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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS
CAMPUS DA FUNDAÇÃO EDUCACIONAL DE DIVINÓPOLIS
NOS CARACÓIS DO LIVRO INFANTIL:
ENTRE A LINGUAGEM VERBAL E ILUSTRATIVA
Alessandra Fonseca de Morais
Divinópolis
2007
Alessandra Fonseca de Morais
NOS CARACÓIS DO LIVRO INFANTIL:
ENTRE A LINGUAGEM VERBAL E
ILUSTRATIVA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da
Universidade do Estado de Minas Gerais, Campus da
Fundação Educacional de Divinópolis, como requisito
parcial à obtenção do título Mestre em Educação, Cultura
e Organizações Sociais.
Área de concentração: Estudos Contemporâneos
Linha de Pesquisa: Cultura e Linguagem
Orientador: Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira
Co-Orientadora: Prof. Dra. Ana Mónica Henriques
Lopes
Divinópolis
Fundação Educacional de Divinópolis
2007
M827c
Morais, Alessandra Fonseca de
Nos caracóis do livro infantil: entre a linguagem verbal e ilustrativa
[manuscrito] / Alessandra Fonseca de Morais. – 2007.
157 f., enc. il .
Orientador : Mateus Henrique de Faria Pereira
Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado de Minas Gerais,
Fundação Educacional de Divinópolis.
Bibliografia : f. 149 - 157
1. Livro Infantil. 2. Livro Infantil - Ilustrações. 3. Intertextualidade
l. Pereira, Mateus Henrique de Faria. ll. Universidade do Estadual de
Minas Gerais. Fundação Educacional de Divinópolis. lll. Título.
Dissertação intitulada “Nos Caracóis do Livro Infantil: entre a Linguagem Verbal e
Ilustrativa”, de autoria da mestranda Alessandra Fonseca de Morais, aprovada pela
banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
____________________________________________________________________
Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira – FUNEDI/UEMG– Orientador
____________________________________________________________________
Prof. Dra. Ana Mónica Henriques Lopes– FUNEDI/UEMG– Co-Orientadora
____________________________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Simões Ribeiro – FUNEDI/UEMG
____________________________________________________________________
Profa. Dra. Aracy Alves Martins – FAE/ UFMG
____________________________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Simões Ribeiro
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos: Cultura e
Linguagem – FUNEDI/UEMG
Divinópolis, 13 de dezembro de 2007.
AUTORIZAÇÃO PARA A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DA
DISSERTAÇÃO
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total
ou parcial desta dissertação por processos de fotocopiadores e eletrônicos. Igualmente,
autorizo sua exposição integral nas bibliotecas e no banco virtual de dissertações da
FUNEDI/UEMG.
_________________________________________________
Alessandra Fonseca de Morais
Divinópolis, 13 de dezembro de 2007.
Para minha mãe, Terezinha Fonseca,
cuja presença permitiu que me
acompanhasse num caminho que, de
certo modo, ela iniciou.
AGRADEÇO,
Ao Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira,
fonte de saber, de firmeza, profissional exemplar em nosso meio acadêmico.
À Profa. Dra. Ana Mónica Henriques Lopes,
pelo que me ensinou e, sobretudo, por ser alguém especial a quem admiro.
À Profa. Dra. Vilma Botrel,
pelo carinho e participação efetiva no início do trabalho.
Ao Prof. Dr. Alexandre Simões e demais professores do curso,
que me apoiaram e ajudaram a crescer.
À Secretaria de Pós-graduação,
pela eficiência de atendimento e cordialidade.
À amiga Ana Paula Martins,
pela troca de saberes e pelo apoio, valeu!
Aos amigos, Vânia Munhós e Gionavi Munhós,
pela gentil acolhida em Belo Horizonte.
À Elaine Matozinhos,
uma das grandes figuras femininas do nosso tempo.
Aos meus irmãos, Alysson e Alexandre,
ombros fraternos nos quais sempre pude me apoiar.
Ao meu amor e colega de mestrado, Marcos Matozinhos Munhós,
pela ajuda e carinho incondicional em todos os momentos, os certos e os
incertos.
Aos
meus
queridos
pais,
Adilson
Moraes
e
Terezinha
Fonseca,
por me oferecerem, com amor, todas as condições necessárias para a realização
desse curso.
Henri Galeron
“Belo é o que nos arranca do tédio e do cinza contemporâneo
e nos apresenta modos heróicos,
sagrados ou ingênuos de viver e pensar”.
Alfredo Bosi
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo analisar como o livro infantil, pode ser
interpretado de forma a ampliar seu potencial artístico. E aprender, nas obras De morte!
(1992), O Menino mais bonito do Mundo (1994), O Caminho do Caracol (1998),
Aviãozinho de Papel (2004), dentre outros livros infantis, aspectos pautados nas
relações entre palavra e ilustração, nas funções da linguagem, no dialogismo
intertextual, na conceitualização de livro infantil e leitor e na hibridação. Com olhar
transdisciplinar, recorremos a uma abordagem a partir da literatura, da história e da
semiótica, para melhor caracterizar a constelação de fatores que interferem nos modos
de ser e estar no mundo contemporâneo, encenados nas referidas narrativas.
Palavras-chave: livro infantil, linguagens verbal e ilustrativa, intertextualidade.
ABSTRACT
This work was intended to study how the child´s book can be interpreted in a
way to widen its artistic potential and learning in the works, De Morte! (Mortally,
1992), O Menino Mais Bonito Do Mundo (The Prettiest Boy In The World, 1994) O
Caminho Do Caracol (The Way Of The Snail, 1998), Aviãozinho De Papel (Paper Toy
Airplane, 2004) among other child´s books, aspects methodized in the relationships
between words and picture in the roles of language, in the intertxtual dialogism, the
comceptualization of child´s book and reader and in hybridation,. with a
transdisciplinar view , we resorted to an approach which gives emphasis to the
literature, education and to symiothics to better characterize the cluster of factors
interferring on the ways of being and standing in the present world plyaed in the refered
stories.
Key- words: child´s books, relationships between words and picture in the roles of
language, intertxtual dialogism.
SUMÁRIO
Página
Introdução
11
Capítulo I – Livro Infantil
20
I.1- O Livro Infantil no Brasil, em busca de uma periodização (até a década de 1990)
21
I. 2- As funções das linguagens verbal e ilustrativa
31
I.3- A busca por um conceito de livro infantil
54
Capítulo II - Interpretando os Livros Infantis à Luz da Intertextualidade
59
II.1 A intertextualidade nos livros infantis
61
II.2 De morte! e de vida: a inovação e o lúdico
64
II.3 O Menino mais bonito do Mundo: jogos de intertextualidades
79
II.4 A caracterização do Livro Infantil como obra literária
94
Capítulo III - Ilustração e Texto Escrito
101
III.1 Perspectivas facetadas da ilustração
103
III.2 Aviãozinho de Papel: hibridismo entre ilustração e palavras
110
III.3 O Caminho do Caracol: travessias poéticas
124
Considerações finais
139
Referência Bibliográfica
149
11
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa é fruto da permanente inquietação de uma ávida leitora de livros de
ficção para crianças. Dessa experiência surgiram as questões que norteiam essa pesquisa:
Como se articula a relação palavra-ilustração nos livros infantis? Quais são os discursos
presentes nestes livros? Como se dá a relação intertextual nos livros infantis? Quem é o
leitor da literatura infantil?
Em primeiro lugar delineamos nosso objeto, as linguagens dos livros infantis. E
para aludirmos a relação entre ilustração e texto escrito, inicialmente destacamos, a partir
de um caminho histórico, a trajetória de aproximadamente trinta livros infantis. E para
realizarmos uma análise mais detida escolhemos quatro livros infantis. São eles: De morte!
de Angela Lago (1992), O Menino mais bonito do Mundo de Ziraldo (1994), Aviãozinho de
Papel de Ricardo Azevedo (2004) e O Caminho do Caracol de Helena Alexandrino (1998).
Esses livros foram escolhidos devido a possibilidade de intertextualidade que eles
trazem, assim as reflexões se enriquecem. Com a interpretação dos referidos livros, a idéia
de que o texto é constituído de inúmeros ecos poderia ser problematizada.
Em vista disso, percebemos que ao tentarmos interpretar um livro infantil torna-se
impossível desvincular a história de vida e o momento histórico social no qual se vive a
experiência estética.Vemos a ilustração de acordo com a ótica e as referências pessoais e
culturais do observador. Pareyson conceitua a interpretação como algo que acontece
quando se instaura uma simpatia, uma congenidade, uma sintonia, um encontro entre um
dos infinitos aspectos da forma e um dos infinitos pontos de vista da pessoa: “interpretar
significa conseguir sintonizar toda realidade de uma forma através da feliz adequação entre
um de seus aspectos e a perspectiva pessoal de quem a olha” (1989, p.26).
Contudo, a interpretação é recriada por nós. Daí o resultado do exercício de
interpretação ter inevitavelmente a marca de quem o produziu.
No livro Introdução à Análise da Imagem, Martine Joly (1996) apresenta
conclusões bastante significativas a esse respeito, quando diz que interpretar, não consiste
em tentar encontrar uma mensagem preexistente, mas em compreender o que essa
mensagem, nessas circunstâncias, pode provocar de significações. Na mesma direção, a
autora lembra que logicamente são necessários limites e pontos de referência para uma
12
análise, o que permitirá elaborar, em detalhes, interpretações mais fundamentadas e mais
coletivas, com a consciência de que não é possível dar-se conta da totalidade ou da
variedade das interpretações individuais.
A mesma estudiosa completa e reafirma as idéias anteriores quando diz que: “para
analisar uma mensagem, em primeiro lugar devemos nos colocar deliberadamente do lado
em que estamos, ou seja, do lado da recepção” (JOLY, 1996, p.34). Este posicionamento
não nos livra, contudo, da necessidade de se rever o contexto histórico de surgimento da
obra, a narratividade da mesma, o autor, e outros elementos.
Ao analisar, por exemplo o texto infantil imagético O Caminho do Caracol
(ALEXANDRINO, 1998), o receptor o ressignifica, o atualiza e produz interpretantes de
acordo com sua sensibilidade atual. As significações mudam de pessoa para pessoa, e as
ilustrações produzidas no passado não tinham, na época, a mesma significação que a elas
atribuímos hoje na contemporaneidade. Observemos o que explicita Gianotti (2005) ao
falar da imagem artística:
Mais do que exprimir de maneira intuitiva e vital a verdade de
um objeto ou de uma situação, penso que este é representado pelo quadro
a fim de que a imagem sirva de ponte para que o pintor esburaque o
mundo cotidiano com sugestões de outros mundos técnica e
subjetivamente marcados. Um quadro é passagem orientada
(GIANOTTI, 2005, p.86).
Denotamos assim que a ilustração é uma forma de expressão que traz consigo traços
de tradições antigas e ricas da cultura. Vimos que para compreender um livro infantil
necessita-se levar em consideração seus contextos da comunicação, suas especificidades
culturais e a historicidade de sua interpretação. Interpretar é reviver aspectos da história, as
mitologias e representações dos observadores/ leitores. Mas há limites para a interpretação?
Umberto Eco (2000) realçou que os limites da interpretação é a não contradição do texto,
imagem e ilustração empregada.
Um aspecto delicado e polêmico na análise de uma ilustração é o uso do parâmetro
verbal para descrevê-la a analisá-la. Na presente pesquisa damos vazão ao pensamento
verbal que as ilustrações suscitam, sem contudo deixar de reconhecer que tal procedimento
não abrange os aspectos não-verbais, silenciosos que a ilustração possui.
13
A abordagem mencionada acima é tratada no livro Vida e Morte da Imagem: Uma
História do Olhar no Ocidente (DEBRAY, 1993), que o autor afirma que pode-se e deve-se
falar de qualquer imagem, porém ela própria não é capaz de fazê-lo1. Uma ilustração pode
ser infinitamente enigmática, tem infinitas versões potenciais, é uma polissemia
inesgotável. Entretanto, Mangel em seu livro Lendo Imagens abre o espectro ao expor seu
ponto de vista: “A linguagem humana é feita de palavras que se traduzem em imagens e de
imagens que se traduzem em palavras – ambas são as matérias que somos formados” (2001,
p.358).
Complementando as idéias de Manguel, Luís Camargo (2003) afirma com
veemência que a ilustração é um texto. E que não é incomum ler ou ouvir falar da ilustração
como se ela fosse apenas um prolongamento do texto, uma espécie de eco, incapaz de “falar”
por si própria. Essa hipótese leva o leitor a buscar na ilustração apenas os significados do
texto, empobrecendo sua compreensão, pois aquilo que a ilustração “diz” e não está no texto
não é percebido. Neste sentido entendemos que a ilustração é a imagem que dialoga com o
texto verbal, ela pode ser metafórica, metonímica, relatar eventos anteriores ao narrado, dar
novas informações, trazer novos planos narrativos ou criar diálogo entre diferentes planos
narrativos, alterar a ordem dos eventos, entre outros. Assim a ilustração pode ser entendida
como texto, produto da relação híbrida entre texto e imagem.
Leonor Lopes Fávero e Ingedore G. Villaça Koch, propõem dois conceitos de texto:
um lato e um stricto. Em sentido “amplo”, o termo “texto” designa “toda e qualquer
manifestação da capacidade textual do ser humano, (....), isto é, qualquer tipo de
comunicação realizado através de um sistema de signos”. Já em sentido restrito, o “texto
1
Como não é o objetivo do trabalho discutir o conceito de imagem sugerimos ver, entre outros: MANGUEL,
Alberto. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio/ Tradução de Rubens Figueiredo, Roaura Eichemberg e
Cláudia Strauch – São Paulo: Companhia das Letras, 2001; DEBRAY, Régis. Vida e Morte da imagem: uma
história do olhar no ocidente. Tradução de Guilherme Teixeira – Petrópolis, RJ: Vozes, 1993; GIANNOTTI,
José Arthur.O jogo do belo e do feio. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; JOLY, Martine. Introdução à
análise da imagem/; tradução Marina Appenzeller – Campinas, SP: Papirus, 1996 – (coleção Ofício de Arte e
Forma) e BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva. 2001.
14
consiste em qualquer passagem, falada ou escrita, que forma um todo significativo,
independente de sua extensão” (FÁVERO; KOCH, 1994, p. 25).2
Por extensão, podemos, portanto, falar na ilustração do livro infantil como um tipo
de texto, discorrendo em texto visual ou discurso visual. Essa ampliação não é gratuita. Ela
visa aproximar os estudos da linguagem e os estudos da imagem, para facilitar a
compreensão da ilustração, especialmente para os professores alfabetizadores, professores
de português, literatura e/ou de línguas estrangeiras que, pela própria formação, têm mais
familiaridade com o universo da palavra do que com o universo da imagem (CAMARGO,
2005, p.3).
Nessa direção, buscamos atentar cuidadosamente para cada livro, e na presença da
ilustração tentamos descobrir os tecidos e caminhos que elas nos suscitam. Este percurso
busca apresentar aspectos do objeto e dos meios de sua apresentação. Assim sendo, ao
seguir com o olhar os movimentos dos textos, verbais e ilustrativos, estamos tentando
instituir um sistema de regras que busca dar sentido à obra literária infantil.
Na procura da compreensão desse objeto ‘complexo’(MORIN, 2004), que é o livro
infantil, buscamos, um novo olhar, o olhar pela perspectiva da transdisciplinaridade.
Segundo Ivan Domingues,
“(...) esse novo olhar recusa a visão direta das coisas e a
focalização exclusiva no conceito ou nas imagens. Conceitos e imagens
não são coisas em si, mas metáforas à espera de equivalências produzidas
em outros campos conceituais e imagéticos” (2005, p.47).
Isso se justifica tendo em vista a relação linguagem visual e linguagem verbal que o
livro infantil traz. Essas linguagens se relacionam mutuamente e essa forma de
relacionamento é de suprema importância para o todo. O todo não é o somatório das partes,
essas se integram, combinam, relacionam para formar novas totalidades.
2
Na busca do conceito de livro infantil, deparamos com a idéia de Guto Lins, para ele, o livro infantil é
aquele que em geral é mais colorido, mais ilustrado e que possui “pouca massa de texto” (2002, p.44).
Entretanto se pontuarmos o conceito de texto como foi explicitado, nota-se que é duvidosa a afirmativa de
Guto Lins, pois livros infantis possuem grande massa de texto, a começar por suas significativas ilustrações e
narratividades.
15
O livro infantil, com suas ilustrações e narrativas, apresenta objetos que se
configuram como elementos de um mundo pictórico único, que se entrelaçam e invocam
outros. Tal entrelaçamento se faz singular quando promete um ir além dele mesmo.
Uma obra de arte é tanto coisa como norma, mais do que sintoma
é amostra de como se pode ir além dos fatos, na medida em que o jogo de
suas partes e partes de outras obras articula uma identidade explosiva,
perdendo seus parâmetros naturais conforme alinhava seus elementos
num jogo de linguagem não - verbal (GIANNOTTI, 2005, p.110).
Giannotti também ressalva que nenhuma interpretação/leitura é verdadeira se
dizemos o que é e o que não é. Mas seus elementos em sintonia valem uma análise ao nos
levar a vê-los, neles próprios, e depois no contexto de outras obras, e por fim na paisagem
de outras idéias e assim por diante.
Cabe aqui fazer um breve histórico do livro3.
Antes da escrita, os saberes da humanidade eram comunicados por meio da
oralidade, prática que remonta às antigas sociedades de cultura oral. Nessas sociedades, a
contextualização do saber era uma característica marcante. A palavra tinha o sentido que a
comunidade lhe atribuía no exato instante em que era proferida, e dentro do contexto
empregado. A palavra contada tinha densidade, corpo, e era dotada de poder.
Quando falar não foi mais suficiente para estar no mundo, quando a palavra deixou
de ser uma vibração animada pela memória para tomar outros rumos e se fixar em
matérias palpáveis, o homem começou a pensar em suportes e maneiras criativas para
organizar esta aquisição: a escrita. Dessa maneira, selou a passagem nunca concluída de
uma existência oralmente configurada, ouvida e compartilhada comunitariamente, para a
existência de um mundo a ser lido. E como tal registrou o seu saber no barro, na pedra, no
papel, na tela digital, inventou papiro, pergaminho; deixou sua marca no códex, no livro e
no computador (BUSATTO, 2006, p.86).
3
Para uma análise mais ampla ver: BUSATTO, Cléo. A Arte de Contar Histórias no Século XX I- Tradição e
Ciberespaço (2006 ,p.86 a 96).
16
A descoberta da tecnologia da escrita provocou impacto sobre os homens e sobre
as civilizações de onde surgiram. Os gregos sentiram esse abalo. Platão escreveu uma
fábula para descrever esse espanto, relatada em Fedro. Isso se passa num diálogo entre
Tot, o suposto inventor da escrita, e o faraó Tamus/ Amon. Ao apresentar a sua invenção
ao deus supremo Tamus/Amon, Tot ouve um lamento, pois Tamus/Amon receia que a
descoberta faça com que os homens esqueçam de exercitar a memória (Bussato, 2006,
p.116; CHARTIER, 1999, p.17).
Da palavra falada à palavra escrita e à palavra lida, há uma mudança na solicitação
dos sentidos. Enquanto falar se configura como um fato histórico-biológico, a escrita, por
sua vez, é concebida como uma técnica aprendida, e que exige o uso de ferramentas
específicas e ações claras para ser decifrada, como a leitura, que surge como uma
conseqüência do ato de escrever (CHARTIER, 1999, p.17; DARNTON, 1990, p.170).
Ao acompanhar a passagem da linguagem oral para a linguagem manuscrita,
impressa e digitalizada, concluímos que as culturas, oral, quirográfica e tipográfica contam
uma história densa e curiosa, que podem ampliar essa reflexão e elucidar a transição da era
da prensa à era digital. Roger Chartier (1999, p.23) aponta que essa é uma revolução mais
significativa do que a de Gutenberg, pois determina não só a mudança do suporte, mas dos
próprios processos de construção de sentidos.
A escrita provocou uma reestruturação na consciência do homem, fosse por trazer
consigo o isolamento e a interioridade para produzir o texto, fosse para lê-lo.
A oralidade tem a idade do homem e a escrita um pouco mais de 2.700 anos. Ao
acompanhar a passagem da sociedade de cultura oral para digital, o Brasil, país fortemente
marcado pelo analfabetismo, onde 67% da sua população ainda se encontra no patamar de
analfabetos funcionais, corre o risco de uma exclusão comprometedora, considerando que
a contemporaneidade vem marcada pela virtualidade. Cléo Busatto (2006 p.95) enfatiza a
exclusão digital, pois conviver com o mundo cibernético já é fato: cartões magnéticos
acessam um caixa eletrônico, no qual está contida uma pequena aposentadoria; liberam
uma cesta de alimento; catraca de ônibus; pagam contas; abrem portas, no trabalho, em
casa. O século XX, que trouxe livros cada vez menores e mais fáceis de serem
manuseados, trouxe também a grande novidade: o livro digital, o e-book, que pode ser
conseguido a custo zero, em diferentes línguas, a qualquer hora do dia ou da noite.
17
Além dessa importante reflexão histórica na busca da interpretação do livro infantil
contemporâneo é essencial também dirigirmos um pouco de nossas observações à “estética
da recepção”, por ser uma teoria da literatura que tem como base a idéia de que o leitor não
é um sujeito passivo e que contribui de forma criativa para fazer a história de uma obra. Tal
teoria nasceu na Alemanha e foi proposta nos trabalhos fundadores de Wofgang Iser e Hans
Robert Jauss desde finais dos anos 1960. Para Jauss é admissível estudar historicamente o
artifício das obras a partir da sua recepção. E ao estudarmos a obra do ponto de vista da sua
recepção, estamos contribuindo para enfatizar o diálogo entre a relação autor/obra/leitor
(BELO, 2002, p.69).
Logo, ao tentarmos interpretar os livros infantis, devemos ter como ponto de partida
a idéia de que somos seres históricos, ou seja, temos uma história pessoal e cultural e estas
são determinadas pelo tempo e espaço em que vivemos. Portanto, nosso olhar debruçado
sobre os livros infantis é fruto de uma vivência determinada pela sociedade, cultura e
época, bem como pelos valores, idéias, sentimentos e emoções que vão construindo uma
rede de significações.
“Para que serve um livro sem figuras nem diálogos?” pergunta-se Alice no primeiro
parágrafo de Alice no País das Maravilhas. Essa pergunta sugere preferências do leitor
infantil, preferências essas que, com o tempo, acabaram se tornando constitutivas do livro
infantil.
O livro, no caso do livro ilustrado, parece constituir-se como suporte para um texto
verbo-visual, composto pelo texto e pelas ilustrações. Um texto híbrido, que muitas vezes
exige um leitor híbrido, capaz de ler palavras e ilustrações, e não só capaz de ler os dois
textos separadamente – o verbal e o visual – mas a sua interação.
Para pensar a natureza e a significação da ilustração dos livros infantis, temos como
ponto de partida, na história do livro, três grandes momentos: o manuscrito medieval, as
obras para crianças do final do século XIX e início do século XX e os livros infantis
contemporâneos. Na Idade Média, a apresentação dos trabalhos manuscritos medievais não
apenas representava a realidade e a fantasia do seu tempo, mas já anunciava o meio gráfico
que influenciaria ilustradores atuais e também se assemelharia, em sua forma de narrar, à
maneira como a criança narrativizava seu cotidiano (SANTAELLA; NÖTH, 2005, p.35).
18
Pensando nas questões colocadas acima, esse trabalho acrescentará à Introdução
três capítulos e uma conclusão. No primeiro capítulo - Livro Infantil - conduzimos nossa
reflexão a partir de um estudo histórico do livro brasileiro. Nessa trajetória elucidamos
alguns livros infantis que tiveram destaque na formação histórico-social brasileira.
Abordamos também as funções da linguagem e as funções da ilustração, essa reflexão
desvenda a capacidade dos recursos lingüísticos de concretizar significados ao mesmo
tempo em que os disseminam. Após, refletimos sobre as relações de livro infantil, com o
leitor. Esse possui muitas particularidades e muitos fatores como o contexto sociocultural,
os espaços formais e informais, os produtos culturais, entre outros. Pensamos no leitor
como um indivíduo que pode ser capaz de transitar por diferentes linguagens e suportes,
com competência para (re)construir seu próprio texto, relacionando pontos de vista, autores,
informações e tipos de linguagem, recriando sentidos a partir do diálogo entre o seu
universo e o universo contido naquilo que está sendo lido.
A obra literária não pode ser presa ao seu momento de produção, nem ao sentido
pretendido pelo autor. Na medida em que se estrutura na linguagem ganha novos sentidos
na leitura; o leitor – dotado de uma bagagem cognitiva e experiências individuais – não é
um mero receptor passivo de uma suposta mensagem. O ato da leitura é um processo de
decodificação e apropriação do texto que faz com que a obra literária seja um produto
permanente da cena contemporânea, pois sua existência “de fato e indefinidamente” se faz
pelo processo produtor de sentidos da leitura (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 108). Neste
sentido “o contexto pertinente para o estudo literário de um texto literário não é o contexto
de origem desse texto, mas a sociedade que faz dele um uso literário, separando-o de seu
contexto de origem” (COMPAGNON, 1999, p. 45).
No segundo capítulo -Interpretando os Livros Infantis à Luz da Intertextualidadeevidenciamos a temática da intertextualidade. Tratamos o assunto na perspectiva do livro
infantil, propondo uma rede de leituras. Os livros escolhidos como suportes da
interpretação foram De morte! (1992) e O Menino mais bonito do Mundo (1994). O
primeiro intertextualiza com as imagens do pintor renascentista Dürer e o segundo
intertextualiza, principalmente, com o texto bíblico Gênese e com uma obra de Sandro
Botticelli. Após reafirmamos as principais características do livro infantil enquanto um
objeto literário e/ou artístico.
19
No terceiro e último capítulo - Ilustração e Texto Escrito-, apontamos a hibridação
como fator importante na constituição do livro infantil e a ilustração como um mosaico de
interpretações. Os livros selecionados como base para as argumentações foram O Caminho
do Caracol (1998) e Aviãozinho de Papel (2004).
Para salvaguardar a clareza da exposição e a sistematização das idéias, optamos por
subdividir os três capítulos em itens, como será apresentado oportunamente.
Portanto, através da presente pesquisa, tentamos explorar nosso objeto, linguagens
verbal e ilustrativa dos livros infantis, e assim pesquisar suas implicações e as preocupações
preliminares que elas demandam, as intertextualidades e as diversas funções da linguagem
verbal e da ilustração. Buscamos ainda evocar a relação ilustração/ palavra, de igual
importância para este estudo, uma vez que o texto escrito não apenas participa da
construção da mensagem visual, como ora a substitui, ora a completa em uma circularidade
ao mesmo tempo reflexiva e criadora.
20
Capítulo I
LIVRO INFANTIL
21
Nesse primeiro capítulo, começamos por evidenciar a história do livro infantil no
Brasil até a década de 1990. Para tanto, tomamos como objeto de análise vários livros
infantis e seu contexto de surgimento.
Após, abordamos as funções da linguagem verbal e ilustrativa tomando como ponto
de referência exemplos em ilustrações de livros infantis, poesias visuais e imagens das artes
plásticas. As funções conferem ao texto um potencial amplamente interpretativo.
Refletimos também sobre os conceitos de leitor, livro infantil e literatura infantil
tendo em vista que esses conceitos são bastante operatórios para a clareza do trabalho.
I.1-O Livro Infantil no Brasil, em busca de uma periodização (até a década de 1990)
Os primeiros livros brasileiros escritos para crianças apareceram no final do século
XIX. Neste contexto há uma nova formatação social, marcada pela ascensão de uma classe
média urbana, desejosa de maior liberdade política, melhores negócios, dinheiro mais
acessível, novas oportunidades para educação. O aparecimento dos primeiros livros para
crianças incorpora esse processo. Porém, não havia uma tradição de escritores infantis e
então foi preciso traduzir obras estrangeiras, adaptar para o infantil obras que originalmente
eram destinadas aos adultos4 ou apelar para a tradição popular, acreditando que as crianças
gostariam de ver nos livros histórias parecidas àquelas que as mães, amas-de-leite, escravas
e ex-escravas contavam em voz alta. Os escritores brasileiros buscaram então repetir e
recriar o que ocorrera na Europa, e criaram a literatura infantil brasileira (ZYLBERMAN,
2005, p.13-16).
Os escritores pioneiros foram Carl Jansen e Figueiredo Pimentel. Jansen nasceu na
Alemanha, mas veio ainda jovem para o Brasil e se tornou jornalista e professor. Nesta
segunda profissão, ele pôde perceber que faltavam livros de histórias apropriados aos
alunos, e entre 1880 e 1890, traduziu alguns clássicos como: D.Quixote de la Mancha.
Figueiredo Pimentel era brasileiro e seguiu o caminho dos Irmãos Grimm, publicou
4
Os livros Robinson Crusoé de Daniel Defoe , e Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, publicados quase
que na mesma época, respectivamente 1719 e 1726, foram logo abreviados e simplificados para a leitura das
crianças inglesas, e até hoje é mais comum encontrarmos estes livros com o formato reduzido do que na
versão integral. Os contos de fadas também eram contados por e para adultos, até que homens como Charles
Perrault , na França, os irmãos Grimm, na Alemanha, as transcreveram e publicaram visando o público
infantil (ZYLBERMAN, 2005, p.16).
22
coletâneas de muito sucesso, como os Contos da Carochinha e Histórias da Avozinha,
nestes livros mesclam-se desde histórias de fadas européias até narrativas contadas por
escravas negras. Em 1885, Sílvio Romero publicou Contos Populares do Brasil,
provavelmente com o intuito de valorizar o folclore e as várias expressões orais do Brasil,
esta obra, posteriormente foi muito usada por Monteiro Lobato numa época de euforia
nacional, estimulada pelo governo de Getúlio Vargas, pois este incentivava o uso de
elementos nacionalistas do passado, mas desde que não fossem contrários aos seus ditames
(ZYLBERMAN, 2005, p.17; 93).
Em relação às idéias acima, é significativo ressaltarmos que atualmente existe uma
tendência a essa retomada das histórias folclóricas e/ou as histórias dos contos de fadas.
Destacaremos aqui o escritor Ricardo Azevedo que incorpora em grande parte de suas
obras vários elementos folclóricos como os contos, as quadradas populares, frases feitas,
adivinhas, ditados populares e assim por diante, evidenciando que tais expressões são frutos
de pesquisa, porém ele se singulariza por mostrar-se liberto do “exatamente igual ao
original”, desta forma além dele expor suas pesquisas folclóricas ele as recria. Por exemplo:
O fiado já morreu
Foi com o dono enterrado
Quem quiser beber cachaça
Só pagando adiantado (AZEVEDO, 2001, p.13).
Nesta mesma linha, Chico Buarque de Holanda, escreveu Chapeuzinho Amarelo
(1979), texto que questiona o medo e desmistifica o lobo mau, este ato se dá através de um
trocadilho verbal: de LO-BO, passa-se a BO-LO. E a menina aprende a transformar seus
medos através da brincadeira com a linguagem.
Não menos importante se apresenta às narrativas de Marina Colasanti em Uma Idéia
Toda Azul (1978), neste livro a autora usa dos elementos dos contos de fadas para expor os
sentimentos, angústias, desejos e paixões dos seres humanos. No conto homônimo ao livro
tem-se a história de uma idéia azul e quem a teve foi um rei, porém este a guardou numa
cama de marfim, na “Sala do Sono” e trancou a porta. Somente quando ele envelheceu e
parou de governar é que ele foi ter com sua idéia azul, mas “Seus olhos não viam na idéia a
mesma graça. Brincar não queria, nem rir. Que fazer com ela? Nunca mais saberiam estar
juntos como naquele dia” (COLASANTI, 1978, p.33), e após essa reflexão, o Rei sentou-se
e chorou com muita tristeza, abaixou o cortinado e fechou a porta para sempre. Uma
23
possível interpretação a esse conto seria pensarmos que a autora retoma a característica
humana de abandonar os sonhos e desejos em detrimento do trabalho e dos afazeres,
deixando o prazer em segundo plano. O Rei teve uma idéia que para ele era ótima, mas não
sabia que ela corresponderia ao tempo presente. E ao deixá-la para ser retomada no futuro
ela perdeu o sentido, assim conseqüentemente, o Rei também se perde, levando-nos até
mesmo a hipótese de uma morte física ou psicológica.
No percurso histórico do livro infantil percebemos que uma grande mudança
ocorreu em 1921, com a publicação de A Menina do Narizinho Arrebitado, por Monteiro
Lobato. O escritor revelou a preocupação em escrever histórias para crianças numa
linguagem compreensível e atraente; esse objetivo foi plenamente alcançado pelo autor,
cuja obra é até hoje uma das mais importantes da literatura infantil brasileira. Monteiro
Lobato rompeu a dependência com o padrão culto da época, introduziu a oralidade tanto na
fala das personagens como no discurso do narrador. Em seus livros o escritor repetia as
personagens (como ocorre nas histórias em séries, como as que se conhece da televisão ou
das revistas em quadrinhos), de maneira que não precisava inventar novos personagens
principais a cada vez em que principiava outra narrativa (AGUIAR, 2001, p 26).
Os personagens criados por Lobato (para a série de livros que tem como cenário o
Sítio do Pica-pau Amarelo)5, geralmente trazem consigo características dos grandes heróis
tradicionais, além disso, possuem qualidades singulares como o fato de as personagens
principais, Pedrinho e Narizinho serem crianças. A boneca Emília ou Visconde de
Sabugosa mimetizam o comportamento infantil, desta forma o universo das personagens
aproxima-se do universo das crianças e permite uma certa identificação. As personagens
também possuem independência e inteligência, tomam iniciativas, resolvem problemas,
abordam os adultos de igual para igual e principalmente vivem sobre o princípio da ética e
da justiça entre os indivíduos. Outra característica de Lobato é fazer com que o Sítio se
tornasse um mundo independente e auto-suficiente, ele se situa em um sítio apenas, não é
5
O último livro, de Lobato, escrito para o público infantil foi Os Doze Trabalhos de Hércules, em 1944. Ele
faleceu em 1948, e nestes quatro anos derradeiros, dedicou-se a organizar sua obra. Por esse motivo, há
diferenças entre as edições de algumas histórias, a começar pela primeira, que mudou de nome. De: A Menina
do Narizinho Arrebitado (1921), em 1931 foi para: Reinações de Narizinho. Esta mudança se deu quando ele
acrescentou, ao original episódios como, O Marquês de Rabicó, O Irmão de Pinóquio e O circo de
Escavalinho (ZYLBERMAN, 2005, p.24).
24
mencionada a cidade e nem o estado, o máximo que se pode presumir é que ele situa-se no
Brasil. Ou que ele é uma metáfora do Brasil 6.
O Sítio é dirigido por uma mulher culta, inteligente, bem-intencionada e
competente: Dona Benta, modelo do político que, segundo Lobato, deveria governar o
Brasil. É válido ressaltar que o escritor denomina-se José Bento, e para Regina Zylberman
(2005, p.28), ela é, de certa forma a “voz crítica” de Lobato. Observamos também que
quando Lobato escreveu boa parte de seus livros, o Brasil era vítima de uma ditadura,
assistia-se também à ascensão do fascismo e do nazismo e a Europa estava sendo devastada
por uma guerra brutal. Em vista disso entendemos que Dona Benta representa o melhor
dirigente possível, conforme reconhecem eminentes políticos da época, vindos de várias
regiões do globo, citados em A Chave do Tamanho, livro que traz muitas idéias políticas do
autor (ZYLBERMAN, 2005, p.28) 7.
Após o avanço conquistado pelos livros de Monteiro Lobato, a literatura infantil no
Brasil de 1945 até meados da década de 60, viveu um período de retrocesso no que diz
respeito à criatividade. O modelo lobatiano de contar histórias foi absorvido pelos novos
autores e repetido à exaustão, sem muita inventividade ou preocupação em retratar a
diversidade cultural brasileira em seu linguajar próprio.
Mas seria um grande equívoco, neste período histórico deixarmos de ressaltar as
obras infantis destinadas a serem encenadas, teatralizadas. E neste cenário se decantam as
publicações de Maria Clara Machado (1921-1981), que escreveu várias obras do gênero
dramático. Mas a sua consagração veio mesmo com Pluft, o Fantasminha (1955). Os
acontecimentos do texto se concentram unicamente no espaço da casa-mal-assombrada e os
personagens se divergem entre vivos e fantasmas. O personagem do título, que se faz herói
da trama, salva a menina Maribel dos perigos que ela passa ao ser seqüestrada pelo pirata
6
O Sítio do Pica-pau Amarelo aparece desde o primeiro volume da obra que Monteiro Lobato destinou à
infância, sendo escrito com detalhes na abertura de O Saci (1921). Ele é de propriedade de Dona Benta
Encerrabodes de Oliveira, que habita o sítio na companhia de uma cozinheira, Tia Nastácia, e da neta. Nas
férias recebe a visita do neto Pedrinho, filho de uma filha de Dona Benta, mencionada algumas poucas vezes.
Os pais de Narizinho são ignorados (ZYLBERMAN, 2005, p.28).
7
Referimos até aqui à porção principal da obra literária infantil de Lobato. Porém ficaram muitas realizações
de lado, como as adaptações de clássicos da literatura (Dom Quixote das Crianças, de 1936) de obras
européias destinadas à infância (Peter Pan, 1930), as inclusões do folclore (Histórias de Tia Nastácia, de
1937) e na mitologia ocidental (O Minotauro, 1939), o aproveitamento da história (História do Mundo para
Crianças, de 1933), da geografia (Geografia de Dona Benta, de 1935), da matemática (Aritmética da Emília,
de 1937), que aparecem em muitos dos títulos.
25
Perna de Pau. Pluft, mesmo fantasma, tem características humanas, tem medo, é tímido e
inseguro. Sua mudança vem ao enfrentar o perigo para salvar a humana Maribel, onde ele
se afirma como um indivíduo realizado e feliz.
Maria Clara Machado, ao compor a narrativa básica de Pluft, o
Fantasminha retorna, pois, às origens do teatro e da literatura infantil,
coerente com os gêneros a que filia a obra. Ao mesmo tempo, confere-lhe
teor próprio e original, não apenas por combiná-los num único texto, mas
por avizinhá-los da criança contemporânea (ZYLBERMAN, 2005,
p.148).
Nesta linha de pensamento podemos supor que a autora une os elementos mágicos,
sobrenaturais, metaforizado no Fantasma, com o universo do pensamento infantil. Além
disso, o texto é muito rico em humor, pois mistura o medo com o riso.
Nos anos de 1960, após a implantação da ditadura militar (1964 - 1985), a literatura
infantil, provavelmente por não ser muito vista, não foi muito lembrada pela censura, e
serviu como um meio por onde alguns artistas em geral manifestaram suas idéias.
Apareceram aí obras com muitas metáforas e símbolos que traziam idéias libertárias
(AGUIAR, 2001, p.27).
Nesta mesma década, a sociedade sofria a influência dos meios de cultura de massa
feitos principalmente nos Estados Unidos, aqui se destaca a dominação dos desenhos
animados de Walt Disney Co. Paralelamente buscava-se uma arte mais nacional, que
apontava os problemas do Brasil. É neste cenário que sobressai a literatura de Ziraldo: autor
que conseguiu fazer uma literatura que se colocou no meio das duas vertentes. Criou
histórias em quadrinhos nos moldes norte-americanos, mas com temáticas brasileiras.
Em relação à poesia destacou-se o lirismo de Cecília Meireles. Seu livro de maior
expoente foi Ou Isto ou Aquilo (1964):
(...)
Dizem que a chácara do Chico
só tem mesmo chuchu
e um cachorrinho coxo
que se chama Caxambu.
Outras coisas, ninguém procure,
porque não acha.
Coitado do Chico Bolacha (MEIRELES, 2002, p.17)!
26
Este fragmento de poema contido no livro citado denomina-se A Chácara do Chico
Bolacha (1964), e apenas pelo título já podemos supor que a poesia terá uma temática
engraçada, pois de início tem-se uma clara aliteração com os sons do “x”.
O nome composto do dono da chácara também é lúdico e ligado ao universo
infantil: “Chico Bolacha”; “Chico”, um apelido de Francisco e “Bolacha”, é um alimento
saboroso e ligado exatamente à sinestesia e ao prazer de comer.
Ao ler a poesia notamos que o protagonista é um “pobre coitado” que possui um
cachorro que manca e que em sua chácara não há nada a não ser chuchu. Contudo notamos
que se trata de uma poesia-narrativa onde se destaca o anti-herói, a carnavalização da
epopéia. Possivelmente esse foi o diferencial de Cecília Meireles, que mesmo seguindo
alguns passos de Bilac8, foi um claro exemplo de inovação.
Na década de 1970, o ensino passou por grandes mudanças e como conseqüência, a
literatura infantil também. Nesta época foi implantada a Lei 5.6929, que de certa forma
abriu as portas a crianças de todas as classes sociais, porém o ensino brasileiro não estava
preparado para receber tantas crianças, assim houve um recrutamento intenso de
professores, e estes docentes foram preparados para lecionar de forma muito apressada e até
mesmo superficial10. Entretanto, mesmo com essas mudanças complicadas e contraditórias
o livro infantil passou a ser mais valorizado, e a criança começou a ser olhada como um
consumidor em potencial.
Para Lígia Cademartori (1995, p.12) esse “interesse” na literatura infantil se deu por
dois motivos: à crescente ampliação da classe média e ao aumento do nível da escolaridade
como decorrência da reforma do ensino. A autora aponta também que foi deste cenário que
os brasileiros começaram a estudar, fazer seminários e publicações sobre a literatura
infantil, que até então era vista como algo segregado.
8
Um gênero que sempre esteve presente na literatura infantil brasileira foi o poético, no início do século XX
seu principal representante foi Olavo Bilac, que era um parnasiano, e como tal valorizava a perfeição formal,
métricas, rimas e assim por diante. Esse gênero cresceu muito no decorrer da história do livro infantil.
9
A referida lei encontra-se em http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/L5692.htm.
10
Em relação à formação de professores para as classes iniciais, observamos que a situação atual não é muito
diferente da apontada na década de 1970, pois ainda há muitos professores didaticamente despreparados, com
pouco conhecimento teórico e pedagógico. Além disso, os salários são muito baixos, o que leva o docente a
trabalhar em demasia, e desta forma não lhe sobra tempo para preparar aulas adequadas. E principalmente,
falta à educação brasileira um investimento nos estudos e na implementação das políticas públicas
educacionais.
27
Nessa mesma década, houve um grande número de publicações de obras voltadas
para o público infantil, porém muitas obras eram pedagogizantes e/ou moralistas, outras
traziam textos que tratavam o suposto leitor (a criança) de forma a imbecilizá-lo e outras,
ao contrário, apontavam temas que estavam longe de uma identificação da criança.
Nesta fase apareceram obras que se valiam de personagens semelhantes aos dos
contos de fadas, como: bruxas, moças pobres, madrastas, príncipes, fadas. Porém estes
personagens eram usados para discutir temas contemporâneos. Um livro de grande
destaque, muito lido ainda hoje, é A Fada que Tinha Idéias, de Fernanda Lopes de
Almeida, publicado em 1971. Nele a protagonista, Fada Clara Luz, é sutilmente uma
subversiva, pois rejeita piamente seguir as idéias impostas contidas no “Livro das fadas”.
Tal atitude faz com que a personagem sofra castigos e punições pelas fadas que detêm o
poder, mas também Clara Luz consegue aliados e ao final modifica o sistema político de
sua terra.
Em 1978, em meio a esse desenvolvimento qualitativo de livros infantis foi
publicado História Meio ao Contrário de Ana Maria Machado; a obra merece destaque por
trazer consigo temas desafiadores e surpreendentes para a época, são eles: um rei que é
alheio a realidade de seu reino, uma princesa que não aceita a escolha de seu noivo e cuida
da sua própria vida, um príncipe que se interessou por uma camponesa e não por uma
princesa que através da tradição da nobreza lhe era imposta.
(...) E o príncipe viu a Moça.
Que moça? Ora, a Pastora, você está ficando esquecido? Não
lembra que ela tinha ficado por ali para olhar e tratar de aprender? Pois
os dois se olharam e se apreenderam. O Príncipe viu a pastora por entre
as árvores, na luz do olhar do Dragão, e pensou que de manhã quando
tinha falado com ela na aldeia, nem tinha reparado como ela era tão
bonita. Talvez de manhã ela nem fosse ainda tão bonita, porque a
verdade é que todos os acontecimentos do dia tinham ajudado muito a
Pastora a não esconder mais seus olhos e a levantar a cabeça – e ela,
como todo mundo, ficava muito mais bonita assim (MACHADO, 1978,
p.34).
Além disso, a história subverte a ordem proposta nos contos de fadas, pois o livro,
ao invés de finalizar, inicia-se com “e vivem felizes para sempre” (p.4). Essa obra apresenta
uma contestação metafórica significativa ao sistema político autoritário, no qual o Brasil se
encontrava.
Observamos que nos dois livros citados como livros de grande valor literário que
apareceram nesta época: A Fada que Tinha Idéias (1971), e História Meio ao Contrário
28
(1979), todos eles apresentam a personagem feminina com bastante destaque, fato que até
então não era comum. Geralmente eram os personagens masculinos que tinham os dotes de
“heróis”, nestes livros a mulher aparece em uma condição transformadora, vai contra os
patrões pré-fixados e ao final modificam a situação de dominação a qual anteriormente lhe
foi imposta.
Contudo, provavelmente, o livro publicado nos anos de ditadura de maior
popularidade foi O Reizinho Mandão (1978) da autora Ruth Rocha. O livro não apresentase em prosa, mas em versos, em clara intertextualidade com a literatura de cordel:
Quando Deus enganar gente,
Passarinho não voar...
A viola não tocar,
No dia em que o mar secar,
Quando prego for martelo,
Quando cobra usar chinelo,
Contador vai se calar...
Eu vou contar para vocês uma história
que meu avô sempre contava (ROCHA, 1978, p.5).
Neste início já se observa que a história é musicalizada, e que é impossível, mesmo
com toda autoridade política fazer um “cantador se calar”, colocando em cheque a questão
da liberdade de expressão e a possibilidade de se exprimir os pensamentos contrários
através da música e da literatura.
A partir deste início é narrada a história de um menino que nasceu príncipe, é
herdeiro do trono, “sujeitinho muito mal-educado, mimado” (ROCHA, 1978, p.5) e muito
autoritário. Ao se tornar rei, ele busca e consegue fazer com que seu reino se torne um lugar
de muita infelicidade e amargura, pois ele proíbe a todos do reino de falar.
_Cala a boca! Eu é que sou o rei.
Eu é que mando!
Podia ser ministro, embaixador, professor.
E tantas vezes ele mandava
que o papagaio dele acabou aprendendo
a dizer “Cala a boca” também (ROCHA, 1978, p.5).
Por causa da grande repressão, o próprio Reizinho já não agüentava mais viver
nessa situação, e antes de reverter o quadro ditatorial que ele mesmo havia imposto, uma
menina que estava muito contrariada, grita para todo mundo ouvir que ninguém mandaria
29
em sua fala. Vemos então uma grande expressão de liberdade, e esta modifica o cenário do
reino que redescobre sua voz e causa a fuga do Reizinho.
O presente livro é uma clara alusão ao sistema autoritário que o Brasil vivia na
década de 1970, que sucumbia a “voz” das pessoas que faziam oposição ao governo militar,
a história é uma tentativa de expressão diante do poder. Bem como uma crítica indireta à
“proposta de abertura” militar naquele momento. Após o sucesso do livro O Reizinho
Mandão, Ruth Rocha publicou mais dois livros ligados ao mesmo tema, fazendo uma
trilogia contra a ditadura. Os livros são: O Rei que não sabia de nada (1979) e Sapo Vira
Rei Vira Sapo ou A Volta do Reizinho Mandão (1982). O primeiro denuncia a necessidade
de se expressar diante do poder e o segundo, além de apresentar novamente o Rei
autoritário que sempre quer se impor, dialoga com o conto de fadas “O Príncipe Sapo” e
com a literatura irônica do modernista Manuel Bandeira.
A poesia musicalizada endereçada à criança de grande significância neste período
foi a de Vinicius de Moraes, com A Arca de Nóe (1974), onde abordou temas atrativos ao
público infantil através dos animais.
A dramaturgia também ganhou em qualidade, pois essa época foi berço do
espetáculo infantil: Os Saltimbancos (1977), de Chico Buarque de Holanda. O músico
traduziu a obra de Sérgio Bardotti. Chico deu a ela um “tom” muito brasileiro, ou seja, a
reescreveu. O texto intertextualiza com “Os Músicos de Bremen” escrito pelos Irmãos
Grimm, nele o autor eleva a importância da solidariedade, companheirismo e crítica perante
o poder. Essa última característica da obra é fundamental para torná-la uma obra de
vanguarda, pois como já dissemos, a presente época se caracteriza pela ditadura militar que
vigorava.
Nos anos de 1980, o quadro político já apresentava uma maior abertura e a busca
pela formação escolar das crianças se intensificou. Os meios de comunicação apoiaram tais
mudanças, porém com um intuito de levar as pessoas a consumirem. Notamos que nessa
época houve um número grande de publicações e os principais temas eram: o cotidiano das
crianças, os contos de fadas em versão moderna e as denúncias sociais.
Outro livro de grande teor literário escrito em 1986, pela autora Ana Maria
Machado, denomina-se Palavras, Palavrinhas & Palavrões. O livro aborda o tema da
linguagem, do poder da palavra e do poder do silêncio. Novamente a protagonista é uma
30
menina que percebe o quão é mágico e misterioso o uso das palavras, e que elas são
cercadas de conceitos e preconceitos. Esta protagonista é uma grande observadora e
pesquisadora das palavras que ouve ou lê, e em suas pesquisas pueris descobre o “palavrão”
e todo o tabu e proibições que o cercam. Em certo momento do livro a menina opta pelo
silêncio, até descobrir que ela pode ser dona de sua própria fala e sujeito do mundo que
constrói com elas (LAJOLO, 1986).
Em Divinópolis, a escritora Terezinha Fonseca publicou A Menina que não Falava
o Vinte, 1985. A obra foi uma das primeiras edições feitas para o público infantil da cidade
e sua temática gira em torno da idéia do fracasso escolar e da baixa preparação dos
professores. A personagem principal, Nininha, é uma menina de habilidades cognitivas
normais, no entanto, na escola era preciso que aprendesse a falar o número 20, e ela não
conseguia. Assim é percebido que os procedimentos didáticos e metodológicos para o
ensino não eram coerentes com a forma de se ensinar. Somente ao final, com a troca de
professoras é que a menina verbaliza o número. A obra também pode ser observada como
uma alegoria ao silêncio imposto pelos 20 anos de ditadura no qual o Brasil viveu.
Também é válido ressaltar que apareceram várias publicações para o público infantil
que visavam, de forma lúdica e criativa, informar. Os assuntos se divergem entre artes,
botânica, arquitetura, anatomia, religião, música, higiene, ciências naturais, tecnologia e
muitos outros temas adaptados para o nível cognitivo do leitor mirim. Tais obras
apresentam-se de modo atrativo, bem cuidado e usam das características da literatura para
seduzir o público, há poemas que descrevem um fato histórico, há personagens que
analisam obras de artes e assim por diante.
Logo, após essa breve contextualização da história da literatura infantil no Brasil,
até o fim dos anos de 198011, apontamos que não tivemos por objetivo pormenorizar as
principais obras e autores e nem tampouco detalhar fatos históricos, que com certeza
mudaram os rumos da nossa literatura. Podemos resumir que houve quatro etapas principais
no percurso histórico de nossa literatura infantil. A primeira vai do final do século XIX a
meados dos anos de 1920, fase em que o Brasil apresentou uma literatura em moldes
europeus. A segunda fase vai de 1921 até meados da década de 1940 e é marcada pelas
obras do grande escritor Monteiro Lobato, a terceira fase começa no final da década de 40,
11
Alguns livros da década de 1990 serão, de alguma forma, abordados nos próximos capítulos.
31
com a morte de Lobato em 1948, e vai até a década de 1970. Esta fase foi marcada pela
cópia do modelo lobatiano sem recuperar a qualidade de suas obras e a quarta fase que se
iniciou na década de 1970, com obras que metaforicamente buscaram a denúncia social, a
apropriação de elementos da cultura de massa, além de uma extensa produção de livros
destinados a muitas áreas do conhecimento. Para Vera Teixeira Aguiar, em todo esse
percurso histórico, do início até os dias atuais a literatura para crianças sempre esteve
dividida em duas tensões: “pedagogismo e proposta emancipatória, massificação e
liberdade expressiva” (2001 p.34). Entretanto, observamos que mesmo se vendo diante do
pedagogismo, da massificação e do consumismo ela, de certa forma, assumiu um papel de
vanguarda no decorrer da história, mostrando-se muito coerente ao que ocorria em seu
tempo. Ressaltamos também o quanto as personagens femininas foram protagonistas, e
delinearam um papel de rompimento com a submissão, a fragilidade e a dependência.
I.2-As funções das linguagens verbal e ilustrativa
Para ampliar nosso horizonte de expectativas em relação aos significados da
ilustração, um ponto de partida pode ser a hipótese de Luís Camargo (2004, p.1) de que a
ilustração pode ter várias funções. Veremos inicialmente, o que o referido autor diz sobre
as funções da linguagem verbal e após iremos analisar e exemplificar as funções da
ilustração, ambas objetos de estudo do referido autor.
De acordo com a orientação para um ou outro elemento da comunicação,
configuram-se seis diferentes funções da linguagem: a orientação para o REMETENTE
configura a função EXPRESSIVA; a orientação para a forma da MENSAGEM configura a
função POÉTICA; a orientação para o assunto da mensagem - o REFERENTE - configura a
função REFERENCIAL; a orientação para o DESTINATÁRIO, a função CONATIVA; a
orientação para o CANAL, a função FÁTICA; e, por fim, a orientação para o CÓDIGO
configura a função METALINGÜÍSTICA (JAKOBSON, 1985, p.123-129).
32
Elementos da linguagem
segundo Jakobson
REMETENTE
REFERENTE
MENSAGEM
CANAL
CÓDIGO
DESTINATÁRIO
Funções da linguagem
segundo Jakobson
EXPRESSIVA
REFERENCIAL
POÉTICA
FÁTICA
METALINGÜÍSTICA
CONATIVA
Jakobson (1985, p.123) adverte que é quase improvável se encontrem mensagens
lingüísticas com uma única função, assegurando ainda que a diversidade das funções
lingüística não deriva do monopólio de uma determinada função, mas de diferentes
hierarquizações das funções.
As funções da linguagem extrapolam o universo verbal, assim expõe as teorias de
Jakobson, pois ainda no ensaio Lingüística e Poética, ele sugere que as seis funções expostas
não se reduzem ao código verbal, mas podem estar presentes em outros sistemas sígnicos,
afirmando: “muitos dos procedimentos estudados pela Poética não se confinam à arte verbal”
e, também, “numerosos traços poéticos pertencem não apenas à ciência da linguagem, mas a
toda a teoria dos signos, vale dizer, à Semiótica geral” (JAKOBSON, 1985, p.119). Na mesma
direção, Martine Joly toma como ponto de partida as funções propostas por Jakobson para
estudar as funções da imagem (1996, p.55-61).
Camargo (2004), continua seus estudos observando esse trânsito da lingüística para a
semiologia ou semiótica, chega até mesmo a recomendar o uso da palavra texto como um
conjunto estruturado de signos, verbais ou não. Essa também é a posição de José Luiz Fiorin,
que propõe que quando um discurso é manifestado por um plano de expressão qualquer, temos
um texto12. Observa-se que, ao aludir um plano de expressão qualquer, Fiorin não reduz o
plano de expressão à linguagem verbal, afirmando que “não há conteúdo lingüístico sem
12
A Enciclopédia Einaudi conceitua o texto como um tecido lingüístico de um discurso; e que é importante
considerar como texto produções que exigem uma composição estruturada como, por exemplo, um quadro,
um bailado, um espetáculo teatral, um desfile militar e demais sistemas de signos relativos a comportamentos
(SEGRE, 1989, p.153-172).
33
expressão lingüística, pois um plano de conteúdo precisa ser veiculado por um plano de
expressão, que pode ser de diferentes naturezas: verbal, gestual, pictórico, etc” (FIORIN,
1996, p.31, In: CAMARGO, 2004).
Observamos então que, para debater questões ligadas à ilustração, a apropriação de
conceitos lingüísticos é autêntica e pode ser bem-sucedida, já que a ilustração se caracteriza
justamente por ser uma imagem que acompanha um texto. No caso exclusivo deste estudo, o
uso de um referencial teórico de origem lingüística pode, inclusive, facilitar a análise das
relações entre texto e ilustração. Levando-se em conta as divergências entre as linguagens
verbal e visual. Por isso, ao discutir as categorias a seguir, Luís Camargo (2004) menciona
várias correspondências que elas mantêm com as propostas de Jakobson, sem, no entanto,
estabelecer uma subordinação rígida entre as funções da imagem e as da linguagem.
Pode-se perceber que a ilustração é um dos vários subcódigos do código visual,
compartilhando funções com outras linguagens visuais. Assim, as funções da ilustração, aqui
discutidas, serão exemplificadas indiferentemente a partir de qualquer um dos diversos
subcódigos visuais, entre outros a fotografia, a poesia visual, a pintura, mas, principalmente, a
ilustração de livros infantis.
Como veremos a seguir a ilustração pode sugerir onze funções diferentes: função
representativa, função descritiva, função narrativa, função simbólica, função expressiva,
função estética, função lúdica, função conativa, função metalingüística, função fática e função
de pontuação.
Função representativa
A ilustração terá função representativa quando dirigida para o seu referente, ou seja,
quando copia a aparência do ser ao qual se refere, como ocorre na arte figurativa. No caso da
linguagem escrita, a função representativa está presente nas escritas pictográfica e ideográfica.
Na literatura, essa função aparece nos poemas figurativos - ou caligramas - nos quais a
composição gráfica imita o ser ao qual o poema se refere, como, por exemplo, a poesia visual
Jacaré Letrado de Sérgio Cappareli (FIG. 1), o sentido do texto é reforçado por sua
composição gráfica, nela aparece um jacaré que é constituído pelas palavras “jacaré”, um jogo
de significados e significantes, de palavras e ilustração, do ler e do ver.
34
FIGURA 01 – Jacaré Letrado
Fonte: CAPPARELI, 2002, p.33.
A ilustração exerce função representativa especialmente quando tem por assunto
objetos do mundo fenomênico, ou seja, que podem ser apreendidos pelos sentidos,
designadamente, através da visão. Esta função pode ter um modo universal de representação,
como no caso do ícone da caveira que indica veneno, ou pode ser bastante específica, como no
caso da caricatura que, mesmo com poucos traços, retrata uma pessoa determinada.
A representação pode caracterizar o personagem, podendo dar-lhe personalidades,
idades e figurinos diferentes, e localizá-lo em locais e épocas diversos. Personagens
extremamente conhecidos e populares acabam representando arquétipos e transformando-se
também em ícones. Assim, a Alice (de Alice no país das maravilhas de Lewis Carroll), o
Pinóquio ou, a boneca de pano Emília do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, e
o Saci Pererê já foram interpretados visualmente das mais diversas maneiras, que
enriquecem as possibilidades de leitura de suas personalidades (LINS, 2002, p.31).
Função descritiva
A ilustração terá função descritiva quando dirigida para o seu referente, de modo
similar à função representativa, mas irá detalhar o aspecto do ser representado. Deste modo,
fala-se que um determinado ideograma representa um objeto ou um ser humano, enquanto a
fotografia descreve uma pessoa específica. Quando a representação vai detalhando a aparência
35
de um determinado ser, muda-se da função representativa para a função descritiva, em
diferentes graus de descritivismo. Entre a função representativa e a função descritiva não há
propriamente diferença de natureza, mas de grau: a representação tem caráter resumido,
enquanto a descrição tem caráter analítico; uma é concisa, a outra, prolixa.
Os livros didáticos, enciclopédias, dicionários ilustrados e outros tipos de livros
informativos aproveitam repetidamente a fotografia com função descritiva. Em diferentes
casos, o desenho pode prestar-se mais perfeitamente a essa função, como no caso do desenho
de botânica ou arquitetura, que pode ressaltar detalhes pouco evidentes na realidade e que, por
isso, seriam difíceis de ser registrados pela fotografia.
Alguns livros vêm desenvolvendo a função descritiva a níveis tão grandiosos, que há
poucos anos seriam inimagináveis, no livro infantil A música dos instrumentos
(MARCHAND, 1994, p.25), há vários usos dessa função, nele o leitor pode, além de ler,
manipular e transformar suas imagens. Um exemplo é a possibilidade do leitor abrir a
“barriga” de um piano de cauda e dentro do piano perceber toda a sua parte interna (FIG. 02),
um mecanismo com mais de 6.000 peças, além disso, ao lado do piano há uma explicação dos
“antepassados do piano” e do outro lado uma moldura de um quadro, dentro dela está escrito
“Chopin”, nesta moldura o leitor deve colar um “retrato” do pianista, e este se encontra no
final do livro.
A
B
FIGURA 02
a) Piano fechado
b) Piano aberto
Fonte: MARCHARD, 1994, p.25.
36
Em O Menino mais Bonito do Mundo (1994) de Ziraldo, as ilustrações apresentam a
função descritiva de forma progressiva, é como se ao virássemos as páginas a ilustração fosse
abrindo um “zoom”. Desta forma, nas primeiras páginas observamos um sol e na medida em
que vamos prosseguindo na leitura, a paisagem vai se ampliando, ou mudando de foco. Desta
forma o leitor pode observar os detalhes da paisagem que a ilustração apresenta.
Função narrativa
A ilustração terá função narrativa quando dirigida para o seu referente (de modo
semelhante às funções representativa e descritiva), mas quando localizar o ser representado em
devir, através de transformações (no estado do ser representado) ou ações (por ele realizadas).
Do mesmo modo como acontece com a função descritiva, a função narrativa pode apresentar
diferentes graus de narratividade, por exemplo, narrar uma história, uma cena ou uma ação (ou
apenas sugeri-las). Nota-se, assim, que esta função implica a função representativa (ou a
descritiva).
A função narrativa pode dar forma à
linguagem visual até mesmo em gêneros que
freqüentemente não destacam a dimensão
temporal, como a paisagem, a marinha ou a
natureza-morta. Norman Rockwell (18941978) usa essa função para fazer um jogo com
o leitor, em Os Bisbilhoteiros (1948), o pintor
brinca com um passatempo muito comum: o
ato de fofocar, Rockwell utilizou a imagem de
seus vizinhos de Vermont para criar retratos
muito pequenos de pessoas bisbilhoteiras a
espalhar uma história. Na imagem a fofoca é passada para 15 pessoas diferentes até voltar a
primeira, ou seja, aquela que iniciou o boato. No caso a imagem de sua esposa, dando
mordacidade a sua obra (FIG. 03).
FIGURA 03- Os Bisbilhoteiros -Norman Rockwell
Fonte: MARLING, 2005, p.7
37
Em 1976, no Brasil, nasceu o primeiro livro infantil que narra uma história apenas
(ou quase que exclusivamente) com imagens, Ida e volta, de Juarez Machado (1987). Hoje,
circulam atualmente no mercado dezenas de títulos de livros de imagem, isto indica não só
o sucesso do gênero, mas as possibilidades e a importância da função narrativa em livros
para a infância (CAMARGO, 1995, p.87-94). Dentre eles se destaca O Cântico dos
Cânticos (1992) de Angela Lago. Podemos dizer que a autora propõe uma leitura narrativa
fundamentada na multiplicidade das escolhas do leitor e na indeterminação dos
interpretantes a serem produzidos durante o ato da leitura, assim ela consegue produzir uma
obra bastante particular e que enriquece a obra bíblica original.
Em O Caminho do Caracol (1998) de Helena Alexandrino, notamos que este livro
de imagem utiliza a função narrativa de forma bastante lírica. O livro começa com um
menino olhando da janela de seu apartamento e de forma surpreendente, ele inicia uma
viagem a um mundo imaginário.
Outro gênero em que a função narrativa prevalece são nas histórias em quadrinhos:
também denominada de arte seqüencial, que sinalizam ao mesmo tempo para as funções
narrativa e estética.
Função simbólica
A ilustração terá função simbólica quando dirigida para um significado sobreposto ao
seu referente, mesmo que arbitrariamente, como é o caso da balança para representar a justiça.
Através da função simbólica, a ilustração pode ser coberta de significados
convencionais, como é o caso da cruz, que na igreja simboliza o cristianismo, na
matemática o símbolo de adição e no jornal a morte de alguém. Outro exemplo seria do
signo formado pelo cruzamento de duas serpentes entrelaçadas, chamado caduceu que,
conforme o contexto, pode, ser o emblema da medicina e do comércio. E no caso da
mitologia grega esse caduceu representa, entre outras coisas, dualidade e união de opostos.
Em uma releitura feita por Ruth Rocha (2000, p.30), para o livro Odisséia de
Homero, o ilustrador, Eduardo Rocha (2000) mistura a figura de Ulisses com uma águia,
esta traz consigo a simbologia de liberdade, astúcia e fortaleza. Além disso, o ser criado
38
pelo ilustrador foi feito adaptando símbolos gregos, como animais com feições humanas
(FIG.04).
FIGURA 04 -Ilustração de Eduardo Rocha
Fonte: ROCHA, 2000, p.30.
As funções representativa, descritiva, narrativa e simbólica diferem-se, assim, das
modalidades da função referencial proposta por Jakobson.
Função expressiva
A ilustração terá função expressiva quando dirigida para o emissor, ou seja, o
produtor da ilustração, mostrando seus sentimentos e valores, bem como quando lembrar os
sentimentos e valores do ser representado. Deste modo, no caso de imagens humanas ou de
objetos, vegetais ou animais antropomorfizados (como é comum nos desenhos animados e na
ilustração para crianças), atitudes corporais e expressões fisionômicas podem ser identificador
de emoções e sentimentos e, nesse caso, terão função expressiva (Camargo, 2005).
No livro A Garupa e Outros Contos (2002), o conto Bruzundunga da Silva, de Sylvia
Orthof (p.12-20), conta à história de um livro, o Bruzundunga, e em meio a suas aventuras ele
conhece a Bernadina, uma pomba roliça e bonitona (p.15), e eles se apaixonam e vivem um
caso de amor, para representar a cena a ilustradora, Lúcia Brandão, usou inicialmente da
denotação: a representação de uma pomba e a representação das folhas do livro. Porém a
pomba, conotativamente, segura as folhas do livro em seu bico, seus olhos estão fechados e
39
um pequeno coração une o “referido casal” (FIG.5). Notamos que a ilustração perpassa pela
função representativa, pela função simbólica, no elemento “coração”, que simboliza amor, e se
acentua na função expressiva por conotar a emoção de elementos inanimados.
FIGURA 05- Ilustração de Lúcia Brandão
Fonte: ORTHOF, 2002, p.16.
A expressividade da fisionomia e da postura corporal, que é fundamental no desenho
animado e nos quadrinhos, pode ser enfatizada por vários recursos visuais, como o ângulo de
enquadramento, a perspectiva, a presença maior ou menor de cenário, jogo de luz etc.,
elementos da linguagem visual que cooperaram inevitavelmente para a preponderância de uma
ou de outra função (Camargo, 2005).
As deformações, o uso enfático da cor não-referencial e a gestualidade no estilo de
representação, ou seja, os gestos que são induzidos através dos traços, pinceladas, manchas
etc., sinalizando, assim, a ênfase no emissor, são traços peculiares do movimento artístico
justamente denominado como expressionismo. Esta corrente artística procurava desenvolver
formas pictóricas que expressassem os mais íntimos sentimentos, mais do que o mundo
exterior. As imagens expressionistas são intensas, apaixonadas e altamente pessoais, baseadas
40
no conceito da tela do pintor como um veículo para manifestar emoções (PRESS, 1999,
p.504). Até mesmo quando a pintura se aparta da representação, como é o caso, por exemplo,
da pintura apontada como "abstrata", a função expressiva pode permanecer existindo, como
ocorre no expressionismo abstrato. Neste movimento, os artistas utilizavam telas grandes e
aplicavam a tinta com rapidez e força, esse método expressivo de pintar era freqüentemente
considerado mais importante do que o próprio quadro. Seus principais representantes são:
Francis, Pollock, De Kooning (PRESS, 1999 p.505).
A consideração da função expressiva da imagem como reveladora de traços da
personalidade de seu autor tem larga utilização na psicanálise (freudiana) e a psicologia
analítica (junguiana) que interpretam a imagem como representação da dinâmica do
inconsciente. Em uma abordagem reichiana, o psiquiatra José Ângelo Gaiarsa estudou a
pintura como expressão de angústia (e suas relações com a respiração), analisando a obra
de pintores surrealistas como Salvador Dali, René Magritte, Paul Delvaux, entre outros
(Luís Camargo, 2005).
A ilustração que possua ênfase na expressividade pode promulgar sentimentos e
valores pessoais, interpessoais (do autor em relação a outra pessoa), intrapessoais
(inconscientes), do autor em relação a objetos (inclusive a natureza) e valores socioculturais,
ultrapassando, assim, o universo pessoal e o alcance dessa função explicitada na proposta
jakobsoniana. Desse modo, conforme sua abrangência, a função expressiva pode admitir
abordagens psicológicas, sociais antropológicas, entre outras.
Função estética
A ilustração terá função estética quando dirigida para a configuração da mensagem
visual, ou seja, quando ressaltar sua forma visual. Em outras palavras, quando destacar a
estruturação dos elementos visuais que a configuram, como linha, forma, cor, luz, espaço etc.
Essa configuração visual pode ser edificada através de vários níveis de organização: estruturas
lineares, formais, cromáticas. Agenciando repetições, alternâncias, simetrias, contrastes etc.
No caso da arte representativa ou figurativa, a função estética se faz atual na maneira
de representar, no como a imagem representa certo objeto. Mas a função estética não está
sujeito da função representativa, podendo mesmo existir livre dela, como no caso da ilustração
abstrata (FIG.06), em que a imagem agencia linhas, formas e cores, sem referir-se,
41
objetivamente, a um objeto fora dela, configurando, no entanto, repetições, alternâncias,
simetrias e contrastes, em diferentes níveis de estruturação (linha, forma, cor, luz, espaço etc.).
FIGURA 06- Ilustração de Elvira Vigna
Fonte: MURRAY, 1999, p.17.
Isso também ocorre no desenho não-figurativo de crianças bem pequenas, em que
repetições de linhas e formas, estruturas simétricas, contrastes, revelam uma finalidade
estética, ou seja, evidencia ou apresenta traços da função representativa independente de
representar alguma coisa, mesmo que, nesse estágio cognitivo, provavelmente essa intenção
não possa ser verbalizada.
Repetições, alternâncias, contrastes, de linhas, formas, cores, entre outros recursos,
ou seja a estruturação dos elementos visuais, é equivalente às reiterações (fônicas, lexicais e
sintáticas) e as antíteses no caso do código verbal. É importante também advertir que a função
estética não se identifica com a de ornamentação, mesmo que seja capaz de englobá-la ou, em
outras palavras, a função estética engloba o estilo decorativo, mas sua função não se restringe
aos fatos explicitamente decorativos ou ornamentais, especialmente quando ele comporta
repetições, alternâncias e contrastes de motivos visuais.
42
A função poética jakobsoniana corresponde à função estética enfatizada por Luís
Camargo (2005). A prioridade pela palavra estética é porque através do tempo ela permanece
mais agregada às artes visuais do que a palavra poética, circunstância esta, no entanto, que tem
se transformado, nos últimos anos, por força da própria divulgação das categorias
jakobsonianas.
Função Lúdica
A imagem terá função lúdica quando dirigida para o jogo, para o humor, que é de
certa forma uma modalidade do jogo, seja em relação ao emissor, ao referente, à forma da
mensagem visual ou mesmo em relação ao destinatário. Deste modo, a imagem ressaltará o
jogo em relação ao referente quando oferecer situações cômicas; destacará o jogo em relação à
forma da mensagem quando se valer de um estilo caricato; e, em relação ao destinatário,
quando instigar a participação do leitor, por exemplo, configurando-se como jogo.
No caso da literatura infantil, esta função é predominante em De Morte! (LAGO,
1996) em que, o leitor brinca desdobrando algumas páginas, descobrindo novos personagens e
vivenciando diferentes situações, como despir a Morte. Nesse livro, a função lúdica se faz
presente em diferentes níveis: em relação ao referente, pela representação de personagens e
cenas cômicas; em relação à forma da mensagem visual, pelo estilo caricato de representação;
e, em relação ao destinatário, por estimular sua ação para criar novas situações através da
manipulação das ilustrações (FIG.07).
A
B
FIGURA 07-Ilustração de Angela Lago
a) Dobradura fechada
b) Dobradura aberta
Fonte: LAGO,1992.
Provavelmente, a função lúdica é a primeira a despontar no desenho infantil: a
criança no período sensório motor desenha principalmente pelo prazer do gesto, pelo prazer de
43
produzir uma marca, é um jogo de exercício que a criança repete muitas vezes para certificarse de seu domínio sobre aquele movimento. E como a finalidade não é o produto final, ou seja
o desenho, muitas vezes a criança nem olha para o papel, vai além das margens, acrescenta
rabiscos aleatoriamente e desinteressa-se de seu desenho depois de terminado tempo, muitas
vezes não conseguindo reconhecê-lo se ele for colocado entre outros (MOREIRA, 1999, p.28).
Esse procedimento indica que o que está em jogo é o prazer de fazer, a função lúdica,
conseqüentemente. Neste caso, nota-se que a função lúdica está orientada para o emissor, por
meio da atitude lúdica, fazer pelo próprio prazer de fazer.
Alguma coisa parecida acontece em relação à pintura, em movimentos artísticos que
privilegiam o processo (a ação), como no caso da pintura gestual de Hans Hartung (1904) em
sua obra T1956/7 (FIG.08) nela nota-se linhas ásperas e dramáticas de tinta preta pintadas
sobre um fundo branco. Em seu traço formado por feixes de linhas, reunidos num padrão de
cruz há força e energia. A imagem intensa e significativa de Hartung é um modelo da obra
intuitiva e espontânea conhecida como Arte Informal. A característica marcante deste artista é
a ocorrência de que, ao iniciar a obra com seu pincel e a tela vazia, não tinha concepção prévia
do objeto acabado (PRESS, 1999, p.208).
FIGURA 08- T 1956/7-Hans Hartung
Fonte: PRESS, 1999, p.208.
Ao representar personagens e situações cômicas, a função lúdica apresenta traços da
função referencial; ao enfatizar o como representa, a função lúdica apresenta traços da função
poética, por exemplo, no caso do desenho de humor; ao revelar o prazer de fazer do emissor,
44
apresenta traços da função expressiva, como, por exemplo, no caso do desenho infantil e de
certos movimentos artísticos e, finalmente, quando visa provocar a participação do
destinatário, no caso do livro-jogo, apresenta traços da função conativa (Camargo, 2005).
Função conativa
A ilustração terá função conativa quando dirigida para o destinatário, na tentativa de
influenciar seu comportamento, através de procedimentos persuasivos ou normativos. A
modalidade persuasiva está presente na publicidade, na propaganda comercial, social, política,
religiosa e, sob a modalidade normativa, na sinalização do trânsito, em que sinais gráficos
(como linhas e formas geométricas) e ícones que determinam ou proíbem ações.
Em Tópicos Utópicos (BARBOSA, 1998, p.140-142), no artigo intitulado: A imagem
verbalizada de Bárbara Kruger (FIG. 09) a autora analisa uma imagem da referida artista, esta
imagem fez parte de 1 dos 25 outdoors espalhados na cidade de São Paulo e nos campi da
USP no interior. Observamos que Kruger faz uso da função conativa ao empregar a linguagem
da propaganda para denunciar o convencional das imagens estereotipadas e buscar uma
mudança de comportamento das pessoas que olharem para esse outdoor. Através das frases
“Mulheres não devem ficar em silêncio”, “Seu corpo é um campo de batalha” e da imagem de
uma mulher com olhar vazio e um ferro de passar roupas nas mãos, “ela problematiza o
discurso sobre a mulher e da mulher contrapondo-os como contrapõe figura e letra”
(BARBOSA, 1998 p.40).
FIGURA 09- Mulheres não deve ficar em silêncio - Bárbara Kruger
Fonte: BARBOSA, 1998, p.141.
45
Função metalingüística
A ilustração terá função metalingüística quando dirigida para o código, no caso, o
código visual, ou seja, quando o referente da imagem for o código visual ou a ele diretamente
relacionado, como circunstâncias de produção e recepção de mensagens visuais, citação de
ilustrações etc.
No entanto, para Martine Joly, esta é “uma função que a imagem não pode ter, a não
ser muito raramente” (1996, p.58). Porém na própria história da arte há vários casos de
metalinguagem como, por exemplo, o ovo que serve de modelo para um pintor representar um
pássaro voando no quadro Perspicácia (1936), de Magritte. Nela o pintor pinta-se na sua
ocupação de pintor (FIG.10). E, além disso, comunica a idéia do processo mental inerente a
esse ofício artístico: o ovo constitui o motivo, contudo, traduzido pelo artista, a sua
manifestação na tela toma a forma de um pássaro (PAQUET, 1995, p.24).
FIGURA 10- Perspicácia, 1936- René Magritte.
Fonte: PAQUET, 1995, p.24.
M.C.Escher, produziu Desenhando-se (1948), obra bastante presente em livros
didáticos e para-didáticos ilustrando o termo: metalinguagem, nela uma folha de papel está
presa com quatro tachas a uma prancheta (FIG.11). A mão direita está desenhando a manga
duma camisa. Ela não tem ainda aqui o trabalho acabado, mas um pouco mais à direita, uma
mão esquerda que sai de dentro da manga, está já desenhada tão pormenorizadamente, que se
levanta da superfície e, por sua vez, como se fosse uma parte viva do corpo, desenha a manga
donde sai à mão direita (ESCHER, 1989, p.15 e 69).
46
FIGURA 11- Desenhando-se
Fonte: ESCHER, 1989, p. 69.
Na literatura infantil, os livros de imagem A patotinha da lagoa e Toninho no
caminho, ambos de Canini (1990), também enfatizam a função metalingüística, ao brincar
com linguagem visual: o primeiro, com a forma de representar uma lagoa; o segundo, com a
sinalização de trânsito.
Eva Furnari brinca freqüentemente com as convenções da linguagem visual, em
especial dos quadrinhos, desde as Historinhas (histórias em quadrinhos sem palavras)
publicadas na Folhinha de S. Paulo no início da década de 80 até os livros de imagem dos
anos 90, como Por um fio (1992). Uma historinha (esse era o título com que eram publicadas)
exemplifica esse gosto pelo discurso metalingüístico: um menino "conta prosa" para uma
menina que mostra que tudo não passa de "papo furado". A fala do menino é representada por
balões (elemento tradicional da linguagem dos quadrinhos) cada vez maiores e que são
preenchidos com diversos sinais gráficos. Por fim, a menina fura o balão do menino,
concretizando a metáfora "papo furado".
Em Aviãozinho de Papel (2004) de Ricardo Azevedo a função metalingüística está
presente no decorrer do livro. Nele observamos que o enredo do livro conta à história de uma
folha de papel que traz uma mensagem escrita a outra pessoa. Assim, a metalinguagem se faz
47
presente por se tratar de um código verbal e visual, o próprio livro que trata de outro código
verbal e visual, a folha de papel que se torna aviãozinho.
Podemos assinalar ainda o desenho animado Reci, Reci, Reci, de Michaela Pavlátora ,
feito na República Tcheca (1991), vencedor de prêmios. Nele, os personagens estão em um
café, e os diálogos dos personagens recebem uma interpretação ilustrativa, os balões que saem
da boca dos mesmos são animados e, de forma sarcástica e até com um toque de humor, eles
vão sendo delineados pela intenção da personagem, por exemplo, um casal que, na medida
que dialogam os balões formam um quebra cabeça onde quase todas as peças se encaixam,
exceto uma, causando uma briga entre o casal.
Nestes exemplos: uma das historinhas de Eva Furnari, o desenho animado Reci, Reci,
Reci e Aviãozinho de Papel de Ricardo Azevedo apresentam agregações de funções, no caso,
associação das funções metalingüística, lúdica e narrativa, associação essa que não é um caso
separado, pois, como já se disse, a associação de funções corresponde a uma característica
fundamental do código visual.
Função fática
A ilustração terá função fática quando dirigida para o canal, ou seja, o suporte da
imagem13, enfatizando seu papel no discurso visual. Essa função aparece com constância na
poesia concreta, que mescla procedimentos lingüísticos e visuais, valorizando o espaço em
branco da página como produtor de sentidos e a utilização de formas visuais, como no poema
Girassol (FIG.12), Samir Meserani (2002 p.23).
13
Atualmente, encontramos livros de pano, de madeira, de metal e de plástico. Livros infláveis e
impermeáveis para serem lidos na praia, na piscina ou durante o banho. Livros com som, com cheiro, com as
mais variadas texturas e recursos táteis. Livros com aplique, envelopes e bolsos. Livros com origami
(dobraduras de papel), com pop-ups (encaixes e dobraduras de papel formando “esculturas” instantâneas ao
virar de página), livros-jogos, cd-livros e assim por diante (LINS, 2002 p.21).
48
FIGURA 12- Girassol - Samir Meserani
Fonte: CAPARELLI [et. al.], 2002 p.23.
No livro Layla, de Terezinha Alvarenga (1993), a ilustradora Angela Lago conduz o
olhar do leitor para o suporte das ilustrações, através de relevos e reentrâncias produzida por
impressão a seco, ou seja, sem tinta.
Neste sentido de aplicação, ou questionamento, do suporte, são abundantes as
manifestações no campo das artes visuais, por exemplo, no anteriormente citado outdoor
Mulheres não devem ficar em silêncio (FIG.09) de Bárbara Kruger (1992), que problematiza a
estereotipada imagem feminina idealizada pela mídia (Barbosa, 1998, p.140-142). No Fax de
David Hockney (1989), nesta obra o inglês fez um desenho que foi dividido em 16 folhas, e
elas foram enviadas por fax da Califórnia e montadas numa parede da Bienal (SANT’ANNA,
CARVALHO, BITTENCOURT, 1999, p.32-33). Nas conhecidas vacas de fibra de vidro, em
tamanhos naturais, assinadas por artistas locais das mais diversas gerações e linguagens, um
projeto conhecido como Cow Parede. No Brasil o paulistano Rui Amaral, um dos pioneiros
do grafite, na década de 1980, teve sua obra A Vaca Amarela do Bicudo exposta na avenida
Paulista (Revista BRAVO, 2005. p.22-31). Em Desconstruções (2003), o mineiro de São
Domingos do Prata, Marco Paulo Rolla (1967), desenhou nas paredes e sobrepôs cascas de
49
tinta, reorganizando através do suporte, as imagens com colagens (FIG.13) evocando uma
idéia de resgate da própria consciência humana (Museu Chácara Dona Catarina- Praça
Governador Valadares, Cataguases, MG, 19 de Julho de 2003).
FIGURA 13- Desconstruções, 2003-Marco Paulo Rolla
Fonte: Museu - Cataguases, MG, 19 de Julho de 2003.
Os fotógrafos igualmente vêm experimentando as possibilidades semânticas do
suporte e do espaço expositivo, ou museográfico. Assim, por exemplo, a obra Afinidades
Eletivas, de Rosângela Rennó, o objeto é uma redoma de vidro com fotografias sobrepostas de
dois casais, lado a lado, no dia de seus casamentos (FIG.14). À medida que o espectador se
desloca, um jogo de reflexos “separa” os casais oficiais, heterossexuais, e dá origem a algumas
subversões, estabelecendo ora mulher com mulher, ora homem com homem, ora promovendo
uma verdadeira troca de casais. Uma leitura possível é ver aí os temas de transitoriedade do
amor, das várias potencialidades do afeto, às vezes adversas às convenções sociais; e do
voyeurismo, uma vez que a intervenção característica da poética do trabalho se origina de um
ajuste do deslocamento do visitante com seu olhar dirigido e interessado (Revista BRAVO,
out. 2005, p.34).
50
FIGURA 14- Afinidades Eletivas - Rosângela Rennó
Fonte: Revista BRAVO, out. 2005, p.34.
Pontuação
A imagem terá função de pontuação quando dirigida para o texto no qual, ou junto ao
qual, está inserida, marcando com sinais seu princípio, sua conclusão ou suas partes, nele
indicando pausas ou destacando elementos. Na mídia impressa, elementos visuais como a cor,
o tamanho e o tipo de letra reafirmam a identificação das distintas seções de um periódico,
enquanto alguns ícones, sinais gráficos ou formas geométricas apontam o prolongamento ou o
fim das matérias. No campo editorial, capitulares e vinhetas marcam o início ou o fim de
partes ou capítulos de livros.
Desde os manuscritos medievais, os papéis de pontuação exercidos por capitulares
e motivos decorativos já existiam. Emanuel Araújo (1986), esclarece que o miniaturista ou
rubricador desenhava letras maiúsculas e no interior delas usava ornamentos, em geral
floreios, arabescos e volutas, de grande complexidade, também usava motivo decorativo no
51
percorrer do texto, os quais, de fato valiam como rubricas de fim de capítulo ou parágrafo,
como nos papiros egípcios. A cor que predominava era o vermelho para marcar o destaque.
O próprio vocábulo miniatura origina-se do termo hispânico vulgarizado pelo latim minium,
‘vermelhão, cinábrio’. O iluminador ia além do campo da decoração para o da ilustração
propriamente dita, já predizendo a tarefa, a ele indicada de estudo e seleção de ilustrações
apropriadas a determinado texto, própria do trabalho atual do iconógrafo. Nos próprios
conceitos dos termos em latim já se acham subentendidos essas idéias: illuminare,
‘esclarecer, adornar, realçar, enriquecer, fazer sobressair, revelar, mostrar’, illuminatio,
‘ação de esclarecer’ e illuminator, ‘o que esclarece’ (ARAÚJO, 1986, p.482-483; itálicos
do original citado em Camargo, 2005).
A função de pontuação desempenhada pelas capitulares pode ser exemplificada em
Circo Universal (CARVALHO e MOTA, 2000), nesse livro infantil, todos os textos são
iniciados por capitulares não convencionais, cada letra que dá início ao título é representada
por palhaços do circo. No texto que trata das chulas dos palhaços,14o título é: Hoje tem
espetáculo (2000, p.30), nele observamos que a letra H é feita pela posição de dois palhaços
de pé, lado a lado, com uma corda amarrando-os (FIG.15).
FIGURA 15- Circo Universal - Ilustração de Demóstenes Vargas.
Fonte: CARVALHO e MOTA, 2000, p.30.
14
Canção em forma de pergunta e resposta que os palhaços cantam, acompanhados pelas crianças.
52
Em Volta ao mundo em 52 histórias (PHILIP, MISTRY,1998), há no início de cada
página, nos cantos direitos e esquerdos, vinhetas que medem cerca de 1cm, e provavelmente,
por se tratar de vários contos de fadas, as vinhetas possuem algo de mágico, mistério; entre
elas há flores, instrumentos musicais, borboletas, ursos, lâmpadas de djim15e outros. A função
de pontuação, no caso destas vinhetas, se dá devido ao fato de que elas demarcam o conto, ou
seja, por exemplo em Por que o mar tanto chora (1998, p.46-49) há uma pequena imagem de
um beija-flor em todas as páginas que reproduzem o conto (FIG.16). Nos demais contos há
outras vinhetas.
FIGURA 16- Por que o mar tanto chora - Ilustração de Nilesh Mistry
Fonte: PHILIP, 1998, p.46.
Luís Camargo (2004) aponta um importante e significativo exemplo da função de
pontuação, exercido pelas vinhetas, tal exemplo se encontra em Grande sertão: veredas, de
Guimarães Rosa, nas edições da José Olympio. Esta vinheta, chamada de vinheta final, está
depois da última palavra do monólogo de Riobaldo: Travessia, que é um símbolo do infinito,
que como se sabe é o número oito deitado. A combinação entre travessia e infinito é muito
poética, especialmente se retomarmos a primeira palavra do romance - Nonada -, que é a sua
antítese (ROSA, 1976, p.460). Além disso, há um jogo de idéias ao substituir o consagrado
FIM por um símbolo de não-fim, infinito, essa agregação torna-se mais expressiva ainda se
observamos uma afirmação de Guimarães Rosa: “Meus livros são aventuras; para mim, são
15
Espécie de diabo da mitologia árabe.
53
minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no
infinito; o momento não conta” (Camargo, 2004).
Muitas vezes, os elementos de pontuação são convencionais, sinais gráficos, formas
geométricas, motivos vegetais ou florais, sem uma conexão semântica com o texto, ou seja,
sem representar ou sugerir o assunto do texto, esta função pode ser agregada à função fática.
Contudo, resumimos que a ilustração pode desempenhar as seguintes funções: função
representativa, quando copia a aparência do ser ao qual se refere; função descritiva, quando
detalha a aparência do ser representado; função narrativa, quando localiza o ser representado
em mudança, através de transformações ou ações, dando a entender ou especificando uma
história, uma cena ou uma ação; função simbólica, quando assinala para um significado
adicionado ao seu referente e, nesse sentido, secundário; função expressiva, quando sugere
sentimentos e valores do produtor da imagem, assim como quando sugere os sentimentos e
valores do ser representado; função estética, quando dirigida para a forma da mensagem
visual, ou seja, quando ressalta sua configuração visual; função lúdica, quando ressalta o jogo,
o humor, seja se referindo ao assunto, à forma da mensagem, ao destinatário ou ao emissor;
função conativa, quando dirigida para o destinatário, pretendendo influenciar seu
comportamento, através de artifícios persuasivos ou normativos; função metalingüística,
quando o referente da ilustração é o código visual ou a ele diretamente relacionado, como
situações de produção e recepção de imagens visuais, citação de imagens etc.; função fática,
quando dirigida para o canal, ou seja, o suporte da ilustração, ressaltando seu papel no
discurso visual; e, por fim, a função de pontuação, quando dirigida para o texto no qual - ou
junto ao qual - está inserida, sinalizando seu início, seu fim ou suas partes, nele designando
pausas ou destacando elementos.
Deste modo, observa-se que muito mais do que apenas ornar ou elucidar um texto, a
ilustração pode representar, descrever, narrar, simbolizar, expressar, brincar, persuadir,
normatizar, pontuar, além de enfatizar sua própria configuração, chamar atenção para o seu
suporte ou para o código visual. Paralelamente ao que acontece no código verbal, essas
diferentes funções não resultam do privilégio exclusivo de uma determinada função, mas de
diferentes hierarquizações dessas funções.
As exclusividades dos códigos visual e verbal não impedem que eles dividam certos
traços, como indicam a convergência de funções exercidas pela ilustração e pelo texto,
54
convergência essa já apontada ao longo deste capítulo, mas que se torna importante sintetizar:
as funções representativa, descritiva e narrativa são características da função referencial; a
função simbólica pode expor traços das funções referencial e expressiva; a função estética
corresponde à função poética , denominada função estética por Mukarovsky; a função lúdica
pode proporcionar traços das funções poética, referencial, conativa ou expressiva; a função de
pontuação, além de adequar traços da função fática, corresponde a um recurso lingüístico
fundamental, como seu nome indica. Além disso, as funções expressiva, conativa,
metalingüística e fática, por meio de sua homonímia com as funções do código verbal,
sinalizam sua homologia semântica (CAMARGO, 2004).
I.3- A busca por um conceito de livro infantil
Após observarmos as funções das linguagens, percorrermos as etapas da história da
literatura infantil no Brasil e ressalvarmos sua significativa importância neste contexto;
resta-nos, procurar conceituar a literatura e o livro infantil que são os objetos de nossa
reflexão.
Inicialmente temos a idéia de que todas as pessoas já sabem conceituar a literatura
infantil. Mas antes de adentrarmos ao conceito gostaríamos de formular alguns
questionamentos: é correto engessar a literatura em “literatura para crianças”, “literatura
para adultos”, “literatura para idosos”, “literatura para negros” e assim por diante? É
plausível dizer que um livro determina seu público? É coerente afirmar que por possuir o
adjetivo “infantil”, tal literatura é condizente com as necessidades psicolinguísticas da
criança?
Considerando estas indagações observamos que uma pergunta maior se formula:
quem é o leitor de literatura infantil? Para Cademartori (1995, p.82) leitor e texto ligam-se
na medida em que o texto se apresenta como uma organização simbólica com uma função
representativa que se cumpre no leitor. E este leitor é um sujeito permeado de vazios
constitutivos que apenas encontram preenchimento por meio da sua possibilidade
imaginativa.
55
Desta forma percebemos que se faz significativo pensar no leitor da literatura
infantil e buscar mais informações sobre ele, pois é somente através dele que os textos, de
qualquer gênero, ganham sentidos.
Para tal reflexão buscamos, entre outros, a obra do teórico da literatura Antoine
Compagnon (1999, p.142-158). Ele nos aponta possíveis significados sobre o leitor e
conseqüentemente nos leva a importantes reflexões. Inicialmente o autor nos esclarece que
a discussão levantada quer se ligue ao leitor ou ao texto, já é bastante comum ao meio dos
estudos literários. E baseando-se nas idéias de Proust, Compagnon afirma que a leitura se
liga diretamente com a empatia, projeção, identificação do leitor e que o livro controla
muito pouco o seu leitor, pois este ao ler compreende mais a si mesmo do que ao próprio
livro. O autor diz ainda que existe uma liberdade para o leitor “ler” o texto, e a medida
desta liberdade quem determina é o próprio leitor.
Além disso, Compagnon aponta que a estética da recepção contribui para pensarmos
o modo como a obra afeta o leitor. Para essa teoria, o leitor apresenta-se ao texto com suas
normas e valores e esses vão sendo modificados pela experiência da leitura. Ao ler o leitor
reforma e reinterpreta o que já leu no decorrer do texto e de todos os outros textos já lidos
em sua vida, garantindo uma significação totalizante à sua experiência.
Em vista disso, nos remetemos para a significação da experiência, ou seja, para o
sentido que atribuímos a um texto ao lermos, algo que já preexiste à leitura e se faz de
forma empática, pois, o texto instrui e o leitor constrói.
Algo importante a ser também destacado na busca de significações para a literatura
infantil e seu público é o conceito de “leitor implícito” e “autor implícito”, este corresponde
a uma “voz” do autor que tenta controlar o leitor, mas o leitor é livre para seguir ou não esta
“voz” que porta as idéias do autor. Já “leitor implícito” é uma construção textual que
corresponde às instruções do “autor implícito” junto ao texto, isto é, ele é um receptor prédefinido. Mas se difere do “leitor real”, pois enquanto o “leitor implícito” propõe um
modelo para se seguido, o “leitor real” compõe sentidos ao texto ora seguindo o que foi
proposto pelo “autor implícito”, ora completando lacunas, ora buscando outros caminhos
não previstos (COMPAGNON, 1999, p.150-151).
56
Se pensarmos nas idéias acima e relacionarmos com a literatura infantil, poderíamos
supor que o autor implícito16 do livro infantil compõe seu leitor implícito17, que seria a
criança dotada de uma cognição suficiente para entender e interpretar o livro, mas ela não
corresponde ao “leitor real”, e quem dá sentido ao texto não é o “leitor implícito” e sim o
“leitor real”. Logo se entende que o livro inicialmente se dirige à criança, porém esse
“controle” é impraticável, pois nunca se sabe quem irá significar um texto; pode ser uma
criança, um adulto, um idoso e assim por diante.
Outro aspecto se torna relevante abordar: o repertório do leitor. Para Iser (citado em
COMPAGNON, 1999, p.152), este repertório corresponde à bagagem do leitor, isto é ao
conjunto de histórias, conceitos, valores, normas sociais, cultura e tudo mais que o leitor
traz consigo ao ler. Este repertório, no ato da leitura, é reorganizado, revisto e
desfamiliarizado pelo texto.
Entendemos então que, para que isso aconteça o leitor necessita, no mínimo, uma
cognição suficiente capaz de acompanhar o texto e significá-lo. E aí se dá mais uma
importante idéia em relação ao livro infantil; devido às fases de desenvolvimento
psicolingüístico da criança, possivelmente, ela ainda não é capaz de ler e atribuir sentidos a
um texto dito “para adultos”. Mas o adulto pode e consegue atribuir sentidos ao texto tido
como “infantil”. Sendo assim: o adjetivo “infantil” se refere aos livros que adultos e
crianças podem ler. Ao passo que os demais gêneros não podem ser compartilhados por um
público tão vasto.
Desta forma, tendo em vista as idéias expostas, podemos retomar as indagações
feitas acima afirmando que o termo “literatura infantil” é possível de ser usado na medida
em que pensemos que ele pode trazer significados a um variado tipo de público, tanto o
infantil, quanto o adulto. Sendo assim o “livro infantil” não determina seu público, pois este
foge ao conceito de “leitor implícito” e quem o lê é o “leitor real”. Quaisquer textos
literários, inclusive os livros infantis, passam pelo processo de produzir uma comunicação
adicional e não prevista (STIERLE, 1979, p.142) pelo autor. Desta forma os livros infantis
16
O conceito de autor implícito que adotamos nessa pesquisa, diz respeito a uma tese segundo a qual um
autor nunca se retira totalmente de sua obra, pois deixa nela um substituto que a controla em sua ausência,
este substituto é o autor implícito (COMPAGNON, 1999, p.150).
17
O leitor implícito é uma construção textual, percebida como uma imposição pelo leitor real. Por se tratar de
uma construção, ele não é identificável com nenhum leitor real. O leitor implícito propõe um modelo ao leitor
real, define um ponto de vista que permite ao leitor real compor o sentido do texto (COMPAGNON, 1999,
p.151).
57
podem se adequar a qualquer leitor, de qualquer idade desde que esteja disposto a atribuirlhes significados.
A literatura infantil se configura então como um conjunto de manifestações e de
atividade que tem como a base a palavra artística e/ ou a ilustração artística que interessa à
criança, ou a quaisquer outros receptores. O meio de interesse, provocado no receptor, está
no aspecto de liberdade e na aceitação voluntária de elementos que, também, usará
livremente para a construção de sua própria consciência.
Contudo, é plausível dizer que o livro infantil, através de sua linguagem elaborada,
e de seu suporte físico18 é aquele que se ajusta melhor às necessidades psicolingüísticas da
criança, pois ele é o mais adequado a fazê-la conhecer as normas ou a poética advinda do
gênero, pode levá-la ainda a fazer uma relação implícita com outras leituras conhecidas do
contexto histórico-literário e estabelecer comparações e identificações entre ficção e
realidade. Ao passo que em obras que não são “infantis” esses apontamentos não seriam
possíveis devido a formação intelectual e cognitiva da criança.
Jauss pondera que:
(...) obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num
espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis,
traços familiares ou indicações ou indicações implícitas, predispõe seu
público para recebê-la de uma maneira bastante definida. Ela desperta a
lembrança do já lido, enseja logo de início expectativas quanto a “meio e
fim”, conduz o leitor a determinada postura emocional e, com tudo isso,
antecipa um horizonte geral da compreensão vinculado, ao qual se pode,
então – e não antes disso - , colocar a questão acerca da de subjetividade
da interpretação e do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores
(JAUSS, 1994, p.28).
Observamos com desconfiança os conceitos “literatura infantil” e “livro infantil”,
mas com o apoio da estética da recepção, exaltamos a importância do leitor na reelaboração
do significado do texto e destacamos a afetiva participação do mesmo na imputação de
significados durante o momento de leitura. Esta orientação serviu para constatar que os
18
O livro infantil é um produto que possui uma materialidade peculiar. Supomos que ele, em geral, se
diferencia dos outros livros, nas seguintes características: possui um número de páginas reduzido, não segue
um tamanho padrão, possui muitas ilustrações e uma grande ligação com a oralidade, pois ele é também um
objeto para ser lido para outrem. Por ser dirigido ao público infantil, supõe-se que as crianças podem interagir
com o livro como se fosse um brinquedo, por isso, muitas vezes, eles são mais resistentes, tanto no material,
quanto no acabamento.
58
referidos termos podem e devem ser usados, mas com a consciência que o sujeito receptor
não tem idade, ou que todos os leitores, romanticamente, trazem uma criança dentro de si.
Nesse capítulo procuramos apontar a história do livro no Brasil até a década de
1990, as funções da linguagem e da ilustração e os conceitos de livro infantil e leitor. No
próximo capítulo, suscitamos análises relativas à intertextualidade. Pois entendemos que as
linguagens são construídas a partir de outras linguagens, em diálogo. Para ampliarmos a
reflexão escolhemos dois livros infantis. O primeiro: De Morte! (1992) e o segundo: O
Menino mais Bonito do Mundo (1994). Ambos serão interpretados à luz da
intertextualidade.
59
Capítulo II
INTERPRETANDO OS LIVROS INFANTIS À LUZ DA INTERTEXTUALIDADE
60
No presente capítulo procuramos, inicialmente, conceituar teoricamente a
intertextualidade, pois, parafraseando Bakhtin, a língua em sua totalidade, viva e concreta,
tem a propriedade de ser dialógica.
A linguagem verbal e ilustrativa na literatura infantil tem possibilidades tão grandes
de significações que impede o esgotamento do texto em si mesmo. Desta forma os textos e
suas linguagens se invadem e se interpenetram. Fazem do conceito de intertextualidade
algo importante para a compreensão da literatura (PAULINO, 2005, p.20- 21).
Em seguida, examinamos esse dialogismo à luz das ilustrações e narrativas em De
Morte! (1992) e O Menino mais Bonito do Mundo (1994).
Em De Morte! (1992) narra-se uma história de tradição oral. Essa história é sobre
um Velho, um (anti)herói que através de suas artimanhas consegue enganar a Morte e o
Diabo. A escritora e ilustradora desse livro, Angela Lago, traça um explícito diálogo com
as obras do pintor renascentista Dürer, ao reproduzir as imagens do artista e ligá-las (ou
não) com a narrativa.
O Menino mais Bonito do Mundo (1994) escrito por Ziraldo e ilustrado por Apoena
Horta e Sami Mattar é um livro infantil que nos conta a história de um menino chamado
Adão, que acorda de seu sono. Os elementos da natureza sempre se comunicam com ele e
exaltam a sua beleza. O tempo passa e ele se torna homem, mas sente um “vazio”, até que
ao acordar ele ouve a voz de uma mulher. Esse livro, tal qual o primeiro, nos aponta para o
dialogismo com as artes plásticas. Ele traz uma reelaboração da obra de Botticelli. Além
disso, dialoga com o texto bíblico Gênese.
Os presentes livros analisados nos convidam a refletir sobre a alteridade, o desejo, a
carnavalização, o jogo, as artes plásticas, a vida e a morte.
Retomando os assuntos acima estabelecidos, observamos a necessidade de
caracterizar o objeto ‘livro infantil’ como um objeto literário e artístico, pois ele possui um
potencial interpretativo que está na sua materialidade, e esse é um dos objetivos desse
trabalho, estudar como a materialidade do livro infantil pode ser construída de forma a
ampliar seu potencial artístico e literário.
61
II. 1- A intertextualidade nos livros infantis
As produções de livros infantis que são utilizadas nessa pesquisa possuem em
comum o fato de todas trazerem marcas de intertextualidades, apresentarem
entrecruzamentos de vozes, algumas de forma explícitas como em O Menino Mais Bonito
do Mundo (ZIRALDO, 1994), outra de forma mais alusiva como em O Caminho do
Caracol (ALEXANDRINO, 1993). A intertextualidade traz consigo um jogo textual que
trabalha com a memória, com o conhecimento de mundo, com a questão da autoria e
também com as vozes discursivas.
Tais livros infantis que serão interpretados nos tópicos a seguir apresentam,
principalmente a intertextualidade nas suas ilustrações, ou seja, elas se ligam a outras
imagens advindas das artes plásticas. A elaboração de imagens a partir de outras tem suas
raízes no século XV, onde começou a ficar mais evidente este uso de imagens (BARBOSA,
1987, p.2).
Ana Mae Barbosa (1987) classifica esta intertextualidade, ou esta imagem de
segunda geração, em pelo menos três fases: a apropriação, a reelaboração e a citação.
Barbosa comenta que a apropriação se configura quando o artista inclui imagens já
produzidas em sua obra. A reelaboração é explícita, o artista apenas modifica alguns
aspectos da obra original, e por fim, a citação, quando a obra remete a outra.
Inicialmente devemos lembrar que a própria construção de significado, que se dá no
jogo de olhares entre texto e receptor já produz um ato intertextual, pois a idéia de uma
pessoa se forma sobre a influência de inúmeras outras e do contexto-sócio cultural em que
está inserida. Desta forma, por trás da interpretação do leitor de livros infantis não há
somente uma “voz” do seu eu, mas sim uma voz de uma humanidade, e tais vozes
produziram ecos que chegaram até nós. Assim temos a idéia de que é quase impossível se
produzir algo novo, não há textos absolutamente originais.
Logo compreendemos que tanto o autor, ilustrador quanto o leitor possuem, olhares
impregnados de outros olhares e são inevitavelmente influenciados pelo contexto sóciopolítico-cultural. Ou seja, há uma relação existente entre vários textos de diversas naturezas
e contextos, produzindo assim uma intertextualidade (PAULINO & WALTY, 1994, p.30).
62
Ao estudar um romance de Dostoiévsky19, Mikhail Bakhtin caracterizou-o como
moderno e dialógico, um tipo de texto em que diversas vozes da sociedade estão presentes e
se entrecruzam. Destaca, ainda Bakhtin a inter-relação dialogizada e a hibridização (1988,
p.100-110). No caso do livro infantil podemos pensar, apoiados na idéia de Bakhtin, que a
hibridização dialogizada é como um sistema de combinação que busca apresentar a
ilustração ou um texto escrito com a ajuda de outra ilustração ou um texto escrito e, dessa
forma, construir uma imagem viva desta outra linguagem.
Quanto mais ampla e profundamente se aplicar no livro infantil o procedimento da
hibridização, com várias linguagens, e não apenas uma, tanto mais rica se torna a própria
obra que se transforma. Destaca, ainda, Bakhtin, a que a consciência lingüística que ilumina
a recriação estabelece para o estilo recriado uma importância e uma significação novas. A
linguagem intertextualizada aparece com ressonâncias particulares: alguns elementos são
destacados, outros deixados de lado.
O dialogismo bakhtiniano consiste na relação interdiscursiva que se cria em todo o
enunciado. O princípio da intertextualidade, que vem conferir ao caráter dialógico um
sentido mais amplo, já que este conceito define o texto como sendo um mosaico de
citações, absorvidas e transformadas. O processo de se apropriar, por exemplo, em Cânticos
dos Cânticos (LAGO, 1992) do texto bíblico, não é somente o diálogo das forças sociais,
mas é também o diálogo dos tempos; de uma diversidade e de linguagens diversas.
Na década de 60, Júlia Kristeva usou o termo, intertextualidade, para conceituar o
“mosaico de citações” que constitui, transforma e absorve um texto (PAULINO, 2005,
p.21). Para ela, o processo de leitura realiza-se como ato de colher, de tomar, de reconhecer
traços. Ler passa a ser um ato de apropriação. Um livro remete a outros livros, aos quais,
num procedimento de somatória, permite uma nova forma de ser, ao elaborar sua própria
significação.
Ao associarmos a idéia da autora com as intertextualidades presentes no livro
infantil, intuímos que a linguagem ilustrativa que foi intertextualizada aparece como um
diálogo de textos: os desenhos se fazem em relação a um outro, proveniente de um outro
19
Mikhail Bakthin, formalista russo, publicou em seu país, um estudo Problemas da obra de Dostoiévsky, que
foi traduzido no Brasil por Paulo Bezerra em 1981 (SANT’ANNA, 2000, p.9).
63
corpus, de maneira que toda parte intertextualizada está duplamente orientada: para o ato de
evocação de uma outra imagem e para o ato de transformação desta imagem.
Kristeva apresenta o campo da linguagem como espaço que se orienta em três
direções: o autor, o leitor e os textos externos. Embora estabeleça essas três dimensões,
Kristeva aproxima no mesmo sentido horizontal da elaboração textual autor e o leitor; o
eixo vertical é o espaço onde o texto, realiza seu encontro com outros textos, onde o texto
se orienta em direção ao corpus literário, onde se dá o cruzamento das palavras e/ou das
ilustrações (KRISTEVA, 1978, p.120-121).
O autor francês Antoine Compagnon, escreveu um livro denominado O Trabalho da
Citação (1996), neste estudo ele explora uma forma de intertextualidade que se torna
operatória para a análise das intertextualidades presentes nos livros infantis. Inicialmente o
estudioso afirma que o fragmento escolhido de um texto para fazer parte de outro texto
converte-se e deixa de ser fragmento para incorporar ao discurso. Assim podemos tomar
como exemplo o livro infantil “De Morte!” de Angela Lago (1992), em uma das páginas
centrais há na ilustração um quadro de um rinoceronte, ou seja, um fragmento de imagem
retirada das pinturas de Dürer, pintor da renascença, porém, ao ser migrado para as páginas
do livro há uma amplitude deste significante. Desta forma ele deixa de ser um fragmento
para tornar-se um todo significativo. A citação trabalhada pelo autor, como modalidade
específica da intertextualidade, permite pensar o entrelaçamento de textos num outro, as
interpelações que os textos se fazem mutuamente e o posicionamento dos sujeitos
envolvidos no ato da leitura.
As citações encontradas nos livros infantis, muitas vezes, são uma operação de corte
e de transposição; onde se opera uma repetição do já escrito ou ilustrado e uma reinserção
num novo contexto. Para o autor a citação não pode ser entendida como simples fenômeno
de imitação, mas acarreta, inevitavelmente, ao reproduzir-se, uma perturbação do sentido. E
se essa integração poderia funcionar como identificação, o que se verifica é, antes, uma
formatação da identidade.
Além disso, percebemos que toda intertextualidade, no caso a citação na ilustração,
é de certa forma uma metáfora, pois esta apresenta uma idéia sobre o signo de outra idéia
(COMPAGNON, 1996, p.15). Sendo assim em “O Menino mais Bonito do Mundo” de
Ziraldo (1994), há Botticelli sobre os signos de Ziraldo, pois no livro apropria-se de uma
64
imagem de Botticelli, e a usa para uma ilustração de um livro infantil de Ziraldo. Desta
forma sobrecarrega a ilustração de sentidos, sobrepõe ao texto uma nova pontuação, feitas
ao ritmo e ao conhecimento de mundo do receptor.
Em se tratando do receptor, no caso o leitor ideal, é ele que “põe em movimento”
(COMPAGNON, 1996, p.20) o processo de intertextualidade. A identificação da
intertextualidade depende da extensão de leitura que se tenha da obra precedente. Desta
forma observamos que quanto mais leituras o receptor tiver, mais será possível perceber a
presença de uns textos em outros e maior será a compreensão da leitura. A maioria dos
leitores brasileiros, que não estão em contato com arte, teriam condições de identificar uma
citação em uma obra?
As relações intertextuais estão a evidenciar que o livro infantil literário não se
esgota em si mesmo: pluraliza seu espaço; multiplica-se em interfaces; projeta-se em outros
textos. A intertextualidade confirmada na literatura pelos temas retomados, eternizando e
dando nova feição aos mitos e às emoções humanas, comprova que os textos se completam
e se inter-relacionam.
A presente abordagem permite pensar o livro infantil nas relações que ele mantém
com os que o precedem, mas ainda como escrita ou ilustração que se revela reescrita ou
redesenhada. A intertextualidade presente nos livros analisados é voz que dialoga com
outros textos, e tais textos apresentam eco das vozes de seu tempo, da história de um grupo
social, de seus valores, crenças, preconceitos, medos e esperanças.
II. 2-De morte! e de vida: a inovação e o lúdico
Angela Lago20, escritora mineira, muito premiada no Brasil e no exterior, traz
através de seu livro De morte! escrito em 1992 e publicado pela Editora RHJ, uma lúdica e
20
Angela Lago nasceu em Belo Horizonte, no ano de 1945. Morou na Venezuela e na Escócia. Há vinte anos
vem escrevendo e ilustrando seus próprios livros para criança, além de ilustrar também livros para outros
escritores. Expôs seus trabalhos em muitos países e já publicou até na China. Ganhou prêmios na França,
Espanha, Eslováquia, Japão e Brasil. Dentre as principais obras literárias destacamos: Outra Vez – Editora
Miguilim. Prêmio “O Melhor Livro de Imagem”, 1984 pela FNLII e pela APCA; Prêmio de Ilustração Bienal
do Livro, 1986 pela Câmara Brasileira do Livro/ Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Chiquita
Bacana e outras Pequetitas – Editora Lê; O Cântico dos Cânticos – Edições Paulinas. Prêmio “O Melhor
Livro de Imagem”, 1986, pela FNLII e Prêmio The Noma Concours, 1986, Asian Cultural Center for Unesco,
Japão.
65
apaixonada declaração de amor à vida. A autora anuncia na capa do livro que nele debela
um conto meio pagão do folclore cristão. E narra a história de um velho hilário e esperto
que, ao receber, do menino Jesus, como recompensa o direito de fazer três pedidos, acaba
logrando o Diabo e a Morte de uma maneira engraçada e divertida. O Velho, com muita
conversa, consegue convencer a Morte a sentar em sua cama e ali ela fica grudada. Para o
Diabo, ele oferece uma cachaça e manda-o sentar em uma cadeira, mas o Diabo, assim
como a Morte, também fica grudado. Vivendo, ambos, a mercê do “Velho de Morte”.
A história finaliza quando o velho cansado de viver e de tantas estripulias resolve ir
negociar com S. Pedro, a sua entrada no Céu, mas “como o Diabo não queria ver o homem
nem pintado de ouro, São Pedro não teve jeito, senão deixar o velho entrar” (1992, p.26).
Esta é uma obra rara, pois a autora consegue lidar com um tema “sério” como a morte, com
muita ludicidade e humor.
Em um livro intitulado Contos para Enganar a Morte, de Ricardo Azevedo (2005),
o autor finaliza dizendo que segundo um ditado popular, não é preciso se preocupar com a
morte, pois, ela é garantida a todos nós e “ninguém vai ser bobo de querer roubá-la da
gente” (p.62). E acrescenta que o importante é cuidar da vida, que é boa, bela, rica,
preciosa e inesperada, porém muito frágil, “ela, sim, pode ser roubada” (p.62).
Além disso, se buscarmos ditos relacionados à morte advindos da sabedoria popular,
temos: “partiu dessa para melhor, foi para o país dos pés juntos, abotoou o paletó, bateu as
botas, foi ao encontro de Jesus, bateu a caçoleta”, além disso, dentro do ambiente
hospitalar, contexto onde vida e morte estão sempre presentes, se diz que “o paciente não
morre: expira, se perde na mesa, vai a óbito, é paciente com síndrome de JEC (Jesus está
chamando)” (MARANHÃO, 1987, p.11).
Essas são citações folclóricas, eufemismos, metáforas ligadas a viagens usadas para
tratar de um tema que é pouco comum na literatura infantil: a morte. A morte é a única
circunstância que não temos como impedir em nossas vidas, um dia ela ocorrerá fatalmente.
Portanto, não falar sobre o assunto para as crianças, poderá dificultar o seu entendimento
sobre o ciclo da vida.
Rosemberg (1985, p.65-66) também condena a ausência do tema morte na literatura
infantil brasileira, quando afirma ser mais comum encontrá-la na literatura infanto-juvenil e
66
a serviço da trama, aquela que elimina personagens indesejáveis, ou a morte como castigo e
punição.
Porém, a morte necessária, visceral, dramática e angustiante,
praticamente inexiste (...). Eu faço de conta que isto não me interessa e
você faz de conta que isto não lhe interessa. Deste modo, problemas
existenciais fundamentais – como a vida e a morte – não são discutidos
(p.64-65).
Em um Congresso de Leitura no Brasil, Cláudia Carvalho, (1999), aborda o tema: A
Presença da morte na literatura infantil do Brasil, analisando uma contradição, ela
questiona que em uma sociedade onde o acesso à informação está cada vez mais facilitado,
as crianças, desde cedo, já possuem noções do processo de reprodução, sexualidade etc,
mas quando sentem a falta de alguém que morreu, ou questionam sobre a morte, recebem
uma resposta vazia, carregada de falsidades, a justificativa da ausência é conduzida para
uma “viagem longa, para um lugar maravilhoso” (CARVALHO, 1999, p.5), essa postura
acaba sendo um contra-senso.
Trata-se, segundo Azevedo (2005, p.58), de um grave erro considerar a morte como
um assunto inadequado para as crianças, porém o autor deixa claro que falar de morte com
crianças não significa entrar em altas especulações ideológicas, abstratas e metafísicas. Mas
que o assunto seja presente, através de textos, imagens, simbolicamente na vida da criança.
De morte! é um livro que pretende ser revolucionário. Neste trabalho, Angela Lago
quebra um grande número de normas, até mesmo o da leitura, e seduz o leitor a descobrir
novas configurações de leitura. Por meio dessa brincadeira a autora/ilustradora sobrepõe à
narrativa principal, histórias paralelas, citações antropofágicas e outros jogos que
subvertem desde ilustrações tradicionais, como o Diabo e a Morte, até a narrativa
tradicional, ao unir as linguagens escrita e ilustrativa.
Tal subversão, tão enfatizada por André Melo Mendes (2007), já está presente no
título De morte! acompanhado da explanação: “Um conto meio pagão do folclore cristão
recontado por Angela Lago e com uma leve mãozinha de Albrecht Dürer”. A primeira letra
em De morte! não é da mesma família do restante do texto: é um tipo de letra bastarda, mas
que não possui conotações negativas; ao mesmo tempo, é mais delicada e forma com a
frase um sentido. Nesse caso, tem-se a idéia de que não trata de letras capitulares, pois estas
67
são mais empregadas somente no início de um capítulo, às vezes no início da frase, mas
continuamente correspondendo a um padrão, o que não é o caso (FIG.17).
A artista ousa também promover uma influência mútua, literal entre o texto
impresso e o gráfico, na capa há um pássaro segurando um lápis pelo bico e ele “desenha” o
título, a mãozinha da letra A segura o T de Albrecht Dürer, um ratinho usa a tesoura para
cortar um sinal de pontuação e formar uma exclamação. Essa hibridação de linguagens
apresenta abundantes probabilidades de leitura.
FIGURA 17-Ilustração de Angela Lago
Fonte: LAGO, 1992.
Além disso, a capa nos apresenta dois importantes personagens: a Morte e o Diabo,
esse parece que está saindo correndo da capa, porém deixou meio desequilibrada a letra
“R” do nome de “Dürer”, além de colocar a língua para fora. A morte está bem perto da
palavra “Morte”.
Quanto ao texto presente na capa poderemos dizer que há uma indução à dúvida, a
autora não aponta com clareza, se o título é apenas De morte! ou se é De morte!Um conto
68
meio pagão do folclore cristão recontado por Angela Lago e com uma leve mãozinha de
Dürer. Logo, pressupõe-se que o leitor pode ser estimulado a escolher o título do livro.
Há também um paradoxo lúdico em dizer que o conto é meio pagão do folclore
cristão. O conto remete-se à tradição oral, e nele há elementos cristãos como São Pedro, o
Menino Jesus. E de meio pagão temos a Morte personificada, o próprio Diabo e talvez o
Velho com suas peculiares características, que ninguém sabe se foi ou não batizado.
Tem-se também um cruzamento de temporalidades distantes ao mencionar que o
texto foi recontado por Angela Lago em 1996, mas obteve uma ajuda de Dürer que viveu o
auge da sua pintura no final da Idade Média (1515), com seu estilo heterogêneo, uma
mistura de estilo gótico, renascentista e barroco. Além disso, a “mão”, em sentido
denotativo representa um motivo que Dürer desenhou com muita freqüência e que tinha
muita importância para o artista. E em sentido conotativo, na linguagem popular, diz-se que
ele deu uma ajuda à escritora e ilustradora. Há nesse jogo irônico uma espécie de
hibridação entre a vida e a morte, a arte do passado e a arte do presente, entre o sagrado e o
profano, o cristão e o pagão e entre a palavra e a ilustração.
A artista diagrama o livro sem se preocupar com as normas tradicionais, as páginas
do presente livro analisado não são numeradas, a formatação do texto impresso varia
durante a narrativa: em algumas páginas, o texto está à esquerda, em outras, à direita, ou
então, justificado (ao centro) e o texto acompanha a imagem que penetra no próprio texto.
Após a capa, temos na próxima folha novamente a figura do diabo, igual à da capa,
na mesma posição, mas agora ele está sozinho, é o protagonista da cena. Em O Novo
Dicionário Eletrônico Aurélio, Século XXI o Diabo é descrito como o chefe dos demônios,
geralmente representado, na tradição popular, por um ser meio homem, meio cabra, de
orelhas pontudas, chifres, asas, braços, e com a ponta da cauda e as patas bifurcadas. Já
Cirlot (1984, p. 207) caracteriza o Diabo como um ser com cabeça e patas de bode, seios e
braços de mulher, um ser relacionado ao instintivo, ao desejo em todas as formas
passionais, às artes mágicas, à desordem, à perversão, em outro livro de símbolos
(TRESIDDER 2003, p.112-113), o “dito-cujo” é distinguido por ser o adversário da
bondade, aquele que personifica a escuridão, é a tentação, o mal, a fraude, sobretudo no
contexto moral das grandes religiões monoteístas. O Diabo apresentado no livro de Angela
69
Lago, ao contrário de transmitir medo ou algum tipo de erotismo, é uma composição de
bobo da corte com pé e rabo de boi, contrariando a tradição do pé de cabra e do rabo afilado
na ponta, em forma de seta. Ele possui poucas marcas de perversidade, algumas delas
podem ser encontradas na sua expressão mal-humorada e nos ratos que brotam dele.
O livro é dedicado a uma pessoa chamada Fernandinha, a santinha da família. Tal
dedicatória é colocada no canto esquerdo da folha e sobre as palavras está sentado um
simpático anjinho que sorri brejeiramente para o leitor, esse anjinho, reaparecerá mais
algumas vezes no decorrer do livro, sendo um personagem plano, porém bastante
significativo, pois é ele que se senta sobre a palavra Fim, ao final do livro (FIG.18).
A
B
FIGURA 18-Ilustração de Angela Lago
a) Início do livro
b) Final do livro
Fonte: LAGO,1992.
Após, temos um interessante e engraçado jogo de dobrar e desdobrar a página.
Novamente tem-se a presença da morte, com sua capa, sua foice e um sorriso bem grande.
Ao desdobrar uma parte da página, uma surpresa acontece, a morte abre sua capa, se mostra
nuazinha ao leitor (FIG. 07). Uma caveira com ossos longos, ao estilo El Greco, porém
feminina e elegante.
70
As ilustrações deste livro são meio ocultas, escuras, um pouco confusas21,
complexas não simplesmente na sua composição física, mas também com relação à retórica
que possuem, na relação com as outras imagens e ainda nas relações que formam com o
texto impresso, demandando dos leitores, um ir além de uma simples leitura (MELO, 2007,
p.39). Nota-se que a Morte é caracterizada com seu manto negro, ossos e foice, porém, ela
não transmite medo, mas sim, muito mais compaixão. Suas pernas de mulher entram em
embate com a representação tradicional e acarretam uma judiciosa feminilidade e, por
proximidade, uma humanidade .
Em meio a essa dobradura, há uma mensagem: “Fique cheio de piolho quem esse
livro roubar. E com remela no olho. O dono vai assinar:..................”. Assim o dono do
livro, também entra na brincadeira de forma a ser também um personagem com poderes
sobrenaturais e lança uma espécie de maldição que lembra as trovas ditas por bruxas nos
contos de tradição oral.
“Um belo dia...”, assim se inicia a história, trazendo a nós, mais uma vez a presença
dos contos orais, tal início de texto é uma forma de transporte a um mundo encantado,
arquetípico e uma forma de nos situarmos num tempo e num espaço imaginário. Esse início
é bastante interessante, pois nos conta que o Menino Jesus desceu do céu para brincar na
terra e trouxe também São Pedro como acompanhante..
Um importante dado que causa um certo estranhamento é o objetivo dessa vinda do
Menino Jesus à Terra. Pois as personalidades admiráveis que vivem no Céu, especialmente
aquelas como o Menino Jesus, deveriam, segundo a crença popular, estar trabalhando pela
nossa salvação em vez de ficarem passeando pela Terra atrás de diversão (MENDES, 2007,
p.35). Mas segundo a Angela Lago, as santidades também têm o direito de se divertir; aliás,
divertir parece ser um atributo divino. Mas, se pensarmos metaforicamente, nos faremos a
seguinte pergunta: porque o Menino Jesus não se diverte no céu, entre eles mesmos? Por
que vêm aqui para a Terra “se misturar” com a “gente de baixo?
Outro acontecimento interessante e desmistificador: quando veio à Terra, o Menino
Jesus não procura o Papa Bento XVI, nem um cardeal, nem um pastor evangélico ou
demais figuras tidas como “santas”(MENDES, 2007,p.35); escolhe um “Zé Ninguém”
21
Para BACHELARD, imagens muito claras tornam-se idéias comuns. Bloqueiam a imaginação, dão a
sensação de que tudo está terminado (2000, p.56).
71
como o velho da história para brincar. Por qual motivo o Filho de Deus se alegra jogando
bola a tarde inteira com o “qualquer” senhor de idade?
As ilustrações, devido a sua disposição nas páginas, lembram, em certas horas, as
cartas enigmáticas, pois a artista mistura as palavras com os desenhos. Inclusive, a própria
letra “O” de “velhinho” e de “trabalho” viram bola de futebol para o velho que as chuta
para cima com seu desproporcional tênis (FIG.19).
FIGURA 19-Ilustração de Angela Lago
Fonte: LAGO, 1992.
O Menino Jesus, que deveria, pela tradição judaico-cristã, se apresentar com roupas
formais e semblante mais sério, destorce essa imagem. Apresenta se sorrindo, mostrando o
símbolo de “paz e amor” com os dedos e uma blusa com as inusitadas iniciais “JC”
(FIG.19). O único personagem mais sério é o São Pedro, que traz consigo seus óculos, um
guarda-chuva, um livro e as chaves do céu. Dando a ele um ar de autoridade, seriedade e
responsabilidade para com o Menino.
72
Compondo o cenário da brincadeira, estão presentes duas árvores, personificadas,
com rostos e braços, ambas acompanham o movimento do velhinho, ora estão postas
olhando para a direita, ora para a esquerda e no terceiro momento em que aparecem, elas
ficam de costas uma para a outra. Suas copas são bastante densas, e se parecem com
nuvens, ao final do livro a autora diz que essas copas, assim como os mantos e roupas são
um empréstimo de Dürer.
A história prossegue, o tempo, que é bem marcado na história, também passa. A
morte então entra pela porta do quarto do velho para levá-lo consigo. E assim como era do
desejo daquele senhor, a morte pode ser vista por ele e também por nós leitores.
O velho consegue enganá-la, grudando-a na sua cama e depois de muito combinar,
ela concede a ele mais vinte anos de vida. Além disso, de uma forma muito inteligente ele
consegue presentes, porcos, galinhas, cachaça dos moribundos por se fazer de médico e
visitar as pessoas.
À medida que se desenvolve a narrativa, vê-se que o velho é um ótimo “jogador”
apesar de aparentemente ingênuo. Ele sabe muito bem como sair ganhando nas situações,
teatraliza, disfarça uma certa fraqueza. O “Coisa Ruim” se descuida e fica preso, é forçado
a negociar. Então o que sugestionava opções bobas revelam-se escolhas inteligentes. No
transcurso do jogo fica explícito que o velho é um excelente jogador.
O idoso apresenta estar numa era antiga, veste uma
túnica análoga às indumentárias dos padres franciscanos, um
hábito comprido, mas ao invés de estar sem calçados, usa
tênis, um par enorme, bem diferente, possivelmente para
apontar uma contradição com a imagem sacra, que estava se
edificando a partir da bata e a longa barba que dá um aspecto
celestial (FIG.20). Sua calvície, sua barba comprida e a
velhice remetem a uma sabedoria, a uma santidade; essas
características se assemelham a São Bento ou a São Pedro
(MENDES, 2007, p.39).
FIGURA 20-Ilustração de Angela Lago
Fonte: LAGO, 1992
73
Do decorrer de todo o livro a artista brinca com várias imagens de pequenos
animais, porém há no livro uma fotografia de um rinoceronte, e ela se apresenta pendurada
na parede da casa do velho. Em sua origem, ela foi pintada por Dürer em 1515 e faz
referência ao fato de que naquele ano o Rei de Portugal, D.Manuel I, mandou vir um
elefante e um rinoceronte numa embarcação até Lisboa. No entanto o barco afundou-se na
travessia, o artista não pode ver o animal, tendo feito sua xilogravura segundo relatos,
portanto o animal apresenta anomalias anatômicas (BERGER, 2004, p.80 e 81). Ao final do
livro, Angela Lago, apresenta novamente a imagem do rinoceronte, porém mais nítido e
diferentemente de Dürer ele equilibra-se “num pé só”, criando assim uma interessante
intertextualidade (FIG 21).
A
B
FIGURA 21
b) Contracapa do livro De Morte!
Fonte A: LAGO,1992.
Fonte B: BERGER, 2004, p.80-81.
a) Desenho feito por Dürer
74
Além do rinoceronte, há animais de porte menor como um gato, um rato, coelho,
pássaro. Na personagem Morte há muitos ratos, que incessantemente vivem saindo do seu
corpo e invadindo o espaço. Ao mesmo tempo em que se apresenta diante de nós ratos e um
esqueleto, temos a morte, resultado da fusão. Essa configuração ilustrativa faz as
interpretações moverem sem parar e sua ancoragem só ocorre após um agrupamento de
articulações, assim o sentido aparece de um mistura de elementos. As conotações estão no
folclore, ao fundir os elementos simbólicos ratos, sujeira, maldade, escuridão e mistério,
temos a morte. Os ratos que as ilustrações nos oferecem não são horrorosos, não
apresentam explicitamente uma ojeriza, ou seja, não evocam doença ou repugnância, signos
que estão ligados à imagem de rato. Entretanto, ao mesmo tempo, seus ratos apresentam
alguma coisa ruim, um legado desses signos mencionados, porque os ratos do livro
alastram e se apoderam do ambiente. Estas criaturas imagéticas vão além da idéia de ratos,
podem, aliás, ser interpretadas como a presença da Morte ou do mal, no lar, pois o Diabo
também gera ratos (MENDES, 2007, p.40-42).
Contudo, temos também os pássaros que caçam os ratos; aqueles podem indicar uma
representação do bem, pois, em alguns momentos aparecem próximos ao Menino Jesus e
têm como característica importante o fato de possuírem asas, em antítese aos ratos que são
rasteiros e habitam lugares ocultos, escondidos. Conseqüentemente, os roedores são mais
achegados ao inferno e os alados ao céu. As aves também podem significar qualidades,
como a astúcia, que, da forma como é colocada por Angela Lago, seria uma particularidade
intrínseca aos que vivem no Céu. Este duelo que ocorre na narrativa e se repete nas
imagens periféricas, mostra que os referidos roedores são acossados, não somente pelos
pássaros, como também pelo gato, este pode ser uma analogia do velhinho, ou a sua
argúcia, pois no decorrer da história, o velho vai “devorando” os “ratos”, ou seja, a Morte e
o Diabo a cada página.
Observando as idéias acima se conclui que os ratos possivelmente representam a
maldade e os pássaros podem estar agregados ao céu. A batalha e a perseguição que os
pássaros fazem aos ratos pode ser entendida como uma analogia ao auxílio Divino dado ao
velhinho, ou representar a própria astúcia do velhinho derrotando a “maldade”. Desta
forma, os pássaros não simbolizariam a bondade em si, mas a astúcia que, por sua vez,
75
corresponderia a um traço da bondade. Desta forma, a astúcia seria um traço de bondade na
personagem do velhinho o que poderia esclarecer a simpatia do Menino Jesus para com o
Velho e o motivo de ter consentido sua entrada ao céu.
Com certeza, as ilustrações feitas por Angela Lago são complexas, mas são leves,
delicadas. A Morte, mesmo sendo caveira, mostra-se frágil, corpo de ossos, manto escuro e
foice. Ela, na maior parte do tempo, deixa transparecer em sua face uma expressão de
“coitada” e está relacionada com a angústia, com a agonia profunda. Ao criar uma
personagem com o “potencial” de ser lograda até por um simples velhinho, a artista
subverte um pouco a imagem aterrorizante que esse signo traz em sua tradição. Além disso,
tudo na personagem Morte é reforçado a sua feminização, pois ela possui canelas grossas e
um ar de fragilidade, principalmente porque necessitou pedir auxílio ao Diabo (MELO,
2007, p.39-40).
Angela Lago, ao fazer um desenho representativo da Morte, misturando, à imagem
tradicional, ratos, cigarros, partes de mulher e expressões humanas, estende o campo
original de interpretantes admissíveis que essa ilustração tinha potencialmente. Se, por um
lado, a figura da Morte que a autora arquiteta funde elementos tradicionais como manto
negro, ossos e foice, combinação que ressalta as características “negativas” desses ícones,
ao sintetizar, nessa composição, outros signos como o cigarro, os ratos, as pernas de mulher
e a expressividade da face, que altera entre o riso e o sofrimento, pode levar o leitor a um
sobressalto, um certo estranhamento que o levará a repensar o seu conceito de Morte.
A fusão dos signos do cigarro e dos ratos na figura da Morte, apesar de valer para
fixar os interpretantes num “campo negativo” de sentidos, também designa novas direções
de sentido dentro desse campo de interpretações. Ao agregar o ato de fumar com a morte, a
artista aponta a idéia tão disseminada de que o câncer no pulmão e, por metonímia, o
cigarro é mortal, ou o cigarro causa a morte, faz parte da morte. Ou ainda de que a Morte é
uma viciada ou provoca o vício para conseguir pegar seus convidados mais facilmente. Ou
ainda, sugere à Morte um ar bandido, ou rebelde, como nos antigos filmes hollywoodianos.
Também podemos ponderar que o cigarro confere à Morte um certo charme, como fazia
com os artistas de Hollywood do passado. Os ratos, por sua vez, mesmo sendo desenhados
de uma forma “bonitinha”, ao serem misturados com outros signos tradicionais da Morte,
76
têm seus aceitáveis interpretantes negativos mais elevados. A sujeira, as doenças e o nojo
são idéias que passam a ser coligadas à personagem Morte, avigorando a concepção
negativa da figura com novos adjetivos. Ela torna-se mais repugnante e poderosa,
espalhando ratos, ou espalhando-se através dos ratos pela casa.
A fusão do cigarro e dos ratos tornou a imagem da Morte mais rica, e a fusão na
imagem da Morte de pernas de mulher e expressão humana induz a uma alteração
significativa da direção interpretativa, causando um estranhamento que aumenta, de forma
acentuada, as possibilidades interpretativas da figura. Em vez de nos causar medo, terror,
ela nos sugere muito mais dó. Suas pernas de mulher entram em oposição com a
representação tradicional, ossos, e acarretam uma certa feminilidade; por proximidade,
acomodam uma humanidade à figura. A fisionomia do semblante da Morte reforça essa
outra direção de sentidos, pois não é corriqueiro vermos um semblante de felicidade
inocente na fisionomia da morte. Também não esperamos ver na cara da morte uma
expressão de sofrimento, comumente reservada às suas vítimas.
Após o episódio de enganar a Morte, o Velho recebe a visita do Diabo, que não
recusou a cachaça que lhe foi oferecida, sentou-se na cadeira e acabou grudado. No
momento em que o velhinho começa a lográ-lo, os pássaros se põem a comer os ratos que
estão no corpo do Diabo, reafirmando a opinião de que os ratos representariam, de forma
simbolizada, sua essência. Ainda com relação à caracterização do Diabo, é interessante
ressaltarmos que ele usa um chapéu de bobo da corte e fica sempre de língua para fora,
mostrando com clareza o seu estilo teatralizado, cômico e caricato (FIG. 17).
O Velho, como todo bom jogador, se faz de bobo, mas tem sempre uma forma de
“se dar bem” nas situações adversas. O mesmo, graças a sua astúcia, arranja uma forma de
entrar em qualquer jogo, o da bondade e o da maldade, e esta capacidade dúbia que os
personagens possuem, é uma das principais marcas do texto, pois no decorrer da narrativa
observa-se que o Velho é bondoso ao brincar com o Menino Jesus, maldoso ao atormentar a
Morte e o Diabo, a Morte e o Diabo são maldosos, mas também são pobres infelizes,
perseguidores e perseguidos, o rato é rato e é Morte.
Além disso, quebram-se também alguns estereótipos maléficos da figura da Morte e
do Diabo, pois Angela Lago os apresenta como seres humanizados que são passíveis de
77
serem tapeados e ainda faz com que suspeitemos de que estão simplesmente trabalhando,
isto é, cumprindo um dever. Ambos, Morte e Diabo, foram facilmente “driblados” por um
senhor idoso, um simples mortal, que é mais esperto do que a morte e o diabo que são seres
imortais.
Esse conto pagão denominado: De Morte! traz aos leitores claramente uma
“brasilidade” muito interessante. Observa-se que o herói, ou melhor, o anti-herói22 dessa
epopéia, escolhido pelo Menino Jesus, gosta de futebol, cachaça, vida mansa além do
“jeitinho brasileiro” de lidar com os problemas. Além disso, ele não é um bom exemplo de
cristão, mas ainda assim, com seu “jeitinho”, ele consegue negociar com a Morte ganhando
dela mais vinte anos de vida, com o Diabo, ele faz um acordo para não ser recebido no
inferno, e por ser amigo do Menino Jesus, consegue passar por São Pedro e lá ser “feliz
como sempre” (LAGO, 1992).
FIGURA 22-Ilustração de Angela Lago
Fonte: LAGO, 1992..
Apesar do Velhinho não ter em seu
caráter características como a honestidade, a
fraternidade, o altruísmo (o velhinho na verdade
engana o próximo, toma cachaça, tortura), ele é
um personagem muito simpático, mesmo quando
finge de médico e começa a fazer previsões de
vida ou morte para os doentes, se mostra sempre
feliz da vida, sorrindo e levando seus presentes:
porcos, galinhas e cachaça. Essa, em tamanho
desproporcional à dimensão da ilustração, e nela
se bem observar, há imagens de pessoas e uma
caveira dentro (FIG 22). Junto a essa cachaça, o Velho segura também uma ovelha, que já
traz consigo uma simbologia oposta à da cachaça, ela pode ser símbolo cristão de laicidade
22
O Velho, a Morte e o Diabo, personagens desse livro são carnavalizados, pois concentram em si próprios
virtudes, mas também defeitos bastante cômicos. A teoria da carnavalização se encaixa muito bem na
caracterização dos referidos personagens. Essa teoria é uma forma de estudar os textos literários, procurando
os efeitos humorísticos e parodísticos que mostram como a comédia pode revelar traços do inconsciente
social. Os princípios básicos desta teoria estão no livro de Bakhtin – Problemas da Obra de Dostoievski
(1981).
78
e de que os homens precisam de liderança espiritual, pois se desencaminham com
facilidade.
Quando o Velho se cansa e decide morrer, a solução gráfica que a autora encontrou
para indicar esse momento é de uma poesia impressionante: a ilustração mostra o Velho
carregando uma mala grande e antiga, atrás dele uma porta, no seu rosto um sorriso discreto
e acima dele um anjo traz asas para o velhinho, sinalizando que os céus querem sua
presença.
Na cena ao lado aparece a morte sentada em cima da copa de uma das árvores
humanizadas, que dão boas risadas pela situação. Assim como nas histórias em quadrinhos,
há um balão de pensamento na cabeça da Morte: “Eta velho de morte!”, ela diz. Fazendo
uma ironia com seu próprio personagem. E assim como na capa o Diabo aparece saindo
pelo lado direito da página. Após, devido o fato da autora representar o espaço físico de
uma forma não convencional, cabe ao leitor “abrir” a porta do céu para o velhinho,
desdobrando a página.
André Mendes (2007, p.44), ao analisar o livro enfoca com relevância dos detalhes
e aponta que as ilustrações ambíguas de Angela Lago, exigem que entremos na brincadeira
da interpretação do texto. O autor questiona: o que são essas coisas que saem do corpo da
Morte? E o que são essas coisas na capa do Menino Jesus? O que querem dizer essas
canelas grossas da Morte? E o rinoceronte na parede? Aonde nos conduz esse labirinto de
sentidos? O mesmo autor completa que as ilustrações de Angela Lago são colagens
elaboradas a partir de outras imagens que após serem reformuladas designam uma nova
imagem, têm um outro atributo, o atributo de Angela. Logo, são dela essas novas imagens
criadas, tanto que a artista diz, na capa do livro, que foram feitas a partir de outras imagens.
Desta forma, além de desmistificar a indevida concentração de que o artista “cria do nada”,
a artista mostra uma outra direção, ela nos direciona para Dürer e amplia o campo de
probabilidades interpretativas, além de suscitar no leitor o interesse pela obra de Dürer.
Ao finalizarmos a interpretação do conto percebemos o quanto a autora foi feliz na
sua subversão às regras, no estilo do lúdico, nos imprevistos e na liberdade do jogo. Tudo
envolve a incerteza e os sistemas complexos. Enfim, conclui-se que o livro analisado
apresenta um jogo (inter)textual no qual tanto a linguagem gráfica, quanto a escrita são
79
utilizadas de forma pouco convencionais, que há durante a leitura, a produção de múltiplos
significados ao caos que visivelmente se apresenta. A escritora/ ilustradora não se restringiu
ao desenho, foi além do proclamado na narrativa para indicar novas possibilidades de
leituras visuais e narrativas. Com isso, a obra motiva no leitor um estranhamento que pode
conduzi-lo a buscar outras vicissitudes e ver o mundo de outra maneira.
II.3-O Menino mais bonito do Mundo: jogos de intertextualidades
Ainda na linha de livros infantis que se distinguem por apresentar um traço diferente
a tradição e pela presença da intertextualidade, nos voltamos para O Menino mais Bonito do
Mundo (ZIRALDO23, 1994) onde o autor e dois ilustradores, Apoena Horta Granada
Medina e Sami Mattar, trabalhavam com texto e ilustração de uma maneira complexa e, ao
mesmo tempo, agradável e bela.
A presente narrativa é um livro de desafios. Ao mesmo tempo em que conta uma
história, também instiga o leitor a ler o texto de uma maneira diferente e a perceber as
diversas referências. Inicialmente, podemos pensar em outras obras, como, por exemplo, o
mito de Prometeu e Pandora (BULFINCH, 2003, p.19-21) ou a Origem do Mundo e da
Humanidade, segundo o povo Dessâna, que habita entre os rios Tiquié e Papuri, no
Amazonas (JECUPÉ, 1998, p.63). Esses desafios trazem para a narrativa algo mais, que
prende nossa atenção. Nesse livro, o autor e ilustradores convidam o leitor a agir como um
herói mítico, viajar no texto e decifrar os enigmas, para, no final, ser recompensado.
O livro conta a história de uma noite, uma grande escuridão, e nela havia um menino
que dormia, até que ele acordou, juntamente com a manhã. E esta trouxe o sol, as
montanhas, as árvores, as flores, as águas do mar que diziam sempre ao menino o quanto
ele era bonito. Neste dia ele descobriu muita coisa, e ele achou que tudo era bom. O tempo
passou, o menino tornou-se homem e ainda assim, todo o paraíso que o cercava sempre
23
Ziraldo Alves Pinto nasceu no dia 24 de outubro de 1932 em Caratinga, Minas Gerais. Começou sua carreira nos anos
50 em jornais e revistas de expressão, como Jornal do Brasil, O Cruzeiro, Folha de Minas, etc. Além de pintor é cartazista,
jornalista, teatrólogo, chargista, caricaturista e escritor. Em 1969 Ziraldo publicou o seu primeiro livro infantil, FLICTS.
A partir de 1979 concentrou-se na produção de livros para crianças, e em 1980 lançou O Menino Maluquinho, um dos
maiores fenômenos editoriais no Brasil.
80
repetia o quanto ele era bonito. Porém, houve um dia em que tudo virou tristeza, era
outono, e ele começou a sentir um vazio no peito e foi dormir em silêncio. A manhã
chegou, ele acordou sentindo uma dor debaixo da costela, mas essa dor foi esquecida ao
perceber que na sua frente estava a coisa mais linda que ele já vira, era a mulher, e ela
repetiu a frase que ele sempre escutou e sempre entendeu: “_Como você é bonito, Adão!”
(ZIRALDO, 1994, p.30).
Conforme foi dito acima sobre as relações textuais e ilustrativas, é possível
distinguir alguns processos intertextuais, mas os principais são: o texto bíblico Gênese e as
citações imagéticas do Renascimento, essencialmente com o pintor Sandro Botticelli (14441510). O conjunto dessas referências e citações ajuda a produzir grandes efeitos nas formas
da natureza, na abundância nos detalhes, curvas, uso da perspectiva, dando peso e detalhe a
forma, no uso de luz e sombra, etc. Nota-se que muitas das imagens do livro foram feitas
em óleo sobre tela, e esse era o meio mais valorizado da Renascença, pois permitiu aos
pintores representar texturas e simular formas em três dimensões.
Mas, no entanto, é no final do livro se tem a explícita referência a Botticelli, pois a
mulher que aparece no final, a suposta Eva, é semelhante à Vênus representada pelo pintor
(FIG.23). O quadro de referência é O Nascimento de Vênus (1485), que segundo a
mitologia antiga, ela teria nascido da espuma dos mares. Botticelli a pintou numa concha
que flutua na água. Nesta tela, ela é empurrada em direção à margem por duas divindades
dos ventos, enquanto a Deusa Horas, uma das deusas das estações, tem nas mãos uma peça
de roupa aberta, pronta a envolver Vênus (DEIMLING, 1995, p.51). Na ilustração do livro
não há outros personagens além da mulher, a posição das mãos e dos quadris das duas
imagens, tanto a de Botticelli, quanto a de Sami Mattar, são as mesmas, uma possível
mudança estaria na cor das beldades, a mulher pintada por Botticelli é marmorizada,
branca, adquirindo traços de uma imagem antiga, ao passo que a ilustração de Sami Mattar,
não é tão branca, o que poderia representar um traço de brasilidade na obra, já que o biótipo
brasileiro apresenta-se mais mestiço.
81
A
B
FIGURA 23
a)Última ilustração do livro
b)Pintura renascentista de Botticelli
Fonte A: ZIRALDO, 1994, p.30.
Fonte B: DEIMLING, 1995, p.51.
Outra diferença está no sustentáculo, apesar de ambas imagens reproduzirem o mar,
árvores e ilha, de forma semelhante, Vênus é retratada sobre uma concha auspiciosa,
erótica, lunar, simbolismo da fecundidade baseado em sua associação com a vulva. Porém
no livro infantil, Eva é retratada sobre um “altar” de flores coloridas, invocando a beleza
feminina, a brevidade da vida e a alegria do paraíso. As flores são essencialmente símbolos
concisos da natureza em seu auge, condensando num breve período de tempo o ciclo de
nascimento, vida, morte e renascimento (TRESIDDER, 1994, p.147).
Assim vemos que cada elemento tem uma contribuição a dar para a urdidura do
conto. A ilustração em O Menino mais Bonito do Mundo é um brinquedo atraente que deve
ser contemplado, tem de ser desvendado; o livro é, em si, um desafio: qual o sentido, quem
está sendo citado? Vemos o espaço de forma diferente; revemos a perspectiva, o detalhe,
contemplamos de longe a mesma paisagem e também por outro ângulo.
A capa do presente livro estudado inicia-se com o nome do autor: Ziraldo, escrito de
branco, sobre um fundo azul (FIG.21, A). De maneira incomum, após o nome do autor, há
uma imagem de um olho grande, o que pode nos remeter à lembrança dos grandes objetos
de Magritte, especialmente a obra O Espelho Falso (PAQUET, 1935, p.11), nela há
também um grande olho que reflete o céu, onde o próprio pintor faz um jogo entre o que
82
está dentro e o que está fora (FIG.21, b). No caso da pintura de Magritte, assim como na
capa do livro, o olho humano foi hiperdimensionado, e pode ao mesmo tempo proporcionar
uma visão do que está por fora e por dentro, metaforicamente, na alma do homem. Na
história da arte, temos também um exemplo de Escher, em Olho (ESCHER, 1946, p.54), o
artista desenhou fotograficamente um olho e no fundo da pupila uma caveira (FIG 24, c),
contrastando com o olho do livro, pois enquanto naquele representa-se a morte, neste, o sol,
representa a vida ou o renascimento, a luz.
A
FIGURA 24
B
a) Capa do livro
b) Pintura de Magritte
Fonte A: ZIRALDO, 1994.
Fonte B: PAQUET, 1995, p.11.
Fonte C: ESCHER, 2002, p.54.
C
c)Desenho de M.C.Escher
83
Assim o olho da capa é onipresente, e dentro do mesmo, após lermos o livro,
confirmamos a idéia de “luz”, de vigília24, de belo, de verdade e de bom.
No Evangelho Segundo S. Mateus há passagens que dialogam com à idéia de luz
relacionada a religiosidade:
Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade
situada sobre uma montanha nem se acende uma luz para colocá-la
debaixo do alqueire, mas sim para colocá-la sobre o candeeiro, a fim de
que brilhe a todos os que estão em casa. Assim, brilhe vossa luz diante
dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai
que está nos céus (MATEUS, 5, 14-16).
E ainda:
O olho é a luz do corpo. Se teu olho é são, todo o teu corpo será
iluminado. Se teu olho estiver em mau estado, todo o teu corpo estará nas
trevas. Se a luz que está em ti são trevas, quão espessas deverão ser as
trevas (MATEUS, 6, 22-23).
Interessante observar também que o presente olho não apresenta suas partes
fisiológicas como a coróide e retina, nele há apenas, como foi descrito, o grande sol,
visualmente um símbolo da cristandade, Deus, o Pai. E o próprio sol, segundo o livro de
símbolos, em geral é adorado como o Deus supremo ou como uma manifestação de sua
capacidade de tudo ver (TRESIDDER, 2003, p.318 e 319).
Após a referida ilustração da capa, está o título, em cujas letras há um jogo de cores,
um degradê, que vai do amarelo ao vermelho.
A narrativa traz como de costume: o título, autor, ilustradores, dedicatória e a
editora: Melhoramentos. Estas referidas informações seguem a forma editorial tradicional.
Porém, a página 3 inicia-se com uma subversão, ela é toda preta, há nela uma ausência total
de cor. Essa característica só é entendida quando se lê o texto, que é escrito de branco sobre
o fundo preto. Aqui se entende que essa escuridão representa a noite e também o ponto de
vista do protagonista, ou seja, é como se ele estivesse de olhos fechados, portanto há
escuridão. Neste sentido nota-se que o leitor pode vir a enxergar pelos olhos do
personagem25, ou que o próprio leitor pode se tornar personagem.
24
O conceito de vigília aqui se baseia no artigo de Motta Pessanha, neste texto o autor aponta para a vigília
como um logos, diferentemente do sono que entorpece e oferece sonhos (PESSANHA,1992).
25
No decorrer do livro observa-se que somente o receptor é quem poderá responder como é fisicamente o
menino/ homem, protagonista do texto, pois certamente a personagem será construída por meio das intenções
lançadas pela voz da natureza.
84
Ao virarmos a página, acontece algo muito significativo, ocupando toda a extensão
das folhas quatro e cinco, há em oposição à página anterior, uma claridade excessiva, um
sol imenso, muito vivo e amarelo26, sinalizando que o menino abrira os olhos, que a
escuridão, as trevas deu lugar à luz, ao nascimento. E esse menino que empresta ao leitor
seus olhos, é saudado pelo sol que dizia ao menino o quanto ele é bonito. Já nas seguintes
páginas 6 e 7, o olhar do menino, ou do leitor, direciona-se para uma árvore e ela também
elogia sua beleza.
A partir da 3ª até a 13ª página, o que se vê nas ilustrações são desenhos feitos por
uma criança, tal qual o menino, nota-se uma paisagem única mas que vai, com o virar das
páginas se ampliando, por exemplo: nas páginas 6 e 7 há árvores e um sol, nas páginas 8 e
9 há a mesma árvore, o sol, mas também o mar e pedras , nas páginas 10 e 11, além do que
já foi dito, se vê ondas e muitas flores e assim por diante. É como se déssemos um zoom e,
após, irmos distanciado e abrangendo mais qualidades da paisagem.
A ilustradora Apoena Horta de 9 anos conseguiu produzir desenhos leves,
delicados, coloridos, tais desenhos rompem as bordas criam novas fronteiras, novos limites
não só do ponto de vista poético, artístico, como também literalmente, na imagem gráfica.
Aqui não existem bordas e margens, por todo o livro a paisagem se encarregará de sempre
enfatizar essa falta de limites ou essa extensão do infinito.
A noite, no decorrer do livro será o símbolo da mudança27, e ela vem pintada
novamente pelas mãos de uma criança.
Na escritura é relatado que o menino vivenciou muitas outras noites e todos os
elementos da natureza, a cada dia vivido, dizia ao menino o quanto ele era bonito. Essas
constantes repetições tanto verbais, quanto imagéticas, apresentam-se pelo caráter lúdico e
elaborado, que dialoga personificadamente com o mundo vegetal, animal e mineral, os
quais se comunicam com o herói, saudando-o pela sua beleza.
26
A ilustração desse sol tão caloroso nos remete a idéia de sensorialidade. Pois a presente ilustração pode ser
vista como um interessante exemplo de sinestesia através da ilustração.
27
O fato de usar um fenômeno da natureza, como uma marca de mudança no livro de Ziraldo, já é algo
recorrente na literatura brasileira, por exemplo, em São Bernardo (2001), de Graciliano Ramos (1892-1953) a
marca de algum acontecimento era quando Paulo Honório (protagonista) ouvia um pio de coruja. Em Ana
Terra de Érico Veríssimo (1905-1975), que faz parte da trilogia de O Tempo e o Vento (2003) o fenômeno
natural que marcava as mudanças na vida de Ana era a passagem de um forte vento. Ana Terra costumava
dizer: “sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando”(p.7).
85
Neste ponto da leitura, já se pode perceber uma intertextualidade com o texto
bíblico Gênese28 o que pode enriquecer as possibilidades de leitura da obra original porque
permite ao leitor interpretá-lo fazendo referências externas a ele. Mas, mesmo tendo sido
produzido a partir da narrativa original, O Menino mais Bonito do Mundo foi elaborado
com uma re-leitura subjetiva. Neste sentido, autor e ilustradores transformaram a narrativa
bíblica em textos e ilustrações que compõem um livro com um início, mas com a idéia de
não ter fim. O tema da criação permanece, mas aponta para outra direção que não a da
expulsão do Paraíso, e o Jardim do Éden se transforma num desenho infantil. As duas obras
são ricas em metáforas, mas tratam o tema de formas diferentes. Quem pode vir a ganhar
com essas releituras é o leitor, porque a nova obra vem adicionar sentidos à obra original.
Em meio a leituras possíveis se apresentam duas: uma, na qual o leitor que conhece a
narrativa bíblica formará uma vinculação entre o texto do autor e o original; e outra em que
o leitor, desconhecendo a obra original, se relacionará com o texto sem essa alusão.
O leitor que conhece o texto original poderá apontar interpretantes a partir de um
centro de possibilidades que lhe permitirá contrapor a história original e a versão produzida
por Ziraldo. Na versão original, temos a origem do mundo, a história da criação dos céus e
da terra, também dos seres humanos, Adão e Eva, seres criados e abençoados por Deus,
formando uma só carne e vivendo no Paraíso. Porém não podiam comer do fruto proibido,
mas a serpente seduziu a mulher e a levou a experimentar tal fruto29, além disso Eva
ofereceu o fruto ao seu marido, Adão, que também comeu a maçã. A partir daí os
sofrimentos começaram, sentiram vergonha por estarem nus e foram expulsos do paraíso
por Deus.
28
O Livro de Gênese inicia-se fazendo referência à criação: “Deus disse: “Faça-se a luz!”. E a luz foi feita.
Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. Deus chamou a luz DIA, e as trevas NOITE. Sobreveio
a tarde e depois a manhã: foi o primeiro dia”(GÊNESE, 1,3).
29
Faz-se curioso pensarmos que no livro do Gênese, fica claro que a árvore cujo fruto era proibido ao homem
e à mulher também era, na verdade a árvore do conhecimento e ao provar daquele fruto, a mulher conheceu
antes do homem os segredos divinos e não-divinos e só depois de serem duramente repreendidos por Deus é
que, então, a vergonha do sexo e o medo do conhecimento se instalaram. A mulher era, portanto, a que tinha o
conhecimento e inclusive, a que conhecia antes e mais que o homem. Por esse fato é que na história da
iconografia há uma certa misoginia (repulsa a mulheres). E não foi à toa que na Inquisição se condenaram
bruxas, feiticeiras e pecadoras de maneira intensa e freqüente (PAIVA, 2004 p.46-47).
86
O Menino mais Bonito do Mundo de Ziraldo aponta para uma criação a que não
estamos familiarizados. A criação, para o autor, assinala numa direção diferente à
divulgada pelo original. O leitor que não conhece o texto bíblico provavelmente fará outra
leitura do livro. É possível que não se prenda à questão da criação do mundo, mas faça uma
leitura mais geral, discorrendo a história como uma metáfora da tentativa de um encontro
quase mitológico ou ontológico entre dois seres. Por este ponto de vista, no livro de Ziraldo
podemos pensar em personagens em procura de um encontro, uma plenitude.
O livro de Ziraldo, ao propor uma leitura diferente da original, apresenta opções de
outras leituras, inclusive ligações com outras obras e autores, que talvez não fossem
possíveis sem essa liberdade.
O tempo passou, o menino tornou-se um homem, por esse motivo as repetições,
tanto nas falas, quantos nas ilustrações, adquiriram conotações e significados diferentes. Se
inicialmente as imagens foram apresentadas pelo olhar infantil, agora tais desenhos vão se
modificando nas técnicas e na percepção, o olhar que antes era de uma criança, torna-se o
olhar de um adulto. É interessante ressaltar que a paisagem que aparece nas primeiras
páginas é a mesma que aparece nas páginas 16 a 23, o que mudou foi o olhar do
protagonista. A metáfora do crescimento foi usada, no livro infantil, de forma bastante
poética, nos desenhos infantis as cores são esbatidas e a paisagem não possui fundo, após
amadurecer o desenho, nota-se uma elaboração no uso das cores, no jogo de luz e sombra,
na perspectiva.
Desta forma nota-se que em O Menino mais Bonito do Mundo, foi utilizado um
gesto dessacralizador de forma lúdica, característico da poética de Ziraldo. Preocupado em
criar novas formas de leitura, de utilização do espaço do livro, ele e os ilustradores,
desenvolveram um artifício para dar movimento a uma figura estática. A paisagem
modifica-se de uma página para a outra, assim como os movimentos da natureza. É uma
criação gráfica admirável. O livro monta as figuras de uma forma diferente no espaço, quer
que o leitor pegue o livro, olhe de outro jeito, interaja.
O emprego das linguagens visuais e ilustrativas aumenta o potencial de
combinações possíveis entre os signos, cunhando uma polifonia, muito diferente da
linearidade de leitura a que estamos habituados, marcando muito mais para um sincronismo
de sentidos. Em oposição dos significados fixos, vários interpretantes entram em confronto,
87
estimulando o leitor a lidar com várias vozes ao mesmo tempo, consentindo que ele deixe
falar sua voz ou a voz que melhor lhe agradar. Essas ilustrações estimulam, sensações e o
pensar múltiplo e, dessa forma, possibilitam ao leitor alterar sua sensibilidade.
Nas páginas 24 e 25 observa-se uma diferença, a paisagem apresenta cores ainda
não usadas anteriormente. Nota-se uma certa penumbra, o dia está mais frio, o sol já se
pondo, há sombras. Assim como no período literário denominado Romantismo, o cenário é
cúmplice dos sentimentos do personagem. Pelo texto verbal, o homem está tal qual a
natureza, os dois estão tristes. O protagonista que se tornou homem começou a sentir que
mesmo com aquela paisagem tão bela, estava faltando alguma coisa.
Como marca de tempo, tanto cronológico quanto psicológico, a obra, nos mostra
que era outono. O fato de fazer referência à estação não é gratuito, pois, assim como as
fases da Lua, as estações podem ser símbolos universais de nascimento, crescimento, morte
e renascimento, os ciclos regulares da natureza e da vida humana (TRESIDDER, 2004,
p.134). Como bem aponta o texto, no outono, “a luz que termina os dias desenha sombra
nas sombras” (p.24), refletindo desta forma o sentimento do homem e da natureza.
Segundo a Bíblia Sagrada em Gênese, o Jardim30 é o cenário perfeito para os
esposos, singelamente descritos em sua nudez natural, que não os envergonhava,
manifestarem a suave harmonia que os torna carne da mesma carne, na irresistível atração
mútua, profundamente arraigada na lei da recíproca complementação pessoal, uma idéia
bem semelhante ao argumento de Aristófanes no Banquete de Platão.
De acordo com o livro de Platão, no passado não éramos como atualmente; éramos
seres andrógenos com todas as partes do corpo duplicadas. Seres muito poderosos que, ao
provocarmos os deuses, fomos cortados em duas metades simétricas e espalhadas pelo
mundo. Ao se encontrarem, a emoção que uma metade sente pela outra metade é tão
enorme, que não querem se separar mais, nem por um pequeno momento (PLATÃO, 1949,
p.28-30).
Um aspecto interessante é que a imagem de Adão não aparece nas ilustrações, se
aparecesse de forma tradicional - homem branco, bonito, bem torneado, com uma folha
30
Na Bíblia Sagrada o Jardim, chamado também de Paraíso e Éden significa estepe, mas evoca a idéia de
delícias.
88
tampando-lhe o sexo - normalmente levaria os sentidos interpretativos numa direção
bastante restrita. Os ilustradores, ao esconder o aspecto físico do homem belo, reconstrói a
retórica desse ícone tornando-a mais rica, e assim podendo estender a produção de sentidos
do leitor e exigir-lhe mais do que uma leitura simples.
Temos novamente nas páginas 26 a 29 a presença da noite, tal qual aquela que
aparece nas páginas 14 e 15, porém aqui a lua e as estrelas são mais delineadas, há uma
certa perfeição formal em relação à outra noite citada. Como já foi dito, a escuridão
noturna, neste livro é sempre uma marca de mudança, pois quando nasce o sol, o homem
acorda sentindo uma estranha dor um pouco abaixo da costela, mas não deu muita
importância a ela, pois ele ouviu uma voz, o som mais lindo que ele já ouvira.
Se pararmos um pouco na descrição textual da cena e retomarmos a idéia da relação
dos dois astros, sol e lua, observamos que segundo a simbologia tradicional, o sol é a
representação da força masculina, enquanto a lua, por sua condição de refletora da luz do
sol e de sua relação com o ritmo da mulher, haveria de designar-lhe o grupo feminino31
(CIRLOT, 1984, p. 536). A noite, por ser misteriosa, por poder simbolizar o tempo das
gestações, das germinações, das conspirações, que vão desabrochar em pleno dia como
manifestação de vida (CHEVALIER & GHEERBRANT,1997, p.640), pode nos dar a idéia
de feminilidade, ainda mais porque contém a lua.
Assim, tanto nas páginas iniciais (p.14 e 15), quanto nas finais (p.26 e 27), ao nos
depararmos com uma imagem que combina esse símbolo da lua e ao virarmos as páginas
temos o sol, podemos pensar numa espécie de casamento (hierogamia). Porém, a
característica desse casamento parece ser uma união destinada a um breve instante de
transição, antes que um dê lugar ao outro, os dois não podem viver no céu ao mesmo
tempo. Será que aqui estaria refletido o mistério da união do homem e da mulher, ou seja, a
resposta para o enigma da extensão que existe numa relação a dois?
Nas páginas 30 e 31 é mostrada uma mulher nua que diz: “ _Como você é bonito,
Adão!” (1994). Nesta parte da narrativa há uma circularidade mítica da forma final, onde
31
Intui-se que como a luz da Lua (símbolo feminino) só é possível através do Sol (símbolo masculino), Eva
só teve vida (luz), através de Adão. É interessante ressaltar que Mulher em hebraico é Ichá, derivado da
palavra Ich, Homem. Logo se vê que assim como a luz da lua deriva da luz do Sol, a mulher deriva do
homem. E no contexto bíblico foi Adão que deu nome a Eva (Gen. 3,20), que em hebraico Hava que significa
vida.
89
aparece a mulher Eva ou Vênus e suas palavras funcionam como um convite à apreciação
também da beleza feminina que se apresenta nua, emprestando ao leitor uma atmosfera
análoga de apreciação do outro. O que nos leva a indagar: Qual seria o objetivo do autor e
ilustrador ao readaptar os modelos bíblicos e ligá-los à mitologia grega?
Pode-se pensar, através do livro, que a essência da figura masculina dominou toda a
natureza, até mesmo a mulher, e também que a maneira de o autor representar o desejo
feminino é fazer com que ela entre na vida dele, no paraíso, no cotidiano da vida dele.
Contribuindo para essa interpretação, aos pés dela surgem flores, normalmente associadas à
paixão e, como fundo, uma imagem que parece ser a representação da eternidade - os
cabelos dela, longos se misturam com as nuvens - compondo uma atmosfera romântica e
mística (FIG 23, a). Quanto a esse aspecto, a ligação simbólica da nuvem com os cabelos é
bastante significativa e complexa, ambos elementos têm relevância religiosa, as nuvens são
muitas vezes associadas à fecundidade das forças da natureza e espiritual (exemplo: elas
são precursoras da chuva), as nuvens também representam a revelação, a presença de Deus.
Jeová guiou os israelitas como uma coluna de nuvem, e Alá fala de uma nuvem no Alcorão
(TRESSIDER, 2003 p.240). Na representação do cabelo temos o exemplo famoso de
Sansão, guerreiro da antiga seita hebréia dos nazireus, cuja longa cabeleira era sinal tanto
de santidade carismática quanto de força física, porém nas mulheres, como é o caso,
cabelos longos e soltos apontam para o estado de virgindade - como na iconografia cristã da
Virgem Maria e das Santas Virgens (TRESSIDER, 2003, p.60). Logo, ao pensarmos na
união desses dois elementos: nuvens e cabelos se obtem uma complexação por síntese, pois
dois elementos muito significativos que se fundem, nos dando uma terceira representação.
O que, supostamente, apresenta o livro é a forma de olhar e representar o mundo
com olhos de criança para poder recriá-lo. Trata-se de uma estratégia antropofágica: mundo
incógnito precisa ser olhado com olhos virgens para que possa haver absorção deste
imaginário e sua transformação em algo novo (BERD, 2003, p.70).
É possível perceber a criação imagética mitopoética presente no livro como uma
tentativa de resgatar elementos, como a natureza, o erotismo, a alteridade que foram
recalcados e considerados como inferiores pela tradição literária. No livro há um resgate de
toda uma sensualidade e erotismo que, em outros livros, vem sendo ora reprimido, ora
exposto de forma imprópria. Pelos desenhos e palavras, vê-se que no livro infantil a relação
90
do homem com a natureza se dá através do olhar e muitas metáforas vão apresentar um
caráter corpóreo que é fonte de erotismo: “O menino abriu os braços a fez “Ahhhhh!” se
espreguiçando. Sentou-se na grama olhou em volta e descobriu - entre ele e o Sol – os
galhos de uma árvore lhe dizia: _Menino como você é bonito!” (p.6).
Do decorrer do livro vários vocábulos e imagens aludem à fecundação, à renovação
da vida, à sensualidade, conferindo ao livro um extraordinário potencial de renascimento.
Assim abundam referências à criação como: “Um sopro tocou seu rosto(...), ele acordou,
abriu os olhos, devagarinho”(p.3). “E as flores, também, estavam todas ali no seu
despertar” (p.20), à fecundação “E ele acordou sentindo mais uma coisa que ainda não tinha
sentido antes: uma dor (muito de leve) um pouco abaixo da costela” (p.28); ou ainda
expressões que remetem ao desejo: “Ele nem teve tempo/ de prestar atenção/ na dor que
sentia/ pois antes mesmo/ de se espreguiçar/ abriu os seus olhos/ e descobriu/ ali, na sua
frente,/ a visão mais bonita/ de toda a sua vida” (p.19).
Em relação às citações acima há uma intertextualidade bastante clara com o texto
bíblico:
Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e
enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu
lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma
mulher, e levou-a para junto do homem. “Eis agora aqui, disse o homem,
o osso e a carne de minha carne; ela se chamará mulher porque foi
tomada do homem” (GÊNESE 2,21-23).
Ziraldo é um autor que adora desafios. O texto bíblico do Gênese tem sido lido,
traduzido e reescrito há várias gerações, e as inúmeras interpretações que dele se
originaram torna cada vez mais difícil uma nova interpretação. Apesar disso, podemos dizer
que Ziraldo, ao propor uma leitura baseada na multiplicidade das escolhas do leitor e na
indeterminação dos interpretantes a serem produzidos durante o ato da leitura, consegue
produzir uma obra bastante particular e que enriquece a obra original.
O livro Gênese, ou o Livro das Origens pertence aos Livros do Antigo Testamento.
Segundo a própria Bíblia, não se trata de um livro que tenha o objetivo de expor as origens
do mundo e da humanidade. Ele visa apresentar um ensinamento religioso que determina as
relações entre o homem e seu Criador. Divide-se em duas partes: a origem propriamente
dita (capítulo 1 a 11), e em seguida a história dos três grandes patriarcas do povo de Deus.
O ensinamento, por mais imaginativo e popular que seja, é denso e profundo, tal
91
ensinamento enfatiza que Deus é o criador do mundo e é distinto do universo. Para Ele o
mundo é bom e a finalidade da criação é a paz em Deus, figurada no repouso do sétimo dia.
Em Gênese, o homem foi criado da terra, mas animado de um sopro de vida e destinou-se a
viver na amizade com Deus, que lhe concedeu o dom da liberdade. Mas a harmonia
primitiva da criatura foi destruída. O homem foi seduzido pelo poder da mentira,
desobedeceu a Deus, na vã esperança de tornar-se igual a Ele (BÍBLIA SAGRADA,
GÊNESE, 1998).
Além dessa interpretação bíblica, o livro Gênese, especificamente a narrativa de
Adão e Eva, pode ser vista como uma história arquetípica de separação e perda. Talvez
possamos entender essa história como um paradigma moral, ou podemos ver nela uma
alegoria da separação original da mãe por ocasião do nascimento, que não é possível
permanecer eternamente no Paraíso. O Éden, dentro da idéia arquetípica, pode ser
relacionado ao ventre materno, a casa protetora dos pais, a infância e adolescência ou a
qualquer lugar ou situação que seja tranqüila e sem desafios e responsabilidades. Numa
analogia com o livro O Menino mais Bonito do Mundo, e a narrativa de Adão e Eva é
significativo lembrar que Adão significa terra, enquanto Eva significa vida. Assim,
podemos intuir que ambas as histórias estão relacionadas ao processo de entrar no mundo
terreno e viver a vida. Há um momento no livro em que o menino (Adão) descobre que os
elogios que os elementos da natureza faziam a ele na verdade eram as suas próprias vozes
(p.12), confirmando assim o significado do seu nome.
Atualmente, alguns católicos e protestantes defendem uma interpretação naturalista
e literal do Gênese: Adão e Eva representam a origem da humanidade. O Velho
Testamento, adverso a qualquer pudicícia, valoriza extremamente a relação entre os sexos e
vê nisso uma imagem do amor de Deus pelo homem (LURKER, 1997, p.113).
A partir dessas interpretações sobre o Gênese, nossa impressão é de que, produzir
algo de novo em relação a essa obra consagrada, é uma tarefa bastante difícil. Mas, ao
manusearmos o livro de Ziraldo, acontece a surpresa: percebe-se que o seu trabalho
reproduz a imagem adulta e infantil da origem do mundo. Um diálogo metalingüístico com
as palavras sagradas onde se observa que o verbo (a palavra) se fez carne (o livro literário)
e habitou entre nós. O livro infantil lida com palavras e ilustrações, materializa o verbo
transformando o livro em matéria fluida através dos textos.
92
Em relação à cor, os desenhos e o que já foi dito sobre a lua, não será insensatez
repensarmos a mulher como sendo a representação da noite e considerar que o predomínio
da cor escura (noite) indica a “região” da natureza relativa a ela. Podemos inferir que a
personagem tem uma presença lunar, noturna, marcada pelos momentos de mudança na
vida de Adão.
No decorrer do livro, a mulher ainda estava dormindo, ou só existia através das
entranhas e dos sentimentos dele, até que alguma coisa trouxe dor a sua alma e fez com que
seu Paraíso ficasse incompleto, mas algo (Deus?) apontou em direção ao amor e a beleza
feminina. No dicionário dos símbolos de Jack Tresidder vê-se que a escuridão é relacionada
ao potencial de vida – o mistério da germinação, e que no pensamento místico, a luz e a
escuridão são aspectos da vida igualmente necessários, a escuridão precede a luz como a
morte precede a ressurreição (2003, p.128). A partir dessa informação, podemos pensar que
a mulher tem uma participação constante em todos os momentos do livro, principalmente
nos mais relevantes: no início, quando ele ainda dormia, no meio quando ele tornou-se
homem e ao final quando ela aparece para ele, mas aqui, Eva apresenta-se em meio à Luz,
que estaria diretamente ligada a ele.
Adão, por sua vez, tem maiores relações com a claridade, apesar de não aparecer
fisicamente. Ao contrário dos tons noturnos de Eva, associados a uma cor feminina, a
claridade, a luz, é um tom mais masculino, metáfora de espírito e da própria divindade, que
simboliza a iluminação interna a presença de um poder cósmico de bondade e verdades
últimas. Por extensão, a luz é símbolo de imortalidade, eternidade, paraíso, o ser puro,
revelação, sabedoria, intelecto e a própria vida. No simbolismo em geral, a luz do sol está
relacionada ao conhecimento espiritual, enquanto a luz refletida pela Lua é associada ao
conhecimento racional. O Gênese tenta fazer uma distinção clara entre a Luz divina e a luz
física, esta mais efêmera e relacionada ao Sol, a Lua, as Estrelas e que foram criadas depois
(TRESIDDER, 2003, p.210).
Nas primeiras páginas, o predomínio da escuridão pode indicar a proximidade da
mulher. E a luz que emana dele, parece entrar nela, como se a possuísse, talvez, até mesmo
mudando sua essência, o que seria representado pela transformação da noite para o dia.
93
No final se encontram, o que explica a beleza das cores, e pode indicar um certo
equilíbrio entre as essências. Ampliamos o campo de visão, reparamos que ela está sob um
altar de flores. As flores, além de indicarem beleza e alegria, que estariam relacionadas ao
simbolismo do estado edênico (paradisíaco), podem também, como nas lendas celtas, ou no
barroco, ser um símbolo de instabilidade, da instabilidade essencial da criatura, voltada a
uma perpétua evolução; em especial, símbolo do caráter fugidio da beleza, da efêmera
duração da vida e dos prazeres (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1997, p. 438).
Neste altar o verde claro está predominando, tem pontos vermelhos e cores-de-rosa
que podem indicar o início de um amor ou o desejo. No equilíbrio das forças, é possível a
paixão, ou ela, à medida que vai se apaixonando, deixa a essência do outro penetrar nela;
ou ainda, ela vai se apaixonando pela beleza do outro e vai se deixando “contaminar” pela
luz do outro.
No próprio título (capa) há uma alternância de cores, as letras se iniciam amarelas, e
caminham para o vermelho (FIG. 24, a). O vermelho, em nossa cultura, é a cor da alma, da
libido e do coração. Símbolo fundamental do princípio de vida, com sua força, seu poder e
seu brilho, o vermelho é o arrebatamento e o ardor da juventude; também é a cor guerreira.
O vermelho se torna perigoso como o instinto de poder, se não é controlado; leva ao
egoísmo, ao ódio, à paixão cega, ao amor infernal (a expulsão do Paraíso?). O desencadear
da vida parte do vermelho e desabrocha no verde (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1997,
p.944-946).
Neste encontro de Adão e Eva, ou do masculino e do feminino, do homem e da
mulher, as duas essências se modificam, se complexizam, renascem e lembram o mistério
da ressurreição associado às bodas do sol e da lua: o renascer do sol, depois das trevas da
noite, evidência cósmica como mito da criação e recriação periódica do universo.
Os livros interpretados nesse capítulo, De Morte! (LAGO, 1992) e O Menino mais
Bonito do Mundo (ZIRALDO, 1994), nos dois casos são uma amostragem da infinita
cadeia de abordagens nesse processo de leitura. Vimos que as apropriações em relação às
artes plásticas foram explícitas, eminentemente intertextuais. Desta forma os livros
serviram de abertura ao desafio da produção de conhecimento. Na verdade, as relações
94
texto escrito e texto ilustrativo, que ambos os livros apresentaram, tratam de dois textos que
se interpenetraram, enriquecendo o jogo de significações da leitura.
II.4-A caracterização do livro infantil como obra literária
O mundo estabelecido pelo literário é convocação que transforma e
converte a fantasia em realidade. A literatura é princípio mágico e
inaugural que se revela em cada personagem, cada palavra e cada sentir.
Mundo em desdobramento do eu para o outro: espaço clandestino que faz
parte de uma transgressão que salva porque propõe caminhos para a
ampliação de uma visão de mundo, por conseguinte itinerários do sonho,
da luta, da fé, da dor-amor, enfim da vida e da alma (CAVALCANTI,
2002, p.17-18).
O grande objetivo desde tópico é refletir sobre o caráter literário do livro infantil, e
seguindo os passos de André Mendes (2007), tomar também o termo “literário” como
artístico.
Inicialmente, observamos que foi Aristóteles em sua Poética (COMPAGNON,
1999, p.30) que levantou a polêmica sobre qual nome deveria ser dado àquela arte que se
apresentava em prosa, versos, diálogos (exatamente os gêneros: épico, lírico e dramático).
Mas o termo “literatura”, tal qual compreendemos, é novo, e só foi datado no início do
século XIX, antes disso era usado para conceituar as inscrições, as escrituras, a erudição e
assim por diante.
Em latim, litteratura vem de littera que significa ‘letra do alfabeto’. O referido
termo foi mudando de acordo com os contextos e as culturas, por exemplo: no século XIV
literato era o indivíduo de sabedoria, ciências e letras, no Renascimento o termo
caracterizava a pessoa como culta (FORTINI, 1989, p.177), na idéia clássica literatura
correspondia a todos os livros que havia na biblioteca, não somente a ficção, mas também
de filosofia, ciências. Na concepção romântica, literatura era tudo o que os cânones
escreviam, excluindo todo o resto (COMPAGNON, 1999, p. 31-33).
O que observamos é que à medida que aparecem novas obras e novas modalidades
ficcionais, aqui destacamos os livros infantis, rearranja-se o conceito de literatura, além de
modificar também o valor das obras. No século XX, o romance, a poesia lírica, o poema em
prosa que antes estavam em baixa, se elevaram, e nesta fase também se coroaram os livros
95
infantis e as histórias em quadrinhos. Na contemporaneidade, vê-se que o conceito de
literatura é muito vasto, vai dos consagrados clássicos até os livros para crianças. E muitas
vezes na busca de elevar o caráter literário de algumas obras, busca-se caracterizá-lo não
pela teoria literária, mas pela sociologia, pela psicologia, pela pedagogia. Desta forma a
conceitualização de uma obra literária se torna extraliterária, ou seja, vai além da literatura.
Além disso, o conceito de “literário” traz em sua definição a idéia de que para ser
realmente “literária” a obra deverá desempenhar algumas funções tais como: a
possibilidade de autoconhecimento, sair do individualismo e atravessar o outro e ser uma
fortaleza contra a barbárie (COMPAGNON, 1999, p.36). E a literatura infantil
desempenhou e desempenha ao longo de seu processo histórico as referidas funções, aqui
destacamos a última citada, pois a literatura infantil muitas vezes se mostra de acordo com
a sociedade, com os ditames sociais, acompanhando o movimento, mas há momentos em
que há um desacordo e ela se torna vanguardista, indo além do movimento social vigente.
Além disso, a literatura infantil caracteriza-se por sua opacidade, é conotativa,
complexa, faz uso do imaginário, da função estética e poética, “extrapola, sem fim prático,
o material lingüístico” (COMPAGNON, 1999, p.40), produz uma pluralidade nas atitudes
comunicativas, “nunca acaba de falar, e não nos dá uma verdade última” ( FORTINI, 1989,
p.192). Produz também uma rede metafórica que se faz presente no texto escrito, na
ilustração, e no entrelugar híbrido da junção das linguagens.
Para os formalistas russos, a propriedade de diferenciar um texto como literário está
em distinguir sua literariedade, e ela se concretiza no estranhamento, no desarranjo das
formas comuns de percepção (COMPAGNON, 1999, p.40-41) e nas relações ‘culturais’ da
escrita /leitura ou de escritor /leitor (FORTINI, 1989, p.182). O que nos leva a pensar que a
literatura infantil na contemporaneidade pode não ser o objeto e sim a relação do objeto
como o indivíduo.
Entretanto, a grande questão aqui é como definir a literalidade do livro infantil.
Algumas soluções já foram apontadas, uma delas foi reconhecer a referida linguagem como
polissêmica, outra é que pode ela trazer ao leitor possibilidades novas de sentido
desestabilizando e reestruturando suas verdades (UMBERTO ECO, In: AGUIAR, 1999,
p.242). Mas, estes apontamentos são válidos não só para a literatura infantil, mas para
outros gêneros também. Logo, o que torna sua literalidade específica para a literatura
96
infantil, é que ela inicialmente se define a partir do seu destinatário, o leitor implícito: a
criança. Desta forma, a multiplicidade de linguagens, verbais e visuais se colocam como
meios de sentido, trabalhando a possibilidade de escolhas segundo a percepção do leitor.
Num outro ponto de vista, o autor André Mendes (2007) extrapola o conceito de
literatura para o livro infantil e o aponta como objeto artístico, para ele, objeto artístico é
aquele que, em contato com um determinado sujeito, é capaz de levá-lo a estranhar o
familiar, retirando-o do seu centro de certeza, do seu equilíbrio cognitivo,
momentaneamente ou não, e a desafiar sua herança cultural. Além disso, André Mendes
(2007, p.22) pondera que a partir da fruição da obra, o sujeito pode ser movido, no mesmo
momento ou a posteriori, a inventar novos conceitos e a rever os antigos, atualizando sua
subjetividade. Deste modo, o referido autor entende que o objeto artístico seria aquele que,
na analogia com um sujeito, acende nele o sentimento estético denominado estranhamento.
Tal qual abordado pelos teóricos acima para definir a literatura.
Nos estudos do autor notamos que os conceitos apontados em relação à arte e objeto
artístico (MENDES, 2007, p. 22) se apartam da visão aguerrida e egoísta da arte como
produto da aspiração e da determinação de um gênio individual, trocando-a por uma idéia
muito mais ponderada e humilde, pois dessa forma, a arte se apresenta como a
conseqüência de uma complexa influência mútua de motivações, determinações e
acidentes, como um experimento dialógico, que coloca cada indivíduo, criador ou público,
numa afinidade fecunda, com várias outras subjetividades e forças construtivas.
Assim, o objeto artístico no caso o livro infantil, corresponderia, deste modo, a uma
virtualidade que careceria ser adicionada, ou seja: ao número limitado de signos escolhidos
pelo artista se adicionaria o signo advindo da subjetividade do leitor, existindo a
probabilidade de novas combinações sígnicas a cada leitura. Ao argumentarmos que o
artístico se determina numa relação entre objeto e sujeito, não é de surpreender que a
apreciação de um objeto artístico se modifique de acordo com uma série de fatores, entre os
quais vale a pena apontar a questão do local, a opinião e o contexto histórico. O local onde
está presente ou onde é conduzido um objeto artístico costuma ter muita relevância,
também como o julgamento que um certo grupo sociocultural tem a respeito desse objeto,
ou até mesmo a propósito do artista que o produziu. O tempo também modifica a
97
interpretação dos leitores, não apenas o tempo de apreciação destinado a uma obra, que é
cada vez menor, como também o tempo histórico, o contexto (MENDES, 2007, p.23).
Deste modo, embora o livro infantil como objeto artístico se dê numa relação, ou
seja, se os leitores quiserem interpretar seus significados, ele é dono de um potencial
interpretativo que está na sua materialidade (MENDES, 2007, p.23). Desta forma, o livro
infantil não se traduz num conceito fechado, numa veracidade imposta por uma
determinada linha de raciocínio. O referido objeto artístico se apresenta para uma
experimentação integral do pensamento e da imaginação, como uma ação viva que se
transforma sempre, que se adequa em função do contexto. O livro infantil oferece uma
fórmula polifônica por meio de suas bifurcações, de suas proposições múltiplas e das
tramas instáveis e transitórias entre suas partes (MENDES, 2007, p.28).
Nesta presente pesquisa foram estudadas obras que, através do processo
interpretativo, se mostraram mais significativas do ponto de vista artístico. Selecionamos,
como suporte, obras de escritores e ilustradores de livros infantis que em seus trabalhos
possuem a riqueza da multiplicidade de linguagens e, sobretudo porque, por meio dessa
multiplicidade, buscam adicionar ao texto imagens que apresentam, através da
intertextualidade, novas probabilidades de leituras, buscando enriquecer o objeto artístico.
Nas obras De Morte! de Angela Lago (1992), O Menino mais Bonito do Mundo (1994),
ilustrado por Sami Mattar e Apoena Horta G. Medina, escrito por Ziraldo, há a
possibilidade para a contribuição externa das artes plásticas, e esta não é somente uma
licença poética presente num objeto artístico, mas uma intervenção conscienciosa,
intencionalmente delineada no sentido de expandir determinações da própria obra.
As ilustrações que esses artistas realizaram não buscaram a “visão tradicional” que
pensa que a ilustração gráfica deve ser, em si mesma, uma narrativa básica que abrevia a
circunstância narrativa do texto ao qual se refere. O tipo de ilustração que os referidos
artistas buscaram desenvolver é aquela criada para ser uma “transcriação” do texto escrito.
O desígnio dessa ilustração produzida é criar, a partir da influência mútua com o texto, um
novo significante cujas qualidades, tanto extensas quanto intensas, serão ampliadas. Essas
obras
também
apresentam
uma
ampliação
de
novos
significados
através
da
intertextualidade com outros artistas e, buscam a concepção de um novo significante, com
98
um novo código e uma nova sintaxe, que irão congregar outros aos seus significados
presumíveis e originais, além da adição híbrida dos significados do texto escrito e do texto
ilustrativo (MELO, 2007, p.29).
As ilustrações criadas por esses artistas podem ser classificadas como
preferencialmente conotativas32 (MELO, 2007, p.29). As ilustrações conotativas se
contrapõem às denotativas, que se distinguem por ser o sentido mais neutro e generalizado,
sendo o primeiro sentido registrado nos dicionários, por direcionar a interpretação do leitor
(CUNHA, 2002, p.24), estes tipos de ilustrações, denotativas, são muito encontradas em
comunicações informativas e científicas, e possuem papéis bem determinados, que é
facilitar a apreensão do texto escrito. A ilustração denotativa também pode ser encontrada
em revistas, livros didáticos e até mesmo em obras literárias, como em Volta ao Mundo em
55 Histórias (NEIL 1998) nele, por exemplo, o ilustrador usa essas imagens denotativas
para explicar alguma característica importante referente ao conto de fadas, no conto Ivan &
o Pássaro de fogo (1998, p.150-153), em sua margem direita o ilustrador colocou a imagem
de um caldeirão, objeto muito usado nas histórias Russas e conforme informa o autor, ele
simboliza a transformação, fertilidade e renascimento. A ilustração denotativa pode
conceber um proveito do ponto de vista estético, porém comumente, não adiciona muito ao
leitor em termos de probabilidades interpretativas33. Porém uma rica ilustração conotativa,
ou seja, aquela que não procura ser a definição fiel do texto escrito, pode conduzir o leitor
real a pensar sobre a leitura, produzindo um diálogo entre o que o texto tem a dizer e o que
a ilustração tem a dizer e, desta forma, designar um outro sentido, o sentido do leitor real. A
ilustração conotativa, além de trabalhar com a possibilidade de diferentes interpretações
promove também para engrandecer essa interpretação (MELO, 2007, p.29).
Os livros selecionados para serem analisados se diferenciam por uma complexidade
que não está somente nos traços dos desenhos, mas por toda as possibilidades e formas
textuais que possuem, e também por um diálogo intertextual com outros artistas e
linguagens, em especial: a obra do pintor belga René Magritte em Aviãozinho de Papel
32
A conotação é sempre subjetiva e emocional. Depende do contexto do emissor e do receptor (CUNHA,
2002, p.24).
33
No caso do livro usado como exemplo Volta ao Mundo em 55 Histórias (NEIL 1998), as imagens
denotativas são de grande enriquecimento para a obra, pois elas trazem informações bastante esclarecedoras
sobre o conto lido.
99
(AZEVEDO, 2004), do pintor europeu Albrecht Dürer em De Morte! (LAGO, 1992), a
obra do pintor europeu renascentista Sandro Botticelli em O Menino mais Bonito do Mundo
(ZIRALDO, 1994) e ao trágico pintor holandês Vincent Van Gogh em O Caminho do
Caracol (ALEXANDRINO, 1998).
Os livros infantis citados utilizam o emprego de vários recursos gráficos e citações a
outros textos para ampliarem as possibilidades de seus trabalhos, e possivelmente não têm a
intenção de eliminar a origem, mas incorporá-la e, assim, motivar uma obra ascendente,
fértil e, quem sabe, mais adjacente ao inatingível real, sem experimentar qualquer
acanhamento por essa “ação de antropofagia” (MELO, 2007, p.31).
As criações poéticas dos livros perpassam pelo tradicional, porém atualizam-no,
revivificam-no através de uma visão contemporânea, num movimento em que a literatura, a
ilustração, finalmente, a arte se nutre de si mesma como matéria prima, revisitando suas
origens jamais inteiramente acabadas. De tal modo como Magritte, os autores e ilustradores
buscam desafiar as fronteira da linguagem e do real através de uma releitura do espaço
gráfico. Por esse caminho, os livros infantis se nutrem de Dürer (em De morte!), de
Magritte (em Aviãozinho de Papel),de Botticelli (em O Menino mais Bonito do Mundo),de
Van Gogh (em O Caminho do Caracol) e de outros como Carlos Drummond de Andrade
(em Aviãozinho de Papel). E também se valem de técnicas diversas como dobraduras,
computações gráficas, telas a óleo. Tais obras não se amedrontam em expor declaradamente
suas influências, suas diásporas, suas intertextualidades com os pintores e autores cânones,
com o folclore brasileiro, com o texto bíblico. Pelo contrário, as obras transformam esses
gestos devoradores, antropofágicos em uma especialidade da sua poética.
Nas referidas obras não se admite a concepção da ilustração como uma tradução
rigorosa do texto escrito. Como já foi dito, aqui a ilustração é pensada como uma
“transcriação” desse texto, isto é, uma ilustração que, a partir do texto escrito e em diálogo
com ele, tem competência de designar um novo significante no qual as características do
texto são expandidas; não somente por meio de um acréscimo de novos significados, mas a
partir de um novo código e uma nova sintaxe, que terão acionado aos seus significados,
outros significados possíveis e originais. Ininterruptamente em investigação de novas
formas de expressão, cultivando técnicas e caminhos diferentes, desde as possibilidades do
100
uso do desenho infantil até a criação de imagens por computador. Intui-se que essas obras
sejam capazes não somente de atualizar a visão de mundo do leitor como também
desautomatizar o seu olhar.
Nesse capítulo analisamos a intertextualidade, ou seja, a condição de apropriação da
“voz” do outro na literatura infantil. Apresentamos também, duas obras de ficção infantil. A
primeira: De Morte! (1992) e a segunda: O Menino mais Bonito do Mundo (1994). Ambas
interpretadas a partir da perspectiva intertextual. Após, caracterizamos o livro infantil como
obra literária, desautomatizada e opaca. No próximo capítulo, refletimos sobre a ilustração
do livro infantil e aludimos a teóricos como Saussure, Pierce e Barthes. Após essa reflexão,
buscamos apontar o caráter híbrido da literatura infantil a partir do livro Aviãozinho de
Papel (1994). Outro livro que buscamos uma interpretação mais aprofundada é O Caminho
do Caracol (1998), nesse a narração é feita somente por ilustrações.
101
Capítulo III
ILUSTRAÇÃO E TEXTO ESCRITO
102
A análise empreendida no capítulo anterior salientou o alto potencial intertextual
implícito ou explícito nas narrativas e ilustrações. No presente capítulo a interpretação dos
livros infantis, ficará enriquecida ao elucidarmos, também, informações relativas aos
estudos de Pierce, Saussure, Barthes no tratamento das ilustrações.
Pela importância dessas questões, optamos analisar dois livros. O primeiro é
Aviãozinho de Papel (1994), livro que narra a trajetória de uma folha de papel que continha
uma mensagem. Após se transformar em um aviãozinho, a folha de papel é lançada, faz
uma viagem até chegar ao seu destino. Uma das principais características abordadas nesse
livro é a hibridação que o texto apresenta e o diálogo das ilustrações com a obra do pintor
surrealista Magritte.
O segundo e último livro analisado é O Caminho do Caracol (1998), esse livro se
difere dos demais por ser um livro feito por ilustrações, ou seja, sua narratividade se dá na
leitura das ilustrações, nele quase não há palavras escritas.
Através das ilustrações temos a história de um menino que certo dia depara-se com
um caracol. Ambos resolvem “viajar”, percorrer um caminho mágico que os leva a uma
concha e nela mora um idoso caramujo. Esse oferta ao menino um vaso com flor. Já em seu
quarto novamente, o menino observa que no vaso de flor continha outros caracóis.
Os temas, na interpretação no presente livro, perpassam pela questão do imaginário,
da vida urbana contemporânea, da poesia, da mágica e principalmente da “viagem”
enquanto uma narrativa metalingüística da própria criação literária.
Com exceção da linguagem denotativa, que assenta, tanto quanto possível, na idéia
de uma unicidade de sentido e de uma independência em relação ao contexto, as linguagens
verbais e ilustrativas tem mais de um significado e recebem da composição em que se
acham inseridas a delimitação do seu valor semântico. Este duplo aspecto é uma condição
do funcionamento da linguagem, enquanto instrumento de comunicação da experiência
humana global, e possibilidade da criação poética, que joga com a polissemia e
ambigüidade do significante. Por isso, tanto na interpretação de um texto narrativo quanto
de um texto ilustrativo supomos que consideremos a amplitude semântica das palavras e
ilustrações que integram o contexto em que se inserem.
103
III.1-Perspectivas facetadas da ilustração
As ilustrações têm sido uma ferramenta importante no processo de comunicação
entre as pessoas e instrumento de intercessão entre o ser humano e o mundo.
Seus estudos perpassam por um conjunto de disciplinas em diálogo, entre elas:
semiótica, arte, lingüística, literatura, pedagogia, história. Nesse sentido, o estudo da
ilustração do livro infantil é um trabalho interdisciplinar e até transdisciplinar por ser um
objeto em que se cruzam diferentes metodologias e correntes que nos auxiliam a
compreender as obras em relação a inúmeros aspectos do mundo social e cultural. Essa área
efetiva-se assim como um ponto de passagem, que ajuda a quebrar barreiras e fronteiras
entre saberes, assentando-se como uma zona de comunicação entre diferentes especialistas.
Portanto através da presente pesquisa temos tentado explorar nosso objeto, as
linguagens verbais e ilustrativas dos livros infantis, e assim pesquisar suas implicações e as
preocupações preliminares que elas demandam, bem como os contextos de surgimento, as
intertextualidades e as diversas funções da linguagem e da ilustração. Buscamos ainda
evocar a relação ilustração/ palavra, de igual importância para esse estudo, uma vez que o
texto escrito não apenas participa da construção da mensagem visual, como ora a substitui,
ora a completa em uma circularidade ao mesmo tempo reflexiva e criadora.
FIGURA 25- Ilustração e texto escrito de Marilda Castanha
Fonte: Castanha, 2001, p.8-9.
104
No livro infantil Agbalá, Um Lugar Continente (Castanha, 2001) temos um bom
exemplo em que o leitor pode perceber um grande número de possibilidades interpretativas
que o obrigam a lidar com uma série de variáveis ao mesmo tempo, entre elas: a poesia
visual, a intertextualidade com temas africanos, a história, a arte (FIG. 25).
Nesse texto, a ilustradora e escritora Marilda Castanha (2001), subverte a forma
tradicional de leitura, pois inicia o texto com letras maiores até chegar a um nível quase
ilegível, dando a idéia de infinito; de que cada um traz em si um pouco de todos. Nessa
ilustração há também a idéia de criação de histórias paralelas, de imagens que possuem
dentro de si mesmas outras imagens. Observamos que o texto verbal se relaciona ao
pictórico, na ilustração há símbolos que remetem ao texto escrito e seus sentidos.
O filósofo norte-americano Charles Pierce foi um dos estudiosos a criar uma teoria
geral dos signos – a semiótica. Considerada pelos estudiosos da área lingüística, como uma
teoria bastante abrangente, ela permite uma ultrapassagem de fronteiras nas diversas
abordagens usadas para se analisar uma ilustração. Essa teoria busca abordar a ilustração
pelo prisma da significação, pelo seu modo de produção de sentido, ou seja, a maneira
como alude às interpretações. Ela apresenta os signos, suas especificidades de ordenação e
suas categorias. Esta teoria permite-nos também abstrair a força da comunicação pela
ilustração e não somente por sua complexidade.
De acordo com as idéias de Peirce, o signo é algo que representa uma outra coisa.
Ao ser comunicado a alguém, o signo produz na mente do intérprete um segundo signo que
traduz o significado do primeiro.
105
A
B
C
FIGURA 26
a)Ilustração de Graça Lima b) Ilustração de Alcy c) Ilustração de Gê Orthof
Fonte A: LIMA, 1997.
Fonte B: PAES, 1996.
Fonte C: ORTHOF, 1983.
A palavra cachorro, o desenho de um cachorro, o esquema de um cachorro, a
fotografia de um cachorro, a escultura de um cachorro, são todos signos do objeto
cachorro.
Quando o receptor olha as ilustrações de um cachorro, olha um signo (a
representação) do objeto cachorro. A mente do receptor poderá processar esse signo
fazendo vir ao seu pensamento um segundo signo (a representação que sua mente faz a
partir do objeto cachorro representado). Este é o interpretante, que traduz o significado do
primeiro signo.
Como intérprete, o receptor olha o desenho de um cachorro e sua mente o interpreta
criando um outro signo (interpretante), que mostra a ele que é um cachorro.
106
Sendo assim, o significado de um signo é outro signo. Isso acontece porque há uma
relação entre o próprio signo (um representante), o objeto (aquilo a que o signo se refere e é
por ele representado) e o interpretante (conceito e a imagem mental construída na mente do
receptor do signo).
Entretanto, ainda seguindo as idéias desse autor, um signo só é a representação de
algo se conhecermos o objeto do signo, ou seja, aquilo que é representado pelo signo. Se
um signo-objeto não faz parte das referências pessoais e culturais do intérprete, não há
possibilidade de o signo ser aplicado, de denotar o objeto para o intérprete.
Assim, embora os signos possam ser inúmeros e diferentes, todos teriam um fio
comum: a vinculação do significante ao referente e ao significado. Todos os signos podem
significar algo além deles mesmos.
Pierce propõe a distinção de três tipos principais de signos: o ícone, o índice e o
símbolo. O ícone mantém uma analogia com o que representa, isto é, com seu referente. O
índice corresponde à classe dos signos que mantém uma relação casual de contigüidade
física com o que representa e finalmente o símbolo corresponde à classe dos signos que
mantém uma relação de convenção com seu referente.
Estes estudos feitos por Pierce são muito úteis para a compreensão das ilustrações e
seus diferentes tipos, assim como para a compreensão de seu modo de funcionamento.
Outro grande lingüista que estudou uma ciência dos signos foi o suíço Ferdinand de
Saussure. Este partiu do princípio de que a língua não era o único sistema de signos que
exprime as idéias para a comunicação. Ao estudar a natureza do signo lingüístico,
caracterizou-o como uma entidade psíquica de duas faces que não se separam que uniam
um significante (os sons) a um significado (o conceito).
A relação entre significante e significado, ou entre os sons e sentidos na língua foi
apresentada como “arbitrária” por Saussure, ou seja, convencional, por oposição a uma
relação dita “motivada”, quando tem justificações “naturais”, como a analogia ou a
contigüidade.
107
Vimos portanto, que a ilustração tornou-se um sinônimo de representação visual e
logo, outro estudioso, o francês Roland Barthes se propôs, como objetivo, pesquisar se a
ilustração contém signos e quais são eles, inventando sua própria metodologia.
Essa se propõe ressaltar que os signos a serem apresentados têm a mesma estrutura
que a do signo lingüístico, elaborado por Saussure: um significante ligado a um significado.
Barthes considera ainda que, ao se obter significados do objeto analisado, procurando
elementos que fazem emergir tais significados, se associam a eles significantes encontrando
signos plenos.
Para JOLY (1996, p.36), o procedimento de partir de significados para encontrar
significantes e, portanto, os signos que compõem a imagem, apresenta-se perfeitamente
operatório. Pois assim é possível apontar que a ilustração é composta de diferentes tipos de
signos: lingüísticos, icônicos, plásticos, juntos afluem para a construção de uma
significação global implícita, que integra, nesse caso preciso, a melodia da língua, a idéia
de nação e da cozinha mediterrânea.
Os pontos comuns nos estudos de muitos pensadores acerca da ilustração é que ela
indica algo que, embora nem sempre remeta ao visível, traz algumas marcas do visual.
Observamos também que ela depende da produção de um sujeito.
Em um livro intitulado Vida e Morte da Imagem: uma história do olhar no ocidente
(1993, p.41), o autor Debray confirma e comprova que desde há algumas dezenas de
milhares de anos, as ilustrações levam os indivíduos a sempre agir e reagir diante delas,
quer tenham um efeito de alívio ou venham a provocar selvageria, maravilhem ou
enfeiticem, sejam manuais ou mecânicas, fixas, animadas em preto e branco, em cores,
mudas ou falantes.
Assim, existe uma relação do observador com a ilustração do livro infantil, e essa
depende de como foi pensada pelo seu produtor. Esse provavelmente a vê como algo a mais
- um objeto que possui uma aura de sentidos múltiplos - e o observador, mais perspicaz,
busca analisar suas representações e ambigüidades (GIANNOTTI, 2005, p.25).
Tais representações podem vir a extrapolar o previsível, o conhecido. No fazer
ilustração, principalmente se for uma ilustração artística, pode haver a condensação da
intuição, da percepção, do sentimento/ pensamento e o conhecimento do produtor. E pelo
108
poder de tais coisas, o observador pode vir a captar uma forma de sentimento que o nutre
simbolicamente, ampliando suas representações. Na verdade, dependendo das ilustrações
contempladas e das narrativas lidas, o ser humano pode realizar uma infinidade de leituras,
porque é também infinita a capacidade do mesmo de perceber, sentir, pensar, imaginar,
emocionar-se e construir significações diante das ilustrações.
FIGURA 27- Ilustração de Marilda Castanha e Nelson Cruz, texto escrito de Leo Cunha
Fonte: CUNHA, 2001.
Uma ilustração de livro infantil, ao ser interpretada, pode levar o leitor a pensar
certas estruturas abertas, que se atam a outros discursos, e até mesmo nos levar a um
discurso vazio. Mas o presente trabalho pretende, ao abordar a interpretação das ilustrações
para livros infantis, sair da interpretação exclusivamente historicista, tendo em vista que
não basta apenas descobrir a raiz histórico-social da questão para um aprofundamento em
sua análise. Giannotti ressalta que “cada eco interpretativo é empuxo para outro, sugestão
de outras evidências (...), terreno marginal, aura, que circunda cada obra singular, sempre
revolvida pelo arado do pensamento que se faz coisa na sua qualidade de norma do ver”
(1995, p.29).
Em um prefácio para o livro de André Mendes, Julio Jeha (2007) nos elucida que ao
analisar o livro infantil com suas ilustrações vamos nos encontrar com ilustradores que
109
fazem nascer um mundo a partir de fragmentos de vários outros, pertencentes a diversos
modos de representação. Eles inserem elementos gráficos para ilustrar a história,
ultrapassando — e muitas vezes contradizendo — a expectativa do leitor. Dessa mistura de
sistemas semióticos resulta um texto mais complexo, um terceiro modo de significação com
maior potencialidade que a soma de suas partes nos levaria a crer.
As relações especulares que estão sendo analisadas deixam perceber a recorrência
de temas que ligam-se a idéia de hibridação. Consideramos híbrida a composição de
elementos diversos que se reúnem para originar um outro elemento (CANCLINI, 2006;
ABDALA JR., 2004). No livro infantil a linguagem verbal une-se a linguagem ilustrativa
formando um terceiro elemento. Ou ainda, no caso da intertextualidade, por exemplo,
quando Ziraldo apropria-se da história bíblica, temos outra forma de hibridação. A narrativa
infantil une-se à narrativa bíblica formando uma terceira narrativa, fruto da mescla de
linguagens. Nesse caso, intuímos que torna-se possível observar esses jogos de hibridação
em grande parte, graças a um olhar transdisciplinar.
Para que esse mundo ficcional complexo venha a permanecer é necessário ter um
leitor que distinga os códigos utilizados, que tenha expectativas culturalmente
determinadas. Satisfeitas essas exigências, têm-se, então, as condições propícias para a
gênese do sentido. Mas o novo sistema só se torna semiótico, isto é, só é capaz de
significar, a partir do encontro dos objetos com a mente que os interpreta.
Ainda para Jeha (2007) a tradicional oposição entre um sujeito beneficiado de
faculdades intelectuais natas e um objeto portador de informações sensórias repete-se nas
teorias sobre a leitura. Há uma linha que o autor denomina relativista onde cada leitor traz
consigo o sentido do texto, que conviria apenas como pretexto para suas idéias e gostos.
Contrariamente a essa posição, teríamos uma tendência fundamentalista, que seria a
concretização da idéia do autor, os significados do texto estariam no próprio texto. Assim,
as duas tendências, possuem aspectos positivos e negativos, e apresentam diferenças
irreconciliáveis, levantando e deixando em aberto uma questão fundamental: o que
acontece ao lermos um texto?
Para resolver a difícil situação entre sujeito e objeto, ou leitor e texto, adotamos um
ponto de vista semiótico e apontamos a relação necessária entre um e outro na geração de
110
significado. O livro infantil, assim como qualquer objeto, se oferece ao sujeito para ser
interpretado. O sujeito o interpreta, isto é, lhe confere valores que regulam a interação entre
eles. Faça parte ou não da experiência de um organismo, o objeto existe por si próprio, mas,
ao se revolver objeto da experiência, contrai significados até então inexistentes. O sentido
do texto não está só nele, nem só na mente do leitor, mas surge do encontro da mente com o
texto, influenciado por variáveis individuais e culturais (MENDES, 2007).
Na tentativa de interpretar os livros infantis sobre o prisma das idéias apontadas
anteriormente, optamos em adotar dois livros. Aviãozinho de Papel (1994) e O Caminho do
Caracol (1998), que através de suas linguagens, nos apontam múltiplas dimensões. Suas
ilustrações nos conduzem para um entrelaçamento de “vozes”, mescla de olhares. As
fronteiras entre palavras, ilustrações, artes plásticas, poesia se pulverizam, as linguagens se
hibridizam.
III. 2-Aviãozinho de Papel: hibridismo entre ilustração e palavras
Graças à ilustração, o livro para crianças passou “a constituir uma espécie de novo
objeto cultural, onde visual e verbal se mesclam” (CAMARGO, 2004).
Tomando essa citação como pano de fundo para o presente estudo, propõe-se que o
livro infantil ilustrado constitui-se como suporte para um texto híbrido, composto pelo texto
verbal e pelo texto visual. No caso da narrativa, temos uma espécie de narrativa dialogada,
com a alternância de enunciados verbais e enunciados visuais. Pretende-se então analisar,
tornando-o objeto de estudo, o livro Aviãozinho de Papel, de Ricardo Azevedo (1994)34,
com desenhos do mesmo autor.
34
Ricardo Azevedo é escritor e ilustrador paulista nascido em 1949, é autor de mais cem livros para crianças
e jovens, entre eles Um homem no sótão (Ática), Lúcio vira bicho (Cia. das Letras), Aula de carnaval e
outros poemas (Ática), A hora do cachorro louco (Ática), Livro dos pontos de vista (Ática), Armazém do
Folclore (Ática), Histórias de bobos, bocós, burraldos e paspalhões (Projeto), O livro das palavras (Ed. do
Brasil), Trezentos parafusos a menos (Companhia das Letrinhas), O sábio ao contrário (Senac/Ática),
Contos de enganar a morte (Ática) e outros. Tem livros publicados na Alemanha, em Portugal, no México,
na França e na Holanda. Bacharel em Comunicação Visual pela Faculdade de Artes Plásticas da Fundação
Armando Álvares Penteado e doutor em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo. Pesquisador na
área de cultura popular. Tem artigos publicados em livros e revistas abordando problemas do uso da
literatura de ficção na escola.
111
A forma como Ricardo Azevedo produz suas ilustrações reflete uma postura, diante
da arte e do objeto artístico, que considera o leitor, de suas obras, não como um sujeito
totalmente independente do texto, ou como sujeito preso às interpretações que ele, como
artista, pretendeu quando criou a obra: essa postura está de acordo com uma forma de
pensar que considera ser possível ao leitor, interagir com a obra artística não apenas pela
soma de interpretantes, mas criando um novo objeto que terá sua forma final definida por
essa interação e, ainda, pelas inferências externas e acontecimentos imprevistos.
A capa é um texto tipicamente híbrido35, composto por três enunciados verbais e um
visual (FIG 28, A). No alto da capa está, primeiramente, composto o nome do autor
RICARDO AZEVEDO que tem dupla autoria do livro: verbal e visual. O nome do escritor
é impresso em preto. O segundo enunciado é o título da obra, composto em letra cursiva:
Aviãozinho de Papel. O terceiro enunciado é a logomarca da editora e o seu nome:
Companhia das Letrinhas, que também vem em letra cursiva, porém, no título a letra
apresenta a idéia de que foi escrito a lápis ou carvão sobre um fundo branco.
A
B
FIGURA 28
a)Capa do livro
b)Pintura de Magritte
Fonte A: AZEVEDO, 2004.
Fonte B: PAQUET, 1995, p.21.
35
Canclini define hibridação por “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que
existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (2006, p. XIX).
112
Como fundo há uma ilustração, em formato proporcional a cada escrito e possui um
plano aberto, sem margens. O desenho mostra um homem ou menino lançando, através da
janela, um aviãozinho de papel. O personagem está de costas para o observador, mostrando
em perfil a face direita.
Não é possível representar uma cena, um rosto, um objeto, sem apresentar, ao
mesmo tempo, um ponto de vista: o ponto de vista do ilustrador, que, por sua vez, será
compartilhado pelo observador da ilustração. Nesta cena, estamos atrás do menino/ homem,
um pouco próximos, como se estivéssemos no mesmo espaço.
A ilustração não é uma fotografia, nem tenta parecer uma fotografia. O modelado é
bastante simplificado. Os volumes são geométricos, principalmente a casa que possui a
janela quase que no centro da capa. Essa casa provavelmente não faz parte de uma cidade,
ela possui chaminé, caixa de marimbondo, é permeada por rio, montanha, ao seu lado tem
duas árvores, sendo uma delas um coqueiro e abaixo da janela tem uma flor que será
retomada ao final do livro. Esses aspectos bucólicos já trazem uma idéia de simplicidade e
lirismo ao livro. Além disso, com grande importância está presente a idéia de tempo, o céu
que compõe a cena noturna é bastante estrelado, entretanto em meio a suas estrelas e luas
(duas), há também marcas do amor simbolizado pelo coração e marcas do clima melódico
simbolizado pelas notas musicais.
As cores mais quentes estão no telhado e na flor, próximo do centro da pintura.
Cores frias e neutras – azuis, verdes e branco – dominam o resto da pintura. O observador
pode partilhar o sentimento de liberdade, mesmo que não saiba quem é o menino/ homem.
Por outro lado, depois da leitura do livro, essa informação se agrega aos significados da
ilustração.
O enquadramento meio aberto – mas um pouco próximo – pode lembrar os
enquadramentos de narrativas televisuais como seriados, minisséries e novelas. O ângulo de
visão frontal e com elementos surpreendentes como o coração e as notas musicais, neste
caso, lembra o ângulo preferido pelos pintores e desenhistas surrealistas. E essa maneira de
pintar, com o uso de elementos inusitados, que beira ao onírico, será observada variadas
vezes no decorrer das páginas. Tecendo um diálogo intertextual, principalmente, com as
obras do pintor belga Magritte. E numa análise mais profunda dessa idéia, a própria
imagem da capa nos remete a obra O salão de Deus, (PAQUET, 1995, p. 21) onde
113
apresenta um céu noturno e paradoxalmente uma casa de campo iluminada (diurna) (FIG.
28, b). No caso da ilustração também se vê o céu noturno, mas a casa está bastante
iluminada em seu exterior.
Abrindo o livro, encontramos uma folha de guarda (ou orelha do livro), cor branca
com escritos em preto. Onde o autor relata, que a história partiu da semelhança entre uma
garrafa com uma mensagem jogada ao mar e um livro: “Uma garrafa atirada n´água é feito
um livro e um livro é parecido com um aviãozinho de papel (...).Também um aviãozinho,
se tiver sorte, pode chegar longe carregando em suas dobras uma idéia, uma lembrança, um
sentimento” (Azevedo, 1994).
No ante-rosto, página em que usualmente só viria o título da obra, aparece uma
ilustração, também em formato proporcional à página, com largas margens brancas, onde se
vê o personagem principal da história, o aviãozinho, agora mais nítido e detalhado.
Observa-se que ele foi feito de papel de caderno, pois possui pautas e sua dobradura é
simples e comum ao meio estudantil.
Os significados do texto verbal se projetam sobre as ilustrações e os significados das
ilustrações se projetam sobre o texto verbal: nessa ilustração, por exemplo, o aviãozinho
aparece solitário, mas valente apesar de ainda inanimado, antecipando, de certo modo, o
texto das páginas seguintes.
A história do livro é, portanto a de um aviãozinho lançado de uma janela por um
menino/ homem e o percurso deste aviãozinho vai até o final do livro. A estrutura narrativa
segue frouxamente a tradicional: na situação inicial o aviãozinho é lançado pela janela; o
desenvolvimento narra a viagem do aviãozinho por vários lugares, incluindo um forte vento
que o derruba. A ação é retomada por intermédio de um menino que recolhe o aviãozinho,
o reconstrói e o lança de novo. O desenlace é a chegada do avião ao seu destino: ele traz
uma mensagem para alguém que sorri ao ler as suas poucas palavras, mas de grande
significado para esse alguém, que o texto escrito não revela quem é, porém se mostra na
ilustração da última página.
No projeto gráfico do autor o texto é colocado à direita e as ilustrações nas páginas
da esquerda, limitadas por uma linha fina.
No início do texto o autor já nos dá informações importantes a cerca do livro: o
personagem da capa que lança o aviãozinho de papel não era um menino, e sim um homem,
114
e o aviãozinho foi realmente feito de folha de caderno. E o narrador dá vida a um
personagem que antes era inanimado ao dizer que a “vida de um aviãozinho é cheia de
quase tudo. Tem calmaria, tem espanto, tem acasos e tem belezas” (AZEVEDO, 1994, pág.
3).
Abaixo e do lado direito, medindo quase dois centímetros, temos uma vinheta, que é
uma ilustração pequena, que pode medir até cerca de 1/4 do tamanho da página. Do francês
vignette, pequena vinha, estes ornamentos representavam, na origem, cachos e folhas de
videira, símbolo da abundância (CAMARGO, 1995, p. 16). A vinheta do livro é um vaso
preto e branco ornamentado com folhas de uva36 estilizadas, e no decorrer das páginas (da
pág. 3 a pág.23) irá nascer dele duas folhas e uma flor, que é um significante muito
importante para o livro. Se o leitor passar rapidamente as páginas do livro, ele irá ver a
plantinha crescendo e brotando a flor, dando uma idéia de desenho animado. Desta forma o
ilustrador acrescenta mais uma linguagem ao texto.
Observamos que essa vinheta se apresenta já na capa, no meio do livro e ao final do
livro, formando uma narrativa adjunta a outra narrativa, porém a primeira é ilustrativa e
verbal e a segunda é apenas ilustrativa e a partir dessas ilustrações forma-se outra história.
Essa vinheta tem função de pontuação quando orientada para o texto no qual – ou junto ao
qual – está inserida, sinalizando seu início, seu fim ou suas partes, criando pausas ou
destacando elementos (CAMARGO, 1995).
Emoldurado por uma fina linha preta, à esquerda, está uma ilustração que dialoga
com o texto à direita, em ambos está explícita a metáfora da viagem, tão presente nas
religiões e nas artes ao se tratar da existência terrena do ser humano. No texto escrito temos
os substantivos folha que se liga à brisa, garrafa que se liga a ondas do mar, andarilho que
se liga ao mundo. E uma palavra significativa que o autor evoca é o medo que a viagem
proporciona.
A ilustração traz, pictograficamente, os substantivos citados no texto, mas o
complementa com outras metáforas da viagem como o passarinho, a borboleta, o mosquito,
um balão, um barco, uma flor (tão frágil e efêmera!), árvores, rio...e uma pequena pedra
que, no decorrer do livro, ficará grande. E num diálogo poético e metafórico, com o escritor
36
Repararmos que as e folhas de parreira lembram os arabescos da arte mulçumana, e tais motivos também
foram muito trabalhados nas iluminuras da Idade Média, as quais, devido às suas cores vivas e soluções
gráficas, dão até hoje inspiração para ilustradores.
115
Carlos Drummond de Andrade, ela se situa exatamente “no meio do caminho”(FIG. 29).
Seria essa pequena pedra uma tradução textual do medo?
FIGURA 29-Ilustração de Ricardo Azevedo
Fonte: AZEVEDO, 2004, p.4.
As enumerações dos objetos: “uma flor, um piano de cauda, um relógio parado, uma
joaninha, dois caminhos...”, as aliterações e assonâncias: “de nada, de nada, de nada”, as
metáforas e símbolos: “um segredo escondido atrás de uma pedra” que o texto evoca
sugerem recursos da poesia, recursos esses que serão reiterados ao longo da narrativa,
confirmando o hibridismo do nosso texto: tanto narrativa como poesia – uma narrativa
poética.
Pela primeira vez, na página 7, o aviãozinho ganha voz, se humanizando ainda mais.
Passando de “uma folha de caderno quase em branco que por isso não conhecia nada de
nada de nada” a um ser pensante e deslumbrado com os encantos da viagem.
A ilustração da página 6 coloca todas as coisas heteróclitas37 , inclusive algo que
não é concreto-o segredo escondido atrás da pedra...- numa montanha verde, onde o sapato
37
O termo heteróclito se refere a algo que se desvia dos princípios da analogia gramatical ou das normas de
arte.
116
voa no céu, o peixe salta sobre o verde. A ilustração também apresenta certos ícones
comuns ao estilo do ilustrador e que estão presentes em seus livros em geral: a
borboletinha, a árvore, a maçã com uma mordida (FIG 30, a).
A maçã é um motivo recorrente também na pintura de Magritte. Em uma delas, um
ambiente é tomado por uma maçã verde enorme (FIG 30,b); em outra, uma maçã se
encontra ao lado de um rosto marmorizado e branco, com uma mancha de sangue em sua
fronte e um copo d´água (FIG. 30, c). O primeiro denomina-se A Sala de Escuta, (1658) e o
segundo Memória (1945) (PAQUET, 1995, p. 63 e 30). A conotação de desejo não é
estranha a essas pinturas, o que também não é estranho à tradição cultural judaico-cristã. O
pintor belga e o artista brasileiro utilizam, assim, imagens e conotações difundidas
culturalmente.
A
B
a)Ilustração de Ricardo Azevedo
FIGURA 30
b) Pintura de Magritte
Fonte A: AZEVEDO, 2004, p.6.
Fonte B: PAQUET, 1995, p.30.
Fonte C: PAQUET, 1995, p.63.
C
c)Pintura de Magritte
117
Logo, esses objetos disparados, todos juntos num mesmo espaço, acentuam a
atmosfera lírica, imaginária do texto escrito. Nessa imagem também, observa-se a
complexização por meio desse caos, pois o leitor pode vir a perceber grande número de
possibilidades interpretativas que o podiam levar a lidar com uma série de variáveis ao
mesmo tempo. Aqui será natural que o leitor possa ficar confuso, tanto pela transformação
das palavras em ilustração como pelo desenrolar da história, o que o fará procurar outras
relações de significação a fim de encontrar a “solução” do mistério.
Assim como as páginas anteriores, às páginas pares apresentam a ilustração e às
ímpares apresentam o texto escrito. Nesse, além das enumerações (locomotiva, manual de
instruções, fábrica, uma fumaça, uma régua, uma caixa de queijo Caputiry...) traz um
elemento importante ao protagonista: uma mala, que a partir da comparação com o outro
viajante, possivelmente o dono da mesma, ele, o aviãozinho, se vê como indivíduo e de
certa forma assume uma identidade.
A ilustração (FIG. 31) é um
emaranhado de montanhas, onde passa
uma locomotiva, e estranhamente uma
máquina antiga de filmar com cores e
proporções relativas à locomotiva. E
ambos são objetos que lembram do
passado “que passa”, ao fundo um
casarão que possui uma torre que solta
fumaça e esta contrasta com a fumaça da
locomotiva. Fazendo um jogo com o
vento, uma fumaça vai para a direita e
outra para a esquerda.
FIGURA 31
a)Ilustração de Ricardo Azevedo
Fonte A: AZEVEDO, 2004, p.8
Os objetos que compõem um
suposto primeiro plano da cena, apresenta
uma fusão: há quatro objetos que estão identificados por algo escrito, a mala tem uma
identificação com o nome do seu dono - nome e sobrenome - ambos não são nítidos e nem
118
legíveis, levantando as supostas interrogações: Quem será o dono ou a dona da mala de
viagem? Poderia ser o leitor que também participa dessa viagem literária?
A chave e o queijo também estão identificados. Esse com a sua idéia de sabor,
catupiry. E aquela com o numeral 1., que nos remete a uma chave de hotel que é um
elemento também ligado a viagem. A chave também traz em si a metáfora do poder de
escolha, tanto do trancar, quanto de destrancar.
Entre outros desenhos, ora repetidos e ora novos, temos presente novamente o
caminho que tem uma pedra em seu meio. Agora ela está mais visível do que na página 4 e
também aparece o herói da história, o aviãozinho que sobrevoa toda a cena.
Na página 10, a ilustração evoca a do verso do ante-rosto: vemos o aviãozinho,
solitário e temeroso. Desta vez é possível identificar que o céu ficou muito escuro, com
nuvens carregadas e ventos fortes. Fica evidente, aqui, a importância do conhecimento de
mundo e do repertório de imagens do leitor. Sem memória, não é possível reconhecer,
identificar, nomear e descrever.
A representação do fundo do desenho e o texto trazem informações fundamentais:
“Mas o vento...ah, o vento! É mestre em manhas e artimanhas. Uma hora passa soprando,
amigo e companheiro. Outra, assobia arrogante. De repente, explode brusco e inesperado”
(AZEVEDO, 1994, p.11).
Por meio da dupla projeção de significados – do texto para as ilustrações e viceversa – identificamos que na viagem do nosso personagem, o mesmo que o ajudava a voar
o levará a cair, o vento.
A narrativa prossegue descrevendo os movimentos de queda do aviãozinho, numa
perfeita sincronia entre sonoridade e visualidade ou seja, as imagens que o texto evoca no
leitor são conduzidas por musicalidade. A voz do narrador se mistura com a voz do
aviãozinho, que expressa um sentimento de despedida e ida para a morte.
Chega-se assim ao exato meio do livro, páginas 12 e 13. Nele as duas páginas são
compostas de ilustrações, chamadas de páginas duplas no jargão editorial, sem nenhum
texto escrito, e que possui grande significado, ainda que o leitor não tivesse lido o livro.
Nessas páginas, as margens que sempre limitavam os desenhos anteriores
desaparecem, deixando a ilustração com contornos insólitos. O espaço continua sendo rural
e com colinas, o caminho que perpassa as colinas é bem nítido e grande, agora a pedra que
119
“sempre esteve no meio do caminho” se torna mais significativa, ao lado dela se encontra,
todo estragado, o nosso herói, que “de uma queda foi ao chão”.
Contudo, percebe-se que tais páginas trazem para o leitor uma espécie de pausa na
leitura textual, assim como uma pausa na vida do aviãozinho. Porém, entre os grampos do
livro, há uma folha de caderno pautada em branco. Ela foi colocada pelo autor para ser
destacada, dobrada, escrita e lançada pela janela, como posteriormente será esclarecido no
final do livro.
Nas páginas 14 e 15, o narrador volta a nos falar pelo texto escrito, ele descreve o
sentimento de incerteza e dúvida que teve o aviãozinho quanto a sua identidade de
aviãozinho, ele mal sabia se estava vivo, se era aviãozinho, folha de caderno, bola
amassada de papel. Mas em meio a essas dúvidas, ele novamente desperta e revive sua
memória, pois adjunto a ele aparece um menino que assobiava. Esse menino,
primeiramente, pesquisou o objeto, depois o desamassou e o relançou à imensidão do
espaço.
A ilustração, pela primeira vez corresponde mais realisticamente ao texto, aparece o
menino que pega o aviãozinho derrubado pelo vento. Porém, a ilustração apresenta
elementos que completam o texto, como a roupa e o tênis que o garoto usa. Além disso, há
ao fundo da ilustração uma árvore com cores bastante originais sobre uma montanha azul.
O que poderia nos dar idéia da imensidão do espaço que o aviãozinho volta a se apropriar.
A cena se prolonga além do campo de visão, ao mesmo tempo em que dá uma
impressão de incompletude e de fugacidade: o leitor poderá contemplar um instante. A
representação se preocupa com linhas e formas definidas, o que se evidencia nas bordas da
ilustração.
O modo indicativo de representar, já observado em relação aos fundos, fica evidente
na representação do espaço. Os volumes são simplificados e com proporções realistas. Isso
fica claro na representação do corpo do menino.
As ilustrações não explicam nem ornamentam o texto; não buscam equivalências
entre o verbal e o visual. Mais do que coerência ou convergência de significados parece que
se trata da co-laboração dos discursos verbal e visual, constituindo um discurso duplo, um
diálogo. As características semióticas, semânticas, cognitivas e emocionais de cada
linguagem criam um discurso híbrido, em vários níveis. É sabido que se pode estudar o
120
texto e as ilustrações separadamente e que podem ser relevantes os estudos que abordam
apenas o texto.
A ilustração da página 16, mostra vários objetos que primeiramente não formam um
conjunto coerente, mas depois, de observar minuciosamente se vê que todos têm uma
característica em comum: o ato de voar, nem que seja apenas na imaginação como o boi de
asas. O leitor provavelmente deve saber, pelo seu conhecimento de mundo, que a pedra é
estática se não for impulsionada, embora pudesse sugerir movimento. O ilustrador, parece
querer mimetizar os movimentos da memória, alternando ilustrações vívidas e ilustrações
fugidias. E aqui parece fazer todo o sentido as ilustrações meio caóticas, como são as
imagens da imaginação.
Além da forma caótica como são colocados os objetos, é possível encontrar
distorções físicas nas figuras, como ocorre nas ilustrações medievais. O passarinho, por
exemplo, é representado em tamanho desproporcional em relação ao avião que está bem
abaixo dele. Outro exemplo é o tamanho desproporcional do super-homem em relação ao
planeta, (talvez esse tamanho sirva para acentuar seu poder ou o tamanho da sua força).
Ricardo Azevedo também deforma o boi, assim como deforma a bola. Afinal é tudo ficção,
é tudo uma brincadeira, nada é real: uma forma de reforçar o jogo com a recepção. Há
também outros gestos de inovação, como na utilização da imagem do vaso de flor à direita,
ou seja, além de dar mais beleza, ele é utilizado como um recurso pictórico.
A distribuição do texto pelas páginas é feita de modo a criar efeitos de suspense: “E
no mar havia uma ilha distante e sobre a ilha distante um farol e o farol indicava o caminho
e o aviãozinho deixou-se levar pelo caminho” (AZEVEDO, 1994, pág.19).
Observa-se nas passagens seguintes que o aviãozinho viveu um fator muito
importante em seu percurso: a passagem do tempo (seria uma metáfora do amadurecimento
humano?), que também voava com ele. Além disso, a viagem o levou a um elemento de
mistério, o mar e sobre o mar ele teve a indicação do caminho a seguir através do farol que
animicamente lhe indicou o caminho.
Em Aviãozinho de Papel, a viagem é um dado fundamental na estrutura da narrativa
e para a vitória do herói. Viajar é, em si mesmo, um ato lúdico: significa experimentar o
perigo de se viver. Viajar já é uma disputa do homem contra a natureza, contra o tempo e o
espaço. Desde os clássicos gregos encontram-se, em várias obras, heróis que enfrentam
121
obstáculos passando por uma série de provas, até voltarem vitoriosos. Nesses casos, a
viagem tem um caráter iniciático: ela é, ao mesmo tempo, risco e aprendizagem,
experiência de vida, aventura. Com o Aviãozinho não é diferente. Desde a partida, não sabe
ao certo que tipo de obstáculos terá que superar durante o percurso, sendo obrigado a lidar
com situações de adversidade — por exemplo, ele cai. Vencer as dificuldades de uma
viagem é como sair vitorioso de uma partida. É como entrar no labirinto e matar o
Minotauro. No caso do nosso protagonista, as situações que ele é obrigado a superar
contribuem de forma decisiva para ajudá-lo a vencer o desafio de levar uma mensagem ao
seu destinatário.
O espaço que antes era rural mudou-se para urbano, com prédios e favelas
geometricamente representados e, além disso a ilustração numa forma de diálogo com o
texto escrito mostra figuras humanas: uma mãe com seu bebê, um menino negro, um
soldado, uma idosa risonha, um senhor da roça. O texto escrito apresenta diferentes
personagens, trabalhando de forma explícita a visualidade imagética do leitor.
Diferentemente da página 11, na página 21 o aviãozinho começou a cair, mas dessa
vez foi planando numa imensa suavidade e pousou numa flor.
É interessante observar que, na ilustração da página 20, não aparece a flor,
entretanto na página 21, pela vinheta, já explicitada anteriormente, há uma pequenina flor
nascendo do vaso. Talvez o leitor saiba que não se trata da flor em que o aviãozinho caiu,
mas ambas são interessantes e possuem significados que dialogam.
Nas páginas que se sucedem, 22, 23 e 24, temos o desenlace final do livro. Vemos
primeiramente, na ilustração da página par, a flor da qual recebe as atribuições de beleza
(em especial a feminina), perfeição espiritual, inocência natural, suavidade – mas também
da brevidade da vida (TRESSIDER, 2003, p.147). Essa flor acolhe e abriga em seu interior
o aviãozinho, numa atmosfera de total lirismo, a flor feminina, o aviãozinho masculino se
unem numa fecunda poesia visual.
No texto escrito, podemos visualizar ilustrações sinestésicas: “A flor era vermelha e
cheirosa” (p.23). Observa-se também que alguém veio pegar esse aviãozinho, o olhou,
sorriu e leu o que estava escrito. Eram poucas palavras, mas tão significativas que fizeram o
aviãozinho compreender que sua viagem chegara ao fim e o havia levado ao seu destino.
122
Na página final 23, ultrapassando os limites da margem que sustentava as
ilustrações, aparece uma bela moça, com sorriso suave, carregando o aviãozinho
mensageiro em suas mãos. Essa moça olha frontalmente para fora da ilustração. Estaria ela
olhando para o leitor? Ao seu lado, se faz presente a flor que serviu de suporte ao pouso do
aviãozinho e admiravelmente, ao fundo da ilustração aparece a mesma casa que está na
capa, onde o homem lançou pela primeira vez o seu aviãozinho.
Logo se vê que o herói da história fez um movimento cíclico e circular38 em sua
viagem, ele chegou ao ponto de onde saiu, levando a pensamentos metafóricos de início e
fim, vida e morte, saída e chegada. Observa-se também que quando ele saiu (capa) estava
de noite e quando ele voltou também estava de noite, completando ainda mais essa
atmosfera de amor e suavidade que permeia a viagem do aviãozinho.
A contracapa foi também suporte para que o autor/ ilustrador deixasse uma marca.
Há nela uma árvore, simples, comum a desenhos infantis, porém dois aspectos chamam a
atenção: seu tronco possui um coração remetendo a idéia de amor entre namorados e sua
copa é carregada de estrelas, lembrando do clima noturno que acompanha a ida e a chegada
do aviãozinho. Abaixo dela lê-se: “Um aviãozinho de papel, atirado do alto de uma janela,
parte para uma viagem cheia de paisagens, espantos, encontros, por acasos e belezas até
alcançar, certo dia, o seu destino” (AZEVEDO, 1994).
Provavelmente todo texto nasce como uma espécie de fala interior, mas, para ser
reconhecido como texto, ele precisa ser enunciado sob uma forma material e sensível: a
fala, a escrita, os sinais. Pode-se dizer, por exemplo, que uma conversa é um texto,
enunciado oralmente por dois ou mais enunciadores; que uma entrevista (publicada em
jornal ou revista) está enunciada visual ou graficamente; que o telejornal é um texto
enunciado audiovisualmente e assim por diante. Sugere-se, assim, o termo enunciação
gráfica para designar o modo como o texto escrito é enunciado, abrangendo várias
modalidades: a manuscrita, a impressa, a digital (CAMARGO, 2003).
Contudo como a enunciação oral pode conotar um enunciado com as mais variadas
intenções – afirmar, perguntar, pedir, ordenar, convidar etc. –, a enunciação gráfica também
38
A configuração na forma circular e o movimento rítmico têm relações representativas com a idéia de
totalidade do temporal e do recomeço. O círculo é uma roda, e é na roda de fiar que as deusas tecelãs fiavam o
destino. É na roda que soam as histórias, enquanto se tecem as tramas da imaginação (BUSATTO, 2006,
p.77).
123
agrega significados ao texto. Por exemplo, há vários recursos de sonoridade e ritmo, típicos
da poesia, que são reforçados pela localização, especialmente o início e fim de palavras,
versos e estrofes. “E lá se foi o aviãozinho metido entre nuvens velozes e rajadas e sopros e
ares e trancos e barrancos e tomos e rangidos e gemidos e assobios sacolejando e
rodopiando (...) nem teve tempo de dizer:_ Adeus, vou pra não voltar...” (AZEVEDO,
2004, p.11).
Luís Camargo (2006), nos atenta para duas tramas do texto: a estrutura sintática e a
estrutura temática. A estrutura sintática refere-se à combinação das palavras formando
sintagmas cada vez maiores: expressões, frases, orações, períodos, versos, estrofes, cantos,
partes, etc., ou ainda, no caso da prosa, parágrafos, capítulos, etc.
A estrutura temática refere-se à organização do texto em tópicos e subtópicos.
Angela Kleiman (1993, p. 59) designa essa estrutura mapa textual, uma metáfora bastante
rica, especialmente no caso de textos curtos, em que é possível desenhar essa estrutura e,
assim, visualizá-la.
Em relação à metáfora mapa, é importante assinalar ainda que, assim como um
determinado espaço admite diferentes mapas, segundo o interesse do cartógrafo (por
exemplo, político, bacias hidrográficas, densidade demográfica, alfabetização etc.), os
textos também permitem diferentes mapas textuais, segundo os interesses de quem o
interpreta. Como diz Kleiman (1989 p. 95): “Uma vez que a macroestrutura de um texto
resulta de um processo inferencial do leitor, pode haver diferentes macroestruturas de um
texto, mas haverá também um alto grau de concordância (...)”.
Um exemplo da cartografia desse livro infantil seria que ele está organizado em três
partes: 1) o lançamento do aviãozinho e o início de sua viagem; 2) a queda e o reinício da
viagem e 3) a chegada do aviãozinho ao seu destino e a leitura da mensagem. A primeira
parte, por sua vez, poderia ser dividida em três:1) características gerais e a vida do
aviãozinho; 2) o seu deslumbramento com o mundo e 3) o seu contato com o vento.
No livro analisado, não há descrição minuciosa de um objeto específico, mas sim
das coisas que o aviãozinho viu e a descrição pode ser um tipo de texto que sugere
ilustrações ao leitor. Essas ilustrações mentais parecem ser uma modalidade de um
fenômeno mais amplo: o poder que as palavras e, por extensão, os textos, têm de evocar
representações mentais referentes aos vários sentidos. Se designarmos visualidade o poder
124
que uma palavra, um enunciado ou um texto tem de evocar ilustrações, não será difícil
reconhecer que a visualidade é uma modalidade de um fenômeno mais amplo, que poderia
ser designado sensorialidade. “Passou por planetas, mariposas, (...), um pára-quedista, uma
pipa, um anjo da guarda, uma folha de árvore, um helicóptero, um balão de São João e até
por uma nota de mil esvoaçando sem sentido” (AZEVEDO, 2004, p.17).
Ilustração sinestésica ou motora: “O tempo também voava. / O ar foi encorpando/.
O dia ficou denso./ Uma energia cresceu deitando suas mãos por cima da tarde. / Ao dobrar
uma curva no espaço, o aviãozinho descobriu que sobrevoava a massa descomunal de águas
salgadas do globo: o mar” (AZEVEDO, 2004, p. 19).
Ilustrações olfativas: “A flor era vermelha e cheirosa. /Parece até que tudo havia
sido combinado!” (AZEVEDO, 2004, p.23).
A partir das palavras, dos enunciados, dos textos, o leitor pode chamar suas
lembranças. Ele só pode – é claro – chamar as ilustrações, sensações e emoções arquivadas
em sua memória e são essas memórias que permitem que ele transforme o texto em
representações mentais.
Falar de visualidade, assim, significa referir-se implicitamente à possível
visualização do leitor, ou seja, sua ação de visualizar o texto, isto é, transformar o texto em
imagens mentais.
III. 3-O Caminho do Caracol: travessias poéticas
A história aqui analisada é contada a partir de ilustrações, sem palavras escritas.
Assim o que compõe a narrativa é apenas o texto ilustrativo, no entanto, nem mesmo o livro
de ilustrações é inteiramente feito de desenhos, pois, já na capa aparece pelo menos o título
e o nome do autor, informações textuais essas que se projetam sobre as imagens,
interferindo na sua leitura. Cada vez mais editoras inglesas, alemãs, americanas, japonesas
têm nos apresentado livros com essa formatação. No Brasil temos ricos exemplos desta
modalidade textual, Graça Lima compôs, entre outros, Noite de Cão (1996) e Só Tenho
Olhos Pra Você (1994), ambos muito elogiados pela crítica. O primeiro ganhou o prêmio
Jabuti da CBL e o prêmio Luis Jardim de melhor livro de imagens, dado pela FNLIJ. Em
125
1992, as ilustrações do livro foram publicadas no catálogo da Bienal de Ilustradores da
Catalunha em Barcelona, Espanha. Esse livro conta a história de um cãozinho que se
enamorou da Lua e viveu com ela uma trajetória muito comum aos amantes atuais: o
encontro, o desencontro, a dor e a necessidade de respeitar a identidade e a liberdade do
outro. O segundo, também conta, através de suas imagens, a história de amor vivida por um
sapo e uma sapa. Um aspecto interessante das ilustrações desse livro é que as ilustrações
ora aparecem coloridas, ora aparecem em preto-e-branco, dando ao leitor novas
possibilidades de leitura.
Assim como Graça Lima, a autora Angela Lago, também possui livros com
narrativa ilustrativa que são extremamente ricos e premiados, dentre outros, se destaca o
Outra Vez (1984), que, como personagem redondo tem-se uma menina negra, os cenários
são baseados nas cidades históricas mineiras, enfatizando os telhados, as ruas de pedras, os
sinos e chafariz; há até mesmo uma alusão ao passadiço da cidade Diamantina/ MG (FIG.
32).
FIGURA 32-Ilustração de Angela Lago
Fonte: LAGO, 1984.
126
Não menos importante, destaca-se também o livro Cântico dos Cânticos (1992), já
mencionado interiormente, neste trabalho tem-se imagens grandes, com uma quantidade
indeterminada de cores, nele nosso olhar joga com essa fusão de informações e uso de
intertextualidades, entre elas tem-se Escher, Van Gogh, o Barroco, as iluminuras. No
cenário, as colunas e os múltiplos planos parecem se estender ao infinito, apontando para os
labirintos de Escher (FIG. 33).
A
B
FIGURA 33
a)Ilustração de Angela Lago
b)Desenho de Escher
Fonte A: MENDES, 2007, p.72.
Fonte B: ESCHER, 2002, p.67.
127
Em um texto dirigido aos alunos do curso de pós-graduação39. Angela Lago faz uma
relação entre os dois livros referidos. Para ela, no Outra Vez, as imagens narram uma ou
diversas pequenas histórias a serem descobertas e construídas pelo leitor, e tais imagens
fazem ficção através da prosa. Em Cântico dos Cânticos tem-se a ficção através da
declamação de um poema. A ênfase das imagens não está, portanto na sua competência de
narrar, mas na capacidade de evocar.
É interessante observar, que esse tipo de narrativa surgiu no Brasil somente em 1976,
com Ida e Volta, de Juarez Machado. E foi justamente esse livro que ficou conhecido como
mudo, porque o livro “não tinha palavras”.
Supõe-se que o presente livro, que será analisado, com suas ilustrações líricas e
metafóricas amplie o ângulo de visão do leitor, apresentando não só o que se passa dentro
da cena sugerida, como o que está fora dela, pois, o texto iconográfico, em todos os
momentos, possibilita ao leitor diferentes percepções significativas. Ele é convidado,
através da ilustração a ter uma vivência estética da imagem, a se deleitar com cenas muito
ricas e elaboradas, contendo um tom místico, misterioso, amoroso que evita a obviedade
dos objetos e acontecimentos representados.
A capa apresenta em primeiro plano, numa moldura formada por superposições de
quadrados: o nome da autora, o título do livro e o nome da coleção, respectivamente,
helena alexandrino40 (com letra minúscula), o caminho do caracol (letras minúsculas, mas
dando a idéia de serem maiúsculas) e coleção olho verde. O fundo da capa é branco e sobre
ele há vários pequenos desenhos: uma lua, um coelho na cartola, um dado, um caracol,
flores, maçãs, insetos, pirâmides. Formando um conjunto colorido e alegre, mas em meio a
essas imagens, ao final da capa, perto do nome da editora, há uma janelinha com o rosto de
um menino. Essa criança é o único desenho que não apresenta alegria (FIG. 34).
39
O CÂNTICO DOS CÂNTICOS: uma leitura através de imagens, Angela Lago / PUC- PREPES / Belo Horizonte, 16 de
julho de 1992.
40
Helena Alexandrino é formada em Artes Plásticas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo (ECA-USP), ilustrou muitos livros e recebeu vários prêmios nacionais e internacionais, entre
eles o Hans Christian Andersen, da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil, FNLIJ. Seu trabalho foi
selecionado para a Mostra de Ilustradores de Livros Infantis de Bolonha, em 1997. O Caminho do Caracol,
recebeu o Prêmio Luiz Jardim da FNLIJ.
128
FIGURA 34- Ilustração de Helena Alexandrino
Fonte: ALEXANDRINO, 1998.
A representação da criança no livro já nos remete a complexação, pois a artista
mistura, cores variadas, animais sorridentes, flores, frutas, insetos, estrelas... com a solidão
e a tristeza de uma criança, que deveria ser um símbolo da felicidade, desta forma,
antitética, é ampliado o campo de interpretantes possíveis que essa ilustração possuía
potencialmente.
Abrindo o livro, encontramos novamente os dados textuais já explicitados na capa,
mas dessa vez com uma ilustração diferente que contrasta com a capa. Enquanto essa
mostra desenhos variados e alegres, aquela apresenta uma única imagem, com 5
centímetros de largura e 6,5 de comprimento, sombria, com cores frias. Uma cena urbana
mostra mais de vinte prédios muito juntos e entre eles nove chaminés soltando fumaça,
transmite uma atmosfera de claustrofobia à cena. A ilustração perde em extensão, mas
ganha em intensidade.
O livro, sem texto escrito, narra a história de um menino “prisioneiro” no quarto de
seu apartamento, numa cidade desumana e poluída. O surgimento de um caracol no quarto
transporta a história do real para a fantasia, pois o menino, montado no animal, se afasta da
129
cidade e faz uma viagem maravilhosa que ao final virá lhe trazer um pouco de alegria em
sua vida, preso no apartamento.
A página 3, apresenta a situação inicial, uma pequena ilustração central, que mostra
um menino triste que olha através de uma vidraça da janela. O que ele vê que o deixa tão
triste?
Alguns ilustradores utilizam janelas para enriquecer a cena com dois ambientes (um
deles enquadrado por janelas), pelos quais informações diversas são transmitidas ao leitor.
No presente livro, a autora utiliza a janela para ampliar o espaço da cena.
Na página 4, a ilustração nos conduz a mudar de foco narrativo, se na página
anterior o foco era de fora olhando para dentro, agora é de dentro do quarto para fora. No
referido quarto, no alto à esquerda, a janela nos mostra o que o menino vê através da
vidraça: uma cidade cheia de prédios iguais, sem árvores e escurecida pela poluição
(FIG.35). Dentro do quarto a autora reduziu ao mínimo os elementos significativos, pois o
vazio do cômodo enfatiza o vazio do menino. A mobília está reduzida a uma cama estreita
e pouco acolhedora, encostada no ângulo das paredes à direita, com uma leve distorção na
perspectiva, num toque expressionista, lembrando o célebre quadro no qual o pintor Van
Gogh, (1853-1890) representou seu quarto, acentuando o desconforto da criança (FARIA,
2004, p.47-48).
FIGURA 35- Ilustração de Helena Alexandrino
Fonte: ALEXANDRINO, 1998, p. 4.
130
Sob a janela um par de tênis jogado no chão, reafirma ainda a sua inutilidade numa
cidade desumana, onde o menino se sente preso em seu quarto. E para confirmar esse
aspecto, a autora/ ilustradora, desenhou o menino com um pijama listrado, mostrando-o
simbolicamente usando a roupa que se tornou um código em ilustração: o uniforme com
listras dos prisioneiros.
Para Maria Alice Faria (2004), o próprio quarto abre-se para o desenvolvimento da
história no nível do maravilhoso, com a presença insólita de uma grande concha, no pé da
página, à direita, do qual, no decorrer das páginas, sairá o caracol que salvará o menino da
cidade e de sua solidão. A janela, nessa cena, tem a função expressiva de revelar, para
dentro do quarto, as razões desta criança se sentir prisioneira e infeliz. Num mesmo espaço,
a ilustradora abre a cena principal para um novo ambiente através da janela.
Como se pode perceber por esta breve paráfrase que até agora se apresenta, não é
muito correto afirmar que, nos livros de imagem, a criança, ou qualquer leitor, inventa a
história, pois os principais elementos da narrativa estão dados: os personagens, o cenário, o
enredo. Podemos acrescentar ainda o tempo, aqui expressado pelas referências espaciais e
arquitetônicas. Presume-se que a época seja a atual. Quanto ao ponto de vista, torna-se
bastante evidente, pois todas as ilustrações são representadas segundo um enquadramento,
um ângulo de visão – um foco narrativo.
Na página 5, os dois personagens protagonistas se encontram cara-a-cara. A imagem
se apresenta em close-up e há entre os dois um jogo de olhares, olhares entre a realidade, na
pessoa do menino e a ficção, na “pessoa” 41 do caracol. Até aqui, o menino é muito maior
do que o caracol. Seria então a predominância da realidade sobre a fantasia?
Entretanto, na página 6, o menino e o caracol ficam do mesmo tamanho. Os
personagens ainda se mantêm fixos no olhar, mas agora se revelando de corpo inteiro.
Supõe-se que o menino tenha aderido à fantasia, e/ou entrado num mundo onírico da
imaginação infantil. Na página 7, o menino sobe no caracol. Em volta deles, há uma
mistura de cores, sutis, mas diversas. Alimentando a idéia de magia e liberdade. Ao fundo
dessa cena, a cidade cinza, fria vai ficando para trás. E numa visão mais detalhada pode-se
41
Segundo o dicionário Aurélio o termo “pessoa” se refere a cada ser humano considerado na sua
individualidade física ou espiritual, portador de qualidades tais como a racionalidade, a consciência de si, a
capacidade de agir conforme fins determinados e o discernimento de valores. Porém aqui o termo foi usado
referindo se ao caracol, pois esse possui uma clara personificação na obra analisada.
131
supor que o prédio em que o menino mora é o que tem maior destaque na cena. Ele possui a
porta aberta e uma de suas janelas está com a luz acessa. O que nos leva a pensar que se
trata do quarto do menino. Será que ele ainda está no quarto? O que vemos é a imaginação
do garoto?
Em O caminho do caracol predominam os planos mais amplos, do plano médio ao
plano de conjunto e deste ao panorâmico. Descrevendo cenários que enfatizam a
profundidade, tanto pelo enquadramento e pelo ângulo de visão como por distorções.
Na página 8 há uma interessante geometrização dos planos. Ao fundo, centralizado
e sobre um chão semicircular, vê-se a cidade, fechada, muito cinzenta e solitária com
prédios ocupando quase todos os espaços. E entre os prédios há dez chaminés, seis delas
personificadas, movimentando-se e espalhando uma fumaça cinza que chega a incomodar
até mesmo o sol, que parece estar sufocado.
Porém, ocupando o primeiro plano, está o menino e o caracol. Vê-se que
diferentemente da circunferência que sustenta a cidade, os dois estão sobre uma
circunferência montanhosa, menos geometricamente certa, dando a idéia de algo mais
flexível, mais bucólico. Além isso, essa imagem é bastante antitética em relação as suas
cores e sensações. A cidade é cinzenta e possui uma atmosfera tensa, o caminho por onde
passam os personagens é colorido e possui uma atmosfera de liberdade, de sonho e de
expansão.
Na página 9, os dois, menino e caracol começam a descer a montanha e as cores se
tornam ainda mais vibrantes. Aparecem pela primeira vez, alguns insetos com rostos de
seres humanos, lembrando os desenhos infantis onde predomina a personificação da
maioria dos seres inanimados ou animais. Além disso, também pela primeira vez, aparece a
cor verde, que se faz presente nas folhas dos vegetais, morada dos insetos coloridos.
No caminho percorrido pelo caracol e pelo menino há cenas diurnas e noturnas, esta
se faz presente na página 10. Nessa ilustração há claramente uma divisão: do meio para
cima, a lua crescente, rodeada por muitas estrelas. Do meio para baixo, as montanhas, os
dois personagens e um lago, muito redondo e grande, tão grande que suas bordas ficam
quase invisíveis e nele, devido à limpidez de suas águas pode-se ver sete peixes nadando
(FIG. 36).
132
FIGURA 32- Ilustração de Helena Alexandrino
Fonte: ALEXANDRINO, 1998, p. 10.
A presente ilustração é bastante poética e metalingüística, tendo em vista que as
estrelas e a lua que ocupam o espaço no céu estão claramente refletidas e ocupando o
espaço na água, e é como se os peixes brincassem entre elas, algo que seria impossível se
não fosse pela força da “ilustração” refletida ou da imaginação do narrador/ ilustrador ou
até mesmo pelo próprio processo de criação do menino, visto que tudo que está sendo
mostrado pode ser fruto de sua fantasia.
Além disso, nessa ilustração se trabalha com elementos bastante significativos e
expressivos, como a lua que numa perspectiva simbólica significa renovação cíclica. Os
peixes, famosos como o primeiro símbolo de Cristo, as estrelas, guias, guardas e vigilantes
e a água, símbolo antigo e universal de pureza e da própria fonte da vida. Também nessa
ilustração, a água se faz espelho para o caracol, para as estrelas e para a lua, e num diálogo
com a literatura de Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas, o espelho pode simbolizar
uma porta mística para um mundo paralelo.
133
A página 11 mostra que a viagem continua42, desta vez com chuva e nuvens escuras.
Nessa ilustração, de certa forma, joga-se com o leitor. Ela mostra a ele um veado, perto de
uma moita. Porém esse animal talvez não seja visto pelos personagens, já que eles estão do
outro lado da moita, diferentemente do ponto de vista do leitor, que pode ver o bichinho.
No livro O caminho do Caracol, há dezenove páginas inteiras, e entre elas, uma
página dupla, (páginas 12 e 13) isso já cria uma nova textualidade, do ponto de vista
quantitativo.
As ilustrações oscilam entre a descrição do espaço (com tendência para o
imaginário) e a composição de motivos naturais (com tendência para o deserto ou praia),
além de introduzirem vozes de outras culturas e épocas, por exemplo, têm-se as montanhas
com poucas vegetações formadas por caminhos de relevos e areias, caminhos interligados
por subidas e descidas sugerindo uma mandala ou um labirinto. O texto se metaforiza como
uma viagem pelo imaginário, e é ilustrado com o menino que caminha montado no caracol.
As ilustrações de Helena Alexandrino, não só apresentam uma narrativa, mas
dialogam com ela, por meio de uma plasticidade riquíssima. Este livro não pode ser visto
apenas como um livro mudo, mas deve ser visto como um discurso “narrativo-lírico-verbovisual”. Continuando a descrição, o texto-visual mostra a imagem de um menino e o
caracol vendo uma gigantesca concha, sob um céu estrelado, reafirmando a busca do
protagonista (ou talvez seja melhor dizer do narrador poético, para dar conta da presença
de traços líricos e narrativos): um mundo novo, colorido, diferente.
A cena tem caráter poético e lúdico.
Surge então uma dúvida: será que o caracol vai levar o menino até a concha? Ocorre
então um duplo movimento de aproximação e de distanciamento em relação ao real.
As conchas aludem à praia, e ao fundo se percebe que há um mar. Esse movimento
de aproximação ao real é contraposto por um movimento de distanciamento, criado pela
presença do menino que fica bem menor do que a concha e essa parece ser conotada como
um longínquo país de conto de fadas.
42
O livro gira a partir de um tema dominante- a viagem, o caminho-e suas variantes: travessias, movimentos,
surpresas.Vários grandes autores da literatura brasileira como Mário de Andrade (em Macunaíma) e
Guimarães Rosa (em Grande Sertão:Veredas) também simbolizaram a busca identitária através da recorrência
dos temas da viagem, das travessias.
134
Na página seguinte 14, o ilustrador mostra que o caracol deixou o menino perto da
concha e esse, agora sozinho, começou a subir pelos espirais que a concha possui em sua
arquitetura, nos remetendo ao processo espiralar de continuidade cíclica. Essa arquitetura
da concha traz também a idéia de labirinto, e tal conceito aqui é bastante pertinente, pois
fundamentalmente, o labirinto nos remete ao entrecruzamento de caminhos, um lugar de
busca. O labirinto, neste caso, pode representar a complexidade da imaginação humana.
Cada pessoa, criança ou adulto, tem um labirinto por onde caminha. Quando dois
indivíduos, no caso o menino e o caracol, iniciaram uma relação de busca pela beleza e pela
liberdade, houve um entrecruzamento de caminhos: dois labirintos, o da realidade e o da
imaginação, disjuntos se transformam em um, provavelmente mais complexo.
É prosaico ligar a figura do labirinto a um lugar de provação. No caso, esse
labirinto, que é feito do encontro da realidade com a fantasia, será o local onde o menino e
caracol, terão de buscar “algo” juntos. Se se transpassar a fronteira do seu próprio labirinto
de realidade é difícil, imagine transpassar-se num labirinto que é fruto de um cruzamento
com a fantasia e, provavelmente, mais complexo. Essa busca lembra as viagens iniciatórias.
Percebemos que o objetivo do caracol é fazer com que o menino atinja o centro, a unidade
representada pela fusão dos caminhos/ labirintos da fantasia e da realidade. Para alcançar
esse objetivo, é necessário que os dois percorram “o caminho” e se qualifiquem,
enfrentando e vencendo provas, uma espécie de metáfora das provações que o
autoconhecimento traz.
Nas páginas seguintes 15 e 16, a ilustração mostra o menino, e conseqüentemente
conduz o leitor, a ir observando os animais que começaram a surgir pelo caminho.
Inicialmente são poucos, mas ao virar a página (16) eles se multiplicam, juntando-se a
flores e folhas. Até mesmo uma baleia nada no mar que aparece ao fundo, trazendo muita
beleza ao peregrino e reafirmando sua busca. Essa ilustração pode expressar também o
desejo do menino de encontrar um espaço que seja formado de coisas belas, de céu
estrelado, de mar, ou seja: de poesia. E a conotação de uma criança que ensina ao leitor a
ver a poesia que está no mundo, tem uma longa tradição literária, inclusive com presença
no modernismo brasileiro, por exemplo, em Oswald de Andrade (1990), e no português, em
Fernando Pessoa, no poema VIII da série O Guardador de Rebanhos, do heterônimo
Alberto Caeiro (PESSOA, 1994, p. 52-57).
135
A ilustração da p. 17 mostra que o menino chegou ao cume da concha, esta com
diferentes formatos, bastante estilizado e explorando certo gosto ornamental, por meio da
repetição, alternância e contraste de linhas, formas e cores (FIG. 37).
FIGURA 37- Ilustração de Helena Alexandrino
Fonte: ALEXANDRINO, 1998, p. 17.
Além desses motivos, que convergem para os significados conotativos da ilustração,
aparece um grande caramujo idoso, com feições humanas, e com uma cartola de mágico. O
tamanho do caramujo poderia conotar ameaça, mas ele apresenta um olhar amoroso, além
disso, em sua volta, há vários objetos girando no ar, sugere-se, assim, que se trata de uma
divindade que se alegra com a magia.
Nesse referido cume da concha, num centro circular luminoso, há uma
efervescência de luz. Essa luz, possivelmente, simboliza o desabrochar de um ser pela sua
elevação. Auferir luz é ser aceito na iniciação, fazer parte daquele grupo que ama e que tem
o amor realizado, o que significaria uma evolução. A luz simboliza constantemente a vida,
136
a salvação, a felicidade, um convite para embarcar na unidade, para compartilhar de sua
misteriosa energia e para identificar, de certo modo, a alma do iniciado não apenas a alma
do mundo, mas também a própria natureza da divindade. Essa celebração divina é
representada nas cores, nos desenhos, no movimento das estrelas. Existe na ilustração, uma
inundação de cores. E a flor, que posteriormente será a referência da criança ao imaginário,
pode simbolizar a realização das possibilidades latentes (CHEVALIER & GHEERBRANT
1997: 190, 570-571, 954).
Na ilustração, a cena é noturna, alimentando ainda mais a idéia de sonho. Porém,
apesar esta imagem apresentar essa cena noturna, com estrelas e lua, a referida luz que
propaga no cenário não é, possivelmente, advinda da noite, mas sim do dia, ou seja, do sol
devido à intensidade da luz. Dessa forma, se intui que há uma hierogamia (união do sol
com a lua, o dia com a noite) na cena. Em relação a esse casamento, é interessante observar
a idéia de Jung sobre a hierogamia. Ele expõe que, apesar de o sol ser um símbolo da fonte
da vida e da totalidade definitiva do homem, na sua opinião, a totalidade real só pode ser
representada pela coniunctio do Sol e da Lua, como Rei e Rainha (CIRLOT, 1984, p.537).
Isto é, a totalidade do ser, o sentimento de unidade está relacionado à presença do outro,
daquele que o completa, da outra metade.
Ao virar a página, já se observa que o menino se aproximou do sorridente caramujo,
este lhe ofertou, uma singela flor plantada em um vaso.
Na seqüência, pág 19, já aparece o menino novamente montado no seu caracol,
levando o vaso de flor na mão e ao fundo mostra a concha, já distante dos viajantes, mas
trazendo à lembrança do leitor um castelo de contos de fadas.
É interessante pensarmos o quanto a metáfora da casa está presente no texto,
inicialmente pelo apartamento onde mora o menino, depois pelo personagem do caracol
que é popularmente lembrado por “levar a casa nas costas”. O caminho que os viajantes
fazem os leva a uma casa/ concha onde habitam vários animais e um ser bastante místico, o
caramujo. E por fim a história se encerra no apartamento do menino. Esse tipo de espaço,
como se refere o antropólogo Roberto DaMatta, (1997, p.54), é marcado pela familiaridade
e hospitalidade perpétua que tipificam aquilo que chamamos de “amor”, “carinho” e
“consideração”. Do mesmo modo, “estar em casa”, ou “sentir-se em casa”, fala de situações
onde as relações são harmoniosas e as disputas devem ser evitadas. Na história há uma
137
idéia bastante interessante, pois no início do livro o menino se sentia muito mal na sua
moradia, porém ao vivenciar experiências positivas em relação a “casas” ele faz uma
“viagem” de volta ao Lar, mas agora sendo visto como um lugar bom.
O filósofo francês Gaston Bachelard fez a análise do que
denominou “poética do espaço”. O interior de uma casa, disse, adquire
um sentido de intimidade, segredo e segurança, real ou imaginário, por
causa das experiências que parecem ser apropriadas para tal espaço. O
espaço objetivo de uma casa – seus cantos, corredores, porão, quartos – é
muito menos importante do que está poeticamente dotado, que costuma
ser uma qualidade com um valor imaginativo e figurativo que podemos
nomear e sentir (...) (SAID, 2001, p.65).
As três últimas páginas finalizam a história e a narrativa/ imagética dialoga com o
início da história. É como uma suposta volta à realidade, o menino se encontra novamente
na janela, mas dessa vez com o vaso de flor ao seu lado, assemelhando-se com a ilustração
da página 3, isso indica uma ação continuada no passado43. Essa ação estende-se por um
“zoom” que é dado no vaso de flor. A página 21 mostra apenas o vaso de flor e um pedaço
da vidraça e na última página, 22, está a flor, mais nítida e sete pequenos caracóis
habitando a mesma, dando à história uma idéia de que sempre haverá uma solução mágica/
ficcional/ imaginativa para os problemas mais complicados da condição humana como: a
solidão, a falta de liberdade, as maldades.
Pode-se compreender que há na história O Caminho do Caracol um diálogo
metalingüístico, uma “viagem paralela”, tanto do leitor quanto do menino. Observa-se que
a ficção objetiva os fatos e as verdades que não podem ser expressos pela razão, que não
são identificados pela lógica, e é por isso que as histórias são tão importantes. Elas fazem
construir situações novas que possam vir a favorecer na luta pelos objetivos.
Nesse ponto abre-se uma oportunidade para revermos algo que se mostra como um
importante conceito que acompanha a emergência do presente estudo: o imaginário. Por
imaginário entende-se que seja um sistema de idéias e imagens de representação coletiva
que os homens, em todos os momentos da história humana, elaboraram para si, dando
sentido ao mundo. Esse sistema de representações nos remete a construção de um mundo
paralelo que se constrói sobre a realidade, como foi o caso da viagem virtual do menino. O
imaginário também perpassa pela história, isto é, em cada período histórico, as pessoas
43
A idéia de volta a realidade a partir de uma experiência imaginária a ser tratada aqui sugere um retorno ao
centro do ser humano, que sacraliza seu próprio eu ao vivenciar situações simbólicas.
138
constroem representações para dar sentido ao real. Essas representações são abrangentes e
podem ser expressas de várias formas como através de imagens, ritos, cores. O imaginário é
uma forma de organização do mundo, conferindo-lhe sentido ontológico (PESAVENTO,
2004, p.43).
Neste capítulo, a partir de um olhar transdisciplinar, buscamos enfatizar a ilustração
do livro infantil, em que são constantes as possibilidades semânticas. Ao mesmo tempo em
que evidência a habilidade dos ilustradores em jogar com signos, mostra-nos, através das
intertextualidades, uma perspectiva capaz de ampliar e aprofundar a idéia de hibridação.
A interpretação do livro Aviãozinho de Papel, serviu de base para as reflexões
acima, nele vimos uma linguagem marcada pela heterogenia, uma coexistência de vozes,
onde cada unidade observada não se anulava, ao contrário, se complexizava.
Em O Caminho do Caracol, direcionamos nossas observações para a grande
capacidade narrativa das ilustrações. Através desse livro pudemos aludir a questões ligadas
à problemática da vida urbana na contemporaneidade, a relação ficção e realidade, a poesia,
a liberdade, a metáforas da casa, da viagem e também ao imaginário.
Há quem entenda o imaginário como um meio de realidade, e que é impreciso
demais separar o mundo do real e do imaginário. Nesse caso, todos os livros infantis
apresentados, podem se vistos pela perspectiva da leitura imaginária por apresentarem uma
busca real de organização do espírito humano. Os livros assinalam formas de pensar e
representar o mundo real. No caso do O Caminho do Caracol aborda a questão da realidade
transcendente, em De Morte!, há a idéia do além, da morte, em O Menino mais Bonito do
Mundo e Aviãozinho de Papel, há uma atualização das origens, a alteridade, a unidade.
Estes temas são recorrentes ao longo da historiografia e fazem parte do imaginário.
139
Considerações finais
No mesmo espaço em que se cria o brincar se inscreve a fantasia, e floresce a
literatura infantil. A dimensão artística da literatura infantil sustenta a metáfora do texto
como tapeçaria, que aponta para um intrincado projeto, para um avesso que esconde outros
desenhos e relevos. O livro infantil se tece com fios que procedem do simbólico, do
imaginário e dos (des)caminhos do “real”.
Falar do livro infantil é simbolizá-lo, é fazer o gesto de representá-lo noutro lugar,
fazendo dele seu próprio duplo. Ele se desdobra a cada interpretação, a cada olhar e
também de onde se olha. Significa criar um mundo diverso e edificado na e pela linguagem,
no qual, através dos jogos polissêmicos e intertextuais se enredam as narrativas.
Nele, o autor e ilustrador delegam voz a figuras que se representam como seres reais
ou imaginários e inseridas em situações reais ou imaginárias, numa encenação em que o
leitor entra por meio de um pacto de verossimilhança, cabendo-lhe marcar o texto com seu
olhar. Ao convocar seu “horizonte de expectativa”, combinação de experiência, leituras,
informações e fantasias, o texto permite, ao sujeito que se apropria, a possibilidade de
reorganizá-lo e reescrevê-lo.
Ao percorrer essa floresta, o leitor pode atravessá-la insensível às suas belezas,
perder-se ou optar por permanecer nela, explorando seus encantos e mistérios. A leitura de
cada um segue sua própria trilha, porque não existe um só itinerário. Assim nos ocorreu
com os livros estudados, principalmente com os quatro livros que tiveram uma
interpretação mais aprofundada.
Neles, o ponto alto não são as “lições”, mas o fluir da imaginação enquanto
processo de uma trajetória marcada pelo lúdico, pela alteridade, pelas cores. Em função
disso, fizemos recortes, juntamos fragmentos para tentar compor imagens que pareciam
implícitas nas narrativas. Viramo-las do avesso para olhar os “desenhos escondidos”,
puxamos os fios da urdidura e desmanchamos a superfície discursiva para captarmos um
subtexto, formado pelo não dito.
Nesse trabalho, em busca de tesouros escondidos, os livros infantis nos levaram
para além da fruição. Ao acrescentar várias referências a outros livros, autores, misturando
140
linguagens, os autores e ilustradores provocam uma espécie de ultrapassagem de fronteiras,
que tem um papel fundamental: funciona como um meio poético para ampliar as
possibilidades de leitura da obra. Dessa forma, perpassando pelas idéias de Edgar Morin
(2004), pressupomos que o livro infantil pode ser considerado como um objeto complexo,
ou seja, nele há um grande número de unidades interagindo entre si de modo imprevisível,
assim, o todo não se define pelo somatório das partes, mas pela configuração que o sistema
possui num determinado momento a partir do olhar dirigido ao mesmo.
No primeiro capítulo conduzimos nossa reflexão a partir de um estudo do lugar do
livro infantil na sociedade brasileira até a década de 1990. Nessa trajetória, rastreamos
livros diversos. Notamos a significativa participação que a literatura infantil teve na
formação histórico-social e educacional brasileira. Ao analisarmos as obras em seus
respectivos contextos, destacamos aquelas que, de acordo com certos critérios, inovam a
produção pela abordagem feita a respeito de determinados temas e pela qualidade literária
alcançada. Um ponto alto nessa trajetória foram os livros que traziam contestações políticas
contra a ditadura como o Reizinho Mandão (1978) de Ruth Rocha.
A construção textual, nos permitiu trabalhar também as funções das linguagens
verbal e ilustrativa, desvendando a capacidade dos recursos lingüísticos de concretizar
funções que podem conter num livro infantil. Inicialmente retomamos Jakobson,
assegurando as funções das mensagens verbais e suas diferentes hierarquizações. Após nos
apropriamos dos estudos de Luís Camargo que trabalha o trânsito das funções verbais para
as funções da ilustração. Dessa forma sugerimos onze funções diferentes e as
exemplificamos com ilustrações de livros infantis, levando nos a ampliar nosso olhar para
uma interpretação mais rica. Pois pode facilitar a análise das relações entre as linguagens
verbal e ilustrativa.
Nesse capítulo vimos também que no plano da recepção, o leitor reinventa, altera,
muda um livro infantil. Formata o discurso, distorcendo sentidos e atribuindo novos. Um
texto está sujeito à construção de múltiplos sentidos, por meio da leitura (PESAVENTO,
2004, p.61). E escapa completamente ao controle ou previsões significativas do livro
infantil, submetendo-o a desvios semânticos e imprevistos pragmáticos. As formas de
apropriações dos livros pelo leitor indicam a consciência de que a possibilidade de leitura
se dá por um processo de aprendizado particular, de que resultam competências muito
141
diferentes. Cada leitor, a partir de suas próprias referências, individuais ou sociais,
históricas ou existenciais, dá um sentido mais ou menos singular ou compartilhado, aos
textos de que se apropria (CHARTIER, 1999 p.12, 13 e 20).
Nessa linha enfatizamos o processo de leitura do livro infantil não somente como
uma operação abstrata intelectual, ela é uma inscrição num espaço, uma relação consigo e
com os outros. Quer se trate de um gibi ou de Clarice Lispector, o texto só tem sentido
graças a seus leitores; transforma-se juntamente com eles, direcionam conforme as
percepções que lhe escapam. O texto se faz texto somente no diálogo e do jogo com o
leitor: “que organiza um espaço legível (uma literalidade) e a que organiza uma démarche
necessária para a efetuação da obra (uma leitura)” (CERTEAU, 2003, p.266).
No Capítulo II, buscamos adentrar ao conceito de intertextualidade. Sua importância
se dá por ser uma maneira de abrir o texto, termo usado por Compagnon (1999, p.111). A
intertextualidade é usada no decorrer da pesquisa também como sinônimo de “dialogismo”,
“citacionismo” ou “intertexto”.
Foi Julia Kristeva que compôs o termo “intertextualidade” ao refletir sobre os
trabalhos de Mikhail Bakhtin. Para ela todo texto se constrói como um mosaico de citações,
todo texto é uma absorção e transformação de um outro texto, uma estrutura complexa de
vozes, uma co-presença entre dois ou vários textos, pela presença de um texto num outro.
A intertextualidade é o mecanismo próprio para a leitura literária.
Somente ela, na verdade, produz a significância, enquanto a leitura
linear, comum aos textos literário e não literário, não produz senão o
sentido (COMPAGNON, 1999, p.113).
A intertextualidade dos livros infantis analisados está calcada no dialogismo, ou
seja, nas relações que os textos escritos ou as ilustrações mantêm com outros textos escritos
ou outras imagens44.
Na escolha dos livros que foram analisados: De Morte!(1992) e O Menino mais
Bonito do Mundo (1994) no segundo capítulo e Aviãozinho de Papel (2004) e O Caminho
do Caracol (1998) no terceiro capítulo; consideramos a idéia de intertextualidade como a
principal característica para a seleção.
44
Em relação ao conceito de intertextualidade, intuímos que o dialogismo que existe entre as ilustrações dos
livros infantis com as artes plásticas é, de certo modo, uma forma de hibridação.
142
O livro infantil De Morte!, escrito e ilustrado por Angela Lago, conta a história de
um Velho que, com sua astúcia consegue enganar a Morte, o Diabo e depois de muito
aprontar ainda vai para o céu.
Angela Lago acrescenta à narrativa principal histórias paralelas, citações
antropofágicas, dobraduras, jogos com o receptor, funde linguagens escrita e ilustrativa e
subverte a imagem da Morte e do Diabo. Porém a intertextualidade mais explícita está na
apropriação das obras de Dürer nas ilustrações. Essa apropriação enriquece a obra em si
mesma ao estabelecer liames entre as imagens de Dürer e a ilustração e, dessa forma,
constitui uma nova rede num universo narrativo e textual acrescentado de novos caminhos.
O Menino mais Bonito do Mundo, escrito por Ziraldo e ilustrado por Sami Mattar e
Apoena Horta45, é um livro que se destaca pelos caminhos interpretativos que a obra
conduz. A história produz um diálogo com o livro Gênese da Bíblia e com a obra de
Botticelli O Nascimento de Vênus.
O livro nos conta a história de um menino que ao acordar ouve dos elementos da
natureza o quanto ele é bonito. No decorrer da narrativa ele transforma-se em homem e
sente que algo lhe faltava. Assim, ao amanhecer sente uma dor bem abaixo da costela e no
mesmo instante, viu a figura de uma mulher que lhe disse o quanto ele era bonito.
No último tópico do segundo capítulo propomos uma reflexão sobre a
caracterização do livro infantil como obra literária. Os principais teóricos em que nos
apoiamos para essa ponderação foram Compagnon (1999) e André Mendes (2007). Para
ambos, o objeto literário e artístico é aquele que extrapola o lingüístico, produz pluralidade
comunicativa e concretiza-se no estranhamento. Dessa forma concluímos que o livro
infantil se encaixa nas características citadas.
No terceiro e último capítulo analisamos o livro Aviãozinho de Papel do ilustrador e
escritor Ricardo Azevedo. Esse livro conta a história de um aviãozinho de papel que foi
lançado pela janela. Em seu percurso ele vive várias situações, inclusive uma queda, porém,
supera as dificuldades e chega ao seu objetivo. Pousa sobre uma flor e uma moça lê o que
havia escrito na folha de papel, ou seja, no aviãozinho.
45
Sami Mattar é um pintor nascido no Líbano e Apoena Horta, carioca, quando ilustrou o livro tinha 9 anos e
cursava a 3ª série.
143
As ilustrações desse livro sofrem uma clara influência do surrealismo de Magritte e
a enunciação verbal também é aparentemente caótica e lírica. Ricardo Azevedo
intertextualizou de tal forma com a ilustração de Magritte que formou um todo indivisível,
cada linguagem se alimentando do potencial poético do outro. Além dessa intertextualidade
temos também uma alusão ao poeta Carlos Drummond de Andrade, pois as ilustrações
apresentam uma pedra no meio do caminho.
Em O Caminho do Caracol de Helena Alexandrino há uma ausência de texto
escrito, ou seja, a história é narrada pelas ilustrações. Trata-se de um livro muito rico, em
que a ilustração adquire um papel relevante na estruturação da narrativa.
O livro, através das ilustrações, conta a história de um menino que morava em um
prédio. Um dia ele recebe a visita de um caracol então o menino e o caracol iniciam uma
viagem. Após vivenciarem diversas situações líricas, chegam à casa de um caramujo. Esse
dá ao menino um vaso de flor, o menino volta para seu quarto e observa o vaso,
reconhecendo nele a morada de vários caracóis.
Neste livro discutimos, além da intertextualidade, a narrativa feita pela ilustração.
Cores, traços, luz e sombra, as composições, as dimensões e os significados que esses
elementos possuem.
Tratamos também das diversas características da ilustração. Concluímos que nesse
universo ficcional alguns lingüistas propõem um duplo conceito de texto, um restrito, outro
amplo. O primeiro refere-se a um conjunto organizado de signos verbais; o segundo, a um
conjunto organizado de qualquer tipo de signos (FÁVERO; KOCH, 1994, p. 25). É nesse
sentido amplo que podemos falar de texto visual.
O signo visual é classificado geralmente como icônico, isto é, haveria certa
semelhança (iconicidade) entre o signo e o que ele representa; por exemplo, entre as
pinceladas verdes e azuis sobre uma folha de papel, reproduzidas nas páginas de um livro, e
as colinas que compõe o fundo. Já o signo verbal é classificado como símbolo: a relação
entre o signo e o que ele representa é arbitrária, convencional, cultural. Por exemplo, a
relação entre a palavra caderno e o objeto que essa palavra nomeia.
O signo visual também pode simbolizar, ou seja, significados arbitrários,
convencionais e culturais podem ser agregados a ilustrações. Em Aviãozinho de Papel
(AZEVEDO, 2004, p.22) embora a escrita não mencione, o leitor poderia inferir que -
144
metaforicamente, há um encontro erótico entre a flor e o aviãozinho, no momento que ele
pousa sobre ela.
Este exemplo é bastante singelo, mas a história da arte está cheia de exemplos. Não
podemos dizer que a ilustração só imita, só copia, só representa, só descreve ou narra; a
ilustração também pode simbolizar. Isso significa que a ilustração pode ser vista como
também ser interpretada, em outras palavras, que a ilustração pode ser lida.
Já vimos que palavras evocam imagens; por outro lado, imagens podem evocar
palavras. Além disso, imagens evocam imagens, assim como palavras evocam palavras. Tal
como a leitura da palavra depende do conhecimento de mundo e do conhecimento
lingüístico, a leitura da ilustração também depende do conhecimento de mundo e do
conhecimento da linguagem visual. Isso significa que não basta somente ver, é preciso
aprender a ver, o que supõe várias formas de aprendizado ou de mediação. Mais um
argumento para pensarmos na ilustração como texto visual, pois, assim como o texto
verbal, o texto visual também exige uma espécie de alfabetização – ou, se quiser,
letramento – visual.
As reflexões acima nos apontam para a importância que a escola assume neste
contexto.
Sabemos que a escola, mais do que a família é por excelência o ambiente em que o
livro infantil se faz presente de forma acentuada. Observamos que, de um modo geral, os
atores educacionais têm uma formação mais sólida em literatura do que em artes plásticas
desta forma, os textos escritos são mais valorizados do que os desenhos. Acredita-se
mesmo que as ilustrações são meros enfeites e que se dedicar a observar também as
ilustrações, assim como o texto, é uma mera curiosidade pessoal (AZEVEDO, 1997).
Ricardo Azevedo (1997), em suas pesquisas, verifica também, que ao perguntar a
vários professores, quantos escritores eles conhecem, ele ouviu uma lista de nomes, tanto
antigos, quantos atuais e, ao perguntar sobre ilustradores, desenhistas e/ou artistas plásticos,
muitos não sabiam citar nem mesmo um nome.
Estas atitudes demonstram a pouca importância dada às ilustrações, quando os
livros infantis estão sendo utilizados em sala de aula.
Além disso, podemos observar que há a dificuldade, por parte dos professores, em
discernir quais ilustrações são de “boa qualidade”, se existe diálogo com as mensagens do
145
texto, e se as ilustrações acrescentam outros significados ao texto. Cotejando a sociedade
voltada a uma forma de espetacularização, os educadores valorizam muito mais um
desenho rebuscado, construído a partir de uma técnica requintadíssima, que em relação ao
texto só consegue ser redundante e desvalorizam desenhos feitos com poucos traços, sem
maiores pretensões técnicas, mas que no universo textual acrescentam novas mensagens
significativas ao texto.
Muitas vezes as escolas demarcam um condicionamento do leitor ao “gosto” pela
imagem figurativa, próxima da fotografia, com cores bem realistas e exuberantes, deixando
de valorizar as imagens caricaturadas, humorísticas, metafóricas, líricas, abstratas,
geométricas, que podem trazer uma carga maior de significação artística ao livro.
A maneira pela qual usualmente a escola aborda as ilustrações corresponde
geralmente a figuratividade e à formação do leitor. Em suma, os educadores, em geral, têm
tratado o livro ilustrado de maneira não crítica e há uma busca da comparação entre a
imagem e a realidade que ela representa.
Muitas vezes, o educador pouco se preocupa com “a relação sintática entre as
imagens e muito menos na sintaxe palavra-imagem visual; é como se os livros estivessem
formados apenas por gravuras independentes, com a função exclusiva de figurar o real”
(REVISTA LETRAS, 2000). Esta postura minimiza o potencial de sentido que a imagem
visual traz ao livro, pois enquanto forma artística, deveria possibilitar ao leitor experiências
estéticas.
A educação para a imagem, principalmente para a imagem produzida pelo homem é
fundamental. Até mesmo para favorecer uma cultura crítica problematizante e reflexiva.
Para Bosi (1989, p.23) a maior parte de informações que o ser humano recebe vem de
imagens. O homem e a mulher contemporâneos são quase que absolutamente visuais, a
relação do olho com o cérebro é íntima, estrutural. O sistema nervoso central e os órgãos
visuais externos estão ligados pelos nervos óticos de tal sorte que a estrutura celular da
retina nada mais é que uma expansão diferenciada da estrutura celular do cérebro.
Ainda em relação à reflexão sobre a aprendizagem das imagens, afirma Ana Mae
Barbosa (2001 p.34): “Este mundo está cada vez mais sendo dominado pela imagem. Há
uma pesquisa na França mostrando que 82% da nossa aprendizagem informal se faz através
da imagem e 55% desta aprendizagem é feita inconscientemente”. Trabalhar as ilustrações
146
dos livros infantis e seus textos, de forma crítica, contextualizada e até mesmo prática46,
leva ao desenvolvimento da capacidade criadora, flexibilidade, fluência, elaboração e
outros processos mentais envolvidos na criatividade e no ato de decodificação da imagem,
segundo a autora.
É do conhecimento de muitos estudiosos que o livro infantil teve, na sua gênese,
uma clara relação com o didatismo e o pedagogismo, na medida em que ele era considerado
como um importante instrumento de formação humana, ética, estética, política. Entretanto
por trás desse discurso, havia uma grande intenção de fazer do livro infantil apenas mais
uma ferramenta para passar valores burgueses e conteúdos escolares que nada tinham de
artísticos e não levavam os alunos, ao pensamento metafórico e epistemológico.
É importante pensarmos que assim como no passado do livro infantil, hoje ainda ele
é usado, muitas vezes, de forma inadequada pelos atores educacionais, ou seja, “a literatura
infantil tem sido inadequadamente escolarizada, erroneamente escolarizada; discutindo
isso, implicitamente se está apontando como ela poderia ser adequadamente escolarizada”
(SOARES, 1999, p.22).
Magda Soares entende que a “escolarização” do livro infantil é uma forma de
apropriação da literatura para atender a fins educativos. Contudo, o que poderia tornar-se
positiva nesta apropriação, seria encaminhar eficazmente as práticas de leitura literária que
acontecem no contexto social e as atitudes e valores próprios do ideal de leitor que se busca
formar. O negativo é deturpar, falsificar, distorcer a literatura, causando um distanciamento
do aluno das práticas de leitura literária, desenvolvendo nele aversão ao livro e ao ato de
ler. Entretanto, compete ao educador a missão de descobrir como realizar, de maneira
adequada, o inevitável trabalho com o livro: texto e ilustrações.
Uma proposta pedagógica de uso apropriado do livro infantil, exposto por Vera
Teixeira Aguiar (2001, p.24), tem como apoio à sociologia da leitura, enquanto recorte
teórico que se dedica a analisar as questões do livro e seus mediadores sociais. A sociologia
da leitura aborda a descrição e a análise das questões externas à leitura, com os
condicionamentos que determinam a permanência ou não de um livro na sociedade, com os
fatores que influenciam na valoração dos textos, com os meios de aproximação dos leitores
46
Aqui se faz referência à metodologia triangular, elaborada pela autora Ana Mae Barbosa (2001), para o
ensino de Artes. Tal metodologia é composta por três pilares fundamentais: o contextualizar, o conhecer e o
fazer artes.
147
aos livros, com os juízos que fazem, com as histórias individuais e coletivas de leitura.
Assim, se pode ter um diagnóstico dos interesses, das motivações para a leitura, das reações
diante dos textos, dos lugares sociais e culturais que ocupam, das influências que exercem,
isto é, de todos os meios externos de seu processo de formação.
Outro apoio pedagógico apontado pela autora estaria na estética da recepção, que
aponta os entrecruzamentos do leitor e do texto à luz da estética, das questões morais,
sociais, religiosas, econômicas, éticas, filosóficas. E estes entrecruzamentos, concretizamse na história das leituras, sempre diferentes a cada texto e a cada ilustração. Esta teoria
formula a concepção da arte literária centrada na atuação do leitor, atenta também para a
leitura enquanto atividade que dá existência e legitima a literatura.
Assim, a leitura acontece de forma ativa do leitor sobre o livro, trazendo para o
universo da leitura possibilidades novas de sentido, que colocam em cheque suas verdades,
conduzindo-o a uma reestruturação. Logo se vê que a função do trabalho com livros
literários, e seus respectivos elementos, é fortemente educativa.
Contudo conclui-se que existe um inegável vínculo da escola e a literatura infantil,
mesmo por que seu “pecado original” foi ser usada para “educar” no sentido moralizante do
termo. A escola é o lugar de “consagração do status quo” (CADERMATORI, 1995, p.18),
e busca, na maioria das vezes, garantir a permanência do já estabelecido. Porém a literatura
infantil, através do seu caráter literário busca uma reelaboração dos preconceitos, das visões
de mundo e assim torna-se um meio de ordenação das experiências existenciais das
crianças. A efetiva experiência com livros infantis pode levar à formação de novos padrões
críticos.
Intuímos que ao conviver com a leitura de livros infantis, além de ler com mais
fluência e adquirir maiores informações, a criança terá novas possibilidades “existenciais,
sociais, políticas e educacionais” (CADERMATORI, 1995, p. 20). Contribuindo
potencialmente para ser um meio de emancipação.
Esta pesquisa não tem pretensão de esgotar as idéias contidas nos livros analisados,
ou as reflexões que essas obras estimularam. Ativemo-nos a determinados aspectos e fomos
arbitrários (como todo leitor) em nossa seleção.
Interessamo-nos pela história do livro infantil no Brasil, pelas funções das
linguagens, pelos conceitos de leitor, livro e literatura infantil, pela intertextualidade, pela
148
interpretação de quatro livros e pela ilustração. E com relação a isso, fizemos um estudo
aprofundado, procurando destacar aspectos que nos pareceram importantes.
Tendo em vista que as características do nosso mestrado são atravessadas pelo
prisma da contemporaneidade e da transdisciplinaridade buscamos levar nossas
investigações através dessa perspectiva. Graças ao olhar transdisciplinar, sobre o livro
infantil, pudemos recusar a visão direta e unilateral do mesmo. Colocamos em contato
disciplinas como a história, a literatura, a semiótica na tentativa de uma compenetração,
transfiguração e formação de um novo campo. Edgar Morin (2004, p.42; 94), pondera que
no decorrer dos anos escolares, nossa educação nos ensinou a separar, compartimentar,
isolar e, não unir os conhecimentos. Portanto, torna-se, muitas vezes, tarefa difícil ‘ler’
palavras e ilustrações sem privilegiar uma linguagem a outra. Buscamos então, fugir dessa
visão fragmentada, pois ela nos tira a possibilidade de compreender, que significa
apreender em conjunto, abraçar junto os textos, os contextos, as partes e o todo, o múltiplo
e o uno.
Na tentativa de compreensão do nosso objeto, consideramos, nessa pesquisa,
pertinente apontar os livros infantis como objetos complexos. Ou seja, possuem elementos
diferentes, inseparáveis que constituem um todo (MORIN, 2004). Os elementos diferentes
que buscamos analisar foram: as ilustrações, as palavras, as imagens advindas das artes
plásticas, que em ação mútua interagiram sobre o todo e o todo interagia sobre as partes.
Logo, a partir desses jogos de hibridação propostos, graças a um prisma
transdisciplinar, visualizamos uma imagem literária que nos permite finalizar essa pesquisa
mostrando como ocorrem essas interseções de várias vozes. Como no misterioso imaginário
de O Menino mais Bonito do Mundo (ZIRALDO, 1994), a partir de cujo milenar
(re)nascimento, o olhar do menino se desdobra, as “vozes” narradoras do livro deambulam
pelo sem-fim de portos de palavras e ilustrações. Na singularidade de cada ‘voz’ e de cada
perspectiva a se mesclar no campo intersubjetivo das palavras e ilustrações, reverbera a
coexistência de poesia, de cores, de luz, de sombras, de sons e de silêncios.
Puxando novos fios da trama, trilhando novos caminhos, concluímos que muito
ainda pode ser dito, até porque a literatura infantil é um manancial de intuições e
informações sobre nosso ser e estar no mundo contemporâneo.
149
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