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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS CAMPUS DA FUNDAÇÃO EDUCACIONAL DE DIVINÓPOLIS NOS CARACÓIS DO LIVRO INFANTIL: ENTRE A LINGUAGEM VERBAL E ILUSTRATIVA Alessandra Fonseca de Morais Divinópolis 2007 Alessandra Fonseca de Morais NOS CARACÓIS DO LIVRO INFANTIL: ENTRE A LINGUAGEM VERBAL E ILUSTRATIVA Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Universidade do Estado de Minas Gerais, Campus da Fundação Educacional de Divinópolis, como requisito parcial à obtenção do título Mestre em Educação, Cultura e Organizações Sociais. Área de concentração: Estudos Contemporâneos Linha de Pesquisa: Cultura e Linguagem Orientador: Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira Co-Orientadora: Prof. Dra. Ana Mónica Henriques Lopes Divinópolis Fundação Educacional de Divinópolis 2007 M827c Morais, Alessandra Fonseca de Nos caracóis do livro infantil: entre a linguagem verbal e ilustrativa [manuscrito] / Alessandra Fonseca de Morais. – 2007. 157 f., enc. il . Orientador : Mateus Henrique de Faria Pereira Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado de Minas Gerais, Fundação Educacional de Divinópolis. Bibliografia : f. 149 - 157 1. Livro Infantil. 2. Livro Infantil - Ilustrações. 3. Intertextualidade l. Pereira, Mateus Henrique de Faria. ll. Universidade do Estadual de Minas Gerais. Fundação Educacional de Divinópolis. lll. Título. Dissertação intitulada “Nos Caracóis do Livro Infantil: entre a Linguagem Verbal e Ilustrativa”, de autoria da mestranda Alessandra Fonseca de Morais, aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores: ____________________________________________________________________ Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira – FUNEDI/UEMG– Orientador ____________________________________________________________________ Prof. Dra. Ana Mónica Henriques Lopes– FUNEDI/UEMG– Co-Orientadora ____________________________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Simões Ribeiro – FUNEDI/UEMG ____________________________________________________________________ Profa. Dra. Aracy Alves Martins – FAE/ UFMG ____________________________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Simões Ribeiro Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos: Cultura e Linguagem – FUNEDI/UEMG Divinópolis, 13 de dezembro de 2007. AUTORIZAÇÃO PARA A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DA DISSERTAÇÃO Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação por processos de fotocopiadores e eletrônicos. Igualmente, autorizo sua exposição integral nas bibliotecas e no banco virtual de dissertações da FUNEDI/UEMG. _________________________________________________ Alessandra Fonseca de Morais Divinópolis, 13 de dezembro de 2007. Para minha mãe, Terezinha Fonseca, cuja presença permitiu que me acompanhasse num caminho que, de certo modo, ela iniciou. AGRADEÇO, Ao Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira, fonte de saber, de firmeza, profissional exemplar em nosso meio acadêmico. À Profa. Dra. Ana Mónica Henriques Lopes, pelo que me ensinou e, sobretudo, por ser alguém especial a quem admiro. À Profa. Dra. Vilma Botrel, pelo carinho e participação efetiva no início do trabalho. Ao Prof. Dr. Alexandre Simões e demais professores do curso, que me apoiaram e ajudaram a crescer. À Secretaria de Pós-graduação, pela eficiência de atendimento e cordialidade. À amiga Ana Paula Martins, pela troca de saberes e pelo apoio, valeu! Aos amigos, Vânia Munhós e Gionavi Munhós, pela gentil acolhida em Belo Horizonte. À Elaine Matozinhos, uma das grandes figuras femininas do nosso tempo. Aos meus irmãos, Alysson e Alexandre, ombros fraternos nos quais sempre pude me apoiar. Ao meu amor e colega de mestrado, Marcos Matozinhos Munhós, pela ajuda e carinho incondicional em todos os momentos, os certos e os incertos. Aos meus queridos pais, Adilson Moraes e Terezinha Fonseca, por me oferecerem, com amor, todas as condições necessárias para a realização desse curso. Henri Galeron “Belo é o que nos arranca do tédio e do cinza contemporâneo e nos apresenta modos heróicos, sagrados ou ingênuos de viver e pensar”. Alfredo Bosi RESUMO Este trabalho tem por objetivo analisar como o livro infantil, pode ser interpretado de forma a ampliar seu potencial artístico. E aprender, nas obras De morte! (1992), O Menino mais bonito do Mundo (1994), O Caminho do Caracol (1998), Aviãozinho de Papel (2004), dentre outros livros infantis, aspectos pautados nas relações entre palavra e ilustração, nas funções da linguagem, no dialogismo intertextual, na conceitualização de livro infantil e leitor e na hibridação. Com olhar transdisciplinar, recorremos a uma abordagem a partir da literatura, da história e da semiótica, para melhor caracterizar a constelação de fatores que interferem nos modos de ser e estar no mundo contemporâneo, encenados nas referidas narrativas. Palavras-chave: livro infantil, linguagens verbal e ilustrativa, intertextualidade. ABSTRACT This work was intended to study how the child´s book can be interpreted in a way to widen its artistic potential and learning in the works, De Morte! (Mortally, 1992), O Menino Mais Bonito Do Mundo (The Prettiest Boy In The World, 1994) O Caminho Do Caracol (The Way Of The Snail, 1998), Aviãozinho De Papel (Paper Toy Airplane, 2004) among other child´s books, aspects methodized in the relationships between words and picture in the roles of language, in the intertxtual dialogism, the comceptualization of child´s book and reader and in hybridation,. with a transdisciplinar view , we resorted to an approach which gives emphasis to the literature, education and to symiothics to better characterize the cluster of factors interferring on the ways of being and standing in the present world plyaed in the refered stories. Key- words: child´s books, relationships between words and picture in the roles of language, intertxtual dialogism. SUMÁRIO Página Introdução 11 Capítulo I – Livro Infantil 20 I.1- O Livro Infantil no Brasil, em busca de uma periodização (até a década de 1990) 21 I. 2- As funções das linguagens verbal e ilustrativa 31 I.3- A busca por um conceito de livro infantil 54 Capítulo II - Interpretando os Livros Infantis à Luz da Intertextualidade 59 II.1 A intertextualidade nos livros infantis 61 II.2 De morte! e de vida: a inovação e o lúdico 64 II.3 O Menino mais bonito do Mundo: jogos de intertextualidades 79 II.4 A caracterização do Livro Infantil como obra literária 94 Capítulo III - Ilustração e Texto Escrito 101 III.1 Perspectivas facetadas da ilustração 103 III.2 Aviãozinho de Papel: hibridismo entre ilustração e palavras 110 III.3 O Caminho do Caracol: travessias poéticas 124 Considerações finais 139 Referência Bibliográfica 149 11 INTRODUÇÃO Esta pesquisa é fruto da permanente inquietação de uma ávida leitora de livros de ficção para crianças. Dessa experiência surgiram as questões que norteiam essa pesquisa: Como se articula a relação palavra-ilustração nos livros infantis? Quais são os discursos presentes nestes livros? Como se dá a relação intertextual nos livros infantis? Quem é o leitor da literatura infantil? Em primeiro lugar delineamos nosso objeto, as linguagens dos livros infantis. E para aludirmos a relação entre ilustração e texto escrito, inicialmente destacamos, a partir de um caminho histórico, a trajetória de aproximadamente trinta livros infantis. E para realizarmos uma análise mais detida escolhemos quatro livros infantis. São eles: De morte! de Angela Lago (1992), O Menino mais bonito do Mundo de Ziraldo (1994), Aviãozinho de Papel de Ricardo Azevedo (2004) e O Caminho do Caracol de Helena Alexandrino (1998). Esses livros foram escolhidos devido a possibilidade de intertextualidade que eles trazem, assim as reflexões se enriquecem. Com a interpretação dos referidos livros, a idéia de que o texto é constituído de inúmeros ecos poderia ser problematizada. Em vista disso, percebemos que ao tentarmos interpretar um livro infantil torna-se impossível desvincular a história de vida e o momento histórico social no qual se vive a experiência estética.Vemos a ilustração de acordo com a ótica e as referências pessoais e culturais do observador. Pareyson conceitua a interpretação como algo que acontece quando se instaura uma simpatia, uma congenidade, uma sintonia, um encontro entre um dos infinitos aspectos da forma e um dos infinitos pontos de vista da pessoa: “interpretar significa conseguir sintonizar toda realidade de uma forma através da feliz adequação entre um de seus aspectos e a perspectiva pessoal de quem a olha” (1989, p.26). Contudo, a interpretação é recriada por nós. Daí o resultado do exercício de interpretação ter inevitavelmente a marca de quem o produziu. No livro Introdução à Análise da Imagem, Martine Joly (1996) apresenta conclusões bastante significativas a esse respeito, quando diz que interpretar, não consiste em tentar encontrar uma mensagem preexistente, mas em compreender o que essa mensagem, nessas circunstâncias, pode provocar de significações. Na mesma direção, a autora lembra que logicamente são necessários limites e pontos de referência para uma 12 análise, o que permitirá elaborar, em detalhes, interpretações mais fundamentadas e mais coletivas, com a consciência de que não é possível dar-se conta da totalidade ou da variedade das interpretações individuais. A mesma estudiosa completa e reafirma as idéias anteriores quando diz que: “para analisar uma mensagem, em primeiro lugar devemos nos colocar deliberadamente do lado em que estamos, ou seja, do lado da recepção” (JOLY, 1996, p.34). Este posicionamento não nos livra, contudo, da necessidade de se rever o contexto histórico de surgimento da obra, a narratividade da mesma, o autor, e outros elementos. Ao analisar, por exemplo o texto infantil imagético O Caminho do Caracol (ALEXANDRINO, 1998), o receptor o ressignifica, o atualiza e produz interpretantes de acordo com sua sensibilidade atual. As significações mudam de pessoa para pessoa, e as ilustrações produzidas no passado não tinham, na época, a mesma significação que a elas atribuímos hoje na contemporaneidade. Observemos o que explicita Gianotti (2005) ao falar da imagem artística: Mais do que exprimir de maneira intuitiva e vital a verdade de um objeto ou de uma situação, penso que este é representado pelo quadro a fim de que a imagem sirva de ponte para que o pintor esburaque o mundo cotidiano com sugestões de outros mundos técnica e subjetivamente marcados. Um quadro é passagem orientada (GIANOTTI, 2005, p.86). Denotamos assim que a ilustração é uma forma de expressão que traz consigo traços de tradições antigas e ricas da cultura. Vimos que para compreender um livro infantil necessita-se levar em consideração seus contextos da comunicação, suas especificidades culturais e a historicidade de sua interpretação. Interpretar é reviver aspectos da história, as mitologias e representações dos observadores/ leitores. Mas há limites para a interpretação? Umberto Eco (2000) realçou que os limites da interpretação é a não contradição do texto, imagem e ilustração empregada. Um aspecto delicado e polêmico na análise de uma ilustração é o uso do parâmetro verbal para descrevê-la a analisá-la. Na presente pesquisa damos vazão ao pensamento verbal que as ilustrações suscitam, sem contudo deixar de reconhecer que tal procedimento não abrange os aspectos não-verbais, silenciosos que a ilustração possui. 13 A abordagem mencionada acima é tratada no livro Vida e Morte da Imagem: Uma História do Olhar no Ocidente (DEBRAY, 1993), que o autor afirma que pode-se e deve-se falar de qualquer imagem, porém ela própria não é capaz de fazê-lo1. Uma ilustração pode ser infinitamente enigmática, tem infinitas versões potenciais, é uma polissemia inesgotável. Entretanto, Mangel em seu livro Lendo Imagens abre o espectro ao expor seu ponto de vista: “A linguagem humana é feita de palavras que se traduzem em imagens e de imagens que se traduzem em palavras – ambas são as matérias que somos formados” (2001, p.358). Complementando as idéias de Manguel, Luís Camargo (2003) afirma com veemência que a ilustração é um texto. E que não é incomum ler ou ouvir falar da ilustração como se ela fosse apenas um prolongamento do texto, uma espécie de eco, incapaz de “falar” por si própria. Essa hipótese leva o leitor a buscar na ilustração apenas os significados do texto, empobrecendo sua compreensão, pois aquilo que a ilustração “diz” e não está no texto não é percebido. Neste sentido entendemos que a ilustração é a imagem que dialoga com o texto verbal, ela pode ser metafórica, metonímica, relatar eventos anteriores ao narrado, dar novas informações, trazer novos planos narrativos ou criar diálogo entre diferentes planos narrativos, alterar a ordem dos eventos, entre outros. Assim a ilustração pode ser entendida como texto, produto da relação híbrida entre texto e imagem. Leonor Lopes Fávero e Ingedore G. Villaça Koch, propõem dois conceitos de texto: um lato e um stricto. Em sentido “amplo”, o termo “texto” designa “toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano, (....), isto é, qualquer tipo de comunicação realizado através de um sistema de signos”. Já em sentido restrito, o “texto 1 Como não é o objetivo do trabalho discutir o conceito de imagem sugerimos ver, entre outros: MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio/ Tradução de Rubens Figueiredo, Roaura Eichemberg e Cláudia Strauch – São Paulo: Companhia das Letras, 2001; DEBRAY, Régis. Vida e Morte da imagem: uma história do olhar no ocidente. Tradução de Guilherme Teixeira – Petrópolis, RJ: Vozes, 1993; GIANNOTTI, José Arthur.O jogo do belo e do feio. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem/; tradução Marina Appenzeller – Campinas, SP: Papirus, 1996 – (coleção Ofício de Arte e Forma) e BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva. 2001. 14 consiste em qualquer passagem, falada ou escrita, que forma um todo significativo, independente de sua extensão” (FÁVERO; KOCH, 1994, p. 25).2 Por extensão, podemos, portanto, falar na ilustração do livro infantil como um tipo de texto, discorrendo em texto visual ou discurso visual. Essa ampliação não é gratuita. Ela visa aproximar os estudos da linguagem e os estudos da imagem, para facilitar a compreensão da ilustração, especialmente para os professores alfabetizadores, professores de português, literatura e/ou de línguas estrangeiras que, pela própria formação, têm mais familiaridade com o universo da palavra do que com o universo da imagem (CAMARGO, 2005, p.3). Nessa direção, buscamos atentar cuidadosamente para cada livro, e na presença da ilustração tentamos descobrir os tecidos e caminhos que elas nos suscitam. Este percurso busca apresentar aspectos do objeto e dos meios de sua apresentação. Assim sendo, ao seguir com o olhar os movimentos dos textos, verbais e ilustrativos, estamos tentando instituir um sistema de regras que busca dar sentido à obra literária infantil. Na procura da compreensão desse objeto ‘complexo’(MORIN, 2004), que é o livro infantil, buscamos, um novo olhar, o olhar pela perspectiva da transdisciplinaridade. Segundo Ivan Domingues, “(...) esse novo olhar recusa a visão direta das coisas e a focalização exclusiva no conceito ou nas imagens. Conceitos e imagens não são coisas em si, mas metáforas à espera de equivalências produzidas em outros campos conceituais e imagéticos” (2005, p.47). Isso se justifica tendo em vista a relação linguagem visual e linguagem verbal que o livro infantil traz. Essas linguagens se relacionam mutuamente e essa forma de relacionamento é de suprema importância para o todo. O todo não é o somatório das partes, essas se integram, combinam, relacionam para formar novas totalidades. 2 Na busca do conceito de livro infantil, deparamos com a idéia de Guto Lins, para ele, o livro infantil é aquele que em geral é mais colorido, mais ilustrado e que possui “pouca massa de texto” (2002, p.44). Entretanto se pontuarmos o conceito de texto como foi explicitado, nota-se que é duvidosa a afirmativa de Guto Lins, pois livros infantis possuem grande massa de texto, a começar por suas significativas ilustrações e narratividades. 15 O livro infantil, com suas ilustrações e narrativas, apresenta objetos que se configuram como elementos de um mundo pictórico único, que se entrelaçam e invocam outros. Tal entrelaçamento se faz singular quando promete um ir além dele mesmo. Uma obra de arte é tanto coisa como norma, mais do que sintoma é amostra de como se pode ir além dos fatos, na medida em que o jogo de suas partes e partes de outras obras articula uma identidade explosiva, perdendo seus parâmetros naturais conforme alinhava seus elementos num jogo de linguagem não - verbal (GIANNOTTI, 2005, p.110). Giannotti também ressalva que nenhuma interpretação/leitura é verdadeira se dizemos o que é e o que não é. Mas seus elementos em sintonia valem uma análise ao nos levar a vê-los, neles próprios, e depois no contexto de outras obras, e por fim na paisagem de outras idéias e assim por diante. Cabe aqui fazer um breve histórico do livro3. Antes da escrita, os saberes da humanidade eram comunicados por meio da oralidade, prática que remonta às antigas sociedades de cultura oral. Nessas sociedades, a contextualização do saber era uma característica marcante. A palavra tinha o sentido que a comunidade lhe atribuía no exato instante em que era proferida, e dentro do contexto empregado. A palavra contada tinha densidade, corpo, e era dotada de poder. Quando falar não foi mais suficiente para estar no mundo, quando a palavra deixou de ser uma vibração animada pela memória para tomar outros rumos e se fixar em matérias palpáveis, o homem começou a pensar em suportes e maneiras criativas para organizar esta aquisição: a escrita. Dessa maneira, selou a passagem nunca concluída de uma existência oralmente configurada, ouvida e compartilhada comunitariamente, para a existência de um mundo a ser lido. E como tal registrou o seu saber no barro, na pedra, no papel, na tela digital, inventou papiro, pergaminho; deixou sua marca no códex, no livro e no computador (BUSATTO, 2006, p.86). 3 Para uma análise mais ampla ver: BUSATTO, Cléo. A Arte de Contar Histórias no Século XX I- Tradição e Ciberespaço (2006 ,p.86 a 96). 16 A descoberta da tecnologia da escrita provocou impacto sobre os homens e sobre as civilizações de onde surgiram. Os gregos sentiram esse abalo. Platão escreveu uma fábula para descrever esse espanto, relatada em Fedro. Isso se passa num diálogo entre Tot, o suposto inventor da escrita, e o faraó Tamus/ Amon. Ao apresentar a sua invenção ao deus supremo Tamus/Amon, Tot ouve um lamento, pois Tamus/Amon receia que a descoberta faça com que os homens esqueçam de exercitar a memória (Bussato, 2006, p.116; CHARTIER, 1999, p.17). Da palavra falada à palavra escrita e à palavra lida, há uma mudança na solicitação dos sentidos. Enquanto falar se configura como um fato histórico-biológico, a escrita, por sua vez, é concebida como uma técnica aprendida, e que exige o uso de ferramentas específicas e ações claras para ser decifrada, como a leitura, que surge como uma conseqüência do ato de escrever (CHARTIER, 1999, p.17; DARNTON, 1990, p.170). Ao acompanhar a passagem da linguagem oral para a linguagem manuscrita, impressa e digitalizada, concluímos que as culturas, oral, quirográfica e tipográfica contam uma história densa e curiosa, que podem ampliar essa reflexão e elucidar a transição da era da prensa à era digital. Roger Chartier (1999, p.23) aponta que essa é uma revolução mais significativa do que a de Gutenberg, pois determina não só a mudança do suporte, mas dos próprios processos de construção de sentidos. A escrita provocou uma reestruturação na consciência do homem, fosse por trazer consigo o isolamento e a interioridade para produzir o texto, fosse para lê-lo. A oralidade tem a idade do homem e a escrita um pouco mais de 2.700 anos. Ao acompanhar a passagem da sociedade de cultura oral para digital, o Brasil, país fortemente marcado pelo analfabetismo, onde 67% da sua população ainda se encontra no patamar de analfabetos funcionais, corre o risco de uma exclusão comprometedora, considerando que a contemporaneidade vem marcada pela virtualidade. Cléo Busatto (2006 p.95) enfatiza a exclusão digital, pois conviver com o mundo cibernético já é fato: cartões magnéticos acessam um caixa eletrônico, no qual está contida uma pequena aposentadoria; liberam uma cesta de alimento; catraca de ônibus; pagam contas; abrem portas, no trabalho, em casa. O século XX, que trouxe livros cada vez menores e mais fáceis de serem manuseados, trouxe também a grande novidade: o livro digital, o e-book, que pode ser conseguido a custo zero, em diferentes línguas, a qualquer hora do dia ou da noite. 17 Além dessa importante reflexão histórica na busca da interpretação do livro infantil contemporâneo é essencial também dirigirmos um pouco de nossas observações à “estética da recepção”, por ser uma teoria da literatura que tem como base a idéia de que o leitor não é um sujeito passivo e que contribui de forma criativa para fazer a história de uma obra. Tal teoria nasceu na Alemanha e foi proposta nos trabalhos fundadores de Wofgang Iser e Hans Robert Jauss desde finais dos anos 1960. Para Jauss é admissível estudar historicamente o artifício das obras a partir da sua recepção. E ao estudarmos a obra do ponto de vista da sua recepção, estamos contribuindo para enfatizar o diálogo entre a relação autor/obra/leitor (BELO, 2002, p.69). Logo, ao tentarmos interpretar os livros infantis, devemos ter como ponto de partida a idéia de que somos seres históricos, ou seja, temos uma história pessoal e cultural e estas são determinadas pelo tempo e espaço em que vivemos. Portanto, nosso olhar debruçado sobre os livros infantis é fruto de uma vivência determinada pela sociedade, cultura e época, bem como pelos valores, idéias, sentimentos e emoções que vão construindo uma rede de significações. “Para que serve um livro sem figuras nem diálogos?” pergunta-se Alice no primeiro parágrafo de Alice no País das Maravilhas. Essa pergunta sugere preferências do leitor infantil, preferências essas que, com o tempo, acabaram se tornando constitutivas do livro infantil. O livro, no caso do livro ilustrado, parece constituir-se como suporte para um texto verbo-visual, composto pelo texto e pelas ilustrações. Um texto híbrido, que muitas vezes exige um leitor híbrido, capaz de ler palavras e ilustrações, e não só capaz de ler os dois textos separadamente – o verbal e o visual – mas a sua interação. Para pensar a natureza e a significação da ilustração dos livros infantis, temos como ponto de partida, na história do livro, três grandes momentos: o manuscrito medieval, as obras para crianças do final do século XIX e início do século XX e os livros infantis contemporâneos. Na Idade Média, a apresentação dos trabalhos manuscritos medievais não apenas representava a realidade e a fantasia do seu tempo, mas já anunciava o meio gráfico que influenciaria ilustradores atuais e também se assemelharia, em sua forma de narrar, à maneira como a criança narrativizava seu cotidiano (SANTAELLA; NÖTH, 2005, p.35). 18 Pensando nas questões colocadas acima, esse trabalho acrescentará à Introdução três capítulos e uma conclusão. No primeiro capítulo - Livro Infantil - conduzimos nossa reflexão a partir de um estudo histórico do livro brasileiro. Nessa trajetória elucidamos alguns livros infantis que tiveram destaque na formação histórico-social brasileira. Abordamos também as funções da linguagem e as funções da ilustração, essa reflexão desvenda a capacidade dos recursos lingüísticos de concretizar significados ao mesmo tempo em que os disseminam. Após, refletimos sobre as relações de livro infantil, com o leitor. Esse possui muitas particularidades e muitos fatores como o contexto sociocultural, os espaços formais e informais, os produtos culturais, entre outros. Pensamos no leitor como um indivíduo que pode ser capaz de transitar por diferentes linguagens e suportes, com competência para (re)construir seu próprio texto, relacionando pontos de vista, autores, informações e tipos de linguagem, recriando sentidos a partir do diálogo entre o seu universo e o universo contido naquilo que está sendo lido. A obra literária não pode ser presa ao seu momento de produção, nem ao sentido pretendido pelo autor. Na medida em que se estrutura na linguagem ganha novos sentidos na leitura; o leitor – dotado de uma bagagem cognitiva e experiências individuais – não é um mero receptor passivo de uma suposta mensagem. O ato da leitura é um processo de decodificação e apropriação do texto que faz com que a obra literária seja um produto permanente da cena contemporânea, pois sua existência “de fato e indefinidamente” se faz pelo processo produtor de sentidos da leitura (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 108). Neste sentido “o contexto pertinente para o estudo literário de um texto literário não é o contexto de origem desse texto, mas a sociedade que faz dele um uso literário, separando-o de seu contexto de origem” (COMPAGNON, 1999, p. 45). No segundo capítulo -Interpretando os Livros Infantis à Luz da Intertextualidadeevidenciamos a temática da intertextualidade. Tratamos o assunto na perspectiva do livro infantil, propondo uma rede de leituras. Os livros escolhidos como suportes da interpretação foram De morte! (1992) e O Menino mais bonito do Mundo (1994). O primeiro intertextualiza com as imagens do pintor renascentista Dürer e o segundo intertextualiza, principalmente, com o texto bíblico Gênese e com uma obra de Sandro Botticelli. Após reafirmamos as principais características do livro infantil enquanto um objeto literário e/ou artístico. 19 No terceiro e último capítulo - Ilustração e Texto Escrito-, apontamos a hibridação como fator importante na constituição do livro infantil e a ilustração como um mosaico de interpretações. Os livros selecionados como base para as argumentações foram O Caminho do Caracol (1998) e Aviãozinho de Papel (2004). Para salvaguardar a clareza da exposição e a sistematização das idéias, optamos por subdividir os três capítulos em itens, como será apresentado oportunamente. Portanto, através da presente pesquisa, tentamos explorar nosso objeto, linguagens verbal e ilustrativa dos livros infantis, e assim pesquisar suas implicações e as preocupações preliminares que elas demandam, as intertextualidades e as diversas funções da linguagem verbal e da ilustração. Buscamos ainda evocar a relação ilustração/ palavra, de igual importância para este estudo, uma vez que o texto escrito não apenas participa da construção da mensagem visual, como ora a substitui, ora a completa em uma circularidade ao mesmo tempo reflexiva e criadora. 20 Capítulo I LIVRO INFANTIL 21 Nesse primeiro capítulo, começamos por evidenciar a história do livro infantil no Brasil até a década de 1990. Para tanto, tomamos como objeto de análise vários livros infantis e seu contexto de surgimento. Após, abordamos as funções da linguagem verbal e ilustrativa tomando como ponto de referência exemplos em ilustrações de livros infantis, poesias visuais e imagens das artes plásticas. As funções conferem ao texto um potencial amplamente interpretativo. Refletimos também sobre os conceitos de leitor, livro infantil e literatura infantil tendo em vista que esses conceitos são bastante operatórios para a clareza do trabalho. I.1-O Livro Infantil no Brasil, em busca de uma periodização (até a década de 1990) Os primeiros livros brasileiros escritos para crianças apareceram no final do século XIX. Neste contexto há uma nova formatação social, marcada pela ascensão de uma classe média urbana, desejosa de maior liberdade política, melhores negócios, dinheiro mais acessível, novas oportunidades para educação. O aparecimento dos primeiros livros para crianças incorpora esse processo. Porém, não havia uma tradição de escritores infantis e então foi preciso traduzir obras estrangeiras, adaptar para o infantil obras que originalmente eram destinadas aos adultos4 ou apelar para a tradição popular, acreditando que as crianças gostariam de ver nos livros histórias parecidas àquelas que as mães, amas-de-leite, escravas e ex-escravas contavam em voz alta. Os escritores brasileiros buscaram então repetir e recriar o que ocorrera na Europa, e criaram a literatura infantil brasileira (ZYLBERMAN, 2005, p.13-16). Os escritores pioneiros foram Carl Jansen e Figueiredo Pimentel. Jansen nasceu na Alemanha, mas veio ainda jovem para o Brasil e se tornou jornalista e professor. Nesta segunda profissão, ele pôde perceber que faltavam livros de histórias apropriados aos alunos, e entre 1880 e 1890, traduziu alguns clássicos como: D.Quixote de la Mancha. Figueiredo Pimentel era brasileiro e seguiu o caminho dos Irmãos Grimm, publicou 4 Os livros Robinson Crusoé de Daniel Defoe , e Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, publicados quase que na mesma época, respectivamente 1719 e 1726, foram logo abreviados e simplificados para a leitura das crianças inglesas, e até hoje é mais comum encontrarmos estes livros com o formato reduzido do que na versão integral. Os contos de fadas também eram contados por e para adultos, até que homens como Charles Perrault , na França, os irmãos Grimm, na Alemanha, as transcreveram e publicaram visando o público infantil (ZYLBERMAN, 2005, p.16). 22 coletâneas de muito sucesso, como os Contos da Carochinha e Histórias da Avozinha, nestes livros mesclam-se desde histórias de fadas européias até narrativas contadas por escravas negras. Em 1885, Sílvio Romero publicou Contos Populares do Brasil, provavelmente com o intuito de valorizar o folclore e as várias expressões orais do Brasil, esta obra, posteriormente foi muito usada por Monteiro Lobato numa época de euforia nacional, estimulada pelo governo de Getúlio Vargas, pois este incentivava o uso de elementos nacionalistas do passado, mas desde que não fossem contrários aos seus ditames (ZYLBERMAN, 2005, p.17; 93). Em relação às idéias acima, é significativo ressaltarmos que atualmente existe uma tendência a essa retomada das histórias folclóricas e/ou as histórias dos contos de fadas. Destacaremos aqui o escritor Ricardo Azevedo que incorpora em grande parte de suas obras vários elementos folclóricos como os contos, as quadradas populares, frases feitas, adivinhas, ditados populares e assim por diante, evidenciando que tais expressões são frutos de pesquisa, porém ele se singulariza por mostrar-se liberto do “exatamente igual ao original”, desta forma além dele expor suas pesquisas folclóricas ele as recria. Por exemplo: O fiado já morreu Foi com o dono enterrado Quem quiser beber cachaça Só pagando adiantado (AZEVEDO, 2001, p.13). Nesta mesma linha, Chico Buarque de Holanda, escreveu Chapeuzinho Amarelo (1979), texto que questiona o medo e desmistifica o lobo mau, este ato se dá através de um trocadilho verbal: de LO-BO, passa-se a BO-LO. E a menina aprende a transformar seus medos através da brincadeira com a linguagem. Não menos importante se apresenta às narrativas de Marina Colasanti em Uma Idéia Toda Azul (1978), neste livro a autora usa dos elementos dos contos de fadas para expor os sentimentos, angústias, desejos e paixões dos seres humanos. No conto homônimo ao livro tem-se a história de uma idéia azul e quem a teve foi um rei, porém este a guardou numa cama de marfim, na “Sala do Sono” e trancou a porta. Somente quando ele envelheceu e parou de governar é que ele foi ter com sua idéia azul, mas “Seus olhos não viam na idéia a mesma graça. Brincar não queria, nem rir. Que fazer com ela? Nunca mais saberiam estar juntos como naquele dia” (COLASANTI, 1978, p.33), e após essa reflexão, o Rei sentou-se e chorou com muita tristeza, abaixou o cortinado e fechou a porta para sempre. Uma 23 possível interpretação a esse conto seria pensarmos que a autora retoma a característica humana de abandonar os sonhos e desejos em detrimento do trabalho e dos afazeres, deixando o prazer em segundo plano. O Rei teve uma idéia que para ele era ótima, mas não sabia que ela corresponderia ao tempo presente. E ao deixá-la para ser retomada no futuro ela perdeu o sentido, assim conseqüentemente, o Rei também se perde, levando-nos até mesmo a hipótese de uma morte física ou psicológica. No percurso histórico do livro infantil percebemos que uma grande mudança ocorreu em 1921, com a publicação de A Menina do Narizinho Arrebitado, por Monteiro Lobato. O escritor revelou a preocupação em escrever histórias para crianças numa linguagem compreensível e atraente; esse objetivo foi plenamente alcançado pelo autor, cuja obra é até hoje uma das mais importantes da literatura infantil brasileira. Monteiro Lobato rompeu a dependência com o padrão culto da época, introduziu a oralidade tanto na fala das personagens como no discurso do narrador. Em seus livros o escritor repetia as personagens (como ocorre nas histórias em séries, como as que se conhece da televisão ou das revistas em quadrinhos), de maneira que não precisava inventar novos personagens principais a cada vez em que principiava outra narrativa (AGUIAR, 2001, p 26). Os personagens criados por Lobato (para a série de livros que tem como cenário o Sítio do Pica-pau Amarelo)5, geralmente trazem consigo características dos grandes heróis tradicionais, além disso, possuem qualidades singulares como o fato de as personagens principais, Pedrinho e Narizinho serem crianças. A boneca Emília ou Visconde de Sabugosa mimetizam o comportamento infantil, desta forma o universo das personagens aproxima-se do universo das crianças e permite uma certa identificação. As personagens também possuem independência e inteligência, tomam iniciativas, resolvem problemas, abordam os adultos de igual para igual e principalmente vivem sobre o princípio da ética e da justiça entre os indivíduos. Outra característica de Lobato é fazer com que o Sítio se tornasse um mundo independente e auto-suficiente, ele se situa em um sítio apenas, não é 5 O último livro, de Lobato, escrito para o público infantil foi Os Doze Trabalhos de Hércules, em 1944. Ele faleceu em 1948, e nestes quatro anos derradeiros, dedicou-se a organizar sua obra. Por esse motivo, há diferenças entre as edições de algumas histórias, a começar pela primeira, que mudou de nome. De: A Menina do Narizinho Arrebitado (1921), em 1931 foi para: Reinações de Narizinho. Esta mudança se deu quando ele acrescentou, ao original episódios como, O Marquês de Rabicó, O Irmão de Pinóquio e O circo de Escavalinho (ZYLBERMAN, 2005, p.24). 24 mencionada a cidade e nem o estado, o máximo que se pode presumir é que ele situa-se no Brasil. Ou que ele é uma metáfora do Brasil 6. O Sítio é dirigido por uma mulher culta, inteligente, bem-intencionada e competente: Dona Benta, modelo do político que, segundo Lobato, deveria governar o Brasil. É válido ressaltar que o escritor denomina-se José Bento, e para Regina Zylberman (2005, p.28), ela é, de certa forma a “voz crítica” de Lobato. Observamos também que quando Lobato escreveu boa parte de seus livros, o Brasil era vítima de uma ditadura, assistia-se também à ascensão do fascismo e do nazismo e a Europa estava sendo devastada por uma guerra brutal. Em vista disso entendemos que Dona Benta representa o melhor dirigente possível, conforme reconhecem eminentes políticos da época, vindos de várias regiões do globo, citados em A Chave do Tamanho, livro que traz muitas idéias políticas do autor (ZYLBERMAN, 2005, p.28) 7. Após o avanço conquistado pelos livros de Monteiro Lobato, a literatura infantil no Brasil de 1945 até meados da década de 60, viveu um período de retrocesso no que diz respeito à criatividade. O modelo lobatiano de contar histórias foi absorvido pelos novos autores e repetido à exaustão, sem muita inventividade ou preocupação em retratar a diversidade cultural brasileira em seu linguajar próprio. Mas seria um grande equívoco, neste período histórico deixarmos de ressaltar as obras infantis destinadas a serem encenadas, teatralizadas. E neste cenário se decantam as publicações de Maria Clara Machado (1921-1981), que escreveu várias obras do gênero dramático. Mas a sua consagração veio mesmo com Pluft, o Fantasminha (1955). Os acontecimentos do texto se concentram unicamente no espaço da casa-mal-assombrada e os personagens se divergem entre vivos e fantasmas. O personagem do título, que se faz herói da trama, salva a menina Maribel dos perigos que ela passa ao ser seqüestrada pelo pirata 6 O Sítio do Pica-pau Amarelo aparece desde o primeiro volume da obra que Monteiro Lobato destinou à infância, sendo escrito com detalhes na abertura de O Saci (1921). Ele é de propriedade de Dona Benta Encerrabodes de Oliveira, que habita o sítio na companhia de uma cozinheira, Tia Nastácia, e da neta. Nas férias recebe a visita do neto Pedrinho, filho de uma filha de Dona Benta, mencionada algumas poucas vezes. Os pais de Narizinho são ignorados (ZYLBERMAN, 2005, p.28). 7 Referimos até aqui à porção principal da obra literária infantil de Lobato. Porém ficaram muitas realizações de lado, como as adaptações de clássicos da literatura (Dom Quixote das Crianças, de 1936) de obras européias destinadas à infância (Peter Pan, 1930), as inclusões do folclore (Histórias de Tia Nastácia, de 1937) e na mitologia ocidental (O Minotauro, 1939), o aproveitamento da história (História do Mundo para Crianças, de 1933), da geografia (Geografia de Dona Benta, de 1935), da matemática (Aritmética da Emília, de 1937), que aparecem em muitos dos títulos. 25 Perna de Pau. Pluft, mesmo fantasma, tem características humanas, tem medo, é tímido e inseguro. Sua mudança vem ao enfrentar o perigo para salvar a humana Maribel, onde ele se afirma como um indivíduo realizado e feliz. Maria Clara Machado, ao compor a narrativa básica de Pluft, o Fantasminha retorna, pois, às origens do teatro e da literatura infantil, coerente com os gêneros a que filia a obra. Ao mesmo tempo, confere-lhe teor próprio e original, não apenas por combiná-los num único texto, mas por avizinhá-los da criança contemporânea (ZYLBERMAN, 2005, p.148). Nesta linha de pensamento podemos supor que a autora une os elementos mágicos, sobrenaturais, metaforizado no Fantasma, com o universo do pensamento infantil. Além disso, o texto é muito rico em humor, pois mistura o medo com o riso. Nos anos de 1960, após a implantação da ditadura militar (1964 - 1985), a literatura infantil, provavelmente por não ser muito vista, não foi muito lembrada pela censura, e serviu como um meio por onde alguns artistas em geral manifestaram suas idéias. Apareceram aí obras com muitas metáforas e símbolos que traziam idéias libertárias (AGUIAR, 2001, p.27). Nesta mesma década, a sociedade sofria a influência dos meios de cultura de massa feitos principalmente nos Estados Unidos, aqui se destaca a dominação dos desenhos animados de Walt Disney Co. Paralelamente buscava-se uma arte mais nacional, que apontava os problemas do Brasil. É neste cenário que sobressai a literatura de Ziraldo: autor que conseguiu fazer uma literatura que se colocou no meio das duas vertentes. Criou histórias em quadrinhos nos moldes norte-americanos, mas com temáticas brasileiras. Em relação à poesia destacou-se o lirismo de Cecília Meireles. Seu livro de maior expoente foi Ou Isto ou Aquilo (1964): (...) Dizem que a chácara do Chico só tem mesmo chuchu e um cachorrinho coxo que se chama Caxambu. Outras coisas, ninguém procure, porque não acha. Coitado do Chico Bolacha (MEIRELES, 2002, p.17)! 26 Este fragmento de poema contido no livro citado denomina-se A Chácara do Chico Bolacha (1964), e apenas pelo título já podemos supor que a poesia terá uma temática engraçada, pois de início tem-se uma clara aliteração com os sons do “x”. O nome composto do dono da chácara também é lúdico e ligado ao universo infantil: “Chico Bolacha”; “Chico”, um apelido de Francisco e “Bolacha”, é um alimento saboroso e ligado exatamente à sinestesia e ao prazer de comer. Ao ler a poesia notamos que o protagonista é um “pobre coitado” que possui um cachorro que manca e que em sua chácara não há nada a não ser chuchu. Contudo notamos que se trata de uma poesia-narrativa onde se destaca o anti-herói, a carnavalização da epopéia. Possivelmente esse foi o diferencial de Cecília Meireles, que mesmo seguindo alguns passos de Bilac8, foi um claro exemplo de inovação. Na década de 1970, o ensino passou por grandes mudanças e como conseqüência, a literatura infantil também. Nesta época foi implantada a Lei 5.6929, que de certa forma abriu as portas a crianças de todas as classes sociais, porém o ensino brasileiro não estava preparado para receber tantas crianças, assim houve um recrutamento intenso de professores, e estes docentes foram preparados para lecionar de forma muito apressada e até mesmo superficial10. Entretanto, mesmo com essas mudanças complicadas e contraditórias o livro infantil passou a ser mais valorizado, e a criança começou a ser olhada como um consumidor em potencial. Para Lígia Cademartori (1995, p.12) esse “interesse” na literatura infantil se deu por dois motivos: à crescente ampliação da classe média e ao aumento do nível da escolaridade como decorrência da reforma do ensino. A autora aponta também que foi deste cenário que os brasileiros começaram a estudar, fazer seminários e publicações sobre a literatura infantil, que até então era vista como algo segregado. 8 Um gênero que sempre esteve presente na literatura infantil brasileira foi o poético, no início do século XX seu principal representante foi Olavo Bilac, que era um parnasiano, e como tal valorizava a perfeição formal, métricas, rimas e assim por diante. Esse gênero cresceu muito no decorrer da história do livro infantil. 9 A referida lei encontra-se em http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/L5692.htm. 10 Em relação à formação de professores para as classes iniciais, observamos que a situação atual não é muito diferente da apontada na década de 1970, pois ainda há muitos professores didaticamente despreparados, com pouco conhecimento teórico e pedagógico. Além disso, os salários são muito baixos, o que leva o docente a trabalhar em demasia, e desta forma não lhe sobra tempo para preparar aulas adequadas. E principalmente, falta à educação brasileira um investimento nos estudos e na implementação das políticas públicas educacionais. 27 Nessa mesma década, houve um grande número de publicações de obras voltadas para o público infantil, porém muitas obras eram pedagogizantes e/ou moralistas, outras traziam textos que tratavam o suposto leitor (a criança) de forma a imbecilizá-lo e outras, ao contrário, apontavam temas que estavam longe de uma identificação da criança. Nesta fase apareceram obras que se valiam de personagens semelhantes aos dos contos de fadas, como: bruxas, moças pobres, madrastas, príncipes, fadas. Porém estes personagens eram usados para discutir temas contemporâneos. Um livro de grande destaque, muito lido ainda hoje, é A Fada que Tinha Idéias, de Fernanda Lopes de Almeida, publicado em 1971. Nele a protagonista, Fada Clara Luz, é sutilmente uma subversiva, pois rejeita piamente seguir as idéias impostas contidas no “Livro das fadas”. Tal atitude faz com que a personagem sofra castigos e punições pelas fadas que detêm o poder, mas também Clara Luz consegue aliados e ao final modifica o sistema político de sua terra. Em 1978, em meio a esse desenvolvimento qualitativo de livros infantis foi publicado História Meio ao Contrário de Ana Maria Machado; a obra merece destaque por trazer consigo temas desafiadores e surpreendentes para a época, são eles: um rei que é alheio a realidade de seu reino, uma princesa que não aceita a escolha de seu noivo e cuida da sua própria vida, um príncipe que se interessou por uma camponesa e não por uma princesa que através da tradição da nobreza lhe era imposta. (...) E o príncipe viu a Moça. Que moça? Ora, a Pastora, você está ficando esquecido? Não lembra que ela tinha ficado por ali para olhar e tratar de aprender? Pois os dois se olharam e se apreenderam. O Príncipe viu a pastora por entre as árvores, na luz do olhar do Dragão, e pensou que de manhã quando tinha falado com ela na aldeia, nem tinha reparado como ela era tão bonita. Talvez de manhã ela nem fosse ainda tão bonita, porque a verdade é que todos os acontecimentos do dia tinham ajudado muito a Pastora a não esconder mais seus olhos e a levantar a cabeça – e ela, como todo mundo, ficava muito mais bonita assim (MACHADO, 1978, p.34). Além disso, a história subverte a ordem proposta nos contos de fadas, pois o livro, ao invés de finalizar, inicia-se com “e vivem felizes para sempre” (p.4). Essa obra apresenta uma contestação metafórica significativa ao sistema político autoritário, no qual o Brasil se encontrava. Observamos que nos dois livros citados como livros de grande valor literário que apareceram nesta época: A Fada que Tinha Idéias (1971), e História Meio ao Contrário 28 (1979), todos eles apresentam a personagem feminina com bastante destaque, fato que até então não era comum. Geralmente eram os personagens masculinos que tinham os dotes de “heróis”, nestes livros a mulher aparece em uma condição transformadora, vai contra os patrões pré-fixados e ao final modificam a situação de dominação a qual anteriormente lhe foi imposta. Contudo, provavelmente, o livro publicado nos anos de ditadura de maior popularidade foi O Reizinho Mandão (1978) da autora Ruth Rocha. O livro não apresentase em prosa, mas em versos, em clara intertextualidade com a literatura de cordel: Quando Deus enganar gente, Passarinho não voar... A viola não tocar, No dia em que o mar secar, Quando prego for martelo, Quando cobra usar chinelo, Contador vai se calar... Eu vou contar para vocês uma história que meu avô sempre contava (ROCHA, 1978, p.5). Neste início já se observa que a história é musicalizada, e que é impossível, mesmo com toda autoridade política fazer um “cantador se calar”, colocando em cheque a questão da liberdade de expressão e a possibilidade de se exprimir os pensamentos contrários através da música e da literatura. A partir deste início é narrada a história de um menino que nasceu príncipe, é herdeiro do trono, “sujeitinho muito mal-educado, mimado” (ROCHA, 1978, p.5) e muito autoritário. Ao se tornar rei, ele busca e consegue fazer com que seu reino se torne um lugar de muita infelicidade e amargura, pois ele proíbe a todos do reino de falar. _Cala a boca! Eu é que sou o rei. Eu é que mando! Podia ser ministro, embaixador, professor. E tantas vezes ele mandava que o papagaio dele acabou aprendendo a dizer “Cala a boca” também (ROCHA, 1978, p.5). Por causa da grande repressão, o próprio Reizinho já não agüentava mais viver nessa situação, e antes de reverter o quadro ditatorial que ele mesmo havia imposto, uma menina que estava muito contrariada, grita para todo mundo ouvir que ninguém mandaria 29 em sua fala. Vemos então uma grande expressão de liberdade, e esta modifica o cenário do reino que redescobre sua voz e causa a fuga do Reizinho. O presente livro é uma clara alusão ao sistema autoritário que o Brasil vivia na década de 1970, que sucumbia a “voz” das pessoas que faziam oposição ao governo militar, a história é uma tentativa de expressão diante do poder. Bem como uma crítica indireta à “proposta de abertura” militar naquele momento. Após o sucesso do livro O Reizinho Mandão, Ruth Rocha publicou mais dois livros ligados ao mesmo tema, fazendo uma trilogia contra a ditadura. Os livros são: O Rei que não sabia de nada (1979) e Sapo Vira Rei Vira Sapo ou A Volta do Reizinho Mandão (1982). O primeiro denuncia a necessidade de se expressar diante do poder e o segundo, além de apresentar novamente o Rei autoritário que sempre quer se impor, dialoga com o conto de fadas “O Príncipe Sapo” e com a literatura irônica do modernista Manuel Bandeira. A poesia musicalizada endereçada à criança de grande significância neste período foi a de Vinicius de Moraes, com A Arca de Nóe (1974), onde abordou temas atrativos ao público infantil através dos animais. A dramaturgia também ganhou em qualidade, pois essa época foi berço do espetáculo infantil: Os Saltimbancos (1977), de Chico Buarque de Holanda. O músico traduziu a obra de Sérgio Bardotti. Chico deu a ela um “tom” muito brasileiro, ou seja, a reescreveu. O texto intertextualiza com “Os Músicos de Bremen” escrito pelos Irmãos Grimm, nele o autor eleva a importância da solidariedade, companheirismo e crítica perante o poder. Essa última característica da obra é fundamental para torná-la uma obra de vanguarda, pois como já dissemos, a presente época se caracteriza pela ditadura militar que vigorava. Nos anos de 1980, o quadro político já apresentava uma maior abertura e a busca pela formação escolar das crianças se intensificou. Os meios de comunicação apoiaram tais mudanças, porém com um intuito de levar as pessoas a consumirem. Notamos que nessa época houve um número grande de publicações e os principais temas eram: o cotidiano das crianças, os contos de fadas em versão moderna e as denúncias sociais. Outro livro de grande teor literário escrito em 1986, pela autora Ana Maria Machado, denomina-se Palavras, Palavrinhas & Palavrões. O livro aborda o tema da linguagem, do poder da palavra e do poder do silêncio. Novamente a protagonista é uma 30 menina que percebe o quão é mágico e misterioso o uso das palavras, e que elas são cercadas de conceitos e preconceitos. Esta protagonista é uma grande observadora e pesquisadora das palavras que ouve ou lê, e em suas pesquisas pueris descobre o “palavrão” e todo o tabu e proibições que o cercam. Em certo momento do livro a menina opta pelo silêncio, até descobrir que ela pode ser dona de sua própria fala e sujeito do mundo que constrói com elas (LAJOLO, 1986). Em Divinópolis, a escritora Terezinha Fonseca publicou A Menina que não Falava o Vinte, 1985. A obra foi uma das primeiras edições feitas para o público infantil da cidade e sua temática gira em torno da idéia do fracasso escolar e da baixa preparação dos professores. A personagem principal, Nininha, é uma menina de habilidades cognitivas normais, no entanto, na escola era preciso que aprendesse a falar o número 20, e ela não conseguia. Assim é percebido que os procedimentos didáticos e metodológicos para o ensino não eram coerentes com a forma de se ensinar. Somente ao final, com a troca de professoras é que a menina verbaliza o número. A obra também pode ser observada como uma alegoria ao silêncio imposto pelos 20 anos de ditadura no qual o Brasil viveu. Também é válido ressaltar que apareceram várias publicações para o público infantil que visavam, de forma lúdica e criativa, informar. Os assuntos se divergem entre artes, botânica, arquitetura, anatomia, religião, música, higiene, ciências naturais, tecnologia e muitos outros temas adaptados para o nível cognitivo do leitor mirim. Tais obras apresentam-se de modo atrativo, bem cuidado e usam das características da literatura para seduzir o público, há poemas que descrevem um fato histórico, há personagens que analisam obras de artes e assim por diante. Logo, após essa breve contextualização da história da literatura infantil no Brasil, até o fim dos anos de 198011, apontamos que não tivemos por objetivo pormenorizar as principais obras e autores e nem tampouco detalhar fatos históricos, que com certeza mudaram os rumos da nossa literatura. Podemos resumir que houve quatro etapas principais no percurso histórico de nossa literatura infantil. A primeira vai do final do século XIX a meados dos anos de 1920, fase em que o Brasil apresentou uma literatura em moldes europeus. A segunda fase vai de 1921 até meados da década de 1940 e é marcada pelas obras do grande escritor Monteiro Lobato, a terceira fase começa no final da década de 40, 11 Alguns livros da década de 1990 serão, de alguma forma, abordados nos próximos capítulos. 31 com a morte de Lobato em 1948, e vai até a década de 1970. Esta fase foi marcada pela cópia do modelo lobatiano sem recuperar a qualidade de suas obras e a quarta fase que se iniciou na década de 1970, com obras que metaforicamente buscaram a denúncia social, a apropriação de elementos da cultura de massa, além de uma extensa produção de livros destinados a muitas áreas do conhecimento. Para Vera Teixeira Aguiar, em todo esse percurso histórico, do início até os dias atuais a literatura para crianças sempre esteve dividida em duas tensões: “pedagogismo e proposta emancipatória, massificação e liberdade expressiva” (2001 p.34). Entretanto, observamos que mesmo se vendo diante do pedagogismo, da massificação e do consumismo ela, de certa forma, assumiu um papel de vanguarda no decorrer da história, mostrando-se muito coerente ao que ocorria em seu tempo. Ressaltamos também o quanto as personagens femininas foram protagonistas, e delinearam um papel de rompimento com a submissão, a fragilidade e a dependência. I.2-As funções das linguagens verbal e ilustrativa Para ampliar nosso horizonte de expectativas em relação aos significados da ilustração, um ponto de partida pode ser a hipótese de Luís Camargo (2004, p.1) de que a ilustração pode ter várias funções. Veremos inicialmente, o que o referido autor diz sobre as funções da linguagem verbal e após iremos analisar e exemplificar as funções da ilustração, ambas objetos de estudo do referido autor. De acordo com a orientação para um ou outro elemento da comunicação, configuram-se seis diferentes funções da linguagem: a orientação para o REMETENTE configura a função EXPRESSIVA; a orientação para a forma da MENSAGEM configura a função POÉTICA; a orientação para o assunto da mensagem - o REFERENTE - configura a função REFERENCIAL; a orientação para o DESTINATÁRIO, a função CONATIVA; a orientação para o CANAL, a função FÁTICA; e, por fim, a orientação para o CÓDIGO configura a função METALINGÜÍSTICA (JAKOBSON, 1985, p.123-129). 32 Elementos da linguagem segundo Jakobson REMETENTE REFERENTE MENSAGEM CANAL CÓDIGO DESTINATÁRIO Funções da linguagem segundo Jakobson EXPRESSIVA REFERENCIAL POÉTICA FÁTICA METALINGÜÍSTICA CONATIVA Jakobson (1985, p.123) adverte que é quase improvável se encontrem mensagens lingüísticas com uma única função, assegurando ainda que a diversidade das funções lingüística não deriva do monopólio de uma determinada função, mas de diferentes hierarquizações das funções. As funções da linguagem extrapolam o universo verbal, assim expõe as teorias de Jakobson, pois ainda no ensaio Lingüística e Poética, ele sugere que as seis funções expostas não se reduzem ao código verbal, mas podem estar presentes em outros sistemas sígnicos, afirmando: “muitos dos procedimentos estudados pela Poética não se confinam à arte verbal” e, também, “numerosos traços poéticos pertencem não apenas à ciência da linguagem, mas a toda a teoria dos signos, vale dizer, à Semiótica geral” (JAKOBSON, 1985, p.119). Na mesma direção, Martine Joly toma como ponto de partida as funções propostas por Jakobson para estudar as funções da imagem (1996, p.55-61). Camargo (2004), continua seus estudos observando esse trânsito da lingüística para a semiologia ou semiótica, chega até mesmo a recomendar o uso da palavra texto como um conjunto estruturado de signos, verbais ou não. Essa também é a posição de José Luiz Fiorin, que propõe que quando um discurso é manifestado por um plano de expressão qualquer, temos um texto12. Observa-se que, ao aludir um plano de expressão qualquer, Fiorin não reduz o plano de expressão à linguagem verbal, afirmando que “não há conteúdo lingüístico sem 12 A Enciclopédia Einaudi conceitua o texto como um tecido lingüístico de um discurso; e que é importante considerar como texto produções que exigem uma composição estruturada como, por exemplo, um quadro, um bailado, um espetáculo teatral, um desfile militar e demais sistemas de signos relativos a comportamentos (SEGRE, 1989, p.153-172). 33 expressão lingüística, pois um plano de conteúdo precisa ser veiculado por um plano de expressão, que pode ser de diferentes naturezas: verbal, gestual, pictórico, etc” (FIORIN, 1996, p.31, In: CAMARGO, 2004). Observamos então que, para debater questões ligadas à ilustração, a apropriação de conceitos lingüísticos é autêntica e pode ser bem-sucedida, já que a ilustração se caracteriza justamente por ser uma imagem que acompanha um texto. No caso exclusivo deste estudo, o uso de um referencial teórico de origem lingüística pode, inclusive, facilitar a análise das relações entre texto e ilustração. Levando-se em conta as divergências entre as linguagens verbal e visual. Por isso, ao discutir as categorias a seguir, Luís Camargo (2004) menciona várias correspondências que elas mantêm com as propostas de Jakobson, sem, no entanto, estabelecer uma subordinação rígida entre as funções da imagem e as da linguagem. Pode-se perceber que a ilustração é um dos vários subcódigos do código visual, compartilhando funções com outras linguagens visuais. Assim, as funções da ilustração, aqui discutidas, serão exemplificadas indiferentemente a partir de qualquer um dos diversos subcódigos visuais, entre outros a fotografia, a poesia visual, a pintura, mas, principalmente, a ilustração de livros infantis. Como veremos a seguir a ilustração pode sugerir onze funções diferentes: função representativa, função descritiva, função narrativa, função simbólica, função expressiva, função estética, função lúdica, função conativa, função metalingüística, função fática e função de pontuação. Função representativa A ilustração terá função representativa quando dirigida para o seu referente, ou seja, quando copia a aparência do ser ao qual se refere, como ocorre na arte figurativa. No caso da linguagem escrita, a função representativa está presente nas escritas pictográfica e ideográfica. Na literatura, essa função aparece nos poemas figurativos - ou caligramas - nos quais a composição gráfica imita o ser ao qual o poema se refere, como, por exemplo, a poesia visual Jacaré Letrado de Sérgio Cappareli (FIG. 1), o sentido do texto é reforçado por sua composição gráfica, nela aparece um jacaré que é constituído pelas palavras “jacaré”, um jogo de significados e significantes, de palavras e ilustração, do ler e do ver. 34 FIGURA 01 – Jacaré Letrado Fonte: CAPPARELI, 2002, p.33. A ilustração exerce função representativa especialmente quando tem por assunto objetos do mundo fenomênico, ou seja, que podem ser apreendidos pelos sentidos, designadamente, através da visão. Esta função pode ter um modo universal de representação, como no caso do ícone da caveira que indica veneno, ou pode ser bastante específica, como no caso da caricatura que, mesmo com poucos traços, retrata uma pessoa determinada. A representação pode caracterizar o personagem, podendo dar-lhe personalidades, idades e figurinos diferentes, e localizá-lo em locais e épocas diversos. Personagens extremamente conhecidos e populares acabam representando arquétipos e transformando-se também em ícones. Assim, a Alice (de Alice no país das maravilhas de Lewis Carroll), o Pinóquio ou, a boneca de pano Emília do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, e o Saci Pererê já foram interpretados visualmente das mais diversas maneiras, que enriquecem as possibilidades de leitura de suas personalidades (LINS, 2002, p.31). Função descritiva A ilustração terá função descritiva quando dirigida para o seu referente, de modo similar à função representativa, mas irá detalhar o aspecto do ser representado. Deste modo, fala-se que um determinado ideograma representa um objeto ou um ser humano, enquanto a fotografia descreve uma pessoa específica. Quando a representação vai detalhando a aparência 35 de um determinado ser, muda-se da função representativa para a função descritiva, em diferentes graus de descritivismo. Entre a função representativa e a função descritiva não há propriamente diferença de natureza, mas de grau: a representação tem caráter resumido, enquanto a descrição tem caráter analítico; uma é concisa, a outra, prolixa. Os livros didáticos, enciclopédias, dicionários ilustrados e outros tipos de livros informativos aproveitam repetidamente a fotografia com função descritiva. Em diferentes casos, o desenho pode prestar-se mais perfeitamente a essa função, como no caso do desenho de botânica ou arquitetura, que pode ressaltar detalhes pouco evidentes na realidade e que, por isso, seriam difíceis de ser registrados pela fotografia. Alguns livros vêm desenvolvendo a função descritiva a níveis tão grandiosos, que há poucos anos seriam inimagináveis, no livro infantil A música dos instrumentos (MARCHAND, 1994, p.25), há vários usos dessa função, nele o leitor pode, além de ler, manipular e transformar suas imagens. Um exemplo é a possibilidade do leitor abrir a “barriga” de um piano de cauda e dentro do piano perceber toda a sua parte interna (FIG. 02), um mecanismo com mais de 6.000 peças, além disso, ao lado do piano há uma explicação dos “antepassados do piano” e do outro lado uma moldura de um quadro, dentro dela está escrito “Chopin”, nesta moldura o leitor deve colar um “retrato” do pianista, e este se encontra no final do livro. A B FIGURA 02 a) Piano fechado b) Piano aberto Fonte: MARCHARD, 1994, p.25. 36 Em O Menino mais Bonito do Mundo (1994) de Ziraldo, as ilustrações apresentam a função descritiva de forma progressiva, é como se ao virássemos as páginas a ilustração fosse abrindo um “zoom”. Desta forma, nas primeiras páginas observamos um sol e na medida em que vamos prosseguindo na leitura, a paisagem vai se ampliando, ou mudando de foco. Desta forma o leitor pode observar os detalhes da paisagem que a ilustração apresenta. Função narrativa A ilustração terá função narrativa quando dirigida para o seu referente (de modo semelhante às funções representativa e descritiva), mas quando localizar o ser representado em devir, através de transformações (no estado do ser representado) ou ações (por ele realizadas). Do mesmo modo como acontece com a função descritiva, a função narrativa pode apresentar diferentes graus de narratividade, por exemplo, narrar uma história, uma cena ou uma ação (ou apenas sugeri-las). Nota-se, assim, que esta função implica a função representativa (ou a descritiva). A função narrativa pode dar forma à linguagem visual até mesmo em gêneros que freqüentemente não destacam a dimensão temporal, como a paisagem, a marinha ou a natureza-morta. Norman Rockwell (18941978) usa essa função para fazer um jogo com o leitor, em Os Bisbilhoteiros (1948), o pintor brinca com um passatempo muito comum: o ato de fofocar, Rockwell utilizou a imagem de seus vizinhos de Vermont para criar retratos muito pequenos de pessoas bisbilhoteiras a espalhar uma história. Na imagem a fofoca é passada para 15 pessoas diferentes até voltar a primeira, ou seja, aquela que iniciou o boato. No caso a imagem de sua esposa, dando mordacidade a sua obra (FIG. 03). FIGURA 03- Os Bisbilhoteiros -Norman Rockwell Fonte: MARLING, 2005, p.7 37 Em 1976, no Brasil, nasceu o primeiro livro infantil que narra uma história apenas (ou quase que exclusivamente) com imagens, Ida e volta, de Juarez Machado (1987). Hoje, circulam atualmente no mercado dezenas de títulos de livros de imagem, isto indica não só o sucesso do gênero, mas as possibilidades e a importância da função narrativa em livros para a infância (CAMARGO, 1995, p.87-94). Dentre eles se destaca O Cântico dos Cânticos (1992) de Angela Lago. Podemos dizer que a autora propõe uma leitura narrativa fundamentada na multiplicidade das escolhas do leitor e na indeterminação dos interpretantes a serem produzidos durante o ato da leitura, assim ela consegue produzir uma obra bastante particular e que enriquece a obra bíblica original. Em O Caminho do Caracol (1998) de Helena Alexandrino, notamos que este livro de imagem utiliza a função narrativa de forma bastante lírica. O livro começa com um menino olhando da janela de seu apartamento e de forma surpreendente, ele inicia uma viagem a um mundo imaginário. Outro gênero em que a função narrativa prevalece são nas histórias em quadrinhos: também denominada de arte seqüencial, que sinalizam ao mesmo tempo para as funções narrativa e estética. Função simbólica A ilustração terá função simbólica quando dirigida para um significado sobreposto ao seu referente, mesmo que arbitrariamente, como é o caso da balança para representar a justiça. Através da função simbólica, a ilustração pode ser coberta de significados convencionais, como é o caso da cruz, que na igreja simboliza o cristianismo, na matemática o símbolo de adição e no jornal a morte de alguém. Outro exemplo seria do signo formado pelo cruzamento de duas serpentes entrelaçadas, chamado caduceu que, conforme o contexto, pode, ser o emblema da medicina e do comércio. E no caso da mitologia grega esse caduceu representa, entre outras coisas, dualidade e união de opostos. Em uma releitura feita por Ruth Rocha (2000, p.30), para o livro Odisséia de Homero, o ilustrador, Eduardo Rocha (2000) mistura a figura de Ulisses com uma águia, esta traz consigo a simbologia de liberdade, astúcia e fortaleza. Além disso, o ser criado 38 pelo ilustrador foi feito adaptando símbolos gregos, como animais com feições humanas (FIG.04). FIGURA 04 -Ilustração de Eduardo Rocha Fonte: ROCHA, 2000, p.30. As funções representativa, descritiva, narrativa e simbólica diferem-se, assim, das modalidades da função referencial proposta por Jakobson. Função expressiva A ilustração terá função expressiva quando dirigida para o emissor, ou seja, o produtor da ilustração, mostrando seus sentimentos e valores, bem como quando lembrar os sentimentos e valores do ser representado. Deste modo, no caso de imagens humanas ou de objetos, vegetais ou animais antropomorfizados (como é comum nos desenhos animados e na ilustração para crianças), atitudes corporais e expressões fisionômicas podem ser identificador de emoções e sentimentos e, nesse caso, terão função expressiva (Camargo, 2005). No livro A Garupa e Outros Contos (2002), o conto Bruzundunga da Silva, de Sylvia Orthof (p.12-20), conta à história de um livro, o Bruzundunga, e em meio a suas aventuras ele conhece a Bernadina, uma pomba roliça e bonitona (p.15), e eles se apaixonam e vivem um caso de amor, para representar a cena a ilustradora, Lúcia Brandão, usou inicialmente da denotação: a representação de uma pomba e a representação das folhas do livro. Porém a pomba, conotativamente, segura as folhas do livro em seu bico, seus olhos estão fechados e 39 um pequeno coração une o “referido casal” (FIG.5). Notamos que a ilustração perpassa pela função representativa, pela função simbólica, no elemento “coração”, que simboliza amor, e se acentua na função expressiva por conotar a emoção de elementos inanimados. FIGURA 05- Ilustração de Lúcia Brandão Fonte: ORTHOF, 2002, p.16. A expressividade da fisionomia e da postura corporal, que é fundamental no desenho animado e nos quadrinhos, pode ser enfatizada por vários recursos visuais, como o ângulo de enquadramento, a perspectiva, a presença maior ou menor de cenário, jogo de luz etc., elementos da linguagem visual que cooperaram inevitavelmente para a preponderância de uma ou de outra função (Camargo, 2005). As deformações, o uso enfático da cor não-referencial e a gestualidade no estilo de representação, ou seja, os gestos que são induzidos através dos traços, pinceladas, manchas etc., sinalizando, assim, a ênfase no emissor, são traços peculiares do movimento artístico justamente denominado como expressionismo. Esta corrente artística procurava desenvolver formas pictóricas que expressassem os mais íntimos sentimentos, mais do que o mundo exterior. As imagens expressionistas são intensas, apaixonadas e altamente pessoais, baseadas 40 no conceito da tela do pintor como um veículo para manifestar emoções (PRESS, 1999, p.504). Até mesmo quando a pintura se aparta da representação, como é o caso, por exemplo, da pintura apontada como "abstrata", a função expressiva pode permanecer existindo, como ocorre no expressionismo abstrato. Neste movimento, os artistas utilizavam telas grandes e aplicavam a tinta com rapidez e força, esse método expressivo de pintar era freqüentemente considerado mais importante do que o próprio quadro. Seus principais representantes são: Francis, Pollock, De Kooning (PRESS, 1999 p.505). A consideração da função expressiva da imagem como reveladora de traços da personalidade de seu autor tem larga utilização na psicanálise (freudiana) e a psicologia analítica (junguiana) que interpretam a imagem como representação da dinâmica do inconsciente. Em uma abordagem reichiana, o psiquiatra José Ângelo Gaiarsa estudou a pintura como expressão de angústia (e suas relações com a respiração), analisando a obra de pintores surrealistas como Salvador Dali, René Magritte, Paul Delvaux, entre outros (Luís Camargo, 2005). A ilustração que possua ênfase na expressividade pode promulgar sentimentos e valores pessoais, interpessoais (do autor em relação a outra pessoa), intrapessoais (inconscientes), do autor em relação a objetos (inclusive a natureza) e valores socioculturais, ultrapassando, assim, o universo pessoal e o alcance dessa função explicitada na proposta jakobsoniana. Desse modo, conforme sua abrangência, a função expressiva pode admitir abordagens psicológicas, sociais antropológicas, entre outras. Função estética A ilustração terá função estética quando dirigida para a configuração da mensagem visual, ou seja, quando ressaltar sua forma visual. Em outras palavras, quando destacar a estruturação dos elementos visuais que a configuram, como linha, forma, cor, luz, espaço etc. Essa configuração visual pode ser edificada através de vários níveis de organização: estruturas lineares, formais, cromáticas. Agenciando repetições, alternâncias, simetrias, contrastes etc. No caso da arte representativa ou figurativa, a função estética se faz atual na maneira de representar, no como a imagem representa certo objeto. Mas a função estética não está sujeito da função representativa, podendo mesmo existir livre dela, como no caso da ilustração abstrata (FIG.06), em que a imagem agencia linhas, formas e cores, sem referir-se, 41 objetivamente, a um objeto fora dela, configurando, no entanto, repetições, alternâncias, simetrias e contrastes, em diferentes níveis de estruturação (linha, forma, cor, luz, espaço etc.). FIGURA 06- Ilustração de Elvira Vigna Fonte: MURRAY, 1999, p.17. Isso também ocorre no desenho não-figurativo de crianças bem pequenas, em que repetições de linhas e formas, estruturas simétricas, contrastes, revelam uma finalidade estética, ou seja, evidencia ou apresenta traços da função representativa independente de representar alguma coisa, mesmo que, nesse estágio cognitivo, provavelmente essa intenção não possa ser verbalizada. Repetições, alternâncias, contrastes, de linhas, formas, cores, entre outros recursos, ou seja a estruturação dos elementos visuais, é equivalente às reiterações (fônicas, lexicais e sintáticas) e as antíteses no caso do código verbal. É importante também advertir que a função estética não se identifica com a de ornamentação, mesmo que seja capaz de englobá-la ou, em outras palavras, a função estética engloba o estilo decorativo, mas sua função não se restringe aos fatos explicitamente decorativos ou ornamentais, especialmente quando ele comporta repetições, alternâncias e contrastes de motivos visuais. 42 A função poética jakobsoniana corresponde à função estética enfatizada por Luís Camargo (2005). A prioridade pela palavra estética é porque através do tempo ela permanece mais agregada às artes visuais do que a palavra poética, circunstância esta, no entanto, que tem se transformado, nos últimos anos, por força da própria divulgação das categorias jakobsonianas. Função Lúdica A imagem terá função lúdica quando dirigida para o jogo, para o humor, que é de certa forma uma modalidade do jogo, seja em relação ao emissor, ao referente, à forma da mensagem visual ou mesmo em relação ao destinatário. Deste modo, a imagem ressaltará o jogo em relação ao referente quando oferecer situações cômicas; destacará o jogo em relação à forma da mensagem quando se valer de um estilo caricato; e, em relação ao destinatário, quando instigar a participação do leitor, por exemplo, configurando-se como jogo. No caso da literatura infantil, esta função é predominante em De Morte! (LAGO, 1996) em que, o leitor brinca desdobrando algumas páginas, descobrindo novos personagens e vivenciando diferentes situações, como despir a Morte. Nesse livro, a função lúdica se faz presente em diferentes níveis: em relação ao referente, pela representação de personagens e cenas cômicas; em relação à forma da mensagem visual, pelo estilo caricato de representação; e, em relação ao destinatário, por estimular sua ação para criar novas situações através da manipulação das ilustrações (FIG.07). A B FIGURA 07-Ilustração de Angela Lago a) Dobradura fechada b) Dobradura aberta Fonte: LAGO,1992. Provavelmente, a função lúdica é a primeira a despontar no desenho infantil: a criança no período sensório motor desenha principalmente pelo prazer do gesto, pelo prazer de 43 produzir uma marca, é um jogo de exercício que a criança repete muitas vezes para certificarse de seu domínio sobre aquele movimento. E como a finalidade não é o produto final, ou seja o desenho, muitas vezes a criança nem olha para o papel, vai além das margens, acrescenta rabiscos aleatoriamente e desinteressa-se de seu desenho depois de terminado tempo, muitas vezes não conseguindo reconhecê-lo se ele for colocado entre outros (MOREIRA, 1999, p.28). Esse procedimento indica que o que está em jogo é o prazer de fazer, a função lúdica, conseqüentemente. Neste caso, nota-se que a função lúdica está orientada para o emissor, por meio da atitude lúdica, fazer pelo próprio prazer de fazer. Alguma coisa parecida acontece em relação à pintura, em movimentos artísticos que privilegiam o processo (a ação), como no caso da pintura gestual de Hans Hartung (1904) em sua obra T1956/7 (FIG.08) nela nota-se linhas ásperas e dramáticas de tinta preta pintadas sobre um fundo branco. Em seu traço formado por feixes de linhas, reunidos num padrão de cruz há força e energia. A imagem intensa e significativa de Hartung é um modelo da obra intuitiva e espontânea conhecida como Arte Informal. A característica marcante deste artista é a ocorrência de que, ao iniciar a obra com seu pincel e a tela vazia, não tinha concepção prévia do objeto acabado (PRESS, 1999, p.208). FIGURA 08- T 1956/7-Hans Hartung Fonte: PRESS, 1999, p.208. Ao representar personagens e situações cômicas, a função lúdica apresenta traços da função referencial; ao enfatizar o como representa, a função lúdica apresenta traços da função poética, por exemplo, no caso do desenho de humor; ao revelar o prazer de fazer do emissor, 44 apresenta traços da função expressiva, como, por exemplo, no caso do desenho infantil e de certos movimentos artísticos e, finalmente, quando visa provocar a participação do destinatário, no caso do livro-jogo, apresenta traços da função conativa (Camargo, 2005). Função conativa A ilustração terá função conativa quando dirigida para o destinatário, na tentativa de influenciar seu comportamento, através de procedimentos persuasivos ou normativos. A modalidade persuasiva está presente na publicidade, na propaganda comercial, social, política, religiosa e, sob a modalidade normativa, na sinalização do trânsito, em que sinais gráficos (como linhas e formas geométricas) e ícones que determinam ou proíbem ações. Em Tópicos Utópicos (BARBOSA, 1998, p.140-142), no artigo intitulado: A imagem verbalizada de Bárbara Kruger (FIG. 09) a autora analisa uma imagem da referida artista, esta imagem fez parte de 1 dos 25 outdoors espalhados na cidade de São Paulo e nos campi da USP no interior. Observamos que Kruger faz uso da função conativa ao empregar a linguagem da propaganda para denunciar o convencional das imagens estereotipadas e buscar uma mudança de comportamento das pessoas que olharem para esse outdoor. Através das frases “Mulheres não devem ficar em silêncio”, “Seu corpo é um campo de batalha” e da imagem de uma mulher com olhar vazio e um ferro de passar roupas nas mãos, “ela problematiza o discurso sobre a mulher e da mulher contrapondo-os como contrapõe figura e letra” (BARBOSA, 1998 p.40). FIGURA 09- Mulheres não deve ficar em silêncio - Bárbara Kruger Fonte: BARBOSA, 1998, p.141. 45 Função metalingüística A ilustração terá função metalingüística quando dirigida para o código, no caso, o código visual, ou seja, quando o referente da imagem for o código visual ou a ele diretamente relacionado, como circunstâncias de produção e recepção de mensagens visuais, citação de ilustrações etc. No entanto, para Martine Joly, esta é “uma função que a imagem não pode ter, a não ser muito raramente” (1996, p.58). Porém na própria história da arte há vários casos de metalinguagem como, por exemplo, o ovo que serve de modelo para um pintor representar um pássaro voando no quadro Perspicácia (1936), de Magritte. Nela o pintor pinta-se na sua ocupação de pintor (FIG.10). E, além disso, comunica a idéia do processo mental inerente a esse ofício artístico: o ovo constitui o motivo, contudo, traduzido pelo artista, a sua manifestação na tela toma a forma de um pássaro (PAQUET, 1995, p.24). FIGURA 10- Perspicácia, 1936- René Magritte. Fonte: PAQUET, 1995, p.24. M.C.Escher, produziu Desenhando-se (1948), obra bastante presente em livros didáticos e para-didáticos ilustrando o termo: metalinguagem, nela uma folha de papel está presa com quatro tachas a uma prancheta (FIG.11). A mão direita está desenhando a manga duma camisa. Ela não tem ainda aqui o trabalho acabado, mas um pouco mais à direita, uma mão esquerda que sai de dentro da manga, está já desenhada tão pormenorizadamente, que se levanta da superfície e, por sua vez, como se fosse uma parte viva do corpo, desenha a manga donde sai à mão direita (ESCHER, 1989, p.15 e 69). 46 FIGURA 11- Desenhando-se Fonte: ESCHER, 1989, p. 69. Na literatura infantil, os livros de imagem A patotinha da lagoa e Toninho no caminho, ambos de Canini (1990), também enfatizam a função metalingüística, ao brincar com linguagem visual: o primeiro, com a forma de representar uma lagoa; o segundo, com a sinalização de trânsito. Eva Furnari brinca freqüentemente com as convenções da linguagem visual, em especial dos quadrinhos, desde as Historinhas (histórias em quadrinhos sem palavras) publicadas na Folhinha de S. Paulo no início da década de 80 até os livros de imagem dos anos 90, como Por um fio (1992). Uma historinha (esse era o título com que eram publicadas) exemplifica esse gosto pelo discurso metalingüístico: um menino "conta prosa" para uma menina que mostra que tudo não passa de "papo furado". A fala do menino é representada por balões (elemento tradicional da linguagem dos quadrinhos) cada vez maiores e que são preenchidos com diversos sinais gráficos. Por fim, a menina fura o balão do menino, concretizando a metáfora "papo furado". Em Aviãozinho de Papel (2004) de Ricardo Azevedo a função metalingüística está presente no decorrer do livro. Nele observamos que o enredo do livro conta à história de uma folha de papel que traz uma mensagem escrita a outra pessoa. Assim, a metalinguagem se faz 47 presente por se tratar de um código verbal e visual, o próprio livro que trata de outro código verbal e visual, a folha de papel que se torna aviãozinho. Podemos assinalar ainda o desenho animado Reci, Reci, Reci, de Michaela Pavlátora , feito na República Tcheca (1991), vencedor de prêmios. Nele, os personagens estão em um café, e os diálogos dos personagens recebem uma interpretação ilustrativa, os balões que saem da boca dos mesmos são animados e, de forma sarcástica e até com um toque de humor, eles vão sendo delineados pela intenção da personagem, por exemplo, um casal que, na medida que dialogam os balões formam um quebra cabeça onde quase todas as peças se encaixam, exceto uma, causando uma briga entre o casal. Nestes exemplos: uma das historinhas de Eva Furnari, o desenho animado Reci, Reci, Reci e Aviãozinho de Papel de Ricardo Azevedo apresentam agregações de funções, no caso, associação das funções metalingüística, lúdica e narrativa, associação essa que não é um caso separado, pois, como já se disse, a associação de funções corresponde a uma característica fundamental do código visual. Função fática A ilustração terá função fática quando dirigida para o canal, ou seja, o suporte da imagem13, enfatizando seu papel no discurso visual. Essa função aparece com constância na poesia concreta, que mescla procedimentos lingüísticos e visuais, valorizando o espaço em branco da página como produtor de sentidos e a utilização de formas visuais, como no poema Girassol (FIG.12), Samir Meserani (2002 p.23). 13 Atualmente, encontramos livros de pano, de madeira, de metal e de plástico. Livros infláveis e impermeáveis para serem lidos na praia, na piscina ou durante o banho. Livros com som, com cheiro, com as mais variadas texturas e recursos táteis. Livros com aplique, envelopes e bolsos. Livros com origami (dobraduras de papel), com pop-ups (encaixes e dobraduras de papel formando “esculturas” instantâneas ao virar de página), livros-jogos, cd-livros e assim por diante (LINS, 2002 p.21). 48 FIGURA 12- Girassol - Samir Meserani Fonte: CAPARELLI [et. al.], 2002 p.23. No livro Layla, de Terezinha Alvarenga (1993), a ilustradora Angela Lago conduz o olhar do leitor para o suporte das ilustrações, através de relevos e reentrâncias produzida por impressão a seco, ou seja, sem tinta. Neste sentido de aplicação, ou questionamento, do suporte, são abundantes as manifestações no campo das artes visuais, por exemplo, no anteriormente citado outdoor Mulheres não devem ficar em silêncio (FIG.09) de Bárbara Kruger (1992), que problematiza a estereotipada imagem feminina idealizada pela mídia (Barbosa, 1998, p.140-142). No Fax de David Hockney (1989), nesta obra o inglês fez um desenho que foi dividido em 16 folhas, e elas foram enviadas por fax da Califórnia e montadas numa parede da Bienal (SANT’ANNA, CARVALHO, BITTENCOURT, 1999, p.32-33). Nas conhecidas vacas de fibra de vidro, em tamanhos naturais, assinadas por artistas locais das mais diversas gerações e linguagens, um projeto conhecido como Cow Parede. No Brasil o paulistano Rui Amaral, um dos pioneiros do grafite, na década de 1980, teve sua obra A Vaca Amarela do Bicudo exposta na avenida Paulista (Revista BRAVO, 2005. p.22-31). Em Desconstruções (2003), o mineiro de São Domingos do Prata, Marco Paulo Rolla (1967), desenhou nas paredes e sobrepôs cascas de 49 tinta, reorganizando através do suporte, as imagens com colagens (FIG.13) evocando uma idéia de resgate da própria consciência humana (Museu Chácara Dona Catarina- Praça Governador Valadares, Cataguases, MG, 19 de Julho de 2003). FIGURA 13- Desconstruções, 2003-Marco Paulo Rolla Fonte: Museu - Cataguases, MG, 19 de Julho de 2003. Os fotógrafos igualmente vêm experimentando as possibilidades semânticas do suporte e do espaço expositivo, ou museográfico. Assim, por exemplo, a obra Afinidades Eletivas, de Rosângela Rennó, o objeto é uma redoma de vidro com fotografias sobrepostas de dois casais, lado a lado, no dia de seus casamentos (FIG.14). À medida que o espectador se desloca, um jogo de reflexos “separa” os casais oficiais, heterossexuais, e dá origem a algumas subversões, estabelecendo ora mulher com mulher, ora homem com homem, ora promovendo uma verdadeira troca de casais. Uma leitura possível é ver aí os temas de transitoriedade do amor, das várias potencialidades do afeto, às vezes adversas às convenções sociais; e do voyeurismo, uma vez que a intervenção característica da poética do trabalho se origina de um ajuste do deslocamento do visitante com seu olhar dirigido e interessado (Revista BRAVO, out. 2005, p.34). 50 FIGURA 14- Afinidades Eletivas - Rosângela Rennó Fonte: Revista BRAVO, out. 2005, p.34. Pontuação A imagem terá função de pontuação quando dirigida para o texto no qual, ou junto ao qual, está inserida, marcando com sinais seu princípio, sua conclusão ou suas partes, nele indicando pausas ou destacando elementos. Na mídia impressa, elementos visuais como a cor, o tamanho e o tipo de letra reafirmam a identificação das distintas seções de um periódico, enquanto alguns ícones, sinais gráficos ou formas geométricas apontam o prolongamento ou o fim das matérias. No campo editorial, capitulares e vinhetas marcam o início ou o fim de partes ou capítulos de livros. Desde os manuscritos medievais, os papéis de pontuação exercidos por capitulares e motivos decorativos já existiam. Emanuel Araújo (1986), esclarece que o miniaturista ou rubricador desenhava letras maiúsculas e no interior delas usava ornamentos, em geral floreios, arabescos e volutas, de grande complexidade, também usava motivo decorativo no 51 percorrer do texto, os quais, de fato valiam como rubricas de fim de capítulo ou parágrafo, como nos papiros egípcios. A cor que predominava era o vermelho para marcar o destaque. O próprio vocábulo miniatura origina-se do termo hispânico vulgarizado pelo latim minium, ‘vermelhão, cinábrio’. O iluminador ia além do campo da decoração para o da ilustração propriamente dita, já predizendo a tarefa, a ele indicada de estudo e seleção de ilustrações apropriadas a determinado texto, própria do trabalho atual do iconógrafo. Nos próprios conceitos dos termos em latim já se acham subentendidos essas idéias: illuminare, ‘esclarecer, adornar, realçar, enriquecer, fazer sobressair, revelar, mostrar’, illuminatio, ‘ação de esclarecer’ e illuminator, ‘o que esclarece’ (ARAÚJO, 1986, p.482-483; itálicos do original citado em Camargo, 2005). A função de pontuação desempenhada pelas capitulares pode ser exemplificada em Circo Universal (CARVALHO e MOTA, 2000), nesse livro infantil, todos os textos são iniciados por capitulares não convencionais, cada letra que dá início ao título é representada por palhaços do circo. No texto que trata das chulas dos palhaços,14o título é: Hoje tem espetáculo (2000, p.30), nele observamos que a letra H é feita pela posição de dois palhaços de pé, lado a lado, com uma corda amarrando-os (FIG.15). FIGURA 15- Circo Universal - Ilustração de Demóstenes Vargas. Fonte: CARVALHO e MOTA, 2000, p.30. 14 Canção em forma de pergunta e resposta que os palhaços cantam, acompanhados pelas crianças. 52 Em Volta ao mundo em 52 histórias (PHILIP, MISTRY,1998), há no início de cada página, nos cantos direitos e esquerdos, vinhetas que medem cerca de 1cm, e provavelmente, por se tratar de vários contos de fadas, as vinhetas possuem algo de mágico, mistério; entre elas há flores, instrumentos musicais, borboletas, ursos, lâmpadas de djim15e outros. A função de pontuação, no caso destas vinhetas, se dá devido ao fato de que elas demarcam o conto, ou seja, por exemplo em Por que o mar tanto chora (1998, p.46-49) há uma pequena imagem de um beija-flor em todas as páginas que reproduzem o conto (FIG.16). Nos demais contos há outras vinhetas. FIGURA 16- Por que o mar tanto chora - Ilustração de Nilesh Mistry Fonte: PHILIP, 1998, p.46. Luís Camargo (2004) aponta um importante e significativo exemplo da função de pontuação, exercido pelas vinhetas, tal exemplo se encontra em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, nas edições da José Olympio. Esta vinheta, chamada de vinheta final, está depois da última palavra do monólogo de Riobaldo: Travessia, que é um símbolo do infinito, que como se sabe é o número oito deitado. A combinação entre travessia e infinito é muito poética, especialmente se retomarmos a primeira palavra do romance - Nonada -, que é a sua antítese (ROSA, 1976, p.460). Além disso, há um jogo de idéias ao substituir o consagrado FIM por um símbolo de não-fim, infinito, essa agregação torna-se mais expressiva ainda se observamos uma afirmação de Guimarães Rosa: “Meus livros são aventuras; para mim, são 15 Espécie de diabo da mitologia árabe. 53 minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta” (Camargo, 2004). Muitas vezes, os elementos de pontuação são convencionais, sinais gráficos, formas geométricas, motivos vegetais ou florais, sem uma conexão semântica com o texto, ou seja, sem representar ou sugerir o assunto do texto, esta função pode ser agregada à função fática. Contudo, resumimos que a ilustração pode desempenhar as seguintes funções: função representativa, quando copia a aparência do ser ao qual se refere; função descritiva, quando detalha a aparência do ser representado; função narrativa, quando localiza o ser representado em mudança, através de transformações ou ações, dando a entender ou especificando uma história, uma cena ou uma ação; função simbólica, quando assinala para um significado adicionado ao seu referente e, nesse sentido, secundário; função expressiva, quando sugere sentimentos e valores do produtor da imagem, assim como quando sugere os sentimentos e valores do ser representado; função estética, quando dirigida para a forma da mensagem visual, ou seja, quando ressalta sua configuração visual; função lúdica, quando ressalta o jogo, o humor, seja se referindo ao assunto, à forma da mensagem, ao destinatário ou ao emissor; função conativa, quando dirigida para o destinatário, pretendendo influenciar seu comportamento, através de artifícios persuasivos ou normativos; função metalingüística, quando o referente da ilustração é o código visual ou a ele diretamente relacionado, como situações de produção e recepção de imagens visuais, citação de imagens etc.; função fática, quando dirigida para o canal, ou seja, o suporte da ilustração, ressaltando seu papel no discurso visual; e, por fim, a função de pontuação, quando dirigida para o texto no qual - ou junto ao qual - está inserida, sinalizando seu início, seu fim ou suas partes, nele designando pausas ou destacando elementos. Deste modo, observa-se que muito mais do que apenas ornar ou elucidar um texto, a ilustração pode representar, descrever, narrar, simbolizar, expressar, brincar, persuadir, normatizar, pontuar, além de enfatizar sua própria configuração, chamar atenção para o seu suporte ou para o código visual. Paralelamente ao que acontece no código verbal, essas diferentes funções não resultam do privilégio exclusivo de uma determinada função, mas de diferentes hierarquizações dessas funções. As exclusividades dos códigos visual e verbal não impedem que eles dividam certos traços, como indicam a convergência de funções exercidas pela ilustração e pelo texto, 54 convergência essa já apontada ao longo deste capítulo, mas que se torna importante sintetizar: as funções representativa, descritiva e narrativa são características da função referencial; a função simbólica pode expor traços das funções referencial e expressiva; a função estética corresponde à função poética , denominada função estética por Mukarovsky; a função lúdica pode proporcionar traços das funções poética, referencial, conativa ou expressiva; a função de pontuação, além de adequar traços da função fática, corresponde a um recurso lingüístico fundamental, como seu nome indica. Além disso, as funções expressiva, conativa, metalingüística e fática, por meio de sua homonímia com as funções do código verbal, sinalizam sua homologia semântica (CAMARGO, 2004). I.3- A busca por um conceito de livro infantil Após observarmos as funções das linguagens, percorrermos as etapas da história da literatura infantil no Brasil e ressalvarmos sua significativa importância neste contexto; resta-nos, procurar conceituar a literatura e o livro infantil que são os objetos de nossa reflexão. Inicialmente temos a idéia de que todas as pessoas já sabem conceituar a literatura infantil. Mas antes de adentrarmos ao conceito gostaríamos de formular alguns questionamentos: é correto engessar a literatura em “literatura para crianças”, “literatura para adultos”, “literatura para idosos”, “literatura para negros” e assim por diante? É plausível dizer que um livro determina seu público? É coerente afirmar que por possuir o adjetivo “infantil”, tal literatura é condizente com as necessidades psicolinguísticas da criança? Considerando estas indagações observamos que uma pergunta maior se formula: quem é o leitor de literatura infantil? Para Cademartori (1995, p.82) leitor e texto ligam-se na medida em que o texto se apresenta como uma organização simbólica com uma função representativa que se cumpre no leitor. E este leitor é um sujeito permeado de vazios constitutivos que apenas encontram preenchimento por meio da sua possibilidade imaginativa. 55 Desta forma percebemos que se faz significativo pensar no leitor da literatura infantil e buscar mais informações sobre ele, pois é somente através dele que os textos, de qualquer gênero, ganham sentidos. Para tal reflexão buscamos, entre outros, a obra do teórico da literatura Antoine Compagnon (1999, p.142-158). Ele nos aponta possíveis significados sobre o leitor e conseqüentemente nos leva a importantes reflexões. Inicialmente o autor nos esclarece que a discussão levantada quer se ligue ao leitor ou ao texto, já é bastante comum ao meio dos estudos literários. E baseando-se nas idéias de Proust, Compagnon afirma que a leitura se liga diretamente com a empatia, projeção, identificação do leitor e que o livro controla muito pouco o seu leitor, pois este ao ler compreende mais a si mesmo do que ao próprio livro. O autor diz ainda que existe uma liberdade para o leitor “ler” o texto, e a medida desta liberdade quem determina é o próprio leitor. Além disso, Compagnon aponta que a estética da recepção contribui para pensarmos o modo como a obra afeta o leitor. Para essa teoria, o leitor apresenta-se ao texto com suas normas e valores e esses vão sendo modificados pela experiência da leitura. Ao ler o leitor reforma e reinterpreta o que já leu no decorrer do texto e de todos os outros textos já lidos em sua vida, garantindo uma significação totalizante à sua experiência. Em vista disso, nos remetemos para a significação da experiência, ou seja, para o sentido que atribuímos a um texto ao lermos, algo que já preexiste à leitura e se faz de forma empática, pois, o texto instrui e o leitor constrói. Algo importante a ser também destacado na busca de significações para a literatura infantil e seu público é o conceito de “leitor implícito” e “autor implícito”, este corresponde a uma “voz” do autor que tenta controlar o leitor, mas o leitor é livre para seguir ou não esta “voz” que porta as idéias do autor. Já “leitor implícito” é uma construção textual que corresponde às instruções do “autor implícito” junto ao texto, isto é, ele é um receptor prédefinido. Mas se difere do “leitor real”, pois enquanto o “leitor implícito” propõe um modelo para se seguido, o “leitor real” compõe sentidos ao texto ora seguindo o que foi proposto pelo “autor implícito”, ora completando lacunas, ora buscando outros caminhos não previstos (COMPAGNON, 1999, p.150-151). 56 Se pensarmos nas idéias acima e relacionarmos com a literatura infantil, poderíamos supor que o autor implícito16 do livro infantil compõe seu leitor implícito17, que seria a criança dotada de uma cognição suficiente para entender e interpretar o livro, mas ela não corresponde ao “leitor real”, e quem dá sentido ao texto não é o “leitor implícito” e sim o “leitor real”. Logo se entende que o livro inicialmente se dirige à criança, porém esse “controle” é impraticável, pois nunca se sabe quem irá significar um texto; pode ser uma criança, um adulto, um idoso e assim por diante. Outro aspecto se torna relevante abordar: o repertório do leitor. Para Iser (citado em COMPAGNON, 1999, p.152), este repertório corresponde à bagagem do leitor, isto é ao conjunto de histórias, conceitos, valores, normas sociais, cultura e tudo mais que o leitor traz consigo ao ler. Este repertório, no ato da leitura, é reorganizado, revisto e desfamiliarizado pelo texto. Entendemos então que, para que isso aconteça o leitor necessita, no mínimo, uma cognição suficiente capaz de acompanhar o texto e significá-lo. E aí se dá mais uma importante idéia em relação ao livro infantil; devido às fases de desenvolvimento psicolingüístico da criança, possivelmente, ela ainda não é capaz de ler e atribuir sentidos a um texto dito “para adultos”. Mas o adulto pode e consegue atribuir sentidos ao texto tido como “infantil”. Sendo assim: o adjetivo “infantil” se refere aos livros que adultos e crianças podem ler. Ao passo que os demais gêneros não podem ser compartilhados por um público tão vasto. Desta forma, tendo em vista as idéias expostas, podemos retomar as indagações feitas acima afirmando que o termo “literatura infantil” é possível de ser usado na medida em que pensemos que ele pode trazer significados a um variado tipo de público, tanto o infantil, quanto o adulto. Sendo assim o “livro infantil” não determina seu público, pois este foge ao conceito de “leitor implícito” e quem o lê é o “leitor real”. Quaisquer textos literários, inclusive os livros infantis, passam pelo processo de produzir uma comunicação adicional e não prevista (STIERLE, 1979, p.142) pelo autor. Desta forma os livros infantis 16 O conceito de autor implícito que adotamos nessa pesquisa, diz respeito a uma tese segundo a qual um autor nunca se retira totalmente de sua obra, pois deixa nela um substituto que a controla em sua ausência, este substituto é o autor implícito (COMPAGNON, 1999, p.150). 17 O leitor implícito é uma construção textual, percebida como uma imposição pelo leitor real. Por se tratar de uma construção, ele não é identificável com nenhum leitor real. O leitor implícito propõe um modelo ao leitor real, define um ponto de vista que permite ao leitor real compor o sentido do texto (COMPAGNON, 1999, p.151). 57 podem se adequar a qualquer leitor, de qualquer idade desde que esteja disposto a atribuirlhes significados. A literatura infantil se configura então como um conjunto de manifestações e de atividade que tem como a base a palavra artística e/ ou a ilustração artística que interessa à criança, ou a quaisquer outros receptores. O meio de interesse, provocado no receptor, está no aspecto de liberdade e na aceitação voluntária de elementos que, também, usará livremente para a construção de sua própria consciência. Contudo, é plausível dizer que o livro infantil, através de sua linguagem elaborada, e de seu suporte físico18 é aquele que se ajusta melhor às necessidades psicolingüísticas da criança, pois ele é o mais adequado a fazê-la conhecer as normas ou a poética advinda do gênero, pode levá-la ainda a fazer uma relação implícita com outras leituras conhecidas do contexto histórico-literário e estabelecer comparações e identificações entre ficção e realidade. Ao passo que em obras que não são “infantis” esses apontamentos não seriam possíveis devido a formação intelectual e cognitiva da criança. Jauss pondera que: (...) obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações ou indicações implícitas, predispõe seu público para recebê-la de uma maneira bastante definida. Ela desperta a lembrança do já lido, enseja logo de início expectativas quanto a “meio e fim”, conduz o leitor a determinada postura emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral da compreensão vinculado, ao qual se pode, então – e não antes disso - , colocar a questão acerca da de subjetividade da interpretação e do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores (JAUSS, 1994, p.28). Observamos com desconfiança os conceitos “literatura infantil” e “livro infantil”, mas com o apoio da estética da recepção, exaltamos a importância do leitor na reelaboração do significado do texto e destacamos a afetiva participação do mesmo na imputação de significados durante o momento de leitura. Esta orientação serviu para constatar que os 18 O livro infantil é um produto que possui uma materialidade peculiar. Supomos que ele, em geral, se diferencia dos outros livros, nas seguintes características: possui um número de páginas reduzido, não segue um tamanho padrão, possui muitas ilustrações e uma grande ligação com a oralidade, pois ele é também um objeto para ser lido para outrem. Por ser dirigido ao público infantil, supõe-se que as crianças podem interagir com o livro como se fosse um brinquedo, por isso, muitas vezes, eles são mais resistentes, tanto no material, quanto no acabamento. 58 referidos termos podem e devem ser usados, mas com a consciência que o sujeito receptor não tem idade, ou que todos os leitores, romanticamente, trazem uma criança dentro de si. Nesse capítulo procuramos apontar a história do livro no Brasil até a década de 1990, as funções da linguagem e da ilustração e os conceitos de livro infantil e leitor. No próximo capítulo, suscitamos análises relativas à intertextualidade. Pois entendemos que as linguagens são construídas a partir de outras linguagens, em diálogo. Para ampliarmos a reflexão escolhemos dois livros infantis. O primeiro: De Morte! (1992) e o segundo: O Menino mais Bonito do Mundo (1994). Ambos serão interpretados à luz da intertextualidade. 59 Capítulo II INTERPRETANDO OS LIVROS INFANTIS À LUZ DA INTERTEXTUALIDADE 60 No presente capítulo procuramos, inicialmente, conceituar teoricamente a intertextualidade, pois, parafraseando Bakhtin, a língua em sua totalidade, viva e concreta, tem a propriedade de ser dialógica. A linguagem verbal e ilustrativa na literatura infantil tem possibilidades tão grandes de significações que impede o esgotamento do texto em si mesmo. Desta forma os textos e suas linguagens se invadem e se interpenetram. Fazem do conceito de intertextualidade algo importante para a compreensão da literatura (PAULINO, 2005, p.20- 21). Em seguida, examinamos esse dialogismo à luz das ilustrações e narrativas em De Morte! (1992) e O Menino mais Bonito do Mundo (1994). Em De Morte! (1992) narra-se uma história de tradição oral. Essa história é sobre um Velho, um (anti)herói que através de suas artimanhas consegue enganar a Morte e o Diabo. A escritora e ilustradora desse livro, Angela Lago, traça um explícito diálogo com as obras do pintor renascentista Dürer, ao reproduzir as imagens do artista e ligá-las (ou não) com a narrativa. O Menino mais Bonito do Mundo (1994) escrito por Ziraldo e ilustrado por Apoena Horta e Sami Mattar é um livro infantil que nos conta a história de um menino chamado Adão, que acorda de seu sono. Os elementos da natureza sempre se comunicam com ele e exaltam a sua beleza. O tempo passa e ele se torna homem, mas sente um “vazio”, até que ao acordar ele ouve a voz de uma mulher. Esse livro, tal qual o primeiro, nos aponta para o dialogismo com as artes plásticas. Ele traz uma reelaboração da obra de Botticelli. Além disso, dialoga com o texto bíblico Gênese. Os presentes livros analisados nos convidam a refletir sobre a alteridade, o desejo, a carnavalização, o jogo, as artes plásticas, a vida e a morte. Retomando os assuntos acima estabelecidos, observamos a necessidade de caracterizar o objeto ‘livro infantil’ como um objeto literário e artístico, pois ele possui um potencial interpretativo que está na sua materialidade, e esse é um dos objetivos desse trabalho, estudar como a materialidade do livro infantil pode ser construída de forma a ampliar seu potencial artístico e literário. 61 II. 1- A intertextualidade nos livros infantis As produções de livros infantis que são utilizadas nessa pesquisa possuem em comum o fato de todas trazerem marcas de intertextualidades, apresentarem entrecruzamentos de vozes, algumas de forma explícitas como em O Menino Mais Bonito do Mundo (ZIRALDO, 1994), outra de forma mais alusiva como em O Caminho do Caracol (ALEXANDRINO, 1993). A intertextualidade traz consigo um jogo textual que trabalha com a memória, com o conhecimento de mundo, com a questão da autoria e também com as vozes discursivas. Tais livros infantis que serão interpretados nos tópicos a seguir apresentam, principalmente a intertextualidade nas suas ilustrações, ou seja, elas se ligam a outras imagens advindas das artes plásticas. A elaboração de imagens a partir de outras tem suas raízes no século XV, onde começou a ficar mais evidente este uso de imagens (BARBOSA, 1987, p.2). Ana Mae Barbosa (1987) classifica esta intertextualidade, ou esta imagem de segunda geração, em pelo menos três fases: a apropriação, a reelaboração e a citação. Barbosa comenta que a apropriação se configura quando o artista inclui imagens já produzidas em sua obra. A reelaboração é explícita, o artista apenas modifica alguns aspectos da obra original, e por fim, a citação, quando a obra remete a outra. Inicialmente devemos lembrar que a própria construção de significado, que se dá no jogo de olhares entre texto e receptor já produz um ato intertextual, pois a idéia de uma pessoa se forma sobre a influência de inúmeras outras e do contexto-sócio cultural em que está inserida. Desta forma, por trás da interpretação do leitor de livros infantis não há somente uma “voz” do seu eu, mas sim uma voz de uma humanidade, e tais vozes produziram ecos que chegaram até nós. Assim temos a idéia de que é quase impossível se produzir algo novo, não há textos absolutamente originais. Logo compreendemos que tanto o autor, ilustrador quanto o leitor possuem, olhares impregnados de outros olhares e são inevitavelmente influenciados pelo contexto sóciopolítico-cultural. Ou seja, há uma relação existente entre vários textos de diversas naturezas e contextos, produzindo assim uma intertextualidade (PAULINO & WALTY, 1994, p.30). 62 Ao estudar um romance de Dostoiévsky19, Mikhail Bakhtin caracterizou-o como moderno e dialógico, um tipo de texto em que diversas vozes da sociedade estão presentes e se entrecruzam. Destaca, ainda Bakhtin a inter-relação dialogizada e a hibridização (1988, p.100-110). No caso do livro infantil podemos pensar, apoiados na idéia de Bakhtin, que a hibridização dialogizada é como um sistema de combinação que busca apresentar a ilustração ou um texto escrito com a ajuda de outra ilustração ou um texto escrito e, dessa forma, construir uma imagem viva desta outra linguagem. Quanto mais ampla e profundamente se aplicar no livro infantil o procedimento da hibridização, com várias linguagens, e não apenas uma, tanto mais rica se torna a própria obra que se transforma. Destaca, ainda, Bakhtin, a que a consciência lingüística que ilumina a recriação estabelece para o estilo recriado uma importância e uma significação novas. A linguagem intertextualizada aparece com ressonâncias particulares: alguns elementos são destacados, outros deixados de lado. O dialogismo bakhtiniano consiste na relação interdiscursiva que se cria em todo o enunciado. O princípio da intertextualidade, que vem conferir ao caráter dialógico um sentido mais amplo, já que este conceito define o texto como sendo um mosaico de citações, absorvidas e transformadas. O processo de se apropriar, por exemplo, em Cânticos dos Cânticos (LAGO, 1992) do texto bíblico, não é somente o diálogo das forças sociais, mas é também o diálogo dos tempos; de uma diversidade e de linguagens diversas. Na década de 60, Júlia Kristeva usou o termo, intertextualidade, para conceituar o “mosaico de citações” que constitui, transforma e absorve um texto (PAULINO, 2005, p.21). Para ela, o processo de leitura realiza-se como ato de colher, de tomar, de reconhecer traços. Ler passa a ser um ato de apropriação. Um livro remete a outros livros, aos quais, num procedimento de somatória, permite uma nova forma de ser, ao elaborar sua própria significação. Ao associarmos a idéia da autora com as intertextualidades presentes no livro infantil, intuímos que a linguagem ilustrativa que foi intertextualizada aparece como um diálogo de textos: os desenhos se fazem em relação a um outro, proveniente de um outro 19 Mikhail Bakthin, formalista russo, publicou em seu país, um estudo Problemas da obra de Dostoiévsky, que foi traduzido no Brasil por Paulo Bezerra em 1981 (SANT’ANNA, 2000, p.9). 63 corpus, de maneira que toda parte intertextualizada está duplamente orientada: para o ato de evocação de uma outra imagem e para o ato de transformação desta imagem. Kristeva apresenta o campo da linguagem como espaço que se orienta em três direções: o autor, o leitor e os textos externos. Embora estabeleça essas três dimensões, Kristeva aproxima no mesmo sentido horizontal da elaboração textual autor e o leitor; o eixo vertical é o espaço onde o texto, realiza seu encontro com outros textos, onde o texto se orienta em direção ao corpus literário, onde se dá o cruzamento das palavras e/ou das ilustrações (KRISTEVA, 1978, p.120-121). O autor francês Antoine Compagnon, escreveu um livro denominado O Trabalho da Citação (1996), neste estudo ele explora uma forma de intertextualidade que se torna operatória para a análise das intertextualidades presentes nos livros infantis. Inicialmente o estudioso afirma que o fragmento escolhido de um texto para fazer parte de outro texto converte-se e deixa de ser fragmento para incorporar ao discurso. Assim podemos tomar como exemplo o livro infantil “De Morte!” de Angela Lago (1992), em uma das páginas centrais há na ilustração um quadro de um rinoceronte, ou seja, um fragmento de imagem retirada das pinturas de Dürer, pintor da renascença, porém, ao ser migrado para as páginas do livro há uma amplitude deste significante. Desta forma ele deixa de ser um fragmento para tornar-se um todo significativo. A citação trabalhada pelo autor, como modalidade específica da intertextualidade, permite pensar o entrelaçamento de textos num outro, as interpelações que os textos se fazem mutuamente e o posicionamento dos sujeitos envolvidos no ato da leitura. As citações encontradas nos livros infantis, muitas vezes, são uma operação de corte e de transposição; onde se opera uma repetição do já escrito ou ilustrado e uma reinserção num novo contexto. Para o autor a citação não pode ser entendida como simples fenômeno de imitação, mas acarreta, inevitavelmente, ao reproduzir-se, uma perturbação do sentido. E se essa integração poderia funcionar como identificação, o que se verifica é, antes, uma formatação da identidade. Além disso, percebemos que toda intertextualidade, no caso a citação na ilustração, é de certa forma uma metáfora, pois esta apresenta uma idéia sobre o signo de outra idéia (COMPAGNON, 1996, p.15). Sendo assim em “O Menino mais Bonito do Mundo” de Ziraldo (1994), há Botticelli sobre os signos de Ziraldo, pois no livro apropria-se de uma 64 imagem de Botticelli, e a usa para uma ilustração de um livro infantil de Ziraldo. Desta forma sobrecarrega a ilustração de sentidos, sobrepõe ao texto uma nova pontuação, feitas ao ritmo e ao conhecimento de mundo do receptor. Em se tratando do receptor, no caso o leitor ideal, é ele que “põe em movimento” (COMPAGNON, 1996, p.20) o processo de intertextualidade. A identificação da intertextualidade depende da extensão de leitura que se tenha da obra precedente. Desta forma observamos que quanto mais leituras o receptor tiver, mais será possível perceber a presença de uns textos em outros e maior será a compreensão da leitura. A maioria dos leitores brasileiros, que não estão em contato com arte, teriam condições de identificar uma citação em uma obra? As relações intertextuais estão a evidenciar que o livro infantil literário não se esgota em si mesmo: pluraliza seu espaço; multiplica-se em interfaces; projeta-se em outros textos. A intertextualidade confirmada na literatura pelos temas retomados, eternizando e dando nova feição aos mitos e às emoções humanas, comprova que os textos se completam e se inter-relacionam. A presente abordagem permite pensar o livro infantil nas relações que ele mantém com os que o precedem, mas ainda como escrita ou ilustração que se revela reescrita ou redesenhada. A intertextualidade presente nos livros analisados é voz que dialoga com outros textos, e tais textos apresentam eco das vozes de seu tempo, da história de um grupo social, de seus valores, crenças, preconceitos, medos e esperanças. II. 2-De morte! e de vida: a inovação e o lúdico Angela Lago20, escritora mineira, muito premiada no Brasil e no exterior, traz através de seu livro De morte! escrito em 1992 e publicado pela Editora RHJ, uma lúdica e 20 Angela Lago nasceu em Belo Horizonte, no ano de 1945. Morou na Venezuela e na Escócia. Há vinte anos vem escrevendo e ilustrando seus próprios livros para criança, além de ilustrar também livros para outros escritores. Expôs seus trabalhos em muitos países e já publicou até na China. Ganhou prêmios na França, Espanha, Eslováquia, Japão e Brasil. Dentre as principais obras literárias destacamos: Outra Vez – Editora Miguilim. Prêmio “O Melhor Livro de Imagem”, 1984 pela FNLII e pela APCA; Prêmio de Ilustração Bienal do Livro, 1986 pela Câmara Brasileira do Livro/ Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Chiquita Bacana e outras Pequetitas – Editora Lê; O Cântico dos Cânticos – Edições Paulinas. Prêmio “O Melhor Livro de Imagem”, 1986, pela FNLII e Prêmio The Noma Concours, 1986, Asian Cultural Center for Unesco, Japão. 65 apaixonada declaração de amor à vida. A autora anuncia na capa do livro que nele debela um conto meio pagão do folclore cristão. E narra a história de um velho hilário e esperto que, ao receber, do menino Jesus, como recompensa o direito de fazer três pedidos, acaba logrando o Diabo e a Morte de uma maneira engraçada e divertida. O Velho, com muita conversa, consegue convencer a Morte a sentar em sua cama e ali ela fica grudada. Para o Diabo, ele oferece uma cachaça e manda-o sentar em uma cadeira, mas o Diabo, assim como a Morte, também fica grudado. Vivendo, ambos, a mercê do “Velho de Morte”. A história finaliza quando o velho cansado de viver e de tantas estripulias resolve ir negociar com S. Pedro, a sua entrada no Céu, mas “como o Diabo não queria ver o homem nem pintado de ouro, São Pedro não teve jeito, senão deixar o velho entrar” (1992, p.26). Esta é uma obra rara, pois a autora consegue lidar com um tema “sério” como a morte, com muita ludicidade e humor. Em um livro intitulado Contos para Enganar a Morte, de Ricardo Azevedo (2005), o autor finaliza dizendo que segundo um ditado popular, não é preciso se preocupar com a morte, pois, ela é garantida a todos nós e “ninguém vai ser bobo de querer roubá-la da gente” (p.62). E acrescenta que o importante é cuidar da vida, que é boa, bela, rica, preciosa e inesperada, porém muito frágil, “ela, sim, pode ser roubada” (p.62). Além disso, se buscarmos ditos relacionados à morte advindos da sabedoria popular, temos: “partiu dessa para melhor, foi para o país dos pés juntos, abotoou o paletó, bateu as botas, foi ao encontro de Jesus, bateu a caçoleta”, além disso, dentro do ambiente hospitalar, contexto onde vida e morte estão sempre presentes, se diz que “o paciente não morre: expira, se perde na mesa, vai a óbito, é paciente com síndrome de JEC (Jesus está chamando)” (MARANHÃO, 1987, p.11). Essas são citações folclóricas, eufemismos, metáforas ligadas a viagens usadas para tratar de um tema que é pouco comum na literatura infantil: a morte. A morte é a única circunstância que não temos como impedir em nossas vidas, um dia ela ocorrerá fatalmente. Portanto, não falar sobre o assunto para as crianças, poderá dificultar o seu entendimento sobre o ciclo da vida. Rosemberg (1985, p.65-66) também condena a ausência do tema morte na literatura infantil brasileira, quando afirma ser mais comum encontrá-la na literatura infanto-juvenil e 66 a serviço da trama, aquela que elimina personagens indesejáveis, ou a morte como castigo e punição. Porém, a morte necessária, visceral, dramática e angustiante, praticamente inexiste (...). Eu faço de conta que isto não me interessa e você faz de conta que isto não lhe interessa. Deste modo, problemas existenciais fundamentais – como a vida e a morte – não são discutidos (p.64-65). Em um Congresso de Leitura no Brasil, Cláudia Carvalho, (1999), aborda o tema: A Presença da morte na literatura infantil do Brasil, analisando uma contradição, ela questiona que em uma sociedade onde o acesso à informação está cada vez mais facilitado, as crianças, desde cedo, já possuem noções do processo de reprodução, sexualidade etc, mas quando sentem a falta de alguém que morreu, ou questionam sobre a morte, recebem uma resposta vazia, carregada de falsidades, a justificativa da ausência é conduzida para uma “viagem longa, para um lugar maravilhoso” (CARVALHO, 1999, p.5), essa postura acaba sendo um contra-senso. Trata-se, segundo Azevedo (2005, p.58), de um grave erro considerar a morte como um assunto inadequado para as crianças, porém o autor deixa claro que falar de morte com crianças não significa entrar em altas especulações ideológicas, abstratas e metafísicas. Mas que o assunto seja presente, através de textos, imagens, simbolicamente na vida da criança. De morte! é um livro que pretende ser revolucionário. Neste trabalho, Angela Lago quebra um grande número de normas, até mesmo o da leitura, e seduz o leitor a descobrir novas configurações de leitura. Por meio dessa brincadeira a autora/ilustradora sobrepõe à narrativa principal, histórias paralelas, citações antropofágicas e outros jogos que subvertem desde ilustrações tradicionais, como o Diabo e a Morte, até a narrativa tradicional, ao unir as linguagens escrita e ilustrativa. Tal subversão, tão enfatizada por André Melo Mendes (2007), já está presente no título De morte! acompanhado da explanação: “Um conto meio pagão do folclore cristão recontado por Angela Lago e com uma leve mãozinha de Albrecht Dürer”. A primeira letra em De morte! não é da mesma família do restante do texto: é um tipo de letra bastarda, mas que não possui conotações negativas; ao mesmo tempo, é mais delicada e forma com a frase um sentido. Nesse caso, tem-se a idéia de que não trata de letras capitulares, pois estas 67 são mais empregadas somente no início de um capítulo, às vezes no início da frase, mas continuamente correspondendo a um padrão, o que não é o caso (FIG.17). A artista ousa também promover uma influência mútua, literal entre o texto impresso e o gráfico, na capa há um pássaro segurando um lápis pelo bico e ele “desenha” o título, a mãozinha da letra A segura o T de Albrecht Dürer, um ratinho usa a tesoura para cortar um sinal de pontuação e formar uma exclamação. Essa hibridação de linguagens apresenta abundantes probabilidades de leitura. FIGURA 17-Ilustração de Angela Lago Fonte: LAGO, 1992. Além disso, a capa nos apresenta dois importantes personagens: a Morte e o Diabo, esse parece que está saindo correndo da capa, porém deixou meio desequilibrada a letra “R” do nome de “Dürer”, além de colocar a língua para fora. A morte está bem perto da palavra “Morte”. Quanto ao texto presente na capa poderemos dizer que há uma indução à dúvida, a autora não aponta com clareza, se o título é apenas De morte! ou se é De morte!Um conto 68 meio pagão do folclore cristão recontado por Angela Lago e com uma leve mãozinha de Dürer. Logo, pressupõe-se que o leitor pode ser estimulado a escolher o título do livro. Há também um paradoxo lúdico em dizer que o conto é meio pagão do folclore cristão. O conto remete-se à tradição oral, e nele há elementos cristãos como São Pedro, o Menino Jesus. E de meio pagão temos a Morte personificada, o próprio Diabo e talvez o Velho com suas peculiares características, que ninguém sabe se foi ou não batizado. Tem-se também um cruzamento de temporalidades distantes ao mencionar que o texto foi recontado por Angela Lago em 1996, mas obteve uma ajuda de Dürer que viveu o auge da sua pintura no final da Idade Média (1515), com seu estilo heterogêneo, uma mistura de estilo gótico, renascentista e barroco. Além disso, a “mão”, em sentido denotativo representa um motivo que Dürer desenhou com muita freqüência e que tinha muita importância para o artista. E em sentido conotativo, na linguagem popular, diz-se que ele deu uma ajuda à escritora e ilustradora. Há nesse jogo irônico uma espécie de hibridação entre a vida e a morte, a arte do passado e a arte do presente, entre o sagrado e o profano, o cristão e o pagão e entre a palavra e a ilustração. A artista diagrama o livro sem se preocupar com as normas tradicionais, as páginas do presente livro analisado não são numeradas, a formatação do texto impresso varia durante a narrativa: em algumas páginas, o texto está à esquerda, em outras, à direita, ou então, justificado (ao centro) e o texto acompanha a imagem que penetra no próprio texto. Após a capa, temos na próxima folha novamente a figura do diabo, igual à da capa, na mesma posição, mas agora ele está sozinho, é o protagonista da cena. Em O Novo Dicionário Eletrônico Aurélio, Século XXI o Diabo é descrito como o chefe dos demônios, geralmente representado, na tradição popular, por um ser meio homem, meio cabra, de orelhas pontudas, chifres, asas, braços, e com a ponta da cauda e as patas bifurcadas. Já Cirlot (1984, p. 207) caracteriza o Diabo como um ser com cabeça e patas de bode, seios e braços de mulher, um ser relacionado ao instintivo, ao desejo em todas as formas passionais, às artes mágicas, à desordem, à perversão, em outro livro de símbolos (TRESIDDER 2003, p.112-113), o “dito-cujo” é distinguido por ser o adversário da bondade, aquele que personifica a escuridão, é a tentação, o mal, a fraude, sobretudo no contexto moral das grandes religiões monoteístas. O Diabo apresentado no livro de Angela 69 Lago, ao contrário de transmitir medo ou algum tipo de erotismo, é uma composição de bobo da corte com pé e rabo de boi, contrariando a tradição do pé de cabra e do rabo afilado na ponta, em forma de seta. Ele possui poucas marcas de perversidade, algumas delas podem ser encontradas na sua expressão mal-humorada e nos ratos que brotam dele. O livro é dedicado a uma pessoa chamada Fernandinha, a santinha da família. Tal dedicatória é colocada no canto esquerdo da folha e sobre as palavras está sentado um simpático anjinho que sorri brejeiramente para o leitor, esse anjinho, reaparecerá mais algumas vezes no decorrer do livro, sendo um personagem plano, porém bastante significativo, pois é ele que se senta sobre a palavra Fim, ao final do livro (FIG.18). A B FIGURA 18-Ilustração de Angela Lago a) Início do livro b) Final do livro Fonte: LAGO,1992. Após, temos um interessante e engraçado jogo de dobrar e desdobrar a página. Novamente tem-se a presença da morte, com sua capa, sua foice e um sorriso bem grande. Ao desdobrar uma parte da página, uma surpresa acontece, a morte abre sua capa, se mostra nuazinha ao leitor (FIG. 07). Uma caveira com ossos longos, ao estilo El Greco, porém feminina e elegante. 70 As ilustrações deste livro são meio ocultas, escuras, um pouco confusas21, complexas não simplesmente na sua composição física, mas também com relação à retórica que possuem, na relação com as outras imagens e ainda nas relações que formam com o texto impresso, demandando dos leitores, um ir além de uma simples leitura (MELO, 2007, p.39). Nota-se que a Morte é caracterizada com seu manto negro, ossos e foice, porém, ela não transmite medo, mas sim, muito mais compaixão. Suas pernas de mulher entram em embate com a representação tradicional e acarretam uma judiciosa feminilidade e, por proximidade, uma humanidade . Em meio a essa dobradura, há uma mensagem: “Fique cheio de piolho quem esse livro roubar. E com remela no olho. O dono vai assinar:..................”. Assim o dono do livro, também entra na brincadeira de forma a ser também um personagem com poderes sobrenaturais e lança uma espécie de maldição que lembra as trovas ditas por bruxas nos contos de tradição oral. “Um belo dia...”, assim se inicia a história, trazendo a nós, mais uma vez a presença dos contos orais, tal início de texto é uma forma de transporte a um mundo encantado, arquetípico e uma forma de nos situarmos num tempo e num espaço imaginário. Esse início é bastante interessante, pois nos conta que o Menino Jesus desceu do céu para brincar na terra e trouxe também São Pedro como acompanhante.. Um importante dado que causa um certo estranhamento é o objetivo dessa vinda do Menino Jesus à Terra. Pois as personalidades admiráveis que vivem no Céu, especialmente aquelas como o Menino Jesus, deveriam, segundo a crença popular, estar trabalhando pela nossa salvação em vez de ficarem passeando pela Terra atrás de diversão (MENDES, 2007, p.35). Mas segundo a Angela Lago, as santidades também têm o direito de se divertir; aliás, divertir parece ser um atributo divino. Mas, se pensarmos metaforicamente, nos faremos a seguinte pergunta: porque o Menino Jesus não se diverte no céu, entre eles mesmos? Por que vêm aqui para a Terra “se misturar” com a “gente de baixo? Outro acontecimento interessante e desmistificador: quando veio à Terra, o Menino Jesus não procura o Papa Bento XVI, nem um cardeal, nem um pastor evangélico ou demais figuras tidas como “santas”(MENDES, 2007,p.35); escolhe um “Zé Ninguém” 21 Para BACHELARD, imagens muito claras tornam-se idéias comuns. Bloqueiam a imaginação, dão a sensação de que tudo está terminado (2000, p.56). 71 como o velho da história para brincar. Por qual motivo o Filho de Deus se alegra jogando bola a tarde inteira com o “qualquer” senhor de idade? As ilustrações, devido a sua disposição nas páginas, lembram, em certas horas, as cartas enigmáticas, pois a artista mistura as palavras com os desenhos. Inclusive, a própria letra “O” de “velhinho” e de “trabalho” viram bola de futebol para o velho que as chuta para cima com seu desproporcional tênis (FIG.19). FIGURA 19-Ilustração de Angela Lago Fonte: LAGO, 1992. O Menino Jesus, que deveria, pela tradição judaico-cristã, se apresentar com roupas formais e semblante mais sério, destorce essa imagem. Apresenta se sorrindo, mostrando o símbolo de “paz e amor” com os dedos e uma blusa com as inusitadas iniciais “JC” (FIG.19). O único personagem mais sério é o São Pedro, que traz consigo seus óculos, um guarda-chuva, um livro e as chaves do céu. Dando a ele um ar de autoridade, seriedade e responsabilidade para com o Menino. 72 Compondo o cenário da brincadeira, estão presentes duas árvores, personificadas, com rostos e braços, ambas acompanham o movimento do velhinho, ora estão postas olhando para a direita, ora para a esquerda e no terceiro momento em que aparecem, elas ficam de costas uma para a outra. Suas copas são bastante densas, e se parecem com nuvens, ao final do livro a autora diz que essas copas, assim como os mantos e roupas são um empréstimo de Dürer. A história prossegue, o tempo, que é bem marcado na história, também passa. A morte então entra pela porta do quarto do velho para levá-lo consigo. E assim como era do desejo daquele senhor, a morte pode ser vista por ele e também por nós leitores. O velho consegue enganá-la, grudando-a na sua cama e depois de muito combinar, ela concede a ele mais vinte anos de vida. Além disso, de uma forma muito inteligente ele consegue presentes, porcos, galinhas, cachaça dos moribundos por se fazer de médico e visitar as pessoas. À medida que se desenvolve a narrativa, vê-se que o velho é um ótimo “jogador” apesar de aparentemente ingênuo. Ele sabe muito bem como sair ganhando nas situações, teatraliza, disfarça uma certa fraqueza. O “Coisa Ruim” se descuida e fica preso, é forçado a negociar. Então o que sugestionava opções bobas revelam-se escolhas inteligentes. No transcurso do jogo fica explícito que o velho é um excelente jogador. O idoso apresenta estar numa era antiga, veste uma túnica análoga às indumentárias dos padres franciscanos, um hábito comprido, mas ao invés de estar sem calçados, usa tênis, um par enorme, bem diferente, possivelmente para apontar uma contradição com a imagem sacra, que estava se edificando a partir da bata e a longa barba que dá um aspecto celestial (FIG.20). Sua calvície, sua barba comprida e a velhice remetem a uma sabedoria, a uma santidade; essas características se assemelham a São Bento ou a São Pedro (MENDES, 2007, p.39). FIGURA 20-Ilustração de Angela Lago Fonte: LAGO, 1992 73 Do decorrer de todo o livro a artista brinca com várias imagens de pequenos animais, porém há no livro uma fotografia de um rinoceronte, e ela se apresenta pendurada na parede da casa do velho. Em sua origem, ela foi pintada por Dürer em 1515 e faz referência ao fato de que naquele ano o Rei de Portugal, D.Manuel I, mandou vir um elefante e um rinoceronte numa embarcação até Lisboa. No entanto o barco afundou-se na travessia, o artista não pode ver o animal, tendo feito sua xilogravura segundo relatos, portanto o animal apresenta anomalias anatômicas (BERGER, 2004, p.80 e 81). Ao final do livro, Angela Lago, apresenta novamente a imagem do rinoceronte, porém mais nítido e diferentemente de Dürer ele equilibra-se “num pé só”, criando assim uma interessante intertextualidade (FIG 21). A B FIGURA 21 b) Contracapa do livro De Morte! Fonte A: LAGO,1992. Fonte B: BERGER, 2004, p.80-81. a) Desenho feito por Dürer 74 Além do rinoceronte, há animais de porte menor como um gato, um rato, coelho, pássaro. Na personagem Morte há muitos ratos, que incessantemente vivem saindo do seu corpo e invadindo o espaço. Ao mesmo tempo em que se apresenta diante de nós ratos e um esqueleto, temos a morte, resultado da fusão. Essa configuração ilustrativa faz as interpretações moverem sem parar e sua ancoragem só ocorre após um agrupamento de articulações, assim o sentido aparece de um mistura de elementos. As conotações estão no folclore, ao fundir os elementos simbólicos ratos, sujeira, maldade, escuridão e mistério, temos a morte. Os ratos que as ilustrações nos oferecem não são horrorosos, não apresentam explicitamente uma ojeriza, ou seja, não evocam doença ou repugnância, signos que estão ligados à imagem de rato. Entretanto, ao mesmo tempo, seus ratos apresentam alguma coisa ruim, um legado desses signos mencionados, porque os ratos do livro alastram e se apoderam do ambiente. Estas criaturas imagéticas vão além da idéia de ratos, podem, aliás, ser interpretadas como a presença da Morte ou do mal, no lar, pois o Diabo também gera ratos (MENDES, 2007, p.40-42). Contudo, temos também os pássaros que caçam os ratos; aqueles podem indicar uma representação do bem, pois, em alguns momentos aparecem próximos ao Menino Jesus e têm como característica importante o fato de possuírem asas, em antítese aos ratos que são rasteiros e habitam lugares ocultos, escondidos. Conseqüentemente, os roedores são mais achegados ao inferno e os alados ao céu. As aves também podem significar qualidades, como a astúcia, que, da forma como é colocada por Angela Lago, seria uma particularidade intrínseca aos que vivem no Céu. Este duelo que ocorre na narrativa e se repete nas imagens periféricas, mostra que os referidos roedores são acossados, não somente pelos pássaros, como também pelo gato, este pode ser uma analogia do velhinho, ou a sua argúcia, pois no decorrer da história, o velho vai “devorando” os “ratos”, ou seja, a Morte e o Diabo a cada página. Observando as idéias acima se conclui que os ratos possivelmente representam a maldade e os pássaros podem estar agregados ao céu. A batalha e a perseguição que os pássaros fazem aos ratos pode ser entendida como uma analogia ao auxílio Divino dado ao velhinho, ou representar a própria astúcia do velhinho derrotando a “maldade”. Desta forma, os pássaros não simbolizariam a bondade em si, mas a astúcia que, por sua vez, 75 corresponderia a um traço da bondade. Desta forma, a astúcia seria um traço de bondade na personagem do velhinho o que poderia esclarecer a simpatia do Menino Jesus para com o Velho e o motivo de ter consentido sua entrada ao céu. Com certeza, as ilustrações feitas por Angela Lago são complexas, mas são leves, delicadas. A Morte, mesmo sendo caveira, mostra-se frágil, corpo de ossos, manto escuro e foice. Ela, na maior parte do tempo, deixa transparecer em sua face uma expressão de “coitada” e está relacionada com a angústia, com a agonia profunda. Ao criar uma personagem com o “potencial” de ser lograda até por um simples velhinho, a artista subverte um pouco a imagem aterrorizante que esse signo traz em sua tradição. Além disso, tudo na personagem Morte é reforçado a sua feminização, pois ela possui canelas grossas e um ar de fragilidade, principalmente porque necessitou pedir auxílio ao Diabo (MELO, 2007, p.39-40). Angela Lago, ao fazer um desenho representativo da Morte, misturando, à imagem tradicional, ratos, cigarros, partes de mulher e expressões humanas, estende o campo original de interpretantes admissíveis que essa ilustração tinha potencialmente. Se, por um lado, a figura da Morte que a autora arquiteta funde elementos tradicionais como manto negro, ossos e foice, combinação que ressalta as características “negativas” desses ícones, ao sintetizar, nessa composição, outros signos como o cigarro, os ratos, as pernas de mulher e a expressividade da face, que altera entre o riso e o sofrimento, pode levar o leitor a um sobressalto, um certo estranhamento que o levará a repensar o seu conceito de Morte. A fusão dos signos do cigarro e dos ratos na figura da Morte, apesar de valer para fixar os interpretantes num “campo negativo” de sentidos, também designa novas direções de sentido dentro desse campo de interpretações. Ao agregar o ato de fumar com a morte, a artista aponta a idéia tão disseminada de que o câncer no pulmão e, por metonímia, o cigarro é mortal, ou o cigarro causa a morte, faz parte da morte. Ou ainda de que a Morte é uma viciada ou provoca o vício para conseguir pegar seus convidados mais facilmente. Ou ainda, sugere à Morte um ar bandido, ou rebelde, como nos antigos filmes hollywoodianos. Também podemos ponderar que o cigarro confere à Morte um certo charme, como fazia com os artistas de Hollywood do passado. Os ratos, por sua vez, mesmo sendo desenhados de uma forma “bonitinha”, ao serem misturados com outros signos tradicionais da Morte, 76 têm seus aceitáveis interpretantes negativos mais elevados. A sujeira, as doenças e o nojo são idéias que passam a ser coligadas à personagem Morte, avigorando a concepção negativa da figura com novos adjetivos. Ela torna-se mais repugnante e poderosa, espalhando ratos, ou espalhando-se através dos ratos pela casa. A fusão do cigarro e dos ratos tornou a imagem da Morte mais rica, e a fusão na imagem da Morte de pernas de mulher e expressão humana induz a uma alteração significativa da direção interpretativa, causando um estranhamento que aumenta, de forma acentuada, as possibilidades interpretativas da figura. Em vez de nos causar medo, terror, ela nos sugere muito mais dó. Suas pernas de mulher entram em oposição com a representação tradicional, ossos, e acarretam uma certa feminilidade; por proximidade, acomodam uma humanidade à figura. A fisionomia do semblante da Morte reforça essa outra direção de sentidos, pois não é corriqueiro vermos um semblante de felicidade inocente na fisionomia da morte. Também não esperamos ver na cara da morte uma expressão de sofrimento, comumente reservada às suas vítimas. Após o episódio de enganar a Morte, o Velho recebe a visita do Diabo, que não recusou a cachaça que lhe foi oferecida, sentou-se na cadeira e acabou grudado. No momento em que o velhinho começa a lográ-lo, os pássaros se põem a comer os ratos que estão no corpo do Diabo, reafirmando a opinião de que os ratos representariam, de forma simbolizada, sua essência. Ainda com relação à caracterização do Diabo, é interessante ressaltarmos que ele usa um chapéu de bobo da corte e fica sempre de língua para fora, mostrando com clareza o seu estilo teatralizado, cômico e caricato (FIG. 17). O Velho, como todo bom jogador, se faz de bobo, mas tem sempre uma forma de “se dar bem” nas situações adversas. O mesmo, graças a sua astúcia, arranja uma forma de entrar em qualquer jogo, o da bondade e o da maldade, e esta capacidade dúbia que os personagens possuem, é uma das principais marcas do texto, pois no decorrer da narrativa observa-se que o Velho é bondoso ao brincar com o Menino Jesus, maldoso ao atormentar a Morte e o Diabo, a Morte e o Diabo são maldosos, mas também são pobres infelizes, perseguidores e perseguidos, o rato é rato e é Morte. Além disso, quebram-se também alguns estereótipos maléficos da figura da Morte e do Diabo, pois Angela Lago os apresenta como seres humanizados que são passíveis de 77 serem tapeados e ainda faz com que suspeitemos de que estão simplesmente trabalhando, isto é, cumprindo um dever. Ambos, Morte e Diabo, foram facilmente “driblados” por um senhor idoso, um simples mortal, que é mais esperto do que a morte e o diabo que são seres imortais. Esse conto pagão denominado: De Morte! traz aos leitores claramente uma “brasilidade” muito interessante. Observa-se que o herói, ou melhor, o anti-herói22 dessa epopéia, escolhido pelo Menino Jesus, gosta de futebol, cachaça, vida mansa além do “jeitinho brasileiro” de lidar com os problemas. Além disso, ele não é um bom exemplo de cristão, mas ainda assim, com seu “jeitinho”, ele consegue negociar com a Morte ganhando dela mais vinte anos de vida, com o Diabo, ele faz um acordo para não ser recebido no inferno, e por ser amigo do Menino Jesus, consegue passar por São Pedro e lá ser “feliz como sempre” (LAGO, 1992). FIGURA 22-Ilustração de Angela Lago Fonte: LAGO, 1992.. Apesar do Velhinho não ter em seu caráter características como a honestidade, a fraternidade, o altruísmo (o velhinho na verdade engana o próximo, toma cachaça, tortura), ele é um personagem muito simpático, mesmo quando finge de médico e começa a fazer previsões de vida ou morte para os doentes, se mostra sempre feliz da vida, sorrindo e levando seus presentes: porcos, galinhas e cachaça. Essa, em tamanho desproporcional à dimensão da ilustração, e nela se bem observar, há imagens de pessoas e uma caveira dentro (FIG 22). Junto a essa cachaça, o Velho segura também uma ovelha, que já traz consigo uma simbologia oposta à da cachaça, ela pode ser símbolo cristão de laicidade 22 O Velho, a Morte e o Diabo, personagens desse livro são carnavalizados, pois concentram em si próprios virtudes, mas também defeitos bastante cômicos. A teoria da carnavalização se encaixa muito bem na caracterização dos referidos personagens. Essa teoria é uma forma de estudar os textos literários, procurando os efeitos humorísticos e parodísticos que mostram como a comédia pode revelar traços do inconsciente social. Os princípios básicos desta teoria estão no livro de Bakhtin – Problemas da Obra de Dostoievski (1981). 78 e de que os homens precisam de liderança espiritual, pois se desencaminham com facilidade. Quando o Velho se cansa e decide morrer, a solução gráfica que a autora encontrou para indicar esse momento é de uma poesia impressionante: a ilustração mostra o Velho carregando uma mala grande e antiga, atrás dele uma porta, no seu rosto um sorriso discreto e acima dele um anjo traz asas para o velhinho, sinalizando que os céus querem sua presença. Na cena ao lado aparece a morte sentada em cima da copa de uma das árvores humanizadas, que dão boas risadas pela situação. Assim como nas histórias em quadrinhos, há um balão de pensamento na cabeça da Morte: “Eta velho de morte!”, ela diz. Fazendo uma ironia com seu próprio personagem. E assim como na capa o Diabo aparece saindo pelo lado direito da página. Após, devido o fato da autora representar o espaço físico de uma forma não convencional, cabe ao leitor “abrir” a porta do céu para o velhinho, desdobrando a página. André Mendes (2007, p.44), ao analisar o livro enfoca com relevância dos detalhes e aponta que as ilustrações ambíguas de Angela Lago, exigem que entremos na brincadeira da interpretação do texto. O autor questiona: o que são essas coisas que saem do corpo da Morte? E o que são essas coisas na capa do Menino Jesus? O que querem dizer essas canelas grossas da Morte? E o rinoceronte na parede? Aonde nos conduz esse labirinto de sentidos? O mesmo autor completa que as ilustrações de Angela Lago são colagens elaboradas a partir de outras imagens que após serem reformuladas designam uma nova imagem, têm um outro atributo, o atributo de Angela. Logo, são dela essas novas imagens criadas, tanto que a artista diz, na capa do livro, que foram feitas a partir de outras imagens. Desta forma, além de desmistificar a indevida concentração de que o artista “cria do nada”, a artista mostra uma outra direção, ela nos direciona para Dürer e amplia o campo de probabilidades interpretativas, além de suscitar no leitor o interesse pela obra de Dürer. Ao finalizarmos a interpretação do conto percebemos o quanto a autora foi feliz na sua subversão às regras, no estilo do lúdico, nos imprevistos e na liberdade do jogo. Tudo envolve a incerteza e os sistemas complexos. Enfim, conclui-se que o livro analisado apresenta um jogo (inter)textual no qual tanto a linguagem gráfica, quanto a escrita são 79 utilizadas de forma pouco convencionais, que há durante a leitura, a produção de múltiplos significados ao caos que visivelmente se apresenta. A escritora/ ilustradora não se restringiu ao desenho, foi além do proclamado na narrativa para indicar novas possibilidades de leituras visuais e narrativas. Com isso, a obra motiva no leitor um estranhamento que pode conduzi-lo a buscar outras vicissitudes e ver o mundo de outra maneira. II.3-O Menino mais bonito do Mundo: jogos de intertextualidades Ainda na linha de livros infantis que se distinguem por apresentar um traço diferente a tradição e pela presença da intertextualidade, nos voltamos para O Menino mais Bonito do Mundo (ZIRALDO23, 1994) onde o autor e dois ilustradores, Apoena Horta Granada Medina e Sami Mattar, trabalhavam com texto e ilustração de uma maneira complexa e, ao mesmo tempo, agradável e bela. A presente narrativa é um livro de desafios. Ao mesmo tempo em que conta uma história, também instiga o leitor a ler o texto de uma maneira diferente e a perceber as diversas referências. Inicialmente, podemos pensar em outras obras, como, por exemplo, o mito de Prometeu e Pandora (BULFINCH, 2003, p.19-21) ou a Origem do Mundo e da Humanidade, segundo o povo Dessâna, que habita entre os rios Tiquié e Papuri, no Amazonas (JECUPÉ, 1998, p.63). Esses desafios trazem para a narrativa algo mais, que prende nossa atenção. Nesse livro, o autor e ilustradores convidam o leitor a agir como um herói mítico, viajar no texto e decifrar os enigmas, para, no final, ser recompensado. O livro conta a história de uma noite, uma grande escuridão, e nela havia um menino que dormia, até que ele acordou, juntamente com a manhã. E esta trouxe o sol, as montanhas, as árvores, as flores, as águas do mar que diziam sempre ao menino o quanto ele era bonito. Neste dia ele descobriu muita coisa, e ele achou que tudo era bom. O tempo passou, o menino tornou-se homem e ainda assim, todo o paraíso que o cercava sempre 23 Ziraldo Alves Pinto nasceu no dia 24 de outubro de 1932 em Caratinga, Minas Gerais. Começou sua carreira nos anos 50 em jornais e revistas de expressão, como Jornal do Brasil, O Cruzeiro, Folha de Minas, etc. Além de pintor é cartazista, jornalista, teatrólogo, chargista, caricaturista e escritor. Em 1969 Ziraldo publicou o seu primeiro livro infantil, FLICTS. A partir de 1979 concentrou-se na produção de livros para crianças, e em 1980 lançou O Menino Maluquinho, um dos maiores fenômenos editoriais no Brasil. 80 repetia o quanto ele era bonito. Porém, houve um dia em que tudo virou tristeza, era outono, e ele começou a sentir um vazio no peito e foi dormir em silêncio. A manhã chegou, ele acordou sentindo uma dor debaixo da costela, mas essa dor foi esquecida ao perceber que na sua frente estava a coisa mais linda que ele já vira, era a mulher, e ela repetiu a frase que ele sempre escutou e sempre entendeu: “_Como você é bonito, Adão!” (ZIRALDO, 1994, p.30). Conforme foi dito acima sobre as relações textuais e ilustrativas, é possível distinguir alguns processos intertextuais, mas os principais são: o texto bíblico Gênese e as citações imagéticas do Renascimento, essencialmente com o pintor Sandro Botticelli (14441510). O conjunto dessas referências e citações ajuda a produzir grandes efeitos nas formas da natureza, na abundância nos detalhes, curvas, uso da perspectiva, dando peso e detalhe a forma, no uso de luz e sombra, etc. Nota-se que muitas das imagens do livro foram feitas em óleo sobre tela, e esse era o meio mais valorizado da Renascença, pois permitiu aos pintores representar texturas e simular formas em três dimensões. Mas, no entanto, é no final do livro se tem a explícita referência a Botticelli, pois a mulher que aparece no final, a suposta Eva, é semelhante à Vênus representada pelo pintor (FIG.23). O quadro de referência é O Nascimento de Vênus (1485), que segundo a mitologia antiga, ela teria nascido da espuma dos mares. Botticelli a pintou numa concha que flutua na água. Nesta tela, ela é empurrada em direção à margem por duas divindades dos ventos, enquanto a Deusa Horas, uma das deusas das estações, tem nas mãos uma peça de roupa aberta, pronta a envolver Vênus (DEIMLING, 1995, p.51). Na ilustração do livro não há outros personagens além da mulher, a posição das mãos e dos quadris das duas imagens, tanto a de Botticelli, quanto a de Sami Mattar, são as mesmas, uma possível mudança estaria na cor das beldades, a mulher pintada por Botticelli é marmorizada, branca, adquirindo traços de uma imagem antiga, ao passo que a ilustração de Sami Mattar, não é tão branca, o que poderia representar um traço de brasilidade na obra, já que o biótipo brasileiro apresenta-se mais mestiço. 81 A B FIGURA 23 a)Última ilustração do livro b)Pintura renascentista de Botticelli Fonte A: ZIRALDO, 1994, p.30. Fonte B: DEIMLING, 1995, p.51. Outra diferença está no sustentáculo, apesar de ambas imagens reproduzirem o mar, árvores e ilha, de forma semelhante, Vênus é retratada sobre uma concha auspiciosa, erótica, lunar, simbolismo da fecundidade baseado em sua associação com a vulva. Porém no livro infantil, Eva é retratada sobre um “altar” de flores coloridas, invocando a beleza feminina, a brevidade da vida e a alegria do paraíso. As flores são essencialmente símbolos concisos da natureza em seu auge, condensando num breve período de tempo o ciclo de nascimento, vida, morte e renascimento (TRESIDDER, 1994, p.147). Assim vemos que cada elemento tem uma contribuição a dar para a urdidura do conto. A ilustração em O Menino mais Bonito do Mundo é um brinquedo atraente que deve ser contemplado, tem de ser desvendado; o livro é, em si, um desafio: qual o sentido, quem está sendo citado? Vemos o espaço de forma diferente; revemos a perspectiva, o detalhe, contemplamos de longe a mesma paisagem e também por outro ângulo. A capa do presente livro estudado inicia-se com o nome do autor: Ziraldo, escrito de branco, sobre um fundo azul (FIG.21, A). De maneira incomum, após o nome do autor, há uma imagem de um olho grande, o que pode nos remeter à lembrança dos grandes objetos de Magritte, especialmente a obra O Espelho Falso (PAQUET, 1935, p.11), nela há também um grande olho que reflete o céu, onde o próprio pintor faz um jogo entre o que 82 está dentro e o que está fora (FIG.21, b). No caso da pintura de Magritte, assim como na capa do livro, o olho humano foi hiperdimensionado, e pode ao mesmo tempo proporcionar uma visão do que está por fora e por dentro, metaforicamente, na alma do homem. Na história da arte, temos também um exemplo de Escher, em Olho (ESCHER, 1946, p.54), o artista desenhou fotograficamente um olho e no fundo da pupila uma caveira (FIG 24, c), contrastando com o olho do livro, pois enquanto naquele representa-se a morte, neste, o sol, representa a vida ou o renascimento, a luz. A FIGURA 24 B a) Capa do livro b) Pintura de Magritte Fonte A: ZIRALDO, 1994. Fonte B: PAQUET, 1995, p.11. Fonte C: ESCHER, 2002, p.54. C c)Desenho de M.C.Escher 83 Assim o olho da capa é onipresente, e dentro do mesmo, após lermos o livro, confirmamos a idéia de “luz”, de vigília24, de belo, de verdade e de bom. No Evangelho Segundo S. Mateus há passagens que dialogam com à idéia de luz relacionada a religiosidade: Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre uma montanha nem se acende uma luz para colocá-la debaixo do alqueire, mas sim para colocá-la sobre o candeeiro, a fim de que brilhe a todos os que estão em casa. Assim, brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus (MATEUS, 5, 14-16). E ainda: O olho é a luz do corpo. Se teu olho é são, todo o teu corpo será iluminado. Se teu olho estiver em mau estado, todo o teu corpo estará nas trevas. Se a luz que está em ti são trevas, quão espessas deverão ser as trevas (MATEUS, 6, 22-23). Interessante observar também que o presente olho não apresenta suas partes fisiológicas como a coróide e retina, nele há apenas, como foi descrito, o grande sol, visualmente um símbolo da cristandade, Deus, o Pai. E o próprio sol, segundo o livro de símbolos, em geral é adorado como o Deus supremo ou como uma manifestação de sua capacidade de tudo ver (TRESIDDER, 2003, p.318 e 319). Após a referida ilustração da capa, está o título, em cujas letras há um jogo de cores, um degradê, que vai do amarelo ao vermelho. A narrativa traz como de costume: o título, autor, ilustradores, dedicatória e a editora: Melhoramentos. Estas referidas informações seguem a forma editorial tradicional. Porém, a página 3 inicia-se com uma subversão, ela é toda preta, há nela uma ausência total de cor. Essa característica só é entendida quando se lê o texto, que é escrito de branco sobre o fundo preto. Aqui se entende que essa escuridão representa a noite e também o ponto de vista do protagonista, ou seja, é como se ele estivesse de olhos fechados, portanto há escuridão. Neste sentido nota-se que o leitor pode vir a enxergar pelos olhos do personagem25, ou que o próprio leitor pode se tornar personagem. 24 O conceito de vigília aqui se baseia no artigo de Motta Pessanha, neste texto o autor aponta para a vigília como um logos, diferentemente do sono que entorpece e oferece sonhos (PESSANHA,1992). 25 No decorrer do livro observa-se que somente o receptor é quem poderá responder como é fisicamente o menino/ homem, protagonista do texto, pois certamente a personagem será construída por meio das intenções lançadas pela voz da natureza. 84 Ao virarmos a página, acontece algo muito significativo, ocupando toda a extensão das folhas quatro e cinco, há em oposição à página anterior, uma claridade excessiva, um sol imenso, muito vivo e amarelo26, sinalizando que o menino abrira os olhos, que a escuridão, as trevas deu lugar à luz, ao nascimento. E esse menino que empresta ao leitor seus olhos, é saudado pelo sol que dizia ao menino o quanto ele é bonito. Já nas seguintes páginas 6 e 7, o olhar do menino, ou do leitor, direciona-se para uma árvore e ela também elogia sua beleza. A partir da 3ª até a 13ª página, o que se vê nas ilustrações são desenhos feitos por uma criança, tal qual o menino, nota-se uma paisagem única mas que vai, com o virar das páginas se ampliando, por exemplo: nas páginas 6 e 7 há árvores e um sol, nas páginas 8 e 9 há a mesma árvore, o sol, mas também o mar e pedras , nas páginas 10 e 11, além do que já foi dito, se vê ondas e muitas flores e assim por diante. É como se déssemos um zoom e, após, irmos distanciado e abrangendo mais qualidades da paisagem. A ilustradora Apoena Horta de 9 anos conseguiu produzir desenhos leves, delicados, coloridos, tais desenhos rompem as bordas criam novas fronteiras, novos limites não só do ponto de vista poético, artístico, como também literalmente, na imagem gráfica. Aqui não existem bordas e margens, por todo o livro a paisagem se encarregará de sempre enfatizar essa falta de limites ou essa extensão do infinito. A noite, no decorrer do livro será o símbolo da mudança27, e ela vem pintada novamente pelas mãos de uma criança. Na escritura é relatado que o menino vivenciou muitas outras noites e todos os elementos da natureza, a cada dia vivido, dizia ao menino o quanto ele era bonito. Essas constantes repetições tanto verbais, quanto imagéticas, apresentam-se pelo caráter lúdico e elaborado, que dialoga personificadamente com o mundo vegetal, animal e mineral, os quais se comunicam com o herói, saudando-o pela sua beleza. 26 A ilustração desse sol tão caloroso nos remete a idéia de sensorialidade. Pois a presente ilustração pode ser vista como um interessante exemplo de sinestesia através da ilustração. 27 O fato de usar um fenômeno da natureza, como uma marca de mudança no livro de Ziraldo, já é algo recorrente na literatura brasileira, por exemplo, em São Bernardo (2001), de Graciliano Ramos (1892-1953) a marca de algum acontecimento era quando Paulo Honório (protagonista) ouvia um pio de coruja. Em Ana Terra de Érico Veríssimo (1905-1975), que faz parte da trilogia de O Tempo e o Vento (2003) o fenômeno natural que marcava as mudanças na vida de Ana era a passagem de um forte vento. Ana Terra costumava dizer: “sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando”(p.7). 85 Neste ponto da leitura, já se pode perceber uma intertextualidade com o texto bíblico Gênese28 o que pode enriquecer as possibilidades de leitura da obra original porque permite ao leitor interpretá-lo fazendo referências externas a ele. Mas, mesmo tendo sido produzido a partir da narrativa original, O Menino mais Bonito do Mundo foi elaborado com uma re-leitura subjetiva. Neste sentido, autor e ilustradores transformaram a narrativa bíblica em textos e ilustrações que compõem um livro com um início, mas com a idéia de não ter fim. O tema da criação permanece, mas aponta para outra direção que não a da expulsão do Paraíso, e o Jardim do Éden se transforma num desenho infantil. As duas obras são ricas em metáforas, mas tratam o tema de formas diferentes. Quem pode vir a ganhar com essas releituras é o leitor, porque a nova obra vem adicionar sentidos à obra original. Em meio a leituras possíveis se apresentam duas: uma, na qual o leitor que conhece a narrativa bíblica formará uma vinculação entre o texto do autor e o original; e outra em que o leitor, desconhecendo a obra original, se relacionará com o texto sem essa alusão. O leitor que conhece o texto original poderá apontar interpretantes a partir de um centro de possibilidades que lhe permitirá contrapor a história original e a versão produzida por Ziraldo. Na versão original, temos a origem do mundo, a história da criação dos céus e da terra, também dos seres humanos, Adão e Eva, seres criados e abençoados por Deus, formando uma só carne e vivendo no Paraíso. Porém não podiam comer do fruto proibido, mas a serpente seduziu a mulher e a levou a experimentar tal fruto29, além disso Eva ofereceu o fruto ao seu marido, Adão, que também comeu a maçã. A partir daí os sofrimentos começaram, sentiram vergonha por estarem nus e foram expulsos do paraíso por Deus. 28 O Livro de Gênese inicia-se fazendo referência à criação: “Deus disse: “Faça-se a luz!”. E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. Deus chamou a luz DIA, e as trevas NOITE. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o primeiro dia”(GÊNESE, 1,3). 29 Faz-se curioso pensarmos que no livro do Gênese, fica claro que a árvore cujo fruto era proibido ao homem e à mulher também era, na verdade a árvore do conhecimento e ao provar daquele fruto, a mulher conheceu antes do homem os segredos divinos e não-divinos e só depois de serem duramente repreendidos por Deus é que, então, a vergonha do sexo e o medo do conhecimento se instalaram. A mulher era, portanto, a que tinha o conhecimento e inclusive, a que conhecia antes e mais que o homem. Por esse fato é que na história da iconografia há uma certa misoginia (repulsa a mulheres). E não foi à toa que na Inquisição se condenaram bruxas, feiticeiras e pecadoras de maneira intensa e freqüente (PAIVA, 2004 p.46-47). 86 O Menino mais Bonito do Mundo de Ziraldo aponta para uma criação a que não estamos familiarizados. A criação, para o autor, assinala numa direção diferente à divulgada pelo original. O leitor que não conhece o texto bíblico provavelmente fará outra leitura do livro. É possível que não se prenda à questão da criação do mundo, mas faça uma leitura mais geral, discorrendo a história como uma metáfora da tentativa de um encontro quase mitológico ou ontológico entre dois seres. Por este ponto de vista, no livro de Ziraldo podemos pensar em personagens em procura de um encontro, uma plenitude. O livro de Ziraldo, ao propor uma leitura diferente da original, apresenta opções de outras leituras, inclusive ligações com outras obras e autores, que talvez não fossem possíveis sem essa liberdade. O tempo passou, o menino tornou-se um homem, por esse motivo as repetições, tanto nas falas, quantos nas ilustrações, adquiriram conotações e significados diferentes. Se inicialmente as imagens foram apresentadas pelo olhar infantil, agora tais desenhos vão se modificando nas técnicas e na percepção, o olhar que antes era de uma criança, torna-se o olhar de um adulto. É interessante ressaltar que a paisagem que aparece nas primeiras páginas é a mesma que aparece nas páginas 16 a 23, o que mudou foi o olhar do protagonista. A metáfora do crescimento foi usada, no livro infantil, de forma bastante poética, nos desenhos infantis as cores são esbatidas e a paisagem não possui fundo, após amadurecer o desenho, nota-se uma elaboração no uso das cores, no jogo de luz e sombra, na perspectiva. Desta forma nota-se que em O Menino mais Bonito do Mundo, foi utilizado um gesto dessacralizador de forma lúdica, característico da poética de Ziraldo. Preocupado em criar novas formas de leitura, de utilização do espaço do livro, ele e os ilustradores, desenvolveram um artifício para dar movimento a uma figura estática. A paisagem modifica-se de uma página para a outra, assim como os movimentos da natureza. É uma criação gráfica admirável. O livro monta as figuras de uma forma diferente no espaço, quer que o leitor pegue o livro, olhe de outro jeito, interaja. O emprego das linguagens visuais e ilustrativas aumenta o potencial de combinações possíveis entre os signos, cunhando uma polifonia, muito diferente da linearidade de leitura a que estamos habituados, marcando muito mais para um sincronismo de sentidos. Em oposição dos significados fixos, vários interpretantes entram em confronto, 87 estimulando o leitor a lidar com várias vozes ao mesmo tempo, consentindo que ele deixe falar sua voz ou a voz que melhor lhe agradar. Essas ilustrações estimulam, sensações e o pensar múltiplo e, dessa forma, possibilitam ao leitor alterar sua sensibilidade. Nas páginas 24 e 25 observa-se uma diferença, a paisagem apresenta cores ainda não usadas anteriormente. Nota-se uma certa penumbra, o dia está mais frio, o sol já se pondo, há sombras. Assim como no período literário denominado Romantismo, o cenário é cúmplice dos sentimentos do personagem. Pelo texto verbal, o homem está tal qual a natureza, os dois estão tristes. O protagonista que se tornou homem começou a sentir que mesmo com aquela paisagem tão bela, estava faltando alguma coisa. Como marca de tempo, tanto cronológico quanto psicológico, a obra, nos mostra que era outono. O fato de fazer referência à estação não é gratuito, pois, assim como as fases da Lua, as estações podem ser símbolos universais de nascimento, crescimento, morte e renascimento, os ciclos regulares da natureza e da vida humana (TRESIDDER, 2004, p.134). Como bem aponta o texto, no outono, “a luz que termina os dias desenha sombra nas sombras” (p.24), refletindo desta forma o sentimento do homem e da natureza. Segundo a Bíblia Sagrada em Gênese, o Jardim30 é o cenário perfeito para os esposos, singelamente descritos em sua nudez natural, que não os envergonhava, manifestarem a suave harmonia que os torna carne da mesma carne, na irresistível atração mútua, profundamente arraigada na lei da recíproca complementação pessoal, uma idéia bem semelhante ao argumento de Aristófanes no Banquete de Platão. De acordo com o livro de Platão, no passado não éramos como atualmente; éramos seres andrógenos com todas as partes do corpo duplicadas. Seres muito poderosos que, ao provocarmos os deuses, fomos cortados em duas metades simétricas e espalhadas pelo mundo. Ao se encontrarem, a emoção que uma metade sente pela outra metade é tão enorme, que não querem se separar mais, nem por um pequeno momento (PLATÃO, 1949, p.28-30). Um aspecto interessante é que a imagem de Adão não aparece nas ilustrações, se aparecesse de forma tradicional - homem branco, bonito, bem torneado, com uma folha 30 Na Bíblia Sagrada o Jardim, chamado também de Paraíso e Éden significa estepe, mas evoca a idéia de delícias. 88 tampando-lhe o sexo - normalmente levaria os sentidos interpretativos numa direção bastante restrita. Os ilustradores, ao esconder o aspecto físico do homem belo, reconstrói a retórica desse ícone tornando-a mais rica, e assim podendo estender a produção de sentidos do leitor e exigir-lhe mais do que uma leitura simples. Temos novamente nas páginas 26 a 29 a presença da noite, tal qual aquela que aparece nas páginas 14 e 15, porém aqui a lua e as estrelas são mais delineadas, há uma certa perfeição formal em relação à outra noite citada. Como já foi dito, a escuridão noturna, neste livro é sempre uma marca de mudança, pois quando nasce o sol, o homem acorda sentindo uma estranha dor um pouco abaixo da costela, mas não deu muita importância a ela, pois ele ouviu uma voz, o som mais lindo que ele já ouvira. Se pararmos um pouco na descrição textual da cena e retomarmos a idéia da relação dos dois astros, sol e lua, observamos que segundo a simbologia tradicional, o sol é a representação da força masculina, enquanto a lua, por sua condição de refletora da luz do sol e de sua relação com o ritmo da mulher, haveria de designar-lhe o grupo feminino31 (CIRLOT, 1984, p. 536). A noite, por ser misteriosa, por poder simbolizar o tempo das gestações, das germinações, das conspirações, que vão desabrochar em pleno dia como manifestação de vida (CHEVALIER & GHEERBRANT,1997, p.640), pode nos dar a idéia de feminilidade, ainda mais porque contém a lua. Assim, tanto nas páginas iniciais (p.14 e 15), quanto nas finais (p.26 e 27), ao nos depararmos com uma imagem que combina esse símbolo da lua e ao virarmos as páginas temos o sol, podemos pensar numa espécie de casamento (hierogamia). Porém, a característica desse casamento parece ser uma união destinada a um breve instante de transição, antes que um dê lugar ao outro, os dois não podem viver no céu ao mesmo tempo. Será que aqui estaria refletido o mistério da união do homem e da mulher, ou seja, a resposta para o enigma da extensão que existe numa relação a dois? Nas páginas 30 e 31 é mostrada uma mulher nua que diz: “ _Como você é bonito, Adão!” (1994). Nesta parte da narrativa há uma circularidade mítica da forma final, onde 31 Intui-se que como a luz da Lua (símbolo feminino) só é possível através do Sol (símbolo masculino), Eva só teve vida (luz), através de Adão. É interessante ressaltar que Mulher em hebraico é Ichá, derivado da palavra Ich, Homem. Logo se vê que assim como a luz da lua deriva da luz do Sol, a mulher deriva do homem. E no contexto bíblico foi Adão que deu nome a Eva (Gen. 3,20), que em hebraico Hava que significa vida. 89 aparece a mulher Eva ou Vênus e suas palavras funcionam como um convite à apreciação também da beleza feminina que se apresenta nua, emprestando ao leitor uma atmosfera análoga de apreciação do outro. O que nos leva a indagar: Qual seria o objetivo do autor e ilustrador ao readaptar os modelos bíblicos e ligá-los à mitologia grega? Pode-se pensar, através do livro, que a essência da figura masculina dominou toda a natureza, até mesmo a mulher, e também que a maneira de o autor representar o desejo feminino é fazer com que ela entre na vida dele, no paraíso, no cotidiano da vida dele. Contribuindo para essa interpretação, aos pés dela surgem flores, normalmente associadas à paixão e, como fundo, uma imagem que parece ser a representação da eternidade - os cabelos dela, longos se misturam com as nuvens - compondo uma atmosfera romântica e mística (FIG 23, a). Quanto a esse aspecto, a ligação simbólica da nuvem com os cabelos é bastante significativa e complexa, ambos elementos têm relevância religiosa, as nuvens são muitas vezes associadas à fecundidade das forças da natureza e espiritual (exemplo: elas são precursoras da chuva), as nuvens também representam a revelação, a presença de Deus. Jeová guiou os israelitas como uma coluna de nuvem, e Alá fala de uma nuvem no Alcorão (TRESSIDER, 2003 p.240). Na representação do cabelo temos o exemplo famoso de Sansão, guerreiro da antiga seita hebréia dos nazireus, cuja longa cabeleira era sinal tanto de santidade carismática quanto de força física, porém nas mulheres, como é o caso, cabelos longos e soltos apontam para o estado de virgindade - como na iconografia cristã da Virgem Maria e das Santas Virgens (TRESSIDER, 2003, p.60). Logo, ao pensarmos na união desses dois elementos: nuvens e cabelos se obtem uma complexação por síntese, pois dois elementos muito significativos que se fundem, nos dando uma terceira representação. O que, supostamente, apresenta o livro é a forma de olhar e representar o mundo com olhos de criança para poder recriá-lo. Trata-se de uma estratégia antropofágica: mundo incógnito precisa ser olhado com olhos virgens para que possa haver absorção deste imaginário e sua transformação em algo novo (BERD, 2003, p.70). É possível perceber a criação imagética mitopoética presente no livro como uma tentativa de resgatar elementos, como a natureza, o erotismo, a alteridade que foram recalcados e considerados como inferiores pela tradição literária. No livro há um resgate de toda uma sensualidade e erotismo que, em outros livros, vem sendo ora reprimido, ora exposto de forma imprópria. Pelos desenhos e palavras, vê-se que no livro infantil a relação 90 do homem com a natureza se dá através do olhar e muitas metáforas vão apresentar um caráter corpóreo que é fonte de erotismo: “O menino abriu os braços a fez “Ahhhhh!” se espreguiçando. Sentou-se na grama olhou em volta e descobriu - entre ele e o Sol – os galhos de uma árvore lhe dizia: _Menino como você é bonito!” (p.6). Do decorrer do livro vários vocábulos e imagens aludem à fecundação, à renovação da vida, à sensualidade, conferindo ao livro um extraordinário potencial de renascimento. Assim abundam referências à criação como: “Um sopro tocou seu rosto(...), ele acordou, abriu os olhos, devagarinho”(p.3). “E as flores, também, estavam todas ali no seu despertar” (p.20), à fecundação “E ele acordou sentindo mais uma coisa que ainda não tinha sentido antes: uma dor (muito de leve) um pouco abaixo da costela” (p.28); ou ainda expressões que remetem ao desejo: “Ele nem teve tempo/ de prestar atenção/ na dor que sentia/ pois antes mesmo/ de se espreguiçar/ abriu os seus olhos/ e descobriu/ ali, na sua frente,/ a visão mais bonita/ de toda a sua vida” (p.19). Em relação às citações acima há uma intertextualidade bastante clara com o texto bíblico: Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem. “Eis agora aqui, disse o homem, o osso e a carne de minha carne; ela se chamará mulher porque foi tomada do homem” (GÊNESE 2,21-23). Ziraldo é um autor que adora desafios. O texto bíblico do Gênese tem sido lido, traduzido e reescrito há várias gerações, e as inúmeras interpretações que dele se originaram torna cada vez mais difícil uma nova interpretação. Apesar disso, podemos dizer que Ziraldo, ao propor uma leitura baseada na multiplicidade das escolhas do leitor e na indeterminação dos interpretantes a serem produzidos durante o ato da leitura, consegue produzir uma obra bastante particular e que enriquece a obra original. O livro Gênese, ou o Livro das Origens pertence aos Livros do Antigo Testamento. Segundo a própria Bíblia, não se trata de um livro que tenha o objetivo de expor as origens do mundo e da humanidade. Ele visa apresentar um ensinamento religioso que determina as relações entre o homem e seu Criador. Divide-se em duas partes: a origem propriamente dita (capítulo 1 a 11), e em seguida a história dos três grandes patriarcas do povo de Deus. O ensinamento, por mais imaginativo e popular que seja, é denso e profundo, tal 91 ensinamento enfatiza que Deus é o criador do mundo e é distinto do universo. Para Ele o mundo é bom e a finalidade da criação é a paz em Deus, figurada no repouso do sétimo dia. Em Gênese, o homem foi criado da terra, mas animado de um sopro de vida e destinou-se a viver na amizade com Deus, que lhe concedeu o dom da liberdade. Mas a harmonia primitiva da criatura foi destruída. O homem foi seduzido pelo poder da mentira, desobedeceu a Deus, na vã esperança de tornar-se igual a Ele (BÍBLIA SAGRADA, GÊNESE, 1998). Além dessa interpretação bíblica, o livro Gênese, especificamente a narrativa de Adão e Eva, pode ser vista como uma história arquetípica de separação e perda. Talvez possamos entender essa história como um paradigma moral, ou podemos ver nela uma alegoria da separação original da mãe por ocasião do nascimento, que não é possível permanecer eternamente no Paraíso. O Éden, dentro da idéia arquetípica, pode ser relacionado ao ventre materno, a casa protetora dos pais, a infância e adolescência ou a qualquer lugar ou situação que seja tranqüila e sem desafios e responsabilidades. Numa analogia com o livro O Menino mais Bonito do Mundo, e a narrativa de Adão e Eva é significativo lembrar que Adão significa terra, enquanto Eva significa vida. Assim, podemos intuir que ambas as histórias estão relacionadas ao processo de entrar no mundo terreno e viver a vida. Há um momento no livro em que o menino (Adão) descobre que os elogios que os elementos da natureza faziam a ele na verdade eram as suas próprias vozes (p.12), confirmando assim o significado do seu nome. Atualmente, alguns católicos e protestantes defendem uma interpretação naturalista e literal do Gênese: Adão e Eva representam a origem da humanidade. O Velho Testamento, adverso a qualquer pudicícia, valoriza extremamente a relação entre os sexos e vê nisso uma imagem do amor de Deus pelo homem (LURKER, 1997, p.113). A partir dessas interpretações sobre o Gênese, nossa impressão é de que, produzir algo de novo em relação a essa obra consagrada, é uma tarefa bastante difícil. Mas, ao manusearmos o livro de Ziraldo, acontece a surpresa: percebe-se que o seu trabalho reproduz a imagem adulta e infantil da origem do mundo. Um diálogo metalingüístico com as palavras sagradas onde se observa que o verbo (a palavra) se fez carne (o livro literário) e habitou entre nós. O livro infantil lida com palavras e ilustrações, materializa o verbo transformando o livro em matéria fluida através dos textos. 92 Em relação à cor, os desenhos e o que já foi dito sobre a lua, não será insensatez repensarmos a mulher como sendo a representação da noite e considerar que o predomínio da cor escura (noite) indica a “região” da natureza relativa a ela. Podemos inferir que a personagem tem uma presença lunar, noturna, marcada pelos momentos de mudança na vida de Adão. No decorrer do livro, a mulher ainda estava dormindo, ou só existia através das entranhas e dos sentimentos dele, até que alguma coisa trouxe dor a sua alma e fez com que seu Paraíso ficasse incompleto, mas algo (Deus?) apontou em direção ao amor e a beleza feminina. No dicionário dos símbolos de Jack Tresidder vê-se que a escuridão é relacionada ao potencial de vida – o mistério da germinação, e que no pensamento místico, a luz e a escuridão são aspectos da vida igualmente necessários, a escuridão precede a luz como a morte precede a ressurreição (2003, p.128). A partir dessa informação, podemos pensar que a mulher tem uma participação constante em todos os momentos do livro, principalmente nos mais relevantes: no início, quando ele ainda dormia, no meio quando ele tornou-se homem e ao final quando ela aparece para ele, mas aqui, Eva apresenta-se em meio à Luz, que estaria diretamente ligada a ele. Adão, por sua vez, tem maiores relações com a claridade, apesar de não aparecer fisicamente. Ao contrário dos tons noturnos de Eva, associados a uma cor feminina, a claridade, a luz, é um tom mais masculino, metáfora de espírito e da própria divindade, que simboliza a iluminação interna a presença de um poder cósmico de bondade e verdades últimas. Por extensão, a luz é símbolo de imortalidade, eternidade, paraíso, o ser puro, revelação, sabedoria, intelecto e a própria vida. No simbolismo em geral, a luz do sol está relacionada ao conhecimento espiritual, enquanto a luz refletida pela Lua é associada ao conhecimento racional. O Gênese tenta fazer uma distinção clara entre a Luz divina e a luz física, esta mais efêmera e relacionada ao Sol, a Lua, as Estrelas e que foram criadas depois (TRESIDDER, 2003, p.210). Nas primeiras páginas, o predomínio da escuridão pode indicar a proximidade da mulher. E a luz que emana dele, parece entrar nela, como se a possuísse, talvez, até mesmo mudando sua essência, o que seria representado pela transformação da noite para o dia. 93 No final se encontram, o que explica a beleza das cores, e pode indicar um certo equilíbrio entre as essências. Ampliamos o campo de visão, reparamos que ela está sob um altar de flores. As flores, além de indicarem beleza e alegria, que estariam relacionadas ao simbolismo do estado edênico (paradisíaco), podem também, como nas lendas celtas, ou no barroco, ser um símbolo de instabilidade, da instabilidade essencial da criatura, voltada a uma perpétua evolução; em especial, símbolo do caráter fugidio da beleza, da efêmera duração da vida e dos prazeres (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1997, p. 438). Neste altar o verde claro está predominando, tem pontos vermelhos e cores-de-rosa que podem indicar o início de um amor ou o desejo. No equilíbrio das forças, é possível a paixão, ou ela, à medida que vai se apaixonando, deixa a essência do outro penetrar nela; ou ainda, ela vai se apaixonando pela beleza do outro e vai se deixando “contaminar” pela luz do outro. No próprio título (capa) há uma alternância de cores, as letras se iniciam amarelas, e caminham para o vermelho (FIG. 24, a). O vermelho, em nossa cultura, é a cor da alma, da libido e do coração. Símbolo fundamental do princípio de vida, com sua força, seu poder e seu brilho, o vermelho é o arrebatamento e o ardor da juventude; também é a cor guerreira. O vermelho se torna perigoso como o instinto de poder, se não é controlado; leva ao egoísmo, ao ódio, à paixão cega, ao amor infernal (a expulsão do Paraíso?). O desencadear da vida parte do vermelho e desabrocha no verde (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1997, p.944-946). Neste encontro de Adão e Eva, ou do masculino e do feminino, do homem e da mulher, as duas essências se modificam, se complexizam, renascem e lembram o mistério da ressurreição associado às bodas do sol e da lua: o renascer do sol, depois das trevas da noite, evidência cósmica como mito da criação e recriação periódica do universo. Os livros interpretados nesse capítulo, De Morte! (LAGO, 1992) e O Menino mais Bonito do Mundo (ZIRALDO, 1994), nos dois casos são uma amostragem da infinita cadeia de abordagens nesse processo de leitura. Vimos que as apropriações em relação às artes plásticas foram explícitas, eminentemente intertextuais. Desta forma os livros serviram de abertura ao desafio da produção de conhecimento. Na verdade, as relações 94 texto escrito e texto ilustrativo, que ambos os livros apresentaram, tratam de dois textos que se interpenetraram, enriquecendo o jogo de significações da leitura. II.4-A caracterização do livro infantil como obra literária O mundo estabelecido pelo literário é convocação que transforma e converte a fantasia em realidade. A literatura é princípio mágico e inaugural que se revela em cada personagem, cada palavra e cada sentir. Mundo em desdobramento do eu para o outro: espaço clandestino que faz parte de uma transgressão que salva porque propõe caminhos para a ampliação de uma visão de mundo, por conseguinte itinerários do sonho, da luta, da fé, da dor-amor, enfim da vida e da alma (CAVALCANTI, 2002, p.17-18). O grande objetivo desde tópico é refletir sobre o caráter literário do livro infantil, e seguindo os passos de André Mendes (2007), tomar também o termo “literário” como artístico. Inicialmente, observamos que foi Aristóteles em sua Poética (COMPAGNON, 1999, p.30) que levantou a polêmica sobre qual nome deveria ser dado àquela arte que se apresentava em prosa, versos, diálogos (exatamente os gêneros: épico, lírico e dramático). Mas o termo “literatura”, tal qual compreendemos, é novo, e só foi datado no início do século XIX, antes disso era usado para conceituar as inscrições, as escrituras, a erudição e assim por diante. Em latim, litteratura vem de littera que significa ‘letra do alfabeto’. O referido termo foi mudando de acordo com os contextos e as culturas, por exemplo: no século XIV literato era o indivíduo de sabedoria, ciências e letras, no Renascimento o termo caracterizava a pessoa como culta (FORTINI, 1989, p.177), na idéia clássica literatura correspondia a todos os livros que havia na biblioteca, não somente a ficção, mas também de filosofia, ciências. Na concepção romântica, literatura era tudo o que os cânones escreviam, excluindo todo o resto (COMPAGNON, 1999, p. 31-33). O que observamos é que à medida que aparecem novas obras e novas modalidades ficcionais, aqui destacamos os livros infantis, rearranja-se o conceito de literatura, além de modificar também o valor das obras. No século XX, o romance, a poesia lírica, o poema em prosa que antes estavam em baixa, se elevaram, e nesta fase também se coroaram os livros 95 infantis e as histórias em quadrinhos. Na contemporaneidade, vê-se que o conceito de literatura é muito vasto, vai dos consagrados clássicos até os livros para crianças. E muitas vezes na busca de elevar o caráter literário de algumas obras, busca-se caracterizá-lo não pela teoria literária, mas pela sociologia, pela psicologia, pela pedagogia. Desta forma a conceitualização de uma obra literária se torna extraliterária, ou seja, vai além da literatura. Além disso, o conceito de “literário” traz em sua definição a idéia de que para ser realmente “literária” a obra deverá desempenhar algumas funções tais como: a possibilidade de autoconhecimento, sair do individualismo e atravessar o outro e ser uma fortaleza contra a barbárie (COMPAGNON, 1999, p.36). E a literatura infantil desempenhou e desempenha ao longo de seu processo histórico as referidas funções, aqui destacamos a última citada, pois a literatura infantil muitas vezes se mostra de acordo com a sociedade, com os ditames sociais, acompanhando o movimento, mas há momentos em que há um desacordo e ela se torna vanguardista, indo além do movimento social vigente. Além disso, a literatura infantil caracteriza-se por sua opacidade, é conotativa, complexa, faz uso do imaginário, da função estética e poética, “extrapola, sem fim prático, o material lingüístico” (COMPAGNON, 1999, p.40), produz uma pluralidade nas atitudes comunicativas, “nunca acaba de falar, e não nos dá uma verdade última” ( FORTINI, 1989, p.192). Produz também uma rede metafórica que se faz presente no texto escrito, na ilustração, e no entrelugar híbrido da junção das linguagens. Para os formalistas russos, a propriedade de diferenciar um texto como literário está em distinguir sua literariedade, e ela se concretiza no estranhamento, no desarranjo das formas comuns de percepção (COMPAGNON, 1999, p.40-41) e nas relações ‘culturais’ da escrita /leitura ou de escritor /leitor (FORTINI, 1989, p.182). O que nos leva a pensar que a literatura infantil na contemporaneidade pode não ser o objeto e sim a relação do objeto como o indivíduo. Entretanto, a grande questão aqui é como definir a literalidade do livro infantil. Algumas soluções já foram apontadas, uma delas foi reconhecer a referida linguagem como polissêmica, outra é que pode ela trazer ao leitor possibilidades novas de sentido desestabilizando e reestruturando suas verdades (UMBERTO ECO, In: AGUIAR, 1999, p.242). Mas, estes apontamentos são válidos não só para a literatura infantil, mas para outros gêneros também. Logo, o que torna sua literalidade específica para a literatura 96 infantil, é que ela inicialmente se define a partir do seu destinatário, o leitor implícito: a criança. Desta forma, a multiplicidade de linguagens, verbais e visuais se colocam como meios de sentido, trabalhando a possibilidade de escolhas segundo a percepção do leitor. Num outro ponto de vista, o autor André Mendes (2007) extrapola o conceito de literatura para o livro infantil e o aponta como objeto artístico, para ele, objeto artístico é aquele que, em contato com um determinado sujeito, é capaz de levá-lo a estranhar o familiar, retirando-o do seu centro de certeza, do seu equilíbrio cognitivo, momentaneamente ou não, e a desafiar sua herança cultural. Além disso, André Mendes (2007, p.22) pondera que a partir da fruição da obra, o sujeito pode ser movido, no mesmo momento ou a posteriori, a inventar novos conceitos e a rever os antigos, atualizando sua subjetividade. Deste modo, o referido autor entende que o objeto artístico seria aquele que, na analogia com um sujeito, acende nele o sentimento estético denominado estranhamento. Tal qual abordado pelos teóricos acima para definir a literatura. Nos estudos do autor notamos que os conceitos apontados em relação à arte e objeto artístico (MENDES, 2007, p. 22) se apartam da visão aguerrida e egoísta da arte como produto da aspiração e da determinação de um gênio individual, trocando-a por uma idéia muito mais ponderada e humilde, pois dessa forma, a arte se apresenta como a conseqüência de uma complexa influência mútua de motivações, determinações e acidentes, como um experimento dialógico, que coloca cada indivíduo, criador ou público, numa afinidade fecunda, com várias outras subjetividades e forças construtivas. Assim, o objeto artístico no caso o livro infantil, corresponderia, deste modo, a uma virtualidade que careceria ser adicionada, ou seja: ao número limitado de signos escolhidos pelo artista se adicionaria o signo advindo da subjetividade do leitor, existindo a probabilidade de novas combinações sígnicas a cada leitura. Ao argumentarmos que o artístico se determina numa relação entre objeto e sujeito, não é de surpreender que a apreciação de um objeto artístico se modifique de acordo com uma série de fatores, entre os quais vale a pena apontar a questão do local, a opinião e o contexto histórico. O local onde está presente ou onde é conduzido um objeto artístico costuma ter muita relevância, também como o julgamento que um certo grupo sociocultural tem a respeito desse objeto, ou até mesmo a propósito do artista que o produziu. O tempo também modifica a 97 interpretação dos leitores, não apenas o tempo de apreciação destinado a uma obra, que é cada vez menor, como também o tempo histórico, o contexto (MENDES, 2007, p.23). Deste modo, embora o livro infantil como objeto artístico se dê numa relação, ou seja, se os leitores quiserem interpretar seus significados, ele é dono de um potencial interpretativo que está na sua materialidade (MENDES, 2007, p.23). Desta forma, o livro infantil não se traduz num conceito fechado, numa veracidade imposta por uma determinada linha de raciocínio. O referido objeto artístico se apresenta para uma experimentação integral do pensamento e da imaginação, como uma ação viva que se transforma sempre, que se adequa em função do contexto. O livro infantil oferece uma fórmula polifônica por meio de suas bifurcações, de suas proposições múltiplas e das tramas instáveis e transitórias entre suas partes (MENDES, 2007, p.28). Nesta presente pesquisa foram estudadas obras que, através do processo interpretativo, se mostraram mais significativas do ponto de vista artístico. Selecionamos, como suporte, obras de escritores e ilustradores de livros infantis que em seus trabalhos possuem a riqueza da multiplicidade de linguagens e, sobretudo porque, por meio dessa multiplicidade, buscam adicionar ao texto imagens que apresentam, através da intertextualidade, novas probabilidades de leituras, buscando enriquecer o objeto artístico. Nas obras De Morte! de Angela Lago (1992), O Menino mais Bonito do Mundo (1994), ilustrado por Sami Mattar e Apoena Horta G. Medina, escrito por Ziraldo, há a possibilidade para a contribuição externa das artes plásticas, e esta não é somente uma licença poética presente num objeto artístico, mas uma intervenção conscienciosa, intencionalmente delineada no sentido de expandir determinações da própria obra. As ilustrações que esses artistas realizaram não buscaram a “visão tradicional” que pensa que a ilustração gráfica deve ser, em si mesma, uma narrativa básica que abrevia a circunstância narrativa do texto ao qual se refere. O tipo de ilustração que os referidos artistas buscaram desenvolver é aquela criada para ser uma “transcriação” do texto escrito. O desígnio dessa ilustração produzida é criar, a partir da influência mútua com o texto, um novo significante cujas qualidades, tanto extensas quanto intensas, serão ampliadas. Essas obras também apresentam uma ampliação de novos significados através da intertextualidade com outros artistas e, buscam a concepção de um novo significante, com 98 um novo código e uma nova sintaxe, que irão congregar outros aos seus significados presumíveis e originais, além da adição híbrida dos significados do texto escrito e do texto ilustrativo (MELO, 2007, p.29). As ilustrações criadas por esses artistas podem ser classificadas como preferencialmente conotativas32 (MELO, 2007, p.29). As ilustrações conotativas se contrapõem às denotativas, que se distinguem por ser o sentido mais neutro e generalizado, sendo o primeiro sentido registrado nos dicionários, por direcionar a interpretação do leitor (CUNHA, 2002, p.24), estes tipos de ilustrações, denotativas, são muito encontradas em comunicações informativas e científicas, e possuem papéis bem determinados, que é facilitar a apreensão do texto escrito. A ilustração denotativa também pode ser encontrada em revistas, livros didáticos e até mesmo em obras literárias, como em Volta ao Mundo em 55 Histórias (NEIL 1998) nele, por exemplo, o ilustrador usa essas imagens denotativas para explicar alguma característica importante referente ao conto de fadas, no conto Ivan & o Pássaro de fogo (1998, p.150-153), em sua margem direita o ilustrador colocou a imagem de um caldeirão, objeto muito usado nas histórias Russas e conforme informa o autor, ele simboliza a transformação, fertilidade e renascimento. A ilustração denotativa pode conceber um proveito do ponto de vista estético, porém comumente, não adiciona muito ao leitor em termos de probabilidades interpretativas33. Porém uma rica ilustração conotativa, ou seja, aquela que não procura ser a definição fiel do texto escrito, pode conduzir o leitor real a pensar sobre a leitura, produzindo um diálogo entre o que o texto tem a dizer e o que a ilustração tem a dizer e, desta forma, designar um outro sentido, o sentido do leitor real. A ilustração conotativa, além de trabalhar com a possibilidade de diferentes interpretações promove também para engrandecer essa interpretação (MELO, 2007, p.29). Os livros selecionados para serem analisados se diferenciam por uma complexidade que não está somente nos traços dos desenhos, mas por toda as possibilidades e formas textuais que possuem, e também por um diálogo intertextual com outros artistas e linguagens, em especial: a obra do pintor belga René Magritte em Aviãozinho de Papel 32 A conotação é sempre subjetiva e emocional. Depende do contexto do emissor e do receptor (CUNHA, 2002, p.24). 33 No caso do livro usado como exemplo Volta ao Mundo em 55 Histórias (NEIL 1998), as imagens denotativas são de grande enriquecimento para a obra, pois elas trazem informações bastante esclarecedoras sobre o conto lido. 99 (AZEVEDO, 2004), do pintor europeu Albrecht Dürer em De Morte! (LAGO, 1992), a obra do pintor europeu renascentista Sandro Botticelli em O Menino mais Bonito do Mundo (ZIRALDO, 1994) e ao trágico pintor holandês Vincent Van Gogh em O Caminho do Caracol (ALEXANDRINO, 1998). Os livros infantis citados utilizam o emprego de vários recursos gráficos e citações a outros textos para ampliarem as possibilidades de seus trabalhos, e possivelmente não têm a intenção de eliminar a origem, mas incorporá-la e, assim, motivar uma obra ascendente, fértil e, quem sabe, mais adjacente ao inatingível real, sem experimentar qualquer acanhamento por essa “ação de antropofagia” (MELO, 2007, p.31). As criações poéticas dos livros perpassam pelo tradicional, porém atualizam-no, revivificam-no através de uma visão contemporânea, num movimento em que a literatura, a ilustração, finalmente, a arte se nutre de si mesma como matéria prima, revisitando suas origens jamais inteiramente acabadas. De tal modo como Magritte, os autores e ilustradores buscam desafiar as fronteira da linguagem e do real através de uma releitura do espaço gráfico. Por esse caminho, os livros infantis se nutrem de Dürer (em De morte!), de Magritte (em Aviãozinho de Papel),de Botticelli (em O Menino mais Bonito do Mundo),de Van Gogh (em O Caminho do Caracol) e de outros como Carlos Drummond de Andrade (em Aviãozinho de Papel). E também se valem de técnicas diversas como dobraduras, computações gráficas, telas a óleo. Tais obras não se amedrontam em expor declaradamente suas influências, suas diásporas, suas intertextualidades com os pintores e autores cânones, com o folclore brasileiro, com o texto bíblico. Pelo contrário, as obras transformam esses gestos devoradores, antropofágicos em uma especialidade da sua poética. Nas referidas obras não se admite a concepção da ilustração como uma tradução rigorosa do texto escrito. Como já foi dito, aqui a ilustração é pensada como uma “transcriação” desse texto, isto é, uma ilustração que, a partir do texto escrito e em diálogo com ele, tem competência de designar um novo significante no qual as características do texto são expandidas; não somente por meio de um acréscimo de novos significados, mas a partir de um novo código e uma nova sintaxe, que terão acionado aos seus significados, outros significados possíveis e originais. Ininterruptamente em investigação de novas formas de expressão, cultivando técnicas e caminhos diferentes, desde as possibilidades do 100 uso do desenho infantil até a criação de imagens por computador. Intui-se que essas obras sejam capazes não somente de atualizar a visão de mundo do leitor como também desautomatizar o seu olhar. Nesse capítulo analisamos a intertextualidade, ou seja, a condição de apropriação da “voz” do outro na literatura infantil. Apresentamos também, duas obras de ficção infantil. A primeira: De Morte! (1992) e a segunda: O Menino mais Bonito do Mundo (1994). Ambas interpretadas a partir da perspectiva intertextual. Após, caracterizamos o livro infantil como obra literária, desautomatizada e opaca. No próximo capítulo, refletimos sobre a ilustração do livro infantil e aludimos a teóricos como Saussure, Pierce e Barthes. Após essa reflexão, buscamos apontar o caráter híbrido da literatura infantil a partir do livro Aviãozinho de Papel (1994). Outro livro que buscamos uma interpretação mais aprofundada é O Caminho do Caracol (1998), nesse a narração é feita somente por ilustrações. 101 Capítulo III ILUSTRAÇÃO E TEXTO ESCRITO 102 A análise empreendida no capítulo anterior salientou o alto potencial intertextual implícito ou explícito nas narrativas e ilustrações. No presente capítulo a interpretação dos livros infantis, ficará enriquecida ao elucidarmos, também, informações relativas aos estudos de Pierce, Saussure, Barthes no tratamento das ilustrações. Pela importância dessas questões, optamos analisar dois livros. O primeiro é Aviãozinho de Papel (1994), livro que narra a trajetória de uma folha de papel que continha uma mensagem. Após se transformar em um aviãozinho, a folha de papel é lançada, faz uma viagem até chegar ao seu destino. Uma das principais características abordadas nesse livro é a hibridação que o texto apresenta e o diálogo das ilustrações com a obra do pintor surrealista Magritte. O segundo e último livro analisado é O Caminho do Caracol (1998), esse livro se difere dos demais por ser um livro feito por ilustrações, ou seja, sua narratividade se dá na leitura das ilustrações, nele quase não há palavras escritas. Através das ilustrações temos a história de um menino que certo dia depara-se com um caracol. Ambos resolvem “viajar”, percorrer um caminho mágico que os leva a uma concha e nela mora um idoso caramujo. Esse oferta ao menino um vaso com flor. Já em seu quarto novamente, o menino observa que no vaso de flor continha outros caracóis. Os temas, na interpretação no presente livro, perpassam pela questão do imaginário, da vida urbana contemporânea, da poesia, da mágica e principalmente da “viagem” enquanto uma narrativa metalingüística da própria criação literária. Com exceção da linguagem denotativa, que assenta, tanto quanto possível, na idéia de uma unicidade de sentido e de uma independência em relação ao contexto, as linguagens verbais e ilustrativas tem mais de um significado e recebem da composição em que se acham inseridas a delimitação do seu valor semântico. Este duplo aspecto é uma condição do funcionamento da linguagem, enquanto instrumento de comunicação da experiência humana global, e possibilidade da criação poética, que joga com a polissemia e ambigüidade do significante. Por isso, tanto na interpretação de um texto narrativo quanto de um texto ilustrativo supomos que consideremos a amplitude semântica das palavras e ilustrações que integram o contexto em que se inserem. 103 III.1-Perspectivas facetadas da ilustração As ilustrações têm sido uma ferramenta importante no processo de comunicação entre as pessoas e instrumento de intercessão entre o ser humano e o mundo. Seus estudos perpassam por um conjunto de disciplinas em diálogo, entre elas: semiótica, arte, lingüística, literatura, pedagogia, história. Nesse sentido, o estudo da ilustração do livro infantil é um trabalho interdisciplinar e até transdisciplinar por ser um objeto em que se cruzam diferentes metodologias e correntes que nos auxiliam a compreender as obras em relação a inúmeros aspectos do mundo social e cultural. Essa área efetiva-se assim como um ponto de passagem, que ajuda a quebrar barreiras e fronteiras entre saberes, assentando-se como uma zona de comunicação entre diferentes especialistas. Portanto através da presente pesquisa temos tentado explorar nosso objeto, as linguagens verbais e ilustrativas dos livros infantis, e assim pesquisar suas implicações e as preocupações preliminares que elas demandam, bem como os contextos de surgimento, as intertextualidades e as diversas funções da linguagem e da ilustração. Buscamos ainda evocar a relação ilustração/ palavra, de igual importância para esse estudo, uma vez que o texto escrito não apenas participa da construção da mensagem visual, como ora a substitui, ora a completa em uma circularidade ao mesmo tempo reflexiva e criadora. FIGURA 25- Ilustração e texto escrito de Marilda Castanha Fonte: Castanha, 2001, p.8-9. 104 No livro infantil Agbalá, Um Lugar Continente (Castanha, 2001) temos um bom exemplo em que o leitor pode perceber um grande número de possibilidades interpretativas que o obrigam a lidar com uma série de variáveis ao mesmo tempo, entre elas: a poesia visual, a intertextualidade com temas africanos, a história, a arte (FIG. 25). Nesse texto, a ilustradora e escritora Marilda Castanha (2001), subverte a forma tradicional de leitura, pois inicia o texto com letras maiores até chegar a um nível quase ilegível, dando a idéia de infinito; de que cada um traz em si um pouco de todos. Nessa ilustração há também a idéia de criação de histórias paralelas, de imagens que possuem dentro de si mesmas outras imagens. Observamos que o texto verbal se relaciona ao pictórico, na ilustração há símbolos que remetem ao texto escrito e seus sentidos. O filósofo norte-americano Charles Pierce foi um dos estudiosos a criar uma teoria geral dos signos – a semiótica. Considerada pelos estudiosos da área lingüística, como uma teoria bastante abrangente, ela permite uma ultrapassagem de fronteiras nas diversas abordagens usadas para se analisar uma ilustração. Essa teoria busca abordar a ilustração pelo prisma da significação, pelo seu modo de produção de sentido, ou seja, a maneira como alude às interpretações. Ela apresenta os signos, suas especificidades de ordenação e suas categorias. Esta teoria permite-nos também abstrair a força da comunicação pela ilustração e não somente por sua complexidade. De acordo com as idéias de Peirce, o signo é algo que representa uma outra coisa. Ao ser comunicado a alguém, o signo produz na mente do intérprete um segundo signo que traduz o significado do primeiro. 105 A B C FIGURA 26 a)Ilustração de Graça Lima b) Ilustração de Alcy c) Ilustração de Gê Orthof Fonte A: LIMA, 1997. Fonte B: PAES, 1996. Fonte C: ORTHOF, 1983. A palavra cachorro, o desenho de um cachorro, o esquema de um cachorro, a fotografia de um cachorro, a escultura de um cachorro, são todos signos do objeto cachorro. Quando o receptor olha as ilustrações de um cachorro, olha um signo (a representação) do objeto cachorro. A mente do receptor poderá processar esse signo fazendo vir ao seu pensamento um segundo signo (a representação que sua mente faz a partir do objeto cachorro representado). Este é o interpretante, que traduz o significado do primeiro signo. Como intérprete, o receptor olha o desenho de um cachorro e sua mente o interpreta criando um outro signo (interpretante), que mostra a ele que é um cachorro. 106 Sendo assim, o significado de um signo é outro signo. Isso acontece porque há uma relação entre o próprio signo (um representante), o objeto (aquilo a que o signo se refere e é por ele representado) e o interpretante (conceito e a imagem mental construída na mente do receptor do signo). Entretanto, ainda seguindo as idéias desse autor, um signo só é a representação de algo se conhecermos o objeto do signo, ou seja, aquilo que é representado pelo signo. Se um signo-objeto não faz parte das referências pessoais e culturais do intérprete, não há possibilidade de o signo ser aplicado, de denotar o objeto para o intérprete. Assim, embora os signos possam ser inúmeros e diferentes, todos teriam um fio comum: a vinculação do significante ao referente e ao significado. Todos os signos podem significar algo além deles mesmos. Pierce propõe a distinção de três tipos principais de signos: o ícone, o índice e o símbolo. O ícone mantém uma analogia com o que representa, isto é, com seu referente. O índice corresponde à classe dos signos que mantém uma relação casual de contigüidade física com o que representa e finalmente o símbolo corresponde à classe dos signos que mantém uma relação de convenção com seu referente. Estes estudos feitos por Pierce são muito úteis para a compreensão das ilustrações e seus diferentes tipos, assim como para a compreensão de seu modo de funcionamento. Outro grande lingüista que estudou uma ciência dos signos foi o suíço Ferdinand de Saussure. Este partiu do princípio de que a língua não era o único sistema de signos que exprime as idéias para a comunicação. Ao estudar a natureza do signo lingüístico, caracterizou-o como uma entidade psíquica de duas faces que não se separam que uniam um significante (os sons) a um significado (o conceito). A relação entre significante e significado, ou entre os sons e sentidos na língua foi apresentada como “arbitrária” por Saussure, ou seja, convencional, por oposição a uma relação dita “motivada”, quando tem justificações “naturais”, como a analogia ou a contigüidade. 107 Vimos portanto, que a ilustração tornou-se um sinônimo de representação visual e logo, outro estudioso, o francês Roland Barthes se propôs, como objetivo, pesquisar se a ilustração contém signos e quais são eles, inventando sua própria metodologia. Essa se propõe ressaltar que os signos a serem apresentados têm a mesma estrutura que a do signo lingüístico, elaborado por Saussure: um significante ligado a um significado. Barthes considera ainda que, ao se obter significados do objeto analisado, procurando elementos que fazem emergir tais significados, se associam a eles significantes encontrando signos plenos. Para JOLY (1996, p.36), o procedimento de partir de significados para encontrar significantes e, portanto, os signos que compõem a imagem, apresenta-se perfeitamente operatório. Pois assim é possível apontar que a ilustração é composta de diferentes tipos de signos: lingüísticos, icônicos, plásticos, juntos afluem para a construção de uma significação global implícita, que integra, nesse caso preciso, a melodia da língua, a idéia de nação e da cozinha mediterrânea. Os pontos comuns nos estudos de muitos pensadores acerca da ilustração é que ela indica algo que, embora nem sempre remeta ao visível, traz algumas marcas do visual. Observamos também que ela depende da produção de um sujeito. Em um livro intitulado Vida e Morte da Imagem: uma história do olhar no ocidente (1993, p.41), o autor Debray confirma e comprova que desde há algumas dezenas de milhares de anos, as ilustrações levam os indivíduos a sempre agir e reagir diante delas, quer tenham um efeito de alívio ou venham a provocar selvageria, maravilhem ou enfeiticem, sejam manuais ou mecânicas, fixas, animadas em preto e branco, em cores, mudas ou falantes. Assim, existe uma relação do observador com a ilustração do livro infantil, e essa depende de como foi pensada pelo seu produtor. Esse provavelmente a vê como algo a mais - um objeto que possui uma aura de sentidos múltiplos - e o observador, mais perspicaz, busca analisar suas representações e ambigüidades (GIANNOTTI, 2005, p.25). Tais representações podem vir a extrapolar o previsível, o conhecido. No fazer ilustração, principalmente se for uma ilustração artística, pode haver a condensação da intuição, da percepção, do sentimento/ pensamento e o conhecimento do produtor. E pelo 108 poder de tais coisas, o observador pode vir a captar uma forma de sentimento que o nutre simbolicamente, ampliando suas representações. Na verdade, dependendo das ilustrações contempladas e das narrativas lidas, o ser humano pode realizar uma infinidade de leituras, porque é também infinita a capacidade do mesmo de perceber, sentir, pensar, imaginar, emocionar-se e construir significações diante das ilustrações. FIGURA 27- Ilustração de Marilda Castanha e Nelson Cruz, texto escrito de Leo Cunha Fonte: CUNHA, 2001. Uma ilustração de livro infantil, ao ser interpretada, pode levar o leitor a pensar certas estruturas abertas, que se atam a outros discursos, e até mesmo nos levar a um discurso vazio. Mas o presente trabalho pretende, ao abordar a interpretação das ilustrações para livros infantis, sair da interpretação exclusivamente historicista, tendo em vista que não basta apenas descobrir a raiz histórico-social da questão para um aprofundamento em sua análise. Giannotti ressalta que “cada eco interpretativo é empuxo para outro, sugestão de outras evidências (...), terreno marginal, aura, que circunda cada obra singular, sempre revolvida pelo arado do pensamento que se faz coisa na sua qualidade de norma do ver” (1995, p.29). Em um prefácio para o livro de André Mendes, Julio Jeha (2007) nos elucida que ao analisar o livro infantil com suas ilustrações vamos nos encontrar com ilustradores que 109 fazem nascer um mundo a partir de fragmentos de vários outros, pertencentes a diversos modos de representação. Eles inserem elementos gráficos para ilustrar a história, ultrapassando — e muitas vezes contradizendo — a expectativa do leitor. Dessa mistura de sistemas semióticos resulta um texto mais complexo, um terceiro modo de significação com maior potencialidade que a soma de suas partes nos levaria a crer. As relações especulares que estão sendo analisadas deixam perceber a recorrência de temas que ligam-se a idéia de hibridação. Consideramos híbrida a composição de elementos diversos que se reúnem para originar um outro elemento (CANCLINI, 2006; ABDALA JR., 2004). No livro infantil a linguagem verbal une-se a linguagem ilustrativa formando um terceiro elemento. Ou ainda, no caso da intertextualidade, por exemplo, quando Ziraldo apropria-se da história bíblica, temos outra forma de hibridação. A narrativa infantil une-se à narrativa bíblica formando uma terceira narrativa, fruto da mescla de linguagens. Nesse caso, intuímos que torna-se possível observar esses jogos de hibridação em grande parte, graças a um olhar transdisciplinar. Para que esse mundo ficcional complexo venha a permanecer é necessário ter um leitor que distinga os códigos utilizados, que tenha expectativas culturalmente determinadas. Satisfeitas essas exigências, têm-se, então, as condições propícias para a gênese do sentido. Mas o novo sistema só se torna semiótico, isto é, só é capaz de significar, a partir do encontro dos objetos com a mente que os interpreta. Ainda para Jeha (2007) a tradicional oposição entre um sujeito beneficiado de faculdades intelectuais natas e um objeto portador de informações sensórias repete-se nas teorias sobre a leitura. Há uma linha que o autor denomina relativista onde cada leitor traz consigo o sentido do texto, que conviria apenas como pretexto para suas idéias e gostos. Contrariamente a essa posição, teríamos uma tendência fundamentalista, que seria a concretização da idéia do autor, os significados do texto estariam no próprio texto. Assim, as duas tendências, possuem aspectos positivos e negativos, e apresentam diferenças irreconciliáveis, levantando e deixando em aberto uma questão fundamental: o que acontece ao lermos um texto? Para resolver a difícil situação entre sujeito e objeto, ou leitor e texto, adotamos um ponto de vista semiótico e apontamos a relação necessária entre um e outro na geração de 110 significado. O livro infantil, assim como qualquer objeto, se oferece ao sujeito para ser interpretado. O sujeito o interpreta, isto é, lhe confere valores que regulam a interação entre eles. Faça parte ou não da experiência de um organismo, o objeto existe por si próprio, mas, ao se revolver objeto da experiência, contrai significados até então inexistentes. O sentido do texto não está só nele, nem só na mente do leitor, mas surge do encontro da mente com o texto, influenciado por variáveis individuais e culturais (MENDES, 2007). Na tentativa de interpretar os livros infantis sobre o prisma das idéias apontadas anteriormente, optamos em adotar dois livros. Aviãozinho de Papel (1994) e O Caminho do Caracol (1998), que através de suas linguagens, nos apontam múltiplas dimensões. Suas ilustrações nos conduzem para um entrelaçamento de “vozes”, mescla de olhares. As fronteiras entre palavras, ilustrações, artes plásticas, poesia se pulverizam, as linguagens se hibridizam. III. 2-Aviãozinho de Papel: hibridismo entre ilustração e palavras Graças à ilustração, o livro para crianças passou “a constituir uma espécie de novo objeto cultural, onde visual e verbal se mesclam” (CAMARGO, 2004). Tomando essa citação como pano de fundo para o presente estudo, propõe-se que o livro infantil ilustrado constitui-se como suporte para um texto híbrido, composto pelo texto verbal e pelo texto visual. No caso da narrativa, temos uma espécie de narrativa dialogada, com a alternância de enunciados verbais e enunciados visuais. Pretende-se então analisar, tornando-o objeto de estudo, o livro Aviãozinho de Papel, de Ricardo Azevedo (1994)34, com desenhos do mesmo autor. 34 Ricardo Azevedo é escritor e ilustrador paulista nascido em 1949, é autor de mais cem livros para crianças e jovens, entre eles Um homem no sótão (Ática), Lúcio vira bicho (Cia. das Letras), Aula de carnaval e outros poemas (Ática), A hora do cachorro louco (Ática), Livro dos pontos de vista (Ática), Armazém do Folclore (Ática), Histórias de bobos, bocós, burraldos e paspalhões (Projeto), O livro das palavras (Ed. do Brasil), Trezentos parafusos a menos (Companhia das Letrinhas), O sábio ao contrário (Senac/Ática), Contos de enganar a morte (Ática) e outros. Tem livros publicados na Alemanha, em Portugal, no México, na França e na Holanda. Bacharel em Comunicação Visual pela Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado e doutor em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo. Pesquisador na área de cultura popular. Tem artigos publicados em livros e revistas abordando problemas do uso da literatura de ficção na escola. 111 A forma como Ricardo Azevedo produz suas ilustrações reflete uma postura, diante da arte e do objeto artístico, que considera o leitor, de suas obras, não como um sujeito totalmente independente do texto, ou como sujeito preso às interpretações que ele, como artista, pretendeu quando criou a obra: essa postura está de acordo com uma forma de pensar que considera ser possível ao leitor, interagir com a obra artística não apenas pela soma de interpretantes, mas criando um novo objeto que terá sua forma final definida por essa interação e, ainda, pelas inferências externas e acontecimentos imprevistos. A capa é um texto tipicamente híbrido35, composto por três enunciados verbais e um visual (FIG 28, A). No alto da capa está, primeiramente, composto o nome do autor RICARDO AZEVEDO que tem dupla autoria do livro: verbal e visual. O nome do escritor é impresso em preto. O segundo enunciado é o título da obra, composto em letra cursiva: Aviãozinho de Papel. O terceiro enunciado é a logomarca da editora e o seu nome: Companhia das Letrinhas, que também vem em letra cursiva, porém, no título a letra apresenta a idéia de que foi escrito a lápis ou carvão sobre um fundo branco. A B FIGURA 28 a)Capa do livro b)Pintura de Magritte Fonte A: AZEVEDO, 2004. Fonte B: PAQUET, 1995, p.21. 35 Canclini define hibridação por “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (2006, p. XIX). 112 Como fundo há uma ilustração, em formato proporcional a cada escrito e possui um plano aberto, sem margens. O desenho mostra um homem ou menino lançando, através da janela, um aviãozinho de papel. O personagem está de costas para o observador, mostrando em perfil a face direita. Não é possível representar uma cena, um rosto, um objeto, sem apresentar, ao mesmo tempo, um ponto de vista: o ponto de vista do ilustrador, que, por sua vez, será compartilhado pelo observador da ilustração. Nesta cena, estamos atrás do menino/ homem, um pouco próximos, como se estivéssemos no mesmo espaço. A ilustração não é uma fotografia, nem tenta parecer uma fotografia. O modelado é bastante simplificado. Os volumes são geométricos, principalmente a casa que possui a janela quase que no centro da capa. Essa casa provavelmente não faz parte de uma cidade, ela possui chaminé, caixa de marimbondo, é permeada por rio, montanha, ao seu lado tem duas árvores, sendo uma delas um coqueiro e abaixo da janela tem uma flor que será retomada ao final do livro. Esses aspectos bucólicos já trazem uma idéia de simplicidade e lirismo ao livro. Além disso, com grande importância está presente a idéia de tempo, o céu que compõe a cena noturna é bastante estrelado, entretanto em meio a suas estrelas e luas (duas), há também marcas do amor simbolizado pelo coração e marcas do clima melódico simbolizado pelas notas musicais. As cores mais quentes estão no telhado e na flor, próximo do centro da pintura. Cores frias e neutras – azuis, verdes e branco – dominam o resto da pintura. O observador pode partilhar o sentimento de liberdade, mesmo que não saiba quem é o menino/ homem. Por outro lado, depois da leitura do livro, essa informação se agrega aos significados da ilustração. O enquadramento meio aberto – mas um pouco próximo – pode lembrar os enquadramentos de narrativas televisuais como seriados, minisséries e novelas. O ângulo de visão frontal e com elementos surpreendentes como o coração e as notas musicais, neste caso, lembra o ângulo preferido pelos pintores e desenhistas surrealistas. E essa maneira de pintar, com o uso de elementos inusitados, que beira ao onírico, será observada variadas vezes no decorrer das páginas. Tecendo um diálogo intertextual, principalmente, com as obras do pintor belga Magritte. E numa análise mais profunda dessa idéia, a própria imagem da capa nos remete a obra O salão de Deus, (PAQUET, 1995, p. 21) onde 113 apresenta um céu noturno e paradoxalmente uma casa de campo iluminada (diurna) (FIG. 28, b). No caso da ilustração também se vê o céu noturno, mas a casa está bastante iluminada em seu exterior. Abrindo o livro, encontramos uma folha de guarda (ou orelha do livro), cor branca com escritos em preto. Onde o autor relata, que a história partiu da semelhança entre uma garrafa com uma mensagem jogada ao mar e um livro: “Uma garrafa atirada n´água é feito um livro e um livro é parecido com um aviãozinho de papel (...).Também um aviãozinho, se tiver sorte, pode chegar longe carregando em suas dobras uma idéia, uma lembrança, um sentimento” (Azevedo, 1994). No ante-rosto, página em que usualmente só viria o título da obra, aparece uma ilustração, também em formato proporcional à página, com largas margens brancas, onde se vê o personagem principal da história, o aviãozinho, agora mais nítido e detalhado. Observa-se que ele foi feito de papel de caderno, pois possui pautas e sua dobradura é simples e comum ao meio estudantil. Os significados do texto verbal se projetam sobre as ilustrações e os significados das ilustrações se projetam sobre o texto verbal: nessa ilustração, por exemplo, o aviãozinho aparece solitário, mas valente apesar de ainda inanimado, antecipando, de certo modo, o texto das páginas seguintes. A história do livro é, portanto a de um aviãozinho lançado de uma janela por um menino/ homem e o percurso deste aviãozinho vai até o final do livro. A estrutura narrativa segue frouxamente a tradicional: na situação inicial o aviãozinho é lançado pela janela; o desenvolvimento narra a viagem do aviãozinho por vários lugares, incluindo um forte vento que o derruba. A ação é retomada por intermédio de um menino que recolhe o aviãozinho, o reconstrói e o lança de novo. O desenlace é a chegada do avião ao seu destino: ele traz uma mensagem para alguém que sorri ao ler as suas poucas palavras, mas de grande significado para esse alguém, que o texto escrito não revela quem é, porém se mostra na ilustração da última página. No projeto gráfico do autor o texto é colocado à direita e as ilustrações nas páginas da esquerda, limitadas por uma linha fina. No início do texto o autor já nos dá informações importantes a cerca do livro: o personagem da capa que lança o aviãozinho de papel não era um menino, e sim um homem, 114 e o aviãozinho foi realmente feito de folha de caderno. E o narrador dá vida a um personagem que antes era inanimado ao dizer que a “vida de um aviãozinho é cheia de quase tudo. Tem calmaria, tem espanto, tem acasos e tem belezas” (AZEVEDO, 1994, pág. 3). Abaixo e do lado direito, medindo quase dois centímetros, temos uma vinheta, que é uma ilustração pequena, que pode medir até cerca de 1/4 do tamanho da página. Do francês vignette, pequena vinha, estes ornamentos representavam, na origem, cachos e folhas de videira, símbolo da abundância (CAMARGO, 1995, p. 16). A vinheta do livro é um vaso preto e branco ornamentado com folhas de uva36 estilizadas, e no decorrer das páginas (da pág. 3 a pág.23) irá nascer dele duas folhas e uma flor, que é um significante muito importante para o livro. Se o leitor passar rapidamente as páginas do livro, ele irá ver a plantinha crescendo e brotando a flor, dando uma idéia de desenho animado. Desta forma o ilustrador acrescenta mais uma linguagem ao texto. Observamos que essa vinheta se apresenta já na capa, no meio do livro e ao final do livro, formando uma narrativa adjunta a outra narrativa, porém a primeira é ilustrativa e verbal e a segunda é apenas ilustrativa e a partir dessas ilustrações forma-se outra história. Essa vinheta tem função de pontuação quando orientada para o texto no qual – ou junto ao qual – está inserida, sinalizando seu início, seu fim ou suas partes, criando pausas ou destacando elementos (CAMARGO, 1995). Emoldurado por uma fina linha preta, à esquerda, está uma ilustração que dialoga com o texto à direita, em ambos está explícita a metáfora da viagem, tão presente nas religiões e nas artes ao se tratar da existência terrena do ser humano. No texto escrito temos os substantivos folha que se liga à brisa, garrafa que se liga a ondas do mar, andarilho que se liga ao mundo. E uma palavra significativa que o autor evoca é o medo que a viagem proporciona. A ilustração traz, pictograficamente, os substantivos citados no texto, mas o complementa com outras metáforas da viagem como o passarinho, a borboleta, o mosquito, um balão, um barco, uma flor (tão frágil e efêmera!), árvores, rio...e uma pequena pedra que, no decorrer do livro, ficará grande. E num diálogo poético e metafórico, com o escritor 36 Repararmos que as e folhas de parreira lembram os arabescos da arte mulçumana, e tais motivos também foram muito trabalhados nas iluminuras da Idade Média, as quais, devido às suas cores vivas e soluções gráficas, dão até hoje inspiração para ilustradores. 115 Carlos Drummond de Andrade, ela se situa exatamente “no meio do caminho”(FIG. 29). Seria essa pequena pedra uma tradução textual do medo? FIGURA 29-Ilustração de Ricardo Azevedo Fonte: AZEVEDO, 2004, p.4. As enumerações dos objetos: “uma flor, um piano de cauda, um relógio parado, uma joaninha, dois caminhos...”, as aliterações e assonâncias: “de nada, de nada, de nada”, as metáforas e símbolos: “um segredo escondido atrás de uma pedra” que o texto evoca sugerem recursos da poesia, recursos esses que serão reiterados ao longo da narrativa, confirmando o hibridismo do nosso texto: tanto narrativa como poesia – uma narrativa poética. Pela primeira vez, na página 7, o aviãozinho ganha voz, se humanizando ainda mais. Passando de “uma folha de caderno quase em branco que por isso não conhecia nada de nada de nada” a um ser pensante e deslumbrado com os encantos da viagem. A ilustração da página 6 coloca todas as coisas heteróclitas37 , inclusive algo que não é concreto-o segredo escondido atrás da pedra...- numa montanha verde, onde o sapato 37 O termo heteróclito se refere a algo que se desvia dos princípios da analogia gramatical ou das normas de arte. 116 voa no céu, o peixe salta sobre o verde. A ilustração também apresenta certos ícones comuns ao estilo do ilustrador e que estão presentes em seus livros em geral: a borboletinha, a árvore, a maçã com uma mordida (FIG 30, a). A maçã é um motivo recorrente também na pintura de Magritte. Em uma delas, um ambiente é tomado por uma maçã verde enorme (FIG 30,b); em outra, uma maçã se encontra ao lado de um rosto marmorizado e branco, com uma mancha de sangue em sua fronte e um copo d´água (FIG. 30, c). O primeiro denomina-se A Sala de Escuta, (1658) e o segundo Memória (1945) (PAQUET, 1995, p. 63 e 30). A conotação de desejo não é estranha a essas pinturas, o que também não é estranho à tradição cultural judaico-cristã. O pintor belga e o artista brasileiro utilizam, assim, imagens e conotações difundidas culturalmente. A B a)Ilustração de Ricardo Azevedo FIGURA 30 b) Pintura de Magritte Fonte A: AZEVEDO, 2004, p.6. Fonte B: PAQUET, 1995, p.30. Fonte C: PAQUET, 1995, p.63. C c)Pintura de Magritte 117 Logo, esses objetos disparados, todos juntos num mesmo espaço, acentuam a atmosfera lírica, imaginária do texto escrito. Nessa imagem também, observa-se a complexização por meio desse caos, pois o leitor pode vir a perceber grande número de possibilidades interpretativas que o podiam levar a lidar com uma série de variáveis ao mesmo tempo. Aqui será natural que o leitor possa ficar confuso, tanto pela transformação das palavras em ilustração como pelo desenrolar da história, o que o fará procurar outras relações de significação a fim de encontrar a “solução” do mistério. Assim como as páginas anteriores, às páginas pares apresentam a ilustração e às ímpares apresentam o texto escrito. Nesse, além das enumerações (locomotiva, manual de instruções, fábrica, uma fumaça, uma régua, uma caixa de queijo Caputiry...) traz um elemento importante ao protagonista: uma mala, que a partir da comparação com o outro viajante, possivelmente o dono da mesma, ele, o aviãozinho, se vê como indivíduo e de certa forma assume uma identidade. A ilustração (FIG. 31) é um emaranhado de montanhas, onde passa uma locomotiva, e estranhamente uma máquina antiga de filmar com cores e proporções relativas à locomotiva. E ambos são objetos que lembram do passado “que passa”, ao fundo um casarão que possui uma torre que solta fumaça e esta contrasta com a fumaça da locomotiva. Fazendo um jogo com o vento, uma fumaça vai para a direita e outra para a esquerda. FIGURA 31 a)Ilustração de Ricardo Azevedo Fonte A: AZEVEDO, 2004, p.8 Os objetos que compõem um suposto primeiro plano da cena, apresenta uma fusão: há quatro objetos que estão identificados por algo escrito, a mala tem uma identificação com o nome do seu dono - nome e sobrenome - ambos não são nítidos e nem 118 legíveis, levantando as supostas interrogações: Quem será o dono ou a dona da mala de viagem? Poderia ser o leitor que também participa dessa viagem literária? A chave e o queijo também estão identificados. Esse com a sua idéia de sabor, catupiry. E aquela com o numeral 1., que nos remete a uma chave de hotel que é um elemento também ligado a viagem. A chave também traz em si a metáfora do poder de escolha, tanto do trancar, quanto de destrancar. Entre outros desenhos, ora repetidos e ora novos, temos presente novamente o caminho que tem uma pedra em seu meio. Agora ela está mais visível do que na página 4 e também aparece o herói da história, o aviãozinho que sobrevoa toda a cena. Na página 10, a ilustração evoca a do verso do ante-rosto: vemos o aviãozinho, solitário e temeroso. Desta vez é possível identificar que o céu ficou muito escuro, com nuvens carregadas e ventos fortes. Fica evidente, aqui, a importância do conhecimento de mundo e do repertório de imagens do leitor. Sem memória, não é possível reconhecer, identificar, nomear e descrever. A representação do fundo do desenho e o texto trazem informações fundamentais: “Mas o vento...ah, o vento! É mestre em manhas e artimanhas. Uma hora passa soprando, amigo e companheiro. Outra, assobia arrogante. De repente, explode brusco e inesperado” (AZEVEDO, 1994, p.11). Por meio da dupla projeção de significados – do texto para as ilustrações e viceversa – identificamos que na viagem do nosso personagem, o mesmo que o ajudava a voar o levará a cair, o vento. A narrativa prossegue descrevendo os movimentos de queda do aviãozinho, numa perfeita sincronia entre sonoridade e visualidade ou seja, as imagens que o texto evoca no leitor são conduzidas por musicalidade. A voz do narrador se mistura com a voz do aviãozinho, que expressa um sentimento de despedida e ida para a morte. Chega-se assim ao exato meio do livro, páginas 12 e 13. Nele as duas páginas são compostas de ilustrações, chamadas de páginas duplas no jargão editorial, sem nenhum texto escrito, e que possui grande significado, ainda que o leitor não tivesse lido o livro. Nessas páginas, as margens que sempre limitavam os desenhos anteriores desaparecem, deixando a ilustração com contornos insólitos. O espaço continua sendo rural e com colinas, o caminho que perpassa as colinas é bem nítido e grande, agora a pedra que 119 “sempre esteve no meio do caminho” se torna mais significativa, ao lado dela se encontra, todo estragado, o nosso herói, que “de uma queda foi ao chão”. Contudo, percebe-se que tais páginas trazem para o leitor uma espécie de pausa na leitura textual, assim como uma pausa na vida do aviãozinho. Porém, entre os grampos do livro, há uma folha de caderno pautada em branco. Ela foi colocada pelo autor para ser destacada, dobrada, escrita e lançada pela janela, como posteriormente será esclarecido no final do livro. Nas páginas 14 e 15, o narrador volta a nos falar pelo texto escrito, ele descreve o sentimento de incerteza e dúvida que teve o aviãozinho quanto a sua identidade de aviãozinho, ele mal sabia se estava vivo, se era aviãozinho, folha de caderno, bola amassada de papel. Mas em meio a essas dúvidas, ele novamente desperta e revive sua memória, pois adjunto a ele aparece um menino que assobiava. Esse menino, primeiramente, pesquisou o objeto, depois o desamassou e o relançou à imensidão do espaço. A ilustração, pela primeira vez corresponde mais realisticamente ao texto, aparece o menino que pega o aviãozinho derrubado pelo vento. Porém, a ilustração apresenta elementos que completam o texto, como a roupa e o tênis que o garoto usa. Além disso, há ao fundo da ilustração uma árvore com cores bastante originais sobre uma montanha azul. O que poderia nos dar idéia da imensidão do espaço que o aviãozinho volta a se apropriar. A cena se prolonga além do campo de visão, ao mesmo tempo em que dá uma impressão de incompletude e de fugacidade: o leitor poderá contemplar um instante. A representação se preocupa com linhas e formas definidas, o que se evidencia nas bordas da ilustração. O modo indicativo de representar, já observado em relação aos fundos, fica evidente na representação do espaço. Os volumes são simplificados e com proporções realistas. Isso fica claro na representação do corpo do menino. As ilustrações não explicam nem ornamentam o texto; não buscam equivalências entre o verbal e o visual. Mais do que coerência ou convergência de significados parece que se trata da co-laboração dos discursos verbal e visual, constituindo um discurso duplo, um diálogo. As características semióticas, semânticas, cognitivas e emocionais de cada linguagem criam um discurso híbrido, em vários níveis. É sabido que se pode estudar o 120 texto e as ilustrações separadamente e que podem ser relevantes os estudos que abordam apenas o texto. A ilustração da página 16, mostra vários objetos que primeiramente não formam um conjunto coerente, mas depois, de observar minuciosamente se vê que todos têm uma característica em comum: o ato de voar, nem que seja apenas na imaginação como o boi de asas. O leitor provavelmente deve saber, pelo seu conhecimento de mundo, que a pedra é estática se não for impulsionada, embora pudesse sugerir movimento. O ilustrador, parece querer mimetizar os movimentos da memória, alternando ilustrações vívidas e ilustrações fugidias. E aqui parece fazer todo o sentido as ilustrações meio caóticas, como são as imagens da imaginação. Além da forma caótica como são colocados os objetos, é possível encontrar distorções físicas nas figuras, como ocorre nas ilustrações medievais. O passarinho, por exemplo, é representado em tamanho desproporcional em relação ao avião que está bem abaixo dele. Outro exemplo é o tamanho desproporcional do super-homem em relação ao planeta, (talvez esse tamanho sirva para acentuar seu poder ou o tamanho da sua força). Ricardo Azevedo também deforma o boi, assim como deforma a bola. Afinal é tudo ficção, é tudo uma brincadeira, nada é real: uma forma de reforçar o jogo com a recepção. Há também outros gestos de inovação, como na utilização da imagem do vaso de flor à direita, ou seja, além de dar mais beleza, ele é utilizado como um recurso pictórico. A distribuição do texto pelas páginas é feita de modo a criar efeitos de suspense: “E no mar havia uma ilha distante e sobre a ilha distante um farol e o farol indicava o caminho e o aviãozinho deixou-se levar pelo caminho” (AZEVEDO, 1994, pág.19). Observa-se nas passagens seguintes que o aviãozinho viveu um fator muito importante em seu percurso: a passagem do tempo (seria uma metáfora do amadurecimento humano?), que também voava com ele. Além disso, a viagem o levou a um elemento de mistério, o mar e sobre o mar ele teve a indicação do caminho a seguir através do farol que animicamente lhe indicou o caminho. Em Aviãozinho de Papel, a viagem é um dado fundamental na estrutura da narrativa e para a vitória do herói. Viajar é, em si mesmo, um ato lúdico: significa experimentar o perigo de se viver. Viajar já é uma disputa do homem contra a natureza, contra o tempo e o espaço. Desde os clássicos gregos encontram-se, em várias obras, heróis que enfrentam 121 obstáculos passando por uma série de provas, até voltarem vitoriosos. Nesses casos, a viagem tem um caráter iniciático: ela é, ao mesmo tempo, risco e aprendizagem, experiência de vida, aventura. Com o Aviãozinho não é diferente. Desde a partida, não sabe ao certo que tipo de obstáculos terá que superar durante o percurso, sendo obrigado a lidar com situações de adversidade — por exemplo, ele cai. Vencer as dificuldades de uma viagem é como sair vitorioso de uma partida. É como entrar no labirinto e matar o Minotauro. No caso do nosso protagonista, as situações que ele é obrigado a superar contribuem de forma decisiva para ajudá-lo a vencer o desafio de levar uma mensagem ao seu destinatário. O espaço que antes era rural mudou-se para urbano, com prédios e favelas geometricamente representados e, além disso a ilustração numa forma de diálogo com o texto escrito mostra figuras humanas: uma mãe com seu bebê, um menino negro, um soldado, uma idosa risonha, um senhor da roça. O texto escrito apresenta diferentes personagens, trabalhando de forma explícita a visualidade imagética do leitor. Diferentemente da página 11, na página 21 o aviãozinho começou a cair, mas dessa vez foi planando numa imensa suavidade e pousou numa flor. É interessante observar que, na ilustração da página 20, não aparece a flor, entretanto na página 21, pela vinheta, já explicitada anteriormente, há uma pequenina flor nascendo do vaso. Talvez o leitor saiba que não se trata da flor em que o aviãozinho caiu, mas ambas são interessantes e possuem significados que dialogam. Nas páginas que se sucedem, 22, 23 e 24, temos o desenlace final do livro. Vemos primeiramente, na ilustração da página par, a flor da qual recebe as atribuições de beleza (em especial a feminina), perfeição espiritual, inocência natural, suavidade – mas também da brevidade da vida (TRESSIDER, 2003, p.147). Essa flor acolhe e abriga em seu interior o aviãozinho, numa atmosfera de total lirismo, a flor feminina, o aviãozinho masculino se unem numa fecunda poesia visual. No texto escrito, podemos visualizar ilustrações sinestésicas: “A flor era vermelha e cheirosa” (p.23). Observa-se também que alguém veio pegar esse aviãozinho, o olhou, sorriu e leu o que estava escrito. Eram poucas palavras, mas tão significativas que fizeram o aviãozinho compreender que sua viagem chegara ao fim e o havia levado ao seu destino. 122 Na página final 23, ultrapassando os limites da margem que sustentava as ilustrações, aparece uma bela moça, com sorriso suave, carregando o aviãozinho mensageiro em suas mãos. Essa moça olha frontalmente para fora da ilustração. Estaria ela olhando para o leitor? Ao seu lado, se faz presente a flor que serviu de suporte ao pouso do aviãozinho e admiravelmente, ao fundo da ilustração aparece a mesma casa que está na capa, onde o homem lançou pela primeira vez o seu aviãozinho. Logo se vê que o herói da história fez um movimento cíclico e circular38 em sua viagem, ele chegou ao ponto de onde saiu, levando a pensamentos metafóricos de início e fim, vida e morte, saída e chegada. Observa-se também que quando ele saiu (capa) estava de noite e quando ele voltou também estava de noite, completando ainda mais essa atmosfera de amor e suavidade que permeia a viagem do aviãozinho. A contracapa foi também suporte para que o autor/ ilustrador deixasse uma marca. Há nela uma árvore, simples, comum a desenhos infantis, porém dois aspectos chamam a atenção: seu tronco possui um coração remetendo a idéia de amor entre namorados e sua copa é carregada de estrelas, lembrando do clima noturno que acompanha a ida e a chegada do aviãozinho. Abaixo dela lê-se: “Um aviãozinho de papel, atirado do alto de uma janela, parte para uma viagem cheia de paisagens, espantos, encontros, por acasos e belezas até alcançar, certo dia, o seu destino” (AZEVEDO, 1994). Provavelmente todo texto nasce como uma espécie de fala interior, mas, para ser reconhecido como texto, ele precisa ser enunciado sob uma forma material e sensível: a fala, a escrita, os sinais. Pode-se dizer, por exemplo, que uma conversa é um texto, enunciado oralmente por dois ou mais enunciadores; que uma entrevista (publicada em jornal ou revista) está enunciada visual ou graficamente; que o telejornal é um texto enunciado audiovisualmente e assim por diante. Sugere-se, assim, o termo enunciação gráfica para designar o modo como o texto escrito é enunciado, abrangendo várias modalidades: a manuscrita, a impressa, a digital (CAMARGO, 2003). Contudo como a enunciação oral pode conotar um enunciado com as mais variadas intenções – afirmar, perguntar, pedir, ordenar, convidar etc. –, a enunciação gráfica também 38 A configuração na forma circular e o movimento rítmico têm relações representativas com a idéia de totalidade do temporal e do recomeço. O círculo é uma roda, e é na roda de fiar que as deusas tecelãs fiavam o destino. É na roda que soam as histórias, enquanto se tecem as tramas da imaginação (BUSATTO, 2006, p.77). 123 agrega significados ao texto. Por exemplo, há vários recursos de sonoridade e ritmo, típicos da poesia, que são reforçados pela localização, especialmente o início e fim de palavras, versos e estrofes. “E lá se foi o aviãozinho metido entre nuvens velozes e rajadas e sopros e ares e trancos e barrancos e tomos e rangidos e gemidos e assobios sacolejando e rodopiando (...) nem teve tempo de dizer:_ Adeus, vou pra não voltar...” (AZEVEDO, 2004, p.11). Luís Camargo (2006), nos atenta para duas tramas do texto: a estrutura sintática e a estrutura temática. A estrutura sintática refere-se à combinação das palavras formando sintagmas cada vez maiores: expressões, frases, orações, períodos, versos, estrofes, cantos, partes, etc., ou ainda, no caso da prosa, parágrafos, capítulos, etc. A estrutura temática refere-se à organização do texto em tópicos e subtópicos. Angela Kleiman (1993, p. 59) designa essa estrutura mapa textual, uma metáfora bastante rica, especialmente no caso de textos curtos, em que é possível desenhar essa estrutura e, assim, visualizá-la. Em relação à metáfora mapa, é importante assinalar ainda que, assim como um determinado espaço admite diferentes mapas, segundo o interesse do cartógrafo (por exemplo, político, bacias hidrográficas, densidade demográfica, alfabetização etc.), os textos também permitem diferentes mapas textuais, segundo os interesses de quem o interpreta. Como diz Kleiman (1989 p. 95): “Uma vez que a macroestrutura de um texto resulta de um processo inferencial do leitor, pode haver diferentes macroestruturas de um texto, mas haverá também um alto grau de concordância (...)”. Um exemplo da cartografia desse livro infantil seria que ele está organizado em três partes: 1) o lançamento do aviãozinho e o início de sua viagem; 2) a queda e o reinício da viagem e 3) a chegada do aviãozinho ao seu destino e a leitura da mensagem. A primeira parte, por sua vez, poderia ser dividida em três:1) características gerais e a vida do aviãozinho; 2) o seu deslumbramento com o mundo e 3) o seu contato com o vento. No livro analisado, não há descrição minuciosa de um objeto específico, mas sim das coisas que o aviãozinho viu e a descrição pode ser um tipo de texto que sugere ilustrações ao leitor. Essas ilustrações mentais parecem ser uma modalidade de um fenômeno mais amplo: o poder que as palavras e, por extensão, os textos, têm de evocar representações mentais referentes aos vários sentidos. Se designarmos visualidade o poder 124 que uma palavra, um enunciado ou um texto tem de evocar ilustrações, não será difícil reconhecer que a visualidade é uma modalidade de um fenômeno mais amplo, que poderia ser designado sensorialidade. “Passou por planetas, mariposas, (...), um pára-quedista, uma pipa, um anjo da guarda, uma folha de árvore, um helicóptero, um balão de São João e até por uma nota de mil esvoaçando sem sentido” (AZEVEDO, 2004, p.17). Ilustração sinestésica ou motora: “O tempo também voava. / O ar foi encorpando/. O dia ficou denso./ Uma energia cresceu deitando suas mãos por cima da tarde. / Ao dobrar uma curva no espaço, o aviãozinho descobriu que sobrevoava a massa descomunal de águas salgadas do globo: o mar” (AZEVEDO, 2004, p. 19). Ilustrações olfativas: “A flor era vermelha e cheirosa. /Parece até que tudo havia sido combinado!” (AZEVEDO, 2004, p.23). A partir das palavras, dos enunciados, dos textos, o leitor pode chamar suas lembranças. Ele só pode – é claro – chamar as ilustrações, sensações e emoções arquivadas em sua memória e são essas memórias que permitem que ele transforme o texto em representações mentais. Falar de visualidade, assim, significa referir-se implicitamente à possível visualização do leitor, ou seja, sua ação de visualizar o texto, isto é, transformar o texto em imagens mentais. III. 3-O Caminho do Caracol: travessias poéticas A história aqui analisada é contada a partir de ilustrações, sem palavras escritas. Assim o que compõe a narrativa é apenas o texto ilustrativo, no entanto, nem mesmo o livro de ilustrações é inteiramente feito de desenhos, pois, já na capa aparece pelo menos o título e o nome do autor, informações textuais essas que se projetam sobre as imagens, interferindo na sua leitura. Cada vez mais editoras inglesas, alemãs, americanas, japonesas têm nos apresentado livros com essa formatação. No Brasil temos ricos exemplos desta modalidade textual, Graça Lima compôs, entre outros, Noite de Cão (1996) e Só Tenho Olhos Pra Você (1994), ambos muito elogiados pela crítica. O primeiro ganhou o prêmio Jabuti da CBL e o prêmio Luis Jardim de melhor livro de imagens, dado pela FNLIJ. Em 125 1992, as ilustrações do livro foram publicadas no catálogo da Bienal de Ilustradores da Catalunha em Barcelona, Espanha. Esse livro conta a história de um cãozinho que se enamorou da Lua e viveu com ela uma trajetória muito comum aos amantes atuais: o encontro, o desencontro, a dor e a necessidade de respeitar a identidade e a liberdade do outro. O segundo, também conta, através de suas imagens, a história de amor vivida por um sapo e uma sapa. Um aspecto interessante das ilustrações desse livro é que as ilustrações ora aparecem coloridas, ora aparecem em preto-e-branco, dando ao leitor novas possibilidades de leitura. Assim como Graça Lima, a autora Angela Lago, também possui livros com narrativa ilustrativa que são extremamente ricos e premiados, dentre outros, se destaca o Outra Vez (1984), que, como personagem redondo tem-se uma menina negra, os cenários são baseados nas cidades históricas mineiras, enfatizando os telhados, as ruas de pedras, os sinos e chafariz; há até mesmo uma alusão ao passadiço da cidade Diamantina/ MG (FIG. 32). FIGURA 32-Ilustração de Angela Lago Fonte: LAGO, 1984. 126 Não menos importante, destaca-se também o livro Cântico dos Cânticos (1992), já mencionado interiormente, neste trabalho tem-se imagens grandes, com uma quantidade indeterminada de cores, nele nosso olhar joga com essa fusão de informações e uso de intertextualidades, entre elas tem-se Escher, Van Gogh, o Barroco, as iluminuras. No cenário, as colunas e os múltiplos planos parecem se estender ao infinito, apontando para os labirintos de Escher (FIG. 33). A B FIGURA 33 a)Ilustração de Angela Lago b)Desenho de Escher Fonte A: MENDES, 2007, p.72. Fonte B: ESCHER, 2002, p.67. 127 Em um texto dirigido aos alunos do curso de pós-graduação39. Angela Lago faz uma relação entre os dois livros referidos. Para ela, no Outra Vez, as imagens narram uma ou diversas pequenas histórias a serem descobertas e construídas pelo leitor, e tais imagens fazem ficção através da prosa. Em Cântico dos Cânticos tem-se a ficção através da declamação de um poema. A ênfase das imagens não está, portanto na sua competência de narrar, mas na capacidade de evocar. É interessante observar, que esse tipo de narrativa surgiu no Brasil somente em 1976, com Ida e Volta, de Juarez Machado. E foi justamente esse livro que ficou conhecido como mudo, porque o livro “não tinha palavras”. Supõe-se que o presente livro, que será analisado, com suas ilustrações líricas e metafóricas amplie o ângulo de visão do leitor, apresentando não só o que se passa dentro da cena sugerida, como o que está fora dela, pois, o texto iconográfico, em todos os momentos, possibilita ao leitor diferentes percepções significativas. Ele é convidado, através da ilustração a ter uma vivência estética da imagem, a se deleitar com cenas muito ricas e elaboradas, contendo um tom místico, misterioso, amoroso que evita a obviedade dos objetos e acontecimentos representados. A capa apresenta em primeiro plano, numa moldura formada por superposições de quadrados: o nome da autora, o título do livro e o nome da coleção, respectivamente, helena alexandrino40 (com letra minúscula), o caminho do caracol (letras minúsculas, mas dando a idéia de serem maiúsculas) e coleção olho verde. O fundo da capa é branco e sobre ele há vários pequenos desenhos: uma lua, um coelho na cartola, um dado, um caracol, flores, maçãs, insetos, pirâmides. Formando um conjunto colorido e alegre, mas em meio a essas imagens, ao final da capa, perto do nome da editora, há uma janelinha com o rosto de um menino. Essa criança é o único desenho que não apresenta alegria (FIG. 34). 39 O CÂNTICO DOS CÂNTICOS: uma leitura através de imagens, Angela Lago / PUC- PREPES / Belo Horizonte, 16 de julho de 1992. 40 Helena Alexandrino é formada em Artes Plásticas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), ilustrou muitos livros e recebeu vários prêmios nacionais e internacionais, entre eles o Hans Christian Andersen, da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil, FNLIJ. Seu trabalho foi selecionado para a Mostra de Ilustradores de Livros Infantis de Bolonha, em 1997. O Caminho do Caracol, recebeu o Prêmio Luiz Jardim da FNLIJ. 128 FIGURA 34- Ilustração de Helena Alexandrino Fonte: ALEXANDRINO, 1998. A representação da criança no livro já nos remete a complexação, pois a artista mistura, cores variadas, animais sorridentes, flores, frutas, insetos, estrelas... com a solidão e a tristeza de uma criança, que deveria ser um símbolo da felicidade, desta forma, antitética, é ampliado o campo de interpretantes possíveis que essa ilustração possuía potencialmente. Abrindo o livro, encontramos novamente os dados textuais já explicitados na capa, mas dessa vez com uma ilustração diferente que contrasta com a capa. Enquanto essa mostra desenhos variados e alegres, aquela apresenta uma única imagem, com 5 centímetros de largura e 6,5 de comprimento, sombria, com cores frias. Uma cena urbana mostra mais de vinte prédios muito juntos e entre eles nove chaminés soltando fumaça, transmite uma atmosfera de claustrofobia à cena. A ilustração perde em extensão, mas ganha em intensidade. O livro, sem texto escrito, narra a história de um menino “prisioneiro” no quarto de seu apartamento, numa cidade desumana e poluída. O surgimento de um caracol no quarto transporta a história do real para a fantasia, pois o menino, montado no animal, se afasta da 129 cidade e faz uma viagem maravilhosa que ao final virá lhe trazer um pouco de alegria em sua vida, preso no apartamento. A página 3, apresenta a situação inicial, uma pequena ilustração central, que mostra um menino triste que olha através de uma vidraça da janela. O que ele vê que o deixa tão triste? Alguns ilustradores utilizam janelas para enriquecer a cena com dois ambientes (um deles enquadrado por janelas), pelos quais informações diversas são transmitidas ao leitor. No presente livro, a autora utiliza a janela para ampliar o espaço da cena. Na página 4, a ilustração nos conduz a mudar de foco narrativo, se na página anterior o foco era de fora olhando para dentro, agora é de dentro do quarto para fora. No referido quarto, no alto à esquerda, a janela nos mostra o que o menino vê através da vidraça: uma cidade cheia de prédios iguais, sem árvores e escurecida pela poluição (FIG.35). Dentro do quarto a autora reduziu ao mínimo os elementos significativos, pois o vazio do cômodo enfatiza o vazio do menino. A mobília está reduzida a uma cama estreita e pouco acolhedora, encostada no ângulo das paredes à direita, com uma leve distorção na perspectiva, num toque expressionista, lembrando o célebre quadro no qual o pintor Van Gogh, (1853-1890) representou seu quarto, acentuando o desconforto da criança (FARIA, 2004, p.47-48). FIGURA 35- Ilustração de Helena Alexandrino Fonte: ALEXANDRINO, 1998, p. 4. 130 Sob a janela um par de tênis jogado no chão, reafirma ainda a sua inutilidade numa cidade desumana, onde o menino se sente preso em seu quarto. E para confirmar esse aspecto, a autora/ ilustradora, desenhou o menino com um pijama listrado, mostrando-o simbolicamente usando a roupa que se tornou um código em ilustração: o uniforme com listras dos prisioneiros. Para Maria Alice Faria (2004), o próprio quarto abre-se para o desenvolvimento da história no nível do maravilhoso, com a presença insólita de uma grande concha, no pé da página, à direita, do qual, no decorrer das páginas, sairá o caracol que salvará o menino da cidade e de sua solidão. A janela, nessa cena, tem a função expressiva de revelar, para dentro do quarto, as razões desta criança se sentir prisioneira e infeliz. Num mesmo espaço, a ilustradora abre a cena principal para um novo ambiente através da janela. Como se pode perceber por esta breve paráfrase que até agora se apresenta, não é muito correto afirmar que, nos livros de imagem, a criança, ou qualquer leitor, inventa a história, pois os principais elementos da narrativa estão dados: os personagens, o cenário, o enredo. Podemos acrescentar ainda o tempo, aqui expressado pelas referências espaciais e arquitetônicas. Presume-se que a época seja a atual. Quanto ao ponto de vista, torna-se bastante evidente, pois todas as ilustrações são representadas segundo um enquadramento, um ângulo de visão – um foco narrativo. Na página 5, os dois personagens protagonistas se encontram cara-a-cara. A imagem se apresenta em close-up e há entre os dois um jogo de olhares, olhares entre a realidade, na pessoa do menino e a ficção, na “pessoa” 41 do caracol. Até aqui, o menino é muito maior do que o caracol. Seria então a predominância da realidade sobre a fantasia? Entretanto, na página 6, o menino e o caracol ficam do mesmo tamanho. Os personagens ainda se mantêm fixos no olhar, mas agora se revelando de corpo inteiro. Supõe-se que o menino tenha aderido à fantasia, e/ou entrado num mundo onírico da imaginação infantil. Na página 7, o menino sobe no caracol. Em volta deles, há uma mistura de cores, sutis, mas diversas. Alimentando a idéia de magia e liberdade. Ao fundo dessa cena, a cidade cinza, fria vai ficando para trás. E numa visão mais detalhada pode-se 41 Segundo o dicionário Aurélio o termo “pessoa” se refere a cada ser humano considerado na sua individualidade física ou espiritual, portador de qualidades tais como a racionalidade, a consciência de si, a capacidade de agir conforme fins determinados e o discernimento de valores. Porém aqui o termo foi usado referindo se ao caracol, pois esse possui uma clara personificação na obra analisada. 131 supor que o prédio em que o menino mora é o que tem maior destaque na cena. Ele possui a porta aberta e uma de suas janelas está com a luz acessa. O que nos leva a pensar que se trata do quarto do menino. Será que ele ainda está no quarto? O que vemos é a imaginação do garoto? Em O caminho do caracol predominam os planos mais amplos, do plano médio ao plano de conjunto e deste ao panorâmico. Descrevendo cenários que enfatizam a profundidade, tanto pelo enquadramento e pelo ângulo de visão como por distorções. Na página 8 há uma interessante geometrização dos planos. Ao fundo, centralizado e sobre um chão semicircular, vê-se a cidade, fechada, muito cinzenta e solitária com prédios ocupando quase todos os espaços. E entre os prédios há dez chaminés, seis delas personificadas, movimentando-se e espalhando uma fumaça cinza que chega a incomodar até mesmo o sol, que parece estar sufocado. Porém, ocupando o primeiro plano, está o menino e o caracol. Vê-se que diferentemente da circunferência que sustenta a cidade, os dois estão sobre uma circunferência montanhosa, menos geometricamente certa, dando a idéia de algo mais flexível, mais bucólico. Além isso, essa imagem é bastante antitética em relação as suas cores e sensações. A cidade é cinzenta e possui uma atmosfera tensa, o caminho por onde passam os personagens é colorido e possui uma atmosfera de liberdade, de sonho e de expansão. Na página 9, os dois, menino e caracol começam a descer a montanha e as cores se tornam ainda mais vibrantes. Aparecem pela primeira vez, alguns insetos com rostos de seres humanos, lembrando os desenhos infantis onde predomina a personificação da maioria dos seres inanimados ou animais. Além disso, também pela primeira vez, aparece a cor verde, que se faz presente nas folhas dos vegetais, morada dos insetos coloridos. No caminho percorrido pelo caracol e pelo menino há cenas diurnas e noturnas, esta se faz presente na página 10. Nessa ilustração há claramente uma divisão: do meio para cima, a lua crescente, rodeada por muitas estrelas. Do meio para baixo, as montanhas, os dois personagens e um lago, muito redondo e grande, tão grande que suas bordas ficam quase invisíveis e nele, devido à limpidez de suas águas pode-se ver sete peixes nadando (FIG. 36). 132 FIGURA 32- Ilustração de Helena Alexandrino Fonte: ALEXANDRINO, 1998, p. 10. A presente ilustração é bastante poética e metalingüística, tendo em vista que as estrelas e a lua que ocupam o espaço no céu estão claramente refletidas e ocupando o espaço na água, e é como se os peixes brincassem entre elas, algo que seria impossível se não fosse pela força da “ilustração” refletida ou da imaginação do narrador/ ilustrador ou até mesmo pelo próprio processo de criação do menino, visto que tudo que está sendo mostrado pode ser fruto de sua fantasia. Além disso, nessa ilustração se trabalha com elementos bastante significativos e expressivos, como a lua que numa perspectiva simbólica significa renovação cíclica. Os peixes, famosos como o primeiro símbolo de Cristo, as estrelas, guias, guardas e vigilantes e a água, símbolo antigo e universal de pureza e da própria fonte da vida. Também nessa ilustração, a água se faz espelho para o caracol, para as estrelas e para a lua, e num diálogo com a literatura de Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas, o espelho pode simbolizar uma porta mística para um mundo paralelo. 133 A página 11 mostra que a viagem continua42, desta vez com chuva e nuvens escuras. Nessa ilustração, de certa forma, joga-se com o leitor. Ela mostra a ele um veado, perto de uma moita. Porém esse animal talvez não seja visto pelos personagens, já que eles estão do outro lado da moita, diferentemente do ponto de vista do leitor, que pode ver o bichinho. No livro O caminho do Caracol, há dezenove páginas inteiras, e entre elas, uma página dupla, (páginas 12 e 13) isso já cria uma nova textualidade, do ponto de vista quantitativo. As ilustrações oscilam entre a descrição do espaço (com tendência para o imaginário) e a composição de motivos naturais (com tendência para o deserto ou praia), além de introduzirem vozes de outras culturas e épocas, por exemplo, têm-se as montanhas com poucas vegetações formadas por caminhos de relevos e areias, caminhos interligados por subidas e descidas sugerindo uma mandala ou um labirinto. O texto se metaforiza como uma viagem pelo imaginário, e é ilustrado com o menino que caminha montado no caracol. As ilustrações de Helena Alexandrino, não só apresentam uma narrativa, mas dialogam com ela, por meio de uma plasticidade riquíssima. Este livro não pode ser visto apenas como um livro mudo, mas deve ser visto como um discurso “narrativo-lírico-verbovisual”. Continuando a descrição, o texto-visual mostra a imagem de um menino e o caracol vendo uma gigantesca concha, sob um céu estrelado, reafirmando a busca do protagonista (ou talvez seja melhor dizer do narrador poético, para dar conta da presença de traços líricos e narrativos): um mundo novo, colorido, diferente. A cena tem caráter poético e lúdico. Surge então uma dúvida: será que o caracol vai levar o menino até a concha? Ocorre então um duplo movimento de aproximação e de distanciamento em relação ao real. As conchas aludem à praia, e ao fundo se percebe que há um mar. Esse movimento de aproximação ao real é contraposto por um movimento de distanciamento, criado pela presença do menino que fica bem menor do que a concha e essa parece ser conotada como um longínquo país de conto de fadas. 42 O livro gira a partir de um tema dominante- a viagem, o caminho-e suas variantes: travessias, movimentos, surpresas.Vários grandes autores da literatura brasileira como Mário de Andrade (em Macunaíma) e Guimarães Rosa (em Grande Sertão:Veredas) também simbolizaram a busca identitária através da recorrência dos temas da viagem, das travessias. 134 Na página seguinte 14, o ilustrador mostra que o caracol deixou o menino perto da concha e esse, agora sozinho, começou a subir pelos espirais que a concha possui em sua arquitetura, nos remetendo ao processo espiralar de continuidade cíclica. Essa arquitetura da concha traz também a idéia de labirinto, e tal conceito aqui é bastante pertinente, pois fundamentalmente, o labirinto nos remete ao entrecruzamento de caminhos, um lugar de busca. O labirinto, neste caso, pode representar a complexidade da imaginação humana. Cada pessoa, criança ou adulto, tem um labirinto por onde caminha. Quando dois indivíduos, no caso o menino e o caracol, iniciaram uma relação de busca pela beleza e pela liberdade, houve um entrecruzamento de caminhos: dois labirintos, o da realidade e o da imaginação, disjuntos se transformam em um, provavelmente mais complexo. É prosaico ligar a figura do labirinto a um lugar de provação. No caso, esse labirinto, que é feito do encontro da realidade com a fantasia, será o local onde o menino e caracol, terão de buscar “algo” juntos. Se se transpassar a fronteira do seu próprio labirinto de realidade é difícil, imagine transpassar-se num labirinto que é fruto de um cruzamento com a fantasia e, provavelmente, mais complexo. Essa busca lembra as viagens iniciatórias. Percebemos que o objetivo do caracol é fazer com que o menino atinja o centro, a unidade representada pela fusão dos caminhos/ labirintos da fantasia e da realidade. Para alcançar esse objetivo, é necessário que os dois percorram “o caminho” e se qualifiquem, enfrentando e vencendo provas, uma espécie de metáfora das provações que o autoconhecimento traz. Nas páginas seguintes 15 e 16, a ilustração mostra o menino, e conseqüentemente conduz o leitor, a ir observando os animais que começaram a surgir pelo caminho. Inicialmente são poucos, mas ao virar a página (16) eles se multiplicam, juntando-se a flores e folhas. Até mesmo uma baleia nada no mar que aparece ao fundo, trazendo muita beleza ao peregrino e reafirmando sua busca. Essa ilustração pode expressar também o desejo do menino de encontrar um espaço que seja formado de coisas belas, de céu estrelado, de mar, ou seja: de poesia. E a conotação de uma criança que ensina ao leitor a ver a poesia que está no mundo, tem uma longa tradição literária, inclusive com presença no modernismo brasileiro, por exemplo, em Oswald de Andrade (1990), e no português, em Fernando Pessoa, no poema VIII da série O Guardador de Rebanhos, do heterônimo Alberto Caeiro (PESSOA, 1994, p. 52-57). 135 A ilustração da p. 17 mostra que o menino chegou ao cume da concha, esta com diferentes formatos, bastante estilizado e explorando certo gosto ornamental, por meio da repetição, alternância e contraste de linhas, formas e cores (FIG. 37). FIGURA 37- Ilustração de Helena Alexandrino Fonte: ALEXANDRINO, 1998, p. 17. Além desses motivos, que convergem para os significados conotativos da ilustração, aparece um grande caramujo idoso, com feições humanas, e com uma cartola de mágico. O tamanho do caramujo poderia conotar ameaça, mas ele apresenta um olhar amoroso, além disso, em sua volta, há vários objetos girando no ar, sugere-se, assim, que se trata de uma divindade que se alegra com a magia. Nesse referido cume da concha, num centro circular luminoso, há uma efervescência de luz. Essa luz, possivelmente, simboliza o desabrochar de um ser pela sua elevação. Auferir luz é ser aceito na iniciação, fazer parte daquele grupo que ama e que tem o amor realizado, o que significaria uma evolução. A luz simboliza constantemente a vida, 136 a salvação, a felicidade, um convite para embarcar na unidade, para compartilhar de sua misteriosa energia e para identificar, de certo modo, a alma do iniciado não apenas a alma do mundo, mas também a própria natureza da divindade. Essa celebração divina é representada nas cores, nos desenhos, no movimento das estrelas. Existe na ilustração, uma inundação de cores. E a flor, que posteriormente será a referência da criança ao imaginário, pode simbolizar a realização das possibilidades latentes (CHEVALIER & GHEERBRANT 1997: 190, 570-571, 954). Na ilustração, a cena é noturna, alimentando ainda mais a idéia de sonho. Porém, apesar esta imagem apresentar essa cena noturna, com estrelas e lua, a referida luz que propaga no cenário não é, possivelmente, advinda da noite, mas sim do dia, ou seja, do sol devido à intensidade da luz. Dessa forma, se intui que há uma hierogamia (união do sol com a lua, o dia com a noite) na cena. Em relação a esse casamento, é interessante observar a idéia de Jung sobre a hierogamia. Ele expõe que, apesar de o sol ser um símbolo da fonte da vida e da totalidade definitiva do homem, na sua opinião, a totalidade real só pode ser representada pela coniunctio do Sol e da Lua, como Rei e Rainha (CIRLOT, 1984, p.537). Isto é, a totalidade do ser, o sentimento de unidade está relacionado à presença do outro, daquele que o completa, da outra metade. Ao virar a página, já se observa que o menino se aproximou do sorridente caramujo, este lhe ofertou, uma singela flor plantada em um vaso. Na seqüência, pág 19, já aparece o menino novamente montado no seu caracol, levando o vaso de flor na mão e ao fundo mostra a concha, já distante dos viajantes, mas trazendo à lembrança do leitor um castelo de contos de fadas. É interessante pensarmos o quanto a metáfora da casa está presente no texto, inicialmente pelo apartamento onde mora o menino, depois pelo personagem do caracol que é popularmente lembrado por “levar a casa nas costas”. O caminho que os viajantes fazem os leva a uma casa/ concha onde habitam vários animais e um ser bastante místico, o caramujo. E por fim a história se encerra no apartamento do menino. Esse tipo de espaço, como se refere o antropólogo Roberto DaMatta, (1997, p.54), é marcado pela familiaridade e hospitalidade perpétua que tipificam aquilo que chamamos de “amor”, “carinho” e “consideração”. Do mesmo modo, “estar em casa”, ou “sentir-se em casa”, fala de situações onde as relações são harmoniosas e as disputas devem ser evitadas. Na história há uma 137 idéia bastante interessante, pois no início do livro o menino se sentia muito mal na sua moradia, porém ao vivenciar experiências positivas em relação a “casas” ele faz uma “viagem” de volta ao Lar, mas agora sendo visto como um lugar bom. O filósofo francês Gaston Bachelard fez a análise do que denominou “poética do espaço”. O interior de uma casa, disse, adquire um sentido de intimidade, segredo e segurança, real ou imaginário, por causa das experiências que parecem ser apropriadas para tal espaço. O espaço objetivo de uma casa – seus cantos, corredores, porão, quartos – é muito menos importante do que está poeticamente dotado, que costuma ser uma qualidade com um valor imaginativo e figurativo que podemos nomear e sentir (...) (SAID, 2001, p.65). As três últimas páginas finalizam a história e a narrativa/ imagética dialoga com o início da história. É como uma suposta volta à realidade, o menino se encontra novamente na janela, mas dessa vez com o vaso de flor ao seu lado, assemelhando-se com a ilustração da página 3, isso indica uma ação continuada no passado43. Essa ação estende-se por um “zoom” que é dado no vaso de flor. A página 21 mostra apenas o vaso de flor e um pedaço da vidraça e na última página, 22, está a flor, mais nítida e sete pequenos caracóis habitando a mesma, dando à história uma idéia de que sempre haverá uma solução mágica/ ficcional/ imaginativa para os problemas mais complicados da condição humana como: a solidão, a falta de liberdade, as maldades. Pode-se compreender que há na história O Caminho do Caracol um diálogo metalingüístico, uma “viagem paralela”, tanto do leitor quanto do menino. Observa-se que a ficção objetiva os fatos e as verdades que não podem ser expressos pela razão, que não são identificados pela lógica, e é por isso que as histórias são tão importantes. Elas fazem construir situações novas que possam vir a favorecer na luta pelos objetivos. Nesse ponto abre-se uma oportunidade para revermos algo que se mostra como um importante conceito que acompanha a emergência do presente estudo: o imaginário. Por imaginário entende-se que seja um sistema de idéias e imagens de representação coletiva que os homens, em todos os momentos da história humana, elaboraram para si, dando sentido ao mundo. Esse sistema de representações nos remete a construção de um mundo paralelo que se constrói sobre a realidade, como foi o caso da viagem virtual do menino. O imaginário também perpassa pela história, isto é, em cada período histórico, as pessoas 43 A idéia de volta a realidade a partir de uma experiência imaginária a ser tratada aqui sugere um retorno ao centro do ser humano, que sacraliza seu próprio eu ao vivenciar situações simbólicas. 138 constroem representações para dar sentido ao real. Essas representações são abrangentes e podem ser expressas de várias formas como através de imagens, ritos, cores. O imaginário é uma forma de organização do mundo, conferindo-lhe sentido ontológico (PESAVENTO, 2004, p.43). Neste capítulo, a partir de um olhar transdisciplinar, buscamos enfatizar a ilustração do livro infantil, em que são constantes as possibilidades semânticas. Ao mesmo tempo em que evidência a habilidade dos ilustradores em jogar com signos, mostra-nos, através das intertextualidades, uma perspectiva capaz de ampliar e aprofundar a idéia de hibridação. A interpretação do livro Aviãozinho de Papel, serviu de base para as reflexões acima, nele vimos uma linguagem marcada pela heterogenia, uma coexistência de vozes, onde cada unidade observada não se anulava, ao contrário, se complexizava. Em O Caminho do Caracol, direcionamos nossas observações para a grande capacidade narrativa das ilustrações. Através desse livro pudemos aludir a questões ligadas à problemática da vida urbana na contemporaneidade, a relação ficção e realidade, a poesia, a liberdade, a metáforas da casa, da viagem e também ao imaginário. Há quem entenda o imaginário como um meio de realidade, e que é impreciso demais separar o mundo do real e do imaginário. Nesse caso, todos os livros infantis apresentados, podem se vistos pela perspectiva da leitura imaginária por apresentarem uma busca real de organização do espírito humano. Os livros assinalam formas de pensar e representar o mundo real. No caso do O Caminho do Caracol aborda a questão da realidade transcendente, em De Morte!, há a idéia do além, da morte, em O Menino mais Bonito do Mundo e Aviãozinho de Papel, há uma atualização das origens, a alteridade, a unidade. Estes temas são recorrentes ao longo da historiografia e fazem parte do imaginário. 139 Considerações finais No mesmo espaço em que se cria o brincar se inscreve a fantasia, e floresce a literatura infantil. A dimensão artística da literatura infantil sustenta a metáfora do texto como tapeçaria, que aponta para um intrincado projeto, para um avesso que esconde outros desenhos e relevos. O livro infantil se tece com fios que procedem do simbólico, do imaginário e dos (des)caminhos do “real”. Falar do livro infantil é simbolizá-lo, é fazer o gesto de representá-lo noutro lugar, fazendo dele seu próprio duplo. Ele se desdobra a cada interpretação, a cada olhar e também de onde se olha. Significa criar um mundo diverso e edificado na e pela linguagem, no qual, através dos jogos polissêmicos e intertextuais se enredam as narrativas. Nele, o autor e ilustrador delegam voz a figuras que se representam como seres reais ou imaginários e inseridas em situações reais ou imaginárias, numa encenação em que o leitor entra por meio de um pacto de verossimilhança, cabendo-lhe marcar o texto com seu olhar. Ao convocar seu “horizonte de expectativa”, combinação de experiência, leituras, informações e fantasias, o texto permite, ao sujeito que se apropria, a possibilidade de reorganizá-lo e reescrevê-lo. Ao percorrer essa floresta, o leitor pode atravessá-la insensível às suas belezas, perder-se ou optar por permanecer nela, explorando seus encantos e mistérios. A leitura de cada um segue sua própria trilha, porque não existe um só itinerário. Assim nos ocorreu com os livros estudados, principalmente com os quatro livros que tiveram uma interpretação mais aprofundada. Neles, o ponto alto não são as “lições”, mas o fluir da imaginação enquanto processo de uma trajetória marcada pelo lúdico, pela alteridade, pelas cores. Em função disso, fizemos recortes, juntamos fragmentos para tentar compor imagens que pareciam implícitas nas narrativas. Viramo-las do avesso para olhar os “desenhos escondidos”, puxamos os fios da urdidura e desmanchamos a superfície discursiva para captarmos um subtexto, formado pelo não dito. Nesse trabalho, em busca de tesouros escondidos, os livros infantis nos levaram para além da fruição. Ao acrescentar várias referências a outros livros, autores, misturando 140 linguagens, os autores e ilustradores provocam uma espécie de ultrapassagem de fronteiras, que tem um papel fundamental: funciona como um meio poético para ampliar as possibilidades de leitura da obra. Dessa forma, perpassando pelas idéias de Edgar Morin (2004), pressupomos que o livro infantil pode ser considerado como um objeto complexo, ou seja, nele há um grande número de unidades interagindo entre si de modo imprevisível, assim, o todo não se define pelo somatório das partes, mas pela configuração que o sistema possui num determinado momento a partir do olhar dirigido ao mesmo. No primeiro capítulo conduzimos nossa reflexão a partir de um estudo do lugar do livro infantil na sociedade brasileira até a década de 1990. Nessa trajetória, rastreamos livros diversos. Notamos a significativa participação que a literatura infantil teve na formação histórico-social e educacional brasileira. Ao analisarmos as obras em seus respectivos contextos, destacamos aquelas que, de acordo com certos critérios, inovam a produção pela abordagem feita a respeito de determinados temas e pela qualidade literária alcançada. Um ponto alto nessa trajetória foram os livros que traziam contestações políticas contra a ditadura como o Reizinho Mandão (1978) de Ruth Rocha. A construção textual, nos permitiu trabalhar também as funções das linguagens verbal e ilustrativa, desvendando a capacidade dos recursos lingüísticos de concretizar funções que podem conter num livro infantil. Inicialmente retomamos Jakobson, assegurando as funções das mensagens verbais e suas diferentes hierarquizações. Após nos apropriamos dos estudos de Luís Camargo que trabalha o trânsito das funções verbais para as funções da ilustração. Dessa forma sugerimos onze funções diferentes e as exemplificamos com ilustrações de livros infantis, levando nos a ampliar nosso olhar para uma interpretação mais rica. Pois pode facilitar a análise das relações entre as linguagens verbal e ilustrativa. Nesse capítulo vimos também que no plano da recepção, o leitor reinventa, altera, muda um livro infantil. Formata o discurso, distorcendo sentidos e atribuindo novos. Um texto está sujeito à construção de múltiplos sentidos, por meio da leitura (PESAVENTO, 2004, p.61). E escapa completamente ao controle ou previsões significativas do livro infantil, submetendo-o a desvios semânticos e imprevistos pragmáticos. As formas de apropriações dos livros pelo leitor indicam a consciência de que a possibilidade de leitura se dá por um processo de aprendizado particular, de que resultam competências muito 141 diferentes. Cada leitor, a partir de suas próprias referências, individuais ou sociais, históricas ou existenciais, dá um sentido mais ou menos singular ou compartilhado, aos textos de que se apropria (CHARTIER, 1999 p.12, 13 e 20). Nessa linha enfatizamos o processo de leitura do livro infantil não somente como uma operação abstrata intelectual, ela é uma inscrição num espaço, uma relação consigo e com os outros. Quer se trate de um gibi ou de Clarice Lispector, o texto só tem sentido graças a seus leitores; transforma-se juntamente com eles, direcionam conforme as percepções que lhe escapam. O texto se faz texto somente no diálogo e do jogo com o leitor: “que organiza um espaço legível (uma literalidade) e a que organiza uma démarche necessária para a efetuação da obra (uma leitura)” (CERTEAU, 2003, p.266). No Capítulo II, buscamos adentrar ao conceito de intertextualidade. Sua importância se dá por ser uma maneira de abrir o texto, termo usado por Compagnon (1999, p.111). A intertextualidade é usada no decorrer da pesquisa também como sinônimo de “dialogismo”, “citacionismo” ou “intertexto”. Foi Julia Kristeva que compôs o termo “intertextualidade” ao refletir sobre os trabalhos de Mikhail Bakhtin. Para ela todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é uma absorção e transformação de um outro texto, uma estrutura complexa de vozes, uma co-presença entre dois ou vários textos, pela presença de um texto num outro. A intertextualidade é o mecanismo próprio para a leitura literária. Somente ela, na verdade, produz a significância, enquanto a leitura linear, comum aos textos literário e não literário, não produz senão o sentido (COMPAGNON, 1999, p.113). A intertextualidade dos livros infantis analisados está calcada no dialogismo, ou seja, nas relações que os textos escritos ou as ilustrações mantêm com outros textos escritos ou outras imagens44. Na escolha dos livros que foram analisados: De Morte!(1992) e O Menino mais Bonito do Mundo (1994) no segundo capítulo e Aviãozinho de Papel (2004) e O Caminho do Caracol (1998) no terceiro capítulo; consideramos a idéia de intertextualidade como a principal característica para a seleção. 44 Em relação ao conceito de intertextualidade, intuímos que o dialogismo que existe entre as ilustrações dos livros infantis com as artes plásticas é, de certo modo, uma forma de hibridação. 142 O livro infantil De Morte!, escrito e ilustrado por Angela Lago, conta a história de um Velho que, com sua astúcia consegue enganar a Morte, o Diabo e depois de muito aprontar ainda vai para o céu. Angela Lago acrescenta à narrativa principal histórias paralelas, citações antropofágicas, dobraduras, jogos com o receptor, funde linguagens escrita e ilustrativa e subverte a imagem da Morte e do Diabo. Porém a intertextualidade mais explícita está na apropriação das obras de Dürer nas ilustrações. Essa apropriação enriquece a obra em si mesma ao estabelecer liames entre as imagens de Dürer e a ilustração e, dessa forma, constitui uma nova rede num universo narrativo e textual acrescentado de novos caminhos. O Menino mais Bonito do Mundo, escrito por Ziraldo e ilustrado por Sami Mattar e Apoena Horta45, é um livro que se destaca pelos caminhos interpretativos que a obra conduz. A história produz um diálogo com o livro Gênese da Bíblia e com a obra de Botticelli O Nascimento de Vênus. O livro nos conta a história de um menino que ao acordar ouve dos elementos da natureza o quanto ele é bonito. No decorrer da narrativa ele transforma-se em homem e sente que algo lhe faltava. Assim, ao amanhecer sente uma dor bem abaixo da costela e no mesmo instante, viu a figura de uma mulher que lhe disse o quanto ele era bonito. No último tópico do segundo capítulo propomos uma reflexão sobre a caracterização do livro infantil como obra literária. Os principais teóricos em que nos apoiamos para essa ponderação foram Compagnon (1999) e André Mendes (2007). Para ambos, o objeto literário e artístico é aquele que extrapola o lingüístico, produz pluralidade comunicativa e concretiza-se no estranhamento. Dessa forma concluímos que o livro infantil se encaixa nas características citadas. No terceiro e último capítulo analisamos o livro Aviãozinho de Papel do ilustrador e escritor Ricardo Azevedo. Esse livro conta a história de um aviãozinho de papel que foi lançado pela janela. Em seu percurso ele vive várias situações, inclusive uma queda, porém, supera as dificuldades e chega ao seu objetivo. Pousa sobre uma flor e uma moça lê o que havia escrito na folha de papel, ou seja, no aviãozinho. 45 Sami Mattar é um pintor nascido no Líbano e Apoena Horta, carioca, quando ilustrou o livro tinha 9 anos e cursava a 3ª série. 143 As ilustrações desse livro sofrem uma clara influência do surrealismo de Magritte e a enunciação verbal também é aparentemente caótica e lírica. Ricardo Azevedo intertextualizou de tal forma com a ilustração de Magritte que formou um todo indivisível, cada linguagem se alimentando do potencial poético do outro. Além dessa intertextualidade temos também uma alusão ao poeta Carlos Drummond de Andrade, pois as ilustrações apresentam uma pedra no meio do caminho. Em O Caminho do Caracol de Helena Alexandrino há uma ausência de texto escrito, ou seja, a história é narrada pelas ilustrações. Trata-se de um livro muito rico, em que a ilustração adquire um papel relevante na estruturação da narrativa. O livro, através das ilustrações, conta a história de um menino que morava em um prédio. Um dia ele recebe a visita de um caracol então o menino e o caracol iniciam uma viagem. Após vivenciarem diversas situações líricas, chegam à casa de um caramujo. Esse dá ao menino um vaso de flor, o menino volta para seu quarto e observa o vaso, reconhecendo nele a morada de vários caracóis. Neste livro discutimos, além da intertextualidade, a narrativa feita pela ilustração. Cores, traços, luz e sombra, as composições, as dimensões e os significados que esses elementos possuem. Tratamos também das diversas características da ilustração. Concluímos que nesse universo ficcional alguns lingüistas propõem um duplo conceito de texto, um restrito, outro amplo. O primeiro refere-se a um conjunto organizado de signos verbais; o segundo, a um conjunto organizado de qualquer tipo de signos (FÁVERO; KOCH, 1994, p. 25). É nesse sentido amplo que podemos falar de texto visual. O signo visual é classificado geralmente como icônico, isto é, haveria certa semelhança (iconicidade) entre o signo e o que ele representa; por exemplo, entre as pinceladas verdes e azuis sobre uma folha de papel, reproduzidas nas páginas de um livro, e as colinas que compõe o fundo. Já o signo verbal é classificado como símbolo: a relação entre o signo e o que ele representa é arbitrária, convencional, cultural. Por exemplo, a relação entre a palavra caderno e o objeto que essa palavra nomeia. O signo visual também pode simbolizar, ou seja, significados arbitrários, convencionais e culturais podem ser agregados a ilustrações. Em Aviãozinho de Papel (AZEVEDO, 2004, p.22) embora a escrita não mencione, o leitor poderia inferir que - 144 metaforicamente, há um encontro erótico entre a flor e o aviãozinho, no momento que ele pousa sobre ela. Este exemplo é bastante singelo, mas a história da arte está cheia de exemplos. Não podemos dizer que a ilustração só imita, só copia, só representa, só descreve ou narra; a ilustração também pode simbolizar. Isso significa que a ilustração pode ser vista como também ser interpretada, em outras palavras, que a ilustração pode ser lida. Já vimos que palavras evocam imagens; por outro lado, imagens podem evocar palavras. Além disso, imagens evocam imagens, assim como palavras evocam palavras. Tal como a leitura da palavra depende do conhecimento de mundo e do conhecimento lingüístico, a leitura da ilustração também depende do conhecimento de mundo e do conhecimento da linguagem visual. Isso significa que não basta somente ver, é preciso aprender a ver, o que supõe várias formas de aprendizado ou de mediação. Mais um argumento para pensarmos na ilustração como texto visual, pois, assim como o texto verbal, o texto visual também exige uma espécie de alfabetização – ou, se quiser, letramento – visual. As reflexões acima nos apontam para a importância que a escola assume neste contexto. Sabemos que a escola, mais do que a família é por excelência o ambiente em que o livro infantil se faz presente de forma acentuada. Observamos que, de um modo geral, os atores educacionais têm uma formação mais sólida em literatura do que em artes plásticas desta forma, os textos escritos são mais valorizados do que os desenhos. Acredita-se mesmo que as ilustrações são meros enfeites e que se dedicar a observar também as ilustrações, assim como o texto, é uma mera curiosidade pessoal (AZEVEDO, 1997). Ricardo Azevedo (1997), em suas pesquisas, verifica também, que ao perguntar a vários professores, quantos escritores eles conhecem, ele ouviu uma lista de nomes, tanto antigos, quantos atuais e, ao perguntar sobre ilustradores, desenhistas e/ou artistas plásticos, muitos não sabiam citar nem mesmo um nome. Estas atitudes demonstram a pouca importância dada às ilustrações, quando os livros infantis estão sendo utilizados em sala de aula. Além disso, podemos observar que há a dificuldade, por parte dos professores, em discernir quais ilustrações são de “boa qualidade”, se existe diálogo com as mensagens do 145 texto, e se as ilustrações acrescentam outros significados ao texto. Cotejando a sociedade voltada a uma forma de espetacularização, os educadores valorizam muito mais um desenho rebuscado, construído a partir de uma técnica requintadíssima, que em relação ao texto só consegue ser redundante e desvalorizam desenhos feitos com poucos traços, sem maiores pretensões técnicas, mas que no universo textual acrescentam novas mensagens significativas ao texto. Muitas vezes as escolas demarcam um condicionamento do leitor ao “gosto” pela imagem figurativa, próxima da fotografia, com cores bem realistas e exuberantes, deixando de valorizar as imagens caricaturadas, humorísticas, metafóricas, líricas, abstratas, geométricas, que podem trazer uma carga maior de significação artística ao livro. A maneira pela qual usualmente a escola aborda as ilustrações corresponde geralmente a figuratividade e à formação do leitor. Em suma, os educadores, em geral, têm tratado o livro ilustrado de maneira não crítica e há uma busca da comparação entre a imagem e a realidade que ela representa. Muitas vezes, o educador pouco se preocupa com “a relação sintática entre as imagens e muito menos na sintaxe palavra-imagem visual; é como se os livros estivessem formados apenas por gravuras independentes, com a função exclusiva de figurar o real” (REVISTA LETRAS, 2000). Esta postura minimiza o potencial de sentido que a imagem visual traz ao livro, pois enquanto forma artística, deveria possibilitar ao leitor experiências estéticas. A educação para a imagem, principalmente para a imagem produzida pelo homem é fundamental. Até mesmo para favorecer uma cultura crítica problematizante e reflexiva. Para Bosi (1989, p.23) a maior parte de informações que o ser humano recebe vem de imagens. O homem e a mulher contemporâneos são quase que absolutamente visuais, a relação do olho com o cérebro é íntima, estrutural. O sistema nervoso central e os órgãos visuais externos estão ligados pelos nervos óticos de tal sorte que a estrutura celular da retina nada mais é que uma expansão diferenciada da estrutura celular do cérebro. Ainda em relação à reflexão sobre a aprendizagem das imagens, afirma Ana Mae Barbosa (2001 p.34): “Este mundo está cada vez mais sendo dominado pela imagem. Há uma pesquisa na França mostrando que 82% da nossa aprendizagem informal se faz através da imagem e 55% desta aprendizagem é feita inconscientemente”. Trabalhar as ilustrações 146 dos livros infantis e seus textos, de forma crítica, contextualizada e até mesmo prática46, leva ao desenvolvimento da capacidade criadora, flexibilidade, fluência, elaboração e outros processos mentais envolvidos na criatividade e no ato de decodificação da imagem, segundo a autora. É do conhecimento de muitos estudiosos que o livro infantil teve, na sua gênese, uma clara relação com o didatismo e o pedagogismo, na medida em que ele era considerado como um importante instrumento de formação humana, ética, estética, política. Entretanto por trás desse discurso, havia uma grande intenção de fazer do livro infantil apenas mais uma ferramenta para passar valores burgueses e conteúdos escolares que nada tinham de artísticos e não levavam os alunos, ao pensamento metafórico e epistemológico. É importante pensarmos que assim como no passado do livro infantil, hoje ainda ele é usado, muitas vezes, de forma inadequada pelos atores educacionais, ou seja, “a literatura infantil tem sido inadequadamente escolarizada, erroneamente escolarizada; discutindo isso, implicitamente se está apontando como ela poderia ser adequadamente escolarizada” (SOARES, 1999, p.22). Magda Soares entende que a “escolarização” do livro infantil é uma forma de apropriação da literatura para atender a fins educativos. Contudo, o que poderia tornar-se positiva nesta apropriação, seria encaminhar eficazmente as práticas de leitura literária que acontecem no contexto social e as atitudes e valores próprios do ideal de leitor que se busca formar. O negativo é deturpar, falsificar, distorcer a literatura, causando um distanciamento do aluno das práticas de leitura literária, desenvolvendo nele aversão ao livro e ao ato de ler. Entretanto, compete ao educador a missão de descobrir como realizar, de maneira adequada, o inevitável trabalho com o livro: texto e ilustrações. Uma proposta pedagógica de uso apropriado do livro infantil, exposto por Vera Teixeira Aguiar (2001, p.24), tem como apoio à sociologia da leitura, enquanto recorte teórico que se dedica a analisar as questões do livro e seus mediadores sociais. A sociologia da leitura aborda a descrição e a análise das questões externas à leitura, com os condicionamentos que determinam a permanência ou não de um livro na sociedade, com os fatores que influenciam na valoração dos textos, com os meios de aproximação dos leitores 46 Aqui se faz referência à metodologia triangular, elaborada pela autora Ana Mae Barbosa (2001), para o ensino de Artes. Tal metodologia é composta por três pilares fundamentais: o contextualizar, o conhecer e o fazer artes. 147 aos livros, com os juízos que fazem, com as histórias individuais e coletivas de leitura. Assim, se pode ter um diagnóstico dos interesses, das motivações para a leitura, das reações diante dos textos, dos lugares sociais e culturais que ocupam, das influências que exercem, isto é, de todos os meios externos de seu processo de formação. Outro apoio pedagógico apontado pela autora estaria na estética da recepção, que aponta os entrecruzamentos do leitor e do texto à luz da estética, das questões morais, sociais, religiosas, econômicas, éticas, filosóficas. E estes entrecruzamentos, concretizamse na história das leituras, sempre diferentes a cada texto e a cada ilustração. Esta teoria formula a concepção da arte literária centrada na atuação do leitor, atenta também para a leitura enquanto atividade que dá existência e legitima a literatura. Assim, a leitura acontece de forma ativa do leitor sobre o livro, trazendo para o universo da leitura possibilidades novas de sentido, que colocam em cheque suas verdades, conduzindo-o a uma reestruturação. Logo se vê que a função do trabalho com livros literários, e seus respectivos elementos, é fortemente educativa. Contudo conclui-se que existe um inegável vínculo da escola e a literatura infantil, mesmo por que seu “pecado original” foi ser usada para “educar” no sentido moralizante do termo. A escola é o lugar de “consagração do status quo” (CADERMATORI, 1995, p.18), e busca, na maioria das vezes, garantir a permanência do já estabelecido. Porém a literatura infantil, através do seu caráter literário busca uma reelaboração dos preconceitos, das visões de mundo e assim torna-se um meio de ordenação das experiências existenciais das crianças. A efetiva experiência com livros infantis pode levar à formação de novos padrões críticos. Intuímos que ao conviver com a leitura de livros infantis, além de ler com mais fluência e adquirir maiores informações, a criança terá novas possibilidades “existenciais, sociais, políticas e educacionais” (CADERMATORI, 1995, p. 20). Contribuindo potencialmente para ser um meio de emancipação. Esta pesquisa não tem pretensão de esgotar as idéias contidas nos livros analisados, ou as reflexões que essas obras estimularam. Ativemo-nos a determinados aspectos e fomos arbitrários (como todo leitor) em nossa seleção. Interessamo-nos pela história do livro infantil no Brasil, pelas funções das linguagens, pelos conceitos de leitor, livro e literatura infantil, pela intertextualidade, pela 148 interpretação de quatro livros e pela ilustração. E com relação a isso, fizemos um estudo aprofundado, procurando destacar aspectos que nos pareceram importantes. Tendo em vista que as características do nosso mestrado são atravessadas pelo prisma da contemporaneidade e da transdisciplinaridade buscamos levar nossas investigações através dessa perspectiva. Graças ao olhar transdisciplinar, sobre o livro infantil, pudemos recusar a visão direta e unilateral do mesmo. Colocamos em contato disciplinas como a história, a literatura, a semiótica na tentativa de uma compenetração, transfiguração e formação de um novo campo. Edgar Morin (2004, p.42; 94), pondera que no decorrer dos anos escolares, nossa educação nos ensinou a separar, compartimentar, isolar e, não unir os conhecimentos. Portanto, torna-se, muitas vezes, tarefa difícil ‘ler’ palavras e ilustrações sem privilegiar uma linguagem a outra. Buscamos então, fugir dessa visão fragmentada, pois ela nos tira a possibilidade de compreender, que significa apreender em conjunto, abraçar junto os textos, os contextos, as partes e o todo, o múltiplo e o uno. Na tentativa de compreensão do nosso objeto, consideramos, nessa pesquisa, pertinente apontar os livros infantis como objetos complexos. Ou seja, possuem elementos diferentes, inseparáveis que constituem um todo (MORIN, 2004). Os elementos diferentes que buscamos analisar foram: as ilustrações, as palavras, as imagens advindas das artes plásticas, que em ação mútua interagiram sobre o todo e o todo interagia sobre as partes. Logo, a partir desses jogos de hibridação propostos, graças a um prisma transdisciplinar, visualizamos uma imagem literária que nos permite finalizar essa pesquisa mostrando como ocorrem essas interseções de várias vozes. Como no misterioso imaginário de O Menino mais Bonito do Mundo (ZIRALDO, 1994), a partir de cujo milenar (re)nascimento, o olhar do menino se desdobra, as “vozes” narradoras do livro deambulam pelo sem-fim de portos de palavras e ilustrações. Na singularidade de cada ‘voz’ e de cada perspectiva a se mesclar no campo intersubjetivo das palavras e ilustrações, reverbera a coexistência de poesia, de cores, de luz, de sombras, de sons e de silêncios. Puxando novos fios da trama, trilhando novos caminhos, concluímos que muito ainda pode ser dito, até porque a literatura infantil é um manancial de intuições e informações sobre nosso ser e estar no mundo contemporâneo. 149 Referência Bibliográfica AGUIAR, Vera Teixeira de. Era uma vez...na escola: formando educadores para formar leitores [et.al]. Belo Horizonte: Formato Editorial, 2001.- (Educador em Formação). ALEXANDRINO, Helena. O Caminho do Caracol. São Paulo: Studio Nobel, 1998. ALMEIDA, Fernanda Lopes de. A Fada que tinha Idéias. São Paulo:Ática, 1976. ALMEIDA, Julia Lopes de; VIEIRA, Adelina Lopes. Contos infantis: em verso e prosa. 15.ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1923. ALVARENGA.Teresinha. Layla. Belo Horizonte: Miguilim,1993. ATLAN, Henri. Entre o cristal e a fumaça; ensaio sobre a organização do ser vivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992 AULETE, Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Delta, 1958. ARISTÓTELES. 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