Schaeffer e a fenomenologia pontyana - DMU

Transcrição

Schaeffer e a fenomenologia pontyana - DMU
TOFFOLO, R. B. G.; OLIVEIRA, A. L. G. Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologiade Pierre Schaeffer.
In:Anais do Simpósio de Pesquisa em Música. Curitiba: UFPR, 2005. p. 131–145.
Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologia de Pierre Schaeffer
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo <[email protected]>
André Luiz Gonçalves de Oliveira <[email protected]>
Resumo: O presente artigo pretende desenvolver uma nova perspectiva para a descrição da percepção
(écoute) utilizada por Pierre Schaeffer, apoiada na fenomenologia pontyana e na teoria do conhecimento
atuacionista de Maturana (1995) e Varela et al (1991). O trabalho de Schaeffer desenvolve-se centrado na
fenomenologia de Husserl que por sua vez já sofreu inúmeras reformulações ao decorrer do
desenvolvimento histórico da fenomenologia moderna. Neste trabalho apresentamos os conceitos chaves
da teoria de Schaeffer (1966) e apontamos algumas reformulações necessárias, para que dessa forma tais
conceitos acompanhem as transformações ocorridas na fenomenologia.
Palavras-chave: Pierre Schaeffer, Marleau-Ponty, fenomenologia, atuacionismo, audição corporificada e
situada.
1. Introdução
Desde sua primeira publicação em 1966 o Traité des objets Musicaux de Pierre
Schaeffer tem sido uma obra referencial para a composição e para o estudo da música
contemporânea, principalmente as que se enquadram na vertente acusmática. Dentro desse
panorama, o Traité também se tornou obra teórica central para o estudo e desenvolvimento de
estéticas musicais que colocam a percepção como fundamento para a construção de técnicas e
procedimentos composicionais. Diversos autores deram seguimento ao trabalho de Schaeffer no
intuito de completar e expandir sua perspectiva de música contemporânea, dos quais podemos
destacar Simon Emmerson (1987), François Bayle (1993) e Michel Chion (1994). É a noção de
acusmática que possibilita a colocação da percepção (écoute para Schaeffer) como foco central
para a atividade composicional. Essa transformação de foco da dupla fazer/ouvir para um
ouvir/fazer, entendendo o fazer como o próprio processo composicional, é decorrente de um
amplo estudo e críticas às posturas tradicionais da atividade musical ocidental.
Schaeffer parte de uma análise, breve, porém profunda da situação da música que lhe
era contemporânea, esboçando alguns problemas a serem resolvidos e críticas à posturas
composicionais dominantes de sua época. Aponta para as transformações que a musicologia
deveria enfrentar, decorrentes das mudanças das noções de escala de alturas como base para a
construção musical; o crescente desenvolvimento de formas de produção sonora, advindas dos
equipamentos eletrônicos e dos instrumentos não ocidentais; os problemas que a crítica musical
enfrentava por não apresentar nem conteúdo nem terminologia apropriada para a explicação do
fenômeno musical.
O autor afirma que o surgimento da postura estruturalista em música, do início do
século XX, foi uma reação a esses “impasses” da musicologia, já que fica justificada, em meio a
tal crise, o apoio sistemático em parâmetros “seguros” da física. Dessa forma, Schaeffer referese à perspectiva estruturalista como geradora de uma música a priori, por esta colocar a
construção e manipulação abstrata de símbolos musicais, que apresentam uma analogia com
parâmetros acústicos, como fato primeiro em relação à escuta. Criticando essa postura que não
toma a experiência do material sonoro que ocorre na escuta, Schaeffer sugere uma alternativa
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que inverta a ordem da conduta composicional estruturalista e a denomina de música concreta e
posteriormente de música experimental.
2. Les Quatre Écoutes
O autor lança-se então à uma descrição do funcionamento da escuta baseando-se em
situações e ações específicas de um ouvinte hipotético. Divide a escuta em quatro tipos
funcionais:
1. Écouter: É disponibilizar o ouvido, interessar-se por. Eu me dirijo ativamente a alguém
ou a alguma coisa que me é descrita ou assinalada por um som. (Schaeffer 1966, p. 104)
2. Ouïr: É perceber pelo ouvido. Por oposição a escutar, que corresponde à atitude mais
ativa, aquilo que ouço é aquilo que me é dado na percepção. (Schaeffer 1966, p. 104)
3. D´entendre: É o estágio da escuta no qual ocorrem as qualificações do ouvir,
dependendo de uma intenção. Segundo Schaeffer, a origem etimológica da palavra
aponta que entender é “ter uma `intenção´. Aquilo que entendo, aquilo que me é
manifesto, é função dessa intenção.” (Schaeffer 1966, p. 104).
4. Comprendre: Realizado a partir da qualificação do entender, é o ato de perceber um
sentido onde o som torna-se um signo que possui relações com um código cultural.
(Schaeffer, 1966, p. 104)
O quadro de funcionalidades da escuta é a base sobre a qual o autor fundará toda a sua
investigação sobre a atividade musical para a construção de uma vertente acusmática e
experimental, ao lidar com o fenômeno sonoro. É a partir dele que Schaeffer realiza uma análise
das diferentes situações de escuta decorrentes de diferentes situações humanas. Posteriormente,
propõe uma descrição do fenômeno musical para além daquela fornecida pela física acústica.
Para que tal tarefa seja exeqüível, o autor recorre à noção de redução fenomenológica de
Edmund Husserl. Tal noção será de suma importância para a construção do seu objeto sonoro e
este por sua vez será a base para o desenvolvimento de seu solfejo.
Além da divisão da escuta em quatro funcionalidades, Schaeffer organizará
posteriormente formas diferentes de agrupar tais funcionalidades. Uma subdivisão que apresenta
relevância para este texto é a organização do quadro de funcionalidades da escuta em dois pólos
opostos: Banalle/Praticienne. Na abordagem crítica de Windsor (1995), para a análise de
música acusmática, encontramos corroboração à relevância da descrição desses dois modos de
percepção tal qual realizada por Schaeffer, de forma a opor dois pólos que são responsáveis pela
caracterização de uma escuta de dia-a-dia (banalle) e de uma escuta especializada (praticienne)
que remete à um sistema simbólico.
This is not to suggest that Schaeffer’s ideas per se have no
relevance to the analyst. His discussions of the relationship of
listening to culture and nature, his perspicacious accounts of the
problems inherent within traditional views of listening and musical
discourse (Schaeffer, 1966) have been instrumental in defining the
challenges posed by the acousmatic and have been instrumental in
shaping this thesis. (Windsor, 1995, p. 34)
A descrição das funcionalidades da escuta organizada nesses dois pólos será de
suma importância para as reformulações que apresentamos no presente artigo. Porém para
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chegarmos aos resultados pretendidos realizaremos uma revisão no quadro das quatre
écoutes para posteriormente retornarmos a esse ponto.
A delimitação schaefferiana das quatre écoutes apresenta algumas inconsistências
decorrentes de redundâncias conceituas. Na definição de écouter, que descreve uma escuta
“mais ativa” que a presente na definição de ouïr, não fica claro quão mais ativo deve ser o
comportamento para ser caracterizado como écouter. Schaeffer considera que tal atividade de
um suposto sujeito, própria do escutar, centra-se na busca da fonte sonora (referencialidade), o
que não ocorre no ouvir. O problema aqui apontado está na tentativa de separar as funções que
ocorrem no escutar e no ouvir. Para Schaeffer o ouvir seria a atividade realizada por um ouvido
que recebe estímulos de um mundo dado e que não realiza nenhum tipo ação sobre eles. Aqui
podemos apontar ao menos três problemas para a descrição da percepção, a saber: a) um ouvir
que é incessante; b) um mundo dado antes da experiência do mundo; c) um sujeito suposto antes
da experiência1.
a) para o autor (Schaeffer 1966, p. 104) o sujeito jamais cessa de ouvir e encontra-se
em um mundo que jamais cessa de estar ai. Em uma experiência de dia-a-dia estamos
constantemente realizando escolhas de hábitos de audição que resultam em um cessar de ouvir
algo para ouvir outro algo. A psicologia ecológica de Gibson e Baeteson, a fenomenologia
pontyana e a ciência cognitiva atuacionista de Maturana e Varela, mesmo com suas diferenças
de abordagens, oferecem uma explicação mais adequada para tal conduta. De acordo com tais
áreas de estudos, é necessário a substituição de uma abordagem da percepção como um
receptor2 de sensações, que conduz os estímulos ao processamento interno, para as abordagens:
ecológica, fenomenológica e autopoiética, que apresentam a noção de sistemas perceptivos, que
se fazem no seu viver, isto é, na sua história de acoplamentos estruturais com o meio. Tais
sistemas caracterizam-se por uma ação no meio em busca de um acoplamento adequado com a
situação vivida. No conhecido exemplo do coktail-party phenomenon (Gibson 1966, p. 84), o
indivíduo orienta sua atenção e passa a ouvir especificamente aquilo que quer. O sistema
auditivo se auto-ajusta através do tensionamento do músculo estapédico que regula o padrão de
tensão da membrana timpânica de acordo com o controle do sistema nervoso central, para
melhor detectar o padrão sonoro desejado (Guynton e Hall, 1997). Se a membrana timpânica
está ajustada para ressoar a um tipo de padrão sonoro, não irá ressoar com outros padrões,
resultando numa seleção e, portanto, na interrupção da audição de tais padrões sonoros, os quais
podem estar sendo ouvidos por outras pessoas com outros padrões de comportamento auditivo.
b) para que a descrição de Schaeffer de um ouvir passivo, que capta o mundo
ininterruptamente, possa equivaler ao real, é necessário conceber um mundo existente
independente da experiência de existência desse mundo. Essa noção de mundo dado é
decorrente de um posicionamento dualista cartesiano sujeito/objeto que tem como correlatos
outros dualismos importantes na filosofia: mente/corpo e natural/cultural. A fenomenologia
desde Husserl e inclusive desde Hegel em sua Fenomenologia do Espírito tem sido marcada por
uma orientação para a eliminação de tais dualismos.
c) a crença em um mundo dado, anterior à experiência resulta também em uma crença
em um sujeito hipotético independente da experiência. A circunscrição da noção de sujeito tem
sido um dos problemas centrais na Filosofia da Mente contemporânea. Estão ligados a tal
1
As alternativas explicativas aos problemas conceituais apresentados nesta seção serão descritos em
maior profundidade nas próximas seções.
2
A palavra receptor designa uma passividade no sentido de que o órgão recebe o estímulo ao invés de
buscar por ele. (Gibson 1966).
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circunscrição conceitos como consciência, psique, self, mente, espírito, alma, etc. Desde seu
nascimento, a filosofia se ocupa com a descrição de tais conceitos sem chegar a uma resposta
conclusiva. Há uma marca cartesiana3 muito forte na filosofia moderna que apresenta o sujeito
como algo desligado de seu corpo. Na Fenomenologia da Percepção, M-Ponty supera esse
dualismo apresentando uma descrição da mente (psique) e corpo como entidades não
separáveis:
O homem concretamente considerado não é um psiquismo unido a
um organismo, mas este vai-e-vem da existência que ora se deixa
ser corporal e ora se dirige aos atos pessoais. Os motivos
psicológicos e as ocasiões temporais podem-se entrelaçar porque
não há um só movimento em um corpo vivo que seja um caso
absoluto às intenções psíquicas, nenhum só ato psíquico que não
tenha encontrado seu germe ou seu esboço geral nas disposições
fisiológicas. (M-Ponty, 1994, p. 130).
M-Ponty propõe a noção de um sujeito incorporado e situado. É a mesma noção
proposta por Varela et al., Maturana e Haselager (2003) de um sujeito corpóreo que se faz
através de sua ação no mundo. A noção de sujeito presente no trabalho de Schaeffer é filiada à
perspectiva husserliana de sujeito transcendente, que é oposta a noção de sujeito encarnado e
situado no espaço e no tempo. (cf. M- Ponty, 1990, p. 159).
Resta-nos agora abordar os conceitos de entendre e comprendre. O entendre segundo
Schaeffer caracteriza-se por uma ação intencional na escuta. O problema do conceito de
entender centra-se no conceito de intencionalidade. O estudo de tal noção é central na filosofia,
especificamente na Filosofia da Mente. São referenciais nesta área de estudos os trabalhos de
Tomás de Aquino, Brentano, Dennet, Dretske, Fodor, Searle, Putnam, entre outros. Não
encontra-se no escopo deste artigo abordar especificamente problemas com a noção de
intencionalidade, o que é tarefa para futuros trabalhos. Ocorre que Schaeffer encontra-se numa
tradição dualista cartesiana na utilização de tal conceito, incorrendo com isso em noções
problemáticas tanto para a explicação da percepção quanto para a própria demarcação de
organismo, mente e sujeito conforme podemos na verificar na citação abaixo:
Brentano argued both (A) that this reality-neutral feature of
intentionality makes it the distinguishing mark of the mental, in
that all and only mental things are intentional in that sense, and (B)
that purely physical or material objects cannot have intentional
properties—for how could any purely physical entity or state have
the property of being “directed upon” or about a nonexistent state
of affairs? (A) and (B) together imply the Cartesian dualist thesis
that no mental thing is also physical. And each is controversial in
its own right.Thesis (A) is controversial because it is hardly
obvious that every mental state has a possibly nonexistent
intentional object; bodily sensations such as itches and tickles do
not seem to, and free-floating anxiety is notorious in this regard.
(...)Dualism and immaterialism about the mind are unpopular both
in philosophy and in psychology—certainly cognitive
psychologists do not suppose that the computational and
representational states they posit are states of anything but the brain
—so we have strong motives for rejecting thesis (B) and finding a
way of explaining how a purely physical organism can have
intentional states. (The MIT encyclopedia of the cognitive
sciences, 1999, p. 414)
3
Há alternativas à Descartes que são contemporâneas a ele mesmo como é o caso de Spinoza. No entanto,
o cartesianismo já em sua época tornou-se tendência dominante.
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Na abordagem que propomos neste artigo apresentaremos uma explicação para a
percepção que não necessita deste conceito de intencionalidade por utilizar uma perspectiva não
dualista-cartesiana.
Em relação ao comprendre, Schaeffer o descreve utilizando noções próprias da tradição
do paradigma do processamento de informação para a explicação da percepção. Para o autor,
este estágio envolve a organização de significações que foram selecionadas intencionalmente no
entendre. Como Schaeffer coloca, o suposto sujeito é autor de deduções, abstrações,
comparações e relações de informações de fontes e naturezas diversas (1966, p. 110). As
atividades realizadas no entender e no compreender são próprias de um sujeito metafísico,
cartesiano e independente da experiência incorporada e situada no mundo.
Conforme exposto no início desta seção, apresentaremos uma alternativa explicativa
para as funcionalidades da escuta de Schaeffer, porém para que isso seja possível buscaremos na
fenomenologia pontyana e no atuacionismo de Varela, fundamentos filosóficos mais adequados
para a descrição da percepção.
3. Um novo paradigma para o estudo da percepção
Os estudos feitos sobre percepção em diferentes áreas como a biologia (fisiologia), ou a
psicologia, ou ainda a filosofia vêm recebendo contribuições ao longo dos últimos 50 anos que
apontam o desenvolvimento de um novo paradigma, distinto daquele denominado por
processamento de informação originário da concepção dualista-cartesiana de mundo. Com
intenção de apresentar brevemente alternativas explicativas para a percepção auditiva a presente
seção trata da noção de percepção para dois autores que podem ser considerados exemplares na
busca por alternativas às propostas dualista-cartesianas. São eles Merleau-Ponty e Francisco
Varela.
3.1. A experiência do corpo no mundo
A perspectiva apresentada na Fenomenologia da Percepção permite escapar de
encruzilhadas conceituais dualistas, sobretudo por retomar a experiência como objeto central de
seu estudo e colocá-la como fundamento ontológico de toda e qualquer descrição sobre ela,
como afirma o prefácio:
Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir
de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual
os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo
da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos
pensar a própria ciência com rigor, (...), precisamos primeiramente
despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão
segunda. A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de
ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma
determinação ou uma explicação dele. (Merleau-Ponty, 1996, p 3)
Ao retomar a experiência como um retorno ao fenômeno, antes da explicação desse
fenômeno, Merleau-Ponty critica Descartes por colocar uma representação do mundo no lugar
do próprio mundo vivido, e apontar para tal representação como fundamento de toda atividade
cognitiva e mesmo perceptiva. Para Merleau-Ponty (1996, p. 7):
A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um
ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual
todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo
não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é
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o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas
as minhas percepções explícitas.
Tal maneira de entender percepção e mundo é uma grande novidade ainda hoje, tanto
para a tradição filosófica quanto para a ciência cognitiva, ou psicologia e neurociência. As
conseqüências dessa amostra do pensamento de Merleau-Ponty podem ser destrutivas para
teorias que propõe seus fundamentos do conhecer em uma metafísica dualista cartesiana, que
tendem a deixar de fora a própria experiência cotidiana do conhecer e do perceber.
M-Ponty inicia sua Fenomenologia pela descrição do papel do corpo nas atividades
perceptivas. Criticando o dualismo-cartesiano o autor busca alternativas à perspectiva do corpoobjeto da fisiologia e da psicologia clássica. Inicialmente a noção de corpo fora da perspectiva
dualista possibilita M-Ponty dispensar a noção de representação mental e explicar a percepção
como em conjunto com a ação (movimento) formando um sistema que se modifica como um
todo. Continuemos a citação:
Se, por exemplo, percebo que não querem obedecer-me e em
conseqüência modifico meu gesto, não há ali dois atos de
consciência distintos, mas vejo a má vontade de meu parceiro e
meu gesto de impaciência nasce dessa situação, sem nenhum
pensamento interposto. (M-Ponty, 1996, p.160)
Nesse sentido é o corpo no mundo que dá condições de comportamentos considerados
inteligentes. M-Ponty fala especificamente do hábito, mas como não estando nem no
pensamento, ou seja, como algum tipo de representação mental, nem no corpo-objeto, mas no
corpo como mediador de um mundo. Através do exemplo específico de um organista que vai
tocar em um órgão que não conhece, o autor explica de forma não mecanicista o que ocorre. MPonty (1996, p. 201) afirma que o tal organista durante o curto ensaio que precede o concerto,
(...) não se comporta como o fazemos quando queremos armar um plano. Mas ao contrário o
organista usa todo tempo que tem para experimentar os pedais, as teclas, utilizar com seu corpo
o instrumento, vesti-se dele. Segundo o próprio autor o organista:
(...) avalia o instrumento com seu corpo, incorpora a si as
dimensões e direções, instala-se no órgão como nós nos instalamos
em uma casa. O que ele aprende para cada tecla e para cada pedal
não são posições no espaço objetivo e não é à sua memória que ele
os confia. Entre a essência musical da peça, tal como ela está
indicada na partitura, e a música que efetivamente ressoa em torno
do órgão estabelece uma relação tão direta que o corpo do organista
e o instrumento são apenas o lugar de passagem dessa relação. (MPonty 1996, p. 200 e 201).
O corpo tem papel fundamental para a explicação fenomenológica da percepção ele é o
próprio espaço expressivo, e é pela experiência do corpo no mundo que eu alcanço o mundo. E
na segunda parte da Fenomenologia M.-Ponty aborda o mundo percebido, não como um mundo
objetivo, existente independente de um percebedor, como foi posto pela tradição dualista. Nem
como um mundo construído em mim como representação de um mundo objetivo fora de mim.
Mas como um mundo vivido, experimentado. Segundo o próprio autor, pela experiência
perceptiva me afundo na espessura do mundo. (M.-Ponty, 1996, p. 275.). Estando então
‘afundado’ no mundo, não necessito copiá-lo dentro de mim. Isso não quer dizer que a
fenomenologia negue a ocorrência de atividade neuronal, por exemplo. O que ocorre é que com
a fenomenologia há uma orientação para que o foco do estudo da percepção esteja na
experiência perceptiva, e não em supostas causas ou conseqüências. Em outras palavras, a
orientação dualista direciona o estudo das atividades perceptivas como se fossem ou
conseqüências ou causas das atividades neuronais (que seriam as próprias representações
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mentais), e a fenomenologia aponta para a necessidade de se focalizar a experiência de um
corpo em um mundo se a intenção é estudar a percepção.
Com isso M.-Ponty apresenta uma definição de percepção completamente diferente
daquela trazida pelo processamento de informação. Entendendo o mundo, as coisas como
correlativos de meu corpo, M.-Ponty (1996, p.429) afirma que a coisa nunca pode ser separada
de alguém que a perceba, nunca pode ser efetivamente em si, porque suas articulações são as
mesmas de nossa existência. Nesse caminho não faz sentido a noção de um sujeito que processe
as informações recebidas de um mundo dado de antemão. Para a fenomenologia não há esse
mundo dado antes da experiência, ou nas palavras do autor: o que é dado não é somente a coisa,
mas a experiência da coisa (...). (M.-Ponty, 1996, p.436). Também esse sujeito não existe
desligado do mundo, M.-Ponty é muito claro e direto ao afirmar que:
O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é
senão um projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo,
mas de um mundo que ele mesmo projeta. (M-Ponty, 1996, p.576)
Assim, não há como argumentar em favor da percepção e da significação que ocorre na
percepção, como re-elaboração construída por um sujeito que opera interpretando um mundo
que lhe é estranho e externo. Mas, abre-se a perspectiva para entender a percepção como certa
maneira de agir no mundo, certa maneira de ser no mundo. Tal perspectiva será desenvolvida
também por outros autores além de M.-Ponty, como Varela, por exemplo, que no início da
década de 90 mostra-se comprometido com uma perspectiva que valoriza a experiência para a
explicação dela mesma. Há diversos outros autores que desenvolvem pesquisas acerca de
percepção e cognição e que vêm engrossando as fileiras de um paradigma não dualistacartesiano. Escolhemos abordar o trabalho de Varela por entender que ele acaba condensando
todo um conjunto de esforços que se desenvolve sob um nome comum de ciência cognitiva e
dialoga diretamente com a filosofia da mente.
3.2 O conhecimento faz o mundo ou o mundo e eu somos feitos na experiência.
Também é à tradição dualista e representacionista cartesiana que se encaminham as
críticas de Varela, Thompson e Rosh (2003, p. 150) quando falam de um tipo de ansiedade
cartesiana vivida com as questões sobre os fundamentos objetivos do mundo ou do sujeito que
conhece o mundo: Ao tratar a mente e o mundo como pólos opostos – o subjetivo e o objetivo –,
a ansiedade cartesiana oscila indefinidamente entre os dois na busca de uma fundação. De
acordo com os autores, a postura dualista-cartesiana gera ansiedade na medida em que tais
fundamentos objetivos (independentes da experiência) para o mundo e para a mente não são
alcançados suficientemente. Tal ansiedade é ainda geradora de niilismo conforme afirmam na
seqüência (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 152): (...) nossa ganância por um alicerce, seja
ele interno ou externo, é a origem profunda de frustração e ansiedade. A concepção de
cognição como um tipo de representação de um mundo dado, construída por uma mente é que
temos apontado e criticado naquilo que chamamos de adesão ao paradigma dualista-cartesiano.
Além da preocupação crítica Varela, Thompson e Rosh se incubem da tarefa de
descrever cognição de uma nova maneira, não dualista e que leve em conta, sobretudo o
conhecimento na experiência cotidiana do viver. Eles descrevem a cognição através da noção de
enacção4 ou atuação5 , sempre como cognição corporificada e ação situada. Nesse sentido
apontam uma nova maneira de descrever atividades perceptivas, como a discriminação de cores,
por exemplo:
4
5
De acordo com tradução de ennaction para o portugês de Portugal em edição do Instituto Piaget.
De acordo com tradução do termo ennaction para o portugês do Brasil em edição da Artmed.
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Vimos que as cores não estão “lá fora”, independentes de nossas
capacidades perceptivas e cognitivas. Vimos também que as cores
não estão “aqui dentro”, independentes do mundo biológico e
cultural à nossa volta. Contrariamente à visão objetivista, as
categorias de cores são experienciais; contrariamente à visão
subjetivista, as categorias de cores pertencem ao nosso mundo
biológico e cultural. (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 176)
Colocando as coisas dessa maneira, os autores apontam um caminho contrário ao
dualismo, e com isso a possibilidade de evitar as conseqüências problemáticas de tal opção
teórica. A abordagem atuacionista que vem sendo desenvolvida por mais de dez anos no seio da
ciência cognitiva e da filosofia da mente tem demonstrado importantes frutos quando aplicadas
por áreas de estudo tão diferentes como as artes, a lingüística, ou a robótica evolucionária.
Os autores propõem a noção de percepção como ação perceptivamente orientada, e
afirmam também que as estruturas cognitivas emergem dos padrões sensório-motores
recorrentes que possibilitam a ação ser perceptivamente orientada. (Varela, Thompson e Rosh,
2003, p. 177). Isso é a própria definição da abordagem atuacionista para os autores citados. Para
essa abordagem do estudo da percepção não é importante, como no caso do paradigma dualistacartesiano, determinar como um mundo independente de um observador pode ser recuperado,
mas sim determinar os princípios comuns entre os sistemas sensorial e motor que explicam
como a ação pode ser orientada em um mundo dependente de um observador. (Varela,
Thompson e Rosh, 2003, p. 177). Em trechos subseqüentes os próprios autores reconhecem sua
filiação à tradição fenomenológica de M.-Ponty e trazem claramente sua concepção de
percepção não só como parte (ou embutida) de um mundo, mas como colaboradora com a
atuação desse mesmo mundo.
Aí está, de forma resumida, um conjunto de argumentações destacando possibilidades
explicativas da percepção e cognição no contexto da ciência cognitiva e filosofia da mente.
Acabamos de apresentar a abordagem denominada atuacionista de Varela, Thompson e Rosh,
que se desenvolve a partir de e concepções fenomenológicas de M.-Ponty. Tais abordagens para
o estudo da percepção (de M.-Ponty e Varela, entre outros) apontam para uma alternativa no
contexto das explicações sobre percepção. Elas não concebem nem um sujeito absoluto que
existe e age separado de um mundo (que por sua vez também existe e age independente do
sujeito), nem um mundo objetivo, com coisas que existem independentes de algum percebedor
que as possa distinguir. Concebem então um percebedor e um mundo que se fazem enquanto
estão atuando acoplados estruturalmente mantendo sua organização. Nesse sentido foi o título
dessa seção afirmando que o conhecer é atuar, viver, possuir uma história de acoplamento
estrutural com o meio. E perceber é a própria ação no mundo, que nunca existe sem orientação
perceptiva, e não com representações ou orientações para um mundo externo.
Um outro autor bastante importante para a pesquisa sobre cognição e percepção, H.
Maturana, que não será aprofundado no presente texto por uma questão do recorte momentâneo,
tem uma citação muito rica para concluir a presente seção. Com ela Maturana amplia a noção de
percepção, saí da perspectiva do per-capere (literalmente: obtido por captação) e entende
percepção como o nome que um observador atribui a uma conduta específica, ou um mundo de
ações. Nas palavras do autor:
O mundo cognitivo que vivemos, através da percepção, se
assemelha a isso: produzimos um mundo de distinções através de
mudanças de estados que experimentamos enquanto conservamos
nosso acoplamento estrutural com os diferentes meios nos quais
estamos imersos ao longo de nossas vidas, e, então, usando nossas
mudanças de estado como distinções recorrentes em um domínio
de coordenações de coordenações de condutas consensuais
(linguagem), produzimos um mundo de objetos como
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coordenações de ações com as quais descrevemos nossas
coordenações de ações. (Maturana, 1997/2001, p. 103).
4. Les Quatre Écoutes como hábitos de escuta
Após esta apresentação das propostas de M-Ponty e Varela, estamos aptos a
desenvolver as críticas e alternativas explicativas esboçadas na segunda seção.
Conforme citamos acima, apontamos como relevante para nosso estudo a categorização
schaefferiana das funcionalidades da escuta como banalle e praticienne. Tal organização pode
ser relacionada com aquela descrita na teoria da percepção direta de Gibson (1966 e 1979).
Segundo Michaels e Carello (1981), todas as teorias que estudam a percepção partem do
pressuposto de que o comportamento dos animais demonstra o quanto conhecem seu meioambiente. Porém, existe uma diferença em como cada teoria explica esse tipo de conhecimento.
Essa diferença, segundo as autoras, divide os estudos sobre percepção em Teorias da Percepção
Indiretas (uso de representações mentais) e Teoria da Percepção Direta.
Gibson e seus seguidores adotaram uma perspectiva Ecológica ao afirmar que perceber
é um processo que se dá num sistema mutuamente informacional formado por animal e meio
ambiente, e não somente no animal tal como ocorre com a percepção Indireta. Outro ponto
crucial que diferencia esses dois blocos que estudam a percepção é que a Teoria da Percepção
Direta não concorda com o uso de memórias e representações mentais, ou seja, não há mediação
na atividade perceptual, por isso ser denominada como uma teoria da Percepção Direta, ao
contrário das teorias da Percepção Indireta que explicam os processos perceptuais com o uso da
mediação6.
Para explicar a atividade de acoplamento estrutural entre organismo e meio na
experiência sonoro-musical, Oliveira & Oliveira 2003 utilizam-se de noções advindas da Teoria
da Percepção Direta de Gibson:
The sonic phenomenon is result of a mechanic event generated by
the movement of any body composed with some elastic material, or
a simulation of it in a computerized environment. This event, in all
case, is always embedded in a specific situation, with a specific
characteristics deriving of the relation between the perceiver and
his environment. (Oliveira & Oliveira, 2003. p. 1)
A percepção quando descrita como o acoplamento estrutural entre organismo e meio,
elimina a noção de representação da explicação da atividade perceptiva. Essa maneira de
abordar a percepção como um ciclo de percepção-ação é o que Gibson denomina como
percepção direta (Gibson, 1979). De acordo com tal teoria, Gibson categoriza a percepção em
dois tipos: primeira e segunda mão. Naquilo que Gibson denomina por percepção de primeira
mão encontra-se um tipo de ação que é caracterizada pela imediatidade. O organismo percebe o
mundo e age sem que tal ação envolva aquilo que se caracterize por um planejamento anterior
(representação mental). Como exemplo desse tipo de ação, podemos tomar o caso de alguém
que caminha em um terreno acidentado. No seu caminhar ele desvia dos acidentes e procura um
caminho estável para que seu andar possa ocorrer. No entanto ao visualizar um buraco, por
exemplo, nosso caminhante não tem tempo de planejar que tipo de posição de perna, de pé,
enfim, ou de corpo inteiro, ele irá tomar. Seu corpo se coloca, imediatamente, em condições de
superar o obstáculo. Não há como observar aí um plano prévio, por mais rápido que pudesse
6
Gibson não nega a existência das representações mentais, mas afirma que na atividade perceptual elas
não são utilizadas. Para uma visão aprofundada sobre a crítica à representação mental no processo
perceptual ver Haselager (2003).
TOFFOLO, R. B. G.; OLIVEIRA, A. L. G. Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologiade Pierre Schaeffer.
In:Anais do Simpósio de Pesquisa em Música. Curitiba: UFPR, 2005. p. 131–145.
ocorrer. O corpo se molda à situação, age sem intermediários, age orientado diretamente pela
percepção.
Em se tratando de música, os exemplos de percepção de primeira mão são também
esclarecedores. Tomemos o caso de um regente à frente de uma orquestra. Por mais que o
regente tenha preparado previamente seu conjunto de movimentos, fundamentado no estudo da
partitura, o momento da execução exige um tipo de ação imediata do regente, para adequar a
sonoridade resultante da performance, a cada momento. Variações em diferentes aspectos
musicais (dinâmica, agógica, articulação...) ocorrerão e cabe ao regente adequá-las para
conseguir a sonoridade esperada. A realização de seus padrões gestuais é sempre orientada, no
momento da execução, pela percepção daquilo que está sendo gerado na performance da
orquestra. Forma-se assim o ciclo percepção-ação. Em contra-partida, o planejamento do
gestual para a performance e todo o conjunto de conceitos teóricos musicais utilizados para a
construção de tal planejamento caracterizam-se pelo que Gibson, Maturana, M-Ponty e Varela
entendem como percepção de segunda mão7. Essa percepção caracteriza-se por um nível
superior de recorrência do acoplamento estrutural, por isso ser um segundo, que é sempre
orientada e orienta a primeira mão. Com isso podemos observar a ação de um corpo (encarnado)
em uma situação específica (situado) num ciclo de percepção-ação que ocorre com diferentes
níveis de recorrência. Se optarmos pela descrição de cognição de Varela et al (1991) e Maturana
(1995), podemos entender que aquilo que denominamos por percepção e por conhecimento são
descrições condutuais consensuais mais ou menos recorrentes observadas nos diferentes níveis
de sub-redes sensóriomotoras em seu operar no meio, guardando sua identidade e mantendo seu
acoplamento estrutural. Tal nível maior ou menor de recorrência está diretamente relacionado
com aquilo que entendemos por percepção de primeira mão (baixa recorrência) e percepção de
segunda mão (alta recorrência).
Como já afirmamos, Schaeffer se aproxima muito dessa categorização ao agrupar as
funcionalidades da escuta na dupla banale e praticienne. O agrupamento do escutar e do ouvir
em uma escuta banale, de dia-a-dia segundo Windsor (1995), corresponderia à primeira mão tal
qual descrevemos acima e a dupla entender/compreender agrupada em uma escuta praticienne
corresponderia à segunda mão. Temos, assim, uma substituição possível às funcionalidades
schaefferianas da escuta que resolveria os problemas de conceituação e de explicação da
percepção apoiadas em uma abordagem dualista-cartesiana, que era exatamente o que Husserl e
a tradição fenomenológica pretendia expurgar.
Devemos ressaltar que nossa reformulação não apresentará prejuízos para o retorno que
Schaeffer realiza ao quadro das funcionalidades no intuito de realizar a passagem da música
tradicional para a música experimental. Para isso Schaeffer propõe a inversão no
direcionamento das atitudes perante o fenômeno sonoro. Na música tradicional esse
direcionamento ocorre de uma etapa de identificação dos valores musicais, que englobam o
compreender e o escutar como domínio da musicalidade, para uma qualificação, que engloba o
ouvir e o entender em um domínio da sonoridade. Temos, assim, o domínio da musicalidade
que representa as identificações abstratas e conceituais sendo posteriormente efetivadas no
mundo no domínio da sonoridade. A inversão se dá a partir de uma qualificação realizada no
domínio da sonoridade, através da escuta reduzida e sua decorrência no objeto sonoro, para
posteriores identificações e organizações de coleções de significações no domínio da
musicalidade. Ao reorganizarmos o quadro das funcionalidades da escuta, teremos a escuta
como um todo, que num nível de recorrência inferior é caracterizado pela percepção de
primeira-mão e num nível de recorrência superior pela percepção de segunda-mão.
7
Apenas Gibson utiliza o termo second-hand perception. No entanto os outros autores citados também
apresentam um tipo de categorização da percepção que pode ser descrito adequadamente segundo a noção
gibsoniana referida.
TOFFOLO, R. B. G.; OLIVEIRA, A. L. G. Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologiade Pierre Schaeffer.
In:Anais do Simpósio de Pesquisa em Música. Curitiba: UFPR, 2005. p. 131–145.
A inversão da atividade composicional, do fazer-ouvir para um ouvir-fazer, pode ser
melhor descrita, nos termos das teorias abordadas aqui, como um caminho de valorização da
percepção de primeira mão. Da maneira que Schaeffer apresenta sua inversão, não é possível,
ou melhor, não é objetivo da escuta reduzida a ocorrência de significação na percepção de
primeira mão, mas ela própria é a proposição de um segundo nível de recorrência (segunda
mão) sobre a percepção imediata. Nesse sentido o autor nem considera a possibilidade da
emergência de significação na percepção de primeira mão. O que consideramos central para a
crítica e proposições realizadas no presente estudo é apontar que diversos autores8 indicam um
tipo de significação perceptiva, próprio da ocorrência do ciclo percepção-ação de um corpo em
um meio específico. O caminho que os referidos autores propõem é um tipo de descrição para as
significações específicas de cada uma das duas categorias de percepção. É relevante observar
que Gibson, ao argumentar em favor de uma significação própria da percepção de primeira mão,
não rejeita a possibilidade de um tipo de significação que ocorra utilizando mediações. Ao
contrário, tal autor afirma que o caso de um tipo de significação indireta, mediada por
representações9, pode ser descrito adequadamente como de segunda-mão, ou seja, com um nível
maior de recorrência da coordenação condutual consensual no operar do organismo em seu
meio.
Essa reformulação do quadro de escutas nos direciona para uma reformulação do
próprio conceito de objeto sonoro. Como afirmamos, o objeto sonoro de Schaeffer é obtido pela
redução fenomenológica. Tal redução visa a eliminação dos condicionamentos culturais
(hábitos) da escuta, para que seja desvelado o objeto sonoro. Tal objeto está relacionado à noção
de essência, o que coloca a experiência apenas como um aspecto passageiro e menos importante
na percepção. Nesse sentido a experiência é uma das etapas na construção das significações
possíveis para o objeto sonoro. Com tal posição Schaeffer incorre ao mesmo erro cartesiano
criticado por M-Ponty, de substituir o mundo por uma representação do mundo ou mais
especificamente no caso husserliano, substituir a experiência do mundo por suas essências. Tais
essências se configuram em um conjunto de características universais dos múltiplos objetos
possíveis à escuta. Com isso Schaeffer espera criar um sistema de categorização que seja
independente de qualquer situação de escuta. Ao comparar as escutas do músico, do engenheiro
e do ouvinte comum, Schaeffer encontra diferenças de significação decorrentes da escuta
especializada de cada um deles e atribui à escuta reduzida a função de revelar o objeto sonoro,
enquanto essência, e a função de possibilitar uma classificação que será comum a todas as
pessoas em todas as situações de escuta. No entanto, ao propor um tipo de escuta próprio para
acessar a essência da experiência sonora, seu objeto sonoro, o autor acaba por substituir um
grupo de hábitos de escuta, por um outro hábito, denominado por ele mesmo como antinatural,
como podemos ler:
Como posso descrever no plano puramente sonoro um galope? (...)
Necessito volver à experiência auditiva, recapitular minhas
impressões, para reencontrar, através das mesmas, informações
sobre o objeto sonoro, e não mais sobre o cavalo. (...) Na verdade
se trata de um retorno às fontes, à ‘experiência originária’, como
diria Husserl – que se tornou necessária por uma ‘mudança do
objeto’. Antes que um novo treinamento me seja possível e que
possa ser elaborado um outro sistema de referências, desta vez
apropriado ao objeto sonoro, eu deveria libertar-me do
condicionamento criado por meus hábitos anteriores, passar pela
prova da époché. Não se trata de forma alguma de um retorno à
natureza. Nada nos é mais natural do que obedecer à um
condicionamento. Trata-se de um esforço ‘antinatural’ para
perceber aquilo que antes determinava a consciência
inadvertidamente. (Schaeffer, 1966, p.270)
8
9
Gibson, Maturana, Varela e M-Ponty, p. ex.
Estamos nos referindo à noção de representação não como representação interna/mental.
TOFFOLO, R. B. G.; OLIVEIRA, A. L. G. Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologiade Pierre Schaeffer.
In:Anais do Simpósio de Pesquisa em Música. Curitiba: UFPR, 2005. p. 131–145.
É especificamente quando qualifica a experiência à qual se deve recorrer (experiência
originária) para descrever adequadamente um evento sonoro, que Schaeffer tira a experiência do
evento sonoro-acontecendo do centro da descrição dele próprio e coloca em seu lugar um tipo
de representação mental anteriormente elaborada e armazenada na memória. Tal representação
seria uma espécie de essência do evento percebido, ou seja, o objeto sonoro encontrado a partir
da escuta reduzida.
A partir dessas observações sobre essa importante citação, confirma-se que a noção de
objeto sonoro, que Schaeffer desenvolve no Traité, está relacionada diretamente à própria noção
de representação mental adequadamente elaborada. A experiência de estar ouvindo um evento
sonoro em uma situação específica é apenas o início do processo de desvelamento do objeto
essencial, a ser alcançado por um hábito específico (escuta reduzida). A experiência de ouvir o
evento sonoro em um meio específico não é suficiente para caracterizar o objeto sonoro
schaefferiano, é antes, apenas o início do processo de desvelamento desse objeto, que será
completado por outras etapas realizadas na mente do ouvinte. Dessa forma, Schaeffer incorre no
erro de acreditar que buscava uma descrição para a percepção de todo o possível acústico em
meios fenomenológicos, que pudesse ser estendido a qualquer indivíduo. A busca da essência da
escuta, que eliminaria qualquer referência a condicionamentos pessoais, através da escuta
reduzida, garantiria tal universalidade. Porém, o que temos é que Schaeffer cria mais uma forma
especializada de escutar o mundo em que a tipo-morfologia, base fundamental para o seu solfejo
dos objetos, acaba por ser um a priori que guiará toda a escuta do mundo. Poderíamos dizer que
o solfejo dos objetos é a escuta praticienne do compositor acusmático que deve ser apreendida e
condicionada para que funcione de acordo com o esperado por Schaeffer, portanto não pode
configurar-se como uma explicação dos fundamentos da percepção, já que ela encontrar-se-ia na
segunda-mão, sendo uma elaboração sobre a percepção de primeira-mão e não seu fundamento.
Nossa proposta alternativa à escuta reduzida pode ser denominada como audição
corporificada e situada. Com um tipo de significação que se dá sempre a partir de um ouvir/agir
de um corpo específico em uma situação específica. Com isso é necessário que tenhamos claro
dois conceitos, a saber: som situado e audição corporificada e situada:
The sonic phenomenon is result of a mechanic event generated by
the movement of any body composed with some elastic material, or
a simulation of it in a computerized environment. This event, in all
case, is always embedded in a specific situation, with specific
characteristics deriving of the relation between the perceiver and
his environment. (Oliveira and Oliveira, 2003)
A partir de tal citação podemos descrever adequadamente o que propomos como
audição corporificada e situada. De acordo com Gibson (1966) o estudo da percepção não deve
ser concebido apenas a partir da noção de órgão do sentido, aliás ele troca “órgão do sentido”
por “sistema perceptivo”. O autor ressalta que os ouvidos estão na cabeça sobre o pescoço,
sobre os ombros e sobre o resto do corpo. Tal corpo se movimenta no meio em busca de operar
em congruência com o ambiente para adequar o acoplamento estrutural no sentido de manter
sua identidade.
Após toda exposição acima podemos apresentar uma alternativa à noção do objeto
sonoro schaefferiano. Tal noção encontra-se, como vimos, enraizada na metafísica dualistacartesiana, e como tal, carece de estrutura argumentativa tanto epistemológica quanto
ontológica. O que propomos como alternativa é o conceito de objeto sonoro como distinções
realizadas por um organismo em sua história de condutas operacionais no sentido de manter sua
identidade, mantendo seu acoplamento estrutural. Aqui fica claro que nos apoiamos em uma
TOFFOLO, R. B. G.; OLIVEIRA, A. L. G. Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologiade Pierre Schaeffer.
In:Anais do Simpósio de Pesquisa em Música. Curitiba: UFPR, 2005. p. 131–145.
epistemologia própria especificamente de autores como M-Ponty e Maturana, como já nos
referimos anteriomente.
Assim, esperamos também propor uma alternativa de fundamentação filosófica para a
metodologia schaefferiana de circunscrever o objeto sonoro através da redução husseerliana.
Acreditamos que a fenomenologia pontyana pode ser muito mais interessante para a
composição musical contemporânea, uma vez que fundamenta a explicação sobre a percepção
em bases alternativas ao dualismo cartesiano.
Dessa forma, ao abordar a tipo-morfologia de Schaeffer e sua estruturação final no
quadro de solfejo dos objetos musicais, podemos pensar que todo o seu conjunto de
categorizações pode ser entendido como uma possibilidade de escuta entre muitas possíveis.
Como afirmamos, tais categorizações podem ser a descrição das distinções que afirmamos
acima, porém em uma história de acoplamentos estruturais típicas de um compositor acusmático
que passou pelo treinamento (aquisição de hábitos) de perceber segundo os critérios tipomorfológicos de Schaeffer. O mais importante dessa abordagem é que a tipo-morfologia passa a
ser não um fundamento essencial da percepção, mas sim uma possível descrição de um tipo de
escuta de um indivíduo que possui essa história de acoplamentos com o meio. Em Toffolo 2004,
sugerimos uma re-adequação do quadro do solfejo dos objetos musicais que visava uma
simplificação das inúmeras categorias. Tal simplificação foi no sentido de limpar alguns
conceitos presentes no quadro que apresentavam grande dubiedade e tal dubiedade é decorrente
dos problemas aqui apresentados. Ao reorganizar os conceitos chaves da teoria de Schaeffer
chegamos à um quadro mais funcional e enxuto da tipo-morfologia que se apresentou como
uma ferramenta interessante tanto para a composição como para a análise do repertório
acusmático e de Paisagens Sonoras.
Com o apresentado neste trabalho acreditamos contribuir para uma renovação da teoria
de Schaeffer tornando-a atual e condizente com as bases fenomenológicas modernas, o que só
reforça a importância e a grandeza do Traité e o seu caráter de indispensável para o estudo da
percepção e da composição musical contemporânea.
TOFFOLO, R. B. G.; OLIVEIRA, A. L. G. Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologiade Pierre Schaeffer.
In:Anais do Simpósio de Pesquisa em Música. Curitiba: UFPR, 2005. p. 131–145.
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