Tempestade Tiroideia – revisão

Transcrição

Tempestade Tiroideia – revisão
ARTIGO DE REVISÃO
CUIDADOS INTERMÉDIOS
EM PERSPECTIVA
Tempestade Tiroideia – revisão
Susana Garrido1-2, Rui Carvalho1, Fátima Borges1
Serviço de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo, Centro Hospitalar do Porto - Hospital de Santo António
1
Autor correspondente: Susana Garrido
2
|
[email protected]
ABSTRACT
RESUMO
This review adresses the clinical presentation,
diagnosis and treatment of thyroid storm.
Neste artigo serão revistos as manifestações clínicas,
o diagnóstico e o tratamento da tempestade tiroideia.
Keywords: Thyroid storm, thyrotoxicosis
Palavras-chave: Tempestade tiroideia, tireotoxicose
Thyroid storm is a rare syndrome, defined by an
exarcebation of thyrotoxicosis associated with organ
dysfunction. It is a medical emergency, so prompt
management is essential.
Cuidados Intermédios em Perspectiva
A tempestade tiroideia é uma síndrome rara, que traduz
um quadro de tireotoxicose grave com disfunção
orgânica associada. É uma emergência médica e,
como tal, exige uma actuação imediata.
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INTRODUÇÃO
A tempestade tiroideia é uma emergência médica,
rara, cujo diagnóstico se baseia na evidência de
disfunção orgânica num doente com sintomas e sinais
de tireotoxicose.[1] A incidência é difícil de calcular, já
que não existem critérios de diagnóstico específicos
e pode cursar com uma apresentação clínica muito
variável.[2] No entanto, esta tem vindo claramente
a diminuir nos últimos anos [2], possivelmente pela
maior precocidade no diagnóstico e tratamento da
tireotoxicose [1,3].
A tempestade tiroideia ocorre habitualmente no
contexto de um evento agudo precipitante [Tabela 1]
[2]. No passado, doentes submetidos a tiroidectomia
total desenvolviam frequentemente tempestades
tiroideias no período pós-operatório imediato, por
aumento da libertação de hormonas tiroideias
durante a manipulação cirúrgica.[2] Actualmente esta
apresentação é extremamente rara [4], uma vez que
os doentes são submetidos a tratamento médico da
tireotoxicose previamente à cirurgia, sendo operados
em eutiroidismo [2]. Os precipitantes mais comuns
passaram então a ser as infecções e a descontinuação
dos anti-tiroideus de síntese [4].
Infecção
Cirurgia, trauma
Descontinuação dos anti-tiroideus de síntese, ingestão
excessiva de hormona tiroideia
Palpação vigorosa da tiróide
Sobrecarga de iodo
(ex: produtos de contraste iodados, amiodarona)
Parto
Stress emocional intenso
Tratamento com iodo radioactivo
Cetoacidose diabética
Enfarte agudo do miocárdio, tromboembolismo pulmonar,
acidente vascular cerebral
Tabela 1 | Eventos predisponentes à ocorrência de tempestade
tiroideia
Cuidados Intermédios em Perspectiva
Os mecanismos que conduzem à descompensação
não estão totalmente esclarecidos, mas é provável que
vários factores estejam implicados.[2, 3] Os níveis de
hormona tiroideia, por si só, não justificam totalmente
o quadro, não existindo um cut-off que diferencie
hipertiroidismo grave de tempestade tiroideia.[5] No
entanto, este parece ser o mecanismo mais importante
em alguns doentes.[6, 7] O aumento transitório das
fracções livres de hormona tiroideia, consequência de
uma diminuição da ligação às proteínas de transporte
induzida por certas situações clínicas (cirurgia, stress,
infecção, cetoacidose diabética), pode estar também
implicado.[8, 9] Outros mecanismos potencialmente
envolvidos incluem o aumento da densidade de
receptores beta-adrenérgicos e alterações nas
vias de sinalização intracelular, com aumento da
responsividade às catecolaminas.[10, 11]
A causa mais frequente de tempestade tiroideia é a
doença de Graves sendo, por isso, mais frequente em
mulheres adultas.[4] No entanto, todas as causas de
tireotoxicose podem evoluir para uma situação desta
gravidade.[12, 13]
DIAGNÓSTICO
O diagnóstico de tempestade tiroideia é clínico [2],
baseado na evidência de descompensação orgânica
em doentes com sinais e sintomas sugestivos de
tireotoxicose [1].
Habitualmente os doentes apresentam sintomas
óbvios de hipertiroidismo, como emagrecimento,
hipersudorese, intolerância ao calor, ansiedade,
hiperdefecação, trémulo e palpitações.[14] Contudo,
mais raramente, podem apresentar uma clínica atípica,
com apatia, prostração e insuficiência cardíaca, sem
manifestações francas de tireotoxicose (“tireotoxicose
apática”).[15] Ao exame objectivo, pode ser evidente
a presença de bócio, de oftalmopatia e de uma pele
quente e húmida, assim como de hiperreflexia e
trémulo.[14]
As principais manifestações de descompensação
incluem febre, normalmente com temperaturas
superiores a 38,5ºC e associada a diaforese
excessiva; taquicardia, por vezes desproporcional
à febre; dor abdominal difusa, náuseas, vómitos,
diarreia e icterícia; e sinais neurológicos vários, desde
agitação a coma.[2, 16] Para além da taquicardia
sinusal, outras taquiarritmias podem estar presentes,
mesmo na ausência de patologia cardíaca de base.
[3] Estas são sobretudo supra-ventriculares, mas não
exclusivamente.[17] É igualmente frequente a presença
de insuficiência cardíaca, que pode surgir também na
ausência de doença cardíaca estrutural.[1]
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Apesar do diagnóstico ser essencialmente clínico,
este deve ser sempre confirmado através da função
tiroideia que, regra geral, evidencia uma TSH
suprimida e fracções livres das hormonas tiroideias
elevadas.[14] No entanto, há excepções a este
padrão, como a toxicose a T3 (em que a T4 livre se
encontra normal ou apenas ligeiramente elevada), e
a síndrome do eutiroideu doente (em que a T3 livre se
encontra normal ou ligeiramente elevada).[1, 2] Como
já referido, não existe um cut-off que discrimine entre
hipertiroidismo grave e tempestade tiroideia.[5]
Outras alterações analíticas podem estar presentes,
como hiperglicemia, por aumento da glucogenólise
e diminuição da secreção de insulina induzida pelas
catecolaminas; hipercalcemia, por aumento da
reabsorção óssea e hemoconcentração; e leucocitose
com desvio esquerdo da fórmula leucocitária.[2] Em
casos mais graves, por disfunção hepática, pode
haver elevação das transaminases e da lactato
desidrogenase, assim como hiperbilirrubinemia
[18], esta última associada a um pior prognóstico.
[4, 19] A elevação da fosfatase alcalina resulta, pelo
contrário, da maior reabsorção óssea induzida pelo
hipertiroidismo.[2]
Parâmetro Clínico
Não existem critérios de diagnóstico universalmente
aceites, sendo difícil diferenciar uma tempestade
tiroideia de um hipertiroidismo grave. Numa tentativa
de padronizar e objectivar esta síndrome, Burch e
Wartofsky criaram uma escala que pontua os vários
graus de disfunção orgânica associados à tempestade
tiroideia [Tabela 2].[19] É uma escala que se encontra
amplamente difundida e que facilita o estabelecimento
deste diagnóstico permitindo, assim, um tratamento
mais atempado.[20]
Esta escala, apesar de sensível, é pouco específica, já
que casos de doença grave podem cursar com scores
“positivos” na ausência de tempestade tiroideia [21],
dependendo a decisão de tratar do julgamento clínico
da equipa médica. Tendo em conta a gravidade
associada a esta emergência endócrina e em caso de
dúvida, é mais prudente assumir o diagnóstico e tratar
como tal.[2, 22]
Mais recentemente surgiu uma nova proposta de
critérios diagnósticos, que partiu de um comité
organizado pela Associação da Tiróide do Japão,
numa tentativa de simplificar este diagnóstico
[tabela 3] [4]. Esta, no entanto, ainda é pouco referida
na literatura.
Pontos
Parâmetro Clínico
37,2 – 37,7
5
99 – 109
5
37,8 – 38,2
10
110 – 119
10
38,3 – 38,8
15
120 – 129
15
38,9 – 39,3
20
130 – 139
20
39,4 – 39,9
25
≥ 140
25
≥ 40
30
Temperatura (ºC)
Pontos
Frequência cardíaca (bpm)
Disfunção do Sistema Nervoso Central
Insuficiência cardíaca
Ausente
0
Ausente
Ligeira (agitação)
10
Ligeira (edemas periféricos)
5
Moderada (delírio, psicose, letargia)
20
Moderada (crepitações bibasais)
10
Grave (convulsões, coma)
30
Grave (edema pulmonar)
15
Ausente
0
Ausente
0
Moderada (diarreia, vómito, dor abdominal)
10
Presente
10
Grave (icterícia sem causa aparente)
20
Disfunção Gastrointestinal e Hepática
0
Fibrilhação auricular
Evento precipitante
TOTAL
Ausente
0
Presente
10
<25 – improvável
25-44 – iminente
≥ 45 – altamente provável
Tabela 2 | Escala de Burch-Wartofsky
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TRATAMENTO
Tempestade tiroideia “definitiva”
Como já referido, o tratamento deve ser instituído o
mais precocemente possível, de modo a evitar a alta
morbi-mortalidade associada à tempestade tiroideia.
[2] Assim, a instituição da terapêutica não deve
depender da confirmação analítica de tireotoxicose.
[16] A monitorização clínica deve ser apertada,
idealmente numa Unidade de Cuidados Intermédios
ou Intensivos.[3]
Tireotoxicose + 1 critério major + 1 critério minor
Tireotoxicose + 3 critérios minor
Tempestade tiroideia “suspeita”
Tireotoxicose + 2 critérios minor
1 critério major + 1 critério minor, na ausência de tireotoxicose
confirmada
3 critérios minor, na ausência de tireotoxicose confirmar
O objectivo do tratamento é não só diminuir os
níveis plasmáticos de hormonas tiroideias, mas
também controlar os sintomas adrenérgicos e tratar a
descompensação sistémica e o evento precipitante.[2]
Critérios major
- Manifestações SNC (agitação, delírio, psicose, sonolência,
letargia, convulsão, ECG≤14)
O controlo eficaz e rápido dos níveis plasmáticos das
hormonas tiroideias é assegurado através da utilização
de vários fármacos, que actuam em diferentes passos
da produção de hormona tiroideia [tabela 4].
Critérios minor
- Febre (Tauric ≥ 38ºC)
- Taquicardia (FC ≥ 130 bpm)
- IC descompensada (NYHA classe IV ou Killip ≥ III)
- Manifestações GI/hepáticas (náuseas, vómitos, diarreia, BT ≥
Os anti-tiroideus de síntese, propiltiouracilo (PTU)
e metimazole (MMI), são utilizados para bloquear a
síntese de hormona tiroideia. Estes, são tipicamente
administrados por via oral, mas podem ser também
administrados por sonda nasogástrica [3], via rectal
[23, 24] ou endovenosa [25]. As doses recomendadas
variam entre os 800-1500 mg/dia de PTU e 80-120 mg/
dia de MMI, ambos em 4 a 6 administrações diárias.
[2, 19, 22, 26] O PTU, para além de ter um início de
acção mais rápido, tem o efeito adicional de bloquear
a conversão periférica de T4 em T3, pelo que é o
anti-tiroideu de síntese de eleição no tratamento da
tempestade tiroideia.[3,16,20,27]
3mg/dL)
Tabela 3 | Critérios de tempestade tiroideia da Associação da
Tiróide do Japão
Bpm – batimentos por minuto,
BT - bilirrubina total,
ECG – Escala de Coma de Glasgow,
FC – frequência cardíaca,
GI – gastrointestinais,
IC – insuficiência cardíaca,
NYHA – New York Heart Association,
SNC – sistema nervoso central,
Tauric – temperatura auricular.
Fármacos
Mecanismo
Notas
Anti-tiroideus de síntese
- Inibição da síntese de HT
- PTU apresenta efeito adicional de inibição da desiodação
(PTU, MMI)
periférica
Iodo inorgânico
- Inibição da libertação de HT
- Administrar pelo menos 30 minutos após anti-tiroideu de
(ex: solução de Lugol, iodeto
síntese
de potássio, lítio)
Glucocorticóides
- Controlo das manifestações clínicas de
- Propranolol apresenta efeito adicional de inibição da
(ex: hidrocortisona)
tireotoxicose
desiodação periférica
- Utilizar agentes car-dioselectivos se hiper- -reactividade
bronquica
Glucocorticóides
- Efeito inibitório da desiodação periférica
(ex: hidrocortisona)
- Prevenção de crise adrenal
Outros
Terapêutica de suporte
Tratamento do precipitante
Tabela 4 | Tratamento médico da tempestade tiroideia
HT – hormonas tiroideias, MMI - metimazole, PTU - propiltiouracilo
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O protocolo utilizado no nosso centro hospitalar
sugere a utilização de PTU na dose de 250mg de
4 em 4 horas, após uma dose de carga inicial de
500-1000mg, à semelhança do recomendado nas
guidelines da American Thyroid Association/American
Association of Clinical Endocrinologists.[27] Assim que
o doente esteja compensado, deve alterar-se de PTU
para o MMI, uma vez que este tem uma semivida mais
longa e menos efeitos laterais.[28]
Os anti-tiroideus de síntese têm um efeito exclusivo
na síntese de hormona tiroideia, não interferindo na
libertação de hormona tiroideia pré-formada, que se
encontra armazenada nos folículos tiroideus.[2] Este
efeito é possível, no entanto, pela administração
de doses elevadas de iodo (através do mecanismo
fisiológico conhecido como efeito de Wolff-Chaikoff.
[14] Para isso, devem ser administrados iodo
inorgânico (ex: solução de Lugol, iodeto de potássio)
[27] ou carbonato de lítio, sendo este último utilizado
sobretudo nos doentes com alergia ao iodeto [20]. O
protocolo aplicado no nosso centro hospitalar sugere
a utilização de 4 a 8 gotas de solução de Lugol a cada
6-8 horas. Em caso de indisponibilidade da via oral,
existem formulações rectais e endovenosas de iodeto
que podem ser utilizadas.[20] Qualquer que seja a
opção, esta deve ser sempre administrada pelo menos
30 minutos a 1 hora após a primeira toma do antitiroideu de síntese, para evitar que haja estimulação
da síntese de hormona tiroideia induzida pelo aumento
do seu substrato (iodo).[2] Outra opção possível é a
utilização de produtos de contraste iodados, como o
ácido iopanóico, e de amiodarona que, para além do
efeito de redução da libertação de hormonas tiroideias
(pelo alto teor em iodeto), condicionam também
uma diminuição da conversão periférica de T4 em
T3.[29] Estes são, no entanto, raramente utilizados:
os primeiros, por não estarem disponíveis na maioria
dos países [1], e o segundo, pelas suas características
farmacocinéticas desvantajosas, já que tem uma
semivida muito longa e fornece iodo durante vários
meses [2]. Este efeito inibitório do iodo é transitório,
havendo um escape a este bloqueio ao fim de 7 a 14
dias, com eventual exacerbação da tireotoxicose.[14]
Os beta-bloqueadores são utilizados para controlar
as manifestações clínicas secundárias ao excesso
de hormona tiroideia. Os efeitos mais notórios são o
controlo da frequência cardíaca, a melhoria da agitação
e do trémulo, a resolução da hiperdefecação/diarreia
e a redução da hipersudorese.[1] O propranolol é o
beta-bloqueador tradicionalmente utilizado [20], uma
vez que tem um efeito adicional, embora discreto, sob
a conversão periférica de T4 em T3 [30]. Normalmente
são necessárias doses mais elevadas do que aquelas
utilizadas nos doentes hipertiroideus, devido a um
aumento da metabolização do fármaco[3]. O nosso
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protocolo sugere a utilização de 60 a 80mg de
propranolol, por via oral, a cada 4 horas, com ajuste da
dose de acordo com a frequência cardíaca e tensão
arterial do doente. Em alternativa, se for necessário
um efeito mais imediato, o propranolol pode ser
utilizado por via endovenosa, com uma dose inicial de
0.5 a 1mg, seguido de 1 a 2mg a cada 15 minutos, até
uma dose máxima de 10mg.[16] O esmolol é também
uma opção nestes casos.[31] Nos doentes com contraindicação ao propranolol (p.ex, por asma) podem
ser utilizados agentes selectivos ß1, como o atenolol,
o metoprolol ou o diltiazem.[16] A fibrilação auricular
associada à tempestade tiroideia é relativamente
resistente à acção da digoxina.[32]
Está igualmente recomendada a utilização de
glucocorticóides em doses elevadas. Estes estão
aconselhados não só pelo efeito inibitório na
conversão periférica de T4 em T3 [2], mas também
pela possibilidade teórica de insuficiência adrenal
relativa secundária ao aumento do metabolismo do
cortisol associada ao hipertiroidismo [33]. No protocolo
utilizado no nosso centro hospitalar está recomendada
a administração de 100mg de hidrocortisona a cada 8
horas, por via endovenosa, com descontinuação após
melhoria clínica e exclusão de insuficiência adrenal.
As medidas de suporte e o tratamento das disfunções
associadas à tempestade tiroideia são também
fundamentais e incluem o tratamento da hipertermia,
desidratação, insuficiência cardíaca descompensada
e disritmias.
A febre deve ser tratada preferencialmente com
paracetamol e medidas de arrefecimento externo.
[1, 2] Os salicilatos estão desaconselhados, uma vez
que podem interferir com a ligação das hormonas
tiroideias às proteínas de transporte, condicionando
um aumento transitório das fracções livres de hormona
tiroideia, com consequente agravamento do quadro
clínico.[34]
A fluidoterapia endovenosa é fundamental nos
doentes com depleção do volume. Esta deve ser
efectuada preferencialmente com soros glicosados,
numa perspectiva de aumentar as reservas hepáticas
de glicogénio, podendo acrescentar-se suplementos
vitamínicos
para
corrigir
eventuais
défices
associados[2]. A suplementação com vitaminas do
complexo B é especialmente importante, pelo risco de
encefalopatia de Wernicke.[5]
Conforme o estado clínico do doente, podem ser
administrados diuréticos (se insuficiência cardíaca
descompensada), antiarrítmicos (se taquidisritmias)
ou vasopressores (se hipotensão refractária ao
volume).[2] O recurso à sedação e suporte ventilatório
pode também ser necessário.[16]
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Outro aspecto fundamental do tratamento da
tempestade tiroideia diz respeito aos eventos
precipitantes
associados;
estes
devem
ser
activamente pesquisados e tratados.[3] Uma vez
que a infecção é o precipitante mais frequente, deve
ser sempre efectuado o rastreio séptico. Outros
precipitantes devem ser pesquisados de acordo com
a suspeita clínica.[1] A utilização de antibioterapia de
largo espectro, na ausência de evidência de infecção,
não está recomendada pela maioria dos autores.[1, 3,
22]
Com a instituição destas medidas, há geralmente
uma melhoria clínica significativa nas primeiras 1224 horas [16] e passadas 72-96 horas, a febre e os
sintomas neurológicos habitualmente já se encontram
resolvidos [2]. Se todas as medidas acima descritas
forem tomadas, é possível normalizar a TSH ao 4º-5º
dia de terapêutica.[35]
Nos casos mais graves e refractários às medidas
descritas, podem ser tentadas terapêuticas
alternativas. A plasmaferese é uma opção que tem
sido utilizada com sucesso em alguns doentes, por
diminuir rapidamente os níveis de hormonas tiroideias
em circulação, assim como a diálise peritoneal
e a hemoperfusão com carvão activado.[36, 37] A
utilização de plasmaferese está recomendada pela
American Society of Apheresis nos casos refractários
à terapêutica de primeira linha, em associação com o
tratamento médico.[38]
Outra alternativa é a administração de colestiramina,
que diminui os níveis plasmáticos de hormonas
tiroideias por interferência com a sua circulação
entero-hepática.[39] Este efeito é discreto, pelo que
deve ser usada apenas quando há refractoriedade ao
tratamento de primeira linha.
Em caso de necessidade de suspensão dos antitiroideus de síntese, por toxicidade, está indicada a
realização de tratamento cirúrgico emergente. Nestas
situações, é fundamental controlar rapidamente as
hormonas tiroideias, idealmente durante a primeira
semana de terapêutica, para evitar que haja escape
ao efeito de Wolff-Chaikoff.[20] Vários esquemas têm
sido tentados com sucesso, utilizando os mesmos
fármacos descritos para o tratamento da tempestade
tiroideia.[28, 40] O beta-bloqueador só deve ser
suspenso após uma semana de pós-operatório, visto
que as hormonas tiroideias têm uma semivida de 7-8
dias.[40]
Após a compensação do doente, é possível
suspender o iodo inorgânico e o glucocorticóide.
O beta-bloqueador, pelo contrário, só deve ser
suspenso quando se atingir o eutiroidismo.[22] Nesta
fase, o doente deve ser orientado para um tratamento
definitivo.[1, 3] Mesmo na doença de Graves, apesar
Cuidados Intermédios em Perspectiva
de existir a possibilidade de manter o anti-tiroideu de
síntese até à recorrência da tireotoxicose, a maioria
dos clínicos opta pelo tratamento definitivo.[2] A
terapêutica com iodo radioactivo só é possível ao
fim de várias semanas, devido à sobrecarga de iodo
utilizada durante o tratamento da tempestade tiroideia.
[2] Outra alternativa, mais atractiva, é a tiroidectomia
total, já que é possível a mais curto prazo, desde que
o hipertiroidismo esteja compensado.[2, 3]
PROGNÓSTICO
O prognóstico da tempestade tiroideia depende da
instituição atempada da terapêutica acima descrita.
A melhoria dos cuidados médicos e o diagnóstico mais
atempado desta emergência endócrina fez com que a
taxa de mortalidade diminuísse nos últimos anos. No
entanto, esta continua a ser significativa, variando entre
10-30%.[3, 4, 20, 22] Um grupo japonês identificou como
preditores de mortalidade a presença de choque,
coagulação intravascular disseminada e disfunção
multiorgânica. A presença de scores APACHE II e
SOFA elevados foram igualmente preditores positivos
de mortalidade.[4]
A morbilidade, nos doentes que sobrevivem, é
também elevada, sendo que um número significativo
de doentes desenvolve complicações irreversíveis,
sobretudo neurológicas e renais.[4]
CONCLUSÃO
A tempestade tiroideia é uma emergência endócrina
rara, mas que está associada a uma taxa de morbimortalidade importante. Na maioria dos casos surge
no contexto de um evento precipitante secundário,
mais frequentemente infeccioso. É fundamental que
seja reconhecida atempadamente, com instituição
imediata das medidas médicas e de suporte
necessárias, idealmente numa unidade de cuidados
intermédios ou intensivos.
LEARNING POINTS
•
A tempestade tiroideia é uma emergência médica
rara, que surge habitualmente no contexto de um
evento agudo precipitante, mais frequentemente
infeccioso;
•
O diagnóstico é clínico, devendo ser considerado
nos doentes com sintomas e sinais de
tireotoxicose e disfunção orgânica associada
(disfunção gastrointestinal, cardiovascular e do
sistema nervoso central e febre);
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•
•
•
O tratamento deve ser instituído o mais
precocemente possível, idealmente numa
Unidade de Cuidados Intermédios ou Intensivos,
com o objectivo de diminuir os níveis plasmáticos
de hormona tiroideia, controlar os sintomas
adrenérgicos e tratar a descompensação
sistémica e o evento precipitante;
9.
A terapêutica de primeira linha inclui um
antitiroideu de síntese (habitualmente o PTU; dose
de carga 500-1000mg per os, seguido de 250mg
de 4-4 horas), um beta-bloqueador (habitualmente
o propranolol; 60-80mg per os, a cada 4 horas,
com ajuste da dose de acordo com a frequência
cardíaca e tensão arterial do doente), um
glucocorticóide (habitualmente a hidrocortisona;
100mg de 8-8 horas, por via endovenosa) e iodo
inorgânico (por exemplo, solução de Lugol per os,
4-8 gotas a cada 6-8 horas), este último iniciado
30 minutos a 1 hora após os restantes fármacos;
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