Aqui - Luís Valente Rosa

Transcrição

Aqui - Luís Valente Rosa
Editor: DG edições
Av. D. Pedro V, 15 - 5.º Esq.º
2795-151 Linda-a-Velha
Composição e maquetagem: DG edições
Capa: Carlos Mateus
Fotografia da capa: Maria João Valente Rosa
Impressão e acabamento: Digital XXI
ISBN: 978-989-8135-47-6
Depósito Legal: 310503/10
Primeira edição: Maio de 2010
© 2010, Luís Valente Rosa e DG edições.
Reservados todos os direitos, de acordo com a legislação em vigor.
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Luís Valente Rosa
A prisão da liberdade
romance
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Em memória do meu avô Filipe
Em memória do meu pai
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Abertura
Talvez a melhor solução seja escrever um romance. Um
romance broástico.
Estes dois anos que passaram mudaram profundamente
a minha perspectiva das coisas. E o que foi inicialmente
insignificante, como o local, ou mesmo as gentes que
o habitaram, é hoje elemento essencial da minha
melancolia.
Perante tudo o que se passou, só encontro a palavra
fantástico para o descrever. Palavra curiosa, cheia de
significados diversos, com uma etimologia lá para os
lados da imaginação. Fantástico de fantasia e de irreal. E
portanto de inacreditável. Mas fantástico também no sentido
de prodígio, de constatação de uma realização acima do
esperado. Consequentemente, originário de uma causa
bem real.
Ora, tudo o que testemunhámos – e combinámos um pacto
de silêncio sobre certos pormenores relativos ao que se
passou – tem essa dupla dimensão: vimos como o irreal,
o impossível, o sobrenatural, não fazem qualquer sentido
como conceitos exteriores à realidade. O irreal é o homem
que o constrói. Pertence ao outro sonho do homem, ao
outro mundo que ele ousou construir dentro de si. Porque
no Universo não há limites, não há impossíveis. Não existe
a fantasia, no Universo. Existe o fantástico. Por isso se
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falava, a propósito do Bergier e seguidores, do “realismo
fantástico”. Mas nunca tinha pensado sobre o verdadeiro
alcance da palavra. Sobretudo associada ao realismo. Os
homens vivem fechados numa concha de ignorância, com
os olhos totalmente tapados, mas, acima de tudo, numa
concha de uma total falta de imaginação. Tudo o que está
para além dessa pequenez é projectado na fantasia. Os
homens evitam a confrontação com a existência de tudo o
que os excede.
Existiam mundos por descobrir – soubemo-lo perante o
susto de uma visita inverosímil, mesmo para mim – e, de
certo modo, fomos os eleitos. Os iniciados. A luz apareceu e
deixou-nos lívidos de espanto. Confronto de humanidades,
ou talvez não tanto, fomos timoneiros de um barco perdido
em busca de um novo horizonte longínquo.
– Longe… onde?
Quando Daniela, a bela Daniela, respondia
– Não sei
Os barcos levam as pessoas para longe.
O assombro da distância, Gonçalo temia-o, nas suas vozes
proféticas e assombradas. Pensava na segurança perdida
da sua infância e no que esse assombro representava de
abismo sobre o nada, o vazio, a ausência.
Melancolia também do mar, sobretudo quando há noites
de luar, que sempre me inunda os olhos quando os fecho
por alturas da solidão e dos momentos em que não sei o
que fazer, ou não sei, apesar de todo esse fantástico que
se produziu, se, do ponto de vista científico, não perdi,
desbaratei, dois anos da minha vida. E tanto que esses anos
eram supostos ser os mais importantes de todos. Era o meu
castelo filosófico que tinha de nascer. E eu tinha que escrever
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o livro final – ainda hoje tenho, embora cada vez me falte
mais a convicção –, o livro decisivo, o livro absoluto.
E o mais incrível é o facto de ter hoje material – mesmo
respeitando o pacto de silêncio – para escrever um livro
científico lapidar, que viraria o mundo do avesso. Um livro
que serviria de luz guiadora dos homens, que atingiria o
cerne da sua felicidade futura por via de uma sociedade
nova, verdadeiramente justa e em liberdade. Mas as grandes
questões só são verdadeiramente importantes enquanto
não conhecemos as respostas. Depois, passamos para um
segundo nível do entendimento sobre o que nos rodeia, um
nível mais além, e as premissas do passado desaparecem
subitamente, dando lugar a algo totalmente novo. Ou seja,
queremos muito saber a resposta a determinada pergunta,
mas, quando a conhecemos, percebemos que a pergunta
verdadeiramente interessante vem sempre a seguir. Não é
bem isso, não me explico bem. É uma questão de hierarquia
na importância de certos valores. Prezamos o conhecimento
como instrumento máximo da nossa “salvação” e, quando
o adquirimos – atingindo esse estado que normalmente
designamos por sabedoria –, compreendemos que, afinal,
esse não era o valor essencial, o valor final.
Como eu lembro aquela noite em que o mar se iluminou,
como uma cidade em bulício. O intenso luar nele espelhado
mal se distinguia, perante aquela luz forte e amarelada
que dele saía. Eram doces, os momentos intermináveis de
espera. Manuel tocava, ou dizia
– As mulheres nuas.
E era enquanto os seus olhos se lhe turvavam de amor, e os
meus se me varriam de claridade, que eu pensava em como
era tão forte essa imagem de o homem inserir toda a sua
grandeza, toda a sua vida, numa fresta da realidade onde
nada existia, num momento de rarefacção da existência,
como Jean e Hélène, numa fracção existencial como se
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o mundo parasse, todos ficassem suspensos do tempo,
imóveis, e só eles os dois vivessem, para dizer duas palavras
de amor.
A luz do mar voltava para nós, com todo o seu esplendor, para
nos confundir. Luz impossível, como que acompanhando,
em desamparo, o milagre da música do Manuel. O mar todo
iluminado à superfície, uma luz que vinha do fundo para
sentir uma harmonia de vida que emergia por entre as notas
dissonantes que habitavam aquela música tão bela.
Momentos intermináveis de espera. Os olhos quase a fechar
e eu a impedi-lo por todos os meios ao meu alcance. E os
outros, é verdade, a ajudar. Se não fossem eles, não teria
conseguido alterar os ritmos ao ponto de viver de noite,
atento, e descansar durante o dia. Foi sorte, também. De
facto, vivemos a vida sempre à nossa maneira. Às vezes penso
que nunca, como aqui, houve gente a viver tão à margem
da pressão de um qualquer controlo superior. Até os povos
que vivem isolados, longe da civilização, têm os seus hábitos
e normas a vigiá-los. Mais os chefes, por mais pequena que
seja a comunidade. Aqui, nunca houve nada disso.
Prisão abandonada, esquecida, no meio do mar, quatro
homens sozinhos perante os mensageiros do Universo.
Apenas acompanhados por uma luz que costumava vir do
fundo do mar, à noite – luz amarelada forte –, vinham ouvir
o Manuel tocar. Prisão solitária, quatro homens sozinhos
como se vivessem num mundo à parte. E vivemos. Fizemos
sempre o que nos apeteceu, nunca fomos aborrecidos.
Também é verdade que vim com um estatuto muito especial.
Provavelmente, os outros dois foram cá deixados só para me
acompanhar. Para não falar do guarda, Gonçalo, certamente
escolhido por esse determinismo misterioso, embora
inevitável, que marca os acontecimentos do futuro.
Mas falava do mar. E é engraçado como a minha visão
mudou. Antes, a minha abordagem era totalmente racional,
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científica ou filosófica, como se quiser. Hoje é puramente
emocional. Uma visão de beleza. Tenho ideia de que não
passou um dia em que não assistíssemos ao nascer e ao
pôr-do-sol no mar. A torre está tão isolada do resto da
prisão, e do resto da ilha, que conseguíamos ver o nascer
de um lado e o ocaso do outro. E era só depois do nascer
do sol que nos deitávamos, lá para as dez da manhã, depois
da última refeição. Mas era bom ver o azul do mar antes
de deitar. Ver o inesperado das suas cores, ora verde, ora
azul, ora cinzento, ora prata – de manhã era seguramente a
altura mais azul –, às vezes mesmo sem cor. E as pequenas
ondas, que até se viam de noite, quando o reflexo da
Lua se juntava à nossa vigília nocturna, ou quando a luz
proveniente das galáxias longínquas irrompia à superfície
e alastrava em redor.
Quando cheguei, o mar era, por assim dizer, o foco de todas
as minhas atenções. Consegui trazer um equipamento
bastante sofisticado que instalei na torre do farol, lá mesmo
em cima, equipamento de luz, de som, antenas de captação
parabólica, monitores de radar, rádios e coisas assim. Mas,
com o evoluir dos meses, acabei por passar quase o tempo
todo no andar cá em baixo, com os outros, usufruindo do
mar numa perspectiva de prazer. Mas não perdi nada com
isso. Pelo contrário, passei aqui as melhores e mesmo mais
divertidas noites da minha vida. Coisa que obviamente nunca
esperei, pois escolhi este local com intenções de estudioso
e perspectivas de eremita. Mas quem é que poderia alguma
vez ser eremita com aquele Manuel maluco por perto? Como
são relativas as verdades do mundo.
Foi o Manuel que me ensinou o pleno sentido da palavra
liberdade. Não tinha grande capacidade para falar, mas tinha
a sua música. A sua emoção total. E com ela construía um
mundo, de cada vez que tocava. E o mar abria-se de luz para
o ouvir. Não tinha grande capacidade de ser ele através da
linguagem, mas falava das pessoas que perdem o seu tempo
a pensar, e decidir, o que é que os outros devem pensar.
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A pouco e pouco, fui-me convencendo de que eu era uma
dessas pessoas. Espécie de altruísmo egoísta, onde o que
está certo para os outros, o seu bem, depende daquilo que
nos dá prazer imaginar. O fim do princípio unificador estava à
espreita, iria entrar dentro de mim quando menos esperasse.
A revelação final, como um milagre, iria apagar em mim
todos os vestígios de um passado de reflexão profunda,
mas sem salvação. Pensamento menor, das profundezas,
ideologia de catacumbas, submersa pela superioridade
imensa, talvez infinita, de uma verdade nova e universal.
Talvez por isso, o que mais sinto hoje é um certo
desenraizamento da vida, a vaga sensação de já tudo ter
sido atingido, como se a morte pudesse enfim chegar.
Uma espécie de estado de plenitude que não pode ser
ultrapassado, a não ser pela comoção das recordações de
infância – como dizem que é o prenúncio da morte –, quando
o tio Saúl me levava pelo campo, ou pelas ruas da cidade,
falando do sonho desse mundo de perfeição e de felicidade
que eu passei a vida a procurar. Emoções antigas, evocação
das férias de Verão, como se um palco com múltiplas
personagens que irradiavam de excitação, e ternura, a
abertura quase explosiva, embora tão passageira, da minha
solidão. Recordação dos mortos, constatação violenta do
efémero que foi a minha importância para eles
– O meu rapaz!
tudo tão forte e tão sem sentido perante a evidente
aproximação do fim.
Locais do passado, gentes do passado, misturavam-seme com um futuro ainda todo por acontecer. A minha
pobre ideia de criar uma marca para sempre. Uma obra. A
filosofia que marcaria o século XXI. Uma obra decisiva para
a Humanidade. E uma Humanidade feliz, como imaginava o
tio Saúl, que lutava pela verdade da vida e pela liberdade
dos homens. E pela justiça. E pela protecção dos mais
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fracos. Que registos ficarão para memória futura desses
momentos que foram tão importantes para nós? Toda uma
vida que se sumiu, ou que se sumirá com a minha morte.
A História só lembrará os grandes homens, e seguramente
nem todos. Mas como se define um grande homem? São
só aqueles que tiveram grandes tarefas a desempenhar
na sociedade? Os que deixaram grandes feitos? Não! Não
foram necessariamente esses os grandes homens. O tio
Saúl foi-o, e ninguém o recordará daqui a cem anos. E, por
isso, tanto que eu queria escrever aquele livro, a tal obra.
Deixar a minha marca, e o meu nome em seu nome, para
sempre.
Agora já não sei se sou capaz. Terei talvez orientado o meu
projecto num sentido desajustado. E, daí, a ideia de poder
ter desbaratado dois anos da minha vida. O tio Saúl falava
em verdade e liberdade. Eu pensei perfeição. E só agora
percebo o fosso enorme que há entre essas duas visões.
Também Rui e Gonçalo falavam de perfeição. Também eles
imaginavam um mundo de perfeição para os homens. Um
fio condutor, uma teoria unificadora. Rui tinha uma visão
para o futuro – embora também já acabasse por ser uma
visão ultrapassada –, Gonçalo estava amarrado ao passado,
mas a ideia de ambos sobre a existência de um princípio
unificador era a mesma.
Gonçalo dizia:
– Livremo-nos do abismo do vazio.
Mostrava-se, por vezes, como um personagem misterioso,
tão longe da sua missão de guardião. Tinha uma enorme
ferida dentro de si. E as suas falas mostravam o seu
desamparo perante o mundo exterior, a sua fragilidade.
Eram falas pessimistas, que revelavam o próprio abismo
do seu eu:
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– Temam a confrontação súbita com a ausência.
Ficávamos à espera do resto da frase, mas ele não existia.
Gonçalo falava do nada, da ameaça da rarefacção.
Só Manuel não tinha amarras. Vivia no vazio de quaisquer
unificações exteriores, vivia numa loucura – o tio Saúl dizia
sempre a palavra doido, palavra tão bela – que assentava
totalmente nessas suas duas palavras mágicas: verdade e
liberdade.
O tio Saúl. Foi numa noite terrível que ele me falou para a
posteridade com o seu olhar perdido na lonjura das estrelas:
“Mergulha em ti, e encontrarás o segredo do mar”. O meu
tio. Solene. Que este era o maior segredo do Universo.
Revelação do velho padre, à hora da morte. Viviam em
ditadura, eu não podia adivinhar logo. E o tio Saúl guardou
a revelação para tarde de mais. Mas foi com a maior das
ternuras do mundo que este mistério me acompanhou
ao longo da vida. Provavelmente, esse tempo de procura
terá sido a razão que transformou a minha descoberta em
revelação. Eles não podiam dizer logo, havia a censura de
tudo o que era dito
– “No meu país há uma palavra proibida”
e o “segredo do mar” era a única frase que a sua liberdade
lhes permitia. Verdade e liberdade. As palavras mágicas,
como as que viviam dentro de Manuel.
No entanto, ao mesmo tempo, tão importante que é para
mim cumprir o projecto. Finalizá-lo. Não deixar que se
destrua a minha luta de tantos anos. A minha obra. Prometia ao meu passado. Aos meus mortos. Escrever o livro do
século XXI. Um livro que pense a sociedade e o homem do
futuro. Como O Capital terá sido o livro do século XX. Marx
foi o homem que mais condicionou os homens do último
século. As pessoas foram marxistas ou anti-marxistas.
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Ele dividiu o mundo. Foi decisivo. E eu também quero ser
decisivo. Mas quero unir os homens. A minha filosofia será
unificadora. Ele inventou a filosofia mais entusiasmante
e mais mobilizadora para a sociedade, mas essa filosofia
falhou. E é absolutamente necessário substituí-la. Os
homens precisam de uma esperança, de um rumo. De uma
luz. E eu tenho essa luz em mim. Nesse sentido, os meus
dois anos de cativeiro cumpriram totalmente o seu papel.
O que significa que eu poderia, de facto, deixar a minha
marca para a posteridade. Ser um grande homem. E vingar
a ausência futura dos meus mortos, que não foi só o tio
Saúl que condicionou esta minha busca de uma orientação
científica e filosófica. A começar pelos professores dos
três cursos que tirei: Antropologia, Sociologia e Filosofia.
Faltou-me talvez a Matemática, tanto que nela pensei no
confronto com os do outro mundo, naquela noite, sob a luz
do farol. Porque o que falhou em Marx foi a ausência de
ciência. Inicialmente ele tentou. E depois outros, por ele,
mais tarde, quando lhe chamaram “socialismo científico”.
Mas não conseguiu, porque a ciência que tinha não era a
adequada. Precisava, antes, de uma ciência que tivesse
como objecto de estudo os homens, e não as moedas. Por
isso a sua mensagem se centrou na parte filosófica. Mas eu
falaria, neste meu livro – que é a essência da minha vida ao
longo destes últimos vinte anos –, de uma filosofia misturada
com os ensinamentos da Sociologia e, sobretudo, com os da
Antropologia, que são as ciências que estudam os homens.
E esqueceria a Economia de vez. Por outras palavras, apesar
da presença constante da Filosofia, a minha obra tem que
ser de índole científica, e não o contrário, com a ciência em
regime de apêndice. Marx pensou a sociedade ideal através
da Economia – a sociedade sem classes. Ou seja, uma
Economia misturada com alguma Sociologia. Mas esqueceu
a Antropologia. Não há certamente universidade no mundo
civilizado onde não se ensine Marx nas licenciaturas em
Sociologia, como não haverá universidade onde ele se
estude no âmbito da Antropologia.
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Mas, se calhar, toda esta reflexão se perde no não-mundo,
e o que eu devia mesmo fazer era escrever um romance,
porque a arte apela para o tal vazio de que falava há pouco,
e para a liberdade infinita que dele nasce, enquanto as
ciências apelam para a ideia de perfeição sobre a qual tanto
me interrogo.
Manuel representou, um dia, com tamanha grandeza, que
Rui abriu muito os olhos como se visitado pelo além de um
irreal insuportável. E quando Manuel finalizou
– O caminho
a infância
O caminho da infância, por onde é?
Rui chorou. Também ele – acabou por contar – tinha um
segredo terrível de amor. Protegido pelas incompreensíveis
telas de arte abstracta, a arte dos fúteis, esse amor seria o
seu refúgio final.
Rui mostrou assim a sua humanidade escondida, como os
outros que nos olhavam, quase de lágrima visível, perante
o assombro da sua identidade perdida.
Arte, música, loucura que irrompe do vazio dos constrangimentos, como as falas do Manuel maluco
– A lua hoje está broástica, parece tanto que já é
de manhã que apetece-me impanzinasticar uma
comezaina
que eu recordo vezes sem fim neste meu derradeiro
momento solitário, na nossa prisão onde ainda me encontro
– Manuel partiu, Rui partiu –, sem vontade de viver o futuro,
assim como recordo as minhas alegrias de miúdo, quando
também não havia qualquer vivência de mundos científicos
à minha volta, apenas uma antropologia de homens
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com pouca instrução mas com muito amor pelos outros
homens. E antropologia de artistas que compreenderam,
ao longo da história, a verdadeira dimensão do sentir da
Humanidade. Alegria – talvez felicidade –, gostos simples,
projectos simples, como limpar as “adriças” para no dia
seguinte ir ao lingueirão na ria, ou comprar verdemãs para
ir a uma pescaria de achigãs na barragem. Vidas simples,
em harmonia com a Natureza – vidas naturásticas, dizia
o Manuel –, que é o mesmo do que falar da origem dos
homens, a inocência irradiante das pequenas coisas, tão
longínquas já de todas as filosofias e de todas as ciências.
Os passeios no campo, tantas vezes à procura das perdizes,
o cheiro inebriante da terra, sobretudo depois de uma
chuvada, no limite do cansaço e do suor.
À hora da morte, agarrando-me as mãos com toda a força
que tinha, o tio Saúl, contou-me a ida do velho padre a uma
missa em Harlem. Contou-mo com a tremura da morte.
Os coros do gospel, música do amor. O tio Saúl tinha a
certeza de que eu iria encontrar. Uma palavra que salvaria
a Humanidade. O padre tinha descoberto uma verdade
grandiosa junto dos homens verdadeiros, os que tinham
descoberto a religião verdadeira, ou foi ele que não quis
dizer tudo e descobriu-a nuns livros muito antigos, ou nas
aldeias dos mais pobres que passava a vida a visitar. Palavra
proibida, frase tão bela, revelação final no meu caminho de
procura e interrogação.
E, na igreja de Harlem, num dia perdido na lonjura do
tempo, o velho padre e o seu sobrinho presenciaram o
milagre final. Os assistentes viraram costas aos seus deuses
e anjos, e vieram, pelo corredor central, viraram costas ao
sagrado dos altares, e vieram direitos ao afago quente dos
desconhecidos, e abraçaram essas pessoas estranhas que
tinham a seu lado, abraçaram-nas com toda a ternura que
encontraram nas suas almas, abraçaram um velho homem
e uma criança que não conheciam
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– Obrigado por terem vindo
os olhos, afogados num mar de rugas negras, transbordavam
de uma visão líquida de comoção, ou de amor
– Estamos tão felizes por terem estado connosco
o padre não conseguia mais conter o embate violento com
a descoberta da verdadeira religiosidade daquelas gentes.
Depois, as outras pessoas, todas elas em cortejo, vieram
também – o miúdo, estarrecido, não se mexia – e o velho
padre não aguentou, os olhos cheios de água, agarrou-se
aos homens e às mulheres, e abraçou-os, e beijou-os, e
agarrou-lhes também as mãos, não conseguindo conter as
lágrimas que lhe caíam, soluçando perante tão sublime lição
de amor. Largou o sobrinho e deixou-se levar pela ternura
daqueles momentos tão belos – eles vinham do fundo da
igreja com os suas roupas aprumadas de domingo, os miúdos
de gravata e as pequenas de grandes fitas de seda a apanhar
os cabelos escuros
– Prazer em tê-los aqui.
O meu problema maior é ter talvez descoberto uma verdade
dramática: a hipótese de a ausência de um princípio
unificador do mundo poder não ser substituída por um
novo princípio unificador. Segundo esta hipótese, o fim
desse princípio unificador não seria o fim dos valores, e o
fim do humanismo, mas o início de uma nova maneira de
os homens se posicionarem na sociedade. O início de uma
cultura nova baseada precisamente no vazio provocado
pelo abandono, ou pela recusa, do antigo sistema integrado
de valores. É num momento em que o homem conseguiu,
com tanta dificuldade, libertar-se da opressão cultural
destes últimos dois mil anos que eu me vou pôr a criar uma
nova visão filosófica unificadora? Sou assim tão parecido
com o Rui? Ou com o Gonçalo? Ainda por cima partindo
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para essa criação com parte do material importado de
um outro mundo, apesar de ter acabado por concluir que
não era bem assim? Os homens do futuro precisarão de
mim? Ou precisarão antes de si próprios? De usar o pleno
das capacidades que existem em si próprios, agora que
começam a ser verdadeiramente livres?
Os filósofos que falaram do vazio dos valores, resultante do
esboroar do princípio unificador, deviam ter, antes, pensado
na vitória progressiva da liberdade a que esse estado de
coisas conduzia. Era do vazio da antiga ordem que iria
nascer uma ordem nova. Como, após os grandes incêndios
das savanas de África, nasce o verde da regeneração. A
ausência dos valores antigos era a condição necessária para
o início de uma nova maneira de o homem se posicionar no
mundo.
Não sei. Talvez esteja mais próximo do Manuel, que conhece
esse vazio há tanto tempo. O vazio e a liberdade mais
autêntica. Se calhar, a minha doutrina poderá, tal como
aconteceu com o Marx, vir a suscitar a paixão cega que
conduz à violência e à morte. Doutrinas de sangue.
Manuel olhou para mim um dia, e ficou parado, à espera.
Depois disse:
– Então, não queres vir comigo? Vou mostrar-te o meu
segredo.
Sim, Manuel, mas não vês que o sangue das doutrinas é
um sangue diferente daquele a que me refiro quando falo a
propósito da arte? Na arte, o sangue é de comunhão, porque
vem das vísceras do sentir. Vem da pertença comum, do
mais profundo que há em nós. Arte dos homens, fascínio
supremo daqueles não-homens que já tudo experimentaram,
já quase tudo sabem, e se permitem andar a visitar os
outros mundos. Têm tudo arrumado, estão no zénite do
conhecimento, da organização e do desenvolvimento. Mas
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falta-lhes o poder maior de todos, que é o de procurar algo
mais, o de encontrar uma vivência que transcenda a própria
vida, o poder da transfiguração. E nós temos esse poder.
Porque não fazer dele a essência do nosso devir?
Manuel estendeu a mão, como que para eu parar de falar,
e mergulhou. Desapareceu durante uns segundos, mais de
um minuto, talvez, e eu pensei para mim
– Foi buscar o segredo ao fundo do mar. Tem algo
escondido no fundo do mar.
E eu voltei a recordar
– Mergulha em ti, e encontrarás o segredo do mar.
Porquê a necessidade de uma ideologia política, ou, no
limite, da própria filosofia inovadora que procuro? Que
restará da actividade humana daqui a 10 séculos? Que
interessará, nessa altura, se o homem aguentou mais cem
ou duzentos anos? O que restará, para memória galáctica,
não pode ser outra coisa senão a arte. A música. O máximo
do homem.
Um dia, li que os astronautas da N. A. S. A. tinham deixado
vários objectos na Lua, para o caso de um dia lá passarem
seres vindos de um qualquer planeta longínquo. Para
darmos a conhecer os seres humanos. Havia gravações de
vozes em diferentes línguas, imagens de monumentos das
diversas regiões do mundo, imagens de seres humanos com
diferentes roupagens, exemplos de obras de arte, e por aí
fora. De entre isso tudo, lembro-me da presença de um
disco com uma gravação do 1.º prelúdio de Bach, tocado
pelo Glenn Gould.
Ainda hoje me comovo só de pensar nisso. Talvez uma das
obras mais fáceis de Bach. A primeira obra que eu, e muitos
alunos como eu, aprendemos a tocar em piano. Uma peça
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que Bach escreveu para ensinar, a começar pelos seus filhos
pequenos. E que nunca publicou, face à sua simplicidade.
Foi depois que Anna Magdalena o editou no livro com o
seu nome. No entanto, que beleza sublime, imortalizada
pelo enorme Gould. A reincarnação de Bach em forma de
intérprete. Às vezes, imagino um Bach ressuscitado – como
reagiria ele a essa revelação? E imagino também a reacção
de quaisquer visitantes longínquos perante o assombro de
uma tal manifestação da grandeza humana. Bach. O meu
Bach. O meu prelúdio tão simples.
Haverá um dia um museu algures no Universo – talvez no
centro, que é o local do nosso merecimento – onde para
sempre ficarão patentes as capacidades do génio humano.
E, aí, não caberão as ideologias, nem tão pouco as filosofias
unificadoras. Ninguém quererá saber quem foi Marx. Nem
quem foi o habilidoso que encontrou a filosofia que se
seguiu, seja do século vinte e um ou vinte e dois. Nem se
havia ditadura ou democracia, pois esses conceitos não se
inscrevem na memória que deixaremos para o futuro.
Talvez Manuel, se lhe derem a imortalidade, possa lá estar
para assistir. Ou seja mesmo ele o criador desse museu que
imagino. Só ele pôde partir, pois só ele estava despido.
Um dia sonhei que ela entrava pelo teatro dentro e me
pedia que voltasse. Tenho que contar a noite em que
sonhei o impossível de mim. Amália e um filho pela mão.
O seu vestido era longo e branco, que é a cor das grandes
revelações. Se calhar vinha de noiva, cansada de procurar
um futuro longe do meu. A dada altura, perante o meu
tremor profundo
– Vem vindo
dizia ela baixinho, com a cabeça levemente tombada, numa
aproximação de carinho. Amália estava bela no seu vestido
branco. Dizia coisas incompreensíveis, a cabeça levemente
tombada – tanto que eu tentei esconder a minha comoção
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– Joãozinho aprendeu a escrever o teu nome
Não sei se devia.
Amália vinha do infinito, ou da eternidade, para me dizer
que voltasse. Lancei um grito horrível
– Amália!
Um dia partiu, ia à procura do seu próprio futuro. Um futuro
que tinha que ser construído sem mim. Um corpo de brutal
beleza que saía do mar. E eu aterrado perante a minha
pequenez. Um dia foi-se embora
– Não amarei mais ninguém.
Assim. E eu parado. Sem entender.
Vão dar-te a imortalidade, Manuel? Tão tarde que
entendemos o sentido da sua obsessão com a nudez. Ou tão
tarde percebi que podia ter encontrado nele a solução para o
que procurava. Que também vivia nele a palavra mágica que
iria ser a descoberta final de toda a minha reflexão. Palavra
de uma vida. A mesma que residia no segredo do tio Saúl
e no mistério do mar. Despido do passado, da História, do
jugo das tradições, Manuel vivia por dentro da nudez que
tanto ambicionava, reduzido ao essencial – iria eu descobrir
mais tarde que o termo não era bem esse. Será que Manuel
cumpriu o seu sonho, lá no infinito onde se encontra?
Continuas a tocar para eles e a ofuscar o brilho das
estrelas?
A dada altura, eu iria procurar a minha nudez, também.
Através de um conceito de essência que iria ser, de facto,
a primeira pedra na edificação do meu castelo filosófico.
Essência no sentido de fuga ao materialismo e à sedução
da futilidade. O novo princípio unificador. Criado por mim.
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Filosofia zen, talvez, no sentido de uma procura de um
mais espiritual, associada ao desejo de um menos material.
Minimalismo, portanto. Despirmo-nos do supérfluo e do
mundano. Como quem se despe de roupa.
Mas o que é impressionante – e façamos aqui um parêntesis
para ir mais longe – é que nunca percebi o quanto a obsessão
da nudez estava adiantada em relação à minha filosofia.
Sempre pensei na mania da nudez do Manuel como algo de
curioso, assim como se se dissesse: olha que engraçado até
que ponto tal pode ilustrar a minha teoria. Assim como algo
de superficial que pode dar algum realce ao que é profundo.
Sem perceber que a verdadeira profundidade estava do outro
lado. Ou seja, eu associava a roupa a um certo supérfluo,
como disse, e via a nudez como a redução à essência. Mas
pensava numa essência no sentido de mínimo, quando essa
visão era altamente redutora. De facto, Manuel, ao defender
a nudez, tinha a visão de uma outra dimensão da palavra
essência: o que é verdadeiro. O que é autêntico. Porque o
que está a mais não é só desnecessário. É um véu, uma
máscara. A sua mulher nua, que tanto o fascinava, não
era só uma mulher livre do peso do desnecessário, das
convenções ditadas pela imposição exterior, era também,
ou sobretudo, a visão do seu ser mais autêntico. Tinha tudo
à mostra, não tinha nada a esconder. Tudo o que nela se
via era a verdade do seu ser. Por isso sempre associei, de
certa forma, o Manuel e o tio Saúl. Como penso já ter dito
– se não o disse, di-lo-ei mais à frente –, ambos tinham
duas ideias a orientá-los: verdade e liberdade. Assim, a
nudez deveria ser vista nesta dupla perspectiva. A liberdade
era talvez a ideia mais aparente, a que surgia com mais
rapidez. Em contrapartida, a verdade, menos perceptível,
era provavelmente a mais determinante.
E o que se passava com a nudez devia ter sido imediatamente
transponível para a noção de essência, pois ela também
tinha que ser enquadrada pela ampla busca da verdade. A
redução do materialismo tinha que ser acompanhada por
23
uma redução da mentira que o acompanha, as convenções
exteriores não podendo só ser vistas como fardos, mas como
máscaras também.
Como a mentira que assustou Manuel quando me questionou
sobre o processo artístico. Quis que eu lhe explicasse o que
era a arte, o que era o romance, e eu não conseguia arrancá-lo
à realidade. Ele brincava com uma mosca, com medo de
perder a ligação com o seu mundo concreto, enquanto eu o
arrastava a todo o custo na direcção do etéreo e do irreal.
Ele agarrava-se à mosca, e perguntava, desalentado
– É tudo mentira, no romance?
E eu lá lhe explicava que não era bem mentira, mas também
não era bem o que se passava na realidade. Porque não
era a descrição de algo de concreto, mas antes o que o
eventual concreto permitia em nós de lição para a vida.
De transponível para os outros – por via da abstracção
entretanto criada – e para sempre. Como se fosse uma
transposição para a imortalidade.
Não lhe expliquei, não sei se o entenderia, a visão do Malraux
sobre as grandes fases da pintura: “o irreal” e, mais tarde,
“o intemporal”. O essencial da arte tinha a ver com esse
desenraizamento da realidade e a posterior projecção na
intemporalidade. A arte é a tentativa de imortalização da
nossa vivência como homens. O artista é como o homem
que perdurou para lá do tempo. E, por isso, tem que fugir
ao concreto da conjuntura.
Mas a minha preocupação com a busca da verdade não
pairava no mundo da arte, o que fez agarrar-me à tal
filosofia zen na procura de um mais espiritual, procura que
me empurrou progressivamente para o conceito de saber.
A Antropologia também ajudou. Com a memória dos povos
primitivos, onde opera uma diferenciação baseada no
conhecimento (ou melhor, numa progressão – agora está na
24
moda dizer coisas destas – conhecimento-saber-sabedoria),
com os conselhos de sábios a possuírem o poder por via
do respeito dos outros e não por via da submissão. Isto
porque, e embora não queira falar de partidos políticos,
o voto democrático também implica uma submissão: à
maioria. Ou seja, é necessária uma legitimação, o que só
acontece (ensina-nos a Antropologia) quando há déficit de
legitimidade. Os tais sábios tinham o poder por respeito
natural: uma legitimidade indiscutível e baseada nas suas
maiores capacidades espirituais.
Era incrível quanto o saber se adaptava ao complexo plano
cartesiano do meu amparo. Quase tive pena quando, mais
tarde, percebi que era necessário ir mais longe. Era a
lógica do princípio unificador que estava a mais, fosse ele
qual fosse. E o saber não era mais do que uma variante,
porventura mais inteligente, desse mesmo princípio. Também
os outros, quando chegaram, indefesos, vinham à procura
de uma mesma solução. Mundo limitado pelo pensar, sem
a alma arrebatadora da criatividade humana – devia ter
reflectido sobre a ausência de frustração do Manuel quando
Rui lhe chamava “ignorástico”. A sabedoria, de certa forma,
envolve uma prisão. Uma prisão cognitiva. Que não permite
expressão plena da alma humana. E Manuel sabia-o, ou
sentia-o. Manuel vivia bem com o seu eu.
Querido Manuel, tinhas todas as soluções dentro de ti. Eras
tu, o doido, o suposto descontrolado, que tinhas em ti a
verdade original. Maluco. Agarrou-me com muita força,
naquele dia, para eu sentir que se tratava de algo muito
grave, e, abrindo muito os olhos, disse:
– Um romance broástico.
Manuel tinha sentido o apelo irreprimível da arte. Tinha
percebido o quanto a passagem para o outro mundo se faz
num sofrimento de plenitude. Sobretudo, tinha encontrado
a “Porta”. A porta da outra dimensão. Uma dimensão para
além desta. A transfiguração.
25
Como um professor meu, que falava, há muitos anos, do
grande matemático Cantor, um homem que, no século
XIX, descobrira os números maiores do que o infinito. E
os alunos não entendiam como era isso possível. E ele
levava-os à janela e pedia-lhes para olhar o infinito. E eles
transpunham a prisão da sala de aula, com os olhos postos
na liberdade que lhes trazia o limite do horizonte. E o
professor perguntava
– É aí que está o infinito? Porque é que vós não olhastes
para o céu? Porque olhastes para o chão?
Um dia, um aluno mais esperto olhou para o céu, e
para o chão, e explicou que o infinito era isso tudo, era
tridimensional. O velho professor sorriu e acenou que sim
com a cabeça
– Olhaste bem, pensaste bem. O infinito é isso.
E o aluno, rápido
– Onde está então o que excede o infinito?
Havia um número ilimitado de dimensões, nós só vemos
três, só concebemos três. Mas há muitas mais, a análise
matemática pode mostrá-lo, a Estatística mostra-o todos
os dias. E os nossos amigos do outro mundo deram-nos
depois grandes explicações sobre esse assunto. Há aquilo
que não vemos. Há aquilo que não concebemos, há uma
irrealidade que excede a realidade. Uma vivência que não
é daqui. O aluno, se calhar, não o poderia entender. Como
não entenderia nunca o amor antes de o viver.
Mundo da transfiguração, Manuel vivia-o. Sem ter consciência
disso. Sem o racionalizar, atitude que, embora involuntária,
era a mais inteligente possível. Ele queria ser um artista e
viver num mundo que está fora deste, para além deste. A
perfeição da arte. Emoção essencial. Como o saber o era
26
no domínio do pensar, do cognitivo. Quem sabe se não é
a mesma procura da essência, mas numa outra dimensão,
uma dimensão muito mais longínqua: a do sentir. Longínqua
como os números que são maiores do que o infinito. Uma
dimensão para lá do nosso entendimento.
Quando fui defender Rui, o juiz achou-me uma pessoa acima
de qualquer suspeita, um cientista já com fama internacional.
Confirmei que Rui diria sempre a verdade.
– Jure por Deus
disse o juiz. Mas Rui nunca o faria
– Juro pela minha honra.
Era um Rui inabalável que iria, mais tarde, jurar pelo que
tinha de mais intenso em si: o seu amor.
Também Gonçalo testemunhou
– Juro pelo saudosismo da minha infância.
O juiz não entendia.
– Juro pela minha segurança perdida.
Gonçalo também jurou, andava de novo a vaguear no país
da ausência.
Gonçalo dizia coisas como
– O mistério da lonjura.
Era numa infância longínqua que ele buscava ainda um
pouco de protecção.
– Mundo da rarefacção sublime.
27
Manuel queria escrever um romance sobre a liberdade e
sobre a beleza. E, certamente, sobre o amor. Era esse amor
que lhe fazia doer o coração
– Aquilo quando dói aqui à esquerda…
Ele sentia, mas não conseguia explicar, o quanto a arte e
o amor nos fazem doer por dentro. Uma dor de libertação.
O desenraizamento. A tal transfiguração. Uma dor como
algo que nos rasga, nos arranca à vivência quotidiana e
nos projecta para o além-mundo, a outra vida. Como se o
corpo se tornasse subitamente imaterial. Sim, como uma
outra vida.
Foi assim que ele disse:
– Para eu poder escrever um romance de amor.
Escreveste o teu romance de amor, Manuel? Ensinaste
a arte aos teus novos companheiros? Conseguiram eles
perceber – tanto que eles queriam – o que é a liberdade
absoluta? O que é o milagre da criação e o maior dos actos
dos homens?
Era essa maior de todas as emoções que te fazia torcer todo,
agarrado ao piano, quando a tua música estava mais próxima
do fim. Procuravas, já muito perto, a tua melodia absoluta.
As notas sucediam-se – por vezes dissonantes e incómodas
como a vida imperfeita dos homens – em busca da harmonia
perfeita dos deuses. Os viajantes no limite da lágrima que
será, um dia, a revelação absoluta da sua humanidade.
Conseguiste esse milagre, Manuel? Fizeste chorar os seres
das galáxias por onde passaste? A beleza da música, e a
sensação de plenitude que nos enchia a todos, transformou
Manuel no maior dos homens que jamais existiu sobre a
face da Terra. Foi a mais bela das mulheres que o disse. A
ameaça de uma lágrima era, para os visitantes, a ameaça
da transformação brutal da sua condição de servos – eles
28
nunca choraram, ignoravam a comoção como ignoravam a
beleza das palavras – na aurora do contacto com um mundo
superior, o mundo da beleza suprema.
Música da minha perdição total, senti-me feliz por ser homem.
Os galácticos e as divindades nada tinham para me ensinar.
Manuel, com um simples instrumento, construía um mundo
total. Construía o mundo. O mundo da rarefacção. Manuel
tocava para além dos limites da nossa capacidade de sentir.
E os outros, tão habituados à transposição de dimensões,
não estavam programados para essa transfiguração.
Foi comovido que percebi que Manuel iria inundar as galáxias
do mais belo que elas jamais ouviram. Iria deixar nelas
o registo incomensurável da arte humana. Manuel, foste
ensinar às estrelas as tuas palavras broásticas, o mistério
da liberdade que vivia em ti? Desejei tanto que fosses
em paz. Queria tanto que fosses feliz. Foste à procura da
beleza absoluta da arte e do amor. Levaste o teu piano, e a
tua Maria que nos cegava com os seus seios nus, e ficaste
responsável por dar notícia, ao Universo, da mais bela das
histórias. Por lhes explicar que fomos nós que inventámos
o Absoluto. O outro mundo.
No entanto, não era só o Manuel que tinha as soluções
dentro de si. Era também eu. A verdade original. A verdade
adormecida em mim. Só no fim de tudo o percebi. Amália.
Partiste à procura do teu eu, do teu futuro
– Não amarei mais ninguém
e o meu futuro morreu. A verdade adormecida. A palavra
mágica só existia na minha memória. Ganhaste, talvez, o
futuro, eu fiquei com o passado. E com a palavra – apagada,
ou envolta na neblina da desilusão – dentro de mim. Foste
violenta, como o Manuel, que me agarrou com muita força,
naquele dia, para eu sentir mais ainda,
29
– Um romance broástico
como ainda as mãos tão fortes do tio Saúl, tentando revelar
o segredo que o padre havia descoberto.
Violência antiga da minha memória, a morte do tio Saúl.
Quando a luz das janelas inundou o quarto, com um raio
direccionado que caía, oblíquo, por cima da cama. E ele
agarrou-me as mãos com muita força para eu ouvir, ou
talvez sentir, a sua lição final
– ... o amor dos homens.
E eu infeliz, desamparado. Era o céu que se iluminava
repentinamente. A incidir forte sobre a cama. Pensei-o em
homenagem à chegada do mais corajoso e mais justo de
todos os homens. Um raio opaco, amarelo, como um túnel
por onde eu o deixava fugir. Ele lá ia, só, enfrentar o que
não sei. Eu ali fiquei. Em solidão absoluta. Se me chamasse,
estaria ali. Mas não chamou. Nunca mais.
Como tu, minha Amália, que foste tão violenta quando
partiste. Eu não estava à espera. A minha vida estava
organizada assim, não estava preparado. Pensei que era
um engano, um erro, uma maluquice, sei lá. E, também
nessa altura, fiquei à espera. Deve ser uma espécie de
característica minha, ou de destino meu. Ficar à espera.
Sonhar o impossível. Sim, também nessa altura, esperei
em vão. Mas nunca mais voltaste, a não ser naquele teatro,
naquele sonho em que vinhas de branco, com uma criança
pela mão.
Chego ao final da minha vida com a melancolia terna de
um homem que perdeu tudo, o seu herói, o seu amor,
a possibilidade de ser uma referência para as gerações
vindouras. Mas descobriu a palavra, cumpriu a missão que
lhe estava destinada. E, assim, a minha última tarefa é
revelá-la, usando da capacidade da transfiguração do meu
30
real triste, sombrio e desalentado, num irreal cheio de
confiança no futuro, que possa fazer com que os homens
do século XXI, os filhos que eu poderia ter tido, sonhem
projectos de alegria e de beleza. E sintam, sintam muito, a
plenitude redentora do amor.
Acho que sim, acho que vou usar o pouco tempo que me
resta para escrever um romance. Um romance parecido
com o que o Manuel queria tanto escrever.
Um romance broástico.
Um romance de amor.
31
32
I
Pontinhos e mais pontinhos. A caneta não escrevia e por isso
ele batia com ela no maço de folhas de papel, com energia,
enquanto ia protestando e dizendo coisas incompreensíveis.
E fazia milhares de pequenos pontos de tinta no papel, como
se fossem estrelas no céu. E também fazia riscos, quando
a caneta escrevia melhor, e nisto estava horas e horas
enquanto Rui, só para o irritar, dizia que era impossível ele
escrever qualquer coisa de jeito porque era analfabeto e
ninguém o tinha ensinado a escrever, ao que Manuel, não
se ralando um segundo, respondia que a mãe de Rui é que
era “ignorástica” e assim a conversa continuava, num litígio
que tinha tanto de constante como de quase carinhoso, com
Manuel a acabar por ameaçar despir-se, como não conseguia
deixar de fazer de cada vez que era libertado, era nas lojas,
nos centros comerciais, às vezes na rua, e assim não passava
um mês ou dois sem vir parar à prisão de novo, ele dizia
que era a sua casa, sempre a protestar a propósito da sua
falta de liberdade e de todos os que não o compreendiam,
mundo exterior onde as pessoas viviam amarradas – mundo
esse que ele sentia como a verdadeira prisão –, e a caneta
era para escrever uma carta ao Presidente a explicar a sua
ideia, que as pessoas deviam poder andar nuas em todo o
lado, pelo menos as mulheres – isto se o Presidente achasse
que os homens é que não podia mesmo ser –, mas a carta
não havia meio de arrancar, porcaria da caneta, eram só
pintinhas por todo o lado, mas ele não desistia, e falava
sozinho com muita convicção a respeito de as mulheres
33
nuas serem a coisa mais bonita que havia, ele tinha visto
muitas em revistas e uma até ao natural, era a sua paixão
de toda a vida, tinha-a visto nua, tinha sentido nas mãos
a beleza do seu corpo, mas ninguém acreditava nessa sua
história de amor, e era por isso que às vezes lhe caía uma
lágrima quando falava nisso.
Dizia
– As mulheres nuas
e depois não dizia mais nada, o olhar turvava-se-lhe,
calava-se, engolia em seco e escondia o olhar humedecido
do sarcasmo de Rui, uma vez foi mesmo preciso Gonçalo
intervir e ameaçar Rui com a solitária. Como se ele fosse
capaz disso.
Gonçalo era o guarda, mas era nosso amigo. Era como se
fosse um de nós, aliás nem andava armado, mas tinha um
transístor à cintura e dizia que se carregasse naquele botão
vermelho – ele apontava sempre – vinham os outros guardas
– de uma outra prisão que havia numa ilha ali perto –, que
eram guardas “mesmo a sério”, e então é que nós veríamos
o que era estar numa verdadeira prisão.
Gonçalo era uma pessoa solitária e triste. Nunca ria. Nem
mesmo quando o Manuel dava aquelas gargalhadas cujo
eco parecia subir pela torre do farol acima. Vivia parado
no século XIX, ou, se calhar, era no princípio do século XX.
Rui dizia que era no século XIX, porque o marxismo nasceu
ainda aí e portanto todo o século XX já era dominado por
essa sua adoração e não pelo mundo absurdamente parado
que Gonçalo defendia. Talvez tivesse razão. E talvez eles
dividissem os dois séculos, um para cada um, ou talvez
dividissem apenas as ideologias, tradição e revolução,
coisas tão antagónicas que eles andavam sempre à bulha,
e em relação às quais eu via cada vez menos diferença. Mas
Gonçalo esforçava-se por ser como uma rocha. Guardava-nos
34
a nós e – embora fosse cada vez menos claro à medida que
o tempo ia passando – tentava igualmente guardar a justiça
e o aprumo das nossas ideias. Guardá-las, por assim dizer,
dos malefícios da modernidade. Rui chamava-lhe fascista,
ao que o outro perguntava se ele se estava a referir ao
Estaline, ou se os fascistas eram os que tentavam proteger
as coisas boas que os seres humanos tinham inventado
ao longo dos séculos e que os separavam dos animais: a
família, o conforto de um lar, a educação e a compostura,
os valores do respeito e da consideração pelos outros, da
defesa da dignidade e da segurança dos concidadãos contra
os inimigos exteriores, ao passo que ele, Rui, como bom
revolucionário que era, preconizava certamente que certos
iluminados andassem a roubar, em nome do Estado, todos
os bens que as famílias haviam conseguido juntar ao longo
de séculos, preconizava o afastamento dramático entre pais
e filhos, e defendia, ou mesmo fomentava – que era por
isso que estava preso –, uma guerra civil de tipo russo, com
os operários a matar os camponeses só porque estes não
tinham grande vontade de fazer revoluções.
Rui berrava, chamava-lhe fascista outra vez e voltava a
explicar, pela milionésima vez, que não tinha nada a ver
com russos nem com chineses, que a sua ideologia não era
uma ideologia de opressão e que o marxismo era uma visão
de futuro, enquanto eu tentava montar o equipamento todo
que tinha trazido e pensava o quanto aquilo era conversa
de surdos, pois tanto conservadores como revolucionários
estavam totalmente enganados quanto à viabilidade futura
das suas ideologias. Que estavam irremediavelmente
datadas. E, enquanto regulava a lente do telescópio,
recordo-me de ter dito isso mesmo
– Vocês não percebem que estão a falar de mundos
datados? O homem do futuro precisa de uma filosofia
que lhe permita viver os próximos mil ou dois mil anos
em paz, e as vossas questiúnculas – porque vocês no
fundo dizem quase o mesmo e as vossas ideias são
35
tão opressivas uma como a outra – não fizeram mais
do que conduzir o homem ao beco sem saída em que
se encontra. O vosso século XIX e o vosso século XX
são ambos culpados pelo colapso eminente do planeta,
quer seja por via de uma terceira guerra mundial, quer
seja pelo descalabro ambiental provocado pela vossa
cegueira irresponsável.
Era raro eu dizer estas coisas, mas quando o fazia, sentia-me
bem, convencido de que podia contribuir para a clarividência
daquelas pobres almas perdidas.
Mas Rui não aceitava o determinismo da História e só
queria falar da hipótese de um futuro, de uma utopia, tudo
radicalmente diferente das asneiras passadas.
No entanto, Gonçalo era sempre certeiro
– Mas és contra a ditadura do proletariado?
ao que Rui já não sabia o que responder sem ser aos gritos,
como o Manuel que também berrava
– Não me deixam escrever a porra da carta ao
homem
enquanto fazia pontinhos na folha de papel, já toda cravejada
da enorme energia que tinha.
Às vezes, aquela barulheira toda lembrava-me os ensaios
no meu antigo teatro, inexplicavelmente barulhentos se
pensarmos que não havia qualquer público a assistir. Só
estávamos nós – meia dúzia de jovens inexperientes e
maravilhados –, podíamos falar baixo, não cansar a voz.
Mas não. O teatro tem um dramatismo que não passa só
pelo que se diz, mas também pela força com que se diz.
A “alma”, dizem alguns. Não! Tínhamos que falar alto na
mesma. Ou talvez mais alto ainda. Como se tivéssemos que
36
compensar a solidão das cadeiras vazias com um ambiente
mais forte, talvez mais dramático – como quando a Carminda
dizia, muito solene
– Penso um rio e mergulho
Ou era o António que lho dizia a ela – foi naquela peça
que falava de amor e, como acontece com as estrelas de
Hollywood, também eles decidiram apaixonar-se durante
os ensaios.
Assim, quando, nas actuações perante o público, ele
continuava a deixa anterior e, olhando fixamente para ela,
dizia
– Há uma veia no teu braço onde tudo é
possível.
era certo e sabido que ela se emocionava a ponto de se
atrapalhar na próxima fala, e nós todos aflitos a ver como
é que aquilo iria acabar.
Manuel ficava frequentemente saturado com o barulho
daqueles dois
– Deixem de andar a chatear os outros, pensem mas
é no vosso mundo parvoástico que não vos deixa fazer
o que querem – olha, eu quero-me despidástico e as
pessoas não deixam, ficam a olhar sempre a chatear
e a olhar, para que é que olham? Eu não quero ver as
pessoas nuas, não quero saber, eles que não olhem...
Manuel dizia existirem pessoas que perdem demasiado
tempo a pensar, e decidir, o que é que os outros devem
dizer, fazer. Era um falso altruísmo, achava ele, o que
essas pessoas queriam era obrigar os outros a ter uma
determinada maneira de ser, impedindo-os de ser livres e
donos das suas vidas, dizia
37
– Vocês querem é mandar nos outros. Querem parecer
bonzinhos, que querem o melhor para as pessoas, mas
a vossa cabeça está cheia de coisas moralizásticas, as
pessoas querem sempre mandar em mim.
Porque o princípio unificador do mundo não era senão
uma prisão para ele. E não entendia as fracas nuances
entre o conservadorismo dos tradicionalistas e o pretenso
modernismo dos revolucionários. Para ele, a vida era
aberta, livre, cheia de amanhãs vividos numa inocência de
primórdios, como se todos pudéssemos ser bons selvagens
à procura das origens e da essência do humanismo.
Em contrapartida, Rui achava que a procura dessa inocência
feliz era totalmente irresponsável, pois os homens não eram
inocentes e estavam sempre à espreita da possibilidade de
oprimir os outros homens. E achava que a única solução
era um Estado (ele dizia sempre com maiúscula) protector,
que impedisse as desigualdades provocadas pela ganância
materialista daqueles que mais importância tinham na
hierarquia económica.
– E quando a hierarquia económica acaba por se
confundir com a hierarquia do teu Estado protector?
perguntava Gonçalo, que não se sentia arredado das
conversas por via das suas funções de guardador das normas
e da ordem.
Rui parecia não querer saber de mais nada, não entendendo
ou não querendo entender. A certa altura, e para mudar de
assunto, virou-se para o Manuel, como que tentando ajudálo a escrever finalmente a sua longa carta. E brincou:
– O Presidente já deve estar a estranhar nunca mais
receber a tua carta.
Perante estas ironias de Rui, o outro respondeu num
desabafo furibundo e quase ininteligível
38
– És de uma estupidez broástica, que nunca foste mais
longe do que era permitido na tua aldeia, seguramente
o padre era fanástico e a tua família tinha santinhos
dentro das peúgas mal cheirásticas.
E riu, dando gargalhadas que ecoaram por todo o espaço
à volta, que era limitado, convenhamos, mas Rui reagia
sempre mal a estas humilhações, como se as ofensas
fossem ouvidas por uma multidão de populares ali reunida
para receber as suas instruções divinas sobre o modo como
organizar a revolução.
Gonçalo, por vezes, resolvia, nesses momentos, chamar
para a refeição – ou mesmo para a sua preparação –,
normalmente o almoço da meia-noite, mas Manuel não
desistia da sua irreverência
– Cá estão a chamar os carneiros para a comida fast-foodástica.
Antes de começarmos a comer, Gonçalo fazia quase sempre
um pequeno discurso. Assim uma espécie de prece de
agradecimento, como fazem as pessoas muito religiosas,
mas totalmente transformada. Ali, não podia começar a
puxar ao beato, senão tinha o Rui à perna. E o Manuel
também, que não era desses mundos.
Um dia, Gonçalo disse:
– Livremo-nos do abismo do vazio.
O que pregava tinha que ser rápido, Rui não lhe dava muito
tempo de tolerância até começar a comer. Por isso, as frases
eram sempre demasiado curtas. E tão enigmáticas que
faziam dele um personagem misterioso que contrastava
com a sua personalidade socrática.
Eram falas pessimistas, que revelavam a sua profunda
solidão
39
– Temam a confrontação súbita com a ausência.
Ficávamos à espera do resto da frase, mas não havia.
Gonçalo falava do nada, da ameaça da rarefacção. Temia a
aproximação da incerteza, a possível negação do seu castelo
de convicções tão antigas quanto inabaláveis.
Assim que ele acabava, ou parecia acabar, Rui começava logo
a comer. Fazia-o com gana de proletário faminto, dizendo
sempre
– Vocês não sabem o que é passar fome
como se fosse obrigatório ter passado fome para ser
marxista. E falava, absortamente, dos dias futuros em que
todos os homens teriam a possibilidade de matar a fome,
sobretudo essas pobres crianças que morriam aos milhões
em África, relembrando que não havia hipótese de obrigar
os ditadores africanos a pensar mais nas crianças do que na
guerra, a não ser por via de um movimento de cúpulas, de
estados soberanos que os obrigassem a vergar em nome dos
mais elevados interesses da humanidade, ou se calhar era
do humanismo, já não me lembro bem. E era sem surpresa
que se voltavam a ouvir as frases perdidas dos meados do
século XX, como a referência ao internacionalismo proletário,
que era coisa que Gonçalo perguntava se era norma de
sermos todos pobres por esse mundo fora, mas Rui não se
calava, com o olhar ausente, e eu só pensava no tio Saúl,
quando falava com os olhos postos no tecto, e eu chegava
a não ouvir o que ele dizia, não tanto por saber de antemão
o conteúdo, mas mais por observar, estarrecido, a sua cara
de profeta e os seus olhos, sobretudo os seus olhos, virados
para um infinito onde todos sabíamos que morava a verdade,
um infinito familiar, como eu costumava dizer.
Rui era parecido com o tio Saúl, pelo menos nas coisas que
dizia, mas faltava-lhe a alma, não sei explicar. Ou então era
de eu ser tão novo, e confundir a alma com a grandiosidade
40
das coisas que ele me ensinava, mergulhado no meu amor
quase filial quando o olhava, no meio das praças da cidade,
e ouvia, por entre a arquitectura tão antiga, a modernidade
rouca da sua voz. Quando era mais pequeno, dava-lhe a mão
e, confusamente, sentia que ia ser conduzido a um mundo de
revelações absolutas, revelações escondidas desde o início
dos tempos, guardadas só para mim. Eu era pequeno, mas,
como nunca ninguém havia feito, ele tratava-me como se
eu fosse adulto, partilhava comigo segredos só conhecidos
do mundo dos crescidos, como a existência da opressão e
a promessa da liberdade. Era uma espécie de verdade, mas
uma verdade global, enorme como as leis do Cosmos, uma
verdade que nos ultrapassava a todos, a mim, ao próprio tio
Saúl, e aos que o ouviam no ambiente de solidão austera
dos velhos monumentos que nos envolviam, como se fosse
uma casa muito grande, e também muito acolhedora, com
paredes muito largas e tectos ainda mais desmesurados,
perdidos nos confins das galáxias que víamos nos céus
infinitos das noites quentes de Verão.
Foi numa dessas noites – hei-de contar mais adiante –, que
ele me disse aquela frase terrível que ecoou para sempre
na minha cabeça, a frase mágica e misteriosa: “Mergulha
em ti, e encontrarás o segredo do mar”. O tio Saúl muito
direito, solene, dizendo que este era o maior segredo do
Universo. Tinha sido o velho padre, à hora da morte, que
lho havia revelado. Mas, naquele mundo de censura e morte
em que vivíamos – os carrascos sempre à espreita –, não
me era possível conhecer mais. O tio Saúl não podia dizer
mais. Talvez um dia pudesse dizer. E citou o Manuel Alegre,
quando elevou a voz
– “No meu país há uma palavra proibida.”
Não, ele não podia dizer. Era eu que tinha de procurar. Era
parte do meu destino.
Deste modo, o mar era – ou parecia ser – o último reduto
da salvação do homem. Se calhar, por não ter fim, ou por
41
ser praticamente desconhecido. Reserva de água, fonte da
vida. Sem ele não haveria chuvas nem alimentos, nem talvez
ventos – apeteceu-me sentir um pouco de poesia. Mas como
pensar que o segredo do mar pudesse alguma vez estar em
nós, estar em mim?
Tantas vezes que me encostava na cadeira, ou me deitava, a
pensar nessa frase tão enigmática, e tão bela. O segredo do
mar. Seria a água? Talvez. O nosso corpo tem uma enorme
quantidade de água. Água purificadora? Aquela que se deita
na cabeça das crianças para passarem a ter uma qualquer
ligação com o além?
Mas o tio Saúl foi claro: era um segredo que respondia àquilo
que eu toda a vida iria procurar, por isso nunca mo disse,
nem à hora da morte, agarrando-me as mãos com toda a
força que tinha. À hora da morte. Mas, na comoção líquida
dos meus olhos, eu senti, eu vi – na água que me inundava
a visão do mundo – que estava mais perto da solução do
enigma, do que jamais havia estado. O que eu senti foi
seguramente a expressão mais clara possível dessa palavra
mágica proibida. O tio Saúl tinha a certeza de que eu iria
encontrar. Uma palavra que salvaria a Humanidade. O padre
tinha descoberto uma verdade grandiosa nuns livros muito
antigos, ou então nas aldeias perdidas que visitava, aldeias
dos mais pobres, de pessoas totalmente isoladas do mundo.
Palavra proibida, frase tão bela – como poderiam essas
gentes conhecer os segredos do mar? Gentes do campo
longínquo que, seguramente, nunca haviam visto o mar.
Por vezes, quando o Manuel olhava da janela a imensidão das
águas, eu sentia que, mesmo sem ter consciência disso, ele
conhecia esse segredo. O que quer que fosse que pudesse
existir dentro de nós relacionado com esse segredo, Manuel
vivia-o de forma intensa. “Mergulha em ti”. Sim, devia ter
a ver com a água. Manuel só bebia água – mas isso não
devia ter nada a ver. Não, a água teria certamente que ver
com outra dimensão: vi sempre Manuel lavado de uma
42
água primordial. Nu. Lavado. Puro. Seria esse o segredo
do mar?
O mar. Nome de uma peça antiga. Não, estou a dizer mal.
“O cheiro do mar”. Nome lindo, que apelava à lonjura de
uma felicidade de infância, banhos na água quente do final
da tarde, com o Sol a ameaçar o cair da noite e o início
das trevas e da solidão. Era a Daniela, creio eu, que falava
do cheiro do mar que não se conseguia sentir nas grandes
cidades, cheiro impossível na aridez do betão. Mas a peça
vivia dessa nostalgia de um cheiro ausente, sem qualquer
hipótese de concretização. Nostalgia de um cheiro absoluto.
Maresia das tardes quentes de Verão, a pele a estalar de
queimada e o corpo dorido de tantos banhos na violência
das ondas. Daniela virava-se para o público, a luz de todos
os holofotes a cair-lhe em cima, e estendia a mão, como
que a anunciar qualquer coisa de milagroso
– Com vento favorável
começava ela, fazendo uma pausa para olhar fixamente para
a audiência que não via, cega pela luz
– Mesmo junto dos edifícios dos bancos
os olhos abertos
– E dos grandes escritórios
e concluía a primeira parte, baixando a cabeça
– Pode sentir-se o cheiro do mar
As pessoas vibravam desse momento tão dramático, não
pelo que ela dizia – texto meio absurdo –, mas pelo sentir
que dela transbordava.
Daniela era tremendamente bela – hei-de o dizer um dia – e
eu amava-a sem a poder amar. E ela também me amava,
de um amor triste da negação que em mim havia.
43
Nesses momentos, nós estávamos todos parados, de cabeça
baixa, com uma luz muito ténue que permitia apenas
adivinhar os nossos contornos diante do fundo negro do
cenário. Já não sei se havia um piano a soar muito ao longe,
ou se era o ruído impossível das ondas a quebrar.
De repente
– Vem do cais! Não é absoluto nem abafa as
buzinas dos carros
Lentamente, levantava a cabeça outra vez. E os olhos.
– Não leva o perdão aos sonhos dos homens
E, por fim, a mão, de novo, apontando na direcção da sala
–
Mas com vento favorável
Boa vontade
E raiva
Pode sentir-se
Chega a sentir-se
O cheiro do mar.
E caía ajoelhada no chão. E o pano caía também, perante a
comoção abrupta de todos nós. Tantas vezes representámos
a peça e nunca conseguimos deixar de nos emocionar quando
ela se dobrava – tão bela e elegante – e o pano caía com um
público já levantado em aplauso apaixonado. Daniela trazia,
àquelas plateias de homens indefesos perante a desmesura
brutal da arte, o anúncio do triunfo da irrealidade por sobre
a limitação aparente da vida. Arte da minha juventude. E
do depois disso, quando, ao fim da tarde, ia a correr para o
teatro, para uns ensaios que se prolongavam até tão tarde,
numa urgência estranha e implacável que impunha à minha
felicidade.
44
Andamos sempre à procura de uma verdade. Na prisão, essa
ânsia era evidente. Menos o Manuel. Ele tinha uma verdade.
Não estava visível. Vivia dentro dele. Por outro lado, também
era possível pensar que essa sua verdade fundamental era
constituída por muitas verdades, umas atrás das outras,
consoante o que lhe passava pela cabeça. A sua verdade
era hoje uma, amanhã outra, e esse era o registo maior da
sua liberdade de pensamento. Porque a liberdade do tio Saúl
era dirigida a uma determinada opressão, num determinado
contexto político, num determinado momento do tempo. Mas
a liberdade de Manuel era absoluta, pois não era redutível
a um só momento ou a uma só dimensão da vida. Era
uma liberdade como em nenhum de nós havia. Verdades
sucessivas, sem responsabilidade maior que não fosse a de
respeitar de forma inocente os desejos sinceros dos homens,
e a alegria, a alegria, que é uma felicidade sem preocupações
futuras – Manuel havia de o dizer um dia, num poema lindo
que inventou. Verdades sucessivas mas, estranhamente,
pareciam nunca entrar em contradição, como se estivessem
ligadas por uma lógica interior, talvez matemática, ou
axiomática – como o meu amor por Amália, falarei dele
quando conseguir –, uma lógica seguramente indestrutível.
E, acima de tudo, de uma inocência incompreensível
– Os homens são impressionásticos
tão incompreensível que nem Rui nem Gonçalo sabiam como
assimilá-lo. Manuel estava para lá do seu entendimento
unificador. Como estava também para lá da minha visão de
perfeição. E era por isso que ele era tão livre. Não tinha a
permanente necessidade de argumentar perante as nossas
discussões sem fim. Estava sempre à parte e, de repente,
dizia algo. E esse algo era exterior à discussão. Ou era
algo para lá da discussão. Sem amarras. Verdadeiramente
libertador. Talvez sem nexo, embora nenhum de nós o
acreditasse verdadeiramente, sobretudo eu, que já sentia
demasiado cansaço em relação a tamanha dialéctica.
45
O meu propósito não era aquele. Eu não era um preso.
Não era maluco nem revolucionário bombista. Era um
cientista com permissão para desenvolver o meu trabalho
de investigação naquela prisão isolada no fim do mundo. A
minha pena a cumprir era interna, ou seja, era um problema
que eu tinha que resolver com a ciência e a filosofia. Era o
projecto científico mais inovador que alguma vez havia sido
considerado. Haveria de ser o primeiro homem a encontrar-me
com os outros, os do outro mundo – tão pueril que hoje
acho aquela frase do “grande passo para a Humanidade”, ou
lá como era, só porque viajou até um planetita minúsculo
aqui mesmo ao lado. Eu ia encontrar os vindos do Espaço,
quantas dimensões acima de tanta mediocridade. Os meus
companheiros não sabiam, é claro, limitavam-se a observar
os meus preparativos, mesmo quando estes envolviam uma
tecnologia totalmente desproporcionada para um ambiente
prisional. Não valia a pena explicar-lhes que o meu propósito
era totalmente científico, oriundo da ciência dos homens
– Rui nunca o iria entender. De qualquer modo, olhavam
para mim com uma certa reverência, percebiam que eu
não era um deles, quanto mais não fosse pelo modo como
o pobre Gonçalo agia, eu mais parecia ser um seu superior
hierárquico.
A versão oficial apresentava-me como um escritor que queria
escrever um romance sobre a vida de um astrónomo, foi
assim que o Manuel um dia me sentou em frente dele para
ter uma conversa muito séria, talvez conte daqui a pouco,
uma conversa para me explicar que também ele queria
muito escrever um romance. E o próprio arsenal tecnológico
obrigava, reconheço-o, a um certo respeito, não era
qualquer um que conseguia juntar aquela maquinaria toda.
Embora não percebessem para que é que ela poderia servir
concretamente. E eu não dizia nada. Pelo menos, quase nada
expliquei até ao momento crucial, que todos presenciaram.
O momento mais fantástico – já pareço o Manuel – a que
todos jamais assistiram na história das suas vidas.
46
O meu projecto começava por ser um projecto científico.
Ou filosófico, pouco importa. O meu objectivo, creio que já
o disse, era descobrir os elementos teóricos que pudessem
guiar a Humanidade no futuro. E, com eles, construir uma
teoria, uma ideologia global, como fez o Marx, que pudesse
condicionar o homem de amanhã. Uma ideologia que pudesse
marcar o século XXI como o marxismo marcou o século XX.
Não era a invenção de um regime político novo, por acaso
sempre me havia irritado o nunca se ter descoberto um
regime alternativo à ditadura e à democracia. Mas não! Era
algo mais vasto, era como se fosse uma religião, algo pelo
qual os homens se pudessem apaixonar, e talvez lutar, pondo
em risco a própria vida. Era isso que eu achava comovente
e infinitamente belo nos revolucionários marxistas. Também
houve, claro, milhares de tipos a morrer para defender a
pátria e o rei e essas coisas, mas em nenhum desses casos
eu via aquela aura de beleza romântica que quase nos faz
chorar. O marxismo era como uma religião porque envolvia
uma adoração cega. E eu queria algo de igual, ou seja,
com o mesmo tipo de efeito: um sonho totalmente puro
de amor em relação aos homens. Tinha estudado muito,
feito milhares de esboços – e esquemas, como fazem os
intelectuais franceses –, mas tinha chegado a uma triste
conclusão: tudo o que os homens inventaram e pensaram
ao longo do tempo, homens cada vez mais inteligentes,
mais sábios, mais cultos e conhecedores de tudo, só serviu
para piorar as coisas. Estávamos à beira da destruição do
planeta. Foi aí que pensei nos das galáxias longínquas, tão
avançados que eles deveriam estar em relação a nós e,
simultaneamente, tão bem que deverão ter superado as
crises provocadas pelo seu conhecimento. Era preciso uma
ideologia nova que guiasse o homem, mas também que
salvasse o planeta. E eu estava em condições de o conseguir.
Do muito que tinha lido sobre fenómenos ufológicos, tudo
me conduzia àquele local. Por ser abandonado pelos homens
– eles, é óbvio que o sabiam –, aquele mar permitia a sua
vinda sem serem vistos. Eu sabia o que eles procuravam,
mas interrogava-me sobre o seu maior segredo: como teriam
47
eles conseguido harmonizar o desenvolvimento tecnológico
– porque não falar mesmo em ciência – com a salvação
das vidas e com a redenção das almas? Seriam eles os
deuses dos homens, como me parecia cada vez mais claro
depois de todos os estudos que fiz, sobretudo em matéria
de Etnologia? Pensava se teriam sido eles, ou outros como
eles, a passar cá há muitos milhares de anos atrás, com
toda a probabilidade mesmo mais de um milhão, para nos
ajudar a ser homens.
Mas não. Era mesmo mania minha, essa de atribuir a outros a
génese da nossa humanidade. Mania estúpida, aliás, porque
contrariava totalmente o meu sonho enquanto investigador
de Antropologia. Sempre tinha achado que o homem tinha
construído, ele próprio, a sua transformação. Tinha que
ser assim. De outra forma, o homem não passaria de um
joguete nas mãos de poderosos galácticos. Uma outra forma
de religião.
Mas isso agora era irrelevante. A minha preocupação não era
a origem do homem, mas o seu futuro, o rumo que estava
prestes a seguir. E era eu que tinha que definir esse rumo. Se
calhar não tanto por razões que tivessem a ver com a minha
preocupação com o homem, mas porque queria deixar o meu
nome bem marcado na história do século XXI. Por toleima,
talvez. Ou então – como também estava convencido – para
deixar uma marca indirecta da passagem do tio Saúl por esta
Terra. Mas devia ser por toleima mesmo, às vezes imaginava
a minha cara em posters nos quartos dos adolescentes,
ou estampada nas t-shirts, com dizeres da minha filosofia,
entretanto de referência obrigatória para quem quisesse
estar à frente do seu tempo. Porque os conservadores (não
seriam chamados reaccionários) continuariam a existir. Por
isso, seriam as gerações e as elites afectas ao modernismo
que iriam acompanhar o meu ideal.
Estava muito consciente de que não queria encontrar um
“ismo” – socialismo, comunismo –, em grande parte porque
48
não queria descobrir um novo regime político. A minha
proposta era mais livre: era a de encontrar uma ideia global
que definisse a atitude a tomar. O regime seria o resultado
da aplicação dessa ideia, partindo eu do pressuposto de que
o homem tinha que ter toda a liberdade no âmbito dessa
aplicação. Assim, o regime não estaria definido à partida.
Seria diferente de grupo para grupo, de povo para povo,
não queria cair na esparrela do Marx e começar com as
aulas de catequese. Uma ideia mais brilhante do que a dele
– não seria certamente a igualdade –, mas seguramente
com o mesmo tipo de embrulho. Na linha do religiosobeato-fanático. Mas não porque as perguntas não tivessem
respostas, como no caso do marxismo ou da religião – na
minha filosofia tudo teria sempre que ser humanizado. As
pessoas tinham que poder discutir, ou reflectir, para além
de acreditar. Uma ideia absorvente, e justa, mas exequível.
Ou seja, prática, também.
Por vezes, achava que o Marx tinha diminuído os ideais da
Revolução Francesa. No sentido em que tinha privilegiado a
componente menor da trilogia, que era a igualdade. E achava-o
porque ela era a mais distante da essência do ser humano.
E deixou de lado os dois valores essenciais, impondo uma
ditadura (numa perspectiva contrária da liberdade) de ódio
entre irmãos (numa perspectiva contrária da fraternidade).
Operários, camponeses, soldados, ricos, pobres, explorados,
exploradores. Todos irmãos na sua essência mais profunda.
Com diferenças de conjuntura. Tão conjunturais, aliás, que,
logo após as revoluções (russa, chinesa), os explorados
não passaram nem dois dias a passar a exploradores, nem
os ricos demoraram mais de duas horas a passar a pobres.
O meu objectivo era, afinal, anular essas diferenças de
conjuntura, não pensando neste ou naquele homem, mas
pensando no homem em geral, naquilo que o une dentro da
sua diversidade. Para que pudesse estar para lá de regimes
políticos concretizáveis em função do tempo, do espaço, ou
das oportunidades oferecidas aos seus dirigentes.
49
No meio de todos os devaneios, subsistia a minha preocupação
legítima em arrumar tudo muito cedo no topo do farol. O
material era complexo e demorou muito tempo a estar
todo montado como devia. Eu tinha que estar preparado
para qualquer eventualidade relacionada com as minhas
pesquisas. Nunca poderia antecipadamente saber quando
seria o momento decisivo. E esse momento não poderia ser
perdido por nada deste mundo.
Restava-me ficar à espera.
Papel manuscrito nº 1 (tempo da prisão)
O farol é vermelho, e junta o branco do edifício
num contraste potente com o azul em redor.
Está no cume de uma enorme rocha que cai em
escarpa sobre o mar. Rochas em precipício a toda
a volta da ilha, só há um sítio com uma pequena
enseada, assim como uma praia de calhaus. É a
única possibilidade de acesso ao mar.
Hoje o mar está mais calmo, abrandou o vento,
podia aproveitar para dar um passeio até essa
praia – sou o único que o pode fazer e quase
nunca o faço. Mas não gosto de ir lá de noite.
E nós só quase vivemos de noite.
Vejo o luar reflectido nas águas de forma mais
nítida do que o habitual. Não sei se é impressão,
50
ou sugestão, por causa de ontem. E fico a olhar o
vento a frisar a água, em pequenos arrepios que
às vezes não é o vento e são cardumes de peixes a
nadar à superfície. Quando passam as nuvens,
surgem formas escuras no longo rectângulo
prateado que espelha a luz da Lua. Como as
“sombras japonesas”, já não sei se é assim que se
chamam. Tento adivinhar concretizações para
o abstracto das sombras: objectos, animais. E
penso: não terá sido assim que se “avistaram”
muitos monstros marinhos? Enormes serpentes,
onduladas, a deslocarem-se à velocidade das
nuvens e, por vezes, do arrepio provocado pelo
vento no mar? Mas quando a luz do farol
passa, vemos que é tudo ilusão, como quando
as crianças vêem carantonhas no escuro, ou na
penumbra provocada pelas frestas das portas, e
depois nós chegamos ao quarto e acendemos a
luz, e elas percebem que não havia nada a não
ser a sua imaginação, e o medo da noite.
O mar não tem fim, e por isso os seus mistérios
são ainda maiores. Mas não é por o mar ter
duas, ou três, ou quatro vezes – também já não
sei – a vastidão da superfície sólida do planeta.
51
O mar é infinitamente maior porque a terra é
bidimensional e o mar não. Ou seja, se eu olhar
a vastidão da terra, uma planície sem fim, por
exemplo, ou o deserto, só penso no que o meu
olhar alcança. Não penso na profundidade.
Não imagino, um segundo, que essa enorme
“dimensão” possa ser multiplicada, se calhar
exponencialmente, pela dimensão do que está
por baixo. Não imagino o volume. Só a área
superficial. No mar, não. Acho logo, aliás, que
a superfície é o menos importante, pois tudo o
que se passa está escondido e é, como sabemos – e é
verdade –, infinitamente maior. Cada ponto que
vejo pode ser multiplicado por uma infinidade
de pontos que podem ir até um quilómetro,
ou dois, ou mais, no eixo perpendicular ao
plano que consigo ver. Se olhar para um
metro quadrado de terra, só lá poderei ver um
animal de médias proporções. No mesmo metro
quadrado, observado no mar, podem esconder-se
centenas de animais, consoante a profundidade
em que habitam.
Subitamente, penso que é estúpido olhar o mar e
pensar nos infinitos de uma forma racional. Mas
52
hoje é quase só o que tenho. A racionalidade.
A emoção perdi-a algures, há muito tempo. Por
um lado, claro, com a morte do tio Saúl. Mas,
antes, com a outra morte, que não foi bem uma
morte, mas senti como se fosse. Porque algo
morreu dentro de mim. Amália. Foi talvez a
capacidade de amar que perdi para sempre.
Foi primeiro o futuro que me morreu. Depois,
foi o passado.
Penso nela, gosto de o dizer – ela –, sempre
detestei o nome Amália. Por isso, por vezes penso
para mim que gostava que ela estivesse aqui. E
cada vez que alguém diz a palavra ela, eu penso
nela. E nos tempos que passámos à beira-mar,
nas praias, por vezes sozinhos a toda a extensão
do areal. Como era bela. Um dia partiu, ia à
procura do seu próprio futuro. Um futuro que
tinha que ser construído sem mim. Quando
vejo o mar, lembro-me dela. Um corpo de brutal
beleza que saía do mar. E eu aterrado perante a
minha pequenez. Um dia foi-se embora. E disse,
ou imaginei
– Não amarei mais ninguém.
53
Assim. Só assim. E eu parado. Sem entender.
À espera de um milagre. Eu, que sei que os
milagres nunca existiram.
Também nunca mais amei. Fiquei sem essa
capacidade. O amor passou a ser coisa difusa,
imaterial. Apenas existindo nas doces evocações
do passado. Como me acontece com tudo, hoje
em dia. Porque tudo o que existiu de emoção
profunda, dentro de mim, morreu. Fiquei com
a dimensão racional de um sonho filosófico,
que não sei se algum dia vai existir mesmo. Se
calhar, vai ser só isso. Um sonho. A minha vida
está no cruzamento do sonho e da memória
– Não amarei mais ninguém.
Eu também não.
Conhecemo-nos ainda em miúdos. Fomos um
só. Da amizade de quase irmãos, passámos
para a paixão, depois o amor. Acabou por não
fazer sentido pensar a nossa vida sem ser um
com o outro. Foi por isso que deves ter partido.
Foste procurar o teu eu. Coisa de que eu não
54
precisava, tinha-te a ti. Mas tu quiseste. E lá
foste. Deixando-me totalmente desamparado. E
só.
Estou a escrever tudo isto, pacientemente, porque
espero. Tenho a certeza de que a luz que apareceu
ontem aparecerá hoje de novo. Ao lado da luz
reflectida da Lua – luz, reflectida no mar, que
também não era da Lua, mas proveniente, através
dela, de um Sol longínquo –, apareceu uma
outra, que vinha do fundo das águas. Tenho a
certeza disso porque vi um enorme peixe a passar
por cima e a tapá-la um pouco. Por isso, não
podia ser uma luz vinda de cima. E essa luz não
era de prata, era amarelada e, quando fugiu,
avermelhada. Afastou-se rapidamente, fazendo
um sulco nítido e linear, coisa que os arrepios
do vento não fazem. Eles levam a ondulação
em grandes manchas horizontais em relação a
mim. Como se fossem barcos que se deslocam de
lado. A luz seguiu vertical, numa linha que
apontava o limite do horizonte. Longitudinal.
E os cardumes de peixes não se deslocam numa
fila indiana perfeita.
55
A luz apareceu ontem, enquanto o Manuel
tocava piano, com a sua concentração habitual.
Mas ontem estava mais alegre, por vezes olhava
para nós e sorria. Como se estivesse a dizer uma
piada. Ao piano, a sua comunicação é mais
fácil. Está mais à vontade. É o seu modo natural
de ser. Ao piano, não tem nada de maluco.
Pelo contrário, somos nós que nos sentimos
inferiorizados, excepto o Rui, que teima em
dizer enormidades como essa de a arte não servir
para dar de comer às crianças com fome. Mas
tenho a certeza de que também ele sente a visita
da transcendência quando o Manuel toca
aquelas suas harmonias complexas e, por vezes,
perturbantes de dissonância. Nem ele conseguirá
resistir a esse apelo grandioso de vibração e de
ternura.
– Mergulha em ti, e encontrarás o segredo
do mar.
Há um segredo no mar. E eu vou descobri-lo,
como prometi ao tio Saúl. Vou esperar pela luz.
Os outros dormem, cada um para seu lado. Podes
vir, luz. Estou só. Não direi a ninguém qual
56
é o mistério do teu mar. Podes vir. Preciso de
desvendar o teu segredo, pois preciso de salvar
os homens. O segredo está dentro mim. Ao que
parece, perdi-o um dia, mas guardei as réstias
em mim. Vem, luz, podes vir. Vem para me
ajudar.
Era uma luz de grandes proporções que parecia
iluminar todo o fundo do mar. De vez em
quando, aumentava de intensidade, depois
diminuía. Como se estivesse a fazer sinais. Não
sei que sinais posso fazer. Mas posso esperar.
É isso que vou fazer.
O dia em que terminei toda a montagem e teste dos
aparelhos foi muito especial, não só porque acalmei os
meus anseios e medos de ser apanhado desprevenido, mas,
acima de tudo, por ser dia de fazermos a nossa comida, o
que dava sempre para grande divertimento. Por isso, tinha
que acabar de arrumar tudo ainda cedo, para poder ajudar
os outros na cozinha. Na prática, eram mais eles que me
ajudavam a mim.
Um dia por semana, havia licença para nós cozinharmos.
Sobretudo eu, como disse, porque o Rui achava sempre que
a culinária era coisa de excentricidades burguesas, a comida
era para nos alimentarmos, e só se tornava objecto de culto
para quem tinha comida a mais, o que era um desperdício
próprio de ricos. E passar três horas a cozinhar só podia
57
ser prazer de pessoas desocupadas e que não precisavam
de trabalhar.
Gonçalo cozinharia nesse dia. Muito excepcionalmente. Era
muito metódico e preparava tudo com imenso rigor. Cortava,
lavava, pesava, separava os ingredientes, media – passava
uns bons dois minutos a dosear uma colher de manteiga.
Seria colher de sopa? De sobremesa?
Gonçalo era um cozinheiro extraordinário. A culinária estava,
descobrimo-lo mais tarde, indissociavelmente ligada ao seu
passado. E quando cozinhava era como se, de repente, se
separasse de nós e mergulhasse numa outra dimensão.
Quase não falava, totalmente fechado em si. Misturava os
temperos, fazia-o sempre de modo diferente de cada vez, como
se estivesse sempre – tal como o Manuel ao piano – a criar
uma nova obra de arte, sempre inédita, sempre original.
Gonçalo cozinhava melhor do que qualquer pessoa que
alguma vez conheci. Porém, raramente o fazia. Não queria
cozinhar. Nós pedíamos-lhe, mas ele normalmente recusava.
No entanto, havia também alturas em que dizia que sim.
Havia momentos em que ele se revelava uma pessoa muito
misteriosa, e nós desde sempre percebemos que a culinária
era inseparável desse seu sofrer. Por vezes, dizia coisas
incompreensíveis para si próprio, só entendíamos palavras
difusas, frases cortadas ao meio
– A atracção do abismo.
Nesse dia, ouvimos-lhe uma frase completa, entre dentes,
e mais misteriosa ainda
– Descobri que o vazio é a base da libertação.
Olhou para nós quando o disse, mas não estava a ver-nos.
O seu olhar trespassava-nos a caminho de um lugar outro,
58
algures por detrás de nós. E, calmamente, voltou a cortar
as batatas em pequenas esferas, perfeitas, que ia fritar
na gordura da carne já terminada. Ao cortar as batatas,
grandes, em quatro, para, de cada quarto, fazer uma
pequena esfera, ia deixando todo o desperdício que restava
da batata, o que justificou logo uma intervenção correctiva
da rígida moralidade da esquerda presente:
– Vais deitar essa comida toda fora?
Rui gostava muito de batatas fritas, mas, ao mesmo tempo,
não permitia nunca que a sua barriga se impusesse ao seu
cérebro todo programado de regras e de recomendações.
– Com o resto, vou fazer puré para ti.
Gonçalo interrompera a sua concentração por breves
instantes, para lhe responder à letra. Depois, voltou ao seu
mundo de deleite quase infantil, vivência de um passado
longínquo onde encontrava a memória da sua segurança
perdida.
Nesse dia, Manuel tinha chegado de novo com a cabeça
toda molhada. Não podiam ser banhos no mar, ele estava
proibido de descer as escarpas pelo único caminho possível
para chegar à enseada. A proibição era um pouco absurda,
embora fosse normal numa prisão evitar fugas através do
mar. Mas Manuel não sabia nadar, e também não tinha com
que fazer uma jangada ou coisa do estilo. Ele dizia que
molhava a cabeça no lavatório porque ficava com calores
súbitos. Mas o estranho é que a cabeça só aparecia molhada
nos dias em que ele estava várias horas sem aparecer, ia
pensar, dizia ele, atrás dos penhascos mais altos que havia
a nascente. Ia pensar em quê? Manuel vivia a vida em
intensidade e em proximidade. Ela não lhe exigia a lonjura
do metafísico. Se calhar, ia só sentir. O seu piano, talvez.
Manuel era totalmente diferente de nós.
59
Quando chegou, pediu-me
– Faz aquele arrozástico com rebuçado.
– Com refogado …
– Pois, esse, que é um arroz que fica duro, e os bagos
ficam separados para eu contar.
E era capaz de ficar não sei quanto tempo a contar os bagos,
obsessivamente, enquanto a carne esfriava e perdia a graça
toda. Mas ele não queria saber, nem quando ouvia o Rui
berrar
– Vê-se mesmo que nunca passaste fome, para estares
assim a brincar com a comida.
Continuava, meticulosamente a contar os bagos de arroz,
pondo os maiores para um lado e os mais pequenos para
outro. De vez em quando, descobria um bago escuro, ou uma
pequena pedra, e mostrava, vitorioso, como que justificando,
com a deficiente escolha do arroz, a necessidade da sua
absurda dedicação a tal tarefa.
Mas o Manuel ajudava à culinária. Algumas coisas davam-lhe
um prazer imenso, por exemplo, lavar a salada. Demorava
horas, acariciava os talos mais grossos com os dedos antes
de os cortar e depois estendia as folhas de alface, com muito
cuidado, para ficarem muito lisas. Depois tirava a mão,
as folhas enrugavam outra vez e ele ria, divertido com os
mistérios e caprichos da Natureza.
Outras vezes, queria cortar a cebola. Cortava muito, em
pedaços muito pequeninos, para ficar muito “chorástica”,
como ele dizia. As lágrimas caíam-lhe pela cara abaixo, e
ele fingia que estava triste, ou mesmo que estava a chorar.
E depois desatava a rir outra vez. Gonçalo ficava sempre
histérico, pedindo-lhe para não mexer em nada – para não
ficar tudo besuntado e impregnado de cheiro a cebola –, e
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o tempo assim passava mais depressa com a ânsia de irmos
comer um petisco tão especial.
Um dia, depois de uma refeição dessas, resolvi pôr música.
O que, não sendo propriamente proibido, não era muito
habitual. Era mais frequente ouvirmos o Manuel tocar. Era
música suave, jazz, um trio de jazz moderno e ao mesmo
tempo clássico: baixo, piano e bateria. Jazz nórdico e
adequado a um dia especial. Nesse dia, tínhamos bebido
vinho – algo que era ali muito impensável, afinal estávamos
numa prisão. Mas tinha convencido o Gonçalo, afinal era uma
data festiva qualquer que já não recordo. Coitado, porque,
ainda por cima, não gostava daquele jazz. Era demasiado
dissonante – ele não o disse assim, mas foi o que entendi – para
o seu conservadorismo apreciador de um ritmo swingado
dos primórdios e à maneira do Glenn Miller. Ele tinha uma
teoria despropositada a respeito da necessidade absoluta de
um ritmo marcado no jazz. Leituras antigas, com certeza.
Mas também não fez grandes comentários.
Rui também não. Não cheguei a perceber em que alínea do
marxismo é que o jazz se inscrevia. Ou não inscrevia. Percebi
que tinha pontos positivos: a origem negra, os escravos, a fuga
a uma realidade dolorosa, a perpetuação das origens africanas
e, tal como Gonçalo – o contrário é que seria de estranhar –,
o ritmo. Espiritualmente, Rui e Gonçalo encontravam-se mais
frequentemente do que seria de esperar, embora Rui falasse
de um ritmo de revolta, tal como a dissonância – aí talvez
mais interessante –, que também era, em sua opinião, a
recusa da facilidade herdada dos avós da composição. Recusa
de um mundo harmónico completamente ultrapassado, onde
se sentia um ritmo que surgia como um tambor, mítico, de
resistência e de coragem.
O que me impressionou, tanto num como noutro (Gonçalo e
Rui), foi a prontidão da resposta. A rapidez do comentário,
como se não estivessem a falar daquela obra em particular,
mas do que ela lhes sugeria, em regime de opinião globali61
zante – ou de associação de ideias. Como se fosse uma ideia
feita; os cientistas chamam pré-conceito a essa ideia vaga e
abstracta que se aplica sem se ter em conta as características
concretas do que se está a analisar. Se é jazz, não gosto.
Nem vale a pena ouvir a música, não gosto. Ou se é um
jazz com uma determinada etiqueta, não gosto, só se for da
outra etiqueta. Como os miúdos que não gostam de peixe
e nós dizemos-lhes que é “carne branca”. São opiniões
que são axiomáticas, verdades indemonstráveis, como na
matemática. Não vale a pena teimar.
Em contrapartida, Manuel ficou agarrado ao aparelho, de
olhos esbugalhados, a ouvir. Ouviu com toda a atenção do
mundo e, de tempos a tempos, fechava os olhos e inclinava
a cabeça para a frente, fazendo um gesto com os dedos,
parecia que ia tocar uma tecla.
Rui, a certa altura, perguntou:
– Não cantam?
Para ele, a música era cantada, era a que estava mais
próxima da sua emoção. Tal como estava habituado, a
música tinha que ter palavras, para o guiar na irrealidade
difícil que a complexidade da música potenciava. Rui
tinha uma mensagem para transmitir aos outros, e essa
mensagem só fazia sentido através da palavra. Ele não
sabia que a grande música não era cantada. Essa não era
a grande música para ele.
Papel manuscrito nº 2 (tempo final da
prisão)
Olho o mar, é fim de tarde e estou nos confins do
mundo, isolado numa ilha no meio do oceano.
62
E, instintivamente, é como se vivesse de novo
os meus tempos felizes com ela. Como é possível
sentir-te ainda, como se estivesses aqui? As
árvores mexem com o vento e vão apagando e
acendendo, sucessivamente, a luz do Sol na mesa
onde escrevo. Estou longe de tudo. E estou só.
Olho o mar, tão distante do da minha referência
contigo, e sinto-o da mesma origem emocional.
O mar de quando andávamos de mão dada
pelas praias, na amizade de crianças, depois
no amor de adultos, o que, para nós, foi sempre
o mesmo sentir. Aqui não há praia de areia
branca – como no poema do Muralha –, não
existe aquele azul tropical onde via o teu corpo
recortado. O mar bate na rocha e a sua cor é
escura como são as águas profundas dos oceanos.
Escura como a noite que me inundou desde que
me deixaste.
Longe de tudo, é uma música bela que me
acompanha. Com ela, relembro também os tempos
felizes da prisão e a enorme força de esperança
e de liberdade que neles existiu. Nos agudos
melancólicos do piano, ainda vive a saudade
dos meus sonhos antigos. O sol vai pôr-se mesmo
à minha frente. A música embala o adeus das
63
ondas e o Sol deve ter corado de vergonha, pois
é agora mais vermelho, não deixando dúvidas
sobre a sua vontade de partir. Deixando-me
ainda mais só.
Já não vou encontrar nenhuma luz vinda do
mar. Não preciso de esperar pela noite. A noite
será totalmente escura. O Manuel não estará
aqui para tocar e eles virem esconder-se por
debaixo das ondas para o ouvir.
Para Rui, a música tinha que ser mais
concreta. A irrealidade era de mais para ele.
Lembro-me
– Mas eles não cantam?
Não, Rui, eles não cantam.
Bate sol, bate nas vidraças e, quase a partir,
ilumina uma última vez o meu papel, a minha
mão que tenta aplacar ainda o mistério da folha
em branco, por entre as folhas – as outras folhas,
as folhas das árvores – tremendo em sombras
sobre a secretária. São as réstias da luz do dia,
64
que anunciam a noite triste nesta solidão em
que me encontro. O tempo que me resta ficará,
assim, todo ele ocupado pela luz desta música
que envolve a sedução absoluta da recordação do
teu olhar. Que me acompanhará até ao fim.
Não cantam, Rui, porque o que tu ouvias era a música mais
bela do mundo. A música mais abstracta de todas. Chamam-lhe
a música absoluta. A mais bela. Mais bela do que a tua
revolução, do que o teu sonho ingénuo de justiça.
Manuel voltou a abrir muito os olhos, como se compreendesse
para além do que eu afinal disse. Mas, a certa altura,
percebi, percebemos todos, que aquela outra voz que só
ele ouvia, porventura a mais abstracta de todas as vozes
da música, tomou conta dele e as suas mãos, os seus
dedos, levantaram-se como que para agarrar o imaterial
fugidio daquele deslumbramento. Manuel fazia curvas com
o dedo indicador espetado, fechando os olhos, e abanando a
cabeça para um lado e para o outro. Até que, num assomo
de concentração, baixou a cabeça e ficou inerte, punhos
cerrados, levemente em cima do peito.
De certa forma, aquela música era muito semelhante à sua, e
era como se ele tivesse encontrado um ser com ele parecido,
e pudesse, ao fim de milénios de incompreensão, iniciar
um diálogo novo, numa linguagem para nós desconhecida.
Como se fosse um animal que compreendesse a linguagem
de um outro da mesma espécie. E ali ficou, em concentração
absoluta, a decifrar o sentir profundo do outro músico,
linguagem emocional inata – ele nunca aprendera música – que
a maior parte dos seres humanos perdeu. Deve ter nascido
com a Humanidade e, a certa altura, virou-nos as costas.
Agora, só nasce com alguns. Os que têm o dom. Um dom
65
cujo verdadeiro valor esses homens desconhecem. Um dom
que ignoram e que é o orgulho de todos os outros.
Quanto mais não fosse por respeito ao sentir profundo do
Manuel, fechámos todos os olhos e deixámo-nos embalar
pelo ondulado da nossa comoção. Por momentos, fomos
todos homens, sem desavenças nem teorias políticas ou
filosóficas. Por momentos, fomos todos fraternos no sentir
daquela espécie de aflição de uma beleza que nos excedia
de forma tão visível. Sim. Por momentos, fomos todos
irmãos.
66
II
A vida na prisão era, muito frequentemente, de uma
melancolia profundamente bela. Rui falava sobre a alegria
das gentes simples, que iam trabalhar logo de manhã com
energia, cantando a confiança de alentejos verdejantes,
amando as plantas e os animais na sua convicção de uma
pertença total à Natureza, amando os outros homens,
sem competitividades, nem invejas, enquanto Gonçalo
fazia de uma espécie de dona-de-casa, vendo se tudo
estava arrumado, em segurança – as janelas fechadas, a
programação eléctrica do farol com o relógio certo. Manuel
dizia coisas incompreensíveis, vagueando pelas salas, ou
sentando-se em frente do piano – como era seu frequente
costume –, sem tocar nas teclas, talvez imaginando melodias
que em si nasciam, ou, se calhar, apenas sentindo ondas
imperceptíveis que o piano talvez emitisse e que só ele
estivesse capacitado para receber. E assim ficava, longo
tempo, olhando para as teclas, cantarolando uns gemidos
que me faziam senti-lo demasiado distante, na lonjura da
evocação de nostalgias antigas, e doridas, ou das suas
melodias perdidas que não iria repetir nunca mais.
Um dia, iria agarrar-me com toda a força, para eu finalmente
me aperceber da importância do que me dizia:
– Um romance broástico.
67
Era um Manuel consciente do fervilhar da arte na sua vida,
desejoso de um pouco de imortalidade, que, abrindo ainda
mais os olhos, disse:
– Um romance de amor.
Seguro. Certo de que havia um futuro longínquo que esperava
por si. Um futuro acima de todas as esperanças humanas.
O amor. A arte. A viagem infinita. Estavam guardadas para
Manuel as maiores surpresas que algum homem jamais
poderia esperar. E só Manuel as merecia.
Eu passeava perto das janelas e olhava cá para fora, por cima
das escarpas, para ver o mar. E era como se o ambiente de
paz que reinava fizesse amansar as ondas, agora reduzidas
àquele mar frisado pelo vento que tanto me distraía, pareciam
cardumes de peixes a deslizar à superfície, obsessivamente,
sempre na mesma direcção, mas sem destino, voltando
sucessivamente ao ponto inicial para fazerem a viagem
de novo. Era impressionante a sensação de infinito – ou
mais do que infinito, como dizia o velho professor – que
o mar produzia em mim. E, com a sensação de infinito,
vinha a sensação de liberdade total, a ideia súbita de não
haver limites para onde podemos ir, uma total ausência de
pessoas e constrangimentos que nos possam impedir em que
dimensão seja, solidão absoluta. Uma sensação de liberdade
que, para sempre, associei àquela prisão.
O ambiente de paz adormecia Gonçalo, que nem se lembrava
de contradizer as deambulações emocionais de um Rui
que, apanhado distraído da sua militância, acabava por
implicitamente valorizar aquilo que sempre dizia odiar, que
era a imagem de felicidade dos pobres. E falava da alegria
destes, do bem que estavam na sua pele, da capacidade
enorme que tinham de se contentar com o pouco que tinham,
mais ainda, da facilidade com que misturavam o imaginário
e a realidade, tal era a fronteira ténue que a imaginação
operava em relação ao real. Eram desejos por vezes tão
68
simples, ou seja, esse imaginário era por vezes tão próximo
do que lhes era possível em termos de realidade, que
acabava por frequentemente se concretizar. Por exemplo, a
alegria de os filhos terem dois nacos de pão com carne para
o jantar. Ou terem um quarto separado para dormir. Ou água
quente. Como um homem que ele conhecia – e até se tinha
safado muito bem na vida porque tinha emigrado para a
América. Mais tarde, já regressado dos anos de emigração,
lembrava esses tempos pobres, e felizes, dizendo:
– Isso era um sonho.
Mas, depois, Rui caía em si e lamentava a ignorância daquela
pobre gente, condenando a sua idolatria da miséria. E dizia da
sua desgraça, por serem gente simples, sem desejos de ter
mais, de melhorar a sua vida; para mais, pouco instruídos,
ou mesmo analfabetos, o que também era material que
permitia alimentar essa tal ideia de simplicidade que ele
recusava. Dizia que o seu projecto não queria homens
vergados, submissos, felizes com o nada que tinham,
mas sim homens exigentes, suficientemente instruídos e
conhecedores do mundo para não se deixarem enganar e
explorar pelos capitalistas sem escrúpulos.
Mas ainda hoje sinto essa melancolia quando também
recordo os momentos em que a vida na prisão era de uma
beleza diferente e todos recomeçavam a discutir uns com
os outros. Era precisamente quando Rui falava sobre o
embrião de revolução que iria, mais dia menos dia, nascer
nos homens que trabalhavam de sol a sol nos alentejos
verdejantes, que Gonçalo argumentava se só existiam
homens bons no Alentejo e se no restante país eram todos
fascistas, como por exemplo os operários do Norte. Ao
que Rui respondia sobre a alienação das gentes acima do
Tejo, e da perturbação que o minifúndio tinha causado em
Portugal, e eu pensava que a teoria estava toda ao contrário.
Dantes eram os operários contra os camponeses, agora
era quase o inverso, o marxismo tinha uma capacidade
69
de adaptação brutal e, sem dúvida, era por ser demasiado
abstracto: o sonho perdurava, intacto, apesar das múltiplas
concretizações azaradas. O absoluto, não concretizável,
subsistia à degradação da experimentação.
Pensando bem, o que o marxismo teve de especial, o seu
segredo, mais do que uma doutrina política ou económica,
ou mesmo social, foi o ser uma doutrina emocional. Num
primeiro nível, houve um investimento importante na
dimensão social. E foi essa sociedade totalmente nova que
começou por dar ao marxismo a sua dimensão onírica. Mas,
mais do que a igualdade – que nunca se veio a verificar
nos regimes que levaram o marxismo à prática –, o que
o marxismo vendia como sociedade-limite (a sociedade
comunista) era a sociedade feliz. Uma sociedade tão perfeita
que as pessoas não haveriam de ambicionar ter melhor.
Por isso a ideia de limite. A partir daí não haveria mais
nada. O homem teria assim chegado a uma espécie de topo
evolutivo, a um máximo de felicidade possível. E porquê?
Muito simplesmente porque já não haveria ricos nem pobres,
explorados nem exploradores, não haveria diversidade de
classe social. Como se a felicidade dos homens pudesse
ser apenas determinada pela ausência de desigualdades
económicas ou de estatuto social. Nesse sentido, mesmo
falhando como doutrina social, o marxismo conseguiu manter
sempre a esperança no futuro, por ter, acima de tudo, uma
genial capacidade de imposição psicológica, emocional.
Enquanto tentava pôr ordem nas ideias, pensei o quanto
queria mesmo escrever um livro e tomei consciência da
importância dessa dimensão onírica, que não deveria nunca
subestimar aquando da definição final da minha própria
ideologia. Durante esses dois últimos anos, tinha acabado por
não escrever o livro – o que se compreende, pois ainda esperava
os outros –, mas tomara notas e mais notas, tantas notas e
registos que estava agora completamente entupido.
Houve um dia em que Gonçalo decidiu que também tinha
que intervir nas nossas conversas, afinal ele estava ali à
70
mão de semear e era indecente considerá-lo como uma
figura de corpo presente. Tendo consciência disso, acabou
por dizer, muito sério:
-Os homens precisam de se proteger uns aos outros.
Foi por isso que se juntaram em grupos alargados,
compostos por essa invenção única no mundo animal
que foi a família.
Rui discordava, falando sobre o que Gonçalo desconhecia a
propósito do mundo animal, tantos exemplos que ele podia
dar de famílias, mas Gonçalo não o deixou continuar.
-A família, tal como a conhecemos hoje em dia nos humanos, não tem paralelo – por mais que protestem – no
mundo animal. É o garante da protecção, mas, acima
de tudo, é o garante da formação dos indivíduos, da
sua educação, da sua preparação para a vida.
-Isso é o que acontece em todos os animais, para lá
do facto de essa educação de que falas ser o germe
do principal factor de desigualdade social: famílias de
ricos a praticar educação de ricos e de pessoas com
um nível educacional e cultural elevado, e famílias de
pobres a ensinar o pouco que sabem sobre a arte de
sobreviver, nem que seja a roubar
respondia Rui, que não conseguia deixar os outros falar, tal
era o frenesim que nele habitava, tão seguro que estava da
sua missão divina.
Mas Gonçalo também tinha as suas certezas e dissertava
sobre a diferença que havia entre o responder ao instinto
da alimentação e da perpetuação das espécies e o amor
e a protecção para toda a vida. Na Natureza, os animais
largam os filhos e abandonam-nos para criar outros, e
depois outros, e por aí fora. O suposto amor e protecção só
existe enquanto há dependência, depois termina. E mesmo
71
quando há dependência, muitas vezes abandonam os mais
fracos, ou deixam-nos para trás quando têm de mudar de
território ou de fugir dos predadores.
Mas esta era apenas uma versão racional da teorização de
Gonçalo, aquela que habitava aquilo a que os especialistas
chamam o “consciente”. Porque, lá por baixo, havia um
mundo vulcânico prestes a explodir. Muitas eram as vezes
em que falava num tom de alarme misterioso, dizia palavras
estranhas, impregnadas de lonjura e eternidade.
Responsável pela nossa segurança, mostrava um horror
absoluto perante a hipótese de uma qualquer falha dessa
segurança, receando o abismo de um mundo caótico se algo
abanasse e destruísse os alicerces da fortaleza normativa
que o protegia.
– O abismo do vazio.
O vazio era, para ele, o resultado de todos os aventureirismos,
a consequência terrível da permanente vontade de mudança
que havia nos homens.
– Mudar porquê? Teremos nós a certeza de mudar para
melhor?
O conservadorismo de Gonçalo era – percebia-se de forma
clara – ditado pelo medo.
– E quem pode decidir essa mudança? É por ensaios
e tentativas? Não, a incerteza acaba sempre com
a ausência. Ausência de normas, de pilares, de
referências. O caos.
Depois, mergulhava numa espécie de concentração absorta
e voltava às palavras estranhas que lhe surgiam, perdidas,
do mais fundo de si.
72
– Um dia, olhamos as nossas mãos e não temos nada.
Perdemos tudo. Só nos resta a memória longínqua.
Perdidos para sempre. Sem hipótese de futuro. A
felicidade habita a lonjura do passado, uma eternidade
antiga, virada para trás. O presente é o nada. E o futuro
o vazio.
E, num momento de perturbação profunda, revirando os
olhos como um alucinado
– O livre arbítrio é o fim da eternidade. Ou é a eternidade
da ausência. Como um gigantesco redemoinho no meio
do oceano, que tudo suga e suga para sempre. Como
o abismo do vazio.
Era como se nós não existíssemos. Falava agora só para si
próprio. O silêncio a toda a volta. A cabeça baixa.
– O livre arbítrio é a atracção do fim.
Por vezes, Gonçalo deixava lentamente de existir.
Mas, voltando a mim, e voltando ao marxismo, e até porque
também queria ter uma opinião perante aquela maluquice
toda, pensei em como é impressionante as pessoas,
sobretudo as elites, não terem percebido imediatamente
que tudo aquilo tinha que falhar.
Em primeiro lugar, porque a ideia de igualdade é muito bela
mas não tem nada a ver com a estrutura do ser humano. Daí
que o mundo actual tenha passado a considerar este conceito
num outro âmbito: o da igualdade de oportunidades. O que
tem toda a razão de ser. O homem busca a diferença, pois
ela é a base da identidade específica de cada um. Identidade
dos grupos, das nações, dos países, mas também dos
indivíduos. Ninguém quer ser igual ao parceiro do lado. E
mesmo que quisesse, não o seria nunca. É esse o grande
ensinamento da arte. Logo, uma determinada ideologia
73
basear a sua essência num conceito que pura e simplesmente
não existe, é votar-se ao fracasso. Aliás, podemos ir mais
longe e concluir que algo que é verdadeiramente específico
do homem, por oposição ao animal, é precisamente esse
desejo de diferença. A criação de uma individualidade por
oposição à ideia de manada.
Em segundo lugar, seria completamente absurdo pensar
que o homem pudesse algum dia chegar a um patamar
que não quisesse ultrapassar. Essa ideia de sociedade
parada, mesmo porque demasiado perfeita, é totalmente
inverosímil para quem quer que tenha estudado Antropologia
em profundidade. O homem, mais uma vez por oposição
ao animal, não se caracterizará por esse desejo de mais?
Assim que um homem atinge o seu sonho, mesmo que seja
o sonho de uma vida, começa logo a tentar descobrir outras
coisas que não conhece, que não tem. Ou seja, não pára
de procurar. Deste modo, imaginar uma sociedade parada,
sem futuro, sem sonhos, sem motivações para se ir mais
longe, é imaginar uma sociedade condenada.
Por outras palavras, a sociedade comunista, sonho do
marxismo, acaba por negar a condição essencial que a
fez nascer: o sonho. É uma contradição terrível, ninguém
percebeu que a magia do marxismo era algo que aquele
longo caminho iria acabar por fazer desaparecer. Como
aquela história que se conta sobre o facto de a existência
de um homem muito solitário o tornar altamente sedutor
para uma mulher, tendo ela assim o desejo de se juntar a
ele – movimento estúpido pelo facto de esse homem acabar
justamente por perder a característica que fez a mulher
apaixonar-se, ou, pelo menos, aproximar-se.
Em suma, o sonho daquela ideologia era criar uma sociedade
de homens parados, sem sonhos, sem futuro.
Mas, na penumbra do meu sonho, eis que surgia de novo a
Carminda, com os holofotes a ganhar luz a pouco e pouco,
e um som de piano muito ao longe. Perguntava
74
– Seria mesmo o professor de piano?
A voz potente, muito dirigida, a plateia em suspense
– Ou apenas
fazia um pequena pausa
– Ou apenas o ruído do mar na minha cabeça?
O nosso teatro era muito dramático. Porque o drama foi
o sucedâneo da tragédia, quando acabou o coro, e esse
instrumento solista – como nos concertos – que o coro
significava. Ele representava, os especialistas disseram-no,
uma voz humana, uma voz civil, num enredo que apenas dizia
respeito aos deuses. Porque a tragédia era uma história de
deuses. Pertencia-lhes. Quando o coro acabou, a trama passou
a envolver os homens e a tragédia passou a pasta ao drama.
Embora às vezes nem por isso. Houve resquícios do coro mais
tarde, quando a coisa já era só entre homens. Mas esqueçamos
isso. O que importa é que passou a chamar-se drama. E os
autores, dramaturgos. E tudo se vulgarizou assim.
Mas o nosso teatro não. Queríamo-lo trágico até ao limite.
Havia sempre uma voz longínqua que ecoava como um coro
ausente. Algo de tão forte, que nos ultrapassava a todos e nos
aproximava dos deuses. Algo acima de nós. Mas não eram os
deuses. Nem o fado da tragédia. Era algo de humano. Mas
num plano mais além. Queríamos um teatro que emocionasse.
Que deixasse os nervos em franja àquelas assistências cheias
de vontade de viver o impossível de um momento sublime.
Por isso, quisemos o nosso teatro cheio de poesia. Mas não
de uma poesia triste. Muito menos alegre. Uma poesia para
além disso. Para além do sentir concreto das gentes humanas.
Sonhámos uma poesia abstracta. Uma poesia absurda. A
poesia abstracta dos deuses. Como na tragédia.
E, por isso, sempre com a autorização dos autores, colocávamos pequenos poemas exteriores à peça no meio das
75
representações. A assistência não percebia o nexo, porque
não havia nexo a entender. As falas pertenciam a um mundo
de sensibilidade exterior, longínquo.
– Nas ilhas onde não há aves
Nenhum homem
Explicávamos aos autores que queríamos uma poesia
abstracta.
– O que se chama um homem
Procurávamos a poesia dos deuses
– Lá pode viver.
Como na tragédia.
Em terceiro lugar, a ideia marxista segundo a qual a felicidade
se conquista por se atingir um determinado nível económico,
ou social, também é completamente disparatada. É possível
que tal aconteça conjunturalmente, durante um período de
tempo limitado. É possível que o sonho de um pobre seja
ter dinheiro, e o sonho de um indivíduo nascido numa classe
inferior seja o de um dia pertencer à alta sociedade. Mas já
desconfio muito de que o sonho do primeiro pudesse ser o
de todos os indivíduos do planeta passarem a ser tão ricos
(ou pobres, porque iria dar ao mesmo) quanto ele, ou de
todos os homens pertencerem a uma mesma classe social
em privilégios e mordomias. De facto, deixava de existir
uma classe superior como referência (todos pertenciam a
uma classe que não era inferior nem superior).
Mas mesmo admitindo que o pobre de classe baixa
enriquecesse e acedesse à classe social acima, uma vez lá
chegado, será que se situaria num patamar fixo de elevada
felicidade? Depois de ser rico, e pertencer à classe social
76
que ambicionou, será que passaria a ter todas as condições
para ser feliz? Não é isso que a observação da sociedade nos
mostra, com milhares de exemplos de milionários ou herdeiros
de milionários que foram profundamente infelizes. Alguns
até se suicidaram. Se calhar, essas pessoas, recentemente
ricas e socialmente valorizadas, iriam acabar por achar que
o que as poderia fazer felizes era algo novo: serem artistas,
criarem cavalos, estudarem física nuclear ou outra coisa
qualquer. Coisa que nunca lhes teria passado pela cabeça se
não tivessem saído do meio extremamente pobre e inculto
em que se encontravam. Porque a verdadeira felicidade,
Marx não o percebeu, não é material, é espiritual.
Todas estas reflexões iam-me empurrando para o convencimento progressivo de que a minha ideologia tinha que
assentar em três bases: promoção da diferença, e da
individualidade, alimentação permanente do sonho, através
do desejo de atingir algo mais, ou mais além, e, finalmente,
um certo despojo do materialismo económico, com vista a
uma plenitude espiritual. Ou seja, a uma sociedade onde
a diferenciação social fosse o produto de uma distinção (o
tal mais) cultural, ou de conhecimento, e não económica,
ou de poder.
Em quarto lugar, e esse terá sido o erro mais óbvio, e imediato
também, o marxismo decidiu assentar tudo – bem sei que o
“socialismo” era um estado transitório, intermédio – na coisa
que os homens sempre mais odiaram a propósito do mundo
político: o poder ditatorial. Dizia eu que era transitório, mas
quem tivesse dois dedos de testa perceberia logo que era
de um transitório demasiado longo. E pura e simplesmente
porque esse poder intercalar só terminaria com a existência
da sociedade comunista que, por definição, era a sociedadelimite. Ou seja, o regime caminhava para um limite sempre
longínquo, pelo que o transitório tinha necessariamente que
durar uma eternidade.
Se, por um lado, todos deveriam ter percebido que as
ditaduras, sobretudo quando se legitimam a longo prazo,
77
nunca dão lugar a nada que não seja a sua perpetuação,
por outro, não passa pela cabeça de ninguém propor que a
opressão se cure com a opressão de sinal contrário. Porque
o que está errado na opressão é ela própria, e não o lado
de onde ela vem.
Assim, depressa se devia ter percebido que a solução para
o sofrimento e para o ódio era a generosidade e o amor.
O marxismo preconizou o prolongamento do ódio entre
classes – como é que ele podia, alguma vez, fazê-las
desaparecer?
Clara ficou então também a necessidade de a minha ideologia
assentar num pressuposto de liberdade individual, à maneira
dos legados de uma Revolução Francesa entretanto muito
esquecida. E este ponto transformava-se cada vez mais,
para mim, no aspecto essencial.
Isto, porque as pessoas esquecem, frequentemente, que
o que se opõe de forma mais intensa à ditadura não é a
democracia, é a liberdade. Porque o que está em questão
não é um problema de regimes políticos, mas um problema
de homens. O que faz cair as ditaduras é a opressão e a
negação da liberdade. Ninguém faz cair um regime ditatorial
por querer votar. Se os povos fossem inteiramente livres,
e – suponhamos – felizes, quem iria preocupar-se em
votar? O voto é um meio que conhecemos e usamos hoje
– poderemos não usar amanhã – para impedir que haja
atropelos à liberdade (o que sempre acontece no caso
das ditaduras). Não é um fim em si. O fim é a liberdade.
Se um líder governasse bem e em total liberdade para os
governados, quem quereria alguma vez promover eleições?
Não que se admita que essas eleições não pudessem ser
necessárias para legitimar o líder no poder. Mas não eram
certamente desejadas com ansiedade pela população.
Assim, a minha ideologia poderia eventualmente não obrigar
ao voto, mas teria sempre que obrigar à mais ampla das
liberdades.
78
Mas isto pensava eu no meu isolamento intelectual, solidão de
quem não podia partilhar os pensamentos com os companheiros
– a minha missão era secreta –, enquanto Rui falava sobre a
alegria das gentes simples, que cantavam em coro a confiança
da manhã e Manuel sempre aliviava a conversa, contando as
suas histórias irreais, feliz que estava de ver todos os outros
a discutir e a deixá-lo um pouco em paz
-Outro dia, nem me deixaram acender a vela e eu não
via o tinteiro para molhar a caneta para escrever aquela
carta azoástica ao Presidentário, se ele sonhasse que eu
estava aqui com tipos como vocês já me tinha deixado
sair, mesmo que fosse para mostrar o pirilástico àquelas
mulheres que vão àquela loja, ou então às mulheres
nuas.
e dizia “mulheres nuas” como se estivesse por escassos
momentos a recordar prazeres antigos que todos sabíamos
que não disfrutara, mas era a inocência da própria mentira
que nos seduzia, tão convicto que ele estava da segurança
do seu mundo perdido
– Vocês têm, aliás todos têm, uma invejástica de quando
as mulheres nuas diziam “Ó Manuel, tu és broástico”,
e vocês dizem que não é verdade, mas eu sei que elas
também queriam tirar a roupa e andar felizes, foi por
isso que o juiz me prendeu, o barbudo do hospital
psicolástico foi lá dizer que eu na prisão estaria mais
feliz, o barbudo deve ser um homem sexualástico
ao que todos ríamos e corrigíamos
– Deve ser homossexual
mas o Manuel não admitia correcções, porque o mundo dele
é que estava certo e nós não percebíamos nada a respeito do
que lhe passava pela cabeça e iria condicionar a percepção
dos homens nos séculos vindouros
79
– Os homens historásticos daqui a muitos anos vão
estar todos presos.
Manuel achava, sem dúvida, que, de todos nós, ele seria
o único a ficar para a História. E achava que todos os
como ele teriam que ter o mesmo fim entre grades. Não
concebia o futuro triunfo da sua liberdade. Doía-me o seu
não acreditar no homem. Mas, afinal, que razões tinha ele
para acreditar?
– Todos contra mim.
Não concebia um colectivo que não fosse opressor. A sua
maneira de opor o individual ao colectivo era concreta: a
oposição dele em relação aos outros. Em contrapartida,
o que eu queria construir era um colectivo baseado na
individualidade. Manuel recusava esse princípio e fazia-me
pensar: serão todos os colectivos opressores? Será tão
estúpido procurar o bom colectivo como procurar a boa
ditadura?
Era frequente sentir, quando ouvia o Manuel, que o verdadeiro
mundo da sabedoria existia, escondido, algures dentro
daquele homem que a sociedade perdera para sempre.
Mas também senti que tinha que avançar na organização
das notas do meu livro e, por isso, também senti que foi
assim muito claro para mim, desde sempre, que o marxismo
era uma ideologia pouco inteligente, talvez mesmo pouco
racional. Que tudo compensou com uma quase violenta
emoção que, como dizia há pouco, fez esquecer tudo o resto.
Uma emoção baseada em sentimentos nobres que envolviam
a protecção e a dedicação aos mais fracos. Uma emotividade
um pouco paternalista, convenhamos, mas muito própria
dos seres humanos: basta ver a ficção, ou os filmes, que
assentam nessa defesa dos mais fracos. Esse paternalismo
era o recurso primeiro dos filmes épicos, ou dos filmes sobre
o Oeste americano, em que o herói salva os mais fracos
80
da crueldade dos homens maus. Por isso o herói era bom.
Muitos artistas perceberam, rapidamente, que esses enredos
eram os que mais emoção causavam junto dos receptores.
E, para aumentar essa emoção, era frequente o herói ter
que salvar mulheres e crianças – os mais indefesos –, o que,
de certa forma, aumentava a crueldade dos outros. Assim
como também era frequente o herói arriscar a sua própria
vida, como aconteceu a tantos revolucionários marxistas,
ou comunistas, tanto faz.
Mas, acima de tudo, o marxismo teve algo que levou o
emocional ao seu estado supremo. Esse algo era o desejo
de mudar o mundo. Marx não queria compreender o mundo
nem os homens, queria transformá-lo. Havia uns posters,
antigamente, com a cara do Marx e com esta sua frase (mais
ou menos, já não me lembro bem): “Os filósofos, ao longo da
História, esforçaram-se em compreender e explicar o mundo
de diversas formas. Porém, o que importa é transformá-lo”.
Esta frase mostra o quão pouco ele estava interessado no
mundo verdadeiro e nos desejos dos homens que o habitam.
A sua preocupação era com a sua própria ideia. Com a
filosofia que tinha inventado. Mas isso agora não interessa.
O que interessa é que essa ideia da transformação do mundo
é emocionante. É bela e, simultaneamente, representa uma
aventura toda ela projectada para o futuro e para o além. Por
isso resultou numa quase religião. Na prática, é um truque
de magia simples: se as pessoas sofrem e não gostam do
mundo em que vivem, a ideia de o transformar vai passar
a ter uma força máxima. Como um absoluto. E ainda por
cima um absoluto cego. Como acontece precisamente com a
religião e, de uma maneira geral, com o sagrado. O mundo
novo. O sagrado de um mundo novo. O truque tem a grande
vantagem de as pessoas não pensarem, beneficia da total
ausência do racional. É como se se dissesse: “se não estás
contente, junta-te a nós”. E quem pode alguma vez dizer
que está contente? Muito poucos são aqueles que gostam
do mundo em que vivem. Porque há sempre razões de
insatisfação. O marxismo não diz: “se estás insatisfeito com
81
a tua mulher, ou se tens um filho deficiente, não podemos
fazer nada por ti”. Fala de uma forma mais abstracta: “se
queres mudar a tua vida, o mundo que te rodeia, e ser
feliz, torna-te comunista”. Vais ficar a amargar ainda mais
a vida inteira, porque essa coisa da sociedade comunista
perfeita, que é o objectivo último, só vai acontecer daqui a
três séculos. Mas vais sonhando com a coisa.
A minha grande dúvida era então se eu conseguiria, ou não,
introduzir um toque emocional deste tipo na minha ideologia.
Ser-me-ia possível anunciar um mundo novo? Começar do
zero? E propor uma revolução emocional? Mas, para o poder
ir parar às mãos de quem? Era para mim cada vez mais óbvio
que a sociedade é uma consequência de diversas filosofias,
de diferentes maneiras de pensar o homem. Contra uma
filosofia marcadamente económica, como poderia eu propor
uma filosofia antropológica? Era o que eu pensava sempre:
como é que os meus conhecimentos e o meu mundo de
antropólogo poderiam superar ou, pelo menos, igualar a
construção de filosofia e de sagrado do meu antecessor?
Do ponto de vista teórico, a minha filosofia era simples: o
cultural, e não o económico, devia condicionar o social. Mas
o como é que era a minha grande interrogação.
É claro que fui, ao longo do tempo, criando a minha ideia,
desenvolvendo o meu sistema. Mas também é verdade
que esperava que os outros respondessem, com a sua
longínqua e imensa sabedoria. Embora essa ajuda sempre
me tenha levantado a maior das dúvidas: como poderiam
contribuir para a solução do problema se não sabiam nada
de Antropologia, se não conheciam de todo a essência da
Humanidade? Eu queria uma ideologia feita a pensar nos
homens, uma ideologia feita para atingir o mais íntimo
dos seus segredos e da sua felicidade. Para esquecer a
essência do sentir dos homens já tinha chegado o Marx.
Mas talvez esses seres vindos do além pudessem, e era essa
a minha esperança, dar-me alguma ideia inteligente, algo
que se encaixasse plenamente na minha progressivamente
complexa visão das coisas.
82
Diferença, procura de mais – ou seja, de sonho –, plenitude
espiritual, em detrimento do material, e liberdade. Era
assim que eu via as premissas da minha reflexão, até fiz
um esquema em jeito de plano quase cartesiano, um eixo
horizontal e um eixo vertical opondo os quatro conceitos (na
realidade, os conceitos não se opunham – pelo contrário,
eram complementares –, daí o não ser um plano cartesiano),
sem dúvida para ver se isso ajudava às minhas reflexões
profundas.
O objectivo último era encontrar uma palavra, uma ideia,
que encaixasse no centro do esquema, um conceito que
fosse suficientemente amplo para englobar os outros quatro
conceitos.
Diferenciação / individualidade
Liberdade
Mais / sonho
Plenitude espiritual / espírito
E demorei horas a olhar para as quatro palavras mágicas
– diferença, sonho, espírito, liberdade – tentando integrá-las
no meu sistema reflexivo.
Quando, por vezes, me demorava a olhar aquele esquema
maluco (também não sei para que fui imaginar semelhante
coisa), e enquanto ia tirando notas infindas para a futura
construção do livro, os meus companheiros também
participavam com comentários. Embora desconhecendo o
pormenor do meu trabalho, iam reagindo às reflexões que
83
eu colocava no ar, Rui achando que eu estava a complicar o
que era simples, pois não era com conceitos complexos que
os homens iriam deixar de ter fome, Gonçalo dizendo que
as palavras essenciais não eram aquelas – devia certamente
propor a família, Deus, a pátria e mais qualquer coisa
do mesmo género – e o Manuel rosnando ideias avulsas
enquanto não voltava com aquela ideia – que eu sentia
atingir-me de forma certeira e profunda – segundo a qual
era incompreensível o prazer que certas pessoas tinham em
pensar aquilo que era bom para os outros, até porque, ainda
segundo ele, tudo terminava sempre em pensar sobre o que
é que essas pessoas deviam fazer, às vezes até pensar, para
o seu próprio bem.
– Eu não quero que as pessoas pensem em mim.
Rui dizia que ele era maluco, como se essa não fosse a
verdade oficial, verdade que eu sentia cada vez mais como
aparente.
– Quando pensam em mim é só para me chatear.
Manuel não se atrapalhava, lá continuando a falar a respeito
das mulheres nuas e sobre o porquê de não se poder despir
à vontade nas lojas
– Perguntei ao polícia se aquilo não era um loja de
roupa, se as pessoas não se podiam despir para vestir
qualquer coisa, eu não queria vestir nada, mas havia
uma mulher, imaginei-a despidástica de todo, e o
barbudo do hospital, que dizia que era psiquiástrico e
que só queria o meu bem, ele falava com muitos erres
e eu pensei que era “que ria”, que ele “que ria o meu
bem”, estão a perceber que era para rir?
Manuel ria alto, os outros com cara de parvos a olhar para
ele, enquanto eu pensava em como aquele tipo devia ser
estudado por gente competente, que entendesse o segredo
84
profundo que nele havia. Dizia aquelas coisas, parecia às
vezes que se divertia com ele próprio, ou com o nosso ar
meio apalermado. Depois partia para as escarpas, para
pensar, se calhar nas maluquices que iria dizer mais tarde. E
lá ficava horas, sozinho, a ver o mar, até lhe darem os calores
que o faziam voltar para ensopar a cabeça no lavatório como
os miúdos quando estão cheios de calor.
Mas Gonçalo, já recomposto, continuava o discurso que
deixara em suspenso há tanto tempo atrás:
– A família é o pólo impulsionador do amor em toda a
sociedade. Tudo começa aí. As pessoas que não foram
amadas no seio da família nunca amarão ninguém. A
família é o centro do amor, mas ao mesmo tempo é
ela que assegura o respeito pelos outros, assim como a
disciplina perante os interesses mais elevados do grupo
mais vasto em que nos inserimos.
– Dos mais poderosos, queres tu dizer
insinuava Rui, sempre atento ao menor deslize do adversário,
ou ao que ele achava serem deslizes, mas Gonçalo não
respondia às provocações e continuava, agora pedindo ajuda
à mais-valia da protecção divina
– Por mais que discutamos, só Deus alguma vez poderá
julgar-nos e dizer o que está bem e o que está mal,
vocês aqui podem dizer o que quiserem, mas, um dia,
tudo voltará ao seu devido lugar. Deus está só à espera
que encontremos o nosso caminho.
Foi aí que Rui disse a Manuel para dizer ao Presidente
que estávamos a ser vigiados por um guarda fascista e
apadralhado, quando Gonçalo terminava
– Não vale a pena insistir, quando morrermos havemos
de ter todos a mesma visão das coisas, eu não preciso
85
de ter razão já hoje, mas conforta-me saber que,
apesar de ainda não termos morrido, já sou eu que sou
guarda, enquanto vocês estão presos. Quer dizer que
a sociedade não está tão equivocada assim, pelo que
não faz sentido eu estar a gastar o meu latim com estas
paredes em forma de seres humanos que sois vós.
– Parede é o que tu vês cada vez que abres os olhos,
já falas como os padres: “que sois vós”; daqui a pouco
estás a rezar uma missa aqui ao carneirame.
Rui não desistia de um sonho que vivia de uma outra
religião.
Eu voltava a olhar para o plano das quatro palavras inertes, à
espera de uma luz – diferença, sonho, espírito, liberdade – e
pensava em como é que essa luz podia ser aquela que o tio
Saúl tinha anunciado, ele que não tinha acompanhado toda
esta minha reflexão.
Houve um dia – já contei, mas vou contar outra vez, que é
uma maneira de contar melhor – que me falou da existência
de um segredo que estava associado àquilo que eu iria
procurar toda a vida. Ele sabia que o meu destino era ajudar
os homens a serem livres, a encontrarem-se consigo próprios
e a, dessa forma, se salvarem.
Perguntei-lhe, como é natural, por que razão não me
dizia o segredo logo. Poupava imenso tempo, a mim, e
à Humanidade. Ele riu da minha simplicidade inocente e
explicou que apenas me diria uma frase misteriosa para me
ajudar a descobrir. Ele não podia dizer a não ser através
dessa frase “codificada”, porque éramos todos vigiados e não
podíamos, sobretudo eu, correr quaisquer perigos. Como
naqueles filmes de espionagem, saber o segredo era meio
caminho andado para me acontecer qualquer coisa.
Relembro a frase terrível: “mergulha em ti, e encontrarás
o segredo do mar”. O tio Saúl disse, solene, que este era o
86
maior segredo do Universo. Tinha sido o velho padre, à hora da
morte, que lho havia revelado. E eu não podia saber mais.
Mas havia uma outra razão, se calhar mais válida, para ser
melhor não me contar. Ele conhecia o segredo, mas não sabia
o porquê de ter que ser essa palavra e não outra. Nem tão
pouco sabia como explicar a sua indiscutibilidade aos outros.
Em contrapartida, eu, se passasse muitos anos a pensar
sobre o assunto, para descobrir a palavra, iria perceber tudo.
Assim, o meu objectivo último passou a estar prisioneiro do
porquê dessa palavra – o segredo resumia-se a uma palavra –,
e mais, do porquê de essa palavra ser a única que podia ser
usada para a salvação dos homens.
Mas, mesmo que quisesse, o tio Saúl não podia dizer mais.
– “No meu país há uma palavra proibida.”
Não, ele não podia dizer. Mas como pensar que o segredo
do mar pudesse alguma vez estar em mim?
O tio Saúl foi claro: era um segredo que respondia àquilo
que toda a vida iria procurar, por isso, nem à hora da morte,
agarrando-me as mãos com toda a força que tinha. À hora
da morte. O tio Saúl tinha a certeza de que eu iria encontrar.
Uma palavra que salvaria a Humanidade. E essa palavra
estava dentro de mim. Algo que a vida me fez perder e que
eu guardei no mais fundo de mim. De uma forma muito séria,
foi o que ele disse. O padre tinha descoberto uma verdade
grandiosa nuns livros muito antigos, ou nas aldeias dos mais
pobres que passava a vida a visitar. Palavra proibida, frase
tão bela – conheci esse padre na infância.
Tenho a sua imagem ainda nos meus olhos, apesar do dorido
da distância. Já não me lembro do nome dele, mas sei que
era o maior amigo do tio Saúl, apesar do ódio que o tio e
os amigos dele tinham àquela gente. Andava com roupa
de frade, ou monge – não sou grande especialista nesses
87
assuntos –, que era roupa de quem não precisava de roupa
e podia viver sem se preocupar com ela. A única coisa
que variava era a roupa interior que, dizia ele, era velha e
oferecida por pessoas com dinheiro, lá na igreja. Lembro-me
de o padre falar – ele falava a sorrir – da diferença entre
religiosidade e religião, pois a religiosidade era um sinónimo
de adoração, a Deus e aos homens, enquanto a religião era
um hábito e um mecanismo de poder em benefício da Igreja.
E dizia que tal era válido para todas as religiões. E o tio Saúl
dizia que ele era um bom homem, se não adorasse Deus e
só adorasse os homens teria sido um homem perfeito. E o
velho padre sorria sempre e continuava a dissertar sobre
como a religiosidade podia, por exemplo, ser entendida num
sentido mais lato, caso dos artistas que adoravam a sua arte,
uma vez que a colocavam acima de todas as restantes coisas
que os rodeavam. Ou os cientistas. Ou os revolucionários, e
olhava de soslaio para o tio Saúl – que não se desmanchava
e dizia que estava de acordo com ele.
Eu nunca escrevi nenhum diário, mas escrevi coisas desde
muito pequeno, assim como se fossem crónicas, diria hoje.
Um dia descobri um papel amarrotado onde tinha escrito o
seguinte:
Papel manuscrito nº 3 (tempo anterior à
prisão)
Hoje estive a brincar com a Amália, jogámos
a um jogo de formar palavras, assim para ver
quem tem mais vocabulário, disse o professor de
Português. Nós somos bons alunos a Português,
mas isso não chega. É preciso estar com muita
atenção e esforçarmo-nos para imaginar palavras
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muito difíceis, que é a melhor maneira para
poder derrotar o outro.
É claro que perdi. Enquanto ela estava muito
preocupada em pensar nas palavras, eu não
parava de olhar para o decote dela, trazia uma
camisa, ou blusa, não sei, assim mais aberta e
eu conseguia ver-lhe as maminhas, que já são
grandes como as das mulheres. E senti-me mal
por estar a fazer isso, e também porque era como
se a Amália passasse a ser uma pessoa diferente
daquela que sempre foi para mim. Eu tinha
vontade de lhe mexer nas maminhas, mas ela
é como se fosse minha irmã. Depois, fiquei a
pensar e não sei se hoje não tenho sentimentos
diferentes em relação a ela. Talvez gostasse que
fosse minha namorada. Já muitos dos meus
amigos as têm, mas eu não consigo interessar-me
por outras raparigas, porque senão passo a dar
menos atenção à Amália. Mas também não tenho
coragem de lhe falar nisso. Tenho medo de que
as coisas entre mim e ela deixem de ser como até
aqui. Tive vontade de lhe dar um beijo na boca.
Mas tenho a certeza de que ela me daria logo
um estalo e não iria querer falar mais comigo.
89
Pensei pedir ajuda ao tio Saúl. O tio Saúl sabe
sempre o que devemos e não devemos fazer. O tio
Saúl e aquele padre amigo dele sabem tudo sobre
a vida e sobre os homens e estão sempre muito
preocupados em ajudar as outras pessoas. Mas
não têm mulher. Se calhar não sabem nada sobre
o que pensam as mulheres e o modo como elas
se comportam. Que faria a Amália se lhe desse
um beijo na boca? Será que eles conseguiam
dizer-me o que ela faria? Se calhar nunca mais
queria saber de mim.
O tio Saúl e o padre passeiam muitas vezes na
praça, de um lado para o outro, conversando
prolongadamente, mas baixinho – nunca se sabe
muito bem quem haverá ali por perto –, às vezes
de braço dado, o padre com umas longas vestes
castanhas, e eu lembro-me muito bem de quando
era mais novo e via esses passeios ao anoitecer,
e em como tentava adivinhar as conversas que
tinham. Eles nunca se riam, falavam sempre de
coisas muito sérias, coisas que eram da política
e que tinham a ver com o país e com os homens
que mandavam e que impediam a felicidade
das outras pessoas. Eles tentavam sempre ajudar
os outros. O Tio Saúl tinha muita força e foi
90
a pessoa mais corajosa que alguma vez conheci.
Um dia atirou-se a três homens que estavam
a maltratar uma rapariga e bateu-lhes com
tanta força que os deixou a todos no chão. Não
bateu muito, bastou um soco grande em cada
um, um soco seco, que fez um grande eco em
redor. O tio Saúl e o padre eram como heróis,
e eu via-os a passear na praça, às vezes ia ao
lado deles – suficientemente afastado para não
ouvir a conversa – e fazia de conta que estava a
acompanhar o que iam falando. Normalmente
não ouvia nada, mas lá ia, a fingir que pensava
em coisas dos adultos, se calhar sem conseguir
pensar em nada a não ser na minha pequena
vida do dia-a-dia. Mas às vezes ouvia mesmo. E
eles não se ralavam. O tio Saúl sorria para mim
e fazia-me uma festa na cabeça com energia
– Grande homem.
Eu não era homem, mas era como se fosse. Porque
a grandeza dos homens está nos seus sentimentos.
E eu já sentia muitas coisas que não tinham
muito a ver com a minha vida de criança.
Por momentos, não podia imaginar-me mais
importante. E mais feliz.
91
Eu sabia que aquele padre era o único homem a
quem o tio Saúl pedia para lhe ensinar coisas,
eu não sabia o quê, tinha sempre a sensação de
que o tio Saúl já sabia tudo, mas sei que uma
noite vi o tio Saúl sozinho a chorar e pergunteilhe o que tinha. E ele, que nunca me tratou
como se eu fosse uma criança, mesmo quando era
mais pequeno, explicou-me que o padre o tinha
levado a uma aldeia distante, onde as pessoas
eram muito pobres e não tinham que comer, e
estavam muito sujas. Havia uma família em
que o pai estava na cama sem se poder mexer, e
não podia trabalhar, e todos viviam quase sem
roupa, apanhando no campo ervas e pequenos
frutos para se alimentarem. Então o tio Saúl
contou que um dos filhos desse homem, que
tinha a minha idade, o convidou para entrar
na cabana e perguntou se ele queria almoçar e,
indo procurar uma faca toda torta e ferrugenta
que tinha, partiu uma bolota ao meio para
comerem os dois.
E o tio Saúl então calou-se, não me contou mais
nada, mas tinha os olhos cheios de lágrimas, e
eu nunca mais me esqueci dessa noite. Percebi
que os grandes homens também choram, e percebi
92
também que era por isso que ele gostava tanto
daquele padre, a andar sempre de um lado para
o outro, de terra em terra, a pedir coisas a toda
a gente, mas não era para ele – que ele também
não tinha nada –, era para dar às pessoas dessa
aldeia, e era por isso que o Tio Saúl dizia
que ele era o melhor homem que havia sobre a
Terra.
Esta religião, ou religiosidade, não era a de Rui, nem tão
pouco a de Gonçalo. E, por isso, sempre que me falavam
em religião, eu dizia, com olhar ausente, que as pessoas
não sabiam do que estavam a falar.
A recordação deste episódio faz-me pensar o quão fútil pode
ser a minha preocupação filosófica em escrever livros que
fiquem para a História. Mesmo que esses livros sejam sobre
as formas teóricas de fazer felizes os homens. Ao mesmo
tempo, e contraditoriamente, dá-me energia para tentar
mudar o mundo, como o Marx, embora de outra maneira.
Mudar o mundo. Como eu compreendo a paixão de Rui. E como
compreendo aquela tristeza profunda do tio Saúl quando se
confrontava com as misérias de um país aprisionado. Mudar
o mundo é a missão que trago da infância.
Um dia, foi combinado que faríamos um teatro na prisão.
Representámos uma peça sobre a infância. Era uma peça
muito pequena. Não sei se apelava a alguma especial
mudança do mundo, mas eu queria muito ver o Rui a
representar a sua fala final. Era uma parte muito poética,
como sempre, mas também muito libertária, muito adequada
ao revolucionário que ele era.
93
Ao Manuel, coube-lhe um papel menor. Mas andava radiante
a decorar o texto. Escrevi-lho em três folhas de papel
diferentes, e ele pousou-as, todas três, no chão, lado a lado
mas afastadas. Depois, deitou-se de barriga para baixo para
ler a primeira, esteve naquilo cerca de cinco minutos e depois
rebolou na direcção da segunda folha, ficando um pouco
de barriga para cima para ver se tinha decorado o texto.
Se tivesse decorado, rebolava para direita, na direcção da
segunda folha, e punha-se de barriga para baixo, de novo, a
lê-la. Se não tivesse conseguido, rebolava para a esquerda
e retomava a posição inicial. E esteve nisto durante mais
de duas horas.
Rui começou por sentar-se num sofá, mas não aguentou.
Estava profundamente abalado com o texto, embora não
tivesse tido a coragem de dizer nada. Eu, propositadamente,
não lhe tinha dito quem era o autor. Deste modo, ele estava
desarmado. Podia ser um autor de direita – não, de direita não
podia. Mas podia ser um homem da esquerda não comunista,
como são todos os homens de esquerda – coisa que ele não
achava. Achava antes que essa gente era perigosíssima.
No entanto, também podia ser comunista, por isso, ele não
podia dizer mal. O texto era suficientemente incerto, de
uma arte muito distante de qualquer concretização política.
Pelo sim, pelo não, não fez qualquer comentário. Mas a sua
sedução era evidente.
Enquanto o Manuel se ia rebolando de um lado para o outro,
agora fixando as falas através de movimentos dos dedos
como se estivesse a relacioná-las com notas de música,
Gonçalo sentou-se na mesa grande, onde costumávamos
jantar, e pôs-se a decorar os textos com papel e caneta
ao lado. Perguntei-me se estaria a pensar fazer “cábulas”.
Tomava notas esquisitas, como se imaginasse uma longa
mnemónica.
Rapidamente confirmei a minha suspeita:
– Não podemos ler?
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Respondi que, naturalmente, só nos ensaios. Mas ele não
parecia convencido
– Mas não vai assistir ninguém à representação da
peça, pois não?
Gonçalo não concebia a grandeza da arte. Não entendia
a solenidade do momento da representação. Nesses
momentos, não podia haver papéis nas mãos. Porque as
mãos também eram arte. As mãos, Daniela fazia-o melhor
do que ninguém, eram o impulsionador maior da comoção.
As mãos e os olhos. E a voz. Fui ríspido, disse-lhe que
ninguém podia ler.
Mais uma vez, Gonçalo tinha medo de falhar. O horror da
incerteza.
– E se eu não me lembrar? Se houver uma branca?
Ele não conseguia lidar com a ameaça do nada. Com o seu
abismo do vazio. E a arte dramática é isso: a confrontação
com a hipótese de triunfo em paridade com o risco de
fracasso. Porque só com uma grande emoção o actor
consegue a comoção geral. E o movimento do público a
erguer-se, e a bater palmas com força, e a gritar vivas e
bravo (em francês, claro). Mas isso, Gonçalo não iria nunca
sentir. Porque nunca o iria viver.
Quando o Manuel acabou de decorar as suas pequenas três
frases, convidei-o a pintar o cenário comigo – tínhamos
mandado vir tintas para trabalhar num velho biombo que
lá havia, já meio roto mas enorme, de um pano amarelo
desbotado. A excitação de Manuel era imensa.
Uma das frases que ele tinha que dizer era
– Qual Tarzan
Mais ano, menos músculo
Eis que salto de árvore em árvore.
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E lá tive que lhe explicar quem era o Tarzan para ele
perceber.
A dada altura, Manuel pintava o cenário com as mãos,
esfregava-as na lona do biombo, ora de um amarelo mais
claro, ora de um amarelo mais escuro, e começou
– Vou dizer assim: qual tarzanástico, pensas que sou
algum macacório?
E olhou para mim de lado, mas eu não reagi. Voltou então a
pintar, agora besuntando a tinta com os dedos e passava-os
pelo cenário, a tinta muito espessa e a dedada larga, como
um quadro de Van Gogh. De vez em quando, olhava para
mim a pedir aprovação. Depois, dizia:
– Vou dizer antes assim: qual tarzanástico, tens
músculos de macacório!
Não resisti…
– Tens que dizer isso como deve ser. Não te armes em
maluco, que não és.
– Sou, sou malucório de árvore em árvore, Tarzanástico
não é saltitão!
E foi a correr à cozinha buscar uma colher pequena para
pintar papoilas. Apertava o tubo da tinta para a colher
e depois deitava na lona, como se estivesse a medir as
quantidades. Com este processo, encheu a base do biombo
de pequenas bolas vermelhas. Quando as pequenas bolas
estavam quase a secar, empurrava o centro com o dedo, para
ficar mais fundo e fazer sobressair as “pétalas” em relevo.
De repente, com ares teatrais, exclamou:
– Isto está biombástico! Vamos fazer a peça!
96
Representámos a seguir ao jantar.
Rui estava confiante mas muito calado, Gonçalo continuava
angustiado e Manuel tinha o ar de quem podia fazer qualquer
coisa, de bem ou de mal.
Comecei eu, para ambientar – era o que tinha os textos
mais longos, mas já os sabia de cor.
Depois, foi o Gonçalo, que representou com pouca abertura,
mas com uma perfeição total de texto e de entoação.
Rui estava estranhamente direito, totalmente concentrado
no seu dizer
– Ficou da infância a febre
De correr parado
pelas estradas
Rui de preto, o cenário, muito amarelo, ao longe, como uma
seara alentejana. Aqui e ali, sobreiros e também oliveiras
que pareciam ter crescido sobre pedras. Mais imperceptíveis,
as papoilas do Manuel. E era como se se ouvisse o vento
– talvez houvesse uma janela aberta algures no farol
– Podes chamar-lhes versos, são viagens
Versos da infância, que corriam parados pelas estradas.
– Ficou da infância a fisga
De arremessar
ao vento
Rui sentia muito. E inclinou a cabeça para trás, como se
estivesse de cabelos ao vento e como se, no verso final,
estivesse concentrada toda a coragem dos homens
– Podes chamar-lhes versos, são pedradas.
97
Rui disse bem, terminou bem, com muito sentir. Todo ele
tremia, quando olhou para mim, comovido, sem dúvida para
me agradecer aquele momento de libertação.
A peça estava num andamento perfeito, e já muito próximo
do final. Manuel tinha as falas finais, e eu estava ansioso por
perceber o que é que ele ia acabar por fazer. Foi quando ele
se curvou e estendeu os braços na direcção da hipotética
audiência, e declamou:
– Qual Tarzan
Mais ano, menos músculo
Eis que salto de árvore em árvore
Fiquei profundamente emocionado. Parecia um profissional.
As suas falas eram todas muito juntas e contavam uma
pequena história no final da história principal da peça
– A floresta é densa
E a noite imensa
Diz-me Chita
E baixou-se, como se estivesse a falar com a macaca. A
presença em palco do Manuel era de tamanha grandeza,
que Rui abriu os olhos como se ali tivesse aparecido uma
alma do outro mundo. E, lentamente, num pleno de emoção
controlada, Manuel terminou
– O caminho
a infância
O caminho da infância, por onde é?
Foi a primeira vez que vi o Rui chorar.
98
III
Foi um dia que o Manuel me sentou numa cadeira perto da
vidraça virada a Sul e, buscando uma cadeira também para
si, me explicou a sua urgência em falar comigo. Eu seria o
único capaz de o poder entender.
Depois de várias hesitações, e tosses breves e provocadas,
disse-me, da forma mais brusca e desajeitada que seja
possível imaginar, que o sonho da sua vida era escrever
um romance. Estava tão sério, e olhando-me directamente
nos olhos, que eu tive vontade de rir. O que me acontecia
frequentemente na sua presença.
Tendo talvez percebido o que me passava pela cabeça,
agarrou-me com muita força, certamente para eu sentir
que se tratava de algo muito grave, e, abrindo ainda mais
os olhos, disse:
– Um romance broástico.
Fiquei curioso em deslindar o que é que ele entendia como
sendo um romance – seria uma história que ele tinha para
contar?
– Quero viver o resto da vida com uma mulher, aquela
que vos expliquei um dia, mas aqueles parvoásticos
não acreditam em mim, e começam a rir e não me
deixam escrever uma carta ao Presidentário, como é
99
que eu vou escrever um romance, se dizem que eu sou
ignorástico?
Percebi que Manuel tinha dois problemas, o do romance e o da
mulher. De repente, não consegui imaginar qual dos dois era
mais virtual. Não o via, claro, a escrever qualquer romance
que fosse, mas também não o via ligado emocionalmente
a uma pessoa, tal era o isolamento libertário em que vivia.
Também não percebi qual era a ligação entre uma coisa e
outra, mas essa ligação existia, ele explicou:
– O romance é para explicar que os homens podem
andar nus e podem ver as mulheres nuas.
E, como sempre que falava de mulheres nuas, ficava com os
olhos líquidos e olhava o longe. Não dizia mais nada durante
alguns minutos e eu aproveitava sempre para desviar o
assunto, ou ir-me embora, mas, naquele dia, fiquei com
algum interesse em fazer-lhe mais perguntas sobre essa
ligação estranha entre o romance e as mulheres nuas.
Ele olhava o longe, como eu fazia em miúdo, para me sentir
filósofo, ou para me posicionar superiormente como um
pensador em avanço em relação à minha idade. Não sei bem
em que é que pensava – como o Manuel, em que pensará
ele agora? –, talvez no meu destino de pensador do devir
do mundo, da sociedade dos homens. Pressentia que tinha
uma missão difícil pela frente, e ficava horas com os olhos
postos no limite do horizonte, à espera do futuro grandioso
que me estava reservado, ou à espera de uma qualquer coisa
que não sei. Parado, olhando o longe, entrava num outro
espaço – o espaço turvo da vida imaginada –, e talvez num
outro tempo. Uma grande pedra para me sentar, um ramo
de árvore, transformado em simples pau, para ir batendo no
chão, e as garras do sonho e da imaginação caíam sobre mim,
fazendo-me partir na direcção de mundos belos e perenes,
onde só o que era digno de perdurar existia. Era miúdo, os
outros brincavam e pulavam de alegria. Mas eu tinha um
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mundo para organizar, uma enorme responsabilidade pela
frente. Não podia pular. E ali ficava, sonhador, à espera de
que a vida concreta tomasse de novo conta de mim. Só
quarenta anos depois iria entender o que se passava comigo
nesses momentos.
Manuel olhava o longe e, de repente, fez uma pergunta que
me pareceu sair-lhe com muita dificuldade:
– O romance não é aquilo que vocês chamam arte, que é
o que fala sobre as coisas mais broásticas do mundo?
Acenei com a cabeça e tentei ajudá-lo:
– O romance é uma forma de arte, sim. E a arte pode
ser de muitas maneiras, pintar, cantar, dançar, tocar
música, e por aí fora. O romance pertence a uma forma
de arte que se chama a literatura. E é também verdade
que todas as artes se dedicam de uma maneira geral
a coisas que são muito bonitas. Chamamos a isso a
beleza…
– É o que é broástico?
– Sim, Manuel, é o que é broástico!
E lá ficou ele a remoer as ideias e a falar para dentro,
desviando o olhar – que era sinal de estar envergonhado.
Fez uma pausa grande, e eu senti uma dor profunda que
o percorria. Olhou o mar, mas percebia-se que não estava
a ver nada. Tinha os olhos líquidos, olhava o longe para
eu não ver. Como quando queremos que não nos vejam
chorar. E levantou-se para se poder afastar um pouco e,
discretamente, secar os olhos. Quando chegou perto de uma
das janelas, fez um movimento brusco para apanhar uma
mosca. De vez em quando fazia isso. Depois, atirava a mosca
com força contra a janela para a mosca cair, atordoada, e
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para, em seguida, a apanhar e observar com toda a atenção
e delicadeza.
Naquele dia, a fúria do gesto fê-lo libertar-se da sua
momentânea escravidão emocional:
– Então, vês? Eu quero mesmo escrever o romance
para que ela saiba que estou a dizer coisas sobre ela,
que sou um tipo literástico, como disseste, e que os
homens podem andar nus para fazerem as coisas como
quiserem…
– Para serem mais livres?
– E para fazerem sempre aquilo quando dói aqui à
esquerda…
– O que é aquilo, Manuel?
– Aquilo quando estão nus e fazem com as mulheres
nuas…
Apontava à esquerda, para o coração, dizia que era quando
lhe doía que queria a tal mulher, de cuja existência eu
duvidava, e insistia em dizer que era a mulher mais broástica
do mundo.
Manuel apontava à esquerda e dizia que tinha saudades
dela, e que a queria só para si, para estarem juntos, os dois
nus, e também queria que ela o admirasse, que o achasse
digno de estar com ela
– Vou ser um homem literástico, sabes?
E voltou a olhar para a mosca, tão indefesa quanto ele
perante a grandeza infinita de algo que os transcendia.
Pegava na asa, pendurava a mosca e olhava para ela
muito de perto, para descobrir um qualquer mistério que a
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habitava. Manuel amava os animais, apesar da sua episódica
brutalidade. Porque Manuel amava a vida. Amava-a por
dentro, não sei bem explicar. Esse amor devia nascer-lhe
numa qualquer parte do corpo que ele desconhecia, que era
de onde lhe vinha a música e a imagem das mulheres nuas
que lhe nublava o olhar.
O romance, percebia eu lentamente, nascia-lhe desse mesmo
sítio nas profundezas de si e transformava-se repentinamente
numa necessidade absoluta de vida. Como a música, quando
dele transbordava. O romance era o instrumento do seu
triunfo sobre a maldade dos homens que sempre o haviam
confinado à loucura e à prisão. Era para se elevar acima das
suas capacidades, para ser digno, para sair vitorioso desse
desafio, para cumprir um sonho, não sei.
Manuel queria escrever um romance sobre a liberdade
e sobre a beleza. E, certamente, sobre o amor. Era esse
amor que lhe fazia doer à esquerda, sonhando o amor
com uma mulher que tinha visto algures – numa revista,
provavelmente – e que tinha idealizado a vida inteira.
E eu senti em mim o enorme poder da arte. A força brutal
do seu apelo. Um homem simples, como o Manuel, sentiu
esse chamamento – vontade súbita que tanto me assolava,
mas que eu recusava com quantas forças tinha –, de como
que uma projecção na transcendência. Às vezes, pensava.
Escrever um outro tipo de livro. Entregar-me à arte. Irmanar-me
aos deuses. Escrever um romance. Partir para o não-mundo
da beleza sublime.
Mas achava que não podia. Não podia abandonar os
homens para seguir os deuses. Tinha que ajudar os meus
semelhantes, como o Prometeu. E como o prometera, a
mim próprio, há tantos anos. Que não iria ceder ao que
considerava ser uma cobardia, traição de abandonar este
mundo para viver nesse outro, tão sedutor de plenitude.
Não. Tinha que ficar com os homens e dar-lhes uma outra
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espécie de fogo para se aquecerem. O fogo da esperança.
A idealização da sociedade perfeita. Tinha que escrever o
meu livro e dar-lhes a salvação para o seu futuro. Não podia
pensar só em mim, no meu prazer.
– Como se escreve um romance?
Manuel queria saber da arte da escrita, ele só conhecia o seu
dom. Ou, se calhar, não conhecia, pois ele tocava música
como respirava. E quantos de nós sabemos como funciona
o nosso sistema respiratório, apesar de termos respirado
toda a vida?
Desde cedo que eu tinha decidido imaginar uma ordem
nova. Outros chamavam-lhe o princípio unificador. Tinha
que descobrir uma palavra. O tio Saúl soube-o sempre. Essa
palavra estava guardada para mim. E algures dentro de mim.
Perdida. Os filósofos diriam que era um conceito novo. A
criação dos conceitos é a sua profissão. Como aprendemos
nos livros. Mas o que eu procurava era uma palavra. Quando
me falaram de conceitos, já era tarde. Procurava uma palavra
há muito. Uma palavra de um tempo anterior aos livros.
Os livros ensinavam os conceitos dos filósofos, cada um
tinha uma série de conceitos inventados só para si, para criar
distinção suficiente em relação aos outros. Assim como os
artistas, queriam ter também as suas especificidades. Um
professor dizia, já não me lembro qual nem em que período
da minha vida, que a Filosofia estava a meio caminho entre
a arte e a ciência – copiava, sem o sabermos na altura, as
ideias de um filósofo para nós desconhecido. Assim uma
espécie de meio-termo. Como aquelas pessoas que não
tomam posição quando há problemas, para receber elogios
dos dois lados. Isto, pensava eu, quando era miúdo, e
quando ignorava tudo a respeito da Filosofia.
A diferença entre a palavra e o conceito é uma questão de
sofisticação. O conceito é complexo, leva anos a construir.
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Para que nada possa entrar em contradição. Como um
edifício que não pode desabar. E quanto mais difícil de
entender, melhor. Mas eu procurei apenas uma palavra.
Simples. Natural. De entendimento imediato. E sensível.
Sem grandes reflexões. Uma palavra para todos poderem
entender dentro de si. E à qual pudessem aderir, qualquer
que fosse a sua instrução, a sua história de vida, a sua
maneira de ser. Porque a minha palavra era para sentir.
Enquanto os conceitos são para pensar.
– Um romance de amor é uma história de amor?
Manuel, Manuel, porque me fazias essas perguntas a que
ninguém sabe responder?
– Um romance é as pessoas fazerem com uma caneta
o mesmo do que tu fazes com as teclas do piano. Acaso
tu contas, no piano, uma história de amor?
– Não sei.
– Também no romance as pessoas não sabem muito
bem. É o que lhes sai lá de dentro. Uma história, um
sonho, algo que imaginaram. É muitas vezes qualquer
coisa que os outros não entendem muito bem, pois essa
coisa é só nossa, está dentro de nós.
– Como o eu andar todo nuzástico – pode ser isso um
romance?
Manuel, como podia eu explicar-te o maior dos mistérios
do homem? Como podia eu falar-te da criação da arte?
Entenderias alguma coisa se te falasse do absoluto e da
transfiguração?
– Não Manuel, o tu andares nu acontece no mundo em
que vivemos. O romance, ou seja, o que está dentro
do romance, não pode pertencer a este mundo, mas
105
a um outro. É nesse outro mundo que aquilo que é
dito no romance tem significado. Como a tua música.
Achas que é possível explicar tudo o que se passa na
tua música através do que se passa na nossa vida de
aqui, de todos os dias? Percebes? O romance não fala
do que existe. Como toda a arte, fala do modo como
nós transformamos essa realidade para construir uma
outra realidade, diferente, onde tudo é grande, forte.
Sobretudo, duradouro. Onde nos sentimos nervosos,
com tremores, a sentir muito cá dentro.
– Como quando vemos as mulheres nuas?
– Sim, é parecido com o que sentimos quando vemos
as mulheres nuas.
Eu não conseguia falar-lhe a não ser usando os seus próprios
conceitos. E não conseguia arrancá-lo à realidade. Ele olhava
agora com toda a atenção para a mosca, sem dúvida com
medo de perder a ligação com o seu mundo concreto, num
momento em que eu o arrastava a todo o custo na direcção
do etéreo e do irreal. Ele agarrava-se à mosca, mas eu
voltava a tentar
– Sim, é parecido com o que sentimos nessas alturas,
mas, ao mesmo tempo, não é, porque essa outra vida
não existe realmente, é só uma coisa que imaginamos
e sentimos dentro de nós.
– É tudo mentira, no romance?
– Não, não é mentira, mas também não é bem o que se
passa na realidade. Porque não é a descrição de algo de
concreto, mas antes o que o eventual concreto permite
em nós de lição para a vida. De transponível para os
outros – por via da abstracção entretanto criada – e
para sempre. Como se fosse uma transposição para
a imortalidade. O que acontece, no concreto, acaba
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logo ali. Não dura. Por isso, tu não falas sobre o que
aconteceu, mas antes sobre o modo como os teus
sentimentos alteraram a realidade verdadeiramente
acontecida, transformando-a em algo de outro, que
te podia acontecer um dia e, quem sabe, viver para
sempre dentro de ti.
Manuel olhava-me, muito sério e com muita atenção.
Totalmente concentrado. E eu perdido, por sentir que não o
conseguia ajudar. Como explicar-lhe a ausência e a distância?
Como anunciar-lhe a existência de uma leitura abstracta da
vida? Manuel sofria, desesperado para conhecer o maior
mistério que existe, com a mosca nos dedos, pendurada,
já a querer esvoaçar, com a asa que não estava presa a
vibrar com força. Manuel olhou-a com compaixão, e depois
virou-se para mim
– Imagina um homem preso, pendurástico por uma
perna nas mãos de um monstro enorme e maluco, e a
fazer movimentos broásticos com a perna que não está
presa como se quisesse correr para fugir.
E olhava com melancolia e ternura para a mosca, sua irmã em
destino e aflição. Com a outra mão, fez um movimento que
parecia querer fazer-lhe uma festa. E foi ainda melancólico
que me perguntou
– Não posso contar que ando no mar, nuzástico, durante
muitas horas, agarrado às costas de um peixe?
– Podes, Manuel, isso podes. Vês? Isso foi uma coisa
que tu imaginaste. É nisso que tu pensas quando tocas?
Por exemplo, se há coisas que tu imaginas quando
tocas, ou coisas que tu sonhas durante a noite, podes
depois escrever sobre elas. Se escreveres com muita
paixão, sentindo muito, vais escrever um romance
muito belo.
107
– Não os sentes, de vez em quando, aqui perto de nós?
Sinto-os muito quando vou para o piano e toco.
Interroguei-me sobre quem eram eles, enquanto Manuel
levantou os braços e largou a mosca, numa atitude
dramática, como se dançasse num bailado imaginário. E a
mosca, sentindo de certeza tanto alívio quanto ele, voou
como podia, ainda atordoada. Manuel ficou a olhá-la como
se lhe tivesse oferecido a vida. Como um deus assistindo à
criação absoluta.
Perguntei mesmo:
– Sinto quem? De quem estás a falar? Quem são eles,
Manuel?
– São eles, não sei.
Pensei, ou disse:
– Não, Manuel, tu não percebes. O que tu sentes é a
liberdade. O teu desenraizamento. A dilaceração da
tua loucura. Tu partes, sim, é verdade. Mas para um
local que está algures dentro de ti. Vais para longe, é
verdade, mais não sais do mesmo sítio. Tu não precisas
de fugir para parte nenhuma, pois tens a liberdade toda
dentro dessa tua loucura, toda dentro de ti.
– E posso falar dela?
– Podes falar dessa mulher que imaginaste, sim, claro.
Mas repara que as pessoas que aparecem no romance
são inventadas. Chamam-se personagens. Podem ser
ou não mais ou menos parecidas contigo ou com outras
pessoas que conheças, mas elas não existem.
– Mas ela é verdadeira, estás a chamar-me mentirástico?
108
E levantou-se, irritado, e foi olhar o mar. E eu fiquei
perturbado, sem conseguir perceber o que ele tinha retido de
toda aquela conversa. Manuel era muito difícil de entender.
Misturava nele próprio a realidade e a irrealidade. No seu
caso, escrever sobre a sua realidade era provavelmente já
uma obra de ficção, tal era a confusão instalada em si.
Sentou-se sobre o tampo de uma mesa, como eu, de novo
– quarenta anos –, sobre uma pedra no meio do campo. O
calor insuportável e eu a tentar ignorá-lo, como se saindo
do próprio corpo. Tinha lido sobre revolucionários que o
faziam quando eram torturados pelos carrascos. Porque o
maior perigo de ser revolucionário era o ser preso. Não era
o morrer. Mas ser preso, e torturado, e não poder falar. Não
trair. O calor abrasador e eu a imaginar a água fresca que
percorria o meu corpo – nós somos feitos de água –, quase a
sentia correr de tempos a tempos. A água que estava para lá
da pobreza concreta da vida. O Manuel nunca o entenderia.
A água redentora.
Mas as revelações não iam ficar por ali. A dada altura,
agarrou-me a mão de novo e algo se alterou na sua cara.
Chegou-se mais perto de mim e disse baixinho:
– Eu tenho um segredo. E, se calhar, vou-to contar.
Tu guardas um segredo? Não contas àqueles
parvoásticos?
Também Rui tinha um segredo. E descobrimos também o
quão ele era infeliz. Chorara quando representámos a peça
sobre a infância e voltou a comover-se de outra vez em que
falávamos sobre o amor e sobre a sua importância na vida
e na felicidade dos homens. Falávamos na generalidade,
não do amor de alguém em particular, mas acabámos por
constatar que todos tínhamos histórias de amor secretas,
reprimidas. Excepto Gonçalo.
Rui começou por defender uma tese muito especial, segundo
a qual o seu amor era inteiramente dedicado aos ideais
109
da revolução. Como as freiras, que só podem amar as
divindades. Era um amor teórico, racional, de quem queria
transformar o mundo num paraíso de bem-estar, justiça,
e um tão grande infinito de coisas, que parecia aqueles
miúdos que chegam às lojas e pedem aos pais para lhes
comprar tudo e mais alguma coisa, desvairados de desejo
e de ambição.
Mas Gonçalo queria saber mais, agora sem rivalidades
políticas à mistura.
– Mas nunca te apaixonaste por uma mulher?
Era óbvio que sim – Gonçalo não percebia patavina do amor
revolucionário –, uma paixão de pessoas que partilhavam o
mesmo ideal, companheiros de luta que se confrontavam com
a pressão do desejo. Mas o amor era livre, hoje com uma,
amanhã com outra, havia paixão, claro, mas sem essa mania
burguesa de ver as mulheres como um objecto de posse.
Eram todos livres e amavam-se quando lhes apetecia
– Quando estão cansados de tirar fotocópias dos
panfletos subversivos, ou de fabricar e armar as
bombas, embrulham-se uns com os outros para
fomentar a vossa camaradagem e a necessária unidade
perante a verdadeira missão, que, essa sim, traduz o
vosso amor autêntico?
De novo cínico e mordaz, Gonçalo tentava entender tão
estranha forma de se ser gente. Mas Rui não desarmava,
era o contacto amoroso que era possível na sua situação,
ou seja, quando não se é fútil e se tem uma tarefa de
enorme dimensão a cumprir. Felizmente ou infelizmente,
um revolucionário não tem hipótese de ter um amor
convencional.
Ele explicava: ter que ir a reuniões secretas, ou ter que estar
três dias em paradeiro incerto, e ela começar a perguntar
aonde é que vais, mas porque é que tens que ir – já não
110
gostas de mim? E parvoíces do género. E no fim, nunca se
sabe, denunciar-nos à polícia.
Rui começou a irritar-se, é certo que o Gonçalo também
estava a pedi-las, mas as suas reacções eram cada vez mais
enérgicas, e estranhas
– O amor de que vocês falam é como uma religião; uma
espécie de adoração sem sentido, sem interrogações,
que faz com que um tipo – eu conheci alguns – adore
um ser que não merece o mínimo de consideração e de
respeito. Uma espécie de amor misturado com fé.
Vendo a coisa complicar-se, Manuel começou a cantar e a
assobiar. E eu disse:
– O amor é como cada um o vê, não vale a pena
começar a divagar. É como cada um o sente, não serve
de nada comparar com o da pessoa do lado.
Rui estava agora calado e de cabeça baixa, sofrendo por
qualquer razão. Gonçalo calara-se igualmente com os gracejos
de mau gosto. E o Manuel olhava o mar na janela ao fundo.
Vendo Rui assim, tive a má ideia de lhe falar de uma outra
peça antiga – réstias da arte que tinha vivido em mim – que
falava do amor de uma forma diferente, uma espécie de
amor axiomático, ou seja, um amor anterior a todas as
razões que o poderiam explicar. Um amor irracional. Sem
palavras que o pudessem definir. Contei-lhe. Disse-lhe que
era um amor de silêncios longos. Contei-lhe como o António
começava, lento. E como todos sentíamos o seu sofrimento
genuíno quando dizia
– O homem pousou a mão no ventre nu da sua
companheira
Muito ao longe, apitava a sereia de um barco
111
Rui tinha a cabeça baixa, e assim parecia querer continuar,
entalando a cabeça nas mãos
– Se aquilo não era a felicidade …
… e o homem tinha as suas razões
para supor que não fosse
Parei um pouco, como se representasse
– O que devemos, ao certo, entender por uma tal
palavra?
Terminei convencido de que o Rui pouco tinha ouvido da
minha representação. Mas não. Inexplicavelmente, percebi
depois que estava apenas a esconder a cara, para eu não
ver os seus olhos inundados de névoa.
Não sabia o que fazer com ele, assim como me foi difícil
responder de forma honesta ao Manuel. Mas, claro, guardaria
o segredo para sempre.
– Eu conto-te o segredo. Mas tens de me ajudar a dar
o pirástico daqui.
Perante a minha surpresa, embora não tenha reagido nem
dito nada, ele abanou que sim com a cabeça, olhou para
os outros, que estavam do lado Norte da sala, assim como
quem diz “vê lá se eles não percebem”, e passou os olhos
pelos meus num trajecto que os levava para o mar e para
o infinito, em jeito de sinal para onde queria ir.
Talvez por eu não ter tido qualquer reacção, nem ter
esboçado a mais leve intenção de recusar, Manuel bateu-me
no ombro, piscou-me o olho e roçou as palmas das mãos
uma na outra com rapidez a representar o acto de fugir.
– Mas, Manuel, porque é que queres fugir?
– Para ir ter com ela.
112
Manuel, eu não te podia ajudar a fugir. Tinhas que
entender:
– Manuel, eu não te posso ajudar a fugir.
– Eu não quero isso, eu dou o pirástico sozinho. Só
quero que me ajudes para ver se os psiquiástricos não
vão atrás de mim. Eles não podem descobrir logo, senão
vão logo atrás de mim.
Tinha-se-me acabado a capacidade de improvisar.
– Manuel, eu não te posso deixar fugir. E tu não tens
para onde ir. Dizes que vais para perto dela, mas isso
não vai acontecer. Eu sei que não.
– Mas ela é verdadeira, estás a chamar-me mentirástico
outra vez?
Eu tinha que o deter de qualquer maneira. E só uma ideia,
talvez estúpida, me ocorreu:
– Porque não ma apresentas? Eu gostava de a
conhecer.
Era talvez uma boa estratégia, ele ficaria desarmado e teria
que me explicar porque é que eu não a podia conhecer. Mas
a resposta dele é que foi desarmante.
– Podes conhecê-la da próxima vez que ela me vier
visitar. Tens é que ir à outra prisão, lá dos outros
parvoásticos. Para a semana.
– Ela vem visitar-te para a semana?
– Vem.
E, sorrindo
113
– Vai ser broástico.
Perante a minha repetida ausência de reacção, ou reacção
de parvo, o Manuel olhou para mim como eu olhara há
pouco: sem saber se eu tinha entendido bem. Ficou parado,
à espera, e depois disse:
– Então, não queres vir comigo? Vou mostrar-te o meu
segredo.
Como um autómato, segui-o. Ele começou a fazer gestos
que significavam que os outros dois, principalmente Gonçalo,
não podiam desconfiar de nada. E segredou-me ao ouvido
que era talvez melhor dizer-lhes que íamos dar uma volta,
para eles não irem atrás de nós.
Passámos a porta de vidro e fomos na direcção da escarpa
alta. Assim que passámos para o outro lado, seguimos um
carreiro muito estreito que começou a dar a volta à ilha.
Quando dei por mim, estava no lado poente, uns metros
abaixo do caminho que por vezes usava para ir para a
enseada. Os caminhos cruzavam-se, e o Manuel começou
a descer na direcção do mar.
Percebi então que o malandro dizia que ia para detrás do
penhasco para pensar, mas o que fazia era dar a volta à
ilha e descer para a pequena praia, onde certamente se
molhava, por isso aparecia com o cabelo todo encharcado
lá em cima.
Manuel desceu, muito rápido, e quando dei por mim,
estávamos na pequena praia, com o mar, muito límpido,
diante de nós.
– Era este então o teu segredo, o vires para aqui quando
todos pensávamos que estavas a reflectir atrás do
penhasco?
Mas Manuel estava muito sério
114
– Não, não é este o meu segredo.
Num instante, Manuel despiu-se e atirou-se ao mar. Ainda
tive um gesto brusco, tentando impedi-lo, mas não consegui
chegar-lhe. Foi pouco o tempo da minha aflição. Manuel
começou a nadar com toda a perfeição e, só aí, percebi o
embuste. Manuel nadava bem e ia fugir pelo mar. Convencera-nos de que não sabia nadar para não desconfiarmos de
nada. E para não colocarmos muitas interrogações a respeito
do seu cabelo molhado. Nadou um pouco e, quando voltou,
perguntei-lhe:
– Era este então o teu segredo, malandro, saberes
nadar e vires para aqui tomar banho?
Manuel estendeu a mão, como que para eu parar de falar,
e mergulhou. Desapareceu durante uns segundos, mais de
um minuto, talvez, e eu pensei para mim
– Foi buscar o segredo ao fundo do mar. Tem algo
escondido no fundo do mar.
E voltei a pensar em mim
– Mergulha em ti, e encontrarás o segredo do mar.
Por momentos, imaginei que a minha vinda para a prisão
tivesse sido organizada, mesmo que inconscientemente,
com o objectivo, não de escrever o livro, mas de conhecer
o Manuel. Como se acreditasse em deuses longínquos e
misteriosos. E, com esse homem estranho, pudesse descobrir
o meu segredo, a minha palavra perdida. O meu segredo
era talvez igual ao dele, quem sabe? Ambos os segredos
viviam no mar, e eu cada vez sentia mais desamparo na
minha busca sem resultados.
Mas Manuel voltou à superfície com uma negação:
– Não, não é este o meu segredo.
115
Algo estava ainda para vir. O que iria o Manuel inventar
agora?
Foi então que começou a emitir um silvo com a boca e,
fechando as mãos em concha, lançou um som rouco, surdo,
como se soprasse num búzio grande e vazio. E ficou inerte,
olhando o horizonte. Fiquei com uma impressão estranha,
muito nervoso, as pernas quase a tremer. Manuel estava
direito, totalmente concentrado de novo, como se estivesse
prestes a iniciar uma nova viagem pelo seu outro mundo.
Como quando se sentava em frente do piano antes de tocar.
Num total isolamento. Olhava para o longe, resignado à sua
espera. Apeteceu-me desistir e voltar para trás, pensando
que tínhamos todos ali um problema muito grave para
resolver. Manuel tinha seguramente uma perturbação mental
complexa, difícil de entender. Não era à toa que achávamos
que ele era maluco.
Manuel mandou-me olhar para o fim do oceano visível, e
perguntou:
– Não queres ir comigo lá para o longe?
Pensei “longe… onde?”, a Daniela convidava-me
– E se nós fôssemos… se fôssemos para longe?
e eu era sempre isso que respondia
– Longe… onde?
Como respondi ao Manuel, que apontava em frente, para
coisa nenhuma. Quando a Daniela respondia, melancólica
– Não sei
Os barcos levam as pessoas para longe.
116
O fascínio da lonjura. E a beleza infinita da Daniela. O
infinito é uma forma de eternidade que podemos ver. O
infinito pode, assim, ser físico. Mas há também um infinito
metafísico, como o da beleza da Daniela. Os infinitos, ambos,
impunham-me o absoluto do seu deslumbramento.
Ia quase a voltar-me para regressar, quando vi, no tal longe,
uma barbatana dorsal enorme, cortando a superfície do mar
na nossa direcção. Manuel voltou a entrar dentro de água, à
medida que um enorme golfinho, tanto quanto sei a respeito
do tamanho dos golfinhos, se aproximou de nós, emitindo
um som agudo e repetido. Manuel emitiu um som também
e, perante uma forte sensação nervosa que me paralisou
de novo, saltou para as costas do golfinho e, com o braço
direito espetado a apontar para o longe, partiu, partiram
ambos, rápidos, na direcção do limite do desconhecido.
Manuel – via-o bem por cima das águas – seguia de novo
para o seu mundo de liberdade. De vez em quando, o
golfinho mergulhava um pouco e desapareciam os dois. Mais
adiante, emergiam das águas de novo – como deveria ser
imensa a felicidade do Manuel.
Que outros segredos esconderia o Manuel? A mulher seria
mesmo verdadeira? E como que raio terá ele conseguido
domesticar o golfinho? E comunicar com ele?
As suas explicações, dadas cerca de uma hora depois, que
foi quando voltaram da sua louca divagação mar adentro,
deixaram-me confuso, de novo. A minha visão a respeito do
Manuel oscilava entre a profunda admiração por um homem
de grande dimensão e alguma incredulidade face a tudo o
que eu acabava por achar serem maluquices e devaneios de
uma pessoa perturbada, ou, pelo menos, de uma pessoa com
dificuldades de integração numa sociedade como a nossa.
A sua explicação foi de novo fantasiosa:
– Não fui eu que escolhi o peixe.
117
Nem por um momento contrariei os seus parcos conhecimentos
de zoologia…
– Foi ela.
– Ela quem? A tua apaixonada, aquela que vou ver
para a semana?
– Não. Quer dizer, sim, foi através dela, mas quem
enviou o peixe foram os deuses do mar. Ela é amiga
da deusástica dos animais do mar.
– Não é um peixe, Manuel. Chama-se um golfinho.
– Foi essa deusástica que falou com o peixe que tu dizes
que é um golfinho para vir ter comigo.
– E a tua amiga é amiga desses deuses?
– Sim, e o peixe-golfinho faz tudo como eu quero. Eu
digo-lhe as coisas com uns guinchos que parecem apitos
e ele percebe tudo. É com ele que eu vou fugir.
– Não, tu não vais fugir coisa nenhuma. Nós temos
mas é que voltar para a prisão. Os outros podem
desconfiar.
Manuel fez-me um sinal com a mão que queria dizer que
ainda não era altura de partirmos. Ainda tinha algo para
me dizer.
– Eu vou partir para viver com ela e com os deuses do
mar. O peixe sabe para onde me deve levar. Eu tenho
de dar o pirástico, entendes?
Manuel estava a sofrer. Ele tinha mesmo que partir para o
destino da sua loucura. Era a sua liberdade que estava à
espreita. E era o amor que preenchia os seus sonhos. A sua
118
mulher imaginária, aquela que vivia com os deuses. Eu só
pensei na figura ridícula que fiz ao tentar ensinar-lhe o que
era a arte e a transfiguração. O que era o outro mundo. Era
ele que me devia ensinar a mim a escrever um romance.
Todo ele estava cheio dessa transferência permanente para
o irreal. Se ele conseguisse descrever o seu mundo – que
eu já não sabia se era real ou imaginário –, escreveria o
maior de todos os romances.
Depois, Manuel levantou-se e disse:
– Eu tenho de dar o pirástico.
Manuel voltava a estar muito sério.
– Para poder escrever um romance de amor.
E foi-se embora, deixando-me atordoado com essa frase
final, tão bem dita, tão límpida, tão segura nos conceitos,
como se insinuasse que todo o seu atabalhoamento habitual
não passava de uma complexa e planeada encenação.
E fiquei a pensar que a sua liberdade, ou aquela que ele
desejava, não era toda possível ali. Faltava-lhe o amor, ou
algo que ele entendia como isso. Eu tinha que descobrir se
a tal mulher existia de verdade.
Os deuses do mar. É óbvio que não existiam deuses no mar.
Mas também não existiam golfinhos amestrados, enviados
para obedecer aos guinchos de um tipo meio doido que mal
sabia falar. Assim como não existem pessoas que tocam
piano de forma perfeita sem aprender.
O Manuel começou a subir as rochas de novo, e lá foi, sempre
a remoer comentários surdos, a caminho da prisão. E eu
fiquei com a sensação de que deveria existir algo de muito
inacreditável, quase absurdo, que poderia talvez explicar
tudo aquilo. A história do golfinho provava que ele não vivia
totalmente no mundo imaginário. Aquilo era verdade. E se
119
o resto também fosse? E se existissem mesmo os deuses
do mar?
Por mais irracional que fosse a minha interrogação, não
consegui evitá-la: e se os doidos fôssemos nós? Doidos por
sistematicamente recusar, em nome da ciência e da Razão,
as realidades que desconhecemos, colando aos que com
elas convivem rótulos pejorativos que conseguem, de facto,
afastá-los da nossa vida em sociedade. A nossa sociedade
tinha decidido que os loucos deviam ser calados. Em prisões,
em hospícios. Mas o Manuel tinha confirmado algo que me
era familiar há muito. Tinha-o lido, tinha-o estudado: o louco
era o que dizia a verdade. Tempos da leitura do Deleuze,
e da sua denúncia permanente da opressão do colectivo
sobre o individual. O Anti-Édipo. Tanto que ele malhou na
psiquiatria. E na psicanálise, que estava ali mesmo ao pé e
a jeito de levar também. Quem mandou o palerma do Freud
ir roubar coisas à tragédia grega? Tragédia grega é quase
um pleonasmo – quem o mandou roubar no terreno da
adoração do seu querido Nietzsche? Os loucos é que viviam
no mundo da verdade. E da liberdade. O Artaud, profeta,
ou ícone, talvez mesmo deus. Louco. Artista. Anarquista.
Deleuze idolatrou-o à desmesura. Os loucos da inocência
também. Sem máscara, sem fingimento. Como o Manuel.
E como aquele louco – uma vez fui com o tio Saúl a um
hospício. Eu era pequeno, talvez tivéssemos só passado em
frente das grades e ele estava à porta, não sei. Pediu um
cigarro ao tio Saúl. O tio não tinha, mas perguntou-lhe para
que queria ele um cigarro
– Para me aquecer, que me mijei todo pelas pernas
abaixo.
E ria, sem dentes, a barba por fazer
– Não me deixam mijar nas flores, que ficam
amarelas…
120
Sorria, feliz, e apontava para as flores. Era oriundo de um
mundo que não existia para mim. Vinha das profundezas de
um mistério qualquer. Depois, falou mais alto
– Mas as flores já são amarelas, estás a vê-las ali?
Falava para mim. O tio Saúl, rápido, agarrou-me na mão:
não tenhas medo.
– Mas as folhas são verdes, como as grades aqui – essas
é que podem ficar amarelas…
O tio Saúl empurrou-me, para continuarmos, enquanto o
outro continuava a explicar que também não ia fazê-lo nas
grades, à frente de toda a gente
– Também não vou mijar nas grades, não achas,
petiz?
Perguntei ao tio Saúl o que era isso de “petiz”; e ele disseme que era eu.
O louco dizia a verdade. Era por isso que tinha que ser
calado. O Deleuze disse-o, com a autoridade de ser o maior
filósofo do século. Enquanto imaginava conceitos novos – a
palavra certa era fabricar, ou elaborar –, ia dizendo coisas
que eu conseguia entender. E o que eu entendi é que os
loucos tinham que ser calados. Por isso os internaram todos
em hospitais. Para os isolar do mundo. Para não contagiarem
a restante Humanidade com a sua verdade subversiva. Com
o seu profundo e perfeito entendimento da sociedade que
nos rodeia. E os “sãos”, coitados, viviam na exterioridade
dessa perfeição. Convencidos de que os seus conhecimentos
superficiais não podiam ser postos em causa. Defendidos da
doença, ficavam antes privados da compreensão essencial
do Universo.
O Gonçalo dizia-o, de tempos a tempos, quando mergulhava
na sua loucura, também.
121
– É depois do abismo que chega a revelação.
E se tudo o que o Manuel inventara fosse, afinal, verdade?
E se a mulher dos seus sonhos existisse mesmo? Tal como
o golfinho inverosímil? E se fôssemos nós os loucos – tantas
vezes que o pensei –, e se existissem deuses no mar?
Há um mundo para além do mundo, os artistas conhecem-no
bem. E, nesse mundo do sonho e da imaginação, quantas
são as coisas que estão vedadas a todos aqueles que não
sabem sonhar? A todos os prisioneiros do mundo daqui?
Gonçalo soltara-se das amarras da vida e gritara:
– Temos que nos confrontar com o mundo da ausência
para podemos acreditar nele.
E eu não conseguia afastar essa grande e maravilhosa
loucura de admitir essa hipótese impossível de os deuses
do mar, afinal, poderem existir.
Papel manuscrito nº 4 (tempo da prisão)
Hoje, o Manuel abalou todo o meu organizado
mundo. Ainda estou a ver o golfinho na nossa
direcção, a barbatana muito direita a cortar
o mar e o Manuel sorrindo, vitorioso sobre
a minha incredulidade tão rapidamente, e
também tão dramaticamente, transformada em
estupidez.
122
Depois voltou a falar da sua mulher imaginária,
que às tantas é tão real quanto o golfinho, e do
seu gigantesco projecto de amor.
E, logo, o meu passado todo em turbilhão.
Primeiro a minha “ela”, como eu gosto de
o dizer. Quando o Manuel falou da dor, à
esquerda, tão bem que o entendi.
Amália. Tanto que eu queria voltar para a
enseada e chamá-la. Amália. E amá-la. Amália.
Chamá-la.
Chamá-lia.
E perguntar-lhe: há aí algum golfinho destinado
para mim? Um golfinho que viva com os deuses
do mar?
Existe ainda amor, guardado no futuro, para
mim?
Há amor no mar?
123
Depois o tio Saúl, muito direito, a olhar para
mim. “Mergulha em ti, e encontrarás o segredo
do mar”. Será que o segredo ser-me-á um dia
revelado por uns quaisquer deuses marinhos?
Estarei já perto da revelação? Não pude deixar
de lembrar essa frase, de o sentir de uma forma
muito intensa quando o Manuel
– Um romance de amor.
O tio Saúl disse, solene, que aquele era o maior
segredo do Universo. O velho padre, sim. À hora
da morte. Era um segredo do mar. Mas estava
em mim. Era um segredo que respondia àquilo
que toda a vida iria procurar. Nem à hora da
morte me disse mais, agarrando-me as mãos com
toda a força que tinha. À hora da morte. Uma
palavra que salvaria a Humanidade.
Ainda lhe perguntei, um dia:
– Tio, porque é que o segredo está dentro de
mim? Porque tenho que mergulhar dentro
de mim?
A sua resposta não me esclareceu:
124
– Está dentro de ti porque foi algo que tu
tiveste nas tuas mãos e perdeste. E depois
guardaste na memória e no coração.
Frase tão bela – porque a senti tão perto quando
o Manuel se levantou? Que semelhança poderá
existir entre o meu segredo do mar e o dele?
E para onde será que o golfinho o levará um
dia?
Gonçalo estava mais calmo ao jantar, mas Rui continuava
mergulhado numa profunda prostração.
Foi então que o Manuel começou a brincar, como tantas
vezes era seu hábito, para ver se animava – ou irritava,
às vezes era difícil distinguir – o pobre Rui. Começou a
fazer bolinhas de pão com os dedos nojentos de comer os
talos da couve à mão, que ia tirando da sopa um a um, e a
atirá-las para dentro da sopa do Rui. Fazia uma catapulta
com o garfo, punha a bola de pão na base do garfo – onde
pegamos – e depois batia com o punho, verticalmente, nos
dentes do garfo, para a cauda deste levantar e projectar o
pão para dentro da sopa do Rui. Fazia-o meticulosamente,
com uma exactidão que divertiria toda a gente se aquele
dia não fosse um pouco especial para o Rui, não recomposto
das suas emoções lacrimejantes, e para o próprio Gonçalo,
hoje muito agitado, embora bastante absorto à mesa.
– Pula a pulga na balança, dá – pimba – um saltório e
vai para a França
e o pão caía, milimetricamente, na sopa de Rui. Mas este
não reagia. Estava mergulhado na sua melancolia profunda,
125
algo lhe havia acordado as trevas que viviam dentro de
si. Acabara-se a euforia evangelizadora, a confiança nos
amanhãs verdejantes do seu Alentejo proletário, estava
reduzido ao mais essencial de si. Era o seu eu profundo
que precisava de uma qualquer salvação. Que não era
certamente a que as maluquices do Manuel tentavam, em
vão, provocar.
Mas foi Gonçalo quem reagiu, inexplicavelmente
– Não podes estar quieto? Isso são maneiras de se estar
num restaurante?
Até o Rui levantou a cabeça
– Restaurante?
– Desculpem, estava a pensar noutra coisa.
Parou um pouco para se recompor. Mas, perante os três
olhares interrogativos que o fulminavam, Gonçalo achou
que tinha que explicar mais qualquer coisa
– Esqueçam o que eu disse.
Olhámo-nos com curiosidade e não dissemos mais nada. Era
seguramente um dia muito especial para todos.
– Disse uma coisa sem sentido.
Como se fosse a primeira vez que o fazia, com aquelas frases
alucinadas que ninguém percebia o que queriam significar.
Mas, perante o nosso silêncio fundo, e, seguramente,
interrogativo, ele não resistiu
– É que eu, em tempos, tive um restaurante.
126
Ficámos sem fala. Agora sim, percebia-se o seu fascínio pela
culinária. Uma espécie de amor-ódio. Mas como é que um
dono de um restaurante vem parar a guarda de uma prisão?
Sim, era essa a pergunta que poderia esclarecer o seu
mistério, as suas falas loucas sobre o abismo e a ausência,
a lonjura e a perdição, momento caótico, e conjuntural, a
interromper o seu estado conservador.
– Mas como é que um dono de um restaurante vem
parar a guarda de uma prisão?
– Tive um grupo de amigos – não, não eram amigos –,
tive um grupo de vizinhos de quem eu gostava e que iam
muito ao meu restaurante. Mas faziam tanto barulho
e armavam tanta confusão que as outras pessoas
começaram a deixar de lá ir. Eles eram divertidos, não
era por mal...
Gonçalo baixou os olhos. Via-se que sofria de um mal há
muito tempo reprimido.
– Mas não há desculpa para a desordem.
– E depois?
Rui parecia feliz. Percebeu que não era o único com dores
fundas, impenetráveis.
– Comecei a perder clientes e expulsei os meus vizinhos.
Um dia, de vingança, partiram-me o restaurante todo.
Mas não era preciso. Os meus clientes não iriam voltar
nunca mais.
Rui indignou-se
– Não chamaste a polícia?
– Eram meus vizinhos. Gostava deles. E, depois, os
clientes já não tinham intenções de voltar. Não eram
127
como eu, não queriam apostar na incerteza. A incerteza
conduz ao caos.
Ao mesmo tempo, Gonçalo parecia aliviado por ter conseguido
desabafar. Mas tremia face à violência da recordação das
suas aventuras passadas.
– Um dia percebi o abismo da ausência. É preciso ter
certezas na vida. A aventura conduz à destruição.
Fiquei sem nada. A não ser muitas dívidas. Que não
podia pagar.
Todos percebemos o mistério de Gonçalo, não era preciso
ele explicar mais nada. E todos tivemos pena dele, até o Rui,
que não começou a atribuir todas as culpas a esse sonho
absurdo da propriedade privada.
Ainda pensei que o Manuel, para variar na distracção, virasse
agora a catapulta na direcção do prato do Gonçalo. Mas
não. Estava calmo, olhava Gonçalo com ternura, batia-lhe
suavemente nas costas, e chegou mesmo a dizer
– É mau, isso. Porque tu és um cozinheiro broástico.
Perante a prostração de Gonçalo e Rui, e perante um Manuel
que, farto daquilo tudo, esfregava o garfo e a faca – como
antes fizera com as mãos – tentando convencer-me de que
a melhor solução para mim, e, acima de tudo, para ele, era
dar o “pirástico” dali para fora, o que me veio à lembrança foi
a minha palavra perdida, a palavra redentora dos homens,
silenciadora de todas as opressões e libertadora de todos
os recalcamentos. Era seguramente dessa palavra que Rui
e Gonçalo precisavam agora. Não seguramente o Manuel,
porque ela vivia por certo no seu interior de liberdade
absoluta.
Uma palavra total perante a fragilidade enorme de nós.
Ela triunfaria face aos nossos sonhos desfeitos, à nossa
128
confrontação permanente com o abismo. Ela salvar-nos-ia
da nossa incapacidade de sermos livres, de sermos felizes,
ela proteger-nos-ia dos nossos maiores medos.
Lembrei-me do tio Saúl e do que morava nele de confiança
no futuro e na felicidade dos homens. A minha mão agarrada
à sua
– Não tenhas medo.
Não, não tinha medo. E um dia, prometi alto, escreveria um
livro para ajudar os homens e salvar o planeta. Um dia, eu
sentia-o há tantos anos, ninguém teria mais medo. Nunca
mais.
129
130
IV
Foi a palavra essência a que primeiro cirandou à volta do
centro do meu plano abstruso.
A ideia começou por ser simples: Marx tentou anular
as desigualdades a posteriori. Tentou equilibrar essas
desigualdades existentes dando aos que tinham pouco as
riquezas e os bens dos que tinham muito. A intenção era
distribuir o parque – de bens, de produtos – existente.
A minha ideia era a contrária. Ou seja, acabar com as
desigualdades, eliminando-lhes a origem.
Recordo o Manuel dizer
– Quero andar nu, não quero usar essas bugigangásticas
que vocês inventaram...
Manuel tinha razão. Enchemos as nossas vidas de bugigangas
que não servem para nada. E para produzir toda essa
superficialidade inútil despendemos um tempo infindo, a
trabalhar e a sacrificar o tempo que podíamos dedicar às
coisas mais importantes, como o amor, a educação e a
formação dos nossos filhos, a arte.
Parte substancial da desigualdade social é, na nossa
sociedade, motivada por uma diferenciação de posse. Por
um desequilíbrio de cariz económico. Ou seja, é resultante
dessa bugigangada mais ou menos inútil que produzimos ao
131
longo dos séculos. Ora, se reduzirmos esse parque de posse
à sua essência (foi o tipo de essência que me demorou a
ser compreendido), teremos cortado pela base a origem de
toda a diferenciação económica. E, consequentemente, parte
importante da diferenciação social. Não estou, portanto, a
falar de reduzir a posse de alguns bens de alguns indivíduos.
Estou a referir-me a esses bens supérfluos na sua totalidade,
e em relação a todos os indivíduos.
Esta desigualdade baseada no económico tem uma outra
característica perversa: não é facilmente alterável. Ou seja,
a sociedade está organizada de forma a os filhos dos ricos
serem ricos também e a ser difícil aos pobres alterar a sua
condição. Por isso o tão apregoado “sonho americano”.
Justamente para dar a entender que a sociedade americana
é livre e tão justa que um homem nascido pobre pode vir
a ser milionário. Mas o simples facto de essa ideia ser tão
célebre prova imediatamente o quão ela é tão rara. Se fosse
muito frequente, ninguém falava nisso. Por outras palavras
– e isto foi muito importante para a minha ideia filosófica –,
uma pessoa que se diga a si própria “vou enriquecer”, ou
mesmo “vou esforçar-me muito por enriquecer”, não tem
grande probabilidade de o conseguir. O que prova que ela
não é verdadeiramente livre. Não vive numa sociedade
verdadeiramente livre. E é por isso que a desigualdade se
perpetua de geração em geração, garantindo os privilégios
aos ricos e poderosos. Porque o que é valorizado, o que
dá importância à pessoa nesta sociedade é a posse de um
determinado conjunto de bens materiais.
Dir-se-á: então, voltamos ao “bom selvagem”, é essa a
solução? E ficamos como quase animais outra vez? Agora
que a globalização, através da Internet, cada vez mais nos
apresenta os nossos semelhantes, mesmo vivendo nos
países mais longínquos, como pessoas iguais a nós, é que
vamos voltar a viver em tribos fechadas, sem saber conhecer
os outros, e a matar todos os que se aproximem do nosso
território?
132
Esta reflexão foi, sem dúvida, da maior importância para mim.
E havia que lhe dar a volta. Reduzir à essência significava
limitarmo-nos ao que é útil, ou necessário. A Internet podia
ser uma dessas necessidades. Porque tem a ver com a
informação, com a cultura, com o saber. Ora, a minha ideia
de redução não se aplicava ao saber, ao espiritual, mas ao
material, ao económico. Se todos os homens do planeta
estivessem ligados por Internet, não precisavam de milhares
de outros aparelhos, a começar pelos próprios telemóveis.
Mas, para os computadores possuídos, tínhamos que acabar
com a diferenciação materialista: deixarmo-nos de preocupar
se alguns são de pele, de titânio ou de ouro. Tinha que ser
compreendido que o essencial era o que estava dentro deles
e, sobretudo, o que era possível fazer com essa informação
para aumentar a felicidade dos homens.
Mas havia também a objecção da arte. Para que serve a
arte? Não seria uma das actividades a eliminar num mundo
reduzido à sua essência? Bem sei que a arte não é um
bem material, embora esteja impregnada dessa dimensão
materialista: a pintura, a escultura, a arquitectura. Vende-se
uma assinatura num quadro ou numa casa por valores
elevadíssimos. Não teria a nossa defesa da essência que
considerar a hipótese da sua inevitável anulação?
Era uma hipótese que ia de encontro à visão de Rui, pelo
menos em relação à maioria das artes. Defendia a arte de
intervenção por oposição à arte fútil (a que não serve para
nada). A arte abstracta – ele falava normalmente sobre
pintura – não contribuía em nada para o bem da Humanidade.
Ora, para ele, a arte tinha que comunicar a hipótese de um
mundo melhor. Fosse na literatura, onde se denunciavam
as injustiças e a opressão e onde se mostrava o quanto os
verdadeiros homens eram altruístas e aceitavam todos os
sacrifícios do mundo para proteger os mais desfavorecidos,
fosse na pintura, que ele exigia que retratasse de forma
chocante as assimetrias sociais – os ricos, gordos,
sentados a fumar charutos com os seus chapéus altos, e os
133
pobres, esfaimados e sem roupa, trabalhando ao sol com
instrumentos agrícolas arcaicos. Assumia-se como defensor
da única arte que alguma vez contribui com alguma coisa
para a felicidade dos seres humanos: o neo-realismo.
O Manuel ouvia, por vezes, as longas dissertações de Rui
e, após a nossa conversa sobre a arte, costumava olhar
para mim com ar interrogativo, para ver se eu entrava em
desacordo com a teoria do outro, teoria que não tinha nada a
ver – ele percebera-o tão bem – com as ideias que lhe havia
transmitido aquando da nossa conversa sobre o romance.
Houve uma vez em que Rui foi um pouco longe de mais:
– A arte, de uma maneira geral – ou seja, se excluirmos
o neo-realismo –, é uma fuga à realidade, aos problemas
do dia-a-dia, é uma cobardia.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, o nosso amigo
Manuel não se conteve
– É verdade que foges à realidade porque é uma
mentirástica. Mas não é por seres cobardório.
E olhou para mim, a pedir ajuda. Abria-me muito os olhos,
mas de forma escondida, para o Rui não perceber que o
seu esboço de argumentação precisava urgentemente de
reforços. Mas ele tinha razão, era imperioso que eu reagisse.
E foi assim que iniciei uma enorme discussão com o Rui.
– O que ele quer dizer, Rui, é que a arte pressupõe
um corte com a realidade, é verdade, porque projecta
a nossa vivência numa dimensão de irrealidade,
caracterizada pelo abstracto e pelo intemporal.
– Isso é mesmo conversa para boi dormir. Várias
palavras ligadas umas às outras numa frase não a
transformam numa ideia. É preciso haver conteúdo.
134
– Mas há conteúdo! Vou dar-te um exemplo: qual é a
mais arte de todas as artes?
– Isso é que é o exemplo? Pareceu-me uma pergunta,
mas sou eu que devo ser muito estúpido.
– Mas responde!
– Não sei, deves achar que é a literatura, mas eu prefiro
a pintura.
– Então, não vês que é a música?
– Mas porquê? Só porque tu achas?
– Não. É porque é a arte mais difundida, aquela que toda
a gente usa no dia-a-dia. É também aquela que está
presente na maior variedade de povos e de culturas.
– Ai isso é que não é: muitas pessoas vivem debaixo de
um tecto, mesmo quando não ouvem música, nem têm
quadros, nem lêem livros. Por isso, é a arquitectura.
Manuel olhava para mim com um ar de quem não achava
que a minha argumentação estivesse a ser brilhante. Mas
eu não desarmei
– Ora aí está um bom exemplo: nem todas as casas
onde as pessoas moram têm alguma coisa que ver com
a arquitectura. A maior parte das casas, diria melhor,
das habitações – porque incluem as palhotas, os tipis,
ou os igloos dos povos mais antigos –, não ultrapassam
o seu funcionalismo. Estão construídas em função de
um objectivo que é o de proteger da chuva, do frio, dos
animais, e por aí fora. A arquitectura só começa quando
se constrói algo para além disso. Porque, justamente,
a arte só se revela quando termina a submissão em
relação à realidade.
135
Rui abanava a cabeça e encolhia os ombros para provar
que eu só dizia disparates e voltava a perguntar alto para
que servia uma pintura abstracta que eram dois traços a
vermelho e um a preto sobre uma tela branca. Tinha visto
um quadro assim numa galeria. E custava uma montanha
de dinheiro, havia pessoas que esbanjavam o dinheiro que
tanta falta fazia aos outros em coisas sem sentido. Aqueles
quadros até ele os conseguiria imaginar. E pintar. A arte
tinha-se tornado, para ele, numa fantasia de ricos que já
não sabiam o que fazer ao dinheiro e, por já não poderem
comprar coisas ligadas à realidade e utilidade quotidiana,
empatavam o dinheiro em coisas inimagináveis. A essência da
arte não era a irrealidade – dizia ele, já só para me agredir –, era
a imoralidade.
A dada altura, já em desespero de causa, até se virou para
o Gonçalo. Queria que ele desse uma opinião. Sem dúvida,
achou que ele, embora não sendo certamente neo-realista,
devia ter um mínimo de bom-senso para desempatar aquela
conversa de doidos. Rui e Gonçalo eram, frequentemente,
muito próximos nas suas ideias e maneiras de pensar.
Gonçalo, apesar de não parecer disponível para grandes
conversas – voltara a dizer frases desconexas de tempos a
tempos –, acabou por intervir no sentido de confirmar os
meus medos iniciais sobre o materialismo da arte e sobre a
incompatibilidade deste com a ideia de essência:
– A arte, hoje, não passa de um negócio. São os
quadros, as esculturas, que se vendem por milhares ou
milhões. São os contratos milionários que são feitos a
certos escritores para os vincular a certas editoras e as
consequentes estratégias de marketing para os vender
como sendo os melhores autores. É o custo astronómico
do cinema e os cachets imorais pagos aos actores. E
assim por diante.
Rui reconfortou-se e voltou à carga com o malvado do
neo-realismo e o suposto facto de ser o único movimento
136
artístico capaz de dar utilidade à arte, de a envolver de
humanismo
– Como é que é possível acharem a arte a actividade
mais nobre do ser humano, se ela não serve para nada?
Se ela não o ajuda em nada? Parecem doidos – olha,
como Deus, entretido a criar um mundo de maldade e
de injustiça. E depois a olhar lá de cima, feito tolinho,
a admirar a sua obra medíocre, sem se esforçar por a
alterar.
Também a arte é assim. Uns tolinhos que se perdem
em “irrealidades” e se divertem enquanto os outros
não param de sofrer
enquanto eu cada vez me convencia mais de que a minha
definição de essência tinha muito para ser trabalhada e
aperfeiçoada.
Em grande parte, esse aprofundamento do conceito acabou
por ser influenciado pelas manias do Manuel a respeito da
nudez e das mulheres nuas. Embora, diga-se de passagem,
que a coisa que mais o seduzia nessa nudez feminina
era a beleza do corpo das mulheres – o que não iria ser
considerado como elemento estruturante do meu conceito
(a essência).
Mas, quando uma vez ouvi o Manuel falar sobre os índios,
que andavam nus – ou sobre os africanos, já não sei –,
foi essa a imagem que me perturbou: a essência de um
homem despido da História. Despido dos constrangimentos
das lições do passado, livre da tirania da tradição. Ou seja,
o primeiro elemento de referência da sua obsessão pela
nudez que retive foi a liberdade. Até porque o vestir obriga
a outro tipo de tiranias, como a moda, por exemplo, ou,
mesmo para quem não liga a essas coisas, existe sempre
essa violência de um indivíduo receber imediatamente um
enorme conjunto de rótulos em função da maneira como se
137
veste: rico ou pobre, materialista ou intelectual, com gosto
ou sem gosto, e por aí fora.
Mas a liberdade que encontrava associada a esse desejo
de nudez tinha uma outra dimensão mais subtil. Era uma
liberdade, sim, mas uma liberdade definida em pureza e
inocência. Quer isto dizer que a nudez é a forma como vimos
ao mundo, inocentes, sem maldade. Quando nascemos,
a primeira coisa que fazem é vestir-nos, de azul ou rosa,
consoante o sexo: o nosso primeiro rótulo. Assim, aos
dois ou três anos, se for rapaz e começar a pedir para me
vestir de cor-de-rosa, alguém vai começar a tirar certas
conclusões a meu respeito. Não é só um problema de
ausência de liberdade de me vestir como quiser. É mais.
É o facto de perder a inocência: começo a ser vítima da
maldade dos outros. Assim, o despir simboliza o desejo de
voltar a um tempo em que as pessoas não estão corrompidas
pela maldade dos outros e pelas violências da sociedade.
Simboliza o desejo de nascermos outra vez. E começarmos
tudo de novo.
O que demorei tanto tempo a entender era intrínseco, talvez
inato, no Manuel. Porque é essa a forma como ele vivia o
grande mistério do seu ser. Como ele vivia a sua música. É
talvez por isso que ele tocava sempre um trecho diferente
de cada vez. Ao fazê-lo, enfrentava permanentemente o seu
interior virgem. Recusando uma cobertura de protecção,
como nós fazemos com a roupa que vestimos. Porque é que
um compositor tem um reportório? Porque não compõe no
preciso momento em que dá um espectáculo? Precisamente
porque precisa de uma protecção, não vá a inspiração não
chegar e ficar impedido de compor alguma coisa de jeito.
No fundo, e numa comparação extrema e talvez exagerada,
é como um cantor que canta em playback. Aí, o público não
ouve o cantor, mas um disco. Uma máscara. É certo que
o compositor, ou o cantor, apenas querem evitar fazer má
figura. No entanto, evitam mais do que isso: evitam mostrar-se eles próprios, ser eles próprios. Ou, pelo menos, aquilo
138
que eles próprios são naquele momento. Como uma mulher
mais velha esconde as rugas, pintando-se e maquilhando-se
como se tivesse vinte anos.
Sim, seguindo esta lógica de raciocínio, vim ainda a descobrir
uma última dimensão na nudez: a busca da verdade. Isto,
porque a roupa esconde o que realmente somos, funciona
como uma máscara que permite a mentira, que permite
levar os outros ao engano.
O que o Manuel sempre procurou, mais do que o seu eu
inocente, foi a verdade que havia em si. E que há em todos
nós, e que desconhecemos na maioria das vezes. Ele não
tocava para mostrar aos outros o que quer que fosse. Ele
queria receber, por essa via, a sua própria verdade. Como
se tentasse compreender a posição que ocupava no mundo,
como se tentasse conhecer quem era.
Fechado em si, dobrado sobre o piano, o que observávamos
era a sua procura obstinada da beleza, a sua entrega ao
outro mundo que em si morava e que transfigurava a sua
imagem frágil e indefesa – numa errância em desajuste
em relação ao mundo daqui – num homem completo, total,
pleno no controle de si, que irrompia em nós numa imposição
inquestionável que nos vergava perante a sua dimensão
quase violenta, irreal e absoluta.
Mas eu não desisti de explicar ao Rui porque é que a música
era a arte das artes. A minha tese era baseada no facto de
a música ser a arte mais abstracta:
– Eu disse-te que a arte projectava a nossa vivência
numa dimensão abstracta e intemporal. E tu disseste
que era conversa para boi dormir. Mas não é.
A música é a maior das artes porque é a mais abstracta:
não se vê, não se apalpa, não mostra nada em concreto.
Porque o som não é concreto, é uma abstracção.
139
Contrariamente à pintura ou à literatura, não consegue
atingir o nosso cérebro – ou seja, a nossa dimensão
racional – de modo nenhum. Não tem qualquer contacto
com a nossa Razão. E está escrita numa linguagem
totalmente inventada de raiz e totalmente exterior à
nossa realidade.
É, assim, algo que nós não conseguimos de todo
entender. Num quadro há uma imagem que entendemos,
mesmo não sendo pintura neo-realista. À excepção da
arte totalmente abstracta. Na literatura, então aí, não
há qualquer hipótese de se atingir uma abstracção
plena: o texto tem sempre que ser “entendível”.
Ora, é por todas essas razões que, por outro lado, ela
é a arte mais intemporal. Hoje, ouvimos com prazer
a música do séc. XV, ou a batida africana tão mais
antiga, quando já não existe qualquer pachorra para ler
os romances de cavalaria da Idade Média ou a pintura
de reis e santinhos anterior à pintura moderna. Em
contrapartida, para voltar à música, ninguém ousa
preferir Schoenberg a Bach. Ao passo que a pintura
começa em Goya, e a literatura em Cervantes!
Rui abriu os olhos de satisfação. Ia responder-me à letra,
ele era muito inteligente. Tinha certamente descoberto uma
brecha por onde me atingir:
– Goya e Cervantes? Muito bem. Tragédia grega, nada?
E os baixos-relevos do Parténon, ainda menos? Sófocles,
Fídias, não sabes quem são. Só Goya e o Cervantes.
Devo então deduzir que foi em Espanha que nasceu a
cultura clássica e a civilização ocidental?
Eu calei-me, ferido de morte. E Gonçalo, muito rápido para
mim: ele tem razão. O meu amor à música traíra-me. A
minha música. O meu amor.
140
Papel manuscrito nº 5, parte I (tempo da
prisão)
Volto à visão do mar. E enquanto o Manuel toca
e os olhos se me inundam de luz, penso em como é
fantástico o homem inserir toda a sua grandeza,
toda a sua vida, numa fresta da realidade
onde nada existe, num momento de rarefacção
da existência, como o Sartre, quando colocou
“Jean” e “Hélène” numa fracção existencial
onde só eles estavam presentes, apesar das pessoas
todas que os envolviam. Como se o mundo parasse,
todos ficassem suspensos do tempo, imóveis, e só
eles os dois vivessem, para dizerem duas palavras
de amor antes de “Jean” ser executado. Durante
breves minutos, só eles dois existiram à face da
Terra. Era a transfiguração provocada pelo
amor, o acesso a esse absoluto que é a abstracção
máxima, imaterial e inexistente, onde moramos
quando acedemos ao “outro mundo”. E, então,
é como se o mundo daqui não existisse, ou seja,
é como se fosse dominado por uma “rarefacção”
da existência, uma fresta, como dizia há pouco,
uma clivagem no espaço e no tempo.
141
Quando li esse livro, imaginei-me e à Amália
como “Jean” e “Hélène”. Uma ligação tão forte
que, mesmo não existindo no nível superficial
da existência quotidiana, existiria para sempre
no mais fundo do nosso interior, no coração, na
alma, não sei. Achei que era isso o verdadeiro
amor. E era o que eu sentia pela Amália. Ela
estava presente em mim mesmo quando não
estava comigo. E quando estávamos juntos, era
também como na peça, como se mais ninguém
existisse. O mundo inteiro parava para nos ver
brincar, ou rir, ou correr pela praia e tomar
banhos no mar.
Mas a separação era inevitável, “Jean” ia
morrer. Amar-se-iam para sempre, mas na
inexistência física dos seus corpos, Amar-se-iam
talvez na memória, que é onde tudo o que foi
bom resiste à erosão do tempo.
Eu como que também morri
– Não amarei mais ninguém.
Passei, como “Jean” e “Hélène”, a viver o
142
amor fora do tempo, e fora do mundo, como o
Manuel, totalmente submerso pela sua arte, que,
no fundo, não é tanto uma outra vida para ele,
mas a sua vida verdadeira.
Anda agora para cima e para baixo no piano,
desnorteado e à procura de um rumo, ou então à
procura de coisa nenhuma, entregue à ausência
da Razão e, por aí, à ausência de um qualquer
objectivo definido – ou por nós entendível.
Ascensão a um mundo pleno, como uma esfera
de vácuo que se eleva no ar e abandona as
referências terrestres. Um vácuo repleto do
imaterial do sentir. Da Arte. Do impossível
que há em nós.
Manuel descobriu agora um caminho, acalmou,
e, de vez em quando, dá suaves gemidos, como
que a ajudar ao parto do deslumbramento. Nós
ainda não podemos compreender, ele está só a
falar para si. A sua harmonia ainda não se
nos revelou. Existe apenas no seu outro mundo.
Nós ficamos aqui, sozinhos, parados no tempo,
à espera de podermos sentir também.
143
A luz do mar volta, com todo o seu esplendor,
para nos confundir. Luz impossível, como que
acompanhando, em inverosímil, o milagre da
música do Manuel. O mar está todo iluminado
à superfície, mas de uma luz que vem do fundo,
vemos os peixes maiores a passar por cima,
serenos, confiantes perante esta tão grande
sensação de paz e de harmonia da vida.
A luz para sentir a harmonia da vida e a
harmonia da música. Agora sim, Manuel
regressou a uma sensibilidade humana. E nós já
podemos partilhar a maravilha que o preenche.
Agora muito calmo, por vezes forte, embala-nos
com uma doce melodia, que acompanha com um
pequeno esforço de voz.
Nunca mais ouvirei esta melodia. Ele nunca
mais a tocará de novo. Por isso, hoje, aqui, fomos
todos testemunhas, nós e a luz imensa que vem
do fundo do mar, de um momento único, embora
todo ele cheio de eternidade, de um momento
irrepetível na História da Humanidade. E
assim ficámos, embevecidos, sentindo o quanto
o Manuel, e a sua loucura, incarnam o que
144
de mais elevado um homem consegue dar de si
mesmo.
Enquanto Rui gesticulava, eufórico da sua vitória sobre mim,
pronto a dizer-me ainda mais qualquer coisa, confiante como
se a estocada final estivesse ao seu alcance fácil, dei comigo
a pensar que só poderia considerar a essência, enquanto
conceito a inserir no centro do meu plano, se a olhasse nas
suas múltiplas vertentes, criadas a partir da reflexão sobre
a nudez do Manuel – despojo do material e concentração
no espiritual (1), liberdade (2), inocência (3) e verdade
(4) –, o que me pareceu não poder ser visto senão como
enriquecedor para o próprio conceito.
Mais uma vez, o Manuel estava no centro de todas as ideias
a que eu podia recorrer. Mais uma vez, a sua loucura me
aparecia como algo muito superficial.
Assim, voltando ao plano, vemos que a concentração no
espiritual e a liberdade estavam lá. Faltavam, portanto, a
inocência e a verdade.
A ideia natural seria, então, a de encaixar o conceito de
essência no conjunto destes outros seis conceitos, como
se fosse um meta-conceito, como dizemos dos factores em
relação às variáveis quando trabalhamos a análise factorial.
Também dizemos que eles são meta-variáveis, ou seja, são
umas variáveis mais amplas, porventura mais complexas,
que estão para além das outras e que as ultrapassam e
englobam. Esse encaixar, não sendo evidente, também
não me surgiu como impossível de explicar, ou de tornar
funcional.
Ou então o conceito não estava bem. E essa suspeita cada
vez crescia com mais intensidade dentro de mim. Sobretudo,
voltava sempre aí, quando pensava na sua incompatibilidade
145
com a arte. Por mais voltas que desse, por mais conceitos
que pudesse imaginar, eu não estaria nunca disposto a
imaginar um mundo sem arte.
Mas Rui queria mesmo dizer qualquer coisa mais. Algo
lapidar. Para ficar para a posteridade.
– Fica sabendo: a maior parte dos artistas são uns
complexados. Uns frustrados, uns impotentes. Nunca
ouviste dizer que a arte é a sublimação do sexo?
E é só por isso que querem fugir à realidade. É por
serem traumatizados. Querem evitar a realidade que
lhes dói. Não são corajosos, não são altruístas.
E a sua euforia louca foi a sua perdição.
– Os meus pintores dão metade do valor da venda
das obras, às vezes a totalidade, para pagar uma
parte significativa das despesas do nosso movimento
revolucionário.
Era agora a vez de Gonçalo se vingar do seu lapso a respeito
do restaurante.
– Os teus pintores? Que pintores tens tu?
Rui corou, mas decidiu, numa fracção de segundo, ir em
frente e não dar o braço a torcer:
– Eu tenho uma galeria de arte. E os pintores levam
lá os quadros, nós vendemos, e metade da venda,
normalmente mais, é para a causa. A outra metade,
ou o restante, é para os pintores, nós só ficamos com
muito pouco.
– Vocês vendem? Vocês, quem?
146
– Eu e a minha sócia. Agora é só ela, porque eu estou
aqui feito parvo.
– E ela também é do movimento?
– Não quero conversas sobre ela.
E virou-nos as costas, de novo remetido a um silêncio que
começava a ser típico nele. Era um silêncio de lágrimas
contidas, um abandono ao mais interior dos sofrimentos.
Também Rui tinha um mistério, um mistério que envolvia
uma mulher e uma galeria de arte. Tive uma vontade
irresistível, sem dúvida por vingança também, de saber um
detalhe:
– Nessa galeria, vocês só vendem neo-realismo ou
também vendem arte fútil, assim abstracta com duas
pinceladas a vermelho e uma a preto sobre fundo
branco?
– Acho que sim, também vendemos. Não a posso
obrigar a vender só os quadros que não nos dão dinheiro
algum.
E Gonçalo, muito acutilante
– Então – já percebi – ela não é do movimento. Quem
é ela, Rui?
Rui não merecia sofrer assim, quase a chorar de novo.
Para distrair o ambiente, contei-lhe de uma peça, lá do
meu teatro longínquo, que fazia a síntese entre as nossas
duas ideias: a minha e a dele. Já não me lembrava muito
bem, era uma síntese sobre a realidade e a irrealidade – a
Carminda aparecia com um vestido todo pintado de flores
e com uma enorme nuvem de algodão na mão esquerda.
147
Era nessa nuvem que ela pegava para dizer a primeira fala.
Muito a custo, tentava levantar a nuvem, escondendo-se:
– Se ele andava perdido nos labirintos do sonho
E largava a nuvem, deixava-a ficar para trás e aproximava-se
mais da boca da cena
– E eu marchava garbosamente
(esticando o peito)
pela estrada plana da realidade
Rui levantou os olhos húmidos à espera de mais, olhos
inocentes a estalar de amor e revolução
– Como é que acabámos por apanhar as mesmas
flores?
Enquanto Carminda acabava, agarrando as flores do seu
vestido, peguei suavemente na mão de Rui.
Em vez de um pranto, eventualmente um pouco descontrolado,
que eu esperava, Rui levantou-se e abraçou-me com
ternura. Manuel sorriu e piscou-me o olho. E fui eu que me
emocionei para além do esperado. Teria Rui entendido a força
insuperável do sentir da arte? Não a do seu entendimento
em projectos de futuro. Não. Apenas o sentir abstracto.
Imaterial. Intemporal.
E assim ficámos em silêncio. Quatro homens, quatro
solidões, quatro histórias de amor e de desalento. Ficámos
sentados, à espera não sabíamos de quê. Era impressionante
a diversidade da nossa humanidade. Quatro maneiras tão
distintas de sermos homens e, ao mesmo tempo, uma
mesma vontade de cumprirmos em grandeza o nosso
destino. E ajudarmos os homens e o mundo a, um dia,
serem melhores.
148
Tinha que me recompor, voltando à minha essência, agora
cada vez mais convencido de que, se calhar, não era a
palavra que procurava, tantas eram as dificuldades que ela
me trazia, tão difícil que se tinha tornado confiar nela.
Uma das piores constatações foi o facto suplementar de a
essência levantar um problema de base que é o de alguém
ter que decidir o que é essência e o que não é. Por exemplo,
vamos supor que a Internet, como dizia há pouco, é aceite
como bem não supérfluo. Mas, e um automóvel? E um avião?
Como conhecer o mundo e abater as barreiras ridículas que
separam os seres humanos uns dos outros sem a capacidade
de viajar, sem a intercomunicação? Aceita-se, então, que
haja aviões? E são usados em que circunstâncias? Mas,
acima de todos os problemas, quem é que decide isso tudo?
A minha teoria exigia uma quase polícia de costumes, como
o Marx precisou do cacete da ditadura do proletariado.
Por outro lado, a essência tinha outro problema que me
desagradava: a valorização da redução. Ou seja, a avaliação
positiva do negativo. Talvez não fosse nada de novo. O Marx
tinha feito bandeira da sociedade sem classes. Também
era a valorização de algo que não existia. Porque é que eu
não podia valorizar a ausência de bens supérfluos? Não ser
mais rico do que os outros não me parece muito diferente
de não ter mais bens materiais do que os outros. Vai dar
ao mesmo.
Mas essa era, justamente, a terceira coisa que me irritava: o
facto de a minha ideia ser tão parecida com a do Marx. Para
pior. Porque a lógica dele era a da igualdade (era estupidez,
mas as pessoas acreditavam que iriam viver tão bem como
os ricos). E a minha qual era? Era a de os pobres não terem
nem o pouco que tinham? E que lhes servisse de consolo
que os ricos também não teriam? Abóbora.
Eu precisava, já o tinha dito, de algo empolgante, que
apelasse ao sonho, a algo que nos transcendesse e nos
149
motivasse com todas as forças que temos. Algo, já agora,
um pouco parecido com a arte – que nos desse um pouco de
transfiguração. E andava à volta de um conceito que punha
a arte em causa!
A essência era o aquém de. E eu iria perceber mais tarde
que o meu conceito devia estar para além de. Um apelo
ao máximo de nós. Não, este conceito não iria vingar. Iria
descobrir um outro mais próximo do que sonhava. Um
conceito mais próximo de uma certa transcendência. Porque
ele também tinha que ter uma dimensão de tipo religioso.
Um conceito mais além. Como a arte e a transfiguração.
Também o Manuel apareceu transfigurado, de novo com
o cabelo molhado, interrompendo as minhas reflexões e
apontando discretamente com os olhos na direcção de um
Gonçalo que, ao fundo, o olhava com ar reprovador. Piscou-me o olho e disse, com um à vontade que cada vez mais
me parecia genuíno – e não a atrapalhação maluca que nos
queria impingir:
– Fui tomar banho na minha piscinástica.
Gonçalo nem pestanejou
– Vê lá mas é se não transformaste a casa de banho
numa piscinástica só para te fazeres de maluco.
Os olhos de Manuel mostravam bem o quanto ele estava
acima da menoridade que pretendia evidenciar. Passou no
piano e tocou dois ou três acordes, assim como que para
mostrar que os malucos éramos nós, e Rui não resistiu
– Toca!
Era um Rui aparentemente derrotado, apesar da
monumentalidade das suas convicções.
150
– Toca!
Papel manuscrito nº 5, parte II (tempo da
prisão)
Sim, Manuel, toca. Tu, que escondes os maiores
segredos, toca. Para sentires esses tais seres que,
como tu dizes, não sabes quem são. Esses espíritos
que te rodeiam quando dás o máximo de ti.
Talvez sejam os teus deuses do mar. Eu não lhes
conto, toca para os chamares. Eles virão, mas
eu não direi que eles estarão entre nós. Toca,
Manuel. Para eu esquecer o meu livro, e a
filosofia, e o mundo, para eu sentir a tua partida
para o lugar da ausência.
– Não toco! Só se tu me ajudares a escrever a carta
ao presidentário.
Manuel olhava Rui de lado, para ver a reacção.
– Eu ajudo! Tu ditas e eu escrevo. Dizes o que
quiseres.
Manuel parecia não acreditar. E foi a medo que se sentou
na mesa, enquanto Rui procurava papel e uma caneta. Rui,
estranhamente, não estava com ar de brincadeira. Que teria
sentido ele de diferente naquele dia? Teria tido um alívio
provocado pela sua confissão relativa à galeria de arte? Seria
algo relacionado com a rapariga? Se calhar – pensei –, não
151
era só eu que via Manuel de forma diferente, à medida que
o tempo ia passando. Embora eu soubesse de muitas coisas
que eles desconheciam. Mas era óbvio o respeito, talvez
carinho, de Rui naquele momento.
– Diz!
– Muito bem! Vou começar com uma graça, vou dizer
“De presidiário para presidentário”.
Enquanto Manuel ria, Rui olhava-o com um misto de surpresa
e de admiração.
– Não, Manuel! Tem que ser “Excelentíssimo Senhor
Presidente”.
– Presidentário. Está bem, escreve lá à tua maneira.
– E depois? Que lhe queres dizer?
– Queria perguntar-lhe, primeiro, se ele não acha que
faz mal às pessoas por andar com o nariz à mostra, mais
o bigodástico, cheio de pêlos, as senhoras que gritam
nos supermercados quando me dispo devem achar
que ele deve ser preso, como eu, por causa daquele
bigodástico tão feio. Depois, saber se as mulheres,
nuzásticas de todo, se ele não as acha broásticas
como eu? Ele deve ser um homem sexualástico e os
psiquiástricos já devem andar todos atrás dele – ele
que tenha cuidado.
– Manuel, eu não posso escrever isto...
– Pergunta-lhe se ele conhece aquele país, acho que é
na China, onde as pessoas que andam com bigodástico
à mostra são todas presas. Porque fazem mal às outras
pessoas e os psiquiástricos não deixam.
152
Era impossível. Rui mal tinha começado e já estava sem
saber o que fazer. Manuel continuava a inventar coisas,
ninguém percebia onde as ia buscar, Gonçalo também já
perdia a paciência
– Eu não deixo seguir essa carta!
e Rui já não tinha forças para lhe chamar fascista.
Acabei por deixá-los, ainda tinha as minhas notas por
terminar, enquanto Manuel apalhaçava definitivamente e
andava às voltas, dançando em volta de Rui, frente a um
Gonçalo cada vez mais enervado com as suas cantorias:
– O presidentário e o psiquiástrico casaram os dois!
Um era homem sexualástico e o outro gostava de
bigodásticos e de narizes grandes! Agora vão ter
muitos filhinhos iguais a eles e eu estou salvo porque
não tenho que os ver, não tenho que os aturar. Estou
completamente livre dessa gentástica toda porque
estou na prisão...
A cantilena era completamente desencontrada em termos
de letra e música, mas ele cantava com convicção perante
um Rui mais do que arrependido do seu altruísmo e da
sua bondade. Eles lá ficaram no andar de baixo e eu subi,
sorrindo do divertimento do Manuel e, ao mesmo tempo,
apreensivo da mudança profunda que estava a ter o meu
projecto.
No topo do farol estava tudo organizado, embora parado. À
espera. E eu andava um pouco desleixado. Haviam passado
alguns dias e eu não tinha controlado os indicadores, os
registos do radar, os registos de temperatura, as variações
sísmicas. Os dias haviam passado sem que me apetecesse
trabalhar lá para os lados do hipotético. A vida com aqueles
três era suficiente para o avanço da minha reflexão, embora
esse avanço não fosse, tinha que o admitir, muito visível.
153
Os registos não tinham nada de especial, uns picos
– eventualmente estranhos – de temperatura. Sobretudo
à noite. E mais nada. O mundo exterior estava calmo. Na
análise dos sons, houve uns zumbidos, também à noite.
Deviam ser barcos que passavam ao longe e tocavam a
sereia ao ver o farol. Sereia. Sinónimo de sirene. A palavra
deve ter derivado do latim, que em italiano sirena é sereia
e sirene ao mesmo tempo. Acho eu, que não sei italiano
nem latim. De repente, pensei se as deusas do mar de que
o Manuel falava não poderiam ser sereias. As outras sereias.
Pensei, será que a mulher que ele tanto ama não passa de
uma sereia? Seriam os relatos sobre a existência de sereias
a prova da visita de seres extraterrestres? As sereias que
cantavam para os marinheiros ouvirem, como a lenda da
Lorelei dos fiordes noruegueses? Sem dúvida que sirenes e
sereias tinham origem nos barcos e no mar. Seria possível
pensar que o verdadeiro contacto com esses seres só fosse
possível no mar? O que me faria estar no bom caminho?
Seriam tentativas de comunicação através da música? Como
no filme do Spielberg, os Encontros Imediatos …, o Truffaut
a comunicar com eles através dos sons e das cores. Música,
pintura, a abstracção da arte. Terão os extraterrestres a
experiência de tão profundo sentir?
Sentei-me a ler um livro, à luz frouxa do candeeiro, enquanto
eles, lá em baixo, faziam um concurso de poesia. Era suposto
eu ir mais tarde e nomear um vencedor. O livro era um ensaio
sobre a disparidade de conceitos de vida em função dos
diversos animais, sobretudo – mas não só – no que tinha a
ver com a sua dimensão. Isto, a propósito da capacidade de
os humanos poderem detectar a presença dos não humanos,
se um dia chegarem a confrontar-se. Um dos exemplos
analisados no livro era a capacidade de uma formiga ter
consciência da existência de um elefante. Ou de um insecto,
que não vê o mundo e as cores do mesmo modo que nós,
poder organizar o mesmo exterior em função de parâmetros
radicalmente distintos. Por exemplo, há objectos que esses
insectos, pura e simplesmente, não conseguem localizar, não
154
se apercebendo da sua presença. O que me levou a pensar se
os extraterrestres não estariam entre nós, eventualmente há
muito tempo, sem nós termos capacidade para os ver, para
nos apercebermos, como o insecto, da sua presença?
Havia depois outra questão, a das sereias. Suponhamos
que os extraterrestres têm uma forma estranha, que foge
à normalidade. Nessas circunstâncias, podem acontecer
duas coisas: ou não percebemos que “aquilo” são eles,
ou achamos que as pessoas que os avistaram são doidas
– ou sofrem alucinações. Há ainda a hipótese remota da
visitação da divindade, como em Fátima. Estas reflexões
tornavam-se tanto mais interessantes quanto mais me
lembrava da loucura do Manuel. Com efeito, para ele, não
existia essa coisa da normalidade. O que me fazia supor que,
provavelmente, só ele estivesse preparado para os ver. E,
quem sabe, só ele tivesse sido escolhido para os receber.
Justamente por causa da sua inocência.
Pelo livro, era possível perceber o quanto o “cosmos” de
uma formiga não ultrapassava umas centenas de metros.
Objecção do autor: mas a formiga não tem a nossa
inteligência; quem diz que, se a tivesse, não era capaz
de construir telescópios (não sei como uma formiga podia
construir telescópios, mas admitamos que sim) e entender
o Universo como nós? Resposta do autor: e quem diz que
a relação existente entre a inteligência (e o conhecimento,
deduz-se) da formiga e o nosso não é precisamente igual à
relação entre o nosso e o dos extraterrestres? Ou seja, se
nós formos um milhão de vezes mais inteligentes do que
a formiga e os extraterrestres o mesmo em relação a nós?
Possivelmente, o nosso Universo de milhões de anos-luz
será tão infimamente pequeno perante o deles, como o da
formiga o é perante o nosso.
Estava assim sentado à secretária, lendo o livro na penumbra,
quando o tio Saúl me fez uma festa na cabeça e disse:
– Não estudes mais. Já são horas de dormir.
155
Mas eu não estava a estudar, aquele livro era já uma
tentativa de me situar no mundo enorme que me envolvia.
Era um livro de Ciências. É certo que eu tinha que o estudar
para a escola, mas falava de um tempo em que ainda não
havia seres humanos, só havia dinossauros. E eu tinha
uma caderneta de cromos com o nome e a imagem dos
dinossauros todos. E queria perceber porque é que tinham
existido dinossauros numa altura em que não havia pessoas.
Eu era pequeno, mas tinha essa questão: que sentido fazia
haver o mundo todo, cheio de plantas e animais, e não
haver homens? Não concebia a existência, durante milhões
e milhões de anos, de um mundo sem a presença humana.
E também duvidava da coisa por causa de Deus. Achava
que Deus, caso existisse, não podia ter concebido as coisas
dessa maneira.
O tio Saúl devia saber
– Tio, que sentido faz o nosso mundo ter existido,
durante milhões e milhões de anos, cheio de plantas e
animais, e sem haver homens? E que sentido faz Deus
ter criado as coisas assim?
O meu tio sorriu, orgulhoso da minha busca, tão precoce,
dos milagres da existência. Fez-me uma festa
– Não estudes mais.
Mas eu tinha que fixar o nome dos dinossauros, era um
mundo paralelo – as pessoas não entendiam. Eu criava
um mundo meu, um segredo que era o início da minha
confrontação com a violência exterior. Do mundo dos
dinossauros, eu era o que sabia mais. Mesmo mais do que
o tio Saúl. Ele também tinha um mundo seu que os outros
não conheciam. Desse mundo sabia ele. Ele e o seu amigo
padre. O meu mundo era comigo. Era um mundo impossível
de ter sido verdade – era a minha interrogação metafísica a
nascer que mo revelava –, mas, ao mesmo tempo, os livros
diziam que era assim. E o tio Saúl confirmava.
156
Um dia, expliquei-lhe:
– Os homens não existiam porque os dinossauros eram
muito grandes e pisavam e destruíam tudo quando
passavam. Por isso, os homens não podiam ter casas,
cidades, porque os dinossauros não deixavam.
O tio Saúl dizia que sim com a cabeça, que entendia a minha
tese, e eu ficava todo emproado por estar a explicar coisas
aos adultos. E passeávamos pelas ruas da cidade, depois
do jantar, a ver os monumentos que, evidentemente, não
existiriam se ainda houvesse dinossauros por ali. E depois
chegávamos a casa para dormir, beber o leite e comer
as bolachas, e eu deitava-me com uma incompreensível
sensação de plenitude.
Mas era já o Manuel que me chamava lá de baixo, aos berros,
dizendo que os outros nunca mais acabavam de escrever
os poemas e ele já estava farto de esperar. Era hora de eu
descer e despedir-me do tio Saúl. Olhei o mar, depois de
apagar a luz, e dei por mim a pensar em como o mar era o
único sítio onde os dinossauros poderiam ainda morar.
A primeira ideia do concurso de poesia era fazê-lo todos
os meses, pelo menos, e, depois, organizar um livro para
memória futura, para que nos lembrássemos, para sempre,
dos tempos felizes da prisão. Mas a coisa nunca correu bem
e os poemas acabavam por ir todos para o lixo. Aquele dia
era apenas mais um a juntar a tantos outros.
O Manuel tinha sido o primeiro a terminar – era sempre,
aliás – e tinha, também para não variar, um poema muito
curtinho. Gonçalo havia terminado, mas Rui ainda estava às
voltas com a inspiração. Também eu pedi mais uns minutos
para escrever o meu. Já tinha pensado um pouco nisso, lá em
cima, enquanto recordava as minhas angústias metafísicas
e a minha relação, progressivamente mais difícil, com os
deuses e as religiões.
157
Quando os poemas estavam prontos, era costume lê-los em
voz alta, eu primeiro, depois o Manuel, depois o Gonçalo e,
finalmente, o Rui. Já não me lembro porque é que a ordem
era esta, se calhar tirámos à sorte. Cabia-me então a mim
começar, mas o Rui precisava de mais uns minutos.
O Manuel estava excitadíssimo
– O mundo é como um elástico, ora é uma porra ora
é broástico.
Gonçalo indignou-se
– Não era a tua vez. Não consegues fazer as coisas
como está combinado?
– Não era o meu poema, estava só a cantar.
E lá continuou a cantar a canção do elástico, enquanto Rui,
muito irritado, decidiu dar a tarefa por finda.
Decidi então começar
– O meu poema chama-se “A Deus”. Perceberam? “A
Deus”, como “A Gonçalo”, ou “A Rui”.
– Ou “A Manuel”!
– Sim, claro, Manuel. Posso continuar? Vou dizer então
o poema. O poema é
Adeus.
Ficaram todos calados.
– Já terminei. Era só isso.
158
O Manuel não se conteve
– Pára de dizer o título, já sabemos. Diz agora o
poema.
– Não, Manuel. Eu disse o poema. O poema é
Adeus.
– Como quando as pessoas se despedem umas das
outras. Adeus, até qualquer dia. Estou a despedir-me
de Deus, percebes?
Manuel ficou a olhar muito sério. Olhou para os outros, assim
como se duvidasse de o maluco ser mesmo ele, e disse:
– Não sabia que havia poesias com uma só palavra, já
podiam ter avisado. São poesias aldrabásticas. Bem,
agora sou eu. O meu poema chama-se “Alegria”. Vou
dizer. Atenção que também é pequenino. Mas para a
próxima ainda vai ser mais. Também vou fazer uma
aldrabástica.
Alegria
Felicidade sem amanhã.
– Também pensei chamar-lhe “Felicidade”. Ficava
assim:
A felicidade
É a alegria
Mais a eternidade.
159
Enquanto eu cada vez me convencia mais de que a maluquice
do Manuel era uma enorme impostura – nenhum maluco
conseguiria alguma vez escrever um poema com aquela
profundidade, Gonçalo avançou e disse apenas:
– O teu poema é muito bonito. Gosto mais da 2ª versão.
Parabéns, Manuel.
O meu poema é maior, mas não tem título. Vou ler:
Quando eu era miúdo
A vida girava em torno dos mais velhos
Eram eles que tinham a importância do passado
Hoje
A vida gira em torno dos mais novos
São eles que têm a importância do futuro
Não sei quando
Ou se alguma vez
A vida girou em torno de mim.
Sentimos forte a solidão de Gonçalo. Era como se, mais
uma vez, nos alertasse para a iminência do vazio. Manuel
também deu uma palmada nas costas de Gonçalo
– As poesias, hoje, estão broásticas.
Rui estava alarmado. Todos os nossos olhares convergiram
na sua direcção.
– A minha poesia chama-se “Sem ti”.
Estava a dizer coisas surdas, só para si, e as mãos faziam
tremer o papel, já amarrotado, que tinha à sua frente. Rui
tinha um olhar de grande melancolia, e foi com esse olhar
que repetiu:
160
– A minha poesia chama-se “Sem ti”. É importante
fixar o título.
E leu.
Esta coisa cá dentro
Dá voltas, fica a remoer
Por vezes dói
Assim um ardor
Outras vezes é de uma doçura
Como nunca
senti
Deve ser uma palavra a nascer
Deve ser uma palavra de amor
Deve ser para ti.
E foi como se dele tivesse saído um grito fundo, um
uivo de dor. E todos ficámos petrificados perante essa
assombração.
Alguns dias mais tarde, Rui iria revelar-nos o seu terrível
segredo, e iríamos ouvir a mais bela das histórias que ele
poderia alguma vez contar. Ela iria falar-nos – apesar de eu
ainda não estar preparado para a entender assim – do que
de mais alto os homens poderão algum dia atingir.
161
162
V
E lá chegou o dia planeado para ir ver a suposta amiga
do Manuel. Combinámos dizer-lhe que ele estava doente
e que o Gonçalo não o deixava ir à visita para não piorar.
E, nessas circunstâncias, alguém tinha que ir receber a
pessoa para lhe dar uma explicação e não a deixar ficar
alarmada. Era esta a justificação para eu poder aparecer e,
simultaneamente, falar-lhe a sós – se ela existisse mesmo,
precisava de perceber bem quem era.
Manuel estava excitadíssimo. E eu convencido de que tudo
aquilo era uma estupidez, pois de certeza que ninguém iria
aparecer. De certeza que era tudo imaginação delirante dele,
a sua visão louca de uma irrealidade impossível. Por outro
lado, tudo o que tinha acontecido no passado recente, tal
como as suas reacções naquele momento, indiciavam em
tudo o contrário: agarrava-se a mim, perguntava-me se
eu tinha gostado do seu “peixe”, fazia-me festas na cara e
dizia que eu era “porreirástico”. E, depois, lembrava-me,
pela milionésima vez, que devia explicar que a doença
não era nada de especial, evitando assim preocupações
desnecessárias. E pedia-me para lhe dizer o quanto estava
apaixonado. E que só pensava nela a toda a hora do dia e
da noite. Para ela acreditar.
A dada altura, perguntou-me
– Sabes o que é o amor? Sabes explicar-lhe isso do
amor que sinto?
163
Fiquei a perguntar-me o mesmo. E cheguei à conclusão de
que não saberia dar-lhe resposta verdadeira
– Não amarei mais ninguém
(e a dor, para sempre, em mim)
ou talvez não quisesse simplesmente ouvi-la. Mas é óbvio
que respondi que sim, naquele estado do campeonato, não
o podia desiludir.
Mas o pior de tudo foi o seu pedido final, o pedido mais difícil.
Era também preciso eu dizer-lhe que ele, mais dia menos
dia, iria fugir da prisão, e que ela devia estar preparada para
irem para muito longe
– Para muito longe.
Dizia, olhando novamente para os infinitos do céu e do
mar.
A minha primeira reacção foi muito negativa. Não me queria
sujeitar a colocar em risco a minha permanência na prisão
e, consequentemente, toda a minha investigação, por
causa da maluquice dele. Ainda por cima, as visitas eram
efectuadas numa outra prisão, numa ilha próxima (havia um
trajecto duas vezes por semana para vir buscar os presos,
juntamente com o próprio Gonçalo, para levar às visitas, ao
médico, a certas refeições especiais, etc., enquanto alguém
ficava na nossa ilha a limpar, a reabastecer as faltas e a
deixar as coisas preparadas para as outras refeições). E
eu não tinha facilidade de falar com os guardas de lá para
arranjar uma solução para uma conversa mais privada.
O trajecto para a outra ilha foi, assim, um pouco tenso, com
o Manuel a olhar-me de lado e a sussurrar
– És um cobardolástico
164
e outros insultos, certamente ainda piores, em surdina.
Mas, quando chegámos, e perante a sua insistência quase
lacrimejante, lá me resolvi a ir falar com o guarda responsável
pelas visitas para me arranjar uma mesa um pouco separada
das outras, embora os guardas escutassem normalmente as
conversas todas, invocando que a visita era para mim e que
eu não estava ao abrigo das regras habitualmente usadas
para os outros presos. E foi assim que, face ao meu estatuto
diferenciado, foi possível arranjar um local quase perfeito.
Quando chegou a hora, Manuel, com o olhar atrevido – mas,
ao mesmo tempo, comovido –, veio ter comigo, pousou-me as
mãos sobre os ombros, olhou-me e abraçou-me ternamente.
E assim ficámos um pouco. Por momentos, senti de novo
Manuel como um homem de uma dimensão superior, e o seu
coração, que batia tão perto do meu, contagiou-me de uma
sensação de pureza absoluta. Manuel amava até ao limite.
Amava a sua mulher, mas, acima de tudo, a sua visão de
uma vida sensível e bela. E amava a sua liberdade total.
Manuel era um homem bom. Puro. Era óbvio que alguém
o esperava. Ele merecia. Era um homem com um interior
que justificava o amor da mais bela das mulheres. E essa
mulher, cuja presença na visita eu já não punha em dúvida,
devia ser de igual dimensão. Pensei que a dimensão das
mulheres é um pouco aquela que os seus homens merecem.
E, de facto, que mulher podia alguma vez amar o Manuel se
não compreendesse em profundidade a grandeza que nele
havia? Uma grandeza funda, escondida, que só uma grande
mulher pode entender.
A mim, a dimensão de mulher que me coube foi a da
ausência. Foi a que mereci. A minha grandeza nula. No
entanto, ela disse-me
– Não amarei mais ninguém
sim, ela disse-me isso, que nunca amaria mais ninguém.
Ou então fui eu que imaginei. O que poderia significar que
165
nunca poderia amar ninguém depois de mim. Mas como
posso eu ter a certeza disso? E o significado disso seria o
que penso, ou seja, que a minha grandeza existia, apesar
de tudo? Ou existia antes em mim o vácuo, a rarefacção, a
ausência que ela me deixou?
A rapariga já estava sentada quando cheguei. Era
extremamente bela de cara e parecia ser muito elegante.
Alta, cabelos louros, olhos claros, chamava-se Maria qualquer
coisa, não percebi bem – foi estupidez ter-me esquecido de
perguntar ao Manuel –, mas, para mim, Maria era suficiente.
Olhava-me séria, imperturbável, enquanto eu me desfazia
em explicações e em tentativas de simpatia. Ela parecia ser
muito inteligente, pelo menos comparando com a minha
fraca figura a tentar justificar a ausência do Manuel.
Quando terminei o rol de justificações que tinha preparado,
ela agradeceu e fez um gesto para se levantar e sair, reacção
óbvia de quem não tinha nada para me dizer. Mas agarrei-lhe
o braço, e foi aí que senti a sua pele sedosa e suave, mas
lisa, terrivelmente lisa. E fria. Senti algo de estranho nela,
assim de certo modo ausente, como se a minha presença e
o que dizia não lhe pudesse interessar para coisa nenhuma.
Nem tão-pouco conseguindo perceber o que é que eu teria
mais para lhe dizer. De certa forma, senti-me pressionado,
e foi de forma abrupta que lhe expliquei, baixinho, que tinha
sido “mobilizado” para ajudar o Manuel a fugir da prisão.
Ela não respondeu, ficou séria a olhar para mim, como se
estivesse a estudar-me, ou à espera que eu dissesse mais
coisas, ou talvez terminasse de uma vez. Com o ar de quem
não tem que me explicar coisa nenhuma e só está ali para
receber informação. Um ar altivo, mas talvez também um
pouco receoso. Sentindo-me de novo pressionado, disse-lhe
o quanto o Manuel a amava, falei-lhe da sua ideia de escrever
um romance “broástico”, de se ter apaixonado por ela e,
daí decorrendo, de se ter apaixonado por uma beleza mais
global, onde estava incluída a arte, neste caso a literatura.
166
E expliquei-lhe que o Manuel ficava por vezes absorto – não
lhe falei, é claro, das mulheres nuas –, demonstrando a
sua vontade de partir e olhando para um longe perdido nos
confins do céu e do mar.
Nesse momento, reparei num ligeiro acenar vertical
de cabeça, como se me transmitisse a ideia de estar a
perceber perfeitamente o que eu queria dizer. Mais, como
se entendendo perfeitamente a razão de tal reacção por
parte dele. E eu calei-me, já não sabia o que havia de dizer
mais, quando percebi que ela se decidira a falar, mas tão
baixo que mal a ouvi:
– Eu sei isso tudo, o Manuel é um ser humano
excepcional.
Disse mais qualquer coisa que me pareceu “é um exemplar
único”, coisa estranha de se dizer, se calhar disse que ele
era exemplar e único.
Depois, continuou:
– Quanto àquela história de ele fugir, não acredito
numa coisa dessas. Manuel será libertado em breve,
tenho a certeza. Não precisa de fugir, nem ele é capaz
de o fazer. No entanto, se ele assim o decidir, ou se o
convencerem ...
Fez uma pausa e olhou-me nos olhos com severidade
– ... eu preciso de saber antes. Tenho que ser
previamente avisada da data.
Eu estava nervoso, um pouco constrangido, agora que sabia
que aquela mulher existia e que o Manuel não tinha inventado
tudo. Nem tinha mentido. Era, aliás, impressionante o ele
não ter inventado nada, nem mentido em relação a coisa
alguma. Primeiro, o golfinho. Agora, a mulher. Era como
167
se se provasse, naquela situação, a hipótese por mim já
equacionada de os malucos sermos todos nós. Ou como
se nós vivêssemos num mundo paralelo ao dele, e, por
isso, o seu mundo nos parecesse estranho. Como, muito
provavelmente ele sentiria em relação a nós. Mas dois
mundos de igual verdade, de idêntica autenticidade. Não
falando pelos outros, era absolutamente urgente eu começar
a lidar com o Manuel como um igual.
Estava a olhar para ela, numa fracção de segundo intercalar
às secas palavras e frases que íamos trocando, quando
percebi que usava um fio ao pescoço com um pequeno
golfinho branco pendurado. Pareceu-me que ela reparara na
minha descoberta, mas, talvez para se recompor, ia dizer
uma qualquer coisa que eu interrompi
– Maria, você sabe da história do golfinho?
– Qual golfinho?
– O Manuel diz que vai fugir a cavalo num golfinho,
singrando pelos mares a caminho dos deuses seus
amigos.
– Amigos dele?
– Não, seus.
E apontei com os olhos para ela. Ela esboçou um leve
sorriso, mas fez um esforço – estranho, pensei – para eu
não perceber.
– Ai é assim que ele vai fugir?
– É.
– E vocês acreditam numa história dessas? Ele
provavelmente imaginou isso por eu lhe dizer que gosto
muito de golfinhos e por usar um golfinho ao peito…
168
Ela mal me olhava, mantinha um ar distante. Por isso, sentime um pouco ofendido, como se fosse um palerma que só
ia ali dizer coisas inconsequentes. Apesar de o querer evitar,
perante um novo gesto seu que traduzia a sua impaciência e
a vontade premente de se ir embora, acabei por confessar
– Maria, eu vi o golfinho!
– Eu também já vi muitos.
– Mas eu vi o Manuel montado nele a passear no meio
do mar.
– Malucos. Acredite que vocês são mais malucos do
que ele.
Ela falava de forma monocórdica, assim um bocadinho aos
solavancos, parecia frieza, como a das mãos. Parecia que não
tinha entoação. Ou que não tinha emoção. Dava a sensação
de querer medir de forma exacta, e cautelosa, tudo o que
dizia. Seria por desconfiar de mim?
Para a testar um pouco, atrevi-me:
– Sabe quem eu sou?
– Já me disse.
– O Manuel nunca lhe falou de mim?
– Vagamente.
– Sabe que eu não sou um preso?
– É um guarda? Mas disse-me que era um companheiro
do Manuel!
– É importante que perceba que não sou um preso
comum, sou um cientista que veio para esta prisão fazer
169
um conjunto de estudos sobre o mar e sobre algumas
estranhas aparições que nele têm ocorrido.
Maria pareceu subitamente interessada.
– Aparições?
– Sim, não posso falar muito em detalhe sobre isso,
mas espero detectar a presença de inteligência nãohumana. É tudo o que lhe posso dizer.
Ela baixou a cabeça, sorriu – o que aconteceu pela primeira
vez –, e tentou levantar-se. Mas foi no limite que eu consegui
ainda uma última pergunta:
– Maria, você gosta mesmo do Manuel?
– Dava a vida por ele.
Terminou de falar, baixou a cabeça e saiu. E eu não pude
evitá-lo. Ela saiu com energia transbordante, e alguma
teatralidade, e eu não consegui deixar de olhar para o seu
corpo, de uma elegância de invejar o Manuel até ao fim dos
tempos. Fiquei tão aparvalhado, que me deixei ficar sentado
um pouco mais, sem saber ao certo como contar tudo ao
Manuel e, confesso, fechando os olhos para recordar o seu
corpo, o peito, o ondear das ancas e o rabo, sobretudo o
rabo, perfeito, emergindo, vitorioso, de um vestido justo.
Os guardas, que, felizmente, se mantiveram distantes e não
ouviram nada da conversa, piscaram-me o olho e fizeram um
gesto com a mão, com o polegar erguido, para me mostrar
quanta inveja tinham da minha pessoa e dos meus dotes
de conquistador.
De repente, surgiu-me uma dúvida essencial: não a teriam
já visto com o Manuel? Como é que eu me pude esquecer
de tal coisa? Que terão os guardas pensado? Que eu roubei
170
a rapariga ao desgraçado? Não, pensei melhor, desgraçado
era mesmo eu, que nunca haveria de conseguir arranjar
uma mulher assim.
No entanto, fiquei preocupado. Preocupou-me, em primeiro
lugar, a sua falta de naturalidade. Parecia que respondia de
uma forma artificial – sem emoção, é certo –, mas sobretudo
como se as respostas fossem escolhidas de entre várias
respostas possíveis previamente programadas. Era isso!
Parecia um robot, como se a sua fala fosse emitida por
um computador. Mas não era robot nenhum. Nem o Miguel
Ângelo conseguia esculpir um corpo daqueles. Nem nenhum
robot conseguiria alguma vez produzir aquele sorriso final.
Aí, a sua humanidade, mesmo a sua feminilidade, foi total.
Pensei em como ela era um “exemplar único” – como ela
disse a propósito do Manuel – de mulher. Eu não conseguia
afastar a imagem sublime daquele seu rabo perfeito da
minha retina.
Mas fiquei também a matutar na sua frieza. Pensei que talvez
fosse desconfiança, eu podia ser um guarda disfarçado. Só
no fim é que lhe expliquei que era um cientista. Podia ter
estado com aquela conversa para tentar descobrir se havia
algum plano de fuga. Ela foi esperta em negar. E daí, se
calhar, a frieza. Deve ter pensado que era uma armadilha.
Pois! Era isso que iria contar ao Manuel. Que ela não só
era linda, como uma pessoa extremamente inteligente e
prudente. Ele haveria de ficar contente.
Mas não pude deixar de voltar a sentir alguma estranheza
em relação à situação. A atitude dela tinha-me levantado
muitas dúvidas. Ela não era muito normal. Responder que
dava a vida por ele? Que coisa mais exagerada, sobretudo
numa pessoa que foi tão prudente e parca de palavras. E
qual o objectivo de saber o dia da fuga? Porquê ter que ser
avisada antes? Se era para se preparar, tinha uma certa
lógica. Ou seria para poder justificar-se, caso eu fosse
polícia, com a necessidade de denunciar, atempadamente,
171
a fuga às autoridades? Mas porque não supor a hipótese de
ser ela própria uma polícia que se insinuou junto do Manuel
para conhecer pormenores da vida na prisão, como fugas,
por exemplo? O Manuel, desbocado como era, contar-lhe-ia
tudo. Era um bom truque. Mas, pensando bem, altamente
inverosímil. Nessas circunstâncias, não teria negado a
hipótese de o Manuel ter decidido tal coisa. Haveria, antes,
de ter perguntado os pormenores todos. Assim como não
iria responder aquela coisa de dar a vida por ele. Por outro
lado, que história era essa de ele ser libertado em breve?
Que sabia ela sobre isso? E como o saberia? Porque é que
nunca tinha falado disso ao Manuel? Sim, porque se tivesse
falado, ele não haveria de estar tão desejoso de fugir…
– Não deves fugir dos cães.
Eu, no início, tinha medo dos cães. Fugia-lhes e eles
começavam a correr atrás de mim para me morder.
Um dia, o tio Saúl e eu passeávamos no campo, embora
perto da cidade, e apareceu um cão a ladrar. E ele disse
– Não deves fugir, vou-te mostrar.
Baixou-se em frente ao cão, pôs-se de cócoras e estendeu-lhe
as mãos falando-lhe baixo. Olhava muito sério para o cão
e, com muita calma, dizia-lhe
– Anda cá.
Muito sério. E o cão veio até muito perto, cheirou-lhe as
mãos e foi-se embora sem ladrar mais.
O tio Saúl explicou-me que os cães sentiam o nosso medo.
Sobretudo se fugíssemos. Tínhamos que olhar sério, sentir
força, ter coragem – por exemplo, pensando assim para nós
próprios: “cão, se me mordes, levas uma coça”. E falar com
o cão baixinho, mostrar-lhe as mãos, para provar que não
172
tínhamos medo. Só não podíamos fazer isso, ele também
explicou, com cães especialmente treinados, com cães presos,
ou com cães que estivessem a guardar qualquer coisa.
Depois, disse também que os homens não devem fugir – o tio
Saúl não tinha medo de ninguém. Não era só por ser muito
forte, que era, mas, acima de tudo, por ser muito corajoso.
O tio Saúl era o mais corajoso dos homens.
– Não deves fugir.
E, depois, pensei em algo que me tinha passado despercebido.
Maria tinha-me mentido. Ela disse que tinha explicado ao
Manuel que gostava muito de golfinhos, mas ele nunca tinha
ouvido falar de golfinhos na vida. Ele chamava-lhe peixe.
Aliás, ela não parecera muito convincente quando mostrou
tanto espanto a respeito da fuga do Manuel às costas de
um golfinho. Toda esta história não deixava de ser muito
estranha.
Mas disse, e isso já não era tão estranho – eu já o havia
pensado mil vezes –, que os maiores malucos éramos nós.
O que, sendo uma resposta lógica perante aquela troca de
palavras, me parecera ter um outro alcance. Aliás, ela tinha
dito que nós éramos mais malucos do que ele. Nós quem?
E o ar superior, doutoral, mas também paternalista
– Acredite que vocês são mais malucos do que ele.
Por último, fiquei perfeitamente convencido de que ela sabia
de toda a história do golfinho. Tal implicava, para mim,
repensar a fundo, e urgentemente, toda a nossa visão sobre
a doidice do Manuel. A nossa compreensão da sua pessoa,
a nossa “teoria” sobre ele, tinha que ser reformulada.
Tal como a minha teoria filosófica. A essência surgia-me cada
vez mais longínqua, já começava mesmo a ter dúvidas sobre o
interesse do meu plano analítico, que antes me tinha parecido
173
tão fundamental. O meu raciocínio deixava cada vez mais
embalar-se pela imaginação, por outras palavras, a velha e
douta Razão conduzia-me a um cada vez maior impasse.
Independentemente do plano que definia os quatro
conceitos identificativos da minha reflexão, era talvez a
velha Antropologia que ia, progressivamente, orientando
a busca da palavra central, quer empurrando-me para a
ideia de cultura – no fundo, o seu objecto de estudo –,
quer recordando-me os primórdios da organização humana,
através do estudo dos chamados povos “primitivos”, onde se
privilegia o saber como fonte de autoridade na comunidade.
São os conselhos dos sábios, normalmente associando essa
sabedoria ao peso da idade, que condicionam a acção desse
conjunto de humanos, mesmo quando o poder executivo é
confiado a um chefe mais jovem, o que é feito com o objectivo
de conduzir esse povo na caça, ou na guerra. De resto, essa
ideia de “respeito pelos mais velhos” é certamente originária
desse tempo, em que os mais velhos não tinham, como hoje
acontece, mais poder por via da idade e, muitas vezes, por
via do maior poderio material – posse de terras, posse dos
bens –, mas pelo facto de serem mais cultos, mais sábios.
Voltei a olhar para o meu velho plano,
Diferenciação / individualidade
Liberdade
Mais / sonho
Plenitude espiritual / espírito
e foi com excitação que compreendi até que ponto o saber,
visto numa perspectiva cultural, ou seja, entendido como um
174
instrumento útil para a vida concreta dos povos e não como
um mero deleite de erudição, podia perfeitamente adaptar-se
ao centro dos quatro pólos pré-definidos. Diferenciação
certamente, porque o saber é infinito (pelo menos hoje
– Leibniz terá sido o último homem que soube tudo sobre o
seu tempo) e portanto é sempre possível alguém “especializarse” num determinado campo e assegurar a diferenciação. Ou
mesmo apresentar uma diferente perspectiva das coisas.
Plenitude espiritual: dificilmente se encontrará outra
actividade humana – talvez só a arte – que incida tanto sobre
a actividade do espírito e na qual seja tão fácil o acesso a
essa ideia difusa de plenitude espiritual. Aliás, muitas foram
as religiões antigas que identificaram o Absoluto com o
máximo de conhecimento. Uma espécie de sobreposição
entre o divino e a sabedoria.
De facto, e voltando à questão de há pouco, o saber permitia
uma diferenciação espiritual por oposição, tal como eu
pretendia, a uma diferenciação material ou económica.
Por outro lado, o saber está intimamente ligado a essa
aspiração de mais, procurar algo para além de. A perspectiva
de ir mais longe. É engraçado o quanto existe uma consciência
generalizada de que o saber não tem fim.
E havia ainda a liberdade. Aqui, o saber teria que ser
associado à actividade científica. O que, aliás, também
acontecia um pouco no ponto anterior. No fundo, é a ideia da
procura não constrangida da informação. Não ter limitações.
Ser possível orientar o saber na direcção que se quiser.
Por último, o saber também englobava os conceitos do
Manuel: a inocência e a verdade.
A inocência, a pureza, confundem-se com a aprendizagem.
É na infância que existe maior vontade de adquirir
conhecimentos. É nesse momento que estamos prontos
175
para aprender tudo. E tudo recebemos. Porque não
filtramos. Acreditamos que vale a pena tudo aprender. Não
perguntamos: “para que é que isto me servirá no futuro?”
A inocência é a base da aquisição do saber profundo.
E que outro objectivo existe no saber, senão a descoberta da
verdade? Ou, pelo menos, o ensaio de múltiplas tentativas
para descobrir a verdade, interpretar o modo como o mundo
funciona, tentar compreender a vida. Tanto que se valoriza a
palavra verdade no abstracto, mas nem sempre no concreto
da vida real.
Mas era agora o Manuel que me puxava, com toda a força,
para lhe contar sobre o meu encontro com Maria. Ao contarlhe, por alto, a nossa conversa, temi que ele tentasse
conhecer a verdade da minha opinião, que ele tentasse
saber mais do que eu queria dizer. Mas o nosso amigo não
achou nada estranho. Também não lhe contei aquela história
de ele vir a ser libertado em breve. Mas, quanto ao resto,
disse que ela era mesmo assim, muito calma e recatada, não
se entusiasmando com facilidade. Manuel perguntava-me
com ansiedade se eu achava que ela o amava. Ao que eu
respondi que sim, e voltei a insistir que sim, para ele ficar
sossegado. Apeteceu-me dizer que achava que ela daria
a vida por ele. Só não percebeu – confirmando as minhas
suspeitas – porque é que ela não queria que ele fugisse. E
ficou um pouco pensativo. E eu fiquei também a pensar no
que é que se passaria naquela cabeça tão misteriosa...
Na minha, não consegui afastar a ideia daquela mulher tão
bela, mas ao mesmo tempo tão reduzida a um contacto
humano essencial, ou seja, tão focalizada no essencial da
conversa. Talvez daí a ideia de frieza que senti.
Frieza que me enche a memória de uma frieza ainda maior,
mágoa do meu amor perdido. Penso na Amália, sim, claro,
sempre, mas também na Daniela que, a dada altura, resolveu
apaixonar-se por mim. Ou então foi só um devaneio. Mas
176
eu não podia permiti-lo. Também eu, tal como a Amália,
não podia amar mais ninguém. E depois, lá no teatro, era
muito complicado se houvesse relações amorosas entre
nós. Já chegava o António e a Carminda. Mas a Daniela
era linda, tinha uma beleza infinita – eu costumava dizer
assim. Estranho, o mundo do amor. É o mundo mais belo
que alguma vez pode existir. Mais belo ainda do que o da
arte. Aliás, o mundo da arte é seu filho. Porque é o mundo
do amor que produz tudo o que de mais belo existe. Mas é,
ao mesmo tempo, um mundo de sofrimento. E de negações.
Prisões emocionais, regras às quais nos obrigamos. Sem
muitas vezes perceber porquê. O mundo do amor sempre foi
um mistério para mim. Sempre me interroguei sobre o que
é que leva uma mulher bela a amar um homem com fraca
figura, ou feio, ou sem categoria. E sobre o que é que leva
uma pessoa a escolher uma outra em milhares de pessoas
que conheceu. Porquê aquela pessoa? Porque é que tem
que ser aquela? E, por vezes, com um amor que dura uma
vida inteira?
Um dia, no meio de uma peça – e, acima de tudo, em frente
de uma plateia cheia –, Daniela resolveu acrescentar uma
fala ao guião, só para me perturbar. E para mostrar o seu
amor por mim. De repente, lá quando achou apropriado,
agarrou-me e como que declamou, com intensidade
– Nasci virada para o mar sem nome
Com o tempo, voltei-me para ti.
E eu pensei: agarra-a
– Não deves fugir
e ama-a.
Pensei em ceder às minhas amarras e beijá-la, como se fizesse
também parte da peça. Eu, de certa maneira, amava-a. Mas
177
não podia amar. Amália olhava-me lá do longe onde mora,
lá para os lados de todas ausências. Não, eu não podia amar
a beleza infinita da Daniela.
Papel manuscrito nº 6 (tempo da prisão)
O saber é, definitivamente, a palavra. Acredito
que a tenha encontrado. Só não percebo o que
tem a ver com o segredo do mar. Nem com o
que estava dentro de mim e, hipoteticamente,
perdi. É verdade que o desejo de saber foi
muito importante para mim no passado.
Na adolescência, foi uma experiência muito
intensa. Mas, em contrapartida, não acho que
seja algo que eu tenha perdido. Mantenho essa
febre intacta, e é com ela que conto chegar ao
fim do meu projecto e à construção da minha
filosofia.
A cultura, o saber, o sonho de ser mais. Tudo
isso me lembro de ter vivido. Mal tinha entrado na
adolescência, ou saído – foi tudo tão rápido –, comprei
um cachimbo para me irmanar aos deuses
da filosofia, da intelectualidade, do saber
desmesurado. Mas o meu mundo ainda não era
esse. As ideias voavam, etéreas, sem que em mim
178
houvesse carne que as assimilasse. O meu mundo
era o da música. O da música “pop”, aquela que
foi música para mim antes de todas as outras.
O fascínio que em mim causava a dissonância,
os sons difíceis, metálicos, percussores. Era como
se estivesse em avanço em relação aos outros,
aos da minha idade. A sensação de ter passado
uma fronteira qualquer. Visitando um país
estranho e longínquo. E, por isso, misterioso
e sedutor. Mas também a consciência – não
sei se era bem consciência ou apenas um sentir
embrionário – de que a verdadeira arte tinha
que necessariamente ser difícil. Porque só isso
a tornaria especial e diferenciada em relação
à outra. E depois, de repente, a beleza da
harmonia, que nos dava a certeza de termos feito
bem em esperar. De aquele ser mesmo o mundo
que procurávamos.
O som “progressivo”, ou o “rock progressivo”, já
não me lembro. E o orgulho em conhecer os nomes,
os percursos, as manias e as excentricidades, o
orgulho ainda maior de conhecer os nomes dos
músicos mais sombrios, tenebrosos de génio e de
inverosímil. Aqueles com que só os iniciados
conviviam. Ir à Alemanha, pela primeira vez na
179
vida, e procurar, como os nativos, os discos dos
Amon Duul. Ou dos Can. O limite ao alcance das
mãos de uma ainda criança, no entanto já tão
longe do seu país natal. Mas éramos adolescentes,
não tínhamos país, morávamos no mundo global
da nossa imaginação. No mundo total, o mundo
das guitarras e da liberdade. A vida estava toda
ainda para vir. Uma vida grandiosa, mas,
sobretudo, uma vida muito sentida. Negação
da superficialidade, do efémero. Uma vontade
muito grande de sermos. De vivermos uma vida
autêntica. E única. Éramos três ou quatro
amigos e amávamos a música. E o saber da
música. Cada um gostava dos seus grupos, dos
seus discos específicos. Estávamos também a
aprender a nossa individualidade.
À procura de sermos homens, amámos a elevação
espiritual do saber como amámos o sonho de
mudar o mundo. Demos tudo. Pelo amor às
causas, aos ideais. Ao mundo à nossa volta.
Éramos pequenos mas éramos grandes. Tínhamos
nas nossas mãos a vida e os sonhos do futuro.
Individualidade, sonho, deleite espiritual,
liberdade. Éramos nós próprios o centro do plano
180
interpretativo que procuro hoje. Porventura
estive mais perto do segredo nesse tempo. Todos
esses conceitos, e mais a inocência e a verdade
que disse serem próprias do saber. Procurávamos
uma nova humanidade, um futuro feito à
medida de quem queria tudo o que era possível
esperar dos deuses. Com a música como bandeira
da modernidade dos tempos. E enquanto os
outros da nossa idade usavam a música mais
melódica para dançar com as raparigas, fazendo
justiça à sua condição de adolescentes iniciados
às seduções do amor e da beleza do corpo das
mulheres, nós descobríamos a música mais
complexa e mais sublime, na invenção de um
mundo novo que se sobrepunha à mesquinhez do
nosso mundo vivido, para fazermos as revoluções
onde espalhávamos o amor pelos homens e a beleza
dos ideais da liberdade.
Havia um termo na altura, lembro-me agora,
que era “psicadélico”. Música feita com as
drogas alucinogénias que recusávamos. A nossa
música, embora também de experiencialismo
sonoro, era de uma outra dimensão. Dizíamos
que a nossa era música “de vanguarda”, para
estarmos mais à frente no tempo. Já sentados,
181
instalados, no mundo de futuro que nos
esperava. A nossa visão cultural era, toda ela,
construída em ruptura com um passado que
nos havia crucificado. Passado de sufoco e de
prisão, tinha-nos tirado a possibilidade de
viver uma vida baseada no prazer e na alegria.
Uma vida confinada ao mundo das ideias,
obrigados a arriscar tudo o que nos era possível
com a nossa idade. Obrigados a arriscar o que
tínhamos de mais precioso: o futuro. O medo de
sermos apanhados, de ser presos, de ir para a
guerra. De perder tudo. Fomos obrigados a um
heroísmo de homens, quando precisávamos do
juvenil afago do amor. Fomos empurrados para a
necessidade de dar tudo de nós, quando era a vez
de a vida ser generosa connosco, após quase duas
décadas de submissão à escola, à família, a um
mundo exterior cujo peso nos vergava e oprimia.
Avançámos com o peito aberto na direcção da
fúria das espingardas, quando era idade para
outros peitos, e outras armas.
E tanto que ignorávamos a música antiga
– meu Bach, como te deves ter rido de mim.
Às vezes havia pianos disfarçados que vinham
182
desses tempos antigos e nós não sabíamos. O
nosso presente já havia sido o futuro de outros.
E era sempre a música a trazer essa notícia de
que havia algo que justificava a paixão dos
homens. A música era, para nós, a maior dessas
paixões. Era música com letra, fascínio de quem
não sabia que existia a música absoluta. E não
conhecia o doce aconchego da poesia.
As ideias, as mensagens, ajudavam-nos a
construir o homem do futuro. Tínhamos esse
sonho altruísta. Oferecíamos a nossa vida, se
preciso fosse, com um desprendimento que só era
possível pelo facto de a nossa vida, em bom rigor,
ainda não existir. Era a oferecê-la que nós a
íamos, a pouco e pouco, fazendo nascer.
A cultura. O sonho da cultura. O saber. A
Filosofia. Pensar o mundo. A música. Sentir
o mundo. Amar o mundo. Amar os homens. A
essência da vida.
Foi este o amor do início da minha adolescência. Quando
Amália era apenas uma amiga quase irmã. Era o amor pelo
mundo que nos rodeia, por contraponto ao amor sexual. Não
é bem isso, era um sentimento em oposição ao amor dirigido.
183
Porque há o amor dirigido, concreto, por uma mulher, por
um filho, por um livro, por uma profissão. E depois há o
amor abstracto, o amor pelos homens no seu todo, mas
também pelas plantas e pela Natureza. Pelo mar. É um amor
abstracto, absoluto. Era este último que me preenchia na
adolescência, como é o que me preenche agora.
É esse amor que nos traz uma espécie de paz interior,
uma sensação de serenidade, assim como a consciência de
estarmos a ser altruístas – e não egoístas, como no caso
do amor concreto –, com vista a deixar a nossa marca
para sempre. O nosso amor abstracto é a fonte da nossa
dedicação ao bem comum e, consequentemente, a origem do
rasto de esperança que deixamos. Como acontecia naquele
texto, que eu tanto gostava de declamar, tentando fazê-lo
com força, para compensar a voz que sempre me tremia, e
tantas vezes me falhava.
Chegava à boca de cena com umas vestes compridas,
cinzentas, e um enorme bordão, qual Moisés a anunciar o
futuro radioso da Humanidade. Era então que pedia tudo à
voz e aos meus nervos sempre frágeis nestes momentos
– É possível sorrirmos
Ter nas pontas dos dedos a angústia dos homens
E olhar
E olhava para toda a assistência, em pausa, antes de
terminar
- É possível olharmos.
O amor abstracto. O amor total. Anunciador da esperança
dos homens.
Esperança renascida, agora, com a minha descoberta do
saber, de facto, um conceito, uma palavra, infinitamente
mais inteligente do que a essência.
184
Projectemos uma aplicação concreta desta minha teoria, tal
como a imaginei na altura. Suponhamos que ela era posta
em prática neste momento. Quais seriam, num contexto
assim, as suas vantagens relativamente à teoria da essência
ou, mesmo, à teoria marxista? Veremos que, de facto, a
teoria do saber é muito mais inteligente.
Primeiro, porque ninguém tem que decidir nada. Não tem
que existir uma autoridade por detrás, com todos os poderes,
para obrigar os ricos a dar aos pobres ou para impedir que se
fabrique mais do que o essencial. Foi assim que o marxismo
sempre degenerou em opressão duradoura. A necessidade
de existir uma entidade reguladora transforma os líderes
de uma revolução em ditadores que nunca mais quererão
abandonar o poder e os privilégios. No caso da minha teoria,
não. Os mais poderosos serão os mais sábios, e só ficarão
no poder enquanto não houver um maior ou mais adaptado
tipo de conhecimento. Cada um pode decidir por si o saber a
conquistar, ou a teorização do mundo a inventar, em vez de
estar dependente de outros para poder descobrir a essência
que lhe cabe.
Segundo, porque tem, como eu queria, uma valorização
pela positiva. Não corresponde a algo que nós sonhamos
não ter, mas sim um inesgotável, um ilimitado a adquirir.
Esse inesgotável permite um sonho que perdurará para
sempre. A sociedade não evoluirá para uma situação parada,
estagnada, como seria o caso do comunismo, mas para uma
tendência eterna, para um limite infinito de perfeição e de
conhecimento total.
Terceiro, nenhuma ideia seria alguma vez tão distante das
do Marx, como esta. É por essa razão que a palavra se aplica
tanto ao meu plano maluco, plano esse que foi criado de
forma a opor-se totalmente à teoria marxista.
Finalmente, e acima de tudo, o saber não é determinista
para o futuro. Quer isso dizer que, neste caso, todo o
futuro de um homem depende de si próprio. Não precisa
185
de qualquer “sonho americano”, não precisa de ganhar a
lotaria, não precisa sequer de ter sorte. Nem precisa de
viver debaixo de uma ditadura, como no caso do Marx, para
que o seu sonho seja real. O homem quebrado perante a
desigualdade material que chega e diz “quero viver como um
rico” é completamente diferente do homem que, perante a
desigualdade espiritual e de saber, diz “quero saber, quero
ser um sábio”. Só depende dele. Não tem barreiras que
não sejam as da sua vontade de vingar na vida. Assim,
a minha teoria corresponde à vitória absoluta da ideia de
liberdade.
Em resumo, posso dizer que o saber, sim, é esse algo
empolgante que apela ao sonho, a algo que nos transcende
e nos motiva para além de nós. E mais ainda. Porque está
ao nosso alcance. Porque sabemos de antemão que o vamos
conseguir. E tende para um limite, ou seja, é um caminho
de aperfeiçoamento em que o amanhã será sempre melhor
do que o hoje. O que significa que há sempre estímulo para
progredir.
A minha filosofia não iria, assim, pedir aos homens que
confiassem cegamente em mim, como fez o Marx: tomem
lá a ditadura e aguentem; e confiem em mim que o vosso
amanhã será radioso. Se esta ideia era “um sonho de
beleza e de fé” no amanhã, a minha sê-lo-ia muito mais.
Porque os homens não precisariam de acreditar em mim.
Só precisariam de acreditar em si próprios.
Mas há ainda mais: Marx prometeu ao homem ser mais
feliz. Embora sem razões aparentes para isso, a não ser o
ser mais rico, ou menos pobre. Mais concretamente, ser
tão pobre como todos os outros. Ora, o que eu propunha
ao homem era ser melhor. O que é mais grandioso. E, se
calhar, ser mais feliz. Mas ser mais feliz por ser melhor. À
custa do seu esforço. À custa do seu próprio triunfo e não das
decisões dos políticos ou dos dirigentes. Algo que conseguiu
conquistar, em vez de o receber de bandeja.
186
Tive vontade de chamar o tio e explicar-lhe que o saber
seria, daqui em diante, toda a fonte de desigualdade social.
E toda a fonte de poder. Tive vontade
– Tio, vem cá! Vem ver que já sei os nomes de todos
os dinossauros!
E o tio sentou-se na borda da minha cama
– Já são horas de dormir.
Eu estava excitado, tinha o saber todo de um mundo
desaparecido. Não queria dormir. Tinha sido um esforço
enorme, não era altura de dormir
– Tio, conta-me uma história! Mas uma história de
homens verdadeiros.
O Tio Saúl dizia que eu não tinha idade para histórias
verdadeiras e queria sempre ir buscar uns livros antigos de
contos para crianças. Mas eu teimava sempre
– Uma história de homens verdadeiros.
E o tio contava-me histórias de homens corajosos que
combatiam os poderosos que maltratavam as pessoas
humildes. Contava-me histórias de coragem e opressão.
No entanto, nessa altura em que me enchia de certezas
em relação à progressão da minha filosofia do século XXI,
havia uma dúvida que me perturbava profundamente: era
este o meu segredo antigo? Era este o segredo do mar?
Aquele que imaginara estar na água, na pureza essencial
com que se criou a vida? O tio Saúl tão sério. Um segredo
que estava em mim e que perdi? Não, não era. Não era esta
a palavra que procurava. Ou seja, era. Achei que teria sido
certamente o tio Saúl que não percebeu. Ou o outro padre
que se enganou. O saber estava certo. Era a palavra certa.
187
O saber tinha que ser a única fonte de poder dos homens.
Um poder legitimado pelo respeito dos outros e não pelo
medo. Não mais ricos e pobres, ou senhores e escravos. Mas
antes sábios e aprendizes. Mundo onde o aceder ao poder
seria só função do esforço e do desejo de cada um. Sábios.
Pessoas que, mais do que o conhecimento, conseguiriam
compreender o seu sentido e a sua importância para o
destino dos homens. Um mundo de sábios. Homens capazes
de transformar o mundo e salvar a Humanidade.
Naquela noite, o tio Saúl perguntou-me se eu já tinha ouvido
falar do Romeu e da Julieta. Era uma história inventada por
um inglês há muitos anos
– Tio, conta-me uma história de homens verdadeiros.
Afinal, não era a história do inglês que ele queria contar,
mas uma outra, parecida e, tanto quanto sei, verídica.
– Tudo se passou com um rapaz e uma rapariga de
uma terra que eu conheço. O rapaz era muito pobre e
a rapariga muito rica, mas apaixonaram-se e queriam
casar. Só que o pai dela não deixou por ele ser pobre.
E, como era um homem muito poderoso, conseguiu
mandar o rapaz para a guerra, para um sítio muito
perigoso e ele morreu. Passados uns dias, a rapariga
morreu também. De desgosto.
As histórias do tio Saúl, as histórias sobre homens
verdadeiros, eram sempre muito curtas. Hoje, penso que ele
o fazia para me poupar pormenores ainda mais dolorosos,
ou que me excitassem mais a imaginação. As histórias não
eram, evidentemente, para a minha idade. Ou, então, queria
evitar que essas conversas me fizessem nascer ainda mais
perguntas
– Tio, como é que se morre de desgosto?
188
– Foi um desgosto de amor. E o amor vem do coração.
Se calhar, foi o coração que parou. Ela não queria mais
viver sem o seu amor, sem o rapaz. E o coração fez-lhe
a vontade e parou.
Era, para mim, inverosímil morrer-se amor. A bem dizer, com
aquela idade, não fazia ideia do que era o amor. E perguntei.
Mas o tio Saúl já não falou mais
– São horas de dormir.
Havia de mo explicar, tempos mais tarde, quando eu comecei
a sentir aquela maneira de estar diferente com a Amália.
Aquela fixação, aquela obsessão. Como quando Jean olhou
para Hélène e toda a gente desapareceu à volta deles. O
não haver mais ninguém. O mundo parado.
– Ninguém mais conta, para mim.
Explicava-me o Manuel, quando, finalmente, falámos com
mais calma sobre a Maria. Ele, com aquela cara cómica, a
fazer muitos gestos para os outros não perceberem. Mas eu
queria mudar o curso da vida naquela prisão e insisti com
ele para contarmos aos outros. Era muito importante para
todos nós que o Manuel fosse visto de outra maneira.
– Não contas a do peixe-golfinho…
Sim, podíamos não contar tudo, mas já era tempo de
o Manuel deixar de ser visto como um alucinado e um
inconsequente. Eu não iria permitir mais farsas.
Mas o Manuel queria saber dela, e não dos outros:
– E ela, também só pensa em mim?
Sim, Manuel, ela amava-te. E era justamente isso que queria
contar aos outros. Para eles saberem. Para o conhecerem
189
melhor. Para terem uma opinião mais verdadeira, mais
fundamentada.
– Linda?
Rui estava incrédulo. E o meu objectivo era ser o mais
entusiasta possível.
– Sim, linda de morrer. E loucamente apaixonada pelo
Manuel. E desejosa que ele saia para se juntar a ele.
– Como é que uma mulher linda pode apaixonar-se por
este “presidiástico”?
E eu pensei: é o amor, Rui, é o amor. E Gonçalo, que cada
vez via mais o Manuel com outros olhos também, decidiu
intervir contra Rui, embora da pior maneira
– Ninguém tem culpa que tu não saibas o que é o amor.
Só conheces essas galdérias das tuas amigas que vão
para a cama com todos!
Perante o nosso espanto, Rui atirou-se a Gonçalo, pronto a
matá-lo com todas as suas forças, mas Gonçalo empurrouo e puxou de uma arma de raios paralisantes – penso que
seriam descargas eléctricas – que deixaram Rui inanimado,
estendido no chão. Manuel não se conseguia mexer, tive que
ser eu a tomar a iniciativa de agarrar Rui para ver se lhe tinha
acontecido alguma coisa. Mas não, estava só desmaiado.
Rui tinha um segredo, estava prestes a revelá-lo. Todos
nós temos coisas escondidas, que muitas vezes contrariam
aquilo que queremos ser. Pensamos uma linha de rumo,
um futuro, para a nossa vida, mas nem sempre vivemos
confortavelmente com essas projecções. Há sempre um
outro que vive dentro de nós. Um outro, nosso irmão, que
tudo partilha connosco e que se nos não dá a conhecer. Um
outro muito diferente daquilo que queremos ser. E o mais
190
estranho é que, na maior parte das situações, e apesar da
nossa luta fratricida, não o conseguimos derrotar.
Quando Rui recuperou a consciência, tentei dissuadir
Gonçalo de o meter na solitária, o que não foi fácil, dada a
sua irritação, aliás, algo justificada. Rui tinha, de novo, os
olhos repletos de lágrimas.
– Qual é o teu segredo, Rui?
Rui fechava os olhos e abanava com a cabeça, dizia que não
em resposta à pergunta carinhosa de Manuel. Rui tinha, de
facto, um segredo terrível, haveria de o contar um pouco
mais tarde. Também ele era vítima do amor concreto e sem
sentido. Do amor absurdo. Não era uma qualquer mulher
revolucionária que ele amava, nem tão-pouco a coerência
em relação aos seus ideais parecia ser, agora, a coisa mais
importante da sua vida.
– Vou abandonar as minhas actividades revolucionárias.
Já só espero o momento de sair da prisão e voltar a
vê-la. Não vou arriscar a ficar preso outra vez.
Rui explicou que ela não o podia visitar porque o partido não
autorizava, não fosse ela dizer coisas inoportunas durante a
hora da visita, com os guardas todos a ouvir. O partido não
tinha confiança nela e tinha medo que ela soubesse de mais.
E ela sabia. Porque Rui tinha toda a confiança nela.
Deixámos Rui por momentos sozinho, a tentar organizar
a sua própria cabeça, a limpar a sua memória de todo o
lixo que tinha acumulado durante anos, sempre mentindo
para tentar conciliar o seu eu com as exigências, por vezes
absurdas, ditadas pelos seus ideais.
– Eu já conto, eu já conto.
E limpava as lágrimas, e tentava acalmar-se, perante um
Manuel que lhe fazia festas na cabeça e lhe repetia o quão
191
“broástico” era o amor. Com as pernas estendidas no chão,
ao lado de um Gonçalo já com tudo perdoado, e mesmo
evidenciando alguma ternura, Rui olhava para nós com o
ar de quem era a pessoa mais infeliz do mundo. Ao mesmo
tempo, iria aliviar a tensão que os seus conflitos internos
provocavam há já muitos anos. Iria, finalmente, libertar-se
da sua dilaceração interna.
– Quando sair, a única coisa que farei pela causa é
escrever livros. Ensaios sobre questões filosóficas e
ideológicas que tenham a ver com a minha maneira de
pensar. Luta armada, nunca mais.
E vou amá-la para sempre.
Ela era a sua sócia da galeria – contou por fim –, a que
gostava da arte abstracta, a arte dos fúteis. E a sorte dela
era que o pai era muito rico e muito poderoso, por isso nunca
a aborreceram por aceitar quadros que eram donativos
encobertos para o partido de Rui. Que ela nunca teve
nada a ver com a causa, achava aqueles tipos uns tontos.
Mas amava Rui. E foi por isso também que o pai dela não
descansou enquanto Rui não foi preso. Para ver se ela se
esquecia dele. Mas isso, Rui sabia que nunca iria acontecer.
Tanto um como o outro prefeririam morrer.
Era uma bela história de amor, como a história que o tio
Saúl contara há tantos anos. O amor vencia as barreiras
todas que se colocavam à sua frente: as barreiras políticas,
as financeiras, a distância, tudo. A cabeça não resistia ao
coração.
Mas o que mais me perturbou foi a visão de um Rui agora
profundamente humano. Um Rui que mostrava o melhor de
si. Um Rui autêntico, não escondido. Que, por entre lágrimas,
revelava agora um sofrimento todo ele em grandeza.
Porque não era um sofrimento de um homem perante um
determinado acontecimento, mas sim o sofrimento do
192
Homem perante o que o excede e é de mais para ele. Porque
não era um sofrimento pequeno, moldado do pontual e do
conjuntural. Não. Era um sofrimento total. Que remetia para
a totalidade do sentir, para a totalidade do ser.
Rui mostrava, de uma forma expressiva, até que ponto o
amor, oriundo de algo que podíamos pensar ser uma mistura
do coração e da alma, era aquilo que, de forma mais perfeita,
podia representar o melhor do ser humano.
E eu, com uma comoção profunda, lembrando os jovens
do tio Saúl que morreram por amor, senti algo que não sei
bem descrever. Uma espécie de abanão, de abalo profundo
em mim. Como se existisse um terramoto e a terra abrisse
sob os meus pés uma fenda a toda a largura do horizonte.
Como se uma ferida impossível de sarar.
193
194
VI
Nunca teria imaginado que eram seres tão frágeis. Vieram
de longe e do desconhecido, utilizando tecnologia e saberes
que ignoramos, para se renderem aos poderes do nosso
humanismo terreno. Um astrofísico teria ficado abismado com
as suas revelações sobre as rápidas viagens interestelares
e as condicionantes do mundo físico que permitem a sua
quase imortalidade. Era calmamente que se decidiam revelar
as distinções entre as alterações de dimensão longitudinal e
transversal, como se fosse a coisa mais evidente do mundo,
enquanto também explicavam a decisão, para nós agora
mais do que lógica, de circularem sempre por debaixo de
água, a elevada profundidade – coitados dos cientistas que
gastam fortunas e tempo a explorar os céus (para chegarem
ao nosso planeta não usaram os céus, mas a quebra de
dimensão longitudinal que já explicarei). Usaram esse corte
de dimensão longitudinal para mergulhar num ponto isolado
do oceano, sendo virtualmente impossível reconhecer o seu
movimento nos céus. Depois, na água, as suas capacidades
eram mais facilitadas, já várias gerações – se assim lhes
podemos chamar – de tlédios, pois foi assim que os baptizei,
nos visitaram antes destes. Ao que parece, gostam do nosso
planeta. Por razões que não imaginaríamos.
Mas o que mais me impressionou inicialmente – já que quero
fazer uma descrição o mais pormenorizada possível dentro
do pacto de silêncio que prometemos – foi a sua capacidade
de comunicação por telepatia. Conseguiam enviar, sem
195
dúvida para o nosso cérebro, imagens, cores, como se
um filme a três dimensões, até chegavam a transmitir a
sensação de quente ou de frio, talvez pela riqueza das
imagens. Um filme a três dimensões, sem dúvida, mas um
filme mudo. Tudo isto porque não tinham linguagem, não
falavam. E ainda bem, porque senão não os perceberíamos,
embora tivessem uma capacidade brutal de camuflagem. Tal
como eram capazes de alterar a forma do corpo, também
seria certamente possível adaptarem-se a uma linguagem
desconhecida. Mas só se a tivessem. Ora, acontece que
não tinham – explicaram mais tarde que a haviam perdido
há muitos anos e só os antigos a conheceram, por isso, só
estes tinham uma vaga memória do que se tratava. Eles
só sabiam o significado da única palavra que sobrevivera.
Acabámos por conhecê-la mais tarde.
Quando chegaram, vindos do mar, fizeram emergir a sua
nave, ou navio, trazendo uma luz que se espalhou em volta
de toda a ilha. Chegaram ao nível da enseada, mas, depois,
e como por milagre, elevaram a nave até à altura da rocha
do farol, nave que ficou a pairar, imóvel, colada à rocha,
mas em suspensão. A qualquer momento, poderiam descer
a nave e desaparecer no mar. Mas, incrivelmente, a nave
não se iria mexer.
O primeiro visitante que saiu, percebemos depois que era
uma espécie de chefe, ou coordenador, era incrivelmente
parecido com um ser humano. Decerto, veio ver se não havia
perigo. Era, aparentemente, um homem. E nu. Rui, Gonçalo
e Manuel não queriam acreditar. Quando olharam para mim
e me viram a regular alguns equipamentos de captação de
áudio e de vídeo, começaram por achar estranho o meu “à-vontade” com toda aquela situação. Só depois, e voltando a
olhar para mim repentinamente, é que perceberam a razão
de ser da minha ida para aquela ilha, e a explicação para
a existência de tão completo e sofisticado material – que,
afinal, para pouco serviu.
– Isto é broástico.
196
Manuel não tinha capacidade para dizer da emoção que o
assaltava. Olhava esbugalhado para o aparente homem que
saíra da nave, mal sonhando o choque ainda mais forte que
iria ter mais tarde.
Este homem, este visitante inicial, quis certificar-se da
ausência de qualquer má intenção do nosso lado. O que
era fácil para ele, justamente por causa da telepatia. Ele
percebia as nossas interrogações, como, por exemplo, de
onde tinham vindo, e assim surgia a imagem de uma galáxia
e de um planeta lá no meio – percebemos mais tarde que
aquele planeta era artificial, construído por eles próprios
com materiais e depósitos de matérias-primas trazidas não
sei donde –, um planeta também banhado pela luz de uma
qualquer estrela, como o nosso Sol. Mas era um planeta
escuro, faltava-lhes o nosso azul, havia uma ausência do
mar e das planícies verdes. E das florestas impenetráveis.
Havia uma sensação de ausência do fervilhar da vida.
E também queríamos saber como eram os habitantes desse
planeta, não sonhando a enorme surpresa que iríamos ter.
Nós, humanos, não estaremos nunca preparados para a
confrontação com algo de tão diferente, de tão absurdamente
estranho. O tlédio continuou a inundar-nos de imagens e
sensações diversas, mas Rui perguntou – não percebendo
que de nada adiantava falar, bastava pensar –, de novo,
como eram os habitantes desse planeta distante. Rui tinha
a missão de catequizar os homens, porque não fazer ali uma
pequena extensão galáctica?
As imagens que nos chegaram davam a sensação de haver
uma espécie de equivalência estranha entre os animais, as
máquinas e aquilo a que nós chamaríamos seres humanos.
Mas não eram de todo parecidos connosco, nem tão pouco
com aquele tlédio agora ali camuflado. Cedo percebemos
que aquela figura que nos surgia diante dos olhos era
transformada, através de um mimetismo seguramente
muito sofisticado, num exemplar quase perfeito da espécie
197
humana. Porque os residentes no planeta eram seres com
uma mistura de animal, máquina e uma profusão quase
infinita de formas mais ou menos parecidas connosco. Alguns
eram bípedes, outros não, embora todos se deslocassem na
horizontal, alguns mesmo com múltiplos membros ou com
uma espécie de rodas, ou “lagartas”, como têm os tanques
e alguns camiões. E o corpo era um misto daquilo a que
chamaríamos ser humano e animal, como se aqueles seres
fossem um puzzle erradamente construído, ou como se
fossem o resultado de uma associação mal feita por parte
de uma criança que não soubesse juntar as peças correctas
de uma figura – como é o caso daqueles jogos para miúdos
pequenos – e tivesse misturado as peças correspondentes
a um animal, a um homem e a uma máquina. Por exemplo,
corpo de homem, cabeça de animal e membros inferiores
de máquina – de um carro, ou de um comboio.
E à pergunta por nós imaginada do porquê ele ter aquele
aspecto semelhante a nós, logo esclareceu que se podia
adaptar às formas dos seres das outras galáxias, através da
elaboração de moldes, que se transformariam em implantes a
aplicar ao seu próprio corpo, tudo isto circulando nos nossos
olhos, através da tal telepatia, como se estivessem de facto a
construir um ser humano a partir de material desconhecido.
Seria plástico? Silicone? Era um bocado estúpido, perante
tamanha novidade e inverosimilhança, tentar perceber que
tipo de material era. Se a Física era tão diferente da nossa,
a Química não o devia ser menos.
Para tudo parecer ainda mais inacreditável, o nosso visitante,
a dada altura, reparou em qualquer coisa que não devia estar
bem na superfície da nave e, para total espanto de todos,
estendeu o braço direito na horizontal e dele levantou na
vertical um punho “humano”. Do buraco resultante desse
levantamento, fez sair uma ferramenta longa, parecida
com o aço, com uma série de apetrechos na ponta, quase
como se fosse um canivete suíço, e, criando a partir desses
apetrechos uma espécie de chave inglesa, rodou e apertou
198
uma anilha – ou porca – que estava no topo direito da
nave. Depois, recolheu aquela ferragem toda para dentro
do braço, que permanecia horizontal, e baixou a mão como
se fosse o portão de uma garagem a baixar. Mas o mais
incrível, eu reparei, foi que o braço ficou de novo todo
ligado, homogéneo, não se observando qualquer fissura que
pudesse dar origem ao levantamento da mão. Era como se
a abertura do pulso tivesse desaparecido e o tecido da pele
tivesse unido de novo.
– São máquinas
disse Rui, muito desejoso de tirar conclusões definitivas.
– São robots
disse Gonçalo, tentando trazer maior sofisticação à
conversa.
Manuel, por sua vez, não dizia nada, a não ser um “isto é
broástico” entre dentes, que não se cansava de repetir.
Mas eu achei que não, e tentei explicar o que me parecia,
com o visitante agora muito quieto a olhar para mim,
percebendo tudo o que eu dizia, ou melhor, percebendo
tudo aquilo em que eu pensava. E expliquei aos outros
que deviam ser seres mistos, chamados seres biónicos.
Ou uma espécie disso, porque aquilo a que chamávamos
seres biónicos eram aqueles que combinavam componentes
humanas com componentes materiais, ou tecnológicas. Mais
exactamente, eram humanos com implantes tecnológicos
– tipo componentes informáticas, chips, e por aí fora – e com
implantes de tipo industrial, como aquele braço que tínhamos
visto. A grande diferença em relação aos habitantes do
planeta que havíamos visto era a componente animal, como,
por exemplo, uma cabeça parecida com um lagarto. Teria
uma função estética? Porque, de resto, era algo já habitual
para nós, tantos eram os criadores de ficção científica que
199
já o tinham imaginado. E já tinha sido imaginado pela
robótica.
Mas Gonçalo não estava de acordo
– Não sei, podem ser robots, pura e simplesmente. A
assim não ser, como teria sido possível virem lá das
galáxias distantes sem morrer? Galáxias que estão
a milhares – ou milhões, não sei – de anos-luz de
distância. Eu acho que são robots hiper-inteligentes
com capacidade de construir o seu próprio corpo em
função das necessidades que têm pela frente.
Pensei que Gonçalo não tinha razão em relação aos robots.
Mas em relação à capacidade de construírem o próprio corpo,
já achei que ele estava no caminho certo. Tinha, aliás, ficado
convencido de que a mostra muito diversificada de formas
físicas que o tlédio tinha mostrado (animais, máquinas,
etc.…) não eram exemplares de indivíduos diferentes,
mas formas diferentes que cada indivíduo podia assumir,
consoante as circunstâncias em que se encontrasse (por
exemplo, cabeça de lagarto se estivesse numa zona com
lagartos, ou membros inferiores em forma de barco se
tivesse que ultrapassar um lago).
O visitante não se mexia nem enviava qualquer mensagem
durante a nossa troca de palavras. Tornara-se mero
receptor.
– E um robot conseguiria manter este diálogo connosco,
independentemente da história da telepatia?
Rui tinha esquecido a sua obsessão revolucionária e
interrogava-se agora a respeito de uma outra realidade
muito acima das pequenas e efémeras questões políticas dos
humanos. Como elas pareciam mesquinhas agora, perante a
enorme confrontação do homem com o não-homem. Aqueles
seres, que por enquanto era só um, tinham reavivado a velha
200
questão da definição da humanidade. No nosso passado
científico e cultural, toda a oposição tinha sido construída
em torno da dicotomia entre o homem e o animal. Ou
entre o homem e o macaco superior, para ser mais exacto.
Inevitavelmente, surgia agora, com o desenvolvimento da
tecnologia tinha mesmo que acabar por surgir de forma
concreta – porque, teoricamente, já havia múltiplas reflexões
neste domínio –, a dicotomia entre o homem e a máquina.
Ou entre o homem e a inteligência artificial, para ser, de
novo, mais exacto. Onde acabaria a animalidade, ou a
artificialidade dos robots quase perfeitos, para começar a
humanidade? Era essa a grande questão agora. E Rui não
tinha resposta para ela.
Estranhamente, o nosso tlédio também parecia estar
embatucado. Não emitia o mínimo sinal
– Fundiu.
Talvez Gonçalo estivesse perto da verdade, o que supunha
uma clara inclinação para a variante artificial, não humana,
daquela criatura.
Mas o visitante virou as costas e dirigiu-se para o topo da
nave, mandando avançar alguém. Lá deve ter achado que
éramos boas pessoas e que os restantes tlédios não corriam
perigo. Ou, se calhar, já não tinha capacidade para entender
os nossos raciocínios terráqueos.
Estávamos todos um pouco nervosos, tensos, mas foi o
Manuel o primeiro a reagir, lançando um grito de aflição
quando viu a sua apaixonada, a tal Maria que conheci na
prisão, a sair calmamente da nave.
A minha primeira reacção, perante a imprevisibilidade
das atitudes do Manuel, foi agarrá-lo. Também ele teve
a mesma ideia que eu: seria ela um deles? Estaria ela
prisioneira? Era absolutamente necessário estarmos quietos
201
e esperar o desenrolar dos acontecimentos. Senão, iria
dar asneira. Embora não tivéssemos qualquer hipótese
de nos defendermos daquela gente, caso estivessem com
intenções hostis. Mas não. Isso era impossível. Só nos filmes
americanos de série B.
Maria também vinha nua. E o seu peito, ostensivamente
visível, deixou-nos a todos sem pinga de sangue: Maria era
uma mulher impossivelmente bela, e o aparecer assim, nua,
dava ainda maior ênfase ao insólito do momento.
Enquanto ela nos olhava, sem dizer nada, lembrei-me de
um dado importantíssimo: ela falava. Falou comigo na
prisão. Ora, estes tlédios não tinham linguagem. Ou já a
tinham perdido. Por isso, ela não podia ser um deles. Era
certamente humana. E, portanto, devia estar prisioneira. E,
assim pensando, agarrei Manuel com mais força. Mas, por
outro lado, ela tinha-me parecido tão estranha da outra vez.
A pele tão fria, a voz aos sacões. E uma conversa, já não
me lembrando dos pormenores, que me deixou as maiores
das dúvidas.
Apesar de o estar a agarrar, o amor foi mais forte do que
tudo, e Manuel correu para a abraçar. O Manuel devia
saber. Ele tinha dentro dele a maior das verdades: a da
autenticidade do sentir, da inocência. E assim estiveram
longos minutos, abraçados, enquanto eu e os outros nos
interrogávamos sobre o que fazer.
A dada altura, Manuel despiu-se e juntou-se a ela de novo,
agravando o insólito da situação que nos era dado assistir.
O tlédio olhou para os dois com uma expressão que parecia
um sorriso. Um sorriso que poderia esconder uma disfarçada
ternura.
Mas foi Maria que, entretanto, desfez o impasse.
– Sou humana. E vivo com estes seres há cerca de
um ano. É desde essa altura, mais ou menos, que eles
202
estão entre nós. Procuraram-me por eu ter sempre tido
um enorme fascínio pela possibilidade de existência
de vida inteligente fora da Terra. Fiz, aliás, estudos
ligados à astrofísica, mas não foi por isso que eles
me escolheram. Foi por saberem – souberam-no por
telepatia, sem dúvida – que eu gostaria de ir viver para
um outro mundo. Como o deles, por exemplo. Eles
souberam que eu queria partir. Assim, eu não sou como
eles, apenas me introduziram um chip para aumento
das capacidades cerebrais – que inclui a aprendizagem
de uma série de coisas, a começar pela telepatia e por
certas normas relativas às regras de vida em comum
da sociedade em que vivem –, e me alteraram a
composição da pele, sobrepondo-lhe uma camada de
um produto que desconheço, mas que me protege do
frio, da dor, dos materiais cortantes ou perfurantes, e
coisas assim.
De resto, sou totalmente humana. O que não acontece
com eles. Mas já explicarei adiante. O que interessa
é que eu posso comunicar melhor convosco, através
da nossa linguagem comum e através das minhas
alterações cerebrais, que também facilitam a minha
comunicação com eles. Não é que eles não conseguissem
a comunicação directa convosco. Mas iria certamente
ser difícil traduzir algumas interrogações que eles
têm e que seriam muito difíceis de transmitir sem a
linguagem. Também já explicarei porquê.
Por outro lado, queria dizer-vos que amo o Manuel.
E é natural eu amar o Manuel, apesar de ver nas
vossas caras muita admiração. O Manuel é um grande
homem. Um grande ser humano. Por muitos motivos
diferentes.
Curiosamente, estes meus novos amigos também
ficaram admirados e seduzidos pelas descrições que
fiz dele. Consideraram, e eu estou de acordo com eles,
203
que o Manuel é um ser único. Por maioria de razão
para eles, mas penso que também para nós, humanos.
Porque representa aquilo que o homem tem de mais
autêntico: a primazia do sentir. Mas não estou a falar
de um sentir físico, refiro-me antes a um sentir com
alma. Um sentir profundo, que envolve uma consciência
de si. Um sentir livre. O sentir que não está subjugado
às normas cognitivas da moral, da tradição, das
convenções. Esse homem que eles vêem no Manuel é
um homem totalmente oposto do homem que existe
no seu mundo.
Do nosso ponto de vista, temos tendência para associar
a humanidade à inteligência, ao pensar. Associando, por
sua vez, o sentir aos animais. Vemos frequentemente
os homens como sendo aqueles seres que conseguiram
ultrapassar a dependência do sentir – que muitas
vezes é colado ao instinto. Mas, como disse atrás, o
sentir de que falo, e que este povo tanto procura, é um
outro sentir. Refiro-me ao sentir que nos fez homens
quando, há muitos milhares de anos, inventámos a
transcendência. Através da arte. E não por via da
invenção dos deuses, como tantos anos se pensou. Foi
com esse sentir outro, foi com o surgimento do nosso
outro mundo, que abandonámos de vez a animalidade
e nos instalámos na terra da humanidade.
Por outro lado, há o problema da nudez. A obsessão
do Manuel em relação a este modo de estar não é
senão a prova evidente da sua total autenticidade.
Contrariamente à maior parte dos seres humanos,
o Manuel é totalmente verdadeiro, não tem nada a
esconder. Como imaginam, perante as excepcionais
capacidades de telepatia destes seres, não é possível
ser-se fingido e, simultaneamente, viver no seu seio.
Quando ela disse seio, não pude deixar de, uma vez mais, e
porque ela não o escondia, olhar para o seu peito. Senti-me
204
um pouco envergonhado perante o Manuel, mas depressa
realizei que ele não quereria nunca saber de tal pequenez.
Ele estava acima de tudo isso. O seu interesse por Maria
era de uma elevação suprema, era de puro amor. Enquanto
Maria falava, eu estava meio ausente no território longínquo
do meu desejo perante a sua beleza total.
– Este homem fascina de forma absoluta os nossos
visitantes. Porque ele tem tudo o que procuram e lhes
falta. Eles não lhe chamarão homem, mas também
não lhe conseguem chamar nada. Por isso, podemos
continuar a falar de humanidade mesmo no que lhes
diz respeito. Isto para vos dizer que, por todas estas
razões, pensamos levar o Manuel connosco, se ele
quiser, pois vamos partir muito em breve.
O Manuel abriu os braços de alegria
– Eu não vos disse que ela me amava, seus parvoásticos?
Eu não vos disse que ela era a mulher mais bonita e
mais broástica do mundo?
Em contrapartida, nem aquele momento histórico tirava a
Gonçalo a sua responsabilidade de guarda
– Está tudo doido, não vou permitir que levem o Manuel,
ele está à minha guarda. Nem mesmo que ele queira
partir.
Mas Maria tinha argumentos que falavam de algo superior
às capacidades humanas
– Você não pode fazer nada. Qualquer pequeno laser
paralisante impedi-lo-á de mexer um dedo sequer. Por
outro lado, ninguém conhece o Manuel. Não tem família,
nem quaisquer próximos. Aos da outra prisão, pode
dizer que ele desapareceu de noite, que se atirou ao
mar, que foi comido pelos tubarões, o que você quiser.
205
Não tente contar tudo o que viu aqui porque ninguém
acreditará em si. A não ser que nós, antes de partir, lhe
façamos o favor de lhe ministrar um soro de amnésia
correspondente às horas em que aqui estivemos.
Prefere assim? Prefere não saber?
Gonçalo engoliu em seco. Como era possível preferir não
saber? Não, era absolutamente fundamental ficar com aquele
momento gravado para a vida inteira. A visão que tinha do
mundo e dos homens teria que ser revista à luz daquela
experiência única na História da Humanidade. Ele tinha
mas era que agradecer o enorme privilégio de ter estado
presente.
Depois de uma pequena pausa, Maria como que arrumou
o assunto
– Esteja quieto, não vale a pena.
E logo a seguir
– Manuel, queres vir connosco?
Como é que ele não haveria de querer ir? Com aquela
mulher, e para uma aventura daquelas, até eu queria. Maria
era linda, aquele corpo, ela já devia ser assim antes deles a
encontrarem. Como é que uma mulher daquelas se apaixona
por um sujeito como o Manuel? Qual grande homem, qual
carapuça. Qual autenticidade. Eu achava-me infinitamente
mais interessante, por via da minha inteligência, dos meus
conhecimentos, do projecto enorme de vir a ser eu a
condicionar o mundo no século XXI. Ela devia escolher-me
a mim.
Como a Daniela, que me escolheu um dia, não sabendo que
eu não podia escolher ninguém. Daniela não sabia que eu
não era livre no amor. Para sempre amarrado. Mesmo agora
o sonhar com a Maria era pura fantasia. Era o seu corpo que
206
eu admirava, assim como reconheço a inveja por o Manuel
a ter. Mas eu não a queria. Apenas queria o meu sonho de
beleza. Daniela também era linda. No entanto, eu não a
poderia nunca amar. Havia um amor todo ele submisso à
pressão do desejo. Mas não me era possível querer apenas
um corpo belo de mulher. Queria algo mais, e era esse algo
que tornava esse corpo único. E esse algo era o outro amor. O
que estava para lá do concreto de um corpo, eventualmente
mesmo para além do concreto da beleza. O amor abstracto,
como a arte que ensinei ao Manuel. O amor absoluto.
De maneira que, cada vez que havia frases belas para
declamar, ou textos que se prestavam à sobreposição
em relação à nossa vida comum, sonhada por ela mas
inexistente na realidade, Daniela fazia questão de mostrar
que não se tratava apenas de uma mera fala abstracta, mas
que se estava a dirigir mesmo a mim.
De uma vez, a peça prestava-se muito à sua pressão
– e ela tão bem conhecia os meus constrangimentos. Ela
sabia quando é que eu sofria, e eu sabia quando é que ela
ia começar a caminhar, com o olhar lânguido, na minha
direcção
– Não existires
É um pormenor da nossa intimidade
Depois, mais perto de mim
- Não existires
E pesares sobre o meu ombro.
O texto anunciava a vitória da irrealidade sobre a realidade,
como ela gostava que pudesse ser. E como eu gostaria
também, se não tivesse o passado em suspenso, à espera
do que não vinha. Um dia sonhei que Amália entrava pelo
teatro dentro e, representando um texto, me anunciava que
voltara – não posso contar agora – e um filho, um filho – não,
207
não posso contar. O tio Saúl também dizia que havia um
seu companheiro antigo, que tinha sido morto pela polícia,
que ele sentia perto de si, mesmo sabendo muito bem que
já tinha morrido. Não, não posso contar agora a história do
meu sonho
– Tio, vem cá! Vem ver que já sei os nomes de todos
os dinossauros!
E o tio sentou-se na borda da minha cama
– Já são horas de dormir.
O tio Saúl dizia que, por vezes, ouvia o amigo morto a
respirar ao seu lado.
Mas foi Rui que repôs a profundidade da conversa, pondo
fim ao meu curto intervalo de estupidez
– Mas se eles não são homens, ou humanos, ou aquilo
que nós achamos que significa ser humano, então o
que são? São robots?
Maria partiu para outra longa explicação, enquanto mais
seres, parecidos com o primeiro – e elas parecidas com a
Maria –, saíam lentamente da nave e assistiam à conversa,
agora toda concentrada na fala de Maria
– Não são humanos – continuemos a usar esse tipo de
terminologia –, nem robots. Nem tão-pouco animais. São
criaturas-mosaico, que começaram por ser humanas e
foram progressivamente aplicando, sobretudo à medida
que a idade avançava, múltiplos componentes no seu
corpo. Ou seja, implantes. Mas não implantes como nós
temos quando transplantamos órgãos e colocamos um
coração ou um rim humano. Não, os implantes deles
são tecnológicos: são pequenos aparelhos mecânicos,
às vezes eléctricos, e com uma espécie de pilhas que
208
não se descarregam. Assim, começaram a conseguir
impedir o aparecimento de doenças, não apanham frio
ou calor em excesso, não se cortam, não podem sofrer
a perfuração de objectos, como as balas – lembrem-se
do que vos disse a respeito do revestimento de pele
que me colocaram –, tal como lhes é possível curar
as doenças quando elas surgem, prolongando a sua
longevidade, que hoje é quase uma imortalidade, mas
isso é mais por outra razão que já explicarei. Com estes
implantes, têm sempre a possibilidade de os reparar,
ou mesmo substituir, quando se estragam. Ou quando
se gastam. Mesmo o cérebro, como vos disse, também
recebe implantes para reparar neurónios estragados
e para aumentar a rapidez de raciocínio – podemos
chamar-lhe computação, se quisermos. Entre outras
razões, é essa longevidade que lhes permite viagens
interestelares.
Mas, para responder directamente à sua pergunta,
faço-lhe uma outra: como é que classificaria um ser
humano cujo coração é uma máquina e com um
cérebro em grande medida dominado por um chip
electrónico que está permanentemente em contacto
com um computador central através de comunicação
sem fios?
– Não sei
respondeu Rui, sincero e totalmente desorientado.
– Pois é. É como eles. Também não sabem. Andam à
procura da sua eventual humanidade. Por essa razão
nos visitaram. E, por essa razão, querem a minha ajuda.
E é ainda por essa razão que tanto querem aprender
com o Manuel.
Eles vivem perante a necessidade de uma interrogação
metafísica, mas deparam-se, na minha opinião, com um
209
problema enorme: não têm linguagem. A única palavra
que conhecem é esta.
E Maria mostra-nos uns símbolos estranhos que eu tentei
decifrar. Instintivamente, li o que, na nossa linguagem, mais
me fez lembrar uma palavra completa
– Tlédia.
– Pode chamar-lhe isso ou outra coisa qualquer. Eles
só sabem que é o nome que os mais velhos usam para
designar o local onde todos vivem, penso que o seu
planeta. Não sabem mais nada.
Mas dizia eu que, não tendo linguagem, a comunicação
deles é toda ela baseada em imagens, sons, cheiros. Ou
seja, é concreta. Por outras palavras, penso que eles,
juntamente com a linguagem, perderam a capacidade de
abstracção. Não a capacidade de abstracção total, pois
têm um grande desenvolvimento matemático, que lhes
permite conceber, por exemplo, espaços a n dimensões
– dez, vinte, trinta –, o que, para nós, é totalmente
impossível. Em contrapartida, é-lhes totalmente
ausente a capacidade de abstracção filosófica. Seriam
totalmente incapazes de entender um conceito como o
Absoluto. Mesmo a sua abstracção matemática tem uma
certa dimensão vivencial, prática, concreta. Funcional.
Em qualquer caso, é essencialmente lógica e cognitiva.
É o metafísico, associado ao sensorial, que lhes falta.
Usam sons para comunicar, mas a música é-lhes
totalmente estranha. Estes seres não têm dois mundos.
Vivem só no mundo daqui. Nem o espaço a n dimensões
os ajuda a abrir a “Porta”. Pelo contrário, usam essa
capacidade de percepção peculiar, esse entendimento
multidimensional, para conseguir soluções vivenciais
– concretas, portanto – impensáveis para nós.
Era curioso o quanto Maria utilizava conceitos e ideias que
me eram tão próximos. Senti estranheza em ter encontrado
210
uma mulher que parecia pensar como eu, falar como eu. E
ia divagar no quanto desejava que ela me amasse a mim,
quando me lembrei das suas elevadas capacidades telepáticas.
E voltei a envergonhar-me dos meus pensamentos de há
pouco sobre o seu peito, para o qual, apesar de tudo, voltei a
olhar estarrecido. Mas Maria ignorava os meus pensamentos
carnais e seguia o seu raciocínio. Imperturbável.
– A primeira delas, e seguramente a mais importante,
é a noção de dimensão transversal.
Para perceberem bem o que isso significa, imaginem
um vidro muito grande, a perder de vista. E imaginem
que o conseguem atravessar. A partir daí, entram numa
outra dimensão, como se entrassem numa outra vida.
Uma dimensão paralela à nossa. Na qual começamos a
viver, juntamente com outros seres, que aí habitam e
não têm nada a ver com os seres da dimensão anterior.
Podem ter formas completamente diferentes, hábitos
diferentes, pode mesmo não existir forma humana
nessa dimensão. Podem só existir animais. Pode mesmo
não existir vida.
Fazendo um parêntesis, é talvez por isso – ou seja, para
copiar as formas existentes noutras dimensões – que os
habitantes deste planeta têm por vezes formas mistas
e tão heterogéneas, integrando por vezes elementos
animais. Formas que vão alterando, à medida das suas
necessidades.
Mas, voltando ao que dizia, podemos partir e viver nessa
outra dimensão o tempo que quisermos. E podemos,
inclusivamente, partir dela para outras dimensões
paralelas. No entanto, durante esse período, o tempo
parou na dimensão de origem. Ou seja, quando
voltamos ao ponto de partida, passando o tal vidro
de novo, voltamos precisamente no segundo em que
partimos. Se estiverem a falar com uma pessoa e ela
211
partir para a outra dimensão e lá andar séculos, não
notarão a interrupção na conversa quando ela voltar.
Quer dizer que, na dimensão inicial, a vida recomeça.
Por isso, não são bem dimensões paralelas, há pouco
disse mal. Se tiverem conhecimentos suficientes em
Matemática perceberão, se eu disser que a segunda
dimensão é ortogonal em relação à primeira. Tal
significa perpendicular, como nos eixos cartesianos:
única maneira de os eixos serem independentes. Assim,
se se percorrer um caminho ao longo de um dos eixos,
quer dizer, se houver variação, ou movimento, ao
longo de um dos eixos, a nossa posição – chama-se
coordenada – em relação ao outro não se altera. Então,
é como se a vida fosse uma recta ...
Entrava um avião pela boca de Rui, tal era o espanto perante
aquela mulher colossal, já nem sonhava em vender-lhe
revolução
... e com ela se cruzassem infinitas rectas perpendiculares,
nas quais nos podemos mover até ao infinito – neste
caso, até à eternidade – sem nos movermos, seja em
termos geográficos seja em termos temporais, da nossa
posição inicial.
Aqui estamos a falar de rectas, mas, na realidade, não é
bem disso que se trata, mas sim de planos. Nem planos,
porque implicariam unicamente duas dimensões,
mas sim espaços a n dimensões que são ortogonais,
perpendiculares, a outros espaços a n dimensões.
Existe, em relação a cada espaço, uma infinidade de
espaços ortogonais. Assim, eu posso viver cinquenta
anos na dimensão 2 e, quando voltar à dimensão 1, não
perco nem um segundo. Passado algum tempo, posso
voltar a partir, para uma dimensão 3, por exemplo. E
posso mesmo, antes de voltar à dimensão 1, passar da
dimensão 3 para a 4 e lá passar mais outros cinquenta
anos. E assim sucessivamente.
212
Maria parou para respirar, Rui fechou a boca, mas percebi
que tinha perdido o fio à meada há muito, e Gonçalo parecia
não ouvir nada, ou fingir não ouvir nada. Manuel fazia festas
a Maria, como que fechado em si, num autismo absoluto.
E Maria retomou
– Através destes saltos nas dimensões transversais,
eles podem viver eternamente. Podem transitar
permanentemente de dimensão em dimensão, que o
tempo não passa.
Eu, que estava mais ou menos a seguir o raciocínio, resolvi
interromper
– E a velocidade da luz, é ultrapassável?
Maria sabia tudo
– Não numa determinada dimensão. Mas, na prática,
é. Devido a um outro caso que não referi ainda, que é
a transposição longitudinal das dimensões.
Suponha uma porta. E suponha que, passando essa
porta, entra num espaço a quilómetros de distância.
Abre a porta em França e quando a fecha do outro
lado está na Austrália. Tem apenas que passar por um
pequeno espaço escuro sem gravidade que tem uma
espessura inferior à da porta.
Este tipo de passagem existe dentro da mesma
dimensão vivencial, por isso é uma transição de
dimensão diferente da outra. É uma transição ao longo
da dimensão, ou seja, longitudinal e não transversal.
É uma transição que se mede em distância. E tal como
pode ir de França à Austrália, também pode ir de uma
galáxia a outra. Em fracções de segundo. Por isso a
velocidade da luz é ultrapassável, embora não dentro do
mesmo espaço dimensional, como já disse. Por outras
213
palavras, só é possível ultrapassá-la transpondo uma
dimensão longitudinal. Quanto à transposição de uma
dimensão transversal, o problema não se põe, pois
transita-se para um outro espaço.
Outra diferença entre as duas transposições, transversal
e longitudinal, é o facto de a primeira depender da
vontade – e da capacidade cognitiva – do indivíduo,
enquanto a segunda depende de fissuras existentes no
espaço, que não estão sempre presentes. É necessário
aproveitar aquelas que existem.
– E Deus?
perguntei eu, já muito à frente de toda aquela dissertação
científica que, no entanto, me impressionava profundamente.
Era uma pergunta quase final, como quando uma história
nos está a interessar muito e queremos saber logo como
acaba.
Maria vacilou.
– Não sei. Eles não sabem. É um conceito que não
entendem. Talvez o mais próximo que tenham é o
dos antigos. Assim uma espécie de mito fundador das
sociedades primitivas.
Como disse há pouco, eles perderam a noção da
abstracção. Não entendem Deus, como não entendem
o Absoluto, que é o mesmo. De certa forma, andam à
procura de uma libertação da sua condição. Algo que
tem a ver, se calhar, com a necessidade da descoberta
de um qualquer deus.
– Mas eles são homens, ou robots?
voltou Rui, que certamente queria saber se ainda havia
hipótese de uma qualquer catequese multidimensional
214
– Ou seja, independentemente de a Maria dizer que
eles são criaturas-mosaico, o que é que eles acham
que são?
– Não sabem. Todos eles começaram por ser humanos,
lá à sua maneira. Mas depois, começaram a enxertar
implantes e mais implantes e acabaram por condicionar
fortemente o cérebro, que é hoje prodigioso de
conhecimentos e de capacidade de realização de
problemas, mas, ao mesmo tempo, condicionado por
uma disciplina utilitária. Quer dizer que o cérebro foi
alterado com uma programação toda ela virada para a
funcionalidade e para a resolução prática de problemas
concretos.
Por outro lado, têm uma capacidade de adaptação ao
meio envolvente muito grande. Um mimetismo total.
Por isso, podem agora ter uma forma exterior e amanhã
outra. Em grande medida, eles já não se conhecem a si
próprios. São todos corporalmente iguais, distinguindose por características mentais e um número de código.
O que significa que, quando se inicia o processo de
telepatia, os seres trocam automaticamente números
de código que os identificam. Independentemente dos
corpos que assumem no momento.
De facto, se nos limitarmos a uma análise fria em
relação ao seu comportamento concreto, eles estarão
hoje mais próximo dos robots.
– Amam? Fazem sexo?
– Fazem sexo, mas não sei se amam. Não consigo a
telepatia nesses momentos mais privados. Não sei o
que sentem nessas ocasiões. Mas será certamente um
amor muito espiritual. E o sexo que fazem, parece-me
que é mais por hábito, talvez perpetuando as ideias
que perduram do tal mito fundador. Juntam-se por
215
afinidades intelectuais, na maior parte das vezes em
função de resultados de softwares específicos que
traçam o perfil da personalidade, ou, melhor dizendo,
das características mentais ou cerebrais da pessoa ideal
para se unirem. E não têm filhos. Quando alguém nasce,
o que não é frequente – devido à elevada longevidade
e aos limites impostos pelo controle demográfico –, é
sempre através de clonagem. São sempre réplicas de
alguém, se quiser.
Portanto, e para voltar ao que dizia há pouco, eles
procuram uma superação do seu estado de submissão
em relação à máquina, às normas, ao saber. É por isso
que tanto admiram o Manuel. A sua individualidade,
a sua liberdade total. E, acima de tudo, a sua música.
– E o seu saber? Não lhes dá individualidade? Não lhes
dá liberdade e, ao mesmo tempo, poder?
Era eu, também com dúvidas por esclarecer. Eu, mais o
meu modelo, o meu plano, o meu saber, a minha filosofia,
que andava ali à volta, a tentar furar. Se havia coisa que
podíamos aprender com aqueles seres, era o resultado de
tantos séculos de acumulação de saber.
– O saber está muito dominado pelas máquinas. É
precisamente por o saber se ter revelado a verdadeira
fonte de poder que eles hoje se sentem dominados pelas
máquinas, pelos computadores, que cada vez mais
condicionam a sua vida. De certa forma, e como dizia
há pouco, o saber enorme que existe está à disposição
de todos, através de um servidor informático único.
Eles recebem essa informação, permanentemente
actualizada no computador central, através dos chips
cerebrais que fazem actuar por comunicação sem fios.
Por isso, já não há diferenciação entre eles. Todos
recebem a mesma informação. Portanto, e infelizmente,
ao acabar essa individualidade, acaba também uma boa
parte da sua liberdade.
216
Assim, quanto à humanidade, acho que é um bocado
inútil tentar defini-los. São como são. À nossa luz, não
serão humanos, se não amam, se não têm metafísica,
se não têm individualidade, se não têm arte. O que mais
os impressiona no ser humano é a arte. Ou seja, aquilo
que eu tentei descrever como sendo arte. Aliás, a dada
altura, até pedimos a sua ajuda através de perguntas
do Manuel…
E olhou para mim.
- Sim, está a perguntar-se quando é que isso foi… Não
se lembra de o Manuel lhe fazer perguntas sobre o
romance e a arte?
- Lembro.
- Essas interrogações foram por nós aproveitadas – e,
em parte, por mim induzidas.
Indignei-me
- Mas, assim, estão a prejudicar a liberdade do
Manuel!
- Não. De outra forma, não aprenderíamos nada com
ele. A ideia foi por mim induzida porque eu lhe falei
nisso numa visita, não foi por indução telepática. Aliás,
fique descansado: após a nossa partida, não lhe vai ser
aplicado qualquer chip cerebral. Mas esqueça isso, o que
eu queria explicar é o fascínio deles com a arte. Quando
ouvem o Manuel tocar, ficam num estado de confusão
total, parece que perdem a sua programação.
– Mas eles já ouviram o Manuel tocar?
Era informação de mais para mim. Tinha que interromper
para introduzir algo de mais prosaico. Fazer uma espécie de
corte para dar tempo à assimilação daquilo tudo.
217
– Quando vocês viam luzes no mar, era porque nós nos
aproximávamos para o ouvir.
Mas o Rui estava mais interessado na história do amor
– A Maria dizia que eles não amam, mas se calhar
amam de um modo diferente, amam à sua maneira,
não podemos pensar que seres tão diferentes tenham
uma maneira de agir semelhante a nós.
– Pelo menos segundo o nosso entendimento, é difícil
aceitar a ideia de amor. Porque não existe o amor
absurdo. O amor abstracto. Na realidade deles, não
seria possível a união do belo com o feio, do bom com
o mau, do preguiçoso com o trabalhador, do religioso
com o não religioso, e por aí fora. Isto, apesar de,
no seu caso, toda esta heterogeneidade ser muito
atenuada em função da programação informática dos
seus cérebros.
A dada altura, lembrei-me de uma pergunta óbvia:
– Maria, você sabia da história do golfinho…
– Claro que sabia, por isso fiquei assustada com a
hipótese de o Manuel fugir nele. Não era isso que eu
estava a planear. Ele poderia perder-se. Foi por essa
razão que lhe pedi para me avisar da data se ele
decidisse mesmo fugir.
Os outros olharam para mim, interrogativos em relação a
essa história de um golfinho, percebendo que eu sabia mais
do que eles e, claro, que lhes tinha escondido muita coisa.
Mas eu queria mais informação e, por isso, não me ralei que
viessem, sobretudo o Gonçalo, a conhecer a história toda.
– Maria, porque é que o golfinho obedecia ao
Manuel?
218
– Pois, essa questão também é interessante. Os tlédios,
como você diz, comunicam com os animais. O que
também tem contribuído – é preciso dizê-lo – para as
suas confusões em matéria de humanidade. E comunicam
através de um processo muito simples. Colocando um
chip no cérebro que, não só o desenvolve, como permite
o acesso por telepatia. Os animais pensam, embora de
forma rudimentar – também depende dos animais que
são – e entendem o nosso pensamento. Todos sabemos
– não é novidade – que um cão entende muitas das
coisas que queremos dele. E obedece. Mesmo sem
telepatia. Por isso eles comunicam tão bem com os
animais. Para eles, os animais são uma espécie igual a
eles, embora com menos recursos mentais. Como nós,
humanos, encaramos uma pessoa menos inteligente.
Que não deixamos de considerar um ser humano com
os mesmos direitos que nós.
Os visitantes eram cerca de vinte e começaram a dar sinais
de actividade, por exemplo, explicando ao Manuel que
gostavam de o ouvir tocar.
E foi assim, com todos calados e o Manuel a começar a
explorar uma melodia qualquer, que tive o momento de
sossego necessário para reflectir um pouco sobre toda aquela
informação.
Maria também parecia ter terminado tudo o que tinha para
nos dizer. Sorria a olhar para o Manuel e pensava certamente
na sua felicidade por ir partir para longe, e com ele. Iam
desbravar o Universo, levando um dos maiores mundos
que nele jamais existiu: o mundo da arte, o mundo dos
homens. Maria entendia bem esse conceito de rarefacção
sobre o qual tanto reflecti. A rarefacção da vida, a nossa
súbita ausência em relação a essa vida vivida, perante o
assombro do tal mundo que nos é exterior. É isso que eu
chamo transfiguração. A ausência do corpo. A ausência de
um referencial em relação ao que nos rodeia, pois nada
219
nos rodeia. Apenas ausência. Nada nos existe. Rarefacção,
vácuo, de vida. Projecção no não-mundo. Transfiguração.
Maria e Manuel iam explicar ao Universo que ser homem
tinha esse significado. Esses homens tinham inventado essa
capacidade transcendente. E, tenho a certeza, única no
Universo. Talvez o Universo se transforme, face à mensagem
que eles levaram, nus, no seu caminho feliz e apaixonado.
Talvez o Universo se transforme perante a lição sublime do
Homem.
Estava eu à espera da ajuda destes seres vindos de tão longe
quando, afinal, eles não tinham lições para me trazer. Pelo
contrário. Vinham cheios de dúvidas e interrogações. Não
podiam ajudar porque precisavam eles próprios de ajuda.
Queriam essa ajuda para descobrir se ainda tinham em si
uma espécie de humanidade, ou se já a tinham perdido,
sendo agora apenas máquinas.
No fundo, resolveram os problemas decorrentes da sua
evolução tecnológica através da uniformização e da limitação
da liberdade. Também o planeta deles deve ter estado à
beira da destruição, à conta da loucura do desenvolvimento
tecnológico. Limitaram a capacidade de actuação do homem,
ou do tlédio, talvez por já não terem tempo para salvar
o planeta através da educação natural. Impuseram uma
educação através de chips cerebrais. A educação natural
demoraria anos e anos. E já não era possível. Já não deviam
ter tempo suficiente. Ou então foi por os conhecimentos
já não poderem ser transmissíveis através da educação. O
conhecimento passou a ser implantado em vez de transmitido.
Assim, a diferenciação por via do saber anulou-se.
Por outro lado, devem ter cortado o pio aos políticos,
eliminando a linguagem. Eliminando a abstracção. Sem
dúvida, devem ter percebido o quanto a palavra pode
enganar. Dizendo, e nada dizendo. Se calhar, a palavra era
usada para criar facções politicas artificiais, ou religiosas, e
lutas, e guerras, criando ideais belos e vazios, como o nosso
220
Comunismo, como a Democracia, como o Casamento, eu sei
lá. Ou outros mais estúpidos, como a Pátria, ou a Tradição.
Se calhar tinham guerras para defender umas palavras
contra outras, quando, no fim, o que era preciso era reciclar
lixos e terminar de vez com a poluição.
No entanto, daquilo que percebi, devem ter mesmo
destruído o planeta deles, pois o local onde vivem agora,
a sua espécie de planeta, é todo artificial. Possivelmente,
os mais antigos, os mais humanos, ou os mais tlédios,
pereceram com o planeta morto e só se safaram os mais
práticos, os mais “máquinas”. Sem palavras e sem deuses
para armarem confusão. E os antigos lá ficaram, agarrados
à sua humanidade, à sua linguagem, à sua casa planetária
moribunda.
Por outro lado, também percebi que eram estes os deuses
do mar do Manuel. Os tais deuses com quem ele ia viver. E
foi com alguma desilusão que também percebi que eles não
poderiam vir a ajudar-me na minha procura do segredo do
mar. O tal que eu acharia se mergulhasse dentro de mim.
Muito pelo contrário: tornaram a minha teoria do saber
obsoleta, antes de ter nascido. Fui estúpido, também. Com
o advento da internet e da nanotecnologia, já sabia que seria
possível concentrar todo o saber do mundo num pequeno
formato e difundi-lo para toda a gente. Só não imaginei a sua
implantação nos cérebros e, a partir daí, o armazenamento
do conhecimento num banco de memória separado. Ou seja,
a novidade dos tlédios é a criação de um “disco externo”,
como se diz em informática, ao qual o indivíduo pode recorrer
com facilidade. Quer dizer que não é necessário encher o
cérebro. Quando é precisa certa informação, vai-se lá. Assim,
todos têm a mesma informação. Mesmo os cientistas, que
criam mais saber para além do que existe, não ficam em
situação de vantagem, a não ser por pouco tempo, pois esse
novo saber é imediatamente descarregado e partilhado.
221
E pensei para mim
- E agora, tio Saúl? Amália? Que será de mim? Daniela,
por onde andas? E agora? Agora que os tlédios vieram
e não me disseram nada de novo? E destruíram a minha
teoria do saber? Eras tu, meu tio, que tinhas razão.
Afinal, o segredo está dentro de mim. E perdi-o. Não,
não é o saber. Esse, porventura, tê-lo-ei cada vez mais
desenvolvido. Em detrimento do outro. Do verdadeiro.
Como pude alguma vez supor que tu te tinhas enganado,
meu tio? E o padre teu amigo?
Mas o Manuel enchia a sala com a sua música, saída da
profundidade longínqua da sua humanidade autêntica.
Música de outras dimensões, dimensões para além da
compreensão daqueles tlédios. Dimensões que eles nunca
visitaram. Música do absoluto que não entendem. Atónitos,
parados, em êxtase, fundidos – como dizia o Rui –, os tlédios
olhavam para o céu à procura do Absoluto que não tinham.
Que reminiscências passadas acordaria aquela música nos
cérebros de capacidades infinitas daqueles seres? Quantos
gigas estariam ainda ocupados com a recordação, agora
sofrida, da sua humanidade tlédia? Que minúscula parte do
seu corpo vibrava ainda ao apelo da potencialidade máxima
dos homens? Sentiriam eles a música no seu coração de
metal? No seu cérebro programado? Como poderiam eles
ser humanos sem a invenção do outro mundo? A dimensão
emocional que não é transversal nem longitudinal, mas
exterior à vida vivida. Teriam eles ainda alma? Em que parte
do seu complexo equipamento estaria alojada a sua alma?
Residiria aí a réstia final da sua origem humana?
Manuel já havia terminado aquela sua tão habitual procura
inicial, experimentando todas as suas aberturas do sentir, e
estava agora lançado numa nova viagem – era sempre uma
viagem diferente de cada vez que tocava – que percorria uma
outra estrada daquele mundo mais além que o habitava.
222
Manuel não sabia tocar músicas, não as conhecia. Às vezes
pedíamos – toca esta, toca aquela, conheces alguma música
clássica? Não sabia, nunca tinha aprendido nenhuma música
clássica. Nunca tinha sequer aprendido música. A música
tinha nascido com ele. Estava dentro dele. Era o seu modo
natural de comunicar. Tinha havido um piano, algures na
sua infância, que tinha substituído a aprendizagem da fala.
Conversa atabalhoada, parecia o maluco que lhe chamavam.
De modo que, sentado ao piano, era tão fácil expressar-se em
maravilha, como nós desabafamos na baixeza da linguagem
vernácula. Tocava uma peça nova de cada vez. Como um
pintor que produz uma pintura original. Única. O resultado
da unicidade da sua expressão artística do momento. Uma
peça sempre diferente. Sempre no seu estilo, mas sempre
diferente. Como quando falamos, e as nossas frases
raramente se repetem. Não falamos como um computador
programado para dar certas respostas fixas perante certo tipo
de perguntas. Não, respondemos com a nossa criatividade,
com a nossa liberdade de alterar as nossas ideias em função
do que nos vai na alma no momento. Manuel fazia o mesmo
com a música. Ele não concebia tocar uma peça musical
vezes a fio, como os pianistas de concerto. Ou tocar várias
peças pré-definidas, como é normal no “reportório” desses
pianistas. Para ele, isso era como ir a um país estrangeiro e
só conhecer vinte ou trinta palavras da língua local e tentar
estabelecer toda a comunicação com combinações diversas
– e por vezes absurdas – dessas palavras. Como fazer
uma intervenção falada, e profunda, numa língua que não
dominamos totalmente? Como um discurso, por exemplo?
Ou uma palestra num congresso? É muito provável que Maria
tenha razão. E que os tlédios tenham perdido a capacidade
de abstracção com o fim da sua linguagem. E, desse modo,
tenham perdido a capacidade de revelar e de comunicar, de
forma perfeita, a profundidade do seu sentir. Do conteúdo
da sua alma. É mesmo provável que tenham acabado por
perder a sua própria capacidade de sentir.
Manuel não tinha capacidade de ser ele através da linguagem.
Mas tinha a sua música. Que era agora muito ritmada, quase
223
obsessiva. Batia com a mão no tampo superior do piano,
para marcar de forma mais nítida a cadência. Os tlédios
olhavam para ele com um misto de fascínio e de assombro.
Assustavam-se quando o Manuel batia com a mão, às
vezes também com o pé. E abanavam um pouco a cabeça a
acompanhar o ritmo. Ainda tinham um pouco de humanidade
dentro de si. Naquele momento, ela acordava do seu longo
sono e manifestava-se perante o embate do impossível.
Manuel torcia-se agora mais, mais próximo que estava do
fim. Eu conseguia perceber sempre quando ele entrava no
auge da harmonia, já perto do final. Procurava, já muito
perto, a sua melodia absoluta. Aquele que era sempre o
objectivo último da sua música. Em atropelo, as notas
sucediam-se – por vezes dissonantes e incómodas, como
a vida imperfeita dos homens – em busca da harmonia
perfeita dos deuses. E, de súbito, uma sucessão de notas,
talvez de acordes, onde eu senti, de forma nítida, o caminho
final. É nesse tipo de momentos que reconheço que não
existe maior plenitude emocional do que acompanhar este
caminhar dos artistas pelo seu outro mundo ausente. Com
os tlédios no limite da lágrima que seria a revelação absoluta
da sua humanidade, Manuel enchia o pequeno espaço com
a grandiosidade sobre-humana que fez, um dia, os homens
emergirem da confusão animal em que viviam. A beleza da
música, e a sensação de plenitude – sim, era esse o termo – que
nos enchia a todos, transformava Manuel no maior dos
homens que jamais existiu. Como a Maria dizia. E os tlédios
também pareciam estoirar, do preenchimento total – pleno – que
essa música provocava. A iminência de uma lágrima era,
para eles, o revelar de uma vivência nova. Uma lágrima
que não era de dor, mas fruto de uma comoção, até àquele
momento, totalmente alheia ao seu sentir. A iminência de
uma lágrima era, para eles, a ameaça da transformação
brutal da sua condição de servos na aurora da vivência de
um mundo superior, o mundo da beleza suprema.
Música dos abismos do ser, senti-me feliz por ser homem.
Os galácticos e as divindades nada tinham para me ensinar.
224
Manuel mostrava até que ponto um simples instrumento, com
menos de uma centena de teclas, e de sons, era o suficiente
para permitir uma infinidade de combinações sonoras que,
por si só, construíam um mundo total. Construíam o mundo.
O mundo da nossa rarefacção. Da nossa ausência. Da nossa
transfiguração. Manuel existia apenas na nossa imaginação.
E tocava para além dos limites da nossa capacidade de sentir.
Numa pátria que não era a nossa. Os tlédios, tão habituados à
transposição de dimensões, não estavam programados para
a transposição de mundos que os humanos inventaram.
Comovido, dorido, realizei que era a última vez que ouviria o
Manuel tocar. Pois ele iria partir. Iria inundar as galáxias do
mais belo que elas jamais ouviram, ou sentiram. Iria deixar
nelas o rasto da beleza incomensurável da arte humana. Iria
deixar a marca do que de mais elevado marcou a existência
dos homens.
E disse, por fim
- Lembra-te, Manuel, serás o nosso embaixador. Tenho
hoje a certeza de que não poderíamos, nunca, estar
melhor representados. Maria soube-o desde o início.
Ensinarás às estrelas as tuas palavras azoásticas e
broásticas cujo significado profundo nós talvez não
entendamos. Porque tu estás mais além. Ensina-lhes
o mistério da liberdade total. Corta-lhes as amarras
do pensar e perdoa-lhes a baixeza da vida concreta.
Esmaga-os da tua beleza, e inocência, e bondade.
Inunda-os da música infinita que existe dentro de ti.
Milhares, talvez milhões de homens dedicaram a sua
vida ao desenvolvimento da tua arte sublime, para que
agora possas dar ao Universo inteiro a notícia dessa
obra.
Boa sorte, Manuel. Vai em paz. Vai à procura da beleza
absoluta da arte e do amor. Irás amar a mais bela das
mulheres. Eu, ficarei com os humanos. Percorremos um
225
caminho longo. Milhares, milhões de anos. Foi aqui que
chegámos. Provavelmente, o nosso planeta perecerá.
Ficarei, como os antigos tlédios, a guardar a palavra.
Tu serás responsável por dar notícia, ao Universo, da
mais bela das histórias. A história da arte. A história
do amor. A história do Homem.
Adeus, Manuel, leva o teu piano. E lembra-te de mim.
Lembra-te de nós. E tem sempre orgulho da nossa
longínqua espécie humana. Explica-lhes que fomos nós
que inventámos o Absoluto, o excesso de ser. Explica-lhes que inventámos um mundo novo. Um mundo
outro.
Diz-lhes que inventámos um outro Universo.
226
VII
O tio Saúl agarrou-me as mãos com muita força, ia morrer.
Mas tinha ainda um mistério em si, o maior dos segredos
para me revelar. Falava com dificuldade, mas os olhos
abertos, tão abertos, pareciam explicar metade do que eu
precisava saber.
Tão frágil, o tio Saúl. Magro, muito velhinho, mantinha a
sua compostura solene, a sua pose de homem corajoso e
forte – contavam-se histórias de ter sido o mais forte do
seu tempo –, no branco dos lençóis da sua cama austera.
Quem para ele olhasse não diria que aquele homem tinha
sido temido por quantos o conheciam, ele e o seu braço
justiceiro face à maldade da vida. Estava muito direito,
com as costas levantadas por almofadas grandes, olhando
o tecto do quarto enquanto parava para respirar, e engolir,
como que pedindo um pouco mais de tempo para poder
partir em paz.
Nas janelas ao fundo, a luz entrava ténue, pressagiando a
aproximação do fim e a terrível notícia da sua ausência futura.
Os meus mortos. Como aceitá-lo? O tio Saúl iria deixar-me
mais só. Mas não era o ficar sozinho para ser mais livre,
como era hábito eu dizer em relação às pessoas em geral
– reminiscências do “L’enfer c’est les autres” das peças de
teatro do querido Sartre da minha quase infância –, mas ficar
mais sozinho mesmo, para ficar mais desamparado perante
a vida. Ficar abandonado. Perder o tio Saúl era perder esse
227
amparo que os outros encontram na religião, a sensação de
que temos algo a que nos agarrar nos momentos de aflição.
Agora, estava preso às suas mãos, fazendo tanto esforço
para o ouvir como ele fazia para conseguir falar.
Foi assim, com dificuldade, que contou da morte do padre e
desse segredo último, e divino, que este lhe havia revelado,
e que agora tinha que passar para mim. Chegara a hora de
ser eu o guardião do templo, ouvindo primeiro uma história
de uma ida do padre a Nova Iorque – eu sentia de uma
forma nítida que a dimensão da história, e o tempo que
ela demoraria a contar para uma pessoa naquele estado de
fraqueza, iria impedir-me de ter acesso à revelação final –,
uma ida ao bairro negro de Harlem, bairro tão perigoso, na
altura, que poucos brancos tinham coragem de o visitar. O
padre tinha lá ido com o objectivo de ouvir uma missa. Tio
Saúl insistia que a história de Harlem era importante porque
explicava a revelação final do meu segredo.
Pouco tempo depois dessa viagem, o padre morreria.
Mas, antes, ainda conseguiu transmitir ao tio Saúl a sua
mensagem final:
– A visita a essa igreja acabou por ser o cumprimento
de um destino.
O padre tinha ido à missa com um sobrinho, mas fora à
civil, sem qualquer identificação exterior das suas crenças
ou pertenças religiosas. Ouvira falar de uma igreja onde os
cânticos eram especiais, um dos melhores coros do tal gospel
de que tanto tinha ouvido falar. Não só era um dos melhores,
como era um dos maiores: o coro incluía para aí uns 30 ou
40 elementos. Era uma igreja onde iam turistas – tal era a
fama espalhada –, que desembarcavam mesmo em frente,
de autocarros com guias específicos para o efeito.
Tal como aconteceu nesse dia. Quando o padre chegou,
havia um sem-número de autocarros parados à porta,
228
autocarros enormes – como caberia tanta gente lá dentro?
Os guias andavam, frenéticos, a receber pequenos papéis
das mãos dos visitantes e a entregar aos porteiros da igreja,
que eram vários, pois as entradas estavam distribuídas por
três pequenos portões. Era difícil chegar aos porteiros, as
pessoas acotovelavam-se, o padre voltava a perguntar-se
como caberia lá tanta gente…
Não cabia. Assim que conseguiu chegar próximo de um
dos porteiros, foi informado da impossibilidade de entrar.
Só com bilhete pago previamente, ou com reserva. Numa
igreja? A ideia não era assistir a uma sessão de uma casa
de espectáculos… o padre protestou. Pois, tudo isso estava
muito certo, mas a verdade é que não havia lugar, não
podia entrar toda a gente. Mas, e só duas pessoas? Uma
das quais uma criança? Não. Nem os pedidos invocando o
ter vindo de propósito de tão longe, nem mesmo o facto de
ter trazido o miúdo para assistir a uma missa pela primeira
vez, conseguiam demover o homem, que recebia com todas
as amabilidades os milhentos outros turistas que pagaram
caro para poder assistir. Era tudo negócio, os porteiros não
tinham mãos a medir, por vezes ajudados por raparigas
com longas vestes de cor púrpura a entrar e a sair, e com
a igreja a receber o dinheiro dessas grandes organizações
que envolviam agências de turismo, autocarros enormes e
em grande quantidade, guias, e negócio, muito negócio.
O padre não queria acreditar. Ainda foi falar com outro
porteiro, mas a resposta, como era previsível, foi a mesma.
Abatido, e imensamente desiludido, o padre decidiu perguntar
onde poderia encontrar outras igrejas. Mas aquela gente
só conhecia aquela. Ou seja, só conhecia aquele negócio,
porque aquilo não era uma igreja. Todos, de facto, lhe
disseram que, como aquela, não havia mais nenhuma. Era
única, daí aquela confusão toda e a necessidade de reservar
com antecedência.
O padre resignou-se então a ir-se dali, caminhando, com o
miúdo pela mão, à procura de uma outra igreja qualquer,
229
com algum receio pela segurança de ambos, mas, sobretudo,
com o receio de não conseguir encontrar um local com
aqueles cânticos que todos diziam ser tão belos.
O velho padre andava à procura da beleza, soube depois
que andava à procura de mais. Andava também à procura
de uma outra espécie de amor. Tal como Rui, quando partiu.
Também ele ia à procura do seu mais profundo amor, já tão
longe do amor pelos ideais. Foi graças a mim que ele saiu
mais cedo. Para correr para a sua amada.
Depois da partida de Manuel, apresentada às autoridades
como um desaparecimento misterioso
– Talvez tenha caído de um precipício abaixo e
desaparecido no mar
explicou um Gonçalo muito embaraçado, já não fazia
sentido eu ficar mais naquela prisão. A prisão iria ficar
deserta – iria custar-me horrivelmente –, daqui a pouco irei
contar. Não fazia sentido ficar eu, nem ninguém. A prisão,
de certa forma, não podia existir sem o Manuel. A prisão
tinha que morrer em nós. Rui apresentou um recurso ao
tribunal, invocando bom comportamento – ainda falei em
arrependimento, mas ele recusou –, e eu lá fui testemunhar,
com convicção profunda
– Tenho a certeza absoluta de que ele abandonará a
luta armada.
Fui categórico, o juiz achou-me uma pessoa acima de
qualquer suspeita, um cientista já com algum renome,
prestes a publicar um livro que todos diziam que iria ficar
para a história da Filosofia – o meu editor estava já a
trabalhar afincadamente na área do marketing.
– Juro pela minha honra que abandonarei a luta
armada.
230
confirmou Rui.
– Jure por Deus
disse o juiz. Mas Rui nunca juraria por Deus
– Juro pela minha honra.
Também Gonçalo testemunhou
– Juro pelo saudosismo da minha infância.
O juiz não entendia.
– Juro pela minha segurança perdida.
Gonçalo também jurou, andava de novo a vaguear no país
da ausência. Também ele acreditava na inocência final de
Rui, após tantos anos de discussões que acabavam por ecoar
na nossa memória com uma aura de ternura. E também
Gonçalo iria abandonar a prisão, e mesmo aquela profissão
– ia pedir emprego como cozinheiro num restaurante muito
conhecido. Afinal, a culinária era a sua paixão. E Gonçalo
merecia reencontrar-se com o conforto da vida. Merecia um
pouco de felicidade. Às vezes, abrimos uma nesga dentro de
nós e ela entra. Gonçalo merecia que ela entrasse. Merecia
um dia uma família, como era estranho que ele não a tivesse.
Ele, que era o seu maior defensor.
Também o velho padre vagueava no desespero da ausência
iminente do seu sonho. Mas, a dada altura, e depois de andar
algum tempo um pouco perdido – perguntando aqui e ali
por igrejas hipotéticas, e recebendo em troca informações
algo desconexas –, viu, numa rua perpendicular, aquilo que
parecia ser uma pequena igreja e, puxando o miúdo, foi
indagar. Embora sem grandes esperanças. O facto de não
haver ninguém à porta, a fazer fila indiana – não se via,
aliás, ninguém nas redondezas – não era certamente um
231
bom presságio. Era um edifício muito pequeno, nem estava
isolado dos edifícios adjacentes, como estão as grandes
igrejas, e era necessário subir uma série de degraus para
poder entrar.
Ficou em frente da igreja, a tentar perceber se havia uma
missa ou não – porque percebeu que era, de facto, uma
igreja –, quando uma senhora chegou e começou a subir os
degraus. Com algum acanhamento, o padre perguntou-lhe se
havia missa e, mais importante, se havia cânticos de gospel.
A senhora sorriu e disse que sim, que, na missa que agora
se ia iniciar, também costumavam cantar todos em conjunto.
Mas o que mais impressionou o padre foi o facto de ela, sem
terminar a sua resposta, ter acrescentado, com um sorriso
de fraternidade sincera, que todos teriam muito prazer em
recebê-los na sua igreja e celebrar a missa em conjunto. E,
recuando os degraus que havia subido, fez com os braços
um gesto que os convidava a subir também. O padre sentiu
qualquer coisa de especial naquele convite, algo de diferente
no comportamento tranquilo e gentil daquela mulher. A
mulher ficou parada, em frente das escadas, como que a
insistir na aceitação da sua proposta, fazendo um sorriso
genuíno e uma pequena festa no cabelo do miúdo.
O padre não pensou. Mecanicamente, pousou a mão direita
sobre o ombro direito do sobrinho e, puxando-o de novo
para si, conduziu-o escada acima, atrás da mulher que subiu
num instante para lhes abrir a porta.
A igreja era pequena, de facto, só tinha uma dúzia de filas
de bancos, e era muito branca. Curiosamente, era uma
igreja católica – percebia-se pela iconografia –, o que, ali,
não era certamente habitual. O padre e o miúdo eram os
únicos brancos, e todos olharam para trás, como que não
habituados à presença de estranhos. Todos muito bem vestidos,
os homens – e mesmo os rapazes mais pequenos – de camisa
branca e gravata, e elas de chapéu, por vezes com rendas,
e algumas miúdas com o cabelo apanhado com vistosos
laços de seda.
232
Quando a missa começou, o padre reparou, na ala lateral
direita da igreja, que ali também havia um coro, só de
mulheres, só uma meia dúzia, talvez dez, todas vestidas
com umas longas túnicas até aos pés, vestes semelhantes
às das raparigas que vira na entrada da outra igreja, embora
estas fossem de um vermelho escuro e brilhante. O padre
ficou a olhar para elas, viradas para os assistentes e para um
piano pequeno que havia em frente, onde um pianista iria
fazer simultaneamente de maestro. Mas o que o padre mais
reteve foi o olhar feliz das raparigas, sorridentes, e radiosas,
antes mesmo de a música começar. Alegria da juventude,
olhavam para o padre e para o miúdo com uma ternura
absurda, afinal não os conheciam de parte alguma, nunca
os haviam sequer visto, donde é que vinha aquela sensação
de prazer em os ter ali? Seria também encenação com fins
comerciais, como na outra igreja grande? Que sentido fazia
aquela demonstração de afecto especial por aqueles que,
justamente, menos pertenciam àquele mundo?
Quando abandonou a prisão, Rui convidou-me a ir um dia
conhecer a sua galeria, e a sua futura mulher. A sua missão,
o seu destino era agora amar uma mulher e, quem sabe, a
pintura abstracta também. Brincou comigo
– Vem ver a pintura de que gostas.
Rui queria que eu os visitasse. Talvez para mostrar que,
afinal, também acreditava na família, ou talvez para
relembrar os tempos felizes que passámos juntos – nunca
uma prisão havia sido tão digna de recordação e celebração.
E abraçou-me com energia e sentimento. E agradeceu-me
baixinho. Abraçado a ele, percebi o que, de certa forma,
sentia na narrativa sobre aquela igreja: pertencemos todos
aos mesmos mundos, que se vão entrecruzando através
de uma recentemente descoberta transposição transversal
das dimensões da nossa vida. E percebi também até que
ponto a discussão – mesmo, por vezes, violenta – das ideias
era tão pouco, perante a imensidão de um sentir fraterno
233
de homens sensíveis. Até que, bruscamente, me comovi.
Comovi-me tanto. Inexplicavelmente, eu passara, naquela
prisão, alguns dos melhores anos da minha vida.
De repente, a música ecoou por todo aquele espaço, que
agora parecia grande, e as raparigas começaram a cantar.
Abanavam o corpo para um lado e para o outro, ao ritmo
daquela cadência tão vincada. E o sorriso abriu-se ainda
mais. O padre sentiu intensamente que o mistério da música
tinha tomado conta de todo o espaço em redor. O mistério
da música e – o padre não conseguia afastá-lo – o mistério
do sorriso das raparigas. E também o do abanar do seu
corpo ao som daquela música ritmada – quando deu por
ele, estava também a dançar –, da mesma maneira que o
miúdo, hirto de espanto, abanava ligeiramente a cabeça num
enlevo que o afastava, com toda a certeza, do nosso pobre
mundo vivido. Também ele estava para lá do entendimento
limitado do imediato.
Gonçalo dizia
– O mistério da lonjura.
Certamente que o pequeno também partilhava o outro além,
que ali se confundia, inesperadamente, com o além das
divindades e das religiões.
– Mundo da rarefacção sublime.
Aquela pequena igreja foi, por momentos – imagino-o hoje,
com uma intensidade segura, no pleno da minha solidão –, a
verdadeira casa da música, tributo ao mais belo dos feitos
dos homens. Imagino as raparigas a cantar, a dançar, e
a sorrir, e o padre a abanar todo por dentro, perante a
revelação cada vez mais violenta do amor que sentia pelo
homem seu semelhante.
Também o tio Saúl abanava as mãos, talvez quase o corpo,
numa vibração imperceptível. Havia um som de uma melodia
234
algures, ele ouvia-a dentro de si, já a meio do caminho que
o conduzia à ausência da vida. Antes de partir, havia ainda
a maravilha humana a prendê-lo a uma mão – a minha –,
no derradeiro esforço para cumprir a sua missão final.
Era um padre comovido que descobria os mistérios do Novo
Mundo, pegando na mão da criança para não estoirar, para
canalizar para ela um pouco do amor que transbordava em
si. Um padre que reencontrava, através daquela música
e daquelas gentes, o seu verdadeiro deus, deus que o
abandonou a maior parte do tempo, o deus das injustiças
gritantes e da morte dos inocentes, tanto que ele havia
tentado, e há tanto tempo, não desistir dos caminhos da fé
e dos juramentos de pertença à casa desse deus injusto.
O velho padre só pensava no quanto gostaria de que todas
as igrejas fossem iguais àquela, e de que todos os homens
fossem feitos daquela mesma carne que ali encontrou.
Carne, sangue, sentir. E uma enorme gentileza, afecto,
porque não chamar-lhe amor?
As canções iam-se sucedendo e aquele fascínio enchia a
pequena igreja, agora um fascínio mais doce, talvez mais
subtil, pois a canção era mais lenta, e as raparigas, como
que para compensar essa lentidão, rodavam o corpo com
mais amplitude, balançavam e inclinavam mais a cabeça,
com sorrisos sinceros de ternura. O padre agarrava com
mais força na mão do miúdo – que nem devia sentir, de tão
absorto que estava – porque percebia que a sua comoção
crescia ao ponto de ter uma vontade súbita e irreprimível
de chorar.
Enquanto me abraçava e dizia, baixinho
– Obrigado por tudo
Rui também não resistiu a partilhar uma última lágrima
comigo. A vida na prisão tinha sido intensa. E profundos
foram os laços que, durante esse tempo, nos uniram. E
235
fantásticas as experiências que vivemos em conjunto. Rui
abandonava a prisão, e a revolução, a caminho do sossego de
um lar. E eu comovi-me com ele. Rui era jovem, tinha a vida
toda à sua frente. E já tinha sofrido demasiado. Em termos
de amor ao próximo, já tinha dado tudo de si durante anos e
anos de abnegação. Ninguém lhe poderia pedir mais. Já era
tempo de ir a caminho do conforto do amor, do inverosímil
de uma família, de uma outra promessa de um mundo novo,
mundo tão diferente e, simultaneamente tão semelhante,
daquele que sempre havia sonhado.
Mas o velho padre ia acabar por chorar. Sim. Não iria ser
naquele preciso momento, mas um pouco mais tarde,
quando a missa terminou e os participantes se começaram
a beijar e a cumprimentar entre eles, todos concentrados
nas primeiras seis ou sete filas de bancos da igreja. O padre
e o miúdo, com a cerimónia e o acanhamento próprio dos
estranhos ao local, tinham-se colocado, sozinhos, na última
fila. E foi quando o padre que disse a missa – nos intervalos
do ofuscante da música, da alegria contagiante daquelas
gentes e de tudo o mais que fez reduzir a celebração
propriamente dita a uma quase insignificância – veio pelo
corredor central, com simplicidade e alegria, e se dirigiu ao
padre, e ao miúdo, e os abraçou a ambos, dizendo
– Obrigado por terem vindo, foi um prazer tão grande
tê-los connosco
que o velho padre sentiu uma comoção indizível, a não
ser pelas lágrimas – que teimosamente lhe nasciam nas
profundezas de si – e pelo tremor irreprimível do seu corpo
cansado, uma comoção tão profunda que não lhe permitiu
fazer mais do que acenar um pobre agradecimento, fechando
os olhos para não sofrer mais.
Puro engano. Quando os abriu, viu todos os outros virem na
sua direcção, o primeiro era um senhor já muito velhinho,
que sorria de orelha a orelha, aumentando as rugas dos
olhos num esgar de felicidade genuína
236
– Obrigado por terem vindo
estendendo as mãos, mãos que agarrou com força às mãos
do padre – como o tio Saúl, que cada vez fazia mais força,
tremendo, enquanto contava o que restava da história –, e
abrindo os olhos, afogados num mar de rugas negras, que
transbordavam de uma visão líquida de comoção, ou de
amor
– Estamos tão felizes por estarem aqui
o padre não conseguia mais do que pensar em como não
há limite para o sentir dos homens.
Depois, as outras pessoas, todas elas em cortejo, vieram
também, o miúdo, estarrecido, não se mexia, e o velho
padre não aguentou, os olhos cheios de água, agarrou-se
aos homens que lentamente chegavam, e às mulheres, e
abraçava-os, e beijava-os, e agarrava-lhes também as mãos,
não conseguindo conter as lágrimas que lhe caíam, nem
pretendendo sequer fazê-lo, para não esconder a emoção
que sentia. Largou o miúdo e deixou-se levar pela ternura
daqueles momentos tão belos, eles vinham do fundo da
igreja com a alegria do domingo
– Prazer em tê-los connosco
e ele sofria de forma absurda, sentimentos em destroços
– o coração apertado com uma violência superior ao que
permitiam as suas pobres forças –, o velho homem desfalecia
de uma comoção toda ela moldada de uma alegria e de
uma felicidade que tinham tanto de absolutas como de
reveladoras de toda uma outra maneira de estar na vida que
os homens do Novo Mundo pareciam ter inventado.
Como o tio Saúl que, com os olhos rasos de lágrimas
também, parou de falar, largou uma das minhas mãos e
agarrou o peito como se fulminado por uma dor infinita.
237
A luz das janelas ao fundo quebrou um pouco mais, o Sol
pareceu estar repentinamente mais distante, e o quarto
escureceu com a aproximação negra da morte. O tio Saúl
fechou os olhos e balbuciou imperceptivelmente uma frase
que não entendi, mas que terminava com
– ... o amor dos homens.
E foi então que a luz das janelas, de uma forma bruscamente
violenta, voltou a iluminar o quarto, com um raio volumoso
que caía, oblíquo, mesmo por cima do corpo inerte. Era uma
luz mais forte, mas mais opaca, não deixava ver nada através
dela. Uma luz direccionada, forte, mas de um brilho baço.
Era certamente o céu que se iluminava em homenagem à
chegada do maior de todos os amigos, do mais corajoso de
todos os protectores dos mais fracos, do mais justo de todos
os homens. Era um feixe de luz opaca, como um túnel. Era
por dentro desse túnel que ele, com toda a certeza, estava
a partir.
E eu fiquei, gelado, a olhar para a cama, sem saber se
ele ainda estaria ali. Limpando as lágrimas do meu choro
contido, pensei em como nunca mais iria ser feliz.
– O amor dos homens.
Legado inverosímil, o segredo afinal não revelado
– Mergulha em ti, e encontrarás o segredo do mar
a sensação, em atropelo, do impossível da vivência sem a
presença da mão que me fazia sentir homem grande quando
passeávamos nas praças ao cair da noite, já tarde quando
era Verão, e da partilha da conversa dos adultos, homens
corajosos que lutavam contra a repetição agreste dos dias
e que sonhavam a luz mais além da aurora da liberdade. As
falas silenciosas, as conversas criptadas, em que se dizia o
frade para referir o ditador – era ainda o anti-clericalismo dos
238
amigos do tio Saúl, que misturavam o horror daquele mundo
político com o contraponto de uma religião subserviente,
desumanizada e sem sentido. Não era como a outra, a dos
americanos negros de Harlem, que era uma religião de face
humana. Memória da cara das raparigas – a beleza de uma
cara humana, sorridente ou lacrimejante –, que enalteciam a
grandeza dos afectos e expunham, aos quatro ventos, essa
coisa imensa que era o amor dos homens – a religião deveria
sempre ser assim. Esses rostos e a música, primeiro uns
e depois a outra, levaram o velho padre, que inicialmente
não queria chorar em frente da criança, a abraçar aqueles
homens e aquelas mulheres, puros e de uma beleza de
origens – gentes que nunca havia conhecido –, com as
lágrimas a cair e sem vergonha de o mostrar, se preciso
fosse, ao Universo inteiro.
Sim, a verdadeira religião era certamente essa, e o tio Saúl,
que sempre o havia sentido, só nesse momento o deve ter
compreendido verdadeiramente, só nesse momento o deve
ter realizado em si. Sim, essa era a sua ideologia global
de sempre. A sua religião, se tal se poderia dizer de uma
coisa que ele desprezava. Mas era certamente a sua razão
de viver, a visão do mundo por que tinha lutado toda a sua
vida – certamente o sentira quando a criança faminta da
aldeia distante o convidou para almoçar uma bolota partida
ao meio. Religião que certamente fez, penso-o hoje, o padre
perceber que a sua vocação máxima não era o amor a um
qualquer deus, pequeno e injusto como ia demonstrando
ao sabor das circunstâncias, mas o amor ao Homem. O tio
Saúl disse-o, mas eu não ouvi tudo
– ... o amor dos homens.
Aquela missa tinha significado que havia um local longínquo
onde homens verdadeiros tinham inventado uma religião
verdadeira, que os faziam abraçar e beijar os estrangeiros que
não conheciam, dizer-lhes coisas simples e emocionadas
239
– Obrigado por terem vindo
e sorrir-lhes com a face iluminada pela alegria das manhãs
festivas de domingo.
Havia uma religião que não era a verdadeira, e a nossa
prisão também não o havia sido. Porque prisão devia ser
o contrário de libertação. E, perante a prisão deserta do
fim, a convicção a que chego foi a da enorme libertação de
todos nós.
Primeiro, a do Manuel, que lá seguiu a sua viagem na
direcção da infinitude inverosímil das galáxias. Os tlédios
levaram-no e, com ele, a beleza nua de Maria. E a sua
esperança no retorno da humanidade. Cilindrados pelo
peso excessivo da beleza humana, lá foram procurar a sua
identidade perdida.
Depois partiu Rui, liberto após os nossos testemunhos, mas,
mais do que tudo, liberto de uma missão que havia escravizado
a sua alma durante tantos anos. Mas era ainda tão jovem.
Tinha tudo ainda por acontecer na vida. Livre da escravidão,
Rui manteve, no entanto, a sua grandeza intacta
– Juro pela minha honra.
Partiu de cabeça levantada, disse coisas belas e poéticas
durante o julgamento. Rui percebeu que não são as ideologias
que fazem a grandeza dos homens, mas antes o modo como
eles as transformam em acção. Em exemplo para os outros
e para as gerações vindouras. E disse-o em voz alta, ecoou
pela sala de audiências, ele que não quis advogado para o
defender. Disse que queria falar com o juiz, uma conversa
entre homens que têm responsabilidade perante os outros
homens. E perante o seu futuro. O juiz ouviu-o com uma
atenção silenciosa. No fim, acabou por o elogiar
– O senhor não merece envelhecer numa prisão.
240
Gonçalo também partirá daqui a pouco, livre como os outros,
mas em busca de uma outra espécie de amor. Gonçalo
precisa ainda de encontrar o amor-próprio. Porque sem
amor-próprio não se pode amar ninguém.
Aquela religião era a que o velho padre sentia como
verdadeira, e era também a única que o tio Saúl entendia.
Unia-os esse amor fraterno pelas pessoas simples,
desprotegidas, boas, fosse na aldeia mais perdida e atrasada,
fosse no centro da civilização. Os homens e as mulheres que
assistiam à missa, todos tão bem vestidos por cima da sua
pele escura tão bela e tão pouco habitual para os nossos
olhos – certamente que prepararam as suas roupas durante
uma semana inteira –, viraram subitamente costas ao seu
deus, ao altar, às enormes cruzes e aos anjos escondidos,
e vieram, uns atrás dos outros, mostrar aos estrangeiros
longínquos o quanto aquela missa fora um acto de amor. Aos
estrangeiros longínquos, ensinaram a lição da sua religião
de amor, ensinaram a sua lição mais querida, a lição que,
há muitos milhares de anos, terá feito nascer o homem e
a humanidade.
Papel manuscrito nº 7 (tempo final da
prisão)
O amor universal, será que ele existe? Manuel,
onde estás? Manuel? Como o Ferré que gritava
pelo Manuel de Falla no “L’ éspoir”, obra do
Malraux que pensou a arte como talvez mais
ninguém – onde estamos todos? E tu, meu
amor? Encontraste o teu futuro? Voltaste a
amar? De que forma estamos unidos com o que
241
já não existe? Onde estaremos no fim? Vamos
todos encontrarmo-nos um dia? Os meus mortos.
A minha solidão. Existe um amor universal,
Manuel? Os galácticos sabem o que é o amor?
Encontraste a minha Amália por aí? Ela
falou-te de mim? E tu, escreveste o teu romance
broástico? Cumpriste o teu sonho de amor e
arte? É contigo que eu irei ter dentro em breve?
É com os meus mortos? É com ela? Ela partiu
um dia. Queria saber do seu futuro possível
– Não amarei mais ninguém.
Ou é tudo mentira – como tu disseste um dia, a
propósito do romance –, e não nos encontraremos
nunca mais?
E então eles viraram costas aos seus deuses e anjos, e
vieram, pelo corredor central, viraram costas à madeira e
ao mármore frio, e vieram, virando-se para o sangue quente
dos homens, e abraçaram as pessoas que tinham a seu
lado, os habituais de todos os dias prometidos de domingo,
mas também os desconhecidos, viessem eles de qualquer
parte do planeta. Abraçaram-nos com toda a ternura que
encontraram nas suas almas esculpidas na bondade que há
nos sonhos dos seres comuns.
E o último abraço estava destinado a Gonçalo, eu e ele
deveríamos ser os últimos a partir. Devíamos despedir-nos
242
deixando para trás uma prisão deserta. Nela ficariam
os vestígios da alegria e da excitação. A memória da
confrontação com o outro mundo, Maria explicando a busca
desesperada daqueles seres porém tão frágeis. Acabaram
por descobrir a individualidade em nós. A liberdade. E,
com essa descoberta, lá foram tentar recuperar a sua
humanidade perdida. A recordação de Maria. Tão bela. E,
enquanto ela falava da transposição de dimensões, os meus
olhos sucumbiam ao impacte do esplendor do seu peito
nu. Manuel tocava no piano uma derradeira melodia, o seu
último adeus. E dizia
– Isto é broástico.
Uma prisão deserta. Nela iria ficar, para sempre, uma parte
de nós.
Gonçalo partia feliz – eu tinha mesmo que ficar mais um
pouco. Ele percebera que precisava de perdoar ao seu
passado. E esquecer a ameaça do abismo. A experiência
da prisão também lhe tinha permitido uma libertação. E,
assim, o seu objectivo era, agora, encontrar a segurança
da infância, o seu último refúgio de protecção.
Manuel tinha, naquele dia longínquo, representado a nossa
peça com a grandeza que nele habitava. Quando já estava
perto do fim
- Diz-me Chita
baixou-se, como se estivesse a falar com a macaca. Rui
abriu muito os olhos e, num pleno de emoção controlada,
Manuel terminou
– O caminho
a infância
O caminho da infância, por onde é?
243
Gonçalo precisava de o saber.
O “segredo do mar”? Não o encontrei, nem na visita dos
outros, que vieram de tão longe, nem na récita inacabada
do tio Saúl. Mas ele sabia que eu iria descobrir. Ele via-me
como uma espécie de garante do futuro. Ele sabia que eu
iria continuar por ele. E lutar por uma verdade derradeira.
Pela nossa verdade. E sonhar. Ele sabia que eu não o iria
abandonar, que não iria esvaziar a sua lição. Pelo que
confiava de pleno em mim – não havia vez que não me
deixasse recados para depois da sua morte
– Promete-me que, quando morrer, não me vão trazer
padres, ouviste? Nem me levam para a igreja...
E eu “sim, tio”, com a convicção de que o que ele me pedia
era, naquele momento, de uma importância absoluta para
o seu descanso final.
E, quando chegou o momento, disse-lhe
- Sim, tio, prometo. Não haverá padres para ensombrar
o teu repouso de homem que lutou pelo mundo mais
além. Não te envergonharei, nem aos teus amigos,
que tanto me ajudaram a crescer e a pensar como
um homem. Irás só, entender-te-ás com quem tiver
que ser. E dirás o homem que foste, o que sonhaste,
falarás da liberdade e falarás do mundo de justiça que
procuraste, dos fracos que sempre defendeste, mesmo
à custa das sovas que pregavas nos homens malvados
que acabaram por te temer. Dirás como os indefesos se
sentiam protegidos, e como confiavam no teu sentido
de justiça e na tua coragem como em mais ninguém.
Falarás da tua luta por um mundo melhor, contarás
as histórias do teu padre amigo e revelarás, não sei a
quem, o segredo que te matou de comoção antes de
mo poderes explicar, e, virando-te lá de longe para
mim, de novo dirás “mergulha em ti, e encontrarás o
segredo do mar”.
244
Foi numa noite quente, à luz do luar, estávamos, como de
costume, a beber um leite antes de deitar. Eu bebia um
leite com chocolate e comia aquelas bolachas que adorava,
enquanto olhava as estrelas. Já sabia encontrar a Estrela
Polar. Tu só me deixavas comer seis bolachas, por isso eu
demorava tempo, contando, a partir da Ursa Maior, cinco
espaços correspondentes à distância entre Alfa e Beta, de
Beta para Alfa – já não me lembro bem. Já sabia encontrar
o Norte. E tu sabias dessa minha capacidade tão precoce,
melhor do que ninguém. Por isso me confiavas os mistérios
da existência humana. E por isso eu era tão feliz.
Foi nessa noite quente que me assustaste com a tua cara tão
séria, como se algo de muito grave estivesse a acontecer.
Disseste-me que havia um segredo que eu iria um dia
descobrir. O segredo dos segredos. Eu era pequeno, tão
mal que eu dormi nessa noite. Mas, no dia seguinte, acordei
com a sensação de me ter tornado um homem. Havia um
mistério na vida que ia salvar a espécie humana, e eu iria
descobri-lo um dia. Tinha-me sido atribuída uma missão. O
tio Saúl tinha dito uma frase sobre esse mistério secreto que
só os adultos conheciam. E eu podia, a partir daí, aspirar a
partilhar o seu mundo clandestino.
E assim passei, perante a gravidade da situação, a andar com
eles na praça, para trás e para a frente, com um ar sério e
concentrado. Quando nos cruzávamos com outras pessoas,
eles baixavam a voz, e eu, de mãos atrás das costas como
eles, tossia para disfarçar.
Tanto que pensei nessa frase. Havia, eu acreditava, um
segredo no mar, mas a história à beira da morte era uma
história de amor. Talvez o maior amor de todos, porque não
visava este ou aquela, mas essa totalidade a que chamamos
Humanidade. Era uma história que cheirava a terra, como
acontece no campo, depois das grandes chuvadas. Se havia
um segredo, ele estava no coração daqueles homens; se
havia água, ela estava na ternura dos seus olhos. Que
245
segredo há no mar? Que segredo tenho eu que descobrir,
tio Saúl? Qual é a palavra mágica que escondeste? Qual a
palavra proibida? Aquela que está dentro de mim, apesar
de a ter perdido, um dia – foste tu que o disseste.
- Que segredo é esse que levas contigo, agora que vais
tão só? Vais só, não me esqueças. Vais só, e falarás
a quem quiseres do teu sobrinho que te amou com a
inocência das crianças, vais só, e explicarás que ele
não te esquecerá. E verás como escreverá um livro,
um dia, para honrar e perpetuar a tua memória de
homem grande, e livre, perante a maldade e a pequenez
do mundo. Para velar a tua morte, não haverá nunca
padres, só eu. Ficarei sentado à tua espera. Como
se tivesse a certeza do teu retorno. Se me quiseres
chamar, estarei aqui. Ao pé de ti. Para sempre.
Quando chegou o momento, disse-o. Mas não sei se ele
ouviu.
O mar. Amor. Quantas vezes escrevi estas palavras. Estava
nelas o segredo escondido. E foram muitas as vezes que as
liguei, de facto, até um dia perceber que as duas palavras
eram uma só. O padre e o tio Saúl viviam numa ditadura e,
quando o tio disse essa frase mágica, ela estava codificada.
Após o fim da ditadura, o tio Saúl guardou a revelação tempo
de mais, para um momento em que o seu coração não
aguentou. Contava uma história sublime de amor, passada
nos confins da América, do mundo novo. E o seu coração
frágil, que é onde guardamos o amor, não aguentou. O mar.
Amor. Omar-amor, bastava uma pequena troca de vogais
para tudo ser claro para mim. O segredo de que falavam
era, afinal, o segredo do amor.
Era como se o tio Saúl voltasse lá não sei de onde, se virasse
para mim de repente, e dissesse
– Mergulha em ti, e encontrarás o segredo do amor.
246
Na ditadura, também o amor era proibido. Manuel Alegre:
era também essa a palavra proibida do teu país? O amor?
Não o amor particular, por uma pessoa em especial, mas o
amor total – afinal, o tio Saúl tinha conseguido dizê-lo. Num
esforço final, juntando todas as forças que tinha, acabou
por dizer a frase necessária
– ... o amor dos homens.
E eu tinha ouvido o essencial. Porque não percebi logo? Não
se tratava apenas do amor por um determinado ser, mas
um amor mais global, por todos os homens. Como o padre
amigo do tio Saúl lhe explicou um dia, que era por isso que
os padres não se podiam casar. Para poderem dedicar todo
o seu amor às pessoas em geral, sem benefício para um
ou para outro. Era esse o segredo para a minha filosofia
do século XXI. O Sartre tinha-o dito, tantos anos atrás. A
engrenagem. O livro da minha adolescência. O amor ditava
mais alto. Jean, que partiu o copo na mão, e a encheu de
vidros, quando Hélène subiu as escadas com Lucien. E depois
disse à outra – já não lembro do nome – “limpa-me lá isto”,
estendendo-lhe a mão cheia de sangue e de vidros.
O amor é o segredo milenar dos homens. Mais de um milhão
de anos – para que raio tinha eu estudado tantos anos de
Antropologia? O amor absurdo. Já o tinha dito, e escrito,
antes. Também Maria o disse. O amor sem objectivo. O
amor que nega o instinto, o interesse, a protecção. O amor
absoluto. O amor absoluto dos homens.
Não era o segredo do mar que eu devia procurar em mim.
Tinha estado cego todo aquele tempo. O que me esperava
era o segredo do amor. Como fui capaz de o ignorar? Ele
bem dizia que eu o tinha perdido… Sim, tive-o nas minhas
mãos, Amália que partiste para sempre. E eu guardei o amor
dentro de mim. Escondido, na memória – o tio Saúl o disse – e
no coração.
247
Um dia sonhei que ela entrava pelo teatro dentro e,
representando um texto, me anunciava que voltara – já
posso contar agora – e um filho, um filho – sim, vou contar
agora. Amália pedia-me que voltasse – como assim, se era
ela que tinha partido? Tenho que contar a noite em que
sonhei o impossível de mim. Amália e um filho pela mão.
Ou então ela vinha sozinha para o anunciar. O sonho de a
vida poder ser como a imaginei em pequeno, quando as
maminhas lhe cresceram e eu olhava com rapidez e disfarce
na aflição de mim. Algo crescia em nós, eu pensava que era
a nossa preparação para a vida. Eu pensava que o corpo
nos crescia como uma promessa do nosso destino feliz. E
tinha aquele medo de ela não ser mais minha amiga. Eu
queria tanto beijá-la, mexer-lhe no peito para ver como era
a sensação. E beijá-lo também, para lhe conhecer o sabor.
Ela trazia uma camisa decotada. E já tinha maminhas como
as mulheres. A minha Amália.
No meu sonho, o seu vestido era longo e branco, que é
a cor das grandes revelações. Se calhar vinha de noiva,
cansada de procurar um futuro longe do meu. Ou então era
porque sabia que o cenário iria ser todo preto, a nossa roupa
também tão escura, e ela, como uma luz, avançava lenta
para iluminar o escuro que havia dentro de mim. Tinha, de
novo, um decote cavado. Mas eu não estava em estado de
redescobrir o que nele havia. A dada altura, perante o meu
tremor profundo
– Vem vindo
dizia ela baixinho, com a cabeça levemente tombada,
numa aproximação de carinho. Eu tentei olhar para o lado,
esconder a minha comoção. Mas ela sabia de todos os meus
segredos. E voltou a falar numa voz de ternura que, de tão
doce e familiar, me fez voltar a olhar para ela. Enfrentando,
perante ela, a minha fraqueza de olhos tristes.
248
– Vem vindo
As crianças cresceram
Traz a poeira das estradas contigo
Cantos da casa
Tardes tão fortes
Dois olhos, dois braços
Esperam por ti
Amália estava bela no seu vestido branco. Dizia coisas
incompreensíveis, como se tivesse sido eu a fugir-lhe um
dia. A cabeça levemente tombada – tanto que eu tentei
esconder a minha comoção. Mas ela já tinha tomado conta,
como sempre, dos meus olhos tristes.
– Vem vindo
Joãozinho pergunta
O mundo lhe interessa
Os sonhos colhidos
(ano chuvoso, famosa colheita)
Estão já no celeiro
Ela queria dizer-me algo sobre a existência de um filho,
talvez dois, não sei – teria sido por isso que ela partiu assim,
daquele modo tão cruel?
– Joãozinho aprendeu a escrever o teu nome
Amália vinha do infinito – ou da eternidade, que é o infinito
que há no tempo –, para me dizer que voltasse. Mas, voltar
para onde? Afinal, não fora eu a partir e a procurar um outro
futuro.
– Joãozinho aprendeu a escrever o teu nome
Não sei se devia.
249
Amália. Lancei um grito horrível
– Amália!
Amália, querida Amália, descobri o segredo para a salvação
futura dos homens. Haverias de ter orgulho em mim.
Deverias voltar agora, para ter orgulho em mim. O segredo
esteve sempre comigo. E o tio Saúl sempre o soube. Mas
não me disse. Lembras-te do tio Saúl? Ele gostava tanto de
ti. Já morreu, sabias? Morreu numa tarde em que a luz do
Sol entrava de esguelha pela janela. Dizia-me sempre
– Não deixes que tragam padres, ouviste?
Não vieram padres, tio, eu tinha prometido.
– Nem deixes que me levem para a igreja...
Não, tio, não deixei. Para velar a tua morte, não haveria
nunca padres, só eu. Se me quisesses chamar, estaria ao
pé de ti. Mas não chamaste. Nunca mais.
– ... o amor dos homens.
Ele disse-o, percebes Amália? Ele disse-o, mas eu não
compreendi. Era o amor a palavra que eu procurava. Eu
tinha ficado a guardá-la.
Tinha-me sido deixada por ti.
250
VIII
E tudo, lentamente, chega ao fim.
O meu romance, a minha vida. O tempo da prisão terminou.
E, com ele, as minhas réstias de alegria. Olho à volta e já
não vejo mais motivos para ficar. Sem Manuel, sem Rui,
com um Gonçalo já todo a vibrar com a sua promessa de
harmonia futura, é hora de desmantelar tudo e partir. Vão
tirar todos os apetrechos da torre, afinal de pouco serviram.
No fundo, quando estão em jogo as grandes questões da
humanidade, a tecnologia não tem a utilidade que pensamos.
Os tlédios explicaram-no à desmesura. É hora de libertar o
pobre Gonçalo, agora já só à minha espera para se ver livre
desta sua profissão prisioneira. Tudo chegou ao fim para
mim. Terminei a minha busca, descobri a palavra perdida e
é agora hora de deixar os homens seguirem o seu próprio
caminho.
Também o meu livro já pouco tem para acrescentar. Escrevi-o
tão rápido, tão febril, nestes últimos dias. Depois da fuga
de Manuel para as estrelas, e da entrega corajosa de Rui ao
amor, só o meu livro poderia manter-me aqui. Gostava de
um fim épico, agora que já não é o monumento científico
com o qual sonhei todos estes anos. É apenas um romance
de amor. Ou talvez um longo ensaio emocional. Sonho com
um fim grandioso, para o romance e para mim. Mas estou
tão cansado de tudo, não tenho mais nada para contar. Só
talvez Amália me poderia salvar. Mas isso não vai acontecer.
251
Ela já não vai chegar a tempo. Ela não vai voltar nunca
mais. Gostava de um fim épico para o meu romance, mas
já não tenho forças que me cheguem. O meu derradeiro
esforço, concentrei-o na extensa compreensão que envolveu
a minha descoberta. Primeiro, o desamparo provocado pela
constatação violenta da insensatez do princípio unificador.
Que foi o sonho da minha vida durante anos. Depois, todo
um esgotamento baseado no entendimento necessário
perante mil coisas a relacionar: o amor por uma mulher, o
amor pelos homens, o amor que existe na arte...
Obcecado que sempre andei com a filosofia da arte, nunca
tinha percebido convenientemente como ela não era mais
do que o produto do amor. O conceito de amor englobava,
assim, o da própria arte. E era também por isso que tanto eu
como Maria falávamos do amor absurdo. E o identificávamos
com uma característica tão humana. Esse amor absurdo
justificava-se, afinal, com a tal rarefacção característica
da arte. Como pode uma mulher linda e de sentimentos
nobres amar um tipo feio, gordo, e de mau fundo? Foi a
pergunta estúpida que sempre me fiz. Ainda mais estúpida
quando me perguntava como podia a Maria amar o Manuel.
A explicação é simples e tem a ver com essa rarefacção.
Também no amor há uma transfiguração. Há uma ausência
face a este mundo de aqui. Uma relação amorosa vive-se
num outro mundo, também ele inexistente e irreal. Nesse
mundo, não existem corpos feios nem bonitos, não existe
o bem nem o mal. É como a música: existe apenas uma
essência que se transfigura em algo de irreal. E perfeito. E,
por isso, imortal.
Tudo isso significa que o poder da arte tem que ser englobado
no poder mais vasto do amor. Tal como o amor por uma
mulher, ou por um homem, tem que ser englobado no poder
mais vasto do amor pelos homens
– ... o amor dos homens.
O verdadeiro segredo, a salvação da Humanidade, virá
então desse amor pelos homens. Foi o contacto com a
252
transcendência, e a rarefacção de vida que ela implicou, que
nos fez ser homens. E esse contacto nasceu da descoberta
do amor. Um amor que não nos chegou dos neurónios
cerebrais, como no caso dos tlédios – que amam em função
dos resultados da programação dos computadores –, mas
de um local minúsculo, possivelmente no coração, um local
denso como os buracos negros, um local que é a origem
de todas as manifestações desse amor. Como a arte. Como
a música. Como um filho. Em relação ao qual também nós
sentimos uma rarefacção, como se deixássemos de existir e
agora só ele contasse. Como se passássemos a existir num
outro corpo. A esse local não sei o que chamar. Mas sei que
é aí que está a alma.
Manuel quis, um dia, que eu lhe explicasse o que era a arte,
o que era o romance, e eu não consegui explicar-lhe que a
arte também vinha lá do fundo desse local sem nome. Lá
onde vive a alma e nasce o amor também. Manuel brincava
com uma mosca que o ligava ao mundo concreto, enquanto
eu o puxava na direcção do irreal.
– É tudo mentira, no romance?
Tanto que eu queria explicar-lhe a essência da arte, no acto
estúpido de não entender que esse sentir existia nele desde
que nasceu.
Disse:
– Não, não é mentira, mas também não é bem o que se
passa na realidade. Porque não é a descrição de algo de
concreto, mas antes o que o eventual concreto permite
em nós de lição para a vida. De transponível para os
outros – por via da abstracção entretanto criada – e
para sempre. Como se fosse uma transposição para a
imortalidade.
Não sei se Manuel percebeu o etéreo das minhas
explicações sem carne, com os seus olhos esbugalhados
253
de deslumbramento. Perguntei-me: como explicar-lhe a
ausência e a distância, como anunciar-lhe a existência de
uma leitura abstracta da vida? Não lhe expliquei, explico-mo
eu agora, que esse abstracto está no centro da verdadeira
compreensão da arte. Do seu mistério. Do que a distingue
de tudo o mais.
Malraux imaginou nomes para os dois períodos áureos da arte:
o “irreal” e, mais tarde, o “intemporal”. Os dois períodos mais
tardios. O “irreal” caracterizava-se sobretudo pela ausência
de contornos – ele estava, na prática, a falar da pintura – e
pela força da profundidade e do contraluz. O tempo do maior
de todos os mestres, Rembrandt. O “intemporal” surgiu
quando os pintores deixaram de pintar paisagens, pessoas,
imagens variadas, e passaram a pintar quadros. Ou seja,
quando concentraram toda a importância na própria obra e
não no motivo que lhe deu origem. A arte torna-se, assim,
no verdadeiro valor, independentemente das referências
que contém. É por isso que ele lhe chama “intemporal”.
Precisamente porque a arte, ao libertar-se totalmente da
concretização a que estava sujeita por via do modelo que lhe
deu origem, perde a durabilidade associada a esse modelo,
tornando-se imortal. É o advento da arte abstracta.
A abstracção é, deste modo, o ponto de união destes dois
conceitos “irreal” e “intemporal”. Mesmo esquecendo um
pouco a teoria de Malraux, vemos como é perfeita a união
desses conceitos, segundo a nossa interpretação de senso
comum, em torno do conceito-mãe: a abstracção. O essencial
da arte está, assim, dependente desse desenraizamento
da realidade e da posterior projecção na intemporalidade.
A arte é a tentativa de imortalização da nossa vivência
enquanto seres humanos. É o esforço que fazemos para
que os mundos interior e exterior que nos habitaram não
morram connosco. O artista é como o homem que perdurou
para lá do tempo. E por isso tem que fugir ao concreto da
conjuntura. Ao escrever uma cena de amor, por exemplo,
tem que ultrapassar as características da pessoa amada,
254
assim como as circunstâncias em que o amor se desenvolve
(as razões que lhe deram origem), para se projectar numa
“ficção” (ruptura com o concreto e o real) onde todos os
potenciais leitores se podem encaixar (globalização), e para
sempre, ou seja, qualquer que seja o tempo futuro em que
o romance é lido e quaisquer que sejam os “ritos nupciais”
desse tempo (imortalização). Essa projecção é feita através
da abstracção.
Pobre Manuel, como poderia eu ter conseguido dizer-lhe tudo
isto, tão desesperadamente longínquo que ele estava em
relação ao entendimento racional de que, momentaneamente,
precisava. No fundo, como eu, que tanto pensei que a
revelação vinha do mar, com os do outro mundo à mistura.
Antes de estar com eles, tinha quase a certeza. Era ali que
o segredo se iria revelar. Não percebia como é que o padre
tinha tido esse conhecimento, ou essa premonição. Como
saberia ele da existência dos outros? E como sabia que eles
vinham do mar e não dos céus?
Foi por achar que o segredo seria revelado desse modo
que sempre tive a certeza de que o iria descobrir. Ou de
que me iria ser revelado. Mas, depois de ter estado com
eles, fiquei desamparado. Os tlédios nada me ensinaram
sobre o segredo do mar. Eram eles que vinham à procura
de uma lição. Rui e Gonçalo, com os olhos em alarme, não
estavam preparados para a confrontação com o que os
excedia. Embora Rui já estivesse próximo de se converter
à sua paixão escondida
– Jure por Deus
disse o juiz. Mas ele não
– Juro pela minha honra.
Não tinham nada para ensinar. A arte humana subjugouos em pequenez. Não recebi deles a lição do além-mundo.
255
Nem o segredo que eu tanto esperava. Como iria descobrir
o segredo nessas condições? Os pobres tlédios apenas
procuravam um caminho de retorno para a sua humanidade
perdida. A individualidade, a liberdade, foi o que descobriram.
E encontraram o Manuel, tão agarrado que estava à sua
Maria, fazendo-lhe festas ternas nos cabelos. Também ele
nos empurrou para a revelação da vitória absoluta do amor
impossível. Como Rui
– Juro pelo meu amor.
E como Gonçalo, que progressivamente ia perdoando o seu
passado.
O amor. Voltei uma última vez ao meu plano cartesiano,
que já trazia numa pobre folha amarelada e amarrotada. O
amor estava no centro, como eu queria?
Não sei se o amor cabia ali. O saber, sim, demonstrei-o
fazendo uso da minha inteligência estruturada e fria como as
neves das montanhas. Pobre plano. É como os tlédios. Não
conhece a transcendência. Não conhece a transfiguração.
Está aquém da superioridade das capacidades humanas.
Está preso da pobreza dos poderes da Razão.
A minha busca terminava. Porque era o objectivo em si
que estava deslocado. Toda a vida procurara um princípio
orientador para os homens. Um princípio que substituísse
o das gerações anteriores, do século anterior. De facto, o
que eu queria era a revelação de um princípio unificador. A
essência, mais tarde o saber. E, de cada vez, uma sensação
de ter encontrado o que procurava e, ao mesmo tempo, de,
afinal, não poder ser aquilo.
O meu maior erro foi pensar que a solução podia vir de
cima. De um qualquer aparelho normativo, por mais justo
que fosse. Por mais bela que fosse a imagem que dele
transparecia. Como era o caso do saber.
256
Pensar um princípio unificador era, ao mesmo tempo,
pensar uma ajuda exterior. Um amparo para o homem.
Uma cobardia. E, para além disso, uma imposição. Algo que
punha em causa a capacidade de a Humanidade decidir o
seu próprio caminho.
E o que descobri de mais sublime foi que nenhum princípio,
nenhuma palavra mágica se pode impor. Nunca mais. A
palavra não pode ser imposta aos homens. Ela tem que
nascer dentro deles. A solução está dentro dos homens.
Esta lição mostra-nos que eles têm tudo à sua disposição.
Que tudo depende deles próprios.
O segredo estava também em mim. Amália partiu, mas
deixou a essência do segredo comigo.
– Não amarei mais ninguém.
Não amar mais ninguém era deixar o amor, para sempre,
dentro de mim. Amália partiu e deixou o coração. O tio Saúl
deve-o ter entendido. Foi por isso que o tio Saúl sabia que
eu iria, mais tarde ou mais cedo, perceber tudo. O amor de
Amália ficou retido em mim. Por isso eu tinha que mergulhar
em mim. Amor, Amália. Até o teu nome era também uma
pista para a revelação. Como posso eu não ter entendido?
Amália partiu, mas, ao partir, deixou a memória. Deixou a
palavra. E foi essa palavra que fui registando, mesmo sem
ter consciência disso, em dezenas de papéis manuscritos que
sempre guardei próximo de mim. Em todos havia a referência
ao amor, de uma forma mais ou menos visível. De entre as
múltiplas coisas que sempre me envolveram, essa palavra
estava sempre presente. E chamava permanentemente por
mim. Puxava-me pelas calças, como se dissesse
– Escuta, estou aqui.
O meu plano cartesiano não tinha sentido. Teria, sim, se
fosse o “saber” a palavra final. Como ela se adaptava ao
257
plano – era indiscutível a sua perfeição. Teria uma teoria
que ninguém poderia alguma vez questionar. Era irrefutável,
como dizem aqueles pretendentes a cientistas que também
dizem “está provado”, “está demonstrado”. Ficaria conhecido
para várias gerações. Uma referência mundial, com posters
no quarto dos adolescentes, com fotografias nas capas dos
livros, com a celebridade gravada nos livros de História. Até
ao fim. Até ao fim dos tempos – breves, sem dúvida, face
à ausência da regeneração dos homens.
Mas eu quero essa regeneração. Eu quero o bem dos homens.
Um futuro radioso para eles. Eu, que perdi o futuro, quero
oferecer-lhes a felicidade que me falta. Por isso reneguei
o plano. Por isso renego a Razão. Porque há uma outra
palavra e essa, sim, é que é a verdadeira. Surgiu contra
todas as demonstrações existentes nas universidades. Uma
palavra de beleza e de bondade. Uma palavra para sentir.
Em humildade plena, saiu de uma fenda algures, como no
poema de Rui, quando revelou o seu verdadeiro eu enquanto
homem, quando revelou o seu amor impossível, o seu
amor absurdo por uma mulher que ignorava a ideologia das
revoluções violentas e amava a pintura sem modelo.
Rui estava a sofrer, as mãos faziam tremer o papel que
amarrotava, sem dúvida para esconder aquele pequeno
fruto do seu amor, que terminava com emoção
Deve ser uma palavra a nascer
Deve ser uma palavra de amor
Deve ser para ti.
E foi como se dele tivesse saído um grito fundo, um uivo de
dor. Era uma palavra que nascia dentro de si. Uma palavra
de amor.
Não há princípio unificador. Nem na Humanidade, nem fora
dela. Só há liberdade, arte, amor. Três palavras que não se
podem separar. Encontrar uma que as resuma? O conceito
258
englobante? Pensei nisso depois, já tinha abandonado o meu
plano cartesiano de intelectual impotente. Não encontrei,
a não ser a palavra total. A palavra absoluta. A palavra
Homem.
Foi a esse Homem que quis dirigir o meu romance. Como
Manuel, quis escrever um romance broástico. E acho que,
de certa maneira, o consegui. Falta-me um fim épico. Ou
um fim romântico, de comoção profunda. Como quando as
adolescentes choram com o fim de uma história de amor.
Porque ela casa, ou morre. De facto, o amor e a morte
conduzem ao limite da emoção. E eu só penso que, no meu
caso, o amor já não é mais possível.
Mas agora é altura de partir. Gonçalo tem os seus planos. E a
sua pressa. A tralha lá de cima será doada a um laboratório
de uma universidade qualquer, eles ficaram de a vir buscar.
As minhas coisas também, ao que parece, já seguiram.
Pergunto-me para onde. Faltam-me as forças para ir morar
num qualquer sítio que não seja este. Como é possível
amar-se uma prisão?
Mas, antes de a deixar – Gonçalo já vai longe, descendo pelo
caminho na direcção da enseada e do barco que nos levará
para não sei onde –, ainda quero ficar um último momento.
Para escrever umas últimas linhas. E olhar o grande salão,
que parece querer despedir-se de mim, escondendo, ao
fundo, a escada para o farol.
Inexplicavelmente, inesperadamente, inunda-me uma
nostalgia súbita, o desejo estranho de ficar aqui para
sempre. Como se a vida parasse, o tempo se mantivesse em
suspensão e, assim, a morte pudesse nunca chegar. Como
se fosse uma transposição de uma dimensão – os tlédios
não nos ensinaram a fazê-lo. A minha sensação é a de, ao
partir, vir a ficar irremediavelmente preso da minha solidão.
E dependente da urgência do quotidiano, da mesquinhez da
realidade.
259
Penso em como encontrei as palavras que procurava, mas
também em como estou longe de encontrar um rumo final
para a minha vida, porém tão breve.
Gonçalo já me chama, muito ao longe. O concreto da
realidade também. Mas, antes de fechar a porta, quero ficar
ainda um pouco, preso a uma melodia de piano que ecoa,
em silêncio, por toda a sala.
Quero escrever ainda um pouco, tentando vencer esta dor
que me dilacera, embora em plenitude.
Para meu grande espanto, Manuel está aqui ao pé de mim
– voltaste, de tão longe, para um último adeus –, torce-se
ao piano, fazendo um esforço desmesurado. E a música que
dele sai é a mais bela de sempre. Não foi ao Universo que
ele deu o absoluto de si. Guardou-o para a emoção final que
havia em mim. E, assim, enche todo o espaço, rodeia-me por
todos os lados, parece que me empurra na direcção do mar,
na direcção do infinito. Não pode haver melhor definição para
a beleza, dou por mim a pensá-lo, embalado, rodopiando
em levitação, quando Amália, de repente, abriu os braços
para dançarmos uma última vez.
Por entre o azul das águas, que se vêem ao longe, o meu
olhar sente-se perdido, a sala toda a girar à minha volta,
quando Amália encosta a sua cara à minha. E, à medida
que o piano de Manuel aumenta de volume e de nostalgia,
o mundo parece cada vez mais rarefeito, Amália mais
etérea, o meu coração mais dorido. A minha emoção sabese absurda, afinal Amália não deverá estar ali. No entanto,
a realidade não é assim tão importante: os homens vivem
na base dos seus sonhos impossíveis. O que é facto é que
a última dança com Amália é-me verdadeira, real, dentro
da comoção que me assalta. A comoção que me anuncia
o fim dos tempos, como no clímax de uma tragédia grega.
As minhas mãos suam e tremem. Estou a dançar com um
fantasma. Um augúrio de beleza e morte. E Amália parece
260
querer deixar nos meus lábios um último beijo, impossível
de sentir. Amália está mais linda na idade que passou por
ela. É impossível não sofrer com o tempo desunido que
decorreu por entre nós.
Como no fim de uma peça – teatro de uma vida –, já não é
só Manuel e Amália que estão aqui. Veio Rui, veio Gonçalo,
vieram de mão dada agradecer os aplausos do fim. Uma
plateia ausente aplaude, como nos tempos antigos. Carminda
e António acabaram por vir também, possivelmente ainda
unidos pelos laços do amor, e dão também as mãos. É assim
que, todos juntos e virados para o mar, nos agarramos, com
força e sentimento, fazendo vénias de agradecimento final.
A minha peça está a terminar, o público aplaude ainda
– embora já não seja tempo de encores –, quando a bela
Daniela interrompe a mão que me une a Amália. E, sem
preconceitos, beijam-me as duas, como que a explicar que
o amor é um infinito de liberdade. Daniela veste de preto,
porque pertence à minha vida real. Amália manteve o branco
de um fantasma que partiu antes de eu ser alguém. Agarrado
às duas, e elas agarradas a todos os outros numa apoteose
final, o que eu mais sinto é o desespero da beleza da música.
Manuel toca no limite de si. E as ondas, muito ao fundo,
parecem corpos de pé que celebram, em êxtase de alegria,
o excesso destes meus momentos derradeiros.
Lentamente, muito ao fundo, vejo que Maria e os seus
tlédios voltam também, todos nus, exibindo o esplendor da
beleza dos seus corpos, dançando ao ritmo das lágrimas
que a música impõe. Vieram do longínquo das galáxias para
me dizer adeus. Maria surge envolvida em luz, talvez para
mostrar que a beleza é o último dos deuses antigos, o último
que podemos adorar.
Manuel torce-se, num delírio quase final.
Maria exibe o peito nu ao pleno da minha humilhação.
261
E é quando eu já estou dilacerado de dor, sentindo feridas
imensas no fundo de mim – certamente também de uma
felicidade total –, que entram o padre, o sobrinho e as
gentes da missa de Harlem, as raparigas das longas vestes
a abanarem o corpo, e a irradiarem alegria com os seus
sorrisos, ao som de algo que já ultrapassa as minhas
capacidades de resistir.
Como na missa que ocupou as réstias da memória do tio
Saúl, vêm todos beijar-me, abraçar-me,
e dizer
- Obrigado por teres existido.
Vêm certamente de longe, um por um, como se deixassem
para trás anjos e altares, agarrando-me as mãos em alegria
contagiante e declarações de amor
- O mundo foi melhor contigo.
É então que todos os presentes voltam a dar as mãos,
de novo em linha horizontal mas agora diante de mim, e
iniciam aplausos e gritos, como se saídos de um público
delirante e imaginário, mas agora dirigidos à minha pessoa.
Compreendendo o cenário, Manuel dedilha mais agudo, notas
rápidas e constantes que parecem palmas, talvez bravos
tímidos em celebração daquilo que devem pretender ser o
meu desempenho de vida. E, de vez em quando, todos fazem
pequenos movimentos com a mão, acenos com lágrimas,
como que me saudando antes de o pano cair.
Por fim, vejo o tio Saúl, Amália correu para o beijar, e todos
se abraçam a ele numa derradeira hipótese de contacto para
memória futura. O tio Saúl, de novo muito direito, abre os
braços para os receber e sorri ao longe para mim.
Eu sou como um pano que vai cair, na trágica iminência do
fim, e o tio Saúl parece dizer
262
- Não sofras mais.
Parece insinuar a presença de um mundo redentor do outro
lado, ou seja lá de onde vem. Está agora mais alegre, menos
solene, bamboleia-se também, como as jovens negras de
Harlem. Dançam ao som da música que contém em si todos
os milagres da vida. O tio Saúl sorri para mim. Afinal, sempre
voltou. E eu, tal como lhe prometi, mantinha-me preparado
para o receber. Mas há algo de diferente agora, parece ele
a criança e eu um homem já muito velho, em desalento e
solidão.
Mesmo assim, ainda paternal
- Não estudes mais. Já são horas de dormir.
Mas eu já não estou a estudar o livro dos dinossauros, tio.
Não irei estudar nunca mais.
O tio Saúl interrompe-me, colando o indicador vertical aos
lábios – mandando-me calar. Parece trazer uma última
mensagem para mim. Vem com uma missão, ainda. Uma
missão final. De apaziguamento. Sorri para mim, parecendo
anunciar-me o advento de um outro caminho, de uma alegria
de infância, talvez de uma outra vida.
Todos dançam, com os braços invisíveis misturados num
novelo impenetrável – enquanto a música vai terminando
num limite impossível de beleza –, quando, progressivamente,
tudo começa a parecer fugir e desvanecer-se perante mim.
Cada vez o movimento dos seus corpos me surge mais
distante, a nitidez dos seus contornos mais difusa, os seus
gritos e aplausos assemelham-se agora a claros acenos de
despedida, cada vez mais escondidos no nevoeiro dos meus
olhos.
Percorro o salão uma última vez, em ansiedade crescente, e
sinto a minha solidão inundada de uma melancolia dilacerada
263
em alarme e plenitude – o meu peito a estoirar, como um
rasgão que me corta de alto a baixo.
Perante a súbita aproximação do fim, e enquanto tento um
último esforço para não largar a caneta, o tio Saúl parece
dizer ainda – lá tão longe
- Não tenhas medo.
A música enche o espaço, e todo o meu ser, quando, ao lançar
um derradeiro olhar à minha Amália perdida, uma luz brutal
me cega, vinda oblíqua do céu – como um anjo –, a abafar,
também em mim, a vitória da irrealidade que mora na alma
dos homens.
264
265
As falas teatrais constantes deste livro foram retiradas da
minha antologia da obra de Jaime Salazar Sampaio
As primeiras palavras foram de amor
Por um lado, é de assinalar a relação profunda que o título desta
obra tem com a essência deste meu romance. Por outro, indo o
presente livro para a tipografia uma semana após o Jaime nos ter
deixado (apesar de ele o ter lido – com a inclusão dos seus textos
– na sua quase totalidade), que estas citações sejam vistas como
uma homenagem sentida à sua memória e à da sua poesia.
266
Índice
Abertura . . . . . . . . . . . . . . .
7
I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
III . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
IV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
V . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
VI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195
VII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227
VIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251
267

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