Nº 53 - Universidade de Lisboa

Transcrição

Nº 53 - Universidade de Lisboa
Documentos de Trabalho nº53, CEsA, Lisboa, 1998
O financiamento informal e as estratégias
de sobrevivência económica das mulheres em
Angola: a Kixikila no município do
Sambizanga (Luanda)
por
Henda Lucia Ducados
Mestre em “Gender and Development” pelo Institute of Development Studies da
Universidade de Sussex com a dissertação “Gender and Poverty in Angola”. Doutoranda na
London School of Economics. Autora de vários estudos para diversas organizações
internacionais relativos à problemática do género e da pobreza em Angola. Coordenadroa do
programa USAID em Angola.
Manuel Ennes Ferreira
Doutorado em Economia pelo ISEG/UTL com uma Tese sobre a indústria em Angola
num contexto de uma economia centralizada e em situação de guerra (1975-91). Professor
Auxiliar do ISEG/UTL. Lecciona Economia do Desenvolvimento na licenciatura de Economia
e Economia Africana no Mestrado de Desenvolvimento e Cooperação Internacional. Autor de
várias publicações e artigos em revistas científicas nacionais e estrangeias, nomeadamente
sobre a economia de Angola e as relações económicas entre Portugal, os PALOP e a CPLP.
Licenciado em Economia; Mestre em Desenvolvimento e Cooperação Internacional
pelo ISEG; Tese de mestrado sobre “Problemática do Desenvolvimento Económico”.
Docente da Universidade Atlântica nas disciplinas de “Introdução à Economia” e
“Macroeconomia”. Investigação na área de ‘Transições Políticas e Económicas em África’ e
‘Epistemología das Ciências Sociais’.
Os trabalhos reproduzidos nesta série são da
exclusiva responsabilidade dos seus autores.
O CEsA não confirma nem infirma
quaisquer opiniões neles expressas.
Henda Lucia Ducados e Manuel Ennes Ferreira
V CONGRESSO LUSO-AFRO-BRASILEIRO DE
CIÊNCIAS SOCIAIS
TEMA: A INSEGURANÇA DAS SOCIEDADES
O financiamento informal e as estratégias de sobrevivência
económica das mulheres em Angola: a Kixikila no município do
Sambizanga (Luanda)
Henda Lucia Ducados (Institute of Development Studies/Sussex, England)
Manuel Ennes Ferreira (Instituto Superior de Economia e Gestão da
Universidade Técnica de Lisboa, Portugal)
Maputo, Moçambique
1-5 de Setembro de 1998
1
O financiamento informal e as estratégias de sobrevivência económica das mulheres em Angola:
a Kixikila no caso do município do Sambizanga (Luanda)
O financiamento informal e as estratégias de sobrevivência
económica das mulheres em Angola: a Kixikila no município do
Sambizanga (Luanda)
Henda Lucia Ducados (Institute of Development Studies/Sussex, England)
Email: [email protected]
Manuel Ennes Ferreira (Instituto Superior de Economia e Gestão da
Universidade Técnica de Lisboa, Portugal)
Email: [email protected]
Resumo: Em África existe uma longa tradição demonstrativa da utilização de
esquemas de ajuda mútua, particularmente ao nível da utilização rotativa de
poupanças e crédito (na literatura económica conhecida por ROSCAs – Rotating
Savings and Credit Associations) por parte de indivíduos que desenvolvem
micro actividades económicas, na maior parte dos casos não totalmente
integradas na economia formal. Após um enquadramento desta questão na
literatura económica, esta comunicação pretenderá mostrar como aqueles
esquemas de financiamento informal – Kixikila em Angola - ocorrem em
Luanda e fazem parte integrante das estratégias de sobrevivência das mulheres
angolanas da zona peri-urbana daquela cidade, mais especificamente no
município do Sambizanga. As conclusões basear-se-ão num estudo empírico aí
efectuado entre 1995 e 1997. Os resultados alcançados permitem demonstrar a
vitalidade e energia das mulheres envolvidas nas ROSCAs (Kixikila), o que
deveria merecer a atenção e apoio das agências de desenvolvimento,
nomeadamente no contexto dos programas de alívio da pobreza.
Introdução
Um dos graves problemas que se depara aos países em vias de
desenvolvimento diz respeito à sua capacidade de mobilização dos recursos
financeiros internos. Sistemas financeiros desadaptados das realidades e
necessidades do país, diminuta poupança e investimento nacional são apanágio
da grande maioria deles. As tentativas de resposta que as pessoas mais
desfavorecidas procuram encontrar para gerarem rendimentos que assegurem a
sua sobrevivência, tem feito aparecer e desenvolver uma série de esquemas,
‘instituições’ e intermediários financeiros fora do sector financeiro formal.
Estas práticas ocorrem, assim, naquilo a que se designa por sector financeiro
informal.
Nesta comunicação procuraremos apresentar um estudo de caso, um tipo
de associação mútua de poupança e crédito – ROSCA na literatura económica e
2
Henda Lucia Ducados e Manuel Ennes Ferreira
Kixikila no caso vertente – que tem singrado em Angola, mais especificamente
na zona peri-urbana de Luanda, no município do Sambizanga.
Procurar-se-á numa primeira parte enquadrar aquele tipo de associação
no sector financeiro informal, apresentando-se, de seguida, as características do
seu funcionamento, as dificuldades sentidas e o modo como podem ser
apoiadas na sua actividade diária, geradora de produção, emprego e
rendimentos.
Sistema financeiro e sector financeiro informal
As dificuldades sentidas por diversos agentes económicos no acesso ao
crédito do sistema financeiro formal – devido ao pequeno desenvolvimento
deste, ao seu carácter fragmentado, à falta de garantias dadas às instituições que
concedem empréstimos, à falta de informação ou ainda como consequência de
medidas no âmbito da política económica seguida – é por demais evidente nos
países em vias de desenvolvimento.
Como resposta a esta realidade, têm surgido ao longo do tempo
‘instituições’ e ‘esquemas’ daquilo que se designa como sector financeiro
informal. Aqui, onde a complexidade de exemplos é notória e perfeitamente
adaptada às circunstâncias económicas e sociais de cada país, o seu papel como
instrumento de mobilização dos recursos nacionais tem sido, em muitos casos,
importante, embora circunscrito.
O contributo de um diversificado e moderno sistema financeiro como
propulsor do desenvolvimento económico é evidente. Nesta relação, a variação
positiva e real das taxas de juro é, de entre vários factores, um dos principais
determinantes na formação da poupança. A disponibilização dos recursos
financeiros é então passível de ser canalizada para a actividade económica e
social sob a forma de investimento e crédito. A existência de intermediários
financeiros e de um ambiente de completa informação completam o quadro de
optimização na mobilização e aplicação daqueles recursos.
3
O financiamento informal e as estratégias de sobrevivência económica das mulheres em Angola:
a Kixikila no caso do município do Sambizanga (Luanda)
No entanto, na esmagadora maioria dos países em vias de
desenvolvimento os mercados de capitais são imperfeitos: sistemas financeiros
pouco desenvolvidos, informação incompleta e pouca evidência relativamente à
relação entre poupança e taxas de juro1. Ou seja, e neste último caso, o ponto
de vista de McKinon (1973) e Shaw (1973) segundo os quais taxas de juro mais
altas aumentam as taxas de poupança, criando desse modo mais recursos
disponíveis para investimento e crédito, não tem sido de todo evidente.
De acordo com estes autores, pelo facto de existirem taxas de juro
baixas, determinadas institucionalmente e não através dos mecanismos de
mercado, dá origem a uma situação conhecida por repressão financeira, onde a
taxa de juro de equilíbrio está abaixo do ponto em que se deveria encontrar.
Como consequência, o investimento é baixo e o crescimento económico
ressentir-se-á disso. Deste raciocínio decorre a proposta de liberalização
financeira a qual deverá permitir atingir-se não só uma maior eficiência no
mercado de capitais como aumentar as disponibilidades para investimento,
decorrente do aumento das poupanças junto do sistema financeiro formal,
poupanças essas atraídas, agora, por taxas de juro mais elevadas.
Se em termos práticos o modelo de Mckinnon e Shaw (1973) teve
grande audiência junto das instituições financeiras internacionais, não tardaram
as críticas, nomeadamente vindas dos neo-estruturalistas2, ao chamarem a
atenção para a necessidade de incorporar no modelo de análise o sector
financeiro informal.
Pelas razões apontadas anteriormente, uma das principais características
dos países em vias de desenvolvimento é a existência de um dualismo
financeiro: a par do sector financeiro formal (institucional e regulado), existe
igualmente um sector financeiro informal. O seu papel de mobilização de
1
Fry (1978), por exemplo, identificou através de testes empíricos uma relação positiva entre taxa de
juro e poupança em países asiáticos (em termos de rácio poupança/Produto Nacional Bruto), enquanto
que Giovannini (1985), no caso da Ásia, e Leite and Makonnen (1986), no caso de África, concluíram
por uma pequena e insignificante resposta da poupança.
2
De inspiração keynesiana, Taylor (1983) e Wijnbergen (1983) destacaram-se no início desta corrente
crítica. Ver igualmente Owen and Solis-fallas (1989).
4
Henda Lucia Ducados e Manuel Ennes Ferreira
poupanças e de financiamento do investimento não é, como já foi referido,
dispiciendo em alguns casos.
Independentemente do que do ponto de vista teórico é apresentado por
diversos autores e ângulos de abordagem - o modelo da repressão financeira
[McKinnon e Shaw (1973)], a análise institucional [Yotopulos and Floro
(1992)] ou a perspectiva estruturalista [Taylor (1983) e Wijnbergen (1983)] -, o
certo é que vários e diversos ‘esquemas’ envolvendo emprestadores e
tomadores de empréstimos, aforradores e intermediários financeiros, existem,
desenvolvem-se e asseguram produção, emprego e rendimento para uma boa
parte dos cidadãos dos países em vias de desenvolvimento.
As associações rotativas de poupança e crédito
Um dos esquemas que tem caracterizado o sector financeiro informal é o
das associações rotativas de poupança e crédito, vulgarmente designadas por
ROSCAs3. Exemplo de intermediários financeiros do sector financeiro
informal, estas associações desenvolvem-se através de fundos próprios.
Contudo, casos há em que recorrer ao mercado de crédito informal tem
permitido incrementar a sua actividade, dando mostras de uma enorme
eficiência na utilização do financiamento obtido. Estas situações são
exemplificativas de associações rotativas híbridas, adaptadas às circunstãncias
e necessidades do momento.
Estas associações de poupança mútua caracterizam-se basicamente pela
existência informal de um grupo cujos membros contribuem com um
determinado montante, numa base periódica, para um fundo comum. Este
fundo é utilizado rotativamente por cada um dos membros, normalmente com
uma taxa de juro nula ou bastante baixa, envolvendo um montante pecuniário
3
ROSCA – Rotating Savings and Credit Association. Existe igualmente um outro tipo de associação
semelhante ao ROSCA com a diferença de que não é rotativo: são as ASCRA – Accumulating Savings
and Credit Association, onde os fundos não são imediatamente canalizados para um dos membros do
grupo mas são deixados a acumular-se de modo a aumentar o seu valor para um futuro empréstimo
quando um dos seus membros dele necessitar. Uma comparação entre os dois na perspectiva do
desenvolvimento pode ser encontrada em Bouman (1995).
5
O financiamento informal e as estratégias de sobrevivência económica das mulheres em Angola:
a Kixikila no caso do município do Sambizanga (Luanda)
pequeno e de curto-prazo. Famílias pobres e agentes económicos envolvidos
em pequenos negócios fora do sector formal são os seus principais animadores.
As vantagens que advêm da existência das ROSCAs inserem-se
naquelas que caracterizam o próprio sector financeiro informal: acesso fácil a
financiamento comparativamente ao sector formal; informalidade e rapidez
face ao sector formal devido ao conhecimento e confiança pessoal em que
assentam aqueles esquemas ou ainda custos de transação baixos ou nulos.
Contudo, os seus limites são também evidentes: possibilidade de mobilizar
apenas quantias reduzidas de capital ou o facto de assentarem o seu
funcionamento na base da confiança mútua o que, na presença de mutações dos
valores socio-culturais, particularmente em ambientes de grande instabilidade
social, minam um dos seus vectores estruturantes fundamental.
Embora este tipo de associação já exista há muito tempo, foi só na
década de 60 que mereceu uma atenção particular através das análises de
Geertz (1962) e Ardener (1964). Ao longo dos anos, o foco da atenção passou
da simples curiosidade para um maior interesse centrado não apenas nas suas
motivações económicas mas igualmente enquadrando-a nos domínios social e
ético. Do mesmo modo, uma nova vertente da abordagem das ROSCAs foi
progressivamente sendo introduzido e onde o papel da mulher é considerado
crucial, procurando-se destacar as forças e potencialidades deste grupo
populacional4.
Se bem que pouca coisa seja conhecida sobre as origens das ROSCAs,
existe uma clara evidência que ela não é uma prática de apenas um país ou
continente. As ROSCAs são um fenómeno global e que não se apreende
exclusivamente nos países em desenvolvimento, embora nestes a sua
multiplicidade seja bem maior.
Em África, por exemplo, a maioria dos países tem a sua própria versão
de ROSCAs. Na Nigéria chama-se Esusu, no Ghana denomina-se Osusu, nos
Camarões é Djanggi, na Etiópia são os Ekub e no Egipto aquelas associações
4
Ver, por exemplo, mais recentemente, Ardener and Burman (1995).
6
Henda Lucia Ducados e Manuel Ennes Ferreira
tomam o nome de Gameya. Estudos mostram também a existência de ROSCAs
na América Latina. Mexicanos e Porto Riquenhos têm os seus ROSCAs a que
chamam Cundina [Shanmugam (1989), p.353]. Kurt (1973) cita casos de
associações deste tipo entre trabalhadores jamaicanos nos estados do Norte e
Oeste da América. Levenson and Besley (1996), por seu turno, analisam o caso
de Taiwan.
Alternativa ou não ao sector financeiro formal5, para vários autores o
funcionamento deste tipo de associações rotativas tem demonstrado que em
variadas situações ela permite definir ex-ante uma utilidade esperada bem
superior àquela que seria obtida se os seus membros tivessem de se socorrer do
mercado de crédito formal [Besley, Coate and Loury (1994)]. Seja como for,
dadas as limitações que os sistemas financeiros apresentam na maioria dos
países em vias de desenvolvimento, não é de esperar que o sector financeiro
informal desapareça e, com ele, as associações rotativas de poupança e crédito.
O estudo de caso das Kixikilas: o funcionamento das ROSCAs na zona
peri-urbana de Luanda
O funcionamento dos esquemas rotativos informais de poupança e
crédito (ROSCAs) praticado pelas mulheres urbanas no contexto das zonas
peri-urbanas de Luanda, o poder de decisão dos seus membros, os benefícios
económicos e sociais existentes e a necessidade de assistência para o seu
desenvolvimento serão analisados na parte final desta comunicação6.
As ROSCAs na zona peri-urbana de Luanda são conhecidas por
KIXIKILA e são praticadas fundamentalmente por mulheres. Estas associações
integram a sua actividade naquilo que é usual denominar-se por sector informal
da economia, nomeadamente o sector financeiro informal7. Em Angola, no
5
No primeiro caso, ver, por exemplo, Levenson and Besley (1996).
Os resultados apresentados fazem parte de um estudo empírico inserido no projecto 'Women's
Enterprise Development Project', desenvolvido entre 1995 e 1997 no município do Sambizanga (zona
peri-urbana de Luanda) e dirigido por Henda Ducados.
7
Deve ser igualmente assinalada a existência de uma outra actividade inserida no sector financeiro
informal angolano: a Kinguila, geralmente uma mulher que pratica a compra e venda de divisas na rua.
6
7
O financiamento informal e as estratégias de sobrevivência económica das mulheres em Angola:
a Kixikila no caso do município do Sambizanga (Luanda)
período pós-independência, o sector informal8, particularmente o comércio,
desenvolveu-se rapidamente em resposta aos bloqueamentos provocados pelo
sistema de direcção central e planificada da economia9. Embora não seja um
fenómeno típico do período pós-independência, a Kixikila desempenhou e
continua a desempenhar um assinalável papel para um conjunto de pessoas
pobres que dali retiram o seu sustento.
O seu modo de funcionamento é extremamente simples: em primeiro
lugar, na fase de criação deste tipo de associação rotativa de poupança e
crédito, juntam-se entre 5 a 10 mulheres que vivem normalmente no mesmo
bairo ou que têm as mesmas actividades económicas na praça do mercado onde
operam. Estas mulheres são convidadas a reunirem-se a partir da iniciativa de
uma pessoa e que é normalmente uma mulher mais velha ou uma que tem mais
influência sobre as outras (por exemplo, habilidade de liderança). Aceite a ideia
de formarem tal associação de poupança e crédito informal, elas passam, numa
segunda fase, a contribuir monetariamente e de forma regular com um
montante fixo. Este montante fica na posse de cada uma delas, em ordem prédeterminada de acordo com a frequência da contribução do grupo. Uma vez o
ciclo acabado, recomeçam-no de novo.
As pessoas selecionadas para entrar num grupo são quase todas
conhecidas pela sua líder e escolhidas por si. Confiança e compreensão mútua
são essenciais para que este esquema informal – kixikila - funcione sem
documentação escrita. É da responsabilidade do líder fazer com que os
membros do grupo paguem a sua contribuição. No caso de falta de pagamento,
o líder pode emprestar dinheiro afim de manter o grupo operacional. O líder é
normalmente mais rico que os restantes membros.
8
Segundo Sousa (1996), o comércio informal, em 1995, representava 56% da população
economicamente activa de Luanda, sendo que 58.2% dos empregos tinham origem no sector informal,
sendo possível identificar claramente uma repartição segundo o sexo: 63.9% de mulheres no sector
informal contra 33% no sector formal da economia. Para uma aborgadem à formação de preços nos
mercados informais de Luanda, especificamente nos mercados dos Congoleses, Rocha Pinto e Shabba,
ver Lopes (1998).
9
Ver Morice (1985), Santos (1990) ou Ferreira (1997).
8
Henda Lucia Ducados e Manuel Ennes Ferreira
Para que melhor se compreenda o significado económico e social das
ROSCAs em Luanda, isto é, as kixikilas, é necessário ter presente a situação
geral deste tipo de mulheres pertecentes ao estrato mais pobre da sociedade
angolana.
Ao longo dos anos e devido ao colapso da situação sócio-económica de
Angola, as mulheres nas áreas peri-urbanas começaram a desenvolver
estratégias complexas e que podem ser caracterizadas essencialmente como
uma luta pela sua existência, quer dentro ou fora do agregado, e com a
finalidade de assegurar a sobrevivência das suas familias. Nestes esforços
deseperados para as manter, as mulheres aumentaram simultaneamente a sua
criatividade e riqueza, passando a disfrutar, em alguns casos, de uma situação
económica bem melhor do que a dos seus maridos. A criatividade e a riqueza
das mulheres, principalmente daquelas que trabalham no sector informal, estão
assim na razão de formação de grupos de apoio informal.
As mulheres do município do Sambizanga (Luanda) que integram tais
grupos asseguram as actividades comerciais de retalho de cada um dos seus
membros quando alguma delas tem de prestar assistência à sua família ou tratar
de um assunto pessoal fora do mercado. As mulheres muitas vezes agrupam as
suas actividades comerciais para comprar maior quantidade de mercadorias
partilhando depois o lucro dali obtido. Estas últimas características, contudo,
foram somente observadas entre grupos de mulheres mais idosas e onde já
existiam laços de confiança e de família.
Impacto económico e social das Kixikilas
Em 1996/1997, a contribuição diária na Kixikila na zona peri-urbana de
Luanda, município do Sambizanga, era baixa (cerca de 5 USD), situação esta
que se deve à hiper-inflação existente naquele período e à necessidade de ter
um retorno muito rápido do dinheiro investido. A erosão real daquele activo
financeiro
não
se
compadece
com
a
sua
imobilização
prolongada
nomeadamente se envolve elevados montantes. Deste modo, a racionalidade
9
O financiamento informal e as estratégias de sobrevivência económica das mulheres em Angola:
a Kixikila no caso do município do Sambizanga (Luanda)
económica subjacente ao modus operandi da kixikila naquele contexto
inflacionista é evidente.
O retorno da Kixikila é utilizado como complemento do orçamento
familiar existente e destina-se essencialmente à compra de alimentação,
vestuário e material escolar. De salientar, no entanto, que ele também é
utilizado pelas mulheres como uma forma de protecção contra os abusos dos
homens em caso de roubo.
O facto da Kixikila existir e sobreviver num ambiente de grandes
dificuldades como é o caso de Angola é elucidativo da persistência das
mulheres para enfrentarem os problemas económicos que se lhes deparam no
dia-a-dia. Estes esquemas são criados exactamente com a finalidade de lhes
facilitar essa sobrevivência diária. Ou seja, e tal como O'Reilly (1996) refere
para as ROSCAs no caso zambiano, também na zona peri-urbana de Luanda se
constata igualmente uma enorme capacidade e desejo de poupança por parte
das pessoas mais pobres, nomeadamente como forma de assegurar a sua
existência.
Por outro lado, estas associações traduzem um forte empenhamento
social dos seus membros. O compromissso de fazer a Kixikila é levado a sério
ppor todos quantos a integram. A falha na contribuição por parte dos seus
membros é rara; quando acontece, o grupo pode mesmo dissolver-se ou optar
por fazer entrar novos associados. As mulheres têm consciência que o sucesso
deste esquema rotativo de poupança e crédito depende do compromisso e da
confiança mútua. A idade e a maturidade dos membros do grupo são
igualmente dois outros factores determinantes do seu sucesso.
Implicação para as políticas de desenvolvimento e alívio da pobreza
O funcionamento das ROSCAs apresenta, em geral, limitações devidas à
dificuldade de atingir uma redução geral da pobreza e à sua inabilidade para
atrair fundos suplementares e providenciar acumulação de capital no longo
prazo. É igualmente assumido que esses esquemas são somente acessíveis aos
10
Henda Lucia Ducados e Manuel Ennes Ferreira
grupos menos pobres ou às pessoas que têm capital social suficiente para serem
convidadas a entrar ou serem aceites nas associações já existentes10.
De qualquer modo, o funcionamento das ROSCAs tem apresentado o
mérito de criar incentivos à poupanca e de promover a solidariedade entre os
pobres.
Como foi referido mais atrás, as ROSCAs providenciam serviços
financeiros para aqueles que não têm acesso às instituições bancárias
pertencentes ao sector financeiro formal. Em alguns países onde os
intermediários financeiros informais são a única alternativa para receber
empréstimos fora do sistema bancário formal, a utilização das associações do
tipo ROSCAs - onde se enquadra a Kixikila - têm um papel de proteção contra
as taxas de juros elevadas praticadas pelos intermediários financeiros
informais.
Com a finalidade de apoiar as associações de ajuda mútua a contornar os
problemas que dali derivam (intermediários financeiros informais, dificuldade
de acesso ao crédito bancário e altas taxas de juro), as Organizações NãoGovernamentais têm vindo crescentemente a utilizar as ROSCAs como meio
de canalização dos seus serviços financeiros para as comunidades.
Foi assim que, por exemplo, durante a implementação do 'Women's
Enterprise Development Project' no município do Sambizanga, na cidade de
Luanda, conseguiu-se desenvolver uma experiência de microcrédito junto de
um grupo de mulheres que praticavam a Kixikila e cujo objectivo era melhorar
as actividades económicas das mulheres que trabalhavam no sector informal,
abrindo-lhes novas oportunidades de singrarem.
Esta experiência funcionou do seguinte modo: antes de ceder os
empréstimos, foi solicitado às mulheres interessadas em se envolver neste
10
Isto mesmo foi constatado por Grassi (1997) em entrevistas conduzidas no mercado Roque Santeiro,
em 1996, junto de empresárias do sector informal: à falta de capital para adquirir mercadoria, elas
atenuam esse efeito através da prática da kixikila. No entanto, realçam nessas entrevistas que isso só
funciona com pessoas bem conhecidas e que só as mais velhas a podem praticar visto ser necessário
dispôr de dinheiro à partida. Nas entrevistas conduzidas em Benguela e Lobito, as mulheres referiram
que a kixikila “é cada vez menos praticada por causa da desconfiança crescente resultante da perda de
valores morais da sociedade” (pp.113/114).
11
O financiamento informal e as estratégias de sobrevivência económica das mulheres em Angola:
a Kixikila no caso do município do Sambizanga (Luanda)
projecto que formassem grupos de cinco pessoas, após o que deveriam eleger
um líder que se responsabilizasse pelo grupo e pelos empréstimos. A concessão
de empréstimos envolveu pequenos montantes e implicou um reembolso
semanal. Dado que as mulheres já faziam Kixikila, os critérios do projecto que
habilitavam as mulheres a receber crédito não foram difíceis de alcancar,
nomeadamente porque já existia confiança e compromissos entre elas. As
mulheres geriram os empréstimos em grupo e, no fim, partilharam o lucro entre
elas11.
Embora haja tendência para restringir o sucesso de experiências deste
tipo à vertente exclusivamente económica, os seus resultados vão bem para
além disso: se por um lado a concessão de microcrédito foi um sucesso - a taxa
de reembolso dos pequenos empréstimos foi de 100 por cento – por outro, e
não menos importante, os rendimentos gerados permitiram melhorar a
alimentação das famílias bem como comprar vestuário e equipamentos para o
lar, registando-se um aumento da auto-estima das mulheres envolvidas.
Conclusão
O sistema bancário formal dos países em desenvolvimento não
providencia crédito às pessoas mais pobres ou, quando o faz, é sempre em
quantitativos pequenos e exigindo na maior parte dos casos garantias que as
classes mais desfavorecidas dificilmente conseguem dar. Como forma de tentar
ultrapassar este problema – acesso ao crédito e financiamento da actividade
económica – tem sido observado em alguns países que grupo de pessoas,
principalmente mulheres, se juntam para criar associações rotativas de
poupança e crédito (ROSCAs na literatura económica). Estes esquemas são, no
entanto, vistos com alguma suspeição devido à sua dificuldade em assegurar
uma acumulação líquida de capital no longo prazo.
11
Um episódio exemplar e simultaneamente atestador das capacidades destas associações de poupança
e crédito informais foi dado no final da implementação do projecto. Um grupo de mulheres foi roubada
tendo perdido o dinheiro do projecto. Utilizando as poupanças acumuladas com a Kixikila, as mulheres
foram capazes, contudo, de reembolsar os empréstimos que haviam recebido do projecto
12
Henda Lucia Ducados e Manuel Ennes Ferreira
No caso de Angola, aqui apresentado como case study, aquele tipo de
associação toma o nome de Kixikila. Neste país, que enfrenta uma grave crise
económica e social e onde é difícil contornar o problema da hiper-inflação, a
maioria das pessoas sobrevivem no dia dia. Ora o que se constata é que, por
menor que seja a acumulação líquida obtida através da kixikila, ela faz uma
grande diferença no orçamento das famílias pobres que a praticam, ao
acrescentar uma nova receita .
Assim, qualquer esquema que possa facilitar o desenvolvimento do
hábito de poupança deve ser encorajado. O sistema em que assentam as
ROSCAs, logo a kixikila, baseia-se num incentivo comum capaz de atrair as
pessoas de modo a criarem um fundo rotativo com vista a beneficiar os
membros do grupo. Isto significa que, em termos de políticas futuras a adoptar,
as instituições nacionais e as agências internacionais ligadas à problemática do
desenvolvimento bem como as ONG, devem ser capazes de encontrar maneiras
de incentivar as pessoas, nomeadamente as mais desfavorecidas, a praticar
aqueles esquemas de poupança e crédito. No mesmo sentido, os policy-makers
devem tomar em consideração as potencialidades destas instituições informais,
dado os seus efeitos económicos e sociais12.
Estudos ao nível micro devem ser estimulados para estimar o potencial
de contribução desses esquemas para o conjunto da economia, nomeadamente
num ambiente em que se processa a liberalização financeira (após se ter
passado por um longo período de repressão financeira) e se tomam medidas de
ajustamento estrutural em Angola. Pelo que se pode constatar através das
experiências de liberalização financeira noutros PVD, as suas consequências no
desenvolvimento podem ser pesadas. Não é certo, portanto, que o sector
financeiro informal possa daí beneficiar, o que significa dizer no âmbito desta
comunicação, as associações rotativas de poupança e crédito – as Kixikilas.
Embora as ROSCAs funcionem a uma pequena escala, tem-se
constatado que são inovadoras e criativas e podem desempenhar um importante
12
A este propósito atente-se, por exemplo, na experiência governamental indonésia de apoio, através de
empréstimos, ao comércio de cassava (produto agrícola). Ver Unnevehr and Zain (1986).
13
O financiamento informal e as estratégias de sobrevivência económica das mulheres em Angola:
a Kixikila no caso do município do Sambizanga (Luanda)
papel económico e social para as pessoas mais pobres. O caso descrito nesta
comunicação, no município do Sambizanga em Luanda, é disso elucidativo: um
pequeno fundo em forma de doacção ao ser atribuído por forma a ajudar a criar
um capital inicial dirigido às pessoas que não o têm, permitirá dar um novo
fôlego ao funcionamento da Kixikila. Quando as pessoas já estão envolvidas na
Kixikila, então a sua introdução no sistema bancário formal poderá tornar-se
mais simples e viável.
14
Henda Lucia Ducados e Manuel Ennes Ferreira
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