só eles o sabem

Transcrição

só eles o sabem
SÓ ELES
O
SABEM
Texto de Jean Tardieu
Tradução de Pina Coco e Renato Icarahy
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PERSONAGENS
Heitor
Simone
Justin
Janine
Heitor e Simone estão de pé, no meio do palco,
envolvidos numa grande discussão. Heitor vai e
vem, nervosamente. Simone acompanha-o com os
olhos, com uma expressão má. As cortinas da
janela estão puxadas, pela metade. O quarto está
mergulhado em penumbra.
HEITOR – Você pode ter certeza que eles não vão me pegar assim
tão fácil.
SIMONE – Mas com que rapidez você fala...
HEITOR – Com rapidez maior ainda, eu ajo...
SIMONE – Pois eu te desafio.
HEITOR – Isso é o que nós vamos ver.
SIMONE – No seu lugar, eu desistia logo.
HEITOR - Desistir? Eu? Depois de tudo o que aconteceu? Nunca, está
ouvindo? Nunca! E é logo você quem me dá esse... esse... conselho!
Ah, muito obrigado! De verdade!
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SIMONE – Eu te previno uma última vez, Heitor: você está no caminho
errado. E ele vai te pegar. É, ele vai te pegar! Eu te asseguro.
HEITOR – E eu te asseguro que o caso não vai acabar aí não. Seria
muito simples. Muito simples... não... Mas, é insensato! Quem ouve
pensa que você liga para alguma coisa!... Pois sim! Quer que eu te
diga? Você não liga para nada, Simone! Nada, entende? Você só tem
uma coisa a fazer: calar a boca e me deixar agir.
SIMONE – Não! Eu não me calarei! Sei que tenho razão e quero que
você se renda às evidências. Não conte...
HEITOR (Furioso) – Você vai se calar no final.
SIMONE – Não conte com o meu silêncio. Você jamais conseguiria
uma coisa dessas. Tenho meu papel aqui, tanto quanto você.
HEITOR – É mentira! Eu sei o que tenho de fazer.
SIMONE – Não, você não sabe de nada, enquanto que eu, eu tenho o
dever, você entende, o dever de te informar. Não quero que nada fique
escondido.
HEITOR – Eu sei o que eu sei.
SIMONE – Sempre essas palavras na boca! Francamente, meu pobre
Heitor, o que você espera fazer nessa altura dos acontecimentos? Eu
repito que você não sabe de nada. Absolutamente nada!
HEITOR – É aí que você se engana, Simone! Quando eu digo que eu
sei o que eu sei, é que realmente eu sei o que eu sei!... Não é como
você! Você, eu diria... (Hesita.).
SIMONE – Vamos! Conclua o que pensou, por favor. Você, eu diria...
HEITOR – Não. Eu não vou dizer. Seria uma tolice.
SIMONE – Não fui eu quem disse.
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HEITOR – E quer saber de uma coisa? Para mim, chega! Com você,
nada é possível!
SIMONE – Realmente, nada do que é impossível é possível. Pelo
menos com isso, tenho a certeza, que você concorda. (Heitor dirigese à porta.) Você não vai lá, eu espero?
HEITOR – Eu não tenho que te dar satisfações.
SIMONE (Impedindo-o) – Tem sim! Eu exijo uma explicação! E já!
Aonde você vai?
HEITOR – Aonde eu bem entender. (Ele a empurra, violentamente, e
sai.).
SIMONE – Seu bruto! Sem educação! Patife! Canalha! (Simone tenta
se acalmar. Caminha de um lado para o outro.) Vamos, calma!
Calma! Para que ficar nervosa? Vamos ver... das duas uma: ou ele
escolhe a primeira solução ou ele opta pela segunda. No primeiro
caso, há graves inconvenientes... no segundo... no segundo também.
Claro, há vantagens e desvantagens iguais... entretanto, alguma coisa
me diz que... Mas pode ser pura ilusão! Se ele fosse... Não, não é
possível... (Alguém toca a campainha. Simone vai abrir. Entra
Justin. Simone, de repente, muito amável.) Ah! Justin! Você chegou
em boa hora. Eu estava te esperando!
JUSTIN (Espantado, mas sorridente) – Mas eu não contava em vir...
SIMONE – Eu queria dizer que, de certa maneira, eu esperava sua
visita... (Afetuosamente.) Sente-se perto de mim. Ajuda-me: eu estou
numa perplexidade terrível! (Senta-se.).
JUSTIN (Sentando-se também) – Então, como isso aconteceu?
SIMONE – Foi pior do que você imaginava. Além do que, ele não está
mais aqui.
JUSTIN – Ah! Bem que eu desconfiava! No fundo, no fundo, ele não
tinha outra decisão a tomar.
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SIMONE – É, mas não se pode afirmar que ele não vá mais voltar.
JUSTIN – Voltar também é uma decisão... (Depois de hesitar, em
voz baixa.) E... lá?
SIMONE (Dando de ombros) - Lá? Eu não escutei nada. Eles vão e
vêm, de um lado para o outro, tomam grandes resoluções, mas
hesitam no último instante... No final das contas, nada terminou... Para
dizer a verdade, eu acho que não esperam fazer grande coisa...
JUSTIN – Sempre os mesmos! Eu bem que avisei a eles para estarem
atentos, mas eles nem ligaram.
SIMONE – Meu pobre amigo! Você se ilude! Eu, com aqueles lá,
começo a saber como me portar... Olha, se você jurar segredo, eu te
mostro uma coisa que vai esclarecer tudo. Promete que não vai contar
a ninguém?
JUSTIN – Claro!
SIMONE - Jura?
JUSTIN – Vamos, Simone. Claro que eu não vou contar a ninguém.
Como é que você pode duvidar da minha discrição?
SIMONE – É verdade! Desculpe. Ah! Você me ajuda tanto... Com você
pode-se falar claramente, à luz do dia. (Ela se levanta, vai procurar
uma carta e volta para sentar-se perto de Justin. Entrega-lhe a
carta.) Leia! (Justin lê a carta, em silêncio. Parece horrorizado.
Simone procurando entender sua expressão.) Então? O que você
acha? Não é incrível?
JUSTIN – Mas é uma loucura! Como se pode chegar a esse ponto?
Só vendo para acreditar numa coisa dessas!
SIMONE – Agora você entende porque eu exigi segredo, já que uma
coisa dessas não pode ser do conhecimento de ninguém.
JUSTIN – Claro! Claro! De ninguém. Já é demais nós dois sabermos
disso!
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SIMONE – Nós dois e... a pessoa que escreveu a carta.
JUSTIN (Com raiva) – Ah! Se eu o pegasse! Aliás, não só ele! Tem os
outros! (Abatido.) E além deles, tem também... Você sabe a quem me
refiro.
SIMONE (Suspirando) – É, eu sei muito bem, Justin, meu caro Justin.
Aonde tudo isso irá nos levar?
JUSTIN (Aproximando-se) – Vamos, Simone. Você sabe muito bem
que, enquanto eu estiver perto de você, nada vai lhe acontecer.
(Segura-lhe pela mão.) Enquanto houver uma luz, uma luz de
esperança, eu combaterei, sem esmorecer, para que tudo volte a ser
como antes.
SIMONE (Tristemente) – Meu pobre Justin... O passado é o passado.
JUSTIN – Mas pode também ser o futuro! Ora, minha pobre amiga...
não fique assim! Para quê? Eu já não disse que estou com você?
(Acaricia-lhe a mão.).
SIMONE (Enxugando as lágrimas) – É verdade! É preciso que você
me diga para que eu acredite.
JUSTIN – Mas claro que eu estou aqui. Você está vendo.
SIMONE – É tão bom saber disso.
JUSTIN (Largando-lhe a mão) – E agora, Simone, agora que você
sabe que eu estou aqui, é preciso que eu vá.
SIMONE - Já? Mas nós ainda não nos dissemos tudo...
JUSTIN – Sem dúvida. Nós não nos dissemos nada. Mas, só em te
ver, eu sei mais do que você pensa.
SIMONE – Pode ser...
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JUSTIN (Grave) – E é. Em todo o caso, você sabe o que me trouxe.
Você sabe o que me prende, mas você sabe também o que me obriga
a partir.
SIMONE – É verdade... eu me esquecia... mas, promete que será
forte?
JUSTIN – Eu serei forte. Por você.
SIMONE – É preciso ser forte também pelos outros. Por ela,
principalmente. Mas, não precisa ser imprudente.
JUSTIN – Eu não serei imprudente. Serei forte, mas prudente.
SIMONE – Então fico tranqüila. Posso te deixar partir. (Ambos se
levantam. Ela o acompanha, vagarosamente, até a porta.).
JUSTIN – Simone, eu não queria ir embora sem... (Ele aponta
discretamente para uma determinada parte do apartamento.).
SIMONE – Eu permito. Vá! Você conhece o caminho.
JUSTIN – Obrigado. (Justin beija a mão de Simone, longamente, e
sai. Ela vai sentar-se e permanece, por instantes, sonhadora.
Depois de algum tempo, a porta se abre. Entra Janine, muito
pálida, de peignoir. Caminha com dificuldade. Quando Simone se
depara com ela, tem um sobressalto.).
SIMONE – Você se levantou? Isso é uma loucura!
JANINE – Por que você fez isso?...
SIMONE – Primeiro você me responde: por que se levantou? Você
sabe o que o médico...
JANINE (Terrivelmente calma, interrompendo) – Por que você fez
isso?
SIMONE – Mas, porque era preciso.
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JANINE – Sabe que podia ter me matado?
SIMONE – Eu só pensei na sua saúde!
JANINE – Que bela resposta: só existe o corpo!
SIMONE – Primeiro, o corpo. O resto vem em seguida.
JANINE – Olha só a idealista!
SIMONE – E, além disso, eu pensei que te agradava...
JANINE (Deixando-se cair sobre uma cadeira) – Eu repito que você
podia ter me matado!... Então, foi você que mandou ele entrar?
SIMONE – Era preciso que ele te visse.
JANINE – Pois sim! Você só pensou nele! Confesse que sim, hein?
Agora ele pode partir tranqüilo. Mas eu, eu fico com essa lembrança.
SIMONE – Se é só uma lembrança, nada mudou então. Você já a
possuía antes de vê-lo novamente.
JANINE – Eu não estou fazendo um jogo de palavras. Nós estamos
sós. Podemos falar sem rodeios, claramente, cara a cara. Finalmente
eu saberei. Pode ser que eu morra, mas, o mistério será desvendado.
SIMONE – Você não vai saber de nada!
JANINE – Pode ser que eu morra, já lhe disse. Mas, pelo menos,
antes de morrer, eu terei arrancado o seu segredo. Ah, como se
disfarça bem por aqui! Palavras, sempre palavras, e nunca a verdade!
A verdade, está ouvindo, Simone, eu quero toda a verdade!
SIMONE – Não existe segredo e a verdade não é para você nem para
mim! Eu não sei de nada, já te disse!... Idiota! Como eu poderia te
ajudar a entender, se eu mesma não entendo nada!
JANINE (Levantando-se, com esforço) – Bem, se é assim, eu sei o
que me resta a fazer. (Vai com dificuldade até a porta.).
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SIMONE (Levantando-se de um salto) – Isso não, isso você não vai
fazer!
JANINE (Com a calma do desespero) – Se você soubesse o que eu
quero fazer... Eu também tenho o meu segredo.
SIMONE – Eu não sei de nada, mas posso adivinhar. E isso não, está
ouvindo? Não! Enquanto eu for viva, eu me oporei. (As duas
mulheres se enfrentam por instantes, com o olhar.).
JANINE – Está bem. Então ainda me resta uma solução. (Com as
últimas energias que lhe restam, Janine se precipita para a
escrivaninha e, antes que Simone a possa impedir, pega um
revólver. Sem apontar para ninguém, mas segurando como se
fosse atirar.) Se nada, nem a persuasão nem o afeto puderam te
arrancar o segredo, ao menos saiba que uma de nós duas terá
desaparecido antes que a outra tenha saído daqui!
SIMONE (Atira-se sobre Janine, tentando desarmá-la) – Você é
louca! Largue essa arma! Já! (Toca o telefone. As duas entreolhamse por instantes, paralisadas.).
JANINE – Só pode ser ele!
SIMONE (Com um riso nervoso) – Ou ela! (Atende ao telefone,
angustiada.) Alô... Sim, sou eu. (Baixo, a Janine.) È ele!... Alô? O
que você quer de mim?... Como?... Hein?... (Seu rosto exprime, de
repente, um sorriso de espanto.) Será que estou ouvindo bem?...
Você está dizendo que está tudo em ordem?... (Baixo, a Janine.)
Guarde esse revólver, depressa! (Janine guarda o revólver na
gaveta.) Mas é incrível!... Alô... sim... não! É por causa do chofer do
caminhão!... Não é possível! (Baixo, a Janine.) É por causa do chofer
do caminhão! (Volta a pegar o fone.) Mas então venha depressa!
Claro que nós esperamos! Está, está aqui perto de mim!... Como? É,
ela estava um pouco chateada. Deixei que ela se levantasse um
pouquinho... Não, a criança vai muito bem. Vem depressa! (Ela
desliga e abraça Janine.) Minha pobre Janine, está tudo combinado.
Vêm os dois!
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JANINE (Quase chorando de alegria, deixa-se cair no canapé) –
Mas, então... por que nós?
SIMONE – Fique quieta! Logo, tudo não passará de uma má
lembrança... Ponha um pouco de blush para não impressioná-los.
Você está tão pálida... coitadinha! (Ela dá-lhe sua bolsa.) Depressa,
que eles estão chegando. (Janine se maquia, rapidamente,
enquanto Simone, agitada, vai de um lado para o outro da sala,
arrumando aqui e ali uma coisa, indo de vez em quando até à
janela e espiando pela cortina entreaberta. O quarto se enche de
luz cada vez que abre a cortina. Toca a campainha, ela abre.
Entram Heitor e Justin. Eles parecem alegres. Justin traz um
buquê de flores e Heitor, um pacote.).
HEITOR (Precipita-se efusivamente aos braços de Simone) –
Simone, minha querida! Quem diria que tudo iria terminar assim!
(Entrega-lhe o pacote.) Veja o que eu trouxe para você.
SIMONE (Feliz) – Como você encontrou?
HEITOR – Depois eu te conto.
JUSTIN (Oferecendo o buquê a Janine) – Para você, Janine. (Com
ternura.) Isso não te lembra nada?
JANINE (Emocionada) – Claro que sim!
JUSTIN (Conduzindo Janine para a direita) – É o nosso segredo.
Vem, Janine, eles não podem entender!
HEITOR (Conduzindo Simone para a esquerda) – Venha! Não
precisa lhes contar! Talvez, um dia, eles entendam!
FIM

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