HEGEL Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart

Transcrição

HEGEL Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart
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HEGEL
Marcos Kammer1
Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart, Alemanha, em
1771. Filho de funcionário público, sua família propiciou-lhe condições
tranqüilas para desenvolver os estudos ao longo de sua vida. Apaixonado
desde a infância pelos clássicos gregos, estudou filosofia e teologia na
Universidade de Tubingen onde conheceu figuras que também se tornaram
importantes no âmbito da cultura alemã: Hölderlin e Schelling, com os quais
celebrou os ideais revolucionários da França de 1789, plantando uma árvore
em nome da liberdade. Concluída sua formação acadêmica, foi preceptor em
Berna, Suiça, e, posteriormente, em Jena, Alemanha, tornando-se professor
livre-docente e professor extraordinário. É por esta data, em 1806, que Hegel
depara-se com Napoleão fazendo reconhecimento de suas conquistas do
campo de batalha e deslumbra-se com sua imponente figura heróica – síntese
e expressão dos novos tempos que viriam se impor por toda Europa. Seu maior
sucesso acadêmico foi obtido como professor na Universidade de Berlim a
partir de 1818, onde passou a ter forte expressão no pensamento cultural,
vindo a ser conhecido como o filósofo oficial da Alemanha daquela época. É,
também nesta cidade, que viria a falecer de cólera no ano de 1831.
Hegel produziu uma obra intelectual muito vasta e fecunda desde a
juventude. Suas principais obras são: a Fenomenologia do Espírito (1807); A
Ciência da Lógica (1812-1816), A Enciclopédia das Ciências Filosóficas em
compêndio (1817 reeditada em 1827 1830) e Os Princípios da Filosofia do
Direito (1821). Outras obras editadas postumamente, pelos seus discípulos,
foram as Lições Sobre A Filosofia Da História, Estética, Lições de Filosofia da
Religião e Lições sobre a História da Filosofia.
Principais comentadores do pensamento político hegeliano no Brasil:
Tadeu Weber, Denis Rosenfield, Hans-Geog Flickinger, Marcos Müller.
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Marcos Kammer é mestre em filosofia pela PUCRS - Pontifícia Universidade Católica de
Porto Alegre e professor do Instituto Superior de Filosofia na Universidade Católica de Pelotas,
UCPel.
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DIREITO, MORAL E ESTADO EM HEGEL
“A história... não é palco da felicidade. Períodos de
felicidade são como páginas em branco da História” (Hegel:
Filosofia da História)
“A realidade social, com a competição generalizada, o
egoísmo e a exploração, com sua riqueza e pobreza
excessivas, é a base sobre a qual a razão tem de construir. A
filosofia não pode saltar a história, pois que é filha do seu
tempo, do ‘seu tempo apreendido pelo pensamento’”.
(Marcuse, 1988: 199-200)
É muito comum nos atirarmos criticamente à filosofia hegeliana em
função do suposto idealismo de sua obra e de sua produção intelectual. Com a
idéia de idealismo quer-se afirmar, além de uma distância, um equivoco
filosófico na compreensão teórica e metodológica (elementos internamente
imbricados) da realidade. A realidade segundo esta perspectiva idealista, seria
compreendida e tomada não por suas relações reais, complexas, mas antes
por suas idéias ou pelo entendimento meramente conceitual que dizemos ser
expressão dela, sem que antes coloquemos em questão o próprio ponto de
vista sobre o qual falamos e suas origens materiais. Isto é, tomamos as idéias
pelo mundo antes de tomarmos o mundo e dele derivarmos e compreendermos
o porquê são geridas algumas de suas idéias.
Obviamente estas questões não são simples. Mas, no caso de Hegel e
da recepção de sua obra, significa que trocamos muito facilmente a análise da
obra pela crítica já pronta de um suposto e reduzido idealismo. Ou seja,
acabamos presumindo um suposto idealismo que não nos permite mais avaliálo no que essa produção, dita idealista, construiu.
Essa observação inicial deve-se ao fato de descuidarmos muito
facilmente das próprias interdependências que se fizeram entre o pensamento
idealista hegeliano e seus críticos marxistas posteriores, por exemplo, que,
pelo sabor ideológico dessa disputa, acabam desmerecendo as formulações
muito particulares colocadas nessa relação, encerrando o entendimento da
crítica, muitas vezes, apenas por ela mesma.
Por esta perspectiva, tomaremos aqui imediatamente outro caminho
para uma apresentação do pensamento de Hegel, tentando fugir das críticas
comumente realizadas. Tomaremos, muito particularmente, o caminho da
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apresentação mais elaborada de seu pensamento político, sua Filosofia do
Direito, livro de 1821, a fim de que, para além do suposto idealismo, possamos
conhecer um pouco melhor os termos de sua formulação.
Escrito no momento em que Hegel já é conhecido como filósofo oficial
do Estado Prussiano, a Filosofia do Direito é uma obra única para
compreendermos os fundamentos da sociedade liberal moderna, frente aos
destinos produzidos pela Revolução Francesa de 1789 e sua emancipação da
ordem feudal. Em sintonia com seu tempo, a filosofia política de Hegel
pretenderá dar conta de um propósito fundamental e decisivo da revolução:
organizar a compreensão de uma sociedade que se imporá afirmando um novo
princípio de universalidade para a idéia de liberdade e igualdade entre os
indivíduos.
A afirmação deste princípio ordenador da vida social, ou seja, de que
todos são igualmente livres, deveria nortear, agora, as mais diferentes esferas
da institucionalidade desta nova sociedade. O objetivo dessa trama é ordenar
construtivamente sua racionalidade interna, em seu desdobramento, visando à
totalidade dessa nova organização da vida societária e sua compreensão.
Ora, por onde expressar esse princípio afirmativo da liberdade
universal? Hegel o introduz afirmando a vontade humana como princípio
fundador da sociedade liberal. Por esta vontade, segundo Hegel, somos todos
já imediatamente livres, somos todos portadores de vontade e por ela
expressamos a forma mais particular e imediata do caráter universal de nossa
humanidade. A universalidade desta vontade afirma nossa igualdade originária.
Três são as esferas dialéticas em que esta mesma vontade se
desdobrará rumo a sua realização universal: no direito, chamado por Hegel de
Direito Abstrato – momento da tese ou da aparência da realização imediata da
liberdade –; na Moralidade – instância mediadora desse processo, momento
auto-reflexivo –; e, por fim, na Eticidade – expressão final da realização
conceitual daquela universalidade. Cada uma dessas instâncias corresponde a
uma dada divisão da obra de Hegel e, no seu avanço, apontam o grau de
complexidade a que esta vontade estará sujeita no caminho de sua possível
realização individual e coletiva.
O DIREITO ABSTRATO
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A afirmação mais imediata, mais simples, menos complexa, é a
afirmação positiva do que afirmamos cotidianamente de nossos direitos, de
nossas vontades. Por essa positividade, somos todos portadores de direitos
pelos quais expressamos nossa vontade sobre o mundo material que nos cerca
e que a sociedade moderna, em sua ideologia, concretiza como manifestação
primária
de
nossas
individualidades.
Por
essas
vontades,
em
sua
manifestação, entramos na lógica do mundo liberal e afirmamos o princípio
fundamental de sermos portadores de direito, colocando-nos, desde o
nascimento (ou mesmo até antes dele), como uma pessoa de direito.
Se nossa vontade é expressão primeira de nossa liberdade, ela,
contudo, não é algo vazio e que se basta em si mesma metafisicamente.
Assim, nossas vontades não se realizam apenas na aspiração interna de nossa
subjetividade. Elas alcançam e se dirigem diretamente para o mundo material
do que está a nossa frente visando possuí-lo, visando tê-lo como objeto de
nossa realização. A vontade desdobra aqui sua figura na forma de posse. O
mundo das vontades dirige-se para o reino da posse e nela se objetiva como
expressão mais simples da vontade universalizada dos homens. Contudo, não
estamos no mundo sozinhos. A vontade não é apenas minha vontade.
Encontramos–nos confrontados com uma infinidade de vontades, nas quais
minha posse precisa encontrar sua realização em meio às múltiplas vontades,
igualmente desejosas de sua realização. O resultado desse processo de
apropriação só se concretiza na forma do reconhecimento recíproco da posse,
na forma do contrato, figura central da sociedade liberal moderna.
Aqui, ainda em nosso início, alguns elementos da apresentação
hegeliana são fundamentais para compreendermos a lógica do caminho da
universalização da liberdade na sociedade moderna. Para que a forma
particular dessa universalização efetivamente se realize, será preciso que dois
elementos sejam aqui considerados. O primeiro, será o da abstração da
quantidade material que os diferentes indivíduos possam possuir, isto é: para
que a universalidade da liberdade se constitua, será preciso que não se leve
em conta justamente as diferentes quantidades de propriedade que os
indivíduos possam ter.
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“A distribuição da propriedade constitui algo meramente
circunstancial e acidental, para Hegel. É racional que todos
tenham propriedade, mas a quantidade e a qualidade da
propriedade de cada um é acidental. Os homens são iguais,
diz Hegel, somente enquanto pessoas, quer dizer, todo
homem deveria ter propriedade (conferir Filosofia do Direito,
& 49, Zus.), mas o quanto possui, aqui não entra em jogo.
Ter em princípio, propriedade, é necessário, mas a
quantidade dessa propriedade é contingente.” (Weber,1993:
67).
Será que compreendemos a sutileza da expressão?
O segundo elemento universalizador da liberdade é o que entra na
composição dos contratos. Para que os contratos se viabilizem, são as
qualidades dos objetos contratados que são agora abstraídas. Isto é,
“a coisa e a sua qualidade não entram em jogo, mas apenas
a vontade livre das pessoas. (...) Posso, por exemplo, querer
trocar meu carro novo por um de menor valor. Uma
reclamação posterior deverá considerar se houve
consciência e livre consentimento; a qualidade da coisa é
secundária. A liberdade das vontades contratantes é
fundamental para a validade do contrato. As vontades livres
são, portanto, pressupostas.” (Weber,1993:71)
Portanto, são as vontades que fazem referência ao ser contratado, não
esse ser ou seu conteúdo. O objeto do contrato é assim dessacralizado. O
resultado
desta
abstração
pertinente
aos
contratos,
se
percebermos
atentamente, é o que em última instância permite que possamos fazer
contratos de quase tudo em nossa sociedade, inclusive de nossos próprios
trabalhos abstraídos na forma do dinheiro, seja ele na quantidade que for.
Como podemos ver, o significado desse processo afirma uma questão
interessante para o sentido da realização da liberdade em nossa sociedade,
qual seja: sua realização só é pertinente à correlata abstração da base material
(isto é: das quantidades e qualidades do que está implicado no jogo contratual)
em que essa mesma liberdade se realiza. Sem ela, não poderíamos
propriamente falar em universalização da liberdade. Outro detalhe: o processo
de afirmação da liberdade universal só é pensado a partir da afirmação das
vontades originárias dos indivíduos. Se lermos isso pelo seu reverso, pelo que
se esconde do outro lado da moeda, isto é, de supostas e possíveis vontades
alienadas, vemos que estas, em hipótese alguma entrariam no jogo da
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“universalidade” da idéia da liberdade na sociedade moderna. Em outros
termos: o processo de universalização da liberdade só se dispõe aos que
podem afirmar suas vontades livremente e na forma de sua abstração.
Qualquer afirmação da materialidade da condição dessa mesma liberdade
anularia a possibilidade de efetivarmos a universalidade e os termos dessa
idéia de liberdade.
Recapitulando as figuras projetadas acima desta série, teríamos o
seguinte: vontade, posse, propriedade e contrato. Mas seu desdobramento não
pára aí. A seqüência desse processo é algo que, mesmo parecendo
inicialmente estranho, começará a fazer sentido ao compreendermos os limites
das considerações sobre o direito abstrato. Para Hegel, a seqüência desse
processo é a sempre possível forma da injustiça, ou a violação da afirmação da
vontade livre, ainda que contratada. E para não ficarmos muito teóricos para
compreendermos isso, é só observarmos a quantidade de contratos
cotidianamente descontratados e não respeitados nos termos inicialmente
previstos.
Situada a possibilidade da injustiça, Hegel a especifica em três níveis: a
injustiça de boa fé (parecerá inicialmente também estranho que uma injustiça
assim se defina, mas sua explicação se tornará posteriormente coerente), a
fraude, a violência e o delito. A primeira, a injustiça de boa fé, agora
explicando, é aquela praticada de forma involuntária, sem que tenhamos tido a
má-fé de praticá-la contra a vontade de um terceiro. É propriamente o que
fazemos contra a vontade de alguém de forma absolutamente involuntária. Por
outro lado, a fraude se constitui pelo seu grau mais intenso de lesão. Aqui, o
engano é provocado e aquele que produziu a injustiça o fez de forma
voluntária. Por último, a violência e o delito são a forma mais intensa de lesar a
vontade alheia. Aqui, se quer ser injusto e “não há o reconhecimento do direito
do outro, pois consiste na intenção direta de ferir a liberdade de alguém”.
(Weber, 1993: 78).
Correlatos à injustiça, quando violados os direitos pressupostos à livre
manifestação das vontades, situam-se os castigos e as penalidades como
formas de serem reconstituídos e fortalecidos o pacto entre os indivíduos e sua
racionalidade. Por outra parte, e no contrapé dos mesmos castigos e
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penalidades, deve a justiça, para que a vontade dos indivíduos seja respeitada,
libertar-se dos interesses e das formas subjetivas de julgamento.
Ao fim e ao cabo, o direito abstrato realiza a primeira medida de uma
série de direitos do Direito Civil liberal, inscrevendo um conjunto de preceitos
que regulam as condições dos contratos e sua legitimidade, mesmo que seu
fim seja posto e desdobrado, na análise de Hegel, nas formas da injustiça que
ocorrem em nossa sociedade. Contudo, isto tem uma intenção clara para
Hegel, qual seja: a de que não são apenas as formas do direito abstrato que
podem viabilizar, por si, a afirmação da vontade livre dos homens, a qual, muito
antes do direito, é fruto do que está para além dele e que Hegel situará em dois
novos níveis de sua dialética: a Moralidade e a Eticidade. Nas palavras de
Hegel: a injustiça denotaria apenas aquilo que ainda deveria ser concretizado
para além das formas aparentes do direito. Entramos, a partir daqui, na
instância da moralidade. Mas, antes, só para brincarmos um pouco com as
conseqüências disso, seria muito salutar que estudantes de direito pudessem
apreender isso no decorrer de suas formações, entendendo que as leis não se
sustentam apenas por si mesmas.
A MORALIDADE
Como falamos, o direito, em sua abstração, em sua imediatez ou
formalidade, não é suficiente para dar conta da relação interpessoal e do jogo
manifesto dos interesses das múltiplas vontades dos indivíduos. Para
explicarmos isso, é só nos perguntarmos, por exemplo, pelo seguinte: pode
uma relação contratual entre patrões e empregados se sustentar apenas pelo
formalismo do contrato, sem nenhuma outra espécie de vínculo pressuposto
entre eles? Obviamente você veria que tal formalismo é insustentável sem a
vigência de critérios, princípios ou entendimentos subjetivos sob os quais se
pautam a formação e o caráter destas pessoas, agora analisados e refletidos,
segundo Hegel, como sujeitos da moralidade.
Portanto, este segundo momento ou momento reflexivo da dialética da
liberdade,
volta-se
para
universalização da liberdade.
os
aspectos
subjetivos
da
realização
da
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“A moralidade representa a internalização do princípio da
liberdade a ser respeitado em relação a todo agir social. A
moralidade como reflexividade é uma garantia da
universalidade da liberdade. A idéia da moralidade traz
consigo a idéia do reconhecimento de cada um como
‘sujeito’”. (Weber,1993: 79-80)
Mas, como considerar os termos dessa universalização da liberdade, a
partir do ponto de vista de sermos agora sujeitos?
Para Hegel, a universalidade da liberdade só pode se afirmar pela
seguinte perspectiva:
“Cada um deve reconhecer, através da liberdade do outro
o princípio que ele quer para si próprio. Isso significa o
reconhecimento da liberdade como universal. (...) A
moralidade implica o reconhecimento de todos como
‘sujeitos’, assim como o direito indica a aceitação de todos
como ‘pessoas’. O reconhecimento da mesma subjetividade
dos outros significa o reconhecimento da vontade de todos”.
(Weber,1993: 80)
Se conhecermos o imperativo categórico de Kant, em sua Crítica da
Razão Prática: “Age de forma tal que o motivo que te levou a agir possa ser
convertido em lei universal” (Pensadores, Kant, XVI), veríamos como Hegel
dele se aproxima quando sugere a proposição acima do reconhecimento da
forma da liberdade aqui proposta.
Pois bem, qual a moral efetivamente viva numa sociedade que queira
ordenar o princípio de que todos sejam livres? Quais critérios subjetivos e
pessoais podemos prever para nossas ações?
Para Hegel, a idéia de que todos sejamos livres implica reconhecer a
condição de que todos, indistintamente, sejamos também sujeitos de nossa
moralidade, isto é, sujeitos da responsabilidade de nossa ação e propósitos.
Hegel denomina isto de “direito da vontade subjetiva”. Por este direito, a
sociedade liberal formula o direito pessoal de cada um poder afirmar seus
próprios fins naquilo que realiza de sua vida. Esse é um direito decisivo e
fundamental em relação às sociedades precedentes ao liberalismo, já que
dimensiona, claramente, a particularidade da forma de vida moderna que
introjeta, na vivência particular de cada pessoa, a responsabilização frente ao
seu próprio mundo e ao que dele vier fazer. Isto é, ao custo desse direito, nos
tornamos unicamente responsáveis por nós mesmos. Somos nós agora que
temos que querer alguma coisa de nós. Contudo, isto não quer dizer que
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possamos querer tudo, mesmo porque só somos sujeitos na medida do
reconhecimento dos outros como sujeitos desse mesmo direito.
Neste sentido, já que a sociedade liberal institui a idéia de que por
nossas vontades somos todos livres e que isso constitui um direito inalienável
expresso no direito da vontade subjetiva, então essa mesma sociedade não
pode mais ditar o que as pessoas poderão fazer ou não de si mesmas. Por isto,
esta regulação se voltará para o que é negativo, isto é, para o que, na
intermediação das relações interpessoais, atente contra esse mesmo direito
dos indivíduos. O direito se voltará para as condições dessa responsabilização.
Hegel, então, se perguntará sobre estas condições:
“Pode alguém assumir a responsabilidade ou ser
responsabilizado por um ato que não quis cometer e de
cujas conseqüências não teve nenhuma intenção? A
Resposta de Hegel: Quem não sabe e não quer
propositadamente cometer algum delito, não pode ser
responsabilizado pelo que faz” (Weber, 1993:81).
Portanto, a ação passível de responsabilidade é a que faço de propósito
sabendo dos seus efeitos.
Como agora só posso ser responsabilizado pelo que propositadamente
faço e sei de suas conseqüências, não posso ser responsabilizado por aquilo
que o Direito não prescreve em suas leis e normas, isto é, fico
desresponsabilizado de tudo aquilo que não está incluído no próprio direito. “Só
pode tornar-se conteúdo de responsabilidade de cada pessoa aquilo que o
direito prevê e impõe” (Weber, 1993: 83). Por isso, também, cumprir o que o
direito prescreve é já todo o agir moral. Com isso, Hegel faz coincidir aquilo que
poderá ser amplamente vivenciado em nossa sociedade; qual seja, a
coincidência entre moralidade e legalidade. É nessa perspectiva que podemos
entender como condutas ditas morais podem se restringir ao campo
meramente legal sem que possamos fazer nenhum apelo para além do amparo
legal. Só como exemplo, podemos nos referir aqui a uma situação bem
representativa disso: o exemplo vem do valor do salário mínimo. Todos
sabemos dos apelos morais para ampliá-lo, de sua injustiça, de seu
desrespeito para com os trabalhadores, mas nenhum destes argumentos
obtém alguma justificativa diante dos limites de caixa pelos quais se
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argumentam e “justificam” seu valor. Assim sendo, mesmo que não estejamos
presos a estes limites de caixa, ninguém nos poderá julgar por nossa suposta
imoralidade, desde que estejamos dentro das regras prescritas pelo que a lei
regula. Isto é, em nossa sociedade, ser moral é poder estar preso ao
estritamente legal, desresponsabilizando-me por tudo aquilo que a lei me
assegura. E isto vale basicamente para tudo. Um outro exemplo dessa
conseqüência é eu poder me desfazer do trabalho de um empregado em uma
situação de crise em minha empresa, sem que tenha que sequer cogitar o que
advirá para esta pessoa do problema do desemprego. Desde que estejamos
quites com as regras do jogo instituídas, tudo o mais é um problema que não
preciso efetivamente ponderar. Em relação à moralidade, elas são questões
sempre privadas.
Para Hegel, o direito da vontade subjetiva deveria ainda regular o
alcance da ação dos sujeitos, não só pelos seus propósitos, mas também pela
intenção e conseqüência do que pode decorrer de seus atos sobre o bem-estar
dos outros, isto é, de que a realização pessoal não é alheia àquilo que temos
que considerar de sua realização também com os outros. Mas, como podemos
inferir dos próprios limites sob os quais a sociedade liberal pode se afirmar, de
forma apenas negativa no trato do direito da vontade subjetiva, resta que ela
não pode oferecer nenhum critério último para o agir humano. Resta que,
desde que não atentemos contra a liberdade alheia, a sociedade liberal
moderna acabe por ter que permitir quase tudo, afirmando suas regras na
própria privatização de sua moralidade.
Neste sentido, a impossibilidade de uma fundamentação última do agir
moral dos homens, decorrido do direito da vontade subjetiva, nos remete a um
nível superior e diferenciado do que a sociedade pode constituir de suas regras
e princípios de sociabilidade. Por isto, para além do campo da moralidade, para
além da questão meramente particular de cada um, temos que ir agora para o
campo que Hegel chamou de eticidade.
MORALIDADE OBJETIVA OU ETICIDADE
Como podemos observar, Hegel não esgota em nenhum dos momentos
anteriores, seja no direito abstrato, seja na moralidade, as possibilidades
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realizadas da vontade livre. Há algo sempre a desdobrar. Igualmente para a
moralidade: sua efetividade só poderá ser concretizada na síntese de sua
própria construção histórica, vivenciada na cultura e no processo de sua
institucionalização.
Para Hegel, o campo da ética, ou mais propriamente o campo da
eticidade, é o campo da vivência moral efetiva, isto é, do que uma sociedade
constitui de sua própria cultura de valores e costumes, de seu ethos. Hegel o
define como sendo a realização do “Espírito do Povo”, no qual cada um de nós
afirma uma relação moral com o todo, ao mesmo tempo em que também o
constrói e é parte do que vive moralmente desse todo, como participação e
formação de sua individualidade no conjunto, por nós aprendido, do mundo da
cultura em suas instituições. Nesse sentido, a eticidade, a moral efetivamente
realizada em uma sociedade, é algo vivo, dinâmico e se realiza não por aquilo
que cada um quer apenas por si e para si. Pelo contrário, a moralidade
objetivada se constitui no que este conjunto de pessoas constrói interagindo,
disputando e participando da vida social como membros de uma determinada
comunidade, na qual esses valores são afirmados. Comunidade que assim se
designa, por sua particularidade histórica, por conta do que internamente
pautou e objetivou, muito além da simples moral individual, do conjunto de
princípios objetivado por esta comunidade em sua cultura e em suas
instituições. Em outros termos, a questão da eticidade situa um passo a mais
para os limites da moralidade privada. Ou seja, segundo Hegel, a moralidade
só é moralidade por conta do conjunto de valores que uma sociedade afirmou
para si em seu processo histórico-cultural de institucionalização de seus
costumes na forma da racionalidade particular de um povo. A moral, como algo
subjetivo, não tem valor algum se não se realizar socialmente segundo uma
cultura determinada de valores. Diz-se normalmente que esta é a diferença
entre a moral pensada por Kant, que a colocou como uma prerrogativa
individual, e a proposição hegeliana. Para Hegel, não basta ter um conjunto de
princípios apenas em nossa cabeça se não estivermos dispostos a disputá-los
no convívio social com outros princípios igualmente legítimos.
Nesta perspectiva, e para além das considerações anteriores, em que os
indivíduos eram retratados como pessoas e sujeitos, nos tornamos agora
membros de uma comunidade eticamente situada, que Hegel agora analisará.
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“Toda a terceira parte da Filosofia do Direito pressupõe
que não exista nenhuma instituição objetiva que não esteja
fundada na vontade livre do sujeito, e nenhuma liberdade
subjetiva que não seja visível na ordem social objetiva.”
(Marcuse, 1988: 188)
Hegel situará esse desdobramento ético em três momentos decisivos:
na família, na sociedade civil e no Estado, do quais nos ocuparemos a seguir:
A família, para Hegel é berço originário da propriedade, do casamento,
dos filhos e de sua educação. É através da família que damos os primeiros
passos em direção à comunidade e ao conjunto de valores apreendidos e
vivenciados pela educação. Pela família ascendemos ao mundo da cultura de
valores vividos em uma sociedade. Através dela, aprendemos a compartilhar
um conjunto de valores que nos formarão para uma consciência e vontade
coletiva, preparando-nos para a convivência social. Não é difícil seguirmos a
lógica dessa formação e do papel originário que a família constitui para a
formação liberal como processo constitutivo de nossa educação. É aqui que
aprendemos a “ser por nós próprios” ou “fazermo-nos por nós mesmos”, como
vulgarmente falamos da ideologia introjetada. Para Hegel, esse papel decorre e
está diretamente ligado à forma originária da propriedade da terra e, por isso
mesmo, constitui seu berço original. Contudo, seu destino como família é
contingente, haja vista sua dissolução, dada pelo crescimento dos filhos e pela
necessidade de sua reprodução na constituição de novas famílias.
“A família tem sua ‘realidade exterior’ na propriedade,
mas a propriedade também destrói a família. As crianças
crescem e estabelecem com suas posses novas famílias
possuidoras de propriedades. A unidade ‘natural’ da família
fica, pois, partida em uma porção de grupos de proprietários
em competição, proprietários que visam essencialmente
seus interesses egoísticos particulares.” (Marcuse, 1988:
190-191)
Da família, como fundamento natural da ordem social, partimos agora
para o que imediatamente se impõe para além dela, qual seja: para um
conjunto de indivíduos emancipados de suas famílias que buscam a satisfação
de seus interesses pessoais na sociedade civil.
“A dissolução da família significa o aparecimento de
pessoas independentes e reconhecidas como tais pela sua
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maioridade, bem como de uma multiplicidade de novas
famílias a serem constituídas. A inter-relação se faz então
necessária para a realização de interesses e satisfação das
necessidades. Compete à sociedade civil constituir a
mediação social da liberdade” (Weber, 1993:114)
Portanto,
do
conjunto
de
indivíduos
provenientes
das
famílias
dissolvidas, surge agora um conjunto de vontades e interesses de indivíduos
querendo realizar sua satisfação. Estamos no seio da sociedade civil que Hegel
denominou hobesianamente como “o campo de batalha do interesse privado
individual de todos contra todos” (Conferir Filosofia do Direito, &289). Esse
campo de batalha é o campo da satisfação das necessidades dos indivíduos.
“A sociedade civil é constituída a partir de todo um
conjunto de necessidades dos indivíduos. São as diferenças
existentes entre os seus membros que provocam essa
multiplicidade de necessidades. A sua satisfação implica
uma relação de dependência universal. A ‘forma da
universalidade’ requer que a satisfação de minhas
necessidades inclua a satisfação das necessidades de todos
os outros. Ao mesmo tempo em que os outros são meios
para a satisfação de minhas necessidades sou o meio para
a satisfação das necessidades dos outros. É nesse sentido
que o particular se torna universal, pois a realização dos
indivíduos inclui, necessariamente, a sua objetivação. É uma
concepção falsa a de o indivíduo ser livre, na medida em
que satisfaz as suas necessidades no estado natural
(imediato), sustenta Hegel. As necessidades imediatas ou
naturais só podem ser satisfeitas enquanto unidas às
necessidades
sociais.
Nessa
interdependência
e
reciprocidade na satisfação das necessidades, o ‘egoísmo
subjetivo se transforma em contribuição à satisfação das
necessidades dos demais’ (Filosofia do Direito, &199). O
movimento dialético entre o particular e o universal, pensa
Hegel, faz com que, cada um, ao ganhar e produzir para si,
ganhe e produza, automaticamente, para todos. Constitui-se,
dessa forma, a participação de cada um no patrimônio
geral”. (Weber, 1993: 118-119).
Como vemos, é na apropriação da fórmula de Adam Smith – de que o
egoísmo privado vai ao encontro da satisfação do progresso coletivo – que
Hegel reencontra um caminho para definir a dimensão da sociedade liberal
moderna. Ao se constituir em campo de batalha de todos contra todos, a
sociedade civil se torna o campo da afirmação da própria interdependência
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entre os indivíduos, pelas necessidades que coletivamente temos que
sustentar e realizar por essa mesma interdependência.
Contudo, resta ainda descrever que o indivíduo é, também, neste
momento da análise Hegeliana, parte constitutiva de uma classe social
determinada, na qual se assentará a segunda base fundamental do Estado.
Por conta da tríade de elementos sob a qual o sentido dessa sociedade se
instaura, são três as classes: a classe substancial ou imediata, constituída pela
agricultura, por aqueles que trabalham diretamente com os produtos naturais
do solo; b) a classe reflexiva ou formal, que é responsável por sua subsistência
a partir do próprio trabalho e da reflexão: é a classe industrial que constitui o
núcleo central da sociedade civil. Segundo Hegel, esta classe é a classe
intermediária, a classe das mediações. Por fim, a classe universal, aqui ainda
não referida, mas que se ocupa “dos interesses gerais da situação social”
(Filosofia do Direito, &205) e que formará a burocracia estatal cujo interesse
pessoal deverá estar à serviço da coletividade.
Para Hegel, a diferença entre os indivíduos está assentada na diferença
de habilidades tida como natural e fazem, por sua vez, a diferença na
desigualdade da quantidade dos patrimônios.
Posta estas diferenças e a definição sobre as classes sociais, Hegel
situa ainda um elemento decisivo para a transição entre a sociedade e o
Estado, as corporações. As corporações são a primeira mediação rumo à
universalidade da realização dos interesses que situam a disputa interna da
sociedade civil, tomada como campo de batalha entre os indivíduos em sua
busca pela satisfação de seus interesses particulares.
As corporações são expressão da complexificação dos diferentes jogos
de interesse existentes dentro de uma sociedade internamente em luta pela
afirmação de suas necessidades e sua reprodução. São também resultado da
crescente divisão de trabalho instaurada dentro da sociedade civil.
“O que caracteriza a sociedade civil é sua multiplicação
constante em novas particularidades. Nela ocorre uma
divisão de trabalho de forma cada vez mais complexa, em
diferentes ramos. As corporações são organizações ou
determinações surgidas a partir dessa divisão de trabalho e
do que há de comum nas diferentes atividades particulares.
De acordo com suas habilidades específicas, o indivíduo
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chega a ser membro da organização, que, segundo Hegel,
visa a defender os interesses comuns (Weber,1993:129).
Por isso, elas são, “acima de tudo, um instrumento ideológico, uma
entidade que exorta o indivíduo a trabalhar por um ideal desprovido de
existência, a finalidade não egoística do todo”.(Marcuse,1988:198). Mas, se as
corporações são a expressão mais organizada dos jogos de interesses
existentes dentro da sociedade, elas ainda não são a expressão da
universalidade a que o reino da liberdade deve efetivamente afirmar. Pelo
contrário. Sua própria atividade deve ser regulada pela instância superior, pelo
Estado.
Portanto, acima das corporações, coloca-se agora como centro da
atividade política, o Estado. “O estado é um sujeito no sentido estrito da
palavra, isto é, o estado é o instrumento e o fim real das ações de todos os
indivíduos que, agora, se colocam sob ‘leis e princípios universais’” (Marcuse,
1988:198) e que ao que se diz, pretende ser a forma viva pela qual os
interesses privados chegam ao seu grau de universalidade na forma dos
interesses comuns da coletividade.
Por conta disso e da expectativa de afirmação da liberdade que havia
sido a tônica do desenvolvimento da exposição hegeliana do desdobramento
do espírito liberal moderno, fica imediatamente ainda a pergunta: como seria
possível conciliar o livre jogo de interesses privados com o interesse coletivo da
própria comunidade em que estes interesses e disputas se encontram? Ou
perguntado de outra forma, como harmonizar os interesses pessoais e o jogo
egoístico da sociedade civil com os interesses da ordem pública?
Para Hegel, essa possibilidade fica transparente a partir da leitura do
parágrafo 155, de sua Filosofia do Direito: “Nessa identidade da vontade
universal e da vontade particular, coincidem o dever e o direito; por meio do
ético, os homens têm direitos, na medida em que têm deveres e deveres na
medida em que têm direitos”. Precisando: temos direitos na medida em que
temos deveres e deveres, na medida de termos direitos. Por esta medida,
considerada como afirmação da vontade livre dos indivíduos, não podemos
prescindir nem de direitos, nem de deveres. Não há como termos apenas
direitos ou apenas deveres. Se não tivermos direitos, não temos por que ter
16
deveres, justamente porque só o homem livre pode ter deveres e por eles se
responsabilizar.
Esta relação de interdependência entre direitos e deveres repõe a
questão acima da coincidência entre os interesses particulares e o interesse
coletivo. O estado não pode exigir nada além daquilo que o direito prescreve
em relação aos cidadãos. A mesma relação se impõe no sentido inverso. Nesta
reciprocidade é que coincide o particular e o coletivo na forma da
universalidade ética que o estado se propõe a gerenciar e a afirmar através da
universalidade da lei e do estado-de-direito em que todo estado deve fundarse.
Por último, temos que, aqui, precisar um papel particular para a teoria do
estado que Hegel propõe, superando as posições dos filósofos contratualistas
que definiam o Estado como uma criação artificial derivada do contrato entre os
membros da sociedade civil. Para Hegel, o Estado não é mais resultado desse
contrato haja vista que, por esta perspectiva, ele seria uma instância qualquer
dessa sociedade e sua legitimidade não alcançaria as mediações necessárias
que incluem a vida ética processada no conjunto de princípios que a sociedade
constrói na afirmação coletiva de valores. O Estado não é um contrato ou seu
resultado. Pelo contrário, ele se torna seu garantidor, o princípio que dá
fundamento ao direito, e, portanto, garantidor do próprio contrato e de todas as
decorrências que foram construídas, tanto da apresentação do direito abstrato,
quanto aquelas afirmadas na moralidade com o direito da vontade subjetiva. O
Estado é princípio da vida social e de seus valores. Posto ao fim, ele desmente
a ilusão de que o direito e a moral possam ser dados apenas por si mesmos
sem suas devidas mediações nas instituições éticas que a sociedade, em sua
dinâmica, concretiza na forma que Hegel denominará ser o “espírito do povo”.
Mesmo porque, o direito e a moral vividos na forma da sociedade civil e
seu espírito tornam-se profundamente inconscientes de seu sentido e de suas
conseqüências, por aquilo que podemos nos desresponsabilizar em função da
satisfação de interesses privados. Talvez por isso compreendamos mais
exatamente a necessidade de Hegel ter colocado o Estado como a instância
racional daquilo que a sociedade liberal moderna, em sua suposta autonomia,
não poderá viver por si mesma, apenas na idéia do Estado, já que, em seu
17
fundamento, a sociedade civil só pode fazer referência ao livre jogo de
satisfação dos interesses privados.
OBSERVAÇÕES FINAIS
Ao longo da história de debates em torno da obra hegeliana, alguns o
acusaram de promover e defender o absolutismo alemão e ser irradiador
indireto do ideário do pensamento nazista do séc XX na forma do Estado
totalitário. Não parece ser este o caso. Outros, por óticas bem diversas e pelas
razões que também apresentamos, como por exemplo Weil e Marcuse,
analisam a obra hegeliana sob uma perspectiva radicalmente diferente, sob a
perspectiva do liberalismo que aqui também procuramos situar.
Contudo, e muito freqüentemente, a vulgarização da crítica feita a Hegel
não possibilita compreender mais diretamente a riqueza de sua apresentação e
de como a sociedade burguesa tramou sua lógica e sua ideologia na forma da
universalização da liberdade.
Nesse sentido, quando temos a oportunidade de tomar contato com as
figuras que tecem a ordem interna dessa dialética em seu processo, quando
vemos o desdobramento das figuras do direito abstrato, da moralidade e da
eticidade
mostrando
suas
determinações,
seus
encadeamentos
e
desdobramentos, podemos descobrir alguns importantes segredos que tramam
a eficácia do arsenal ideológico em que a sociedade burguesa se assenta.
Lidos a partir da crítica à sociedade burguesa podemos compor um conjunto
muito mais coerente do que supostamente imaginamos quando nos afixamos
apenas pelo sentido imediato de seu idealismo. Muito além da perspectiva de
uma simples totalidade em que figurariam internamente vários elementos
meramente dispersos, Hegel, na verdade, mostra a força de um conjunto de
conceitos organizados profundamente na vida moral e institucional da
sociedade. Seu entendimento é que poderá nos dar a medida da crítica da
forma particular com que a burguesia produziu e produz a idéia de liberdade.
Por conta disso, é que aqui recuperaremos brevemente alguns
elementos, que anteriormente expusemos, para dizer da apresentação
hegeliana e que achamos importantíssimos para precisar a estrutura e o
18
formato dos fundamentos da sociedade liberal e que, indiretamente, nos fazem
a medida do poder instituído e enraizado na vida dessa sociedade.
Pois bem. Recordemos brevemente alguns destes passos:
Primeiramente no direito abstrato. Aqui a vontade parece como
determinação primária, como princípio da universalização de que todos sejam
livres. Em seu contraponto, ficam esquecidas as vontades alienadas desse
processo e que, por conta disso, não mais podem entrar no jogo em que a
sociedade liberal se fundou. Poderíamos criticar este entendimento dizendo
que isso obviamente não seria mais universalização. Contudo, é isso mesmo. A
universalização só acontece por referência a esta positividade a que o próprio
direito pode afirmar deste princípio, não as condições que o tornam princípio
(Justamente porque, neste caso, não seria mais princípio). Em outros termos, o
direito só pode ter como elemento irradiador da vontade pressuposta, não sua
alienação. Brincando com seu resultado, é por isso que podemos entender
porque o direito não pode sair à cata de quem não afirmou sua vontade de
querer buscá-lo.
Na mesma seqüência de exposição ainda, a abstração da quantidade
como possibilidade de igualização das liberdades frente às diferenças entre os
indivíduos. Também a abstração da qualidade como elemento sob a qual
podemos efetuar contratos e vendermos de tudo um pouco em nossa
sociedade. Estes elementos serão fundamentais para legitimar os fundamentos
abstratos sob os quais se assentam as relações de trabalho, as relações
mercantis do trabalho e a propriedade na sociedade capitalista. Sem falar da
forma como são entendidas as diferenças entre os indivíduos, como algo
constituído por uma natureza originária, desfazendo propositadamente o
caráter histórico sobre o qual essas diferenças serão efetivamente constituídas.
Na moralidade: temos que lembrar aqui a possibilidade de como será
gerida a moral em nossa sociedade na forma da desresponsabilização dos
indivíduos por tudo aquilo que a lei não pode prever, dando conta da cultura
moral de nosso tempo, no sentido de podermos transformar a moral em algo
meramente legal, sem que tenhamos que ter nenhuma “culpa” por isso. Aqui
quero muito simplesmente não tecer maiores comentários eis que desejo evitar
ser moralista na questão. Quero apenas retratar esse campo de possibilidades,
em que a sociedade liberal acaba constituindo o conjunto das vidas privadas,
19
justamente por aquilo que ela, por força de sua razão interna, do que
afirmávamos do direito subjetivo, não pode apontar nenhuma referência última
para o que pudermos querer de nossas vidas (o que talvez, sob muitos
aspectos, seja profundamente razoável no que esta questão remete para seus
possíveis consensos).
Por fim, nossas referências à eticidade, campo que Hegel acaba por
constituir como síntese conceitual de tudo o que havia anteriormente sido
desdobrado. Acho que, na linha do que havíamos apontando, caberiam dois
pontos que, aqui também, confirmariam nossas observações. Uma, diz respeito
à sociedade civil e o que ela representa na inter-relação entre os indivíduos
quando se constitui como campo de batalha de todos contra todos que nada
mais é do que a confirmação do que é o mercado e a luta diária que travamos
a fim de nossa subsistência. A outra questão, diz da função do Estado em sua
relação com o caráter inconsciente que esta batalha da sociedade civil produz
em nossa sociedade. Hegel nos remete ao Estado, como suposta figura, que,
para além dessas competitividades, e portanto desse inconsciente, pudesse se
constituir como razão, sentido e garantia dessa mesma liberdade na forma da
reciprocidade entre deveres e direitos. Contudo, o que nos parece é que este
ordenamento não se propõe a resolver este inconsciente de uma sociedade em
luta, mas apenas assegurar a livre manifestação das vontades em seu direito,
em sua moral e em sua competição.
Portanto, tudo isso pode nos dar conta de como a liberdade na
sociedade liberal, em seu processo de abstração, nos remete às condições
mesmas da realização da sociedade capitalista na ordem dos fundamentos
egoísticos que esta sociedade organiza. Na mesma medida, podemos entender
agora como o aparato ideológico dessa sociedade, quando desvelado, pode
nos oferecer munições para sua compreensão, não apenas de sua ordem
espiritual, idealista, mas dos vínculos entre essa abstração da liberdade com
suas realizações na base material.
Sem querermos nenhum plágio, é sempre bom lermos Marx em sua
Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, segundo o qual “A filosofia alemã do
direito e do Estado é a única história alemã que está al pari com a época
moderna oficial”. Ou, de outra forma, ainda mais contundente:
20
“A crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, que
teve a mais lógica, profunda e complexa expressão em
Hegel, surge ao mesmo tempo como a análise crítica do
Estado moderno e da realidade a ele associada e como a
negação definitiva de todas as anteriores formas de
consciência na jurisprudência e política alemã, cuja
expressão mais distinta e mais geral, elevada ao nível de
ciência, é precisamente a filosofia especulativa do direito. Só
a Alemanha poderia produzir a filosofia especulativa do
direito - este pensamento extravagante e abstracto acerca
do Estado Moderno, cuja realidade permanece no além
(mesmo se este além fica apenas no outro lado do Reno) -,
o representante alemão do Estado moderno, pelo contrário,
que não toma em linha de conta o homem real, só foi
possível porque e na medida em que o próprio Estado
moderno não atribui importância ao homem real ou
unicamente satisfaz o homem total de maneira ilusória. Em
política os alemães pensaram o que as outras nações
fizeram. A Alemanha foi sua consciência teórica. (grifos de
Marx)” (Marx, s.d.:85).
Talvez, ao lermos Hegel possamos agora, ainda que com Marx,
desvendar um pouco mais a impossibilidade de acenarmos com a idéia do
homem concreto e os limites que cercam a trama ideológica da sociedade
liberal em sua forma de universalização da liberdade. Afinal, a sociedade liberal
moderna, na forma apresentada por Hegel, mostra ter, ao lado das proposições
que tentamos encadear, um objetivo certo e preciso: realizar a força concreta
do poder do Estado e do jogo egoístico que este Estado legitima do
ordenamento moral e jurídico das vontades presentes no reino de luta dos
interesses privados em disputa na sociedade civil.
Por esta conta, a dimensão concreta do homem fica ofuscada por aquilo
que o Estado só pode realizar abstratamente naquilo que os homens, ao
fazerem negócios privados, podem se tornar inconscientes do fim que realizam.
Esperamos, agora, ter analisado o idealismo hegeliano por outra
medida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FLICKINGER. Hans-Georg. Marx e Hegel: o porão de uma filosofia social.
Porto Alegre, LPM & CNPQ, 1986.
21
——. Hegel: A Lógica Ambígua da Revolução Francesa. In: RIBEIRO, Renato
JANINE (Org.) Sombra e Luzes. São Paulo, Edusp, 1989. p. 33-38.
HEGEL. Coleção os Pensadores. 3 ed. São Paulo, Abril Cultural, 1985.
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______. Principios de la Filosofía del Derecho: o Derecho Natural y Ciencia
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KAMMER, Marcos. A dinâmica do Trabalho Abstrato na sociedade moderna –
uma leitura a partir das barbas de Marx. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1998.
MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução: Hegel e o advento da teoria social. 4
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MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 2 ed. Brasil Editorial
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REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia, Vol III. São Paulo,
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WEIL, Eric. Filosofia Política. São Paulo, Loyola,1990.
WEBER, Tadeu. Hegel: Liberdade Estado e História.Petrópolis, RJ, Vozes,
1993
WEFFORT, Francisco C. Os Clássicos da Política. 9 ed. Vol. 2. São Paulo,
Ática, 1999.
22
EXTRATOS DA OBRA PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA DO DIREITO2
Prefácio
A atitude do sentimento ingênuo é simplesmente a de se limitar à
verdade publicamente reconhecida, com uma confiante convicção, e de, sobre
esta firme base, estabelecer a sua conduta e a sua própria vida. A esta atitude
simples desde logo se opõe a dificuldade que resulta da infinita diversidade de
opiniões, que não permite distinguir e determinar o que nelas poderá haver de
universalmente válido; facilmente se pode, no entanto, imaginar que esta
dificuldade, verdadeira e seriamente, provém da natureza das coisas. Mas, na
realidade, aqueles que julgam tirar partido desta dificuldade ficam na situação
de não ver a floresta por causa das árvores: estão em face de um obstáculo e
de uma dificuldade que eles mesmos ergueram. Mais ainda: tal obstáculo é a
prova de que o que pretenderam não é o que é reconhecido e válido
universalmente, não é a substância do direito e da moralidade objetiva. Pois se
disso verdadeiramente se tratasse, e não da vaidade e da individualidade da
sua opinião e do seu ser, não se afastariam do direito substancial, das regras
da moralidade objetiva e do Estado, e a elas conformariam suas vidas. Mas o
homem pensa e é no pensamento que procura a sua liberdade e princípio da
sua moralidade. Esse direito, por mais nobre e divino que seja, logo se
transforma em injustiça se o pensamento só a si mesmo reconhece e apenas
se sente livre quando se afasta dos valores universalmente reconhecidos,
imaginando descobrir algo que lhe seja próprio.
(....)
O que é racional é real e o que é real é racional
Esta é a convicção de toda consciência livre de preconceitos e dela
parte a filosofia tanto ao considerar o universo espiritual como o universo
natural. Quando a reflexão, o sentimento e em geral a consciência subjetiva de
qualquer modo consideram o presente como vão, o ultrapassam e querem
saber mais, caem no vazio e porque só no presente têm realidade, eles
mesmos são esse vazio.
2
Extraído de Hegel: Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino. São
23
(...)
É assim que esse nosso tratado sobre a ciência do Estado nada mais
quer representar senão uma tentativa para conceber o Estado como algo
racional em si. É um escrito filosófico e, portanto, nada mais lhe pode ser mais
alheio do que a construção ideal de um Estado como deve ser. Se nele está
contido uma lição, não se dirige ela ao Estado, mas antes ensina como o
Estado, que é o universo moral, deve ser conhecido: Hic Rhodus, hic saltus.
A missão da filosofia está em conceber o que é, porque o que é é a
razão. No que se refere aos indivíduos, cada um é filho do seu tempo; assim
também para a filosofia que, no pensamento, pensa o seu tempo. Tão grande
loucura é imaginar que uma filosofia ultrapassará o mundo contemporâneo
como acreditar que um indivíduo saltará para fora de seu tempo, transporá
Rhodus. Se uma teoria ultrapassar estes limites, se construir um mundo tal
como entenda dever ser, este mundo existe decerto, mas apenas na opinião,
que é um elemento insconsciente sempre pronto a adaptar-se a qualquer
forma.
Um pouco modificada, a fórmula expressiva seria esta:
Aqui esta a rosa, aqui vamos dançar.
O que há entre a razão como espírito consciente de si e a razão como
realidade dada, o que separa a primeira da segunda e a impede de se realizar
é o estar ela enleada na abstração sem que se liberte para atingir o conceito.
Introdução
1 – O objeto da ciência filosófica do direito é a Idéia do direito, quer
dizer, o conceito do direito e a sua realização.
Nota – Do que a filosofia se ocupa é de Idéias, não do conceito em
sentido restrito; mostra, pelo contrário, que este é parcial e inadequado,
revelando que o verdadeiro conceito (e não o que assim se denomina muitas
vezes e não passa de uma determinação abstrata do intelecto) é o único que
possui realidade justamente porque ele mesmo o assume. Toda realidade que
Paulo, Martins Fontes, 2000.
24
não for a realidade assumida pelo próprio conceito é existência passageira,
contingência exterior, opinião, aparência superficial, erro, ilusão, etc. A forma
concreta que o conceito a si mesmo se dá ao realizar-se está no conhecimento
do próprio conceito, o segundo momento distinto da sua forma de puro
conceito.
2 – A ciência do direito faz parte da filosofia. O seu objeto é, por
conseguinte, desenvolver, a partir do conceito, a Idéia, porquanto esta é a
razão do objeto, ou, o que é o mesmo, observar a evolução imanente própria
da matéria. Como parte da filosofia, tem um ponto de partida definido que é o
resultado e a verdade do que precede e do qual constitui aquilo a que se
chama prova. Quanto a sua gênese, o conceito do direito encontra-se portanto,
fora da ciência do direito. A sua dedução está aqui suposta e terá de ser aceita
como dado.
(....)
4 – O domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o
seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade
constitui a sua substância e o seu destino e o que o sistema do direito é o
império da liberdade realizada, o mudo do espírito produzido como uma
segunda natureza a partir de si mesmo.
33 – Segundo as fases do desenvolvimento da idéia da vontade livre em
si e para si, a vontade é:
a) Imediata. O seu conceito é portanto abstrato: a personalidade; e a sua
existência empírica é coisa exterior imediata, é o domínio do direito abstrato ou
formal;
b) A vontade que da existência exterior regressa a si é aquela
determinada como individualidade subjetiva em face do universal (sendo esta
em parte, como bem, interior, e em parte, como mundo dado, exterior), sendo
estes dois aspectos da idéia obtidos apenas um por intermédio do outro; é a
idéia dividida na sua existência particular, o direito da vontade subjetiva em
face do direito do universo e do direito da idéia que só em si existe ainda, é o
domínio da moralidade subjetiva;
25
c) Unidade e verdade destes dois fatores abstratos: a pensada idéia do
Bem realizada na vontade refletida sobre si e no mundo exterior, embora a
liberdade como substância exista não só como real e necessária mas ainda
como vontade subjetiva. É a idéia na sua existência universal em si e para si, é
a moralidade objetiva.
Por sua vez, a substância é simultaneamente:
a) Espírito natural, família;
b) Espírito dividido e fenomênico, sociedade civil;
c) O Estado como liberdade que, na livre autonomia de sua vontade
particular, tem tanto de universal como de objetiva; tal espírito orgânico e real
(a) de um povo torna-se real em ato e revela-se através (b) de relações entre
os diferentes espíritos nacionais (c) na história universal como espírito do
mundo cujo direito é o que há de supremo.
DIREITO ABSTRATO
34 – A vontade livre em si e para si, tal como se revela no seu conceito
abstrato, faz parte da determinação específica do imediato. Neste grau, é ela
realidade atual que nega o real e só consigo apresenta uma relação apenas
abstrata. É a vontade do sujeito, vontade individual, encerrada em si mesma. O
elemento de particularidade que há na vontade é que ulteriormente vem
oferecer um conteúdo de fins definidos; como, porém, ela é uma
individualidade exclusiva, tal conteúdo constitui para ela um mundo exterior
imediatamente dado.
36 – 1º É a personalidade que principalmente contém a capacidade do
direito e constitui o fundamento (ele mesmo abstrato) do direito abstrato, por
conseguinte formal. O imperativo do direito é portanto: sê uma pessoa e
respeita os outros como pessoas.
40 – O direito começa por ser a existência imediata que a si se dá a
liberdade de um modo também imediato nas formas seguintes:
a) A posse, que é propriedade; aqui, a liberdade é essencialmente
liberdade da vontade abstrata ou, em outros termos, de uma pessoa particular
que só se relaciona consigo mesma;
26
b) A pessoa que se diferencia de si se relaciona com outra pessoa e
ambas só como proprietárias existem uma para a outra; a identidade delas, que
existe em si (virtual), adquire a existência pelo trânsito da propriedade de uma
para outra, com mútuo consentimento e permanência do comum como direito.
Assim se obtém o contrato;
c) A vontade como diferenciada na relação consigo mesma (a) não
porque se relacione com outra pessoa, mas (b) porque é em si mesma vontade
particular que se opõe ao seu ser em si e para si, constitui a injustiça e o crime.
41 – Deve a pessoa dar-se um domínio exterior para a sua liberdade a
fim de existir como idéia. Porque nesta primeira determinação, ainda
completamente abstrata, a pessoa é a vontade infinita em si e para si, tal coisa
distinta dela, que pode constituir o domínio da sua liberdade, determina-se
como o que é imediatamente diferente e separável.
44 – Tem ao homem o direito de situar a sua vontade em qualquer coisa;
esta torna-se, então, e adquire-a como fim substancial (que em si mesma não
possui) , como destino e como alma,
a minha vontade. É o direito de
apropriação que o homem tem sobre todas as coisas.
45 – Há alguma coisa que o Eu tem submetido ao seu poder exterior.
Isso constitui a posse; e o que constitui o interesse particular dela reside nisso
de o Eu se apoderar de alguma coisa para a satisfação das suas exigências,
dos seus desejos e do seu livre-arbítrio. Mas é aquele aspecto pelo qual Eu,
como vontade livre, me torno objetivo para mim mesmo na posse e, portanto,
pela primeira vez real, é esse aspecto que constitui o que há naquilo de
verídico e jurídico, a definição da propriedade.
62 – Só quando o uso ou a posse são temporários ou parciais (nos
casos em que a posse é apenas uma possibilidade de uso parcial e temporário)
é que podem se distinguir da propriedade.
65 – Posso eu desfazer-me da minha propriedade (porquanto ela só é
minha na medida em que nisso tenho a minha vontade), ou abandoná-la como
27
se não tivesse dono (derelinquo), ou transmiti-la à vontade de outrem – mas só
posso fazer na medida em que a coisa é, por natureza, exterior.
67 – Posso ceder a outrem aquilo que seja produto isolado das
capacidades e faculdades particulares da minha atividade corporal e mental ou
do emprego delas por um tempo limitado, pois esta limitação confere-lhe uma
relação de extrinsecidade com a minha totalidade e universalidade. Mas se eu
alienasse todo o meu tempo de trabalho e a totalidade da minha produção,
daria a outrem a propriedade daquilo que tenho de substancial, de toda a
minha atividade e realidade, da minha personalidade.
72 – A propriedade, que no que tem de existência e extrinsecidade já
não se limita a uma coisa mas inclui também o fator de uma vontade (por
conseguinte estranha), é estabelecida pelo contrato. É neste processo que
surge e se resolve, na medida em que se renuncia à propriedade por um ato de
vontade comum com outra pessoa, a antítese de ser proprietário para si
mesmo e de excluir os outros.
75 – As duas partes contratantes comportam-se uma perante a outra
como duas pessoas independentes e imediatas. Por conseguinte:
a) O contrato é produto do livre-arbítrio;
b) A vontade idêntica que tem de existir no contrato só é afirmada
por estas duas pessoas, é pois comum mas não universal em e para si;
c) O objeto do contrato é uma coisa exterior e particular, pois só
assim pode estar submetido à simples volição que as partes têm de aliená-la.
82 – No contrato, o direito em si está como algo de suposto, e a sua
universalidade intrínseca aparece como o que é comum à vontade arbitrária e à
vontade particular. Esta fenomenalidade do direito – em que ele mesmo e a
sua
existência
empírica
essencial,
a
vontade
particular,
coincidem
imediatamente – torna-se evidente como tal quando, na injustiça, adquire a
forma de oposição entre o direito em si e a vontade particular, tornando-se
então um direito particular. Mas a verdade desta aparência é o seu caráter
negativo, e o direito, negando esta negação, restabelece-se e, utilizando este
28
processo de mediação, regressando a si a partir da sua negação, acaba por
determinar-se como real e válido aí mesmo onde começara por se em si e
imediato.
85 – O conflito em que a coisa é reivindicada com um motivo jurídico,
que é o que constitui o domínio do processo civil, contém o reconhecimento do
direito como universal e soberano, de tal modo que a coisa deverá pertencer a
quem tenha direito a ela. (...)
A MORALIDADE SUBJETIVA
106 – A subjetividade constitui agora a determinação específica do
conceito. Diferente que é do conceito enquanto tal, da vontade em si, ou,
noutros termos, como vontade do sujeito, como vontade do indivíduo que,
sendo para si, é algo que existe (e implica também um caráter imediato), assim
a subjetividade dá a existência do conceito. Um plano superior é definido para
a liberdade. Aquela parte da existência em que o elemento real se junta agora
à idéia é a subjetividade da vontade: só na vontade como subjetiva é que a
liberdade ou vontade em si pode ser real em ato.
107 – A autodeterminação da vontade é também um momento do
conceito e a subjetividade não é apenas o que ele tem de existência mas é
ainda a definição própria. Definida como subjetiva, livre de si, a vontade
começa por ser um conceito que carece de uma existência para ser também
idéia. Daqui se conclui que o ponto de vista moral assumirá a forma de direito
da vontade subjetiva. Segundo este direito, a vontade só reconhece o que é
seu e só existe naquilo em que se encontra como subjetiva.
113 – A expressão da vontade como subjetiva ou moral é a ação.
114 – O direito da vontade moral subjetiva contém os três seguintes
aspectos:
29
a) O direito abstrato ou formal da ação: o seu conteúdo em geral,
tal como é realizado na existência imediata, deve ser meu, deve ter sido
projetado pela minha vontade subjetiva;
b) O particular da ação é o seu conteúdo interior; 1º - trata-se da
intenção quando o seu caráter universal é determinado para mim, que é o que
constitui o valor da ação e aquilo pelo qual ela vale para mim; 2º - trata-se do
bem-estar quando o seu conteúdo se apresenta como fim particular do meu ser
particular;
c) Este conteúdo como interior que assume a sua universalidade,
a sua objetividade em si e para si, é o fim absoluto da vontade, o bem que é
acompanhado, no domínio da reflexão, pela oposição da universalidade
objetiva, em parte na forma de mal, em parte na forma de certeza moral.
A MORALIDADE OBJETIVA
142 – A moralidade objetiva é a idéia da liberdade enquanto vivente
bem, que na consciência de si tem o seu saber e o seu querer e que, pela ação
desta consciência, tem a sua realidade. Tal ação tem o seu fundamento em si e
para si, e a sua motora finalidade na existência moral objetiva. É o conceito de
liberdade que se tornou mundo real e adquiriu a natureza da consciência de si.
145 – Como a moralidade objetiva é o sistema destas determinações da
Idéia, dotada de um caráter racional, é, deste modo, que a liberdade, ou a
vontade que existe em si e para si, aparece como realidade objetiva, círculo de
necessidade, cujos momentos são os poderes morais que regem a vida dos
indivíduos e que nestes indivíduos e nos seus acidentes têm sua manifestação,
sua forma e sua realidade fenomênicas.
151 – Na simples identidade com a realidade dos indivíduos, a
moralidade objetiva aparece como o seu comportamento geral, como costume.
O hábito que se adquire é como que uma segunda natureza colocada no
lugar da vontade primitiva puramente natural, e que é a alma, a significação e
realidade da sua existência. É o espírito dado como um mundo cuja substância
assim ascende pela primeira vez ao plano do espírito.
30
156 – A substância moral, como o que contém a consciência refletida de
si ligada ao seu conceito, é o espírito real de uma família e de um povo.
157 – O conceito desta idéia só será o espírito como algo de real e
consciente de si se for objetivação de si mesmo, movimento que percorre a
forma dos seus diferentes momentos. É ele:
a) O espírito moral objetivo imediato ou natural: a família. Esta
substancialidade desvanece-se na perda da sua unidade, na divisão e no ponto
de vista do relativo; torna-se então:
b) Sociedade civil, associação de membros, que são indivíduos
independentes, numa universalidade formal, por meio das carências, por meio
da constituição jurídica como instrumento de segurança da pessoa e da
propriedade e por meio de uma regulamentação exterior para satisfazer as
exigências particulares e coletivas. Este Estado exterior converge e reúne-se
na
c) Constituição do Estado, que é o fim e a realidade em ato da
substância universal e da vida pública nela consagrada.
158 – Como substancialidade imediata do espírito, a família determinase pela sensibilidade de que é una, pelo amor, de tal modo que a disposição de
espírito correspondente é a consciência em si e para si e de nela existir como
membro, não como pessoa para si.
160 – A família realiza-se em três aspectos:
a) Na forma do seu conceito imediato, como casamento;
b) Na existência exterior: propriedade, bens de família e cuidados
correspondentes;
c) Na educação dos filhos e na dissolução da família.
181 – De um modo natural e, essencialmente, de acordo com o princípio
da personalidade, divide-se a família numa multiplicidade de famílias que em
geral se comportam como pessoas concretas independentes e têm, por
conseguinte, uma relação extrínseca entre si. Noutros termos: os momentos,
31
reunidos na unidade da família como idéia moral objetiva que ainda reside no
seu conceito, por este conceito devem ser libertados a fim de adquirirem uma
realidade independente. É o grau da diferença; de início expresso
abstratamente, confere a determinação à particularidade que tem, no entanto,
uma relação com o universal. Mas nesta relação o universal é apenas o
fundamento interior e, por conseguinte, só de uma maneira formal, e limitandose a aparecer, existe no particular.
Assim, esta situação produzida pela reflexão apresenta primeiro a perda
da moralidade objetiva ou, como esta enquanto essência é necessariamente
aparência, constitui a região fenomênica dessa moralidade: a sociedade civil.
182 – A pessoa concreta que é para si mesma um fim particular como
conjunto de carências e como conjunto de necessidade natural e de vontade
arbitrária constitui o primeiro princípio da sociedade civil. Mas a pessoa
particular está, por essência, em relação com a análoga particularidade de
outrem, de tal modo que a cada uma se afirma e satisfaz por meio da outra e é
ao mesmo tempo obrigada a passar pela forma da universalidade, que é o
outro princípio.
187 – Como cidadãos deste Estado, os indivíduos são pessoas privadas
que têm como fim o seu próprio interesse: como este só é obtido através do
universal, que assim aparece como um meio, tal fim só poderá ser atingido
quando os indivíduos determinarem o seu saber, a sua vontade e a sua ação
de acordo com um modo universal e se transformarem em anéis da cadeia que
constitui o conjunto.
O interesse da idéia, que não está explícita na
consciência dos membros da sociedade civil enquanto tais, é aqui o processo
que eleva a sua individualidade natural à liberdade formal e à universalidade
formal do saber e da vontade, por exigência natural e também por
arbitrariedade das carências, o que dá uma cultura à subjetividade particular.
188 – Contém a sociedade civil os três momentos seguintes:
A – A mediação da carência e a satisfação dos indivíduos pelo seu
trabalho e pelo trabalho e satisfação de todos os outros: é o sistema de
carências;
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B – A realidade do elemento universal de liberdade implícito neste
sistema é a defesa da propriedade pela justiça;
C – A preocupação contra o resíduo de contingência destes sistemas e a
defesa dos interesses particulares como algo de administração e pela
corporação.
198 – No entanto, o que há de universal e de objetivo no trabalho liga-se
à abstração que é produzida pela especificidade dos meios e das carências e
de que resulta também a especificação da produção e a divisão dos trabalhos.
Pela divisão, o trabalho do indivíduo torna-se mais simples, aumentando a sua
aptidão para o trabalho abstrato bem como a quantidade da sua produção.
Esta abstração das aptidões e dos meios completa, ao mesmo tempo, a
dependência mútua dos homens para a satisfação das outras carências, assim
se estabelecendo uma necessidade total.
Em suma, a abstração da produção leva a mecanizar cada vez mais o
trabalho e, por fim, é possível que o homem seja excluído e a máquina o
substitua.
199 – Na dependência e na reciprocidade do trabalho e da satisfação
das carências, a apetência subjetiva transforma-se numa contribuição para a
satisfação das carências de todos os outros. Há uma tal mediação do particular
pelo universal, um tal movimento dialético, que cada um, ao ganhar e produzir
para sua fruição, ganha e produz também para fruição dos outros. (...)
200 – A possibilidade de participação na riqueza universal, ou riqueza
particular, está desde logo condicionada por uma base imediata adequada (o
capital); está depois condicionada pela aptidão e também pelas circunstâncias
contingentes em cuja diversidade está a origem das diferenças de
desenvolvimento dos dons corporais já por natureza desiguais. Neste domínio
da particularidade, tal diversidade verifica-se em todos os sentidos e em todos
os graus e associada a todas as causas contingentes e arbitrárias que
porventura surjam. Conseqüência necessária é a desigualdade das fortunas e
das aptidões individuais.
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203 – a) A riqueza da classe substancial reside nos produtos naturais de
um solo que ela trabalha. Este solo só pode ser, rigorosamente, propriedade
privada e o que exige é não uma exploração indeterminada, mas uma
transformação objetiva. (...)
204 – b) Ocupa-se a classe industrial da transformação do produto
natural, e seus meios de subsistência vêm-lhe do trabalho, da reflexão, da
inteligência e também da mediação das carências e trabalhos dos outros. (...)
205 – c) A classe universal ocupa-se dos interesses gerais, da vida
social. Deverá ela ser dispensada do trabalho direto requerido pelas carências,
seja mediante a fortuna privada, seja mediante uma indenização dada pelo
Estado que solicita a sua atividade, de modo que, nesse trabalho pelo
universal, possa encontrar satisfação o seu interesse privado.
208 – Enquanto particularidade do querer e do saber, o princípio deste
sistema de carências não contém o universal em si e para si: o universal da
liberdade que, de um modo abstrato, é o direito de propriedade. Todavia, não
reside ele apenas em si mas também na sua realidade reconhecida, pois a
jurisdição garante a sua segurança.
215 – Do ponto de vista do direito da consciência de si, a obrigação para
com a lei implica a necessidade de que a lei seja universalmente conhecida.
255 – Ao lado da família, a corporação constitui a segunda raiz moral do
Estado, a que está implantada na sociedade civil. (...)
256 – O fim da corporação, que é limitado e finito, tem a sua verdade no
fim universal em si e para si e na sua realidade absoluta. (...) O domínio da
sociedade civil conduz, pois, ao Estado.
257 – O Estado é a realidade em ato da Idéia moral objetiva, o espírito
como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se
pensa, e realiza o que sabe e porque sabe.
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258 – O Estado, como realidade em ato da vontade substancial,
realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o
racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto,
imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim
possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do
Estado têm o seu mais elevado dever.
259 – A Idéia do Estado:
a) Possui uma existência imediata e é o Estado individual como
organismo que se refere a si mesmo – é a constituição do Direito político
interno;
b) Transita à relação do Estado isolado com outros Estados – é o
direito externo;
c) É idéia universal como gênero e potência absoluta sobre os
Estados individuais, o espírito que a si mesmo dá a sua realidade no
progresso da história universal.
267 – A necessidade no ideal é o desenvolvimento da idéia na
intrinsecidade de si mesma. Como substância objetiva distinta da anterior, é o
organismo do Estado, o Estado propriamente político.
274 – Como o espírito só é real no que tem consciência de ser, como o
Estado, enquanto espírito de um povo, é uma lei que penetra toda a vida desse
povo, os costumes e a consciência dos indivíduos, a Constituição de cada povo
depende da natureza e cultura da consciência desse povo. É nesse povo que
reside a liberdade subjetiva do Estado e, portanto, a realidade da Constituição.
289 – (...)
Nota – Assim como a sociedade civil é o campo de batalha dos
interesses individuais de todos contra todos, assim aqui se trava o conflito entre
este interesse geral e os interesses da comunidade particular e, por outro lado,
entre as duas espécies de interesses reunidas e o ponto de vista mais elevado
do Estado e suas determinações. (...).