma espécie de alienação do sujeito no dado do mundo. O
movimento ontológico de transcender-se do instante dado e lançar-se além, para um
futuro desconhecido, ainda que desejado, é o que movimenta o sujeito a querer
desvelar o ser e assim, querer-se livre.
A filosofia de Beauvoir nos mostra que as escolhas existenciais acontecem no
ambiente onde surgem os pontos de partida para que se realizem – o sistema de
crenças constituído pelo sujeito e o mundo da vida, o qual acomoda as suas ações.
Ela afirma ainda que “todo homem é livre no sentido de que se lança
espontaneamente no mundo” (BEAUVOIR, 1947, p. 26), mas tal espontaneidade
aparece como contingência e se projeta sempre em direção determinada pela
vontade (livre). Afirma ainda que “é possível não querer-se livre: na preguiça, no
entorpecimento, no capricho, na covardia, na impaciência” (BEAUVOIR, 1947, p.27).
Nesses estados a liberdade não é vivida como um projeto lançado adiante, cujo
movimento faz desvelar o ser e o dado.
Ao contrário, este movimento é
caracterizado como fuga de querer-se livre. O pensamento beauvoireano empresta
à vontade a qualidade de definidora do projeto subjetivo de existir e reveste essa
vontade com o aspecto original da alegria.
Considerações finais
É difícil imaginar que uma pessoa possa ser considerada moralmente
responsável por suas escolhas e ações ou pelo seu caráter, se eventos aleatórios
tivessem sido responsáveis pela determinação causal deles. Seria difícil acreditar
que alguém sustentaria propósitos definidos se suas ações fossem casuais ou
influenciadas por sistemas diferentes de sua própria vontade. Casual seria uma
atitude inesperada, totalmente alheia ao comportamento determinado por seus
projetos e seu sistema de crenças. As escolhas causadas caracterizam-se por
partirem da vontade e do sistema de crenças. Do ponto de vista da neurofilosofia,
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entretanto, é necessário considerar a causalidade dos sistemas cerebrais que
realizam essas escolhas e materializam esses projetos e sistemas de crenças. Não
nos prendendo à visão do determinismo estrito, podemos admitir que, na
microgênese das escolhas voluntárias, pode haver indeterminações que afetam o
resultado final, embora o sujeito não esteja consciente delas (AUTOR). Sob o ponto
de vista da filosofia existencial, a possibilidade ontológica do sujeito, isto é, sua
possibilidade de constituir seu projeto imediato de ser, é dada pela alteridade que se
coloca frente ao sujeito. Assim o existencialismo não pretende responsabilizar-se
pela essência humana, ou uma espécie de causa sui, mas sim de responsabilizar
(moralmente) cada sujeito pela escolha que é, por sua vez, condicionada ao ponto
de partida representado pela alteridade constituída pelo mundo dado. Numa
concepção compatibilista da relação entre liberdade e causalidade natural, e
probabilista enquanto à natureza desta última, podemos vislumbrar a possibilidade
de uma neurofilosofia da vontade livre que pelo menos se aproxime dos insights da
filosofia existencial da liberdade.
Referências
BEAUVOIR, S. (1947). Pour une morale de l'ambiguïté (2a. ed.). Paris: Gallimard, 380 p.
CHISHOLM, R. (1982). Human Freedom and the self. In G. Watson (Ed.), Free Will. Oxford,
p. 26-37.
PRIGOGINE, I. (2003). Is future given? Singapore: World Scientific, 160 p.
SARTRE, J.P. (1973). O Existencialismo é um Humanismo - Coleção Os Pensadores (1a.
ed., Vol. XLV). (V. Civita, Ed., & V. Ferreira, Trans.) São Paulo: Abril Cultural, 502 p.
SARTRE, J.-P. (1997). O Ser e o Nada (1a. ed.). (P. Perdigão, Trans.) Petrópolis: Vozes,
782 p.
STRAWSON, G. (1994). The impossibility of responsability. Philosophical Studies , 75: 5-24.
Sobre os autores
Márcia Regina Viana - É doutora em Nutrição pela Universidade do Estado do Rio de
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Janeiro (2015), na linha de pesquisa Políticas, Saberes e Práticas em Alimentação, Nutrição
e Saúde. Também é doutora em Filosofia, com concentração em Ética pela UGF (2007).
Pós-Doutorado em Neurofilosofia pelo Programa Nacional de Pós-Doutoramento da CAPES,
com o Projeto de Pesquisa: “Neurofilosofia e Existencialismo: bases conceituais”,
desenvolvido na Universidade Estadual do Norte Fluminense (2010-2012). Em 2013 iniciou
novo Estágio-Pós Doutoral na UENF com o projeto de pesquisa “Representações Sociais do
comer, beber e envelhecer: aspectos políticos e subjetivos na perspectiva da Educação
Alimentar e Nutricional de idosos e da Educação de Jovens e Adultos”, onde atua como
professora-colaboradora, lecionando para turmas de Graduação e Pós-Graduação.
Atualmente é docente na Universidade Federal do Rio de Janeiro Campus Macaé.
Gilberto Gomes - Doutorado pela Universite de Paris VII (1998), com tese sobre a teoria da
consciência. Mestrado pela PUC-RJ. Graduado em Psicologia (UFRJ) e Medicina (UNIRIO). É professor associado do Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem da
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Tem experiência nas áreas de
Psicologia e Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: semântica, lógica e
linguística das afirmações condicionais; neurofilosofia do livre-arbítrio; teoria da consciência.
Tem trabalhos publicados nos periódicos Consciousness and Cognition, Analysis,
Australasian Journal of Philosophy, Cognitive Linguistics, Philosophical Psychology, Journal
of Consciousness Studies, entre outros.
Data de submissão: 29/07/2014
Data de aceite: 21/02/2015
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