Samsara* ou

Transcrição

Samsara* ou
JOSÉ DA GRAÇA ANDRADE
Samsara*
ou
Oxalá Picasso te
pinte!
1
* Ciclo do nascimento e da morte. Tudo está ligado a
tudo por fios invisíveis e tudo muda e se transforma sem
cessar.
2
Saber que não se escreve para outro, saber
que isto que vou escrever não me fará nunca
ser amado por quem amo, saber que a escrita
nada compensa, nada sublima, que está
precisamente aí onde tu não estás – é o
começo da escrita.
Roland Barthes
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A dívida
(Breathe dos Bliss)
O preço da catexia é a dor
Fui casado durante 22 anos e do casamento retirei
praticamente tudo aquilo que o caracteriza: um lar, algum
património, sexo regular, as pequenas e grandes alegrias
e chatices, de toda e qualquer família.
Amei T., a minha mulher, minha colega de liceu e
primeira namorada, tanto quanto se pode amar quando
nos casamos aos vinte anos e, não por razões morais,
religiosas ou culturais mas de uma forma natural, sempre
lhe fui fiel. Nessa altura ainda ignorava que a fidelidade
depende basicamente de razões biológicas e genéticas,
ou seja, em linguagem científica, do maior ou menor
comprimento do gene receptor da vasopressina que cada
homem possui (atenção mulheres no vosso próprio
interesse registem que o único comprimento que vale a
pena conhecer dos homens é o do seu gene receptor da
vasopressina). Um dia, por um acumular de razões
penosas, nunca resolvidas e sempre agravadas,
separámo-nos e fiquei a viver com as minhas três filhas.
T. era uma mulher doentiamente ciumenta. Como não
lhe dava motivos, fixava-se nas mulheres (miúdas,
melhor dizendo, dada a nossa idade!) que eu tinha
conhecido antes dela e a sua retroactiva imaginação
produzia cenas terríveis que protagonizava na frente de
quem quer que fosse porque como qualquer mulher
ciumenta via sempre mais do que queria ver. Era
também, embora não o admitisse, bipolar. Alternava
momentos delirantes de entusiasmo e energia com
momentos de profunda tristeza e abatimento. Vitimizavase sempre pelo que lhe acontecia, incluindo os seus
próprios erros. Nunca assumia a responsabilidade por
nada e culpabilizava todos por tudo. Ainda enquanto
estudantes, sempre que pela manhã, transportados pelo
38, a carreira que fazia o percurso do Calvário a Santa
Maria, iniciávamos a subida da alameda da Cidade
Universitária, era frequente as lágrimas começarem a
cair-lhe pelas faces, sem qualquer razão e quantas
vezes, a meio das manhãs, me ia buscar à faculdade,
quase me arrastando, só para conversar, rezar as suas
lamentações do dia e comer tostas mistas no jardim do
Campo Grande.
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Ao longo do nosso casamento foi sempre uma
consumidora compulsiva que gastava tudo o que tinha, o
que não tinha e ainda o pouco que eu ia tendo. Desde os
vulgares excessos com cartões de crédito até à
contracção de empréstimos de quantias elevadas, em
nome de ambos através da falsificação da minha
assinatura, ela fez de tudo sentindo-se sempre no direito
de o fazer. Depois, para ocultar os seus erros tinha
necessidade de mentir, fazendo-o sem qualquer
sentimento de culpa ou de remorso. Quem disse que “o
casamento é uma dívida que contraímos quando jovens
e que pagamos o resto das nossas vidas”?
Enquanto as filhas foram pequenas T. foi uma mãe
excelente. É verdade que sofreu um processo benigno
de rejeição da primeira filha durante alguns meses, uma
espécie de depressão pós-parto, que me obrigou a
assumir mais algumas tarefas do que seria habitual, mas
de resto, foi exemplar. Contudo, a partir de um certo
momento, situado algures no início da adolescência
delas, T. perdeu-se de nós e nunca mais nos
encontrámos.
Não tinha nem tenho do casamento uma concepção
descartável e sentia-me na obrigação de ajudar a
resolver os problemas em que continuamente se atolava,
na esperança que a minha compreensão a levasse a
mudar os seus comportamentos irresponsáveis. Mas
cada dia era pior e a espiral de gravidade dos seus actos
não parava de subir. O seu desejo de ser diferente
daquilo que era estragava-lhe a vida.
Naturalmente, tudo isto se reflectia na nossa vida familiar
através de ausências, de falta de assistência às
situações domésticas, de maus humores e conflitos
permanentes, de atirar para cima de mim todas as
despesas familiares como se apenas eu tivesse a
responsabilidade e a obrigação de as pagar. As suas
loucuras assumiram tais proporções, que até as minhas
filhas tiveram de me chamar a atenção: Pai, isto não
pode continuar, tens de fazer alguma coisa! Um dia, após
uma discussão violenta com a filha mais velha, por uma
questão insignificante, mas na qual tive que intervir, saiu
de casa acusando-me de lhe ter batido e foi viver para
casa de uma amiga. Uns meses depois divorciámo-nos.
A separação provocou-me uma sensação fortíssima de
liberdade e alívio, como se me tivesse desprendido de
um lastro insustentável. Ao contrário de muitos homens,
após a separação, não alterei as rotinas da minha vida,
nem procurei substituir a mulher perdida.
Para quê? Já tinha três mulheres em casa e muito fresca
ainda, a marca dos dentes de vinte e dois anos de
casamento, na pele da alma.
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Alguém disse que com os filhos passamos a ter o
coração fora de nós e eu concordo. Eduquei-as sem
distinção de sexo, como faria se tivessem sido rapazes.
Não consigo perceber qualquer tipo de descriminação
educacional em função do sexo, a não ser por puro
preconceito. Educar é sempre organizar o interdito e o
interdito não tem género. Mas até na função educacional
estava completamente só, pois a mãe continuava
ausente, imersa nos problemas que ela própria criava
onde quer que estivesse. Nada terminava deixando
sempre tudo a meio. Vivia insatisfeita com o muito que já
tinha e transportava dentro dela um inferno permanente.
Nunca estava bem com nada e em lado nenhum (“Se
estou só quero não estar/se não estou quero estar só/
enfim quero sempre estar/da maneira que não estou”).
Embora do acordo de divórcio a sua responsabilidade se
limitasse apenas ao pagamento das despesas escolares
das filhas nem essas cumpriu e em nada contribuía para
elas, nem sequer uma mesada lhes dava. Um
telefonema de vez em quando e alguma roupa dela
usada eram suficientes. Acabei por ter que ser pai e mãe
e, talvez por isso, a nossa relação seja tão especial. Para
elas escrevi este poema:
As minhas filhas são estrelas pequeninas
Nascidas da implosão do amor
Cresceram ocupando o meu mundo
Que à sua volta gravita
Num eterno movimento de translação
Junto delas sou completo e absoluto
como um céu de Agosto
Elas são o meu oposto não sendo o meu contrário
E quando me olham sei porque me lembram o mel
Com elas nunca estou só e juntos somos a multidão
Que todos os dias se reúne na praça do meu carinho
Cidade luz que me abriga iluminando-me todo
Elas fazem-me sentir menino cavaleiro de mim
Irmão mais velho que se ri da sua idade
Às vezes dizem-me: pai, tens uns olhos lindos
É verdade mas só porque reflectem a imagem delas
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Antes de cobrar devemos saber quanto
devemos
(Explode coração cantada por Maria Bethãnia)
Ter consciência é mais que ter cor?
Cheguei à conclusão que tinha casado cedo demais
quando era demasiado tarde, pois já tinha trinta e cinco
anos, uma casa, um marido e três filhas.
Z. foi o primeiro homem da minha vida. Conheci-o no
liceu onde estudávamos. Ele era finalista e treinava uma
equipa de futebol feminina da qual eu era uma das
guarda-redes (como éramos fisicamente fraquinhas e um
tanto ou quanto paradas, cada baliza era defendida por
duas jogadoras). Casei com ele dois anos depois, tinha
eu dezoito e ele vinte, naquilo a que tecnicamente se
poderia chamar uma fuga para a frente. Não. Não casei
por estar grávida mas para deixar de ouvir a minha mãe
infernizar-me a vida com os seus medos, face à
perspectiva de ambos estarmos sós, livres e soltos, em
Lisboa. Miúdos, sobrevivendo com mesadas paternas,
fomos viver para um quarto em casa dos meus avós
maternos no Restelo. De lá nos aventurávamos todos os
dias, sempre de mão dada, para as nossas faculdades
de Letras e Direito, bem frente a frente, um do outro.
Um ano depois, meti na cabeça que tínhamos de mudar
de casa. Aquele quartinho com janela debruçada para a
rua Bartolomeu Dias tornara-se claustrofóbico, o silvo
rouco dos eléctricos insuportável e com a ajuda dos
meus pais e de um empréstimo bancário que fomos
pagando com “explicações” e aulas no Externato
Português de Carcavelos, comprámos um apartamento
em Oeiras. Os anos seguintes foram os mais felizes da
minha vida. Ao longo deles fui crescendo a par das
minhas filhas sob o olhar protector de Z., o pai de nós
todas. Ainda dei aulas no Secundário, mas assim que
tive uma oportunidade, comecei a trabalhar em
empresas. E o stress começou a aumentar. Na casa que
eu tanto desejara comecei a sentir-me emparedada. Os
tectos baixavam assustadoramente e as paredes
fechavam-se sobre mim prestes a esmagarem-me.
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Sem que soubesse porquê comecei a gritar sem
conseguir emitir qualquer som e ninguém me conseguia
ouvir. Estava mesmo convencida que alguém, por
maldade ou inveja, teria lançado um qualquer feitiço,
contra mim e contra a minha casa.
Iniciei nessa altura périplos por tudo quanto era bruxa ou
vidente com os objectivos de desmontar os eventuais
“trabalhos” lançados sobre mim e conseguir as
mudanças para a minha vida que tanto desejava e não
conseguia. Uma dessas mudanças teria de ser a
mudança de casa. Demorei bastante mas consegui
convencer Z. a mudar para um duplex em Cascais onde,
pensava eu, seria de certeza mais feliz. Conseguia
quase sempre convencer Z. a fazer o que eu queria.
Considerava-o fraco e comecei a abusar. Por vezes,
usava uma coisa feia mas eficaz, a chantagem
emocional, a que ele, raramente, resistia. Aos poucos fuilhe perdendo o respeito e, naturalmente, deixei de o
amar. Cada vez estava menos em casa, preferia ficar
com as minhas amigas e com alguns amigos gay com os
quais sempre adorei conversar. Daqui até ser-lhe infiel foi
um passo de anão (para ser infiel o homem só precisa de
um lugar e a mulher de um motivo). Comecei, nessa
altura, a sentir a necessidade de sair de casa para
adquirir maior liberdade e para poder viver tudo aquilo
que um casamento precoce me havia impedido de viver.
Um dia, a pretexto de uma estúpida e desnecessária
discussão doméstica, saí de casa e não mais voltei.
Passei alguns dos melhores anos da minha vida a tratar
do meu marido, das minhas filhas e até dos filhos dos
outros enquanto dei aulas, mas fiquei emocionalmente
esgotada. As minhas filhas vieram muito cedo, mas
também fui eu que assim o desejou. O Z. achava cedo
demais mas eu impus-me pois necessitava de
demonstrar a mim própria que não era estéril. A
segunda, veio apenas dois anos após a primeira e foi
tudo demasiado rápido (“com o primeiro filho a vida muda
mas com o segundo a vida acaba”). Mas só à terceira
filha me senti de facto bem preparada e amadurecida
para ser mãe. Sempre tive muita energia mas reconheço
que nem sempre a dirigi para fazer as coisas certas e
talvez tenha cometido alguns erros. O maior de todos foi
ter saído de casa. Quando quis emendar a mão e
regressar, Z. já não me aceitou. Escusado será dizer
que, nos últimos anos, tenho andado por aí, aos caídos e
compreendo hoje, ter desejado as coisas erradas.
Erros e erros uns atrás dos outros. Vivi na Lapa numa
casa que não podia pagar, estive em Luanda onde
passei fome e humilhações em casa de uma falsa amiga,
enganei, menti e traí sempre que foi necessário.
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Estou agora mais calma e muito arrependida. Se
pudesse rebobinava toda a minha vida. Há uns tempos
atrás, desesperada com o actual rumo da minha vida,
escrevi uma longa carta e pedi à minha filha mais nova, e
com quem mais me dou, para a entregar ao pai. Dias
depois, foi-me devolvida sem sequer ter sido aberta.
Cabrão!
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PAPI
(Your song de Elton John)
Escrevo com a seriedade com que brinca uma criança
Sabemos, desde pequeninas, que o pai é o homem mais
importante das nossas vidas e não o dizemos por ser o
nosso pai, mas porque é a mais pura das verdades.
Não temos palavras para o descrever mas ele é um
homem completo, compreensivo, justo, responsável,
correcto, educado, teimoso, carinhoso, amigo, elegante,
bonito, amoroso, poeta, sonhador, apaixonado,
verdadeiro, transparente, corajoso, lutador, exigente,
trabalhador, genuíno, calmo, talentoso, casmurro,
paciente, descontraído.
Habituámo-nos desde sempre a sentir nele o equilíbrio, a
esperar dele a compreensão, a receber dele a atenção
que ao longo da nossa vida temos sempre necessitado.
Não nos recordamos de alguma vez ter estado ausente,
tirando as suas viagens de trabalho, mas das quais nos
trazia sempre alguma coisa nem que fossem apenas
chocolates. De resto, as noites todas de todos os dias,
eram nossas. Aprendemos de tal forma a respeitá-lo que
não recordamos alguma vez ter contestado qualquer das
suas decisões, se exceptuarmos as vezes em que ele
tinha de arbitrar as nossas ridículas disputas infantis de
irmãs. Quem perdia amuava, claro, encenando uma
terrível tragédia que poucos minutos depois se
desvanecia como fogo de palha. Mas mesmo quando
nos contrariava, explicava sempre o porquê das suas
decisões, ainda que muitas vezes não o percebêssemos
ou nem sequer o ouvíssemos de tão furiosas que
estávamos. Assistimos ao imenso sofrimento que a
nossa mãe lhe causou nos últimos anos de casamento e
embora tentássemos manter-nos neutrais sabíamos que
a razão lhe assistia. Achamos mesmo que ele até terá
sido demasiado brando e paciente com a loucura da
nossa mãe. Para nós, foi sempre muito mais que um pai
como o divórcio com a nossa mãe bem o prova ao
colocar sempre os nossos interesses à frente dos dele.
Um homem ficar com três filhas, é por si só estranho.
Três filhas adolescentes, cheias de caprichos,
exigências, teimosias e fonte de muitas, muitas
despesas.
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Se antes já o respeitávamos, amávamos e admirávamos
muito, esses sentimentos aumentaram depois do divórcio
para um patamar quase impossível de alcançar. O pai
não ficou apenas com a nossa custódia, ficou com tudo o
que connosco estava relacionado e em exclusividade. A
educação, o carinho, as despesas, o amor, os miminhos,
a atenção, ou seja, tudo. Tudo o que é suposto um pai e
uma mãe fazerem em conjunto, ele assumiu, sem nunca
se queixar, sem nunca pensar ou deixar transparecer
que essa situação o prejudicava ou que não era justa.
Sempre pronto a ajudar, até pessoas que mal conhecia,
alunos, colegas, amigos dos nossos amigos, com
dinheiro, (vimo-lo emprestar dinheiro sabendo que nunca
o iria recuperar e só porque nós lhe pedimos que o
fizesse) ou facilitando contactos de emprego ou
simplesmente, com conselhos. A sua bondade é genuína
e de família. A mãe dele, nossa avó, é igual. São
pessoas que nos preenchem só de as conhecermos.
Sofrem também as suas desilusões mas, como não
guardam rancor de nada ou de ninguém, vivem felizes
porque sabem que a própria vida, se encarregará de
fazer a devida justiça. Sozinho, faz face a todas as
despesas, nossas e da casa, poupando nas dele,
desdobrando-se em trabalho todos os dias das oito à
meia-noite, no escritório, em tribunais, dando aulas e
escrevendo livros. Nunca se queixa, sempre com um
sorriso nos lábios, agradece tudo o que a vida lhe dá. Um
exemplo: Sempre tivemos cães em casa que ao longo
dos anos, destruíram muita coisa, mas o feitio fácil e
paciente do pai sempre aceitou o prejuízo. Quando às
vezes lhe telefonamos a contar que eles destruíram
qualquer coisa ou fizeram um buraco na parede, ele
responde com esta sabedoria e simplicidade: Então só
temos que o tapar.
O último a entrar em casa foi o Brutus, um pitbull preto. A
entrar em casa naquele dia entregamos-lhe um bilhete
manuscrito onde havíamos escrito: Esta casa está triste,
precisa de mais vida e alegria. Ficaremos encarregues
de tudo, dar-lhe comida, banhos, levá-lo à rua a qualquer
hora. Não é preciso gastar dinheiro pois já tem vacinas,
vitaminas, cálcio, coleira, trela, colete e bonecos. Nas
férias ficará sempre connosco. Merecemos pelas boas
notas que temos. É um cão alegre, meigo, brincalhão e
muito esperto. Não larga pêlo e é muito dedicado aos
seus donos e será uma companhia para todos nós e para
o Hamlet. E estava ele ainda sem perceber muito bem o
que se passava quando a T. surgiu com o Brutus ao colo.
E foi logo amor à primeira vista. Muito mais fácil do que
pensávamos. O nosso pai tem um coração maior que o
corpo.
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Também nós lhe agradecemos por tudo o que somos e
temos. Bem sabemos ser função dos pais
proporcionarem tudo aos filhos, mas a verdade é que o
nosso pai sempre nos deu tirando de si e continua a tirar
de si para nos dar a nós afirmando que já tem tudo e até
mais do que necessita. Para ele estamos sempre em
primeiro lugar e se cada uma de nós percorre hoje o
caminho profissional que desejou, a ele o devemos.
Paga-nos os cursos superiores que escolhemos nunca
nos pressionando e nada esperando para além da nossa
entrega e dedicação e está sempre disponível para tudo
o que lhe pedimos.
Temos uma relação muito especial confiando
incondicionalmente nele e ele em nós. Foi com ele que
primeiro falámos sobre sexo. Aceitou bem os nossos
namorados, comprava-nos a pílula e criou sempre
condições para nos facilitar essa difícil aprendizagem.
E foi connosco que ele falou, tendo até a humildade de
nos pedir conselhos quando conheceu as duas mulheres
por quem se apaixonou depois da nossa mãe. Ambas
mais novas, lindíssimas e interessantes mas muito
complicadas que não o amaram como ele merecia. Há já
dois anos que está só e não conseguimos compreender
porquê. Talvez porque não procure e espere que
aconteça. Apesar dos seus 50 anos, tem um ar jovem,
uns olhos ora verdes ora azuis, cabelo grisalho muito
curto máquina três, continua elegante e charmoso, com
uma mente jovem e um espírito novinho em folha. Oh!
Mulheres deste país, onde têm os olhos?
Nós e quem o conhece não pode deixar de o admirar por
tudo o que ele é e faz. O seu exemplo (que nem sempre
conseguimos seguir, tal como, o de fazer a cama e ter
sempre o quarto arrumado) corresponde para nós a
muitas lições de vida. Com ele aprendemos a dar tudo
sem esperar nada em troca, a não guardar
ressentimentos, porque os sentimentos negativos viramse contra quem os sente e não contra quem são
sentidos, a darmos tudo o que tivermos sem esperar
reconhecimento dos outros, no fundo, a sermos sempre
verdadeiros para nós próprios (“Para ser grande, sê
inteiro/ nada teu exagera ou exclui/ sê todo em cada
coisa/põe quanto és no mínimo que fazes/ assim em
cada lago a lua toda brilha/porque alta vive”).
São poucas as pessoas cujas palavras correspondem
por completo à realidade das suas vidas. O nosso pai é
uma delas. Hoje, somos já maiores de idade, temos os
nossos namorados e as nossas vidas mas continuamos
a viver juntos, não conseguindo conceber a nossa vida
sem ele ao nosso lado. Só mortas, sairemos de casa!
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MATER FAMILIAS
(You are the first, my last, my everything de Barry White)
Todos os que passam por nós deixam um pouco de si e
levam um pouco de nós
Quando os meus pais me fizeram já se amavam muito e
esse amor, continuei sempre a testemunhá-lo, até aos
dias de hoje. Recordo-me, ainda muito pequeno, de os
ouvir fazer amor, numas férias, em Vila Real de Santo
António, em que dormi no mesmo quarto, numa caminha
ao lado da cama deles e, muitos anos mais tarde, ao
entrar em casa inesperadamente, de os surpreender em
circunstâncias inequívocas, que obviamente, tentaram
disfarçar. O meu pai viveu sempre dedicado ao trabalho
fora de casa e à família e a minha mãe à família e ao
trabalho dentro de casa. Vivíamos de forma simples e
comedida, sempre em contenção de gastos e nada
desperdiçando porque como dizia o meu pai: quem
guarda, tem. Poupávamos nas coisas mais incríveis e
que podem parecer ridículas mas era mesmo assim (por
exemplo, nos banhos o esquentador desligava-se a meio
do duche acabando-se este com a água quente que
ainda restava nos canos)
O meu pai era um homem autoritário que com a idade foi
amaciando a sua maneira de ser. Não admitia ser
contrariado nem queria saber a opinião de ninguém,
muito menos de nós. O que decidia estava decidido
ainda que só por ele. Eu, por detestar o seu feitio, estava
frequentemente em desacordo e amiúde em conflito
aberto. A nossa relação só não se agravou mais, porque
entretanto, saí de casa para estudar em Lisboa.
A minha mãe, ao contrário, era um espírito doce e
bondoso, cheia de compreensão e paciência, para com
tudo e com todos. E um espírito poético também. Tem
mais de mil poemas escritos quase todos em forma de
quadras irregulares e sobre os assuntos mais díspares
desde a Amália Rodrigues até aos animais de estimação.
Num dos últimos poemas intitulado Eu sou assim, a
minha mãe auto-retrata-se:
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Sou uma pessoa simples
Sou uma pessoa modesta
Se tenho os filhos comigo
Para mim é uma festa
Sou meiga por natureza
Não sei maltratar ninguém
Ajudo sempre que posso
Comigo todos estão bem
Não quero ser diferente
Mas sou mesmo assim
Não digo mal de ninguém
Espero que não digam de mim
Sou sincera sou leal
Isto e muito mais
Honesta para comigo
Tudo herdei de meus pais
Tentei passar aos meus filhos
Todos estes predicados
E acho que consegui
São simples e educados
Sou o tudo e o nada
Sou tímida e extrovertida
Sou triste e sou alegre
Carinhosa e convencida
Não sou rica não sou pobre
E tenho os cinco sentidos
Estou velha e tenho idade
Mas feliz por ter nascido
Sou o princípio e o fim
De uma bela meada
E quem a souber dobar
Terá sempre uma aliada
E é assim que me vejo
Tal como eu descrevi
Já escrevi sobre outros temas
Mas adoro falar de mim
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Uma vocação tardia e só possível, quando começou a ter
mais tempo para si, os filhos longe e o trabalho
doméstico menos intenso. Foi sempre uma mulher alegre
e feliz, embora se queixasse permanentemente de dores
(talvez por se chamar Mariana das Dores) e estivesse
convencida que iria morrer cedo.
Lembro as vezes que passávamos de mão dada, em
frente ao Liceu, teria eu quatro ou cinco anos, e ela
invariavelmente me dizer: Filho, nunca chegarei a ver-te
estudar aqui.
Viveu grande parte da sua vida com uma mágoa
profunda que testemunhei, o desgosto de não viver numa
casa sua pois vivíamos com uns tios do meu pai em casa
deles. Só muitos anos depois o meu pai lhe fez essa
vontade comprando um andar no mesmo prédio.
Quatro anos depois de mim nasceu o meu irmão F., um
verdadeiro Adónis e o único artista da família. Ainda na
barriga da minha mãe, e numa antecipação dos seus
futuros movimentos em palco, já ele fazia os pinos, os
mortais e as espargatas que o viriam a notabilizar, anos
mais tarde no bailado. Era um atleta completo, um
autodidacta do corpo. Em crianças, dormíamos no
mesmo quarto e o nosso desporto favorito era lançarmonos, em queda livre, de cima do guarda-fato para as
camas, nelas aterrando com glória e estrondo mas sem
nunca as quebrarmos nem nos partirmos. Ambos saímos
muito cedo de casa dos nossos pais e nunca mais
voltámos, a não ser de forma esporádica e de curta
duração, tipo visita de médico. Também ele casou cedo,
tem duas filhas lindíssimas e ainda continua casado com
a mulher certa. Depois de uma carreira brilhante na
dança reformou-se aos quarenta anos e é, agora, pintor.
No meu quarto, debruçado em jeito de cabeceira da
minha cama, um enorme díptico dele espalha, numa
profusa orgia de cores, a sua imensa presença de artista.
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Os filhos não devem morrer antes dos pais
(Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler)
Tu és o arco a partir do qual são disparados os teus
filhos como setas vivas
Das minhas manas sou a do meio mas casei primeiro e
tive dois filhos que nunca me deram canseiras apesar do
nascimento do meu primeiro filho Z. me ter rasgado toda,
abrindo-me quase as portas da morte. Durante semanas
uma febre estranha prendeu-me à cama num delírio
inconsequente e pré-mortal. Mas eu, após já ter perdido
duas meninas, desejava tanto aquele filho que me
agarrei toda a ele e à vida. E consegui ficar com ambos.
Depois de recuperada, pessoas antigas disseram-me
que para o menino não ter lua, eu devia, numa noite de
luar, pegar nele e olhando a Lua bem nos olhos dizer:
Lua, Lua, aqui está o meu filho, ajuda-me a criá-lo. Eu
sou mãe, tu és ama, cria-o tu que eu lhe dou mama.
Assim o fiz e lhe dei de mamar, tão bom, até aos sete
meses. Depois é que foi um problema para comer.
Chegava a fazer-lhe várias papinhas diferentes e de
seguida mas, mesmo assim, só comia quando o
enganava com a chupeta. Fingia que lha ia pôr, ele abria
então a boquinha e eu enfiava-lhe finalmente a colher de
papa. Mais tarde chegava a ter que o levar para o
telhado pois só sentado nas telhas comia alguma coisa.
O meu filho Z. foi precoce no andar mas atrasado no
falar, tendo começado a gatinhar logo aos quatro meses.
E eu (talvez por nunca ter tido, em criança, uma boneca)
era a única que lhe dava banho, lhe mudava as fraldas,
lhe dava de comer, não permitindo que mais ninguém o
fizesse, não por recear que o fizessem mal, mas porque
o prazer era tanto que o meu egoísmo de mãe não me
permitia partilhá-lo
Tirei-lhe tantas fotografias engraçadas, ora sentado
numa cadeirinha alentejana com duas agulhas a fazer
malha, ora com o bacio na cabeça a fazer de chapéu ou
no galinheiro correndo atrás das galinhas, tudo me servia
de pretexto para fixar esses momentos que me punham
babada de enlevo e admiração.
E o dia em que a nossa empregada Ana estava em cima
de um escadote e ele se pôs a olhar por baixo das saias
saindo-se com esta: boa perna tem a Ana! Anos depois,
quando a Ana casou, saiu vestida de noiva da nossa
casa e foi ele quem lhe entregou o ramo de flores.
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Tenho essa fotografia e muitas mais bem guardadas num
álbum e no coração. A primeira vez que os avós o
levaram de férias para as Caldas da Rainha chorei três
dias consecutivos mas, já adolescente, a primeira vez
que saiu sozinho apenas com amigos, tive um desgosto
devastador aliado ao medo doentio de que algo lhe
pudesse acontecer e eu não estivesse lá. Pedi-lhe que
me escrevesse todos os dias um postal de correio nem
que fosse apenas para dizer: mamã, estou bem. E ele,
obediente, escreveu. Já quando era pequenino todas as
tardes depois do banho, vestia-lhe um daqueles bibinhos
que se usavam naquele tempo, sentava-o numa
cadeirinha ou no poial da porta da rua e dizia-lhe: agora
o meu menino vai ficar aqui sentadinho e não se vai
embora, está bem? E ele ficava entretido a brincar
sozinho até o ir lá buscar.
Apesar de recordar com muita saudade as suas
infâncias, sinto hoje que gozei pouco os meus filhos
porque ambos saíram de casa muito cedo para estudar,
trabalhar e casar. E ambos casaram muito novinhos.
O meu filho Z. adorava-me e dizia muitas vezes que só
casaria com uma mulher igual à mãe. Afinal, veio a casar
com uma pessoa que era o meu oposto em todos os
sentidos. Hoje está divorciado e só demorou vinte e dois
anos a perceber as diferenças.
Mas de parvo não tem nada. Sempre gostou muito de ler
ainda pequenino, desde histórias aos quadradinhos até a
grandes calhamaços com centenas de páginas só com
letras. Em casa ou na biblioteca municipal estava de
manhã à noite agarrado a livros incluindo as próprias
férias. Às vezes, nas tardes de Inverno fazia-lhe umas
torradinhas com chá pois ele adorava comer e ler ao
mesmo tempo. Nos estudos também nunca falhou,
passando sempre todos os anos, desde a primária até ao
dia em que se licenciou em Direito. Recordo as vezes,
ainda no Liceu, em que se levantava, em manhãs frias
de Inverno, às cinco da manhã para estudar, sentado
numa mesa-de-estufa com braseira de carvão, enrolado
numa mantinha, até à hora de ir para os testes. Eu com
pena dele também me levantava e ficava por perto
fazendo outras coisas. Ao menos fazia-lhe companhia.
Depois quando foi estudar para Lisboa, continuou a ser
auto-suficiente nunca necessitando que eu ou o pai lhe
tivéssemos que resolver quaisquer problemas.
Bastava-nos enviar-lhe a mesada, que para pouco mais
lhe dava do que para as refeições e os transportes, que
ele orientava-se e fazia todo o resto. Contudo, no
primeiro ano em que esteve em Lisboa, entusiasmou-se
demasiado na Feira do Livro e gastou num só dia toda a
mesada do mês.
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No resto do mês, foi obrigado a comer apenas sopa e as
chamadas “repetições” na cantina da Faculdade e
acabou por adoecer com hepatite.
Só uma única vez me lembra de nos pedir mais dinheiro.
Tinham-lhe roubado a carteira com todo a mesada e
claro que lho demos sem quaisquer perguntas. O meu Z.
nunca nos mentiu. Nem sequer quando estivemos quase
a perde-lo. Depois das doenças infantis como o sarampo
e a papeira, de uma penosa colite húmida aos 6 anos
que o obrigava a passar dias inteiros na sanita com
dores e espasmos horríveis, de uma intoxicação com gás
do esquentador durante um duche na casa-de-banho da
nossa casa em que até desmaiou, de uma estúpida
hepatite aos dezoito anos, que o manteve na cama
durante um mês a comer os grelhados e cozidos que eu
lhe fazia com extremo cuidado e carinho, há uns anos
atrás, detectou-se-lhe num exame de rotina, um cancro
na bexiga. Foi, de imediato, operado e até hoje tem
estado bem. Nem quero pensar no desgosto que teria se
tivesse corrido mal. Os filhos não devem morrer antes
dos pais.
20
Ah! CANITA…
(Os Teus Olhos Castanhos cantada por Francisco José)
Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira
Comecei a trabalhar era ainda uma criança. Aos doze
anos já carregava caixotes de enchidos e sebos, ajudava
nas matanças e acompanhava o meu tio às feiras para
comprar gado. Também já me punham atrás do balcão
do talho a aviar as clientes que me achavam muita graça
e faziam festas na cabeça elogiando-me a atitude
profissional e o sorriso maroto. Habituei-me a levantarme de madrugada para ter tudo preparado no talho do
meu tio, no mercado municipal antes da sua abertura às
seis da manhã. Lá permanecia toda a manhã e as tardes
passava-as no Matadouro Municipal onde matava
desviscerava e desmanchava os animais que no dia
seguinte venderia ao quilo e ao balcão do talho. Não é
que tivesse um particular prazer em matar mas o
momento de espetar aquela faca de lâmina fina e
pontiaguda no cachaço das vacas e novilhos e eles como
que fulminados abriam as quatro patas e ficavam com
aquele imenso corpanzil estatelado no chão de pedra,
era um verdadeiro momento de poder sobre a vida e a
morte. Sentia-me como uma espécie de sacerdote dos
tempos antigos sacrificando diariamente animais aos
novos deuses do consumo. Depois abria com um corte
cirúrgico, de cima a baixo, os seus enormes ventres
donde lhes extraia todas as vísceras e em seguida a pele
que ia despegando lentamente da carne, e só depois já
em carcaça, iniciava a desmancha. Estive naquele
matadouro mais de trinta anos mas nunca me consegui
habituar, e hoje ainda me parece por vezes senti-lo,
àquele execrável e enjoativo cheiro, oriundo da sala de
lavagens das fressuras e das dobradas, que se colava à
pele e nem o banho o tirava. À noite, ia para os
trapinhos, que é como quem diz, para a cama, logo após
o jantar porque às três da madrugada era hora de
levantar e voltar ao talho para preparar tudo antes da
abertura ao público. Além desta rotina diária e
permanente também tinha de ir aos mercados comprar
os animais, arrendar as pastagens para os engordar e
tratar de todos os pagamentos ao pessoal. Era uma
preocupação constante e permanente que nunca me
permitiu tirar férias.
21
Só descansava aos domingos em que no Inverno ia ao
futebol e no Verão ia à praia a Sines ou a São Torpes. Às
6 da manhã acordava os miúdos acendendo-lhes a luz
do quarto com o grito: Toca a levantar, já são horas! Já
perto da praia parávamos na estrada para matar o bicho
com umas almôndegas ou pataniscas de bacalhau e um
vinho tinto. Depois da manhã de praia procurávamos um
local no pinhal e aquilo é que era comer e beber antes de
dormir a sesta. Na verdade, o que eu sempre mais gostei
na vida foi de comer e de beber.
A ninguém admirará o cansaço acumulado e a saturação
do corpo e da cabeça que me levaram a uma reforma
prematura mas da qual nunca me arrependi. Todos
aqueles anos de sacrifícios haviam-me permitido
amealhar o suficiente para garantir uma reforma modesta
mas digna. Mas a mais forte razão pela qual me
desgostei daquela vida foi a prisão. Uma brigada da
fiscalização sanitária foi um dia ao talho, encontrou umas
peças que considerou impróprias para consumo e
levantou-me um processo-crime onde fui condenado a
uns meses de prisão ou a uma multa. Teimoso como sou
e considerando não ser culpado não aceitei pagar a
multa e preferi cumprir a pena. Reconheço hoje não ter
valido a pena essa pequena avareza tendo sido uma
opção errada.
Ao contrário, a mais sábia decisão da minha vida foi ter
casado com a melhor mulher do mundo, uma espécie de
madre Teresa sem hábito mas muito mais bonita.
Quando a conheci, tinha ela dezasseis anos, era já uma
mulher feita, mais alta que eu, com um peito e um pernão
mesmo como eu gostava. Comecei logo a rondar a rua
dela mas foi num bailarico a primeira vez que a apertei
nos meus braços depois de, à distância, lhe ter feito sinal
rodopiando com sensualidade e atrevimento o dedo
indicador na sua direcção. E ela disse que sim e lá fui eu.
Ah! Canita! Como nessa altura ainda estava na tropa,
íamos namorar para o jardim público ao lado do quartel
ou encontrávamo-nos no inicio da noite na casa dos seus
pais, eu em baixo na rua e ela debruçada à janela. No
dia do casamento, saí do talho ao meio-dia, fui a casa
tomar banho e mudar de roupa antes de dizer o sim de
que nunca me arrependi. É uma fala-barato que não
consegue estar um segundo calada mas no primeiro
momento em que a vi soube logo que tinha encontrado a
mulher da minha vida. Acho que a conquistei
definitivamente quando um dia lhe cantei, com uma voz
melosa e quente, Teus Olhos Castanhos, uma canção
famosa na época.
22
Era assim: Teus olhos castanhos/de encantos
tamanhos/são
pecados
meus/são
estrelas
fulgente/brilhantes e luzentes/caídas do céu/Teus olhos
castanhos são mundos são sonhos/ são a minha cruz/
Teus olhos castanhos de encantos tamanhos/são raios
de luz/ Olhos azuis são ciúme/de nada valem para
mim/olhos negros são queixume/de uma tristeza sem
fim/olhos verdes são traição/são cruéis como
punhais/olhos bons como o coração/os teus, castanho
leais.
Hoje, com quase oitenta anos de idade e mais de
cinquenta de casamento, não consigo compreender
como ela conseguiu suportar-me tanto tempo. Tenho um
feitio difícil e sou de ideias fixas. As coisas fazem-se
como eu quero ou não se fazem. Estou convencido que
paciência desta mulher deve ser infinita. Além dos
trabalhos domésticos nos quais é perfeita, nos últimos
anos deu-lhe para escrever. Passa os dias enchendo
folhas e folhas de cadernos com quadras, estórias e até,
desafiada por um dos filhos, já escreveu as memórias.
Para além de tudo isto, deu-me dois filhos muito
melhores do que eu e, quando assim é, um pai só pode
sentir orgulho e vaidade. E ainda bem que não tive filhas.
Tenho umas ideias um pouco antiquadas sobre as
mulheres, a sua educação e o seu papel na sociedade
pelo que teria sido um grande problema para mim e
principalmente para elas. Ainda recentemente a minha
neta mais velha me pediu para passar com o namorado
um fim-de-semana na minha casa do Algarve. Claro que
sim, disse-lhe, mas como não são casados o rapaz terá
de dormir noutro sítio. Acabaram por ir ficar no parque de
campismo. O pai dela, o meu mais velho, ainda me
telefonou tentando convencer-me a mudar de ideias.
Como não conseguiu demover-me, acusou-me de o ter
desiludido muito pois já me pensava mais aberto e
sensível aos novos tempos. Filho, eu sou assim, o que é
que tu queres, um pouco rígido talvez mas tenho as
minhas ideias e não consigo mudar. O outro meu filho, o
mais novo, diz que eu tenho uma personalidade primitiva
e machista mas ele pode dizer o que quiser, não me
importo.
Acho que também tenho sido um bom marido. Pelo
menos é o que ela diz. Nunca fumei nem bebi (só não
dispenso o vinho às refeições), nunca perdi dinheiro ao
jogo nem tive amantes como os homens da minha
geração costumavam ter. Desde que me reformei com
pouco mais de quarenta anos nunca mais fiz nada. Não
leio, faz-me doer a vista, não ouço música, é só barulho,
só saio de casa para ir às compras, mas gosto de comer
e de ver televisão de manhã à noite.
23
Também gosto de poupar. Em tudo. Como estou sempre
a dizer: quem poupa tem! À minha mulher, por exemplo,
estou-lhe sempre a desligar o forno para poupar energia,
e por vezes lá fica o bacalhau um pouco cru ou a perna
de peru ainda em sangue, mas não me importo. Aliás,
para mim tudo o que a minha mulher cozinha está
sempre bem e com o sou de boa boca gosto de tudo.
Também desligo sempre o esquentador antes de
terminar os duches pois não é conveniente fechar a
torneira e a água quente permanecer nos canos.
Estraga-os.
Todos os dias muito cedo ando de bicicleta e faço
musculação com uns pesos artesanais que eu próprio fiz
com umas garrafas de plástico engordadas por areia da
praia. Consigo assim manter-me em forma e, até ao
momento, cheio de saúde. Mas às vezes sinto tonturas e
tenho medo, medo não, pavor da morte. Gosto
demasiado da vida para a perder.
24
A INICIAÇÃO DO AMOR
(Whatever will be will be, cantada por Doris Day)
Gosto mais de ti que do sol do sal ou de mim
Enquanto adolescente a minha primeira e única paixão,
assolapada mas platónica, chamou-se Maria José. Era
linda, de pele muito branca e olhos de um verde mais
claro que as águas de um lago pouco profundo.
Era amiga de uma prima minha que a conhecera num
acampamento de férias onde haviam cimentado uma
daquelas amizades adolescentes que se julgam
profundas como o mar e eternas como o tempo.
Não admira que tenham desde logo concordado em
prolongar aquela relação estival para o resto do ano
combinando passar o resto do Verão na cidade da nossa
infância. Foi aí que a conheci.
Nunca até então, e eu já tinha treze anos, qualquer
rapariga me havia despertado da infantil letargia do bibe
e do calção que inibe os rapazes de constatarem que o
mundo se encontra dividido em masculino e feminino.
Bom, talvez esteja a exagerar. O que eu quero dizer é
que até esse momento nenhuma outra rapariga me havia
impressionado ao ponto de provocar aquela aceleração
do coração que nos faz fazer figuras de parvo diante de
uma mulher. Nessas alturas, não sabemos o que dizer,
onde enfiar as mãos, para onde olhar e sempre que lhe
falamos as palavras parecem sair arrastadas, moles e
sem nexo.
Para um rapaz da minha idade, estava até convencido de
possuir um grau elevado de maturidade, fruto muito
cultivado da minha paixão pelos livros que desde criança
devorava compulsivamente. Essa febre livrofágica
permitira-me, assim o julgava, ter adquirido um capital de
vivências sentimentais e um alargado espectro de
experiências alheias geradoras de um conhecimento
profundo das realidades da vida. Pura ilusão! Não
passara da sua película mais superficial (“há que
procurar para além da superfície e mergulhar no oceano
profundo da vida. Só assim haverá alguma esperança”).
Porém, esse saber de leituras feito fazia-me sentir uma
agradável
presunção
de
superioridade
que,
enganadoramente, me fazia pairar nas alturas sobre os
25
comuns mortais da minha idade e me punha a coberto
das suas infantilidades.
Confundia assim a verdadeira timidez e a efectiva
insegurança que sentia com um estado de espírito
superior, naturalmente, falso e aparente. Digamos que
era uma defesa como outra qualquer!
Mas disso só tive consciência no dia em que a Maria
José olhou para mim e não me viu. Naquela altura eu era
mais um adolescente sem graça, entornado para dentro
de mim próprio. Baixinho, com cabelinho curto e
espetado, movimentos desajeitados, roupa e corpo em
desalinho, infiel às modas juvenis do meu tempo, a
minha capacidade de atracção era igual a zero.
A Maria José, pelo contrário, já pintava os olhos e punha
rímel nas pestanas, nos lábios não precisava de nada
porque já eram doces e cor de sangria, o seu corpo era
um poema mais belo que qualquer um dos que eu nesse
tempo escrevia, e as únicas roupas que lhe conheci eram
calções muito justos e tops que lhe espalmavam o peito
quase inexistente. Talvez por ser filha única de pais
separados, dos rapazes, o que ela apenas pretendia, era
que a fizessem rir e a divertissem e o meu ar sério e
embaraçado, por certo, a aborrecia.
Escrevi-lhe poemas que ela nunca leu porque não lhos
mostrei, sonhei passeios de aventura para os quais
nunca a convidei, fantasiei cenas de amor em que
nenhum de nós participou, imaginei o meu futuro com
ela, sem conseguir sequer ser, o seu presente.
Nos bailes de garagem organizados pela miudagem
ficava a vê-la dançar com outros, lançando-lhe olhares
tristes e pesarosos de amante rejeitado. Fingia,
entretanto, divertir-me perdidamente, falando alto e rindo
com um riso cujo som mais parecia o de um animal ferido
ou moribundo. Por vezes pedia-lhe para dançar, ela dizia
que sim, mas eu tremia o tempo todo e as músicas que
nesses momentos eram tocadas, (o samba pa ti de
Carlos Santana, a whiter shade of pale dos Procol Harum
ou o will shall dance de Demis Roussos) tornavam-se
hinos que, à noite ouvia, em discos de vinil, no meu
quarto, de olhos fechados, rendido e maravilhado. Um
dia, num desses bailes, disse-lhe ao ouvido baixinho:
Quero confessar-te uma coisa. Não quero ser só teu
amigo. Amo-te um bocadinho.
Pondo as mãos no meu peito a Maria José olhou-me de
lado com um riso gargalhado e disse-me: Não estás bom
da cabeça! E deixou-me a dançar sozinho.
Envergonhado, não mais apareci à sua frente. Uns dias
depois foi-se embora de regresso a casa e até hoje não a
voltei a ver.
26
Há dias contei esta história a uma das minhas filhas que
me disse: Deixa lá pai, nem ela sabe o que perdeu.
Como sabe bem ouvir estas coisas.
Uns anos depois, após um brevíssimo entusiasmo que o
meu pai, numa atitude que teve tanto de sábia quanto de
autoritária, acabaria por terminantemente proibir e, mais
uma vez no Algarve, durante umas férias de Verão, tive a
minha verdadeira iniciação sexual.
Na praia, ao luar, depois de te sido engatado num bar,
perdi a minha virgindade com uma estudante de
medicina, ninfomaníaca e sem vergonha. Depois dessa
noite, seguiram-se duas semanas loucas de sexo puro e
duro mas desajeitado e sem pinga de amor, de parte a
parte. Na última dessas noites, entrou-me na cama às
seis da manhã a tresandar a sexo. Confessou-me não ter
resistido a experimentar com um amigo gay, só para
saber como era! Mais depressa do que entrou saiu e
nunca mais soube nada dela.
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OH! AMIGOS MEUS…
(The thrill is gone de B.B. King em dueto com Eric Clapton)
Sou inocente. Confio. Tenho o maior poder do mundo.
Nunca na minha vida tive muitos amigos, daqueles com
os quais sentimos uma espécie de corrente eléctrica que
nos faz aceitar tudo o que se diz, se faz ou se quer fazer,
mas sei muito bem o que é a amizade. Aquela amizade
quimicamente pura, de amor sem sexo, de osmose dos
pensamentos, de expressão de vontades a uma só voz.
Destes amigos e desta amizade, numa vida inteira,
nunca encontramos mais do que dois ou três. Eu acho
que tive três que conheci na Universidade (a tropa
também os faz mas eu nunca a fiz) e enquanto a vida
nos deixou fomos unhas com carne.
O A. era natural de Matosinhos, alto, moreno e forte,
jogava andebol aos fins-de-semana num clube lá da
terra. Era de nós todos o mais calado mas quando se ria
o seu riso contagiava quem o ouvisse. Era o único que já
namorava embora a namorada estudasse no Porto e o
seu ar sisudo, por incrível que pareça, despertava
sentimentos, mais ou menos maternais, nas mulheres
que ele, obviamente, não rejeitava.
As nossas conversas, os momentos de estudo, as
refeições na cantina eram tão gratificantes e afiguravamse-me de uma importância tão transcendente que me
faziam sentir um privilegiado por ter um amigo assim tão
fantástico e único. Todas as tardes, depois das aulas e
do estudo, descíamos em direcção aos Restauradores e
íamos ao cinema no Palácio Foz, ver ciclos completos
das obras de Antonioni, Bergman, Renoir, Truffaut e
tantos outros monstros da realização. Nessa altura o
cinema era de autor e não de actores como é hoje.
O N. viera de Angola, fugido com a família das
consequências excessivas da Independência. O seu
cabelo comprido e loiro, cai-lhe nos ombros e uma barba
esparsa e reles de poeta parisiense quebrava-lhe o tom
feminino do rosto. Era vaidoso e não tinha vergonha. Os
seus olhos verdes e as suas palavras atrevidas
permitiam-lhe mudar de namorada como quem muda de
peúgas. Tinha sempre programas e nos intervalos abria
os livros, embora rapidamente os fechasse.
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A sua especialidade eram as festas orgiásticas que dava
na sua casa onde reunia os seus amigos e
principalmente as amigas de Angola, lá tentando repetir o
ambiente encantado e sensual das festas africanas.
Gabarola como era, não se escusava de me pintar, com
traços fortes e cores quentes, descrições mais ou menos
fantasiosas do que por lá se passava.
O R. era o político que tinha vindo do Alentejo onde tinha
tribuna debaixo das arcadas da praça do Giraldo. Tinha
cabelos castanho compridos e uma barba revolucionária
e como todos os alentejanos era também poeta e pintor,
declamando, amiúde e em quaisquer circunstâncias,
entre muitos outros, António Maria Lisboa, Mário
Cesariny, Alexandre O’Neil, Fernando Pessoa (e Álvaro
de Campos), Eugénio de Andrade, Herberto Hélder e
Ramos Rosa. Muitas noites passámos juntos, lendo em
voz alta e empolgada, um ao outro, estes e outros
poetas, Rimbaud e Baudelaire, Ginsberg e Yeats ao som
da música de Bob Dylan, Van Morrison, Patty Smith e
Frank Zappa.
Como só eu possuía carta de condução era a mim que
cabia conduzir-nos por aí sem destino, no velho carro da
mãe dele, um Datsun SSS, mais maluco e potente que
qualquer um de nós naquela idade. Várias vezes, servi
de motorista dele e das suas muitas namoradas, e
enquanto conduzia ouvia-os, embrulhados no banco de
trás, numa sonoplastia de beijos, murmúrios e gemidos.
Nessa altura fumávamos e tivemos algumas vezes que
fugir à Judiciária tremendo com medo de sermos
apanhados na posse de umas míseras gramas de erva
ou haxe.
Vivíamos numas águas furtadas de uma casa senhorial
na Rua da Madalena e foi lá que pela primeira vez senti
aquela sensação de violentação quando somos
roubados. Havia recebido há pouco tempo a minha
mesada, apenas trezentos euros na moeda de hoje mas
que muitos sacrifícios custavam aos meus pais e que eu
tinha de esticar até ao limite do impossível durante um
longo mês. Coloquei, à vontade como sempre fazia, a
carteira na cómoda ao lado da minha cama e já não sei o
que fui fazer. O que sei é que quando regressei ao
quarto a carteira tinha desaparecido. Estava sem
dinheiro e sem documentos. Fui obrigado a ter de pedir
aos meus pais nova mesada. Combinámos encontrarnos em Setúbal, onde o Benfica jogava nesse domingo.
Apareci-lhes de sandálias indianas, calças de bombazina
gastas e desbotadas, uma camisola interior branca de lã
grossa das antigas e por cima de tudo isto, um sobretudo
castanho, comprido e encardido que havia pertencido ao
avô de um colega.
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Quando me viu, perante o meu aspecto, o meu pai até
chorou. Ainda hoje quando recordamos esse momento
ele fica emocionado. Uns dias depois a carteira
reapareceu em cima do telhado com os documentos
mas, obviamente, sem o dinheiro. Vi-a pela janela da
mansarda, subi ao telhado, recuperei-a e sentado nas
telhas olhando o perfil mágico e triste de Lisboa, perplexo
e atónito, compreendi que também existem ladrões que
são amigos.
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VÊEM AÍ OS VIKINGS!
(Trust in Me de Susheela Raman)
Gémeos idênticos não têm o mesmo futuro
(Pitágoras)
O meu amigo J. gostava de parafrasear Pessoa dizendo
que havia chegado aos 50 anos sem nada ter feito na
vida, na ciência ou na sua própria individualidade.
Era o meu amigo mais antigo dos tempos do Liceu e era
o maior bicho-do-mato que alguma vez conheci. Não
tinha vícios. Não bebia, não fumava e não fodia. Nunca o
vi com uma namorada nem alguma vez suspeitei que
estivesse apaixonado. Passa, ou melhor arrasta, como
ele diz com exagerado ênfase, os seus dias entre o
quarto alugado em Lisboa, o seu gabinete de professor
catedrático no Técnico e a sua verdadeira casa na
província alentejana. Éramos inseparáveis enquanto
estudantes no Liceu mas depois a vida separou-nos e só
muitos anos depois nos voltámos a encontrar. Telefonoume uma tarde e combinámos encontrar-nos ao final do
dia. Fartámo-nos de falar fazendo um ponto de situação
da nossa vida sem interesse até ao momento em que
com surpresa o ouvi confessar-me que só desejava
morrer. Mas porquê? Perguntei-lhe. Isto não vale a pena,
respondeu. Não tenho estrutura para viver e quanto mais
cedo morrer melhor. A que conduz a solidão? À
iluminação ou à aniquilação? Perguntei a mim próprio.
Eu sei que a vida tem o seu quê de criminoso e ninguém
está inocente. Mas não estás a ser demasiado
pessimista e radical? Já te interrogaste, pergunta-me ele
esfregando o olho por dentro dos óculos, qual é o sentido
da vida? Haverá outra maneira de pensar, no sentido da
vida em que a morte tem sempre a última palavra, que
não no seu absurdo, considerando-se o absurdo, na sua
acepção existencialista, como o confronto entre a razão
humana e a indiferença do Universo? É verdade,
respondo, mas como defendia Camus, se não nos
podemos revoltar contra o absurdo, podemos sempre rirnos dele. E mais, acrescento ainda eu tentando reforçar
a ideia, acredito mesmo que podemos viver sem a
esperança de sermos recompensados pelo que fazemos,
conscientes que só os nossos comportamentos e
atitudes, ao lutarmos pelos nossos objectivos, poderão
fazer a diferença e criar uma vida com sentido através
das escolhas que vamos fazendo. Do fundo do seu olhar
míope J. e abrindo os dedos das duas mãos num gesto
muito seu para dar mais ênfase às palavras, É bem
32
bonito o que dizes mas o maior falhanço de uma pessoa
é quando vive uma mentira e se engana a si própria.
Ora, ora, e mudando de assunto para desdramatizar,
Falaste há pouco de existencialismo. Curioso há anos
que não ouvia essa palavra! Quando tinha vinte anos
fartei-me de ler Sartre. Virá talvez desses tempos a
minha convicção que é da responsabilidade de cada
indivíduo determinar o sentido da sua própria vida e ser
responsável pelos seus actos. Devemos viver o momento
presente e esforçar-nos para conseguir entender,
enfrentar e viver com os factos da vida. Ouve, diz ele, Eu
sei perfeitamente que não existindo um sentido préestabelecido da vida, o sentido da nossa própria vida só
pode decorrer das escolhas reais que fazemos. E as
minhas foram certamente erradas. Sim, sim, achei dever
precisar, embora para essas escolhas existam
condicionalismos de ordem genética e cultural que as
podem afectar. Mas não te compreendo, és um cientista,
tens uma carreira académica e reconhecimento
profissional, estabilidade económica… Z, diz ele
ajeitando os óculos num gesto que nele significava
fatalidade, A ciência dá respostas mas não ensina a viver
e a capacidade económica pode fornecer-nos os
recursos que necessitamos para viver mas não é
suficiente para nos proporcionar uma vida realizada.
Ora aí está, por isso mesmo a criação de uma vida com
significado é semelhante à criação de uma obra de arte,
como se déssemos um estilo ao nosso próprio carácter.
Não me digas que deste agora para filosofar?
Eu? Não. Toda a gente sabe que a filosofia é uma
espécie de comédia absurda mas sem piada.
Nietzsche disse um dia que não queria decepcionar
ninguém, nem mesmo a ele próprio mas eu sinto que, ao
contrário, decepcionei toda agente começando por mim.
Não acredito. Soam-me a falso essas palavras.
Acredita sim porque nada há de mais verdadeiro que
uma calúnia sincera.
Afinal quem é que está a filosofar? Perguntei tentando
levantar-lhe o ânimo, Lembras-te daquele filme dos
Monthy Pynthon, o Sentido da Vida, em que na cena final
uma das personagens diz que vai finalmente anunciar o
sentido da vida e, abrindo um envelope, lê: “Bem, não é
nada de especial. Tentem ser bons uns para os outros,
evitem comer gorduras, leiam um bom livro de vez em
quando, dêem uns passeios e tentem viver em paz e
harmonia com as pessoas de todos os credos e nações”.
Parece simples, não é? E porque é que não é?
É simples, sim, as pessoas é que complicam tudo. Deixame recordar-te mais uma vez os Malucos do Circo
naquele episódio que decorre num cenário de talk-show
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com vários convidados já cadáveres imóveis nos seus
lugares. Lembras-te? O apresentador pergunta:
-Meus senhores, há ou não vida depois da morte?
-Sir Brian?...(silêncio);
Professor?...(silêncio);
Padre?...(silêncio)
Muito bem, aqui está, os três acham que não.
Rimo-nos à brava, claro.
34
DEUS? O QUE É QUE SE PASSA?
(You Know I’m not Good de Amy Winehouse)
Se Deus existe espero que Ele tenha uma boa desculpa
(Woody Allen)
Mas J. estava mesmo virado do avesso e não se deixou
desarmar facilmente. Já faltava que chamasses à
colação a religião. Sabes bem que a fé religiosa é filha
da ignorância e do medo e as religiões surgem num
período da pré-história humana em que ninguém fazia a
mínima ideia do que estava a acontecer. A fé religiosa
fundamenta-se em mitos e pensamentos ilusórios, é
resultado e causa da repressão sexual, falseia a origem
do homem e do cosmos e nem sequer contribui para
melhorar o relacionamento social porque a ética e a
moral são independentes da fé e dela não derivam.
A fasquia da conversa subira subitamente. Não podia
deixar de lhe dar luta e respondi categoricamente, As
religiões e a fé que delas emana são, obviamente,
produções humanas com todas as características da sua
natureza. Não foi um deus que criou o homem à sua
imagem e semelhança, mas sim o homem que criou
primeiro vários e depois um deus à sua imagem e
semelhança. Por isso, nenhuma religião se contenta
apenas com as suas certezas sublimes e vai interferindo
nas vidas dos não crentes ou dos adeptos de outras
crenças, por isso não têm confiança em si próprias e se
pudessem até aniquilariam as suas concorrentes.
Assino por baixo, condescendeu, E mais, as religiões
não só são criadas pelo homem como, e exactamente
por isso, são fundamentalmente masculinas na medida
em que diminuem a mulher reduzindo-a a quase nada.
Sabias que no livro sagrado Talmude ordena-se ao
crente que agradeça todos os dias ao criador por não ter
nascido mulher e que no Antigo Testamento se afirma
que a mulher foi criada do homem para seu uso e
consolo?
É verdade, reconheci e acrescentei, e não é só nas
religiões cristãs porque no Alcorão a par das numerosas
e rígidas proibições ao sexo existem promessas de
eterno deboche com virgens, no paraíso, após a morte.
Já há muito havíamos passado o Técnico onde me
encontrara com ele no seu gabinete. E que gabinete!!
Indescritível. Era o caos sem teoria. Nele se misturavam
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no chão, na secretária, nos armários, no parapeito da
janela desde livros a papéis, relatórios, produtos de
higiene, bolachas e pó de baratas. Quando estupefacto
lhe perguntei porque não dava uma arrumação
respondeu-me que não tinha espaço. OK. Entretanto,
estávamos quase a chegar à Espiral e a fome apertava
mas ainda tive forças para avançar na conversa.
Só mesmo o argumento de fé, disse-lhe, permite
acreditar que o Alcorão, foi ditado por um anjo, em
suratas e versículos que plagiam mitos judeus e cristãos,
a um mercador analfabeto que depois os transmitiu
oralmente em árabe língua que por sua vez só foi
uniformizada no final do século IX.
-Mas não te esqueças, responde-me ele, que o Islão
nasce da inveja pois os árabes desse tempo estavam
ressentidos por deus ter aparecido aos Judeus e aos
Cristãos mas não ter enviado aos árabes nenhum profeta
nem revelado nenhuma escritura em árabe. Vai daí, um
dia em que Maomé se encontrava retirado numa gruta,
no meio do deserto, em pleno mês quente ou Ramadão,
provavelmente a dormir ou em transe, ouviu a voz do
arcanjo Gabriel a ordenar-lhe que lesse. Ele ainda
respondeu por duas vezes que não sabia ler mas por três
vezes lhe repetiram a ordem. Tendo ainda questionado o
que deveria ler foi-lhe apenas dito que lesse e que seria
o mensageiro de Alá.
A conversa fez-me recuar no tempo, até àqueles anos
em que adolescentes, passeávamos pelas ruas estreitas
da cidade antiga, à volta do castelo, pela noite fora
dentro do seu silêncio. J. era de uma aguda inteligência e
um conversador estimulante e já tinha saudades destes
nossos debates.
-Tal como os evangelhos que integram a Bíblia foram
escritos muitas dezenas de anos depois da morte de
Cristo e seleccionados e compilados em livro conforme
os interesses e as conveniências de quem a efectuou
seiscentos anos depois, na época de Constantino
também os relatos que descrevem os actos e as palavras
de Maomé só foram reunidos 120 anos depois da sua
morte, desconhece-se como é que os seus seguidores
reuniram os textos de conselhos, aforismos e adágios
que constituem o Alcorão.
Entretanto, já havíamos escolhido o guisado de tofu e a
empada de cogumelos que fumegavam nas bandejas e
enquanto enchíamos de água os copos, J. acrescentou,
Em 2005, na Nigéria, um grupo de personalidades
religiosas emitiu uma norma (fatwa) que declarava que a
vacina da poliomielite fazia parte de uma conspiração
genocida dos EUA contra a fé muçulmana e que se
destinava a esterilizar os crentes
36
Então, respondi eu enquanto procurava uma mesa livre,
e as declarações de responsáveis católicos sobre os
preservativos? Não são elas de tal forma absurdas e
irresponsáveis desde afirmarem que os preservativos
transmitiam a sida até à de que as mulheres mortas pela
Sida, por se recusarem a usar preservativo, deviam ser
consideradas como mártires.
- É só hipocrisia. Vê o caso do Islão que proíbe a
prostituição.
No
entanto,
existem
casamentos
temporários, cujos certificados, emitidos por mullahs, são
válidos apenas por algumas horas, findas as quais se
entrega uma certidão de divórcio. E no Irão, onde os
fundamentalistas xiitas reduziram para nove anos a idade
de casamento inspirados porventura pela idade da
esposa mais jovem de Maomé. Aqui, parámos a pensar
em como será casar com uma CRIANÇA DE NOVE
ANOS e durante alguns minutos só nos ouvimos a
mastigar! Até que J. não se contendo e retirando com o
dedo indicador um grão de arroz do canto da boca quase
que grita, porque é que os dez mandamentos nada
dizem sobre a protecção das crianças, violação,
escravatura ou genocídio? E, pelo contrário, no 2º
versículo do capítulo seguinte, “Deus” explica a Moisés
quais as condições que deve o seu povo observar para
comprar ou vender escravos e quais as regras para a
venda das suas próprias filhas.
J., digo eu com a assertividade própria das grandes
verdades irrefutáveis, Todas as religiões estão esgotadas
nos seus pressupostos e desacreditadas face ao
conhecimento dos tempos actuais. O telescópio e o
microscópio substituíram as religiões no seu papel de
explicação do mundo. Quem é que ainda acreditará que
se cortarmos os nossos prepúcios em pequeninos, se
rezarmos na direcção certa várias vezes ao dia ou se
engolirmos diariamente pequenas bolachas de pão,
seremos salvos?
Essa é muito boa, Z., e sabias que os Talibãs proibiram
recentemente o papel reciclado porque pode conter na
sua composição fragmentos de algum Alcorão
abandonado?
Isso é apenas ignorância. Mas, no fundo, as pessoas
ainda têm medo das forças que afectam a sua vida mas
que estão para lá do seu controlo. Chamam Deus a
essas forças e procuram apaziguá-las através da
devoção religiosa.
Já dizia S. Anselmo que Deus era aquele ser em relação
ao qual nenhum ser superior podia conceber-se.
E o que é que isso significa?
37
Não faço a mínima ideia. Mas pelo sim pelo não
aconselho-te a rezares a oração do capelão da escola
dos Monthy Python:
“Oh senhor, ooooh, Tu és tão grande. Tão absolutamente
enorme. Caramba, estamos todos impressionados cá em
baixo, garanto-te. Perdoa-nos senhor, por esta terrível
bajulação. E descarada lisonja. Mas tu és tão forte e,
enfim, tão super. Fantástico. Ámen.”
38
O renascer interdito
(Hide in your shell dos Supertramp)
A única flor que tem asas é a borboleta
Uns meses após a separação de T., apaixonei-me quase
sem querer (o amor não se procura, encontra-se).
Conheci B. na praia. Estava sentado na areia, num fim
de tarde, a ler. Ao levantar os olhos do livro vi passar
uma mulher, molhada e nua, com o sol a brilhar nas
gotas de água coladas ao corpo, iluminando-lhe a pele
como chamas fugazes. Ao fim de umas semanas de
discreta e silenciosa contemplação, enchi-me de
coragem e ofereci-lhe um poema. Num poema é tão
difícil captar o instante como evocar a eternidade mas
este poema teve o condão de lhe despertar por mim,
senão o interesse, pelo menos a curiosidade. Mas nada
mais que isso. Era fotógrafa e pintora, coleccionadora da
luz e de cores. Possuía raízes cabo-verdianas e era tão
simples e desprendida de modas que só gostava de
vestir calças e calçar ténis. Vivia nas águas furtadas de
um prédio pombalino, ao Chiado, com uma filha
adolescente tão bonita quanto ela. Gostava tanto
daquela casa que até lhe escrevi este poema:
A tua casa é um oásis de amor à beira-mar do desejo
onde os nossos corpos nus escalam montanhas de seda
e se abrem como veias.
A tua casa é uma veia de amor aberta
onde oásis de desejos se escalam como montanhas
nuas e se abrem à beira-mar como a seda dos corpos.
A tua casa é um corpo nu de amor e desejo
onde nos abrimos como uma montanha de veias
à beira-mar de oásis de seda.
A tua casa é um desejo de seda à beira-mar
onde oásis de corpos se abrem escalando nus
amores de montanhas e veias.
39
A tua casa é uma montanha de desejo
onde os nossos corpos de seda se abrem de amor
escalando oásis de veias e desejos nus à beira-mar.
A tua casa é uma seda onde montanhas de oásis
se abrem aos desejos de amor como veias
à beira-mar dos corpos escalados e nus.
O seu casamento pouco durara e depois tivera mais dois
relacionamentos igualmente curtos. O primeiro com outro
fotógrafo e artista, obcecado pelo seu trabalho, embora o
que nele mais se destacasse, não fosse a sua obra, mas
um sexo descomunal que mais parecia um braço de
criança pendurado entre as pernas. O segundo fora com
um bailarino tão feio quanto vaidoso e sedutor que se
gabava de ter dormido com mais de duzentas e
cinquenta mulheres. Um verdadeiro Don Juan dos
nossos dias mas sem criado para lhe registar as
conquistas.
B. era uma mulher Isolada na alma e viciada em solidão.
Fazia lembrar um satélite solitário, prisioneira da sua
cápsula de solidão, a navegar em órbita fechada no seu
céu. Gostava de mim mas não me amava. Nem uma só
vez me disse: amo-te. Acho que ela apenas se deixou
amar! (“Saber amar é saber deixar-se amar”). Será
mesmo? B. não se conseguia entregar a ninguém e
evidenciava uma insegurança ou timidez que a impedia
de manifestar as suas emoções ou afectos. Que eu me
lembre nunca tomou a iniciativa de me abraçar ou beijar
e quando eu o fazia, quase sempre subtilmente, me
afastava e raramente retribuía.
Era assim arisca talvez por ter sido a mais nova de sete
irmãos que lhe fizeram o ego em papas ou pela figura
tutelar da mãe, pessoa excelente, mas uma espécie de
marechal de saias. (Aliás, a história dos seus pais é
admirável: O pai, um cabo-verdiano de uma família com
posses, não se podendo casar com a mulher que amava
por esta estar noiva de outro homem, jurou-lhe que havia
de casar com a primeira das suas filhas. Esperou vinte
anos e casou mesmo!)
Durante três anos, vivi uma paixão singular, não
retribuída na mesma e exacta medida, mas vivida por
mim como se o fosse (“a única medida do amor é o amor
sem medida”). Perdi a conta aos poemas que lhe escrevi
e às mensagens que lhe enviei. E o dia para mim só
terminava com o telefonema da meia-noite que eu
antegozava muitas horas antes ao longo do dia.
Passávamos juntos todos os fins-de-semana no Meco,
que amávamos com devoção, passeando de mãos
40
dadas pela praia e pelos pinhais, cozinhando em casa
petiscos alentejanos e provando muitos, muitos vinhos.
E não se passava um dia sem irmos à praia, fizesse
chuva, vento ou sol. Éramos naturistas na melhor e mais
democrática praia do mundo, o Rio da Prata,
verdadeiramente, única. Contrariamente à maioria das
outras praias naturistas fora de Portugal, que são
exclusivistas e não permitem o acesso dos “têxteis”, no
Rio da Prata, a superioridade moral e a generosidade
dos “nus” permite que todos nela possam estar
tranquilamente. Por isso lá se vêem famílias ou grupos,
em que cada um está como quer, uns vestidos outros
despidos e ninguém incomoda nem se sente incomodado
(Nus ao lado de nus /estranhos entre si/ mostrando-se
aparentemente desinteressados/ pretendendo não
reparar em nada/ para manter a ilusão/ de não serem
observados).
Nela, sentíamo-nos totalmente em liberdade e naquele
mar e naquele areal, éramos capazes de passar horas e
horas sem fim. Aliás, o fascínio daquela praia começa
logo pelos caminhos de acesso, envolvidos por pinheiros
semeados de matas de urze e zimbros. Depois, já na
areia da falésia começa a descobrir-se o azul, não se
distinguindo se é do mar ou se é do céu e, em certos
dias, quase dá a impressão que se levantássemos os
braços conseguiríamos tocar as nuvens. Um pouco antes
de chegar ao trilho de descida da falésia vislumbra-se a
primeira nesga de praia e a linha das ondas e o coração
bate mais rápido seduzido por aquela beleza. A descida
é um pouco perigosa mas num instante aterramos no
imenso areal e depois é só procurar a melhor duna, o
mais perto possível da rebentação. Era para mim,
indescritível, a alegria que sentia e a música que dentro
de mim ouvia quando, de mãos dadas, percorria com B.
aqueles caminhos mágicos em direcção à praia.
Ainda hoje continuo a sentir a presença de B. em todos
estes locais, no meu coração e sempre, sempre na
minha cabeça (e na minha cabeça passam-se tantas
coisas que de muitas delas nem chego a tomar
conhecimento). Talvez a amasse não tanto pelo que ela
era mas mais pelo que eu era e sentia quando estava
com ela. Quando nos apaixonamos provocamos sempre
um colapso temporário e parcial das fronteiras do nosso
ego, expandimos o nosso eu, o que nos dá uma
sensação de absoluta plenitude, de entrega total, com a
poesia sempre presente. O deslumbramento.
41
Nunca antes sentira esta força, esta alegria, este
entusiasmo como se tivesse deuses loucos de desejo
pulando dentro de mim (“amamos mais o desejo do que
o ser desejado”).
A necessidade de estar com ela e o prazer que retirava
da sua presença era pior (ou melhor?) que uma droga da
qual tivesse criado uma fatal dependência porque os
processos químicos desencadeados são similares, uma
vez que os circuitos cerebrais activados no amor são os
mesmos que funcionam nos toxicómanos em estado de
necessidade.
Não é por acaso que o amor-paixão é um sentimento tão
exacerbador de emoções que nos torna irracionais e
ilógicos de um modo involuntário e incontrolado.
Os processos cerebrais de precaução e o pensamento
racional desligam-se e ficamos totalmente expostos e
desprevenidos porque demasiado confiantes. Mas estar
apaixonado requer a criação, tanto no cérebro como na
vida, de um espaço para o ser amado, incorporando-o na
nossa própria imagem. E aí a nossa relação falhava pois,
B. não tinha espaço na sua vida para mim. E sendo o
amor uma rua de dois sentidos, a rua do nosso tinha
apenas um.
A propensão básica para o envolvimento romântico de B.
não existia. Sabe-se hoje que a disponibilidade de cada
pessoa para se apaixonar e envolver em termos
emocionais está programada no seu cérebro, sendo
afectada pelas respectivas experiências e condições
hormonais. Algo no seu passado, porventura os laços
afectivos estabelecidos com as suas figuras familiares de
referência ou as suas primeiras experiências de iniciação
sexual, ter-lhe-ão marcado indelevelmente a formação
dos seus circuitos cerebrais de confiança, impedindo-a,
sem que ela sequer suspeitasse, de confiar e se
entregar. Ora eu, ao não encaixar na forma como a sua
cabeça estava programada, também não despoletava o
indispensável fluxo das substâncias necessárias para a
atordoar e focalizar em mim, de modo a criar nela aquele
estado a que vulgarmente chamamos de amor ou paixão.
Esta reacção química, entre duas pessoas, pode parecer
acidental, mas a verdade é que estamos ancestralmente
programados para que ela aconteça ou não aconteça,
independentemente da nossa vontade (“Padrões
definidos há milhares de anos, uma espécie de herança
genética da raça humana, determinam as nossas
escolhas amorosas”).
42
Pela parte de B. nunca aconteceu, como aliás, ela muito
bem intuía, pois frequentemente me atirava, com uma
pontaria que me atingia directamente no coração, esta
farpa terrível e fatal: entre nós, não há química. Da minha
parte sei que havia e muita mas não era suficiente para
compensar a que faltava nela (“os homens amam as
mulheres que desejam e as mulheres desejam os
homens que amam”).
Um dia, cansado de carregar o piano da relação, embora
sentido estar a amputar uma parte de mim, cortei
definitivamente. Platão tinha razão: “O amor está em
quem ama e não em quem é amado”.
43
44
A deusa saída das águas
(The blower’s daughter de Damien Rice )
O luar não molha nem agita o mar
Foi totalmente inesperado. Ao levantar os olhos do livro,
numa pausa de virar de folha, vi-a saindo do mar,
molhada e nua, cabelos escorrendo em catarata, corpo
vestido de lágrimas faiscando ao sol. Cego pela sua luz
imensa não fui capaz de pensar em mais nada. Como
um poderoso íman aquela imagem levava-me os olhos
atrás para onde quer que fosse e para onde quer que
olhar eu quisesse, uma força estranha e poderosa me
fizera os olhos prisioneiros de um único norte. (O sol era
seu escravo/ A água seu elemento/ As ondas no seu
rebentamento/ Lançavam-lhe pétalas de gotas/ E a areia
levantava-se/ Ficando suspensa no ar/ Em nuvens de
apoteose/ Eu fiquei então a saber/ Que chegara uma
sereia/ E a praia se tornara uma tela/ Onde com todas as
cores/ a tua presença se exprimia)
No resto desse dia e nos restantes, aquela mulher sol
tornou-se o único horizonte onde o meu olhar se perdia e
o coração se encontrava (and so it is, I can’t take my
eyes of you, eu não sei parar de te olhar, eu não vou
parar de te olhar).
Comecei a escrever. Li, rescrevi, voltei a ler, escrevi
ainda mais num processo de escrita lenta, dorida e
arrebatadora,
numa
necessidade
quase
física,
esculpindo em texto, anos de solidão e de espera.
Lavrava em mim um incêndio poético ateado por uma
desconhecida, mas não escrevia só para ela, escrevia
através dela para a mulher em abstracto, aquela por
quem há muito esperava e esperaria, a única que visse
para dentro e para além de mim e que juntos, num olhar
duplo e raro, admirássemos tudo, não nos admirando de
nada.
Estava apaixonado. Era a verdade pura e simples. Mas,
como a verdade nunca é pura e raramente é simples,
esta convicção poderia ser um perfeito disparate. Um
homem apaixona-se pelo quê?
E se, após cinco minutos de conversa, a sua voz
começasse a ser um ruído incómodo e insuportável?
45
E se, as suas palavras ou pensamentos me maçassem
até ao bocejo? E se, o seu corpo não fosse senão um
belo invólucro cheio de nada, continuaria apaixonado?
Tantas perguntas sem resposta. Mas enquanto não
conseguisse falar-lhe até essa simples pretensão
configurava perigosos riscos. A abordagem directa seria
inadequada e contraproducente porque poderia ser
entendida como parola e alarve. Um contacto indirecto
estava fora de causa porque dela nada sabia, nem
sequer o nome, a morada, o número de telefone de casa
ou do trabalho e locais comuns não frequentávamos,
com excepção daquela praia.
Julho passou e Agosto aproximava-se do fim. Eu
continuava como no princípio, perdido, ferido de amor
pela beleza daquela visão litúrgica de inquietação e
desassossego que se apresentava sob a forma de
mulher. (Amo uma mulher que fala com as árvores/ e as
abraça em afagos de ninho/ Amo uma mulher que escuta
os sons do vento/ e os entende com um dom divino/ Amo
uma mulher que toca nas pedras/ e as faz vibrar em
cristais de cor/ Amo uma mulher que nasceu do mar/ Seu
corpo é água que lava os sentidos)
As flores rubras desta obsessão estival continuavam
abertas em todo o seu doloroso esplendor impregnandome do perfumado aroma de desejos ainda por estrear.
Se calhar não fui feito para o amor, chegava a pensar
desesperado.
Não surgira uma só oportunidade (ou eu não a criara) de
lhe falar e dar a conhecer o poema. Os dias sucediam-se
e os olhares também. Mas nada mais. As marés todos os
dias subiam e a febre da minha escrita não dava sinais
de baixar. A minha solidão continuava maior que o
oceano que todos os dias observava o meu desespero
com a mais profunda das indiferenças. Eu sabia que,
quando o Outono respondesse ao apelo dos últimos dias
de Verão, tudo iria acabar sem nunca sequer ter
começado.
E se assim fosse nunca me perdoaria. Eu tinha apenas
que dar o primeiro passo, não precisava de subir a
escadaria toda. Necessitava de fazer contas à vida e tirar
a prova dos nove de mim próprio, logo eu que nunca fora
bom em matemática. Mas tinha que ser e o que tem que
ser, como se diz, tem muita força. A minha timidez infantil
não podia impedir-me de avançar.
Lembrava-me até daquele velho slogan maoísta dos
meus tempos de faculdade Ousar Lutar, Ousar Vencer
(“e aqueles que dizem que há coisas impossíveis de
alcançar não devem impedir os outros de tentar”).
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Sentia que nada tinha a perder porque nada ainda tinha
ganho. A ideia acabou, no entanto, por me surgir simples
e vinda do nada.
Apelaria, em simultâneo, à sensibilidade romântica e à
curiosidade feminina, mediria o seu grau de interesse e
disponibilidade, esperando não a assustar. Se não
resultasse nenhum de nós ficaria muito magoado.
Comecei então a dobrar a folha de papel em quatro (“o
que somos é o resultado do que pensamos”).
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48
Jogo de espelhos
(Wise up de Aimee Mann)
É impossível não acabar sendo como as outras
pessoas pensam que somos
Sou uma mulher de quarenta anos, feitos dias antes de
partir para aquelas férias no local de sempre, uma praia
que amava há muito, com a qual mantinha uma relação
de rotina já desgastada pela roda dos anos e por
memórias que lembrar já nem sabia.
A novidade é que me sentia diferente por não ser a
mesma. Tinha saído do casulo e entregar-me à vida não
me fazia medo. Tirava agora prazer de cada momento
porque cada momento, inteiro na sua nudez, era único e
perfeito. Procurava o nada. Queria tudo. Sentia-me feliz.
Amava o mar. Adorava estender-me languidamente na
areia, respirar o sol e o vento com todos os poros do meu
corpo. Idolatrava a natureza porque nela me podia diluir
(“perder-me para me encontrar”) na totalidade de tudo o
que existe como uma libertação! Suspirei e pensei:
Quarenta anos! É uma vida. Mas sentia-me renascida e a
iniciar agora, como cantava o Sérgio, “o primeiro ano do
resto da minha vida”. Tudo iria ser diferente, tinha a
certeza. Não sentia medo, nem dor, nem angústia, nem o
quebranto dos sentimentos. Estava segura, forte,
tranquila e acima de tudo, sentia-me bem comigo própria
e com os outros. Aos quarenta anos começava a amar a
vida, a apreciar o pouco ou o muito que ela me dava.
Pela primeira vez em tantos anos sentia-me grande e
cheia do que é essencial: A paz, o amor, a tranquilidade.
Despojada do supérfluo das ambições e dos desejos
podia agora respirar a plenos pulmões uma liberdade
total e absoluta.
Conseguira a muito custo desprender-me da teia de
sentimentos contraditórios e afectos desencontrados que
sempre me haviam puxado para os mais profundos
abismos da minha alma. Sentia-me feliz mas no fundo de
mim mesma sabia que algo me faltava. Ainda. Algo que
me faria, por fim, ficar completa e insuperável. Algo que
desde sempre procurava e nunca verdadeiramente
encontrara. Sabia-o agora. Alguns anos antes, alguém
mo dissera e eu repetia-o vezes sem conta dentro de
mim. Deus ou o Destino, como lhe quisermos chamar,
49
envia-nos por vezes estranhos mensageiros para nos
darem a conhecer as mensagens mais simples. Desta
vez através de um poema.
O amor é uma fatalidade, digam o que disserem. E desta
vez não iria resistir, nem negar, nem fugir. Agora estava
preparada. Finalmente, estava convencida que iria amar
e ser amada. Por isso escrevi:
Cheia de espanto num jogo de reversos descubro-me a
mergulhar na onda de sentimentos e emoções jogados
para cima e para dentro de mim. Não conseguia dormir
agora que sabia que estavas por aí. Sentia urgência em
despir-me ainda do medo de ser aquilo que realmente
sou. Nunca fui um ser de sentimentos tranquilos,
arrumados, ordenados como livros nas prateleiras da
minha consciência. As emoções sempre me tomaram
apoderando-se de todas as razões que a Inteligência ou
a Divina Vontade pudessem ter.
Era constantemente tomada de assalto, surpreendida por
emoções desconhecidas que teimavam em viver por si
mesmas. Adquiri assim o hábito secreto de as afogar no
mar da consciência, passando-as para o mundo das
sombras como farrapos esquecidos ou perdidos de mim.
E como não podia parar os movimentos da vida neste
percurso de me despir, de me pôr totalmente nua, fui
dolorosamente deixando cair a máscara de indiferença
onde envolvia esses vórtices de energia, ultrapassando
devagar o medo de enfrentar a eterna e assustadora
desconhecida que ainda sou. E como não bastava exporme ao mundo nua, descubro-te por aí espiando,
despindo-me
também
a
alma,
interpretando
magistralmente pequenos gestos de todos os dias,
pintando com palavras lindas um retrato quase perfeito e
descobrindo os vestidos escondidos no mais recôndito
canto do meu armário de cristal. Sempre me fascinaram
as pessoas capazes de assumir o que sentem com
franqueza e frontalidade (talvez porque para mim fosse
tão difícil) e como agora sei que também estás por aí
queria saber escrever uma estória de encontros e
desencontros.
(este é o único texto conhecido de B.)
50
O poema
(Bachiana brasileira nº 5 de Heitor Villa-Lobos)
Não sou nada do que esperas mas serei muito mais do
que imaginas
Virando-me ligeiramente de lado, retirei de uma pequena
mochila verde uma folha de papel dobrada em quatro. A
simples visão do pequeno quadrado branco fez-me
recordar a surpresa que sentira quando, uns dias antes,
no regresso de um curto passeio à beira-mar, o vira pela
primeira vez assim, já dobrado em quatro, sobre o meu
pano de praia. Segurei-o nas mãos e, pela milionésima
vez nos últimos dias, cuidada e muito lentamente como
que para não o ferir, desdobrei-o fazendo surgir as
palavras que nele estavam escritas.
Era um poema. Tal como nas outras vezes, um frémito
de agitação subiu-me no peito e o bater do coração à
cabeça. Repentina e inconscientemente lancei os olhos à
volta procurando no ar um sinal ou uma presença e
recomecei a ler:
Desces pelas sombras das nuvens
o trilho de argila seca da falésia castanha do sol
olhar aberto sobre a distância brilho de lua
Num gesto felino de água em passos dançantes de onda
Mão dada com o céu sorriso brando de duna
A musicalidade daquelas palavras, sobrepondo-se ao
som do mar, ameaçou-me com uma ligeira vertigem.
Ardendo na chama negra duma beleza adulta
Entras nas vagas da minha melancolia molhada e nua
E caminhas à beira mar da minha solidão de areia
Eternizando num simples olhar fugaz o tempo o ar
E o mar - espelho gelado do céu - da praia dos meus
sentidos
A inesperada força das imagens feria-me, rasgando-me a
intimidade mais secreta, violando-me pela garganta.
51
Mulher só sentada frente a um mar de chamas súbitas
Cabeça entre joelhos procurando no areal com a alma
nos dedos
Tesouros ocultos amores escondidos um pedaço de
mim?
Criança madura brincando na espuma do fim da tarde
Corpo a fazer de dique por onde perdido o meu olhar
escorre
Que idade tens? As deusas não têm idade
Alguém me observara e descrevia momentos que eu
julgava só meus.
E talvez não seja ainda tarde para gritar por esse corpo
De mulher sem género feminino teu poema sem palavras
Para prender o meu olhar de sal no mistério dos teus
cabelos
E neles esconder o espanto dos meus olhos cheios da
luz irreverente
da tua pele para onde ilusões antigas se precipitam
esquecidas
E a felicidade (ou dela o desejo) se escreve numa página
em branco
O precipitado ímpeto de raiva começava a desaparecer
ainda mais rápido do que chegara e sentia agora um
calor que não era do sol e arrepios que não eram de frio,
subindo e descendo e voltando a subir e a descer pelo
centro do meu corpo.
Nada sei de ti nem sequer o rio do teu nome
As letras que por ele correm o som da sua pronúncia
És bela e chocaste contra mim como um oceano
Quando sorris iluminas o quarto escuro da minha vida
E sinto como se ouvisse a secreta respiração de um
sonho
Sentia o coração a crescer tanto que ameaçava explodirme na boca, sufocando-me de estilhaços de nervos e
pranto. Os meus olhos, antes escancarados de espanto
fecharam-se, por breves momentos, como se desse
modo pudessem parar o tempo. Lindo…, murmurei, em
sopro, por entre os lábios do pensamento.
Voltei depois a ler, mais demoradamente, aquelas
palavras quentes, doces, aguçadas como facas que
52
entravam por mim adentro sem pedirem licença mas com
destino certo.
Levantei a cabeça e olhei de novo à minha volta. Quem
quer que fosse devia estar ali, talvez deitado na areia,
olhar disfarçado, violando a reserva do meu espaço.
Sentia-me lisonjeada e não ofendida. Um poema é uma
expressão de amor, um acto de adoração. Quem teria eu
impressionado com tal intensidade? Quem teria sentido a
necessidade de expressar naquele mar de palavras os
seus sentimentos? Por mim, uma mulher com quarenta
anos feitos?! Quem quer que fosse possuía uma extrema
sensibilidade para ler e interpretar as linhas simples do
meu corpo, os meus gestos mais vulgares e a
normalidade do meu comportamento, de uma forma bela
e profunda que tocava fundo na minha alma de mulher,
fazendo-me estalar o coração em pedaços de lágrimas
(Quando sorris iluminas o quarto escuro da minha vida) e
obrigando-me a sentir o prazer bruto da surpresa (És
bela e chocaste contra mim como um oceano).
A primeira reacção de fúria magoada tinha-se diluído,
ficando apenas um fio de prazer e curiosa ternura pela
anónima criatura, poliedricamente nua que de certeza ali
estaria. Parecia-me agora límpido que aquele poema
abandonado sobre a toalha era uma misteriosa
mensagem, uma forma de abordagem perturbadora, uma
declaração de amor calma e profunda, uma confissão
silenciosa, a expressão tímida da invisibilidade de quem
queria gritar alto mas sem se fazer ouvir. Quem quer que
fosse possuía a rara e tocante ternura de quem se expõe
sem alarde, de quem se quer dar a conhecer sem se
apresentar.
Fiquei o resto da tarde apenas a olhar o mar mas sem
nada ver. Nos dias seguintes, com uma atenção discreta,
procurei identificá-lo através de um processo de
eliminação selectiva.
Comecei por eliminar os homens integrados em casais e
em famílias, depois os mais velhos ou mais rapazes. De
todos, só restou um homem feito. Analisei-o ao detalhe.
As atitudes e os olhares, a maneira de nadar e de se
deitar na areia, as figuradas maneiras de ser e de estar.
Só podia ser aquele. Estava sempre a ler e a escrever.
Hoje iria confirmar. Já sabia como fazer. Só havia uma
maneira. Tinha que resultar.
53
54
Quem espera desespera
(She de Charles Aznavour cantada por Elvis Costello )
Não saberás muito bem o que fazer, mas fá-lo-ás!
Agora restava-me esperar, embora ignorasse em
absoluto, o que esperava. Esperei. Sentei-me, tentei ler,
deitei-me, levantei-me, fui à beira-mar onde, mais uma
vez, me sentei. Deitei-me e tornei-me a levantar. De vez
em quando, atrevia-me a olhar na sua direcção e via-a
imóvel, posição de estátua, cabeça entre os joelhos,
olhando ora o céu ora o mar, ora o infinito. Fui à água e
voltei. E ela lá continuava debaixo do seu toldo azul.
Tinha lido o poema. Tinha a certeza. Mas já se haviam
passado duas horas e começava a arrefecer. Um frio
gelado tinha-se também instalado em mim. Não sabia o
que pensar. Melhor, sempre pensara que para a mulher
o mais importante fosse o amor e que, pelo amor ou para
o amor, qualquer mulher estivesse disposta a tudo.
Estava errado. Não era a primeira nem seria a última vez
a enganar-me. Tinha avançado um peão para a minha
rainha e esta dera-me o xeque-mate do silêncio. Depois
desta, qualquer outra forma de abordagem seria ridícula
e humilhante.
A resposta dela era límpida e não deixava margem para
dúvidas. Esperara qualquer reacção menos a
indiferença. És bela e chocaste contra mim como um
oceano, repeti mentalmente o que escrevera. Não, devia
antes ter escrito És bela e chocaste contra mim como um
iceberg. Teria sido menos poético mas mais realista. Não
era possível que o poema não a tivesse tocado. Mas por
outro lado, também não podia esperar que, de imediato e
na volta do correio, ela me caísse nos braços. Seria
natural estar confusa e perplexa com o que lhe
acontecera, não sabendo o que pensar, muito menos o
que fazer e porventura assustada. Talvez no dia seguinte
algo acontecesse. Mas vários dias se passaram e nada
aconteceu. O frágil filamento de resignada esperança
apagava-se e um fio de desespero começava a escorrer
como um ácido corrosivo por dentro de mim.
55
O contacto havia sido estabelecido mas o encontro não
se dera, facto que parecia provar que são os
desencontros, ainda que nem sempre tenhamos deles
conhecimento ou consciência, os momentos mais
marcantes e decisivos das nossas vidas. Mas pensemos
um minuto: como nos poderíamos encontrar, se também
ela nada de mim sabia? Nem sequer quem eu era. E
mesmo que intuitivamente me identificasse, o que é que
havia em mim que pudesse despertar nela qualquer
interesse? Não era alto, nem belo, nem jovem e
começava a aperceber-me que as mulheres com menos
de quarenta anos já raramente me olhavam pela
segunda vez e muitas nem sequer pela primeira.
Estava a ser ingénuo e convencido! Pensaria eu que ela
teria estado uma vida inteira à minha espera sem lastro
de marido, amarras de família e teias de amigos!? Que
não tivesse uma vida própria, feita também de
perplexidades e problemas, se calhar sem espaço para
ninguém mais? Que não amasse outro homem ou, pelo
menos, não o sonhasse?
Eu sabia, com um saber de experiências feito, que as
mulheres eram uma inesgotável fonte de problemas e
conflitos. Mas aquela mulher mexera comigo.
Profundamente. Como Jacob, os dias, na esperança de
um só dia passava, contentando-me com vê-la, mas
perante aquela indiferença começava a adquirir
consciência de ter contraído a forma mais perigosa de
amor: o amor-ilusão. Intuía agora a mais profunda das
contradições do amor, a de que o amor não existe se não
for recíproco, pois ninguém pode amar sozinho e o amor
não correspondido só gera dor e desilusão. Valia bem
mais a ilusão do amor, ao menos essa, fazia sonhar.
E assim, de dia, caminhava à beira-mar, nu e só, a
metáfora perfeita da solidão, mas que sentia ser a
metáfora imperfeita da minha vida. E, à noite, na quase
madrugada, quando arrumava os óculos, dobrava um
livro, matava a luz e me estendia na cama, braços
abertos como Cristo, o meu último pensamento ao fechar
os olhos, dirigia-se sempre para aquela mulher de quem
nada sabia, de quem tudo queria conhecer e que me
preenchia os sonhos todos.
Observara-a minuciosamente em cada dia. Como se
sentava frente ao mar, braços atando as pernas, olhar
perdido no horizonte. Como mergulhava na água, de
repente, depois de demoradamente estudar as ondas.
Nesse momento ouvi um ligeiro resfolegar de passos na
areia. A tentação de olhar doía-me mas consegui manter
56
os olhos grudados no livro onde as palavras queriam
fugir, desnorteadas, pelas páginas entreabertas.
Diálogo de surdos
(A whiter shade of pale dos Procol Harum)
A cada pergunta que te façam responde no limite do seu
oposto
Decidida levantei-me e rapidamente me aproximei do
meu vizinho de praia, o único, aliás, que passava os dias
a ler. Caminhava lenta e surpreendentemente tranquila,
sentindo, contudo, o aguilhão da tentação de voltar atrás
e desistir. Por sorte, ele continuava mergulhado num
livro. Num fôlego disse-lhe: Bom dia. Gostaria de falar
consigo. Posso sentar-me? Não me considere
impertinente mas queria pedir-lhe que me lesse este
poema. E estendi-lhe um papel dobrado em quatro.
Tendo-me escutado num silêncio tranquilo, o homem
fechou o livro e olhando-me profundamente perguntou:
Porquê? E eu respondi: Porque gostaria de o ouvir lido
por si. Mas, Insistiu ele, porquê eu? Por nenhuma razão
ou se calhar por todas, respondi. Um pedido insólito e
uma resposta enigmática. Você é sempre assim?
Pergunta ele de novo. Não, respondi levando a coisa
para a brincadeira: Só quando estou nua, na praia,
pedindo a homens que não conheço que me leiam
poemas. Mas eu não sei ler poesia, argumentou ele
ainda. Raio de homem, com tantas perguntas! Não
importa basta que saiba ler, rematei, definitiva, a
conversa. Ele sorriu e lentamente começou a desdobrar
o papel. Como quer que leia? Perguntou. Com os olhos
da alma e a voz do coração, disse eu repetindo uma
frase vulgar mas adequada às circunstâncias. É você a
autora? Não, respondi, deve ter sido um homem. E esse
homem tem nome? Insistiu ele. Deve ter mas não sei
qual é, respondi com voz insegura. Já percebi, tem um
admirador secreto disse ele sorrindo em tom de gozo.
Admirador sim, secreto talvez já não, atrevi-me a dizer.
Ele voltou a sorrir e fixando os olhos no pedaço de papel
começou a ler, em silêncio, como se fosse só para ele.
Quando terminou perguntou: É dirigido a si? Não sei,
respondi exasperada e quase a gritar, mas pode ler em
voz alta, por favor?
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Comecei então a ouvir uma voz quente, ligeiramente
enrouquecida mas profunda, que me atirava palavras
perdidas e esquecidas, como dedos meigos e saltitantes
a abrirem-me feridas de emoções perturbantes,
multiplicando por mil o assombro da primeira vez.
Só agora percebia algumas das estranhas imagens e o
significado que elas escondiam. Era um poema ainda
mais profundo do que parecia e mais belo do que julgara
e, ainda o seu eco mágico não se perdera, já eu lançava
a única pergunta que me interessava e da qual receava a
resposta: Foi você que o escreveu? Um grande silêncio
fez-se até que o homem respondeu: Não. Olhámo-nos,
perdendo-nos demoradamente, nas profundezas um do
outro. Uma eternidade depois, recolhi a folha de papel, e
dobrando-a lentamente, pedaço a pedaço, levantei-me
dizendo: Obrigada.
Poucos metros me afastara quando subitamente as
águas se me rebentaram por detrás dos olhos. Atrás de
mim uma voz dizia: Nada sei de ti nem sequer o rio do
teu nome/ As letras que por ele correm o som da sua
pronúncia/ És bela e chocaste contra mim como um
oceano/ Quando sorris iluminas o quarto escuro da
minha vida/ E sinto como se ouvisse a secreta respiração
de um sonho
Depois foi assim: acho que já nos amávamos antes de
nos conhecermos, embora ainda não o soubéssemos e
quando naquele dia nos encontrámos, o amor cresceu
por dentro de nós e elevou-nos como uma montanha de
fogo mais brilhante que o sol.
Ele escrevia-me poemas cantando-me o rosto, o riso e o
corpo e eu tirava-lhe fotos fixando-lhe a alma, o olhar e a
expressão. Passávamos assim os dias fechando as
mãos nas mãos em geometrias de amor, entrelaçando os
olhos assomados de luz pelo brilho puro da paixão e
bebendo água de beijos nas fontes frescas das nossas
bocas.
Em nós não se distinguia a linguagem do diálogo e a do
silêncio porque comunicávamos em ambientes de
palavras e pausas, olhos e mãos, risos e gargalhadas e à
noite cavalgávamos um no outro, desenhando à luz das
velas, chamas de sombras no suor dos corpos.
Às vezes, uma sombra de medo ou tristeza pesava nos
nossos olhos: e se nos perdermos…? Mas nenhum de
nós dizia nada. Era, apenas, a nuvem negra de um vago
pensamento, que não chegava a chover.
E quando tínhamos de nos separar, chorávamos por
dentro a forçada perspectiva da ausência como se
sentíssemos a perda irreparável desses momentos e
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mesmo ainda juntos, logo começávamos a sentir-nos
feridos de saudades.
Por isso, nos últimos instantes, ele decorava-me o rosto,
gravando as minhas expressões para depois, dizia ele,
se iluminar todo no escuro da solidão.
Quando ele me dizia, e estava sempre a dizer: És tão
linda! Eu baixava os olhos e, tímida como sou, sorria
como recusando acreditar no que ouvia. Outras vezes,
passeando-me a mão pela cabeça com os seus dedos a
despentear-me os caracóis dos meus cabelos africanos,
segredava-me baixinho: Amo-te mais que à vida! Ao que
eu respondia tentando parecer pouco convencida: As
coisas que tu dizes…
A felicidade não era para nós apenas um prazer, era
mais um estado de ser que nos saía em sons pelos
lábios em murmúrios de canções só de nós conhecidas e
ouvidas. Então, ele pegava-me na mão e colocando-a no
lado esquerdo do seu peito perguntava-me: Sentes o
meu coração? Só bate por ti. E eu fazendo pequenas
ondas na enseada da testa e fixando-lhe os olhos como
se contemplasse pedras preciosas dizia-lhe: És terrível…
(Tive medo sim
Das tuas palavras que me escreviam os dias
E me oferecias para saborear como doces
Quis esconder-me
Dos teus olhares que me desvendavam segredos
E se me abriam por dentro como flores
Mas tu vieste como um sol
Envolveste-me como um mar
Abraçaste-me como uma onda
E deixaste-me na pele um rasto de sal)
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O maior dos enigmas do Universo
(Woman de John Lennon)
O que somos nunca muda mas quem somos está
sempre a mudar
Mas afinal resisti…neguei… e novamente fugi. Mais uma
vez não consegui entregar-me. Não havia química entre
nós, pelo menos não a sentia em mim.
É evidente que o poema e as suas circunstâncias me
atraíram. Na primeira vez em que saímos juntos, indo ao
cinema, Z. foi encantadoramente tímido e não me beijou.
Na primeira vez que o fez perguntou-me antes se o podia
fazer. Ri-me, claro e o beijo… nem o senti. Devo
confessar em abono da verdade que desde criança não
gosto de beijar nem ser beijada. Aquela sensação
húmida e pegajosa, às vezes até nojenta… (algures na
minha infância deverá haver uma razão para esta repulsa
mas não a conheço) A primeira vez na cama foi também
desastrosa e “nunca há uma segunda oportunidade para
causar uma boa primeira impressão”. Mais parecia um
troglodita do que um homem sensível e romântico.
Limitou-se a esvaziar dentro de mim todo o esperma
acumulado ao longo de meses de forçada abstinência,
por três vezes e em menos de meia hora. Estava ávido
de mulher. Nas vezes seguintes continuou a revelar-se
um amante terno mas péssimo. Ter sido casado mais de
vinte anos com a mesma mulher não o preparara
devidamente para mim. Embora fosse um homem calmo,
na cama sentia-o sempre tenso e preocupado. Não me
sabia tocar em parte nenhuma do corpo. Tive que lhe
ensinar tudo mas acho que ele nada aprendeu. Claro que
a evidência da minha falta de prazer em nada ajudava,
mas não conseguia fingir e por vezes sei que era
demasiado glaciar nas atitudes e nas palavras. Uma vez,
num hotel do Porto, preparava-se para me penetrar
quando comecei a rir sem qualquer razão. Na primeira e
única noite de passagem de ano em que estivemos
juntos numa festa de amigos (em todas as outras estive
a trabalhar e ele passou-as sozinho), chegados a casa e
perante a sua expressão perplexa, entrei na cama
vestida e enrolada num cobertor, exigindo-lhe
ostensivamente que não me tocasse e assim fiquei toda
a noite até de manhã.
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Z. não o sabia, mas nessa noite, na festa de passagem
de ano, estava lá aquele que havia sido o meu grande
amor e paixão de adolescente aos dezasseis anos. Vê-lo
agora casado com outra, com um bebé, fez-me
sucumbir. Juro que não sei explicar de outra forma
aquela tão estranha reacção.
Nessas duas vezes, nas manhãs seguintes e por minha
iniciativa, rompemos a nossa relação. Nessas duas
vezes, dias depois e por minha iniciativa, reatámos a
nossa relação (“a mulher é o maior dos enigmas do
universo”).
Z. adorava-me mesmo. Quase todos os dias me escrevia
e oferecia um poema. Tenho-os todos comigo mas nunca
os releio. Passávamos os fins-de-semana no Meco e
frequentemente ele também ficava, de um dia para o
outro, na minha casa. Nos restantes dias, à noite,
falávamos ao telefone. Aliás, o meu primeiro telemóvel
foi-me oferecido por ele. Foi a primeira de muitas
prendas que me deu durante o tempo em que estivemos
juntos. Tudo e nada serviam de pretexto para uma flor,
para um livro, para um CD, para um qualquer objecto ou
peça destinado à casa ou a mim própria. E todas com um
significado que ele lhes atribuía e fazia questão de me
explicar.
Tinha prazer em oferecer. E não era só o que oferecia
mas a maneira como encenava, usando sempre o factor
surpresa, a sua entrega. Dizia ele que quanto mais dava
mais recebia. Mas comigo essa afirmação estava longe
de ser comprovada. Num Dia dos Namorados, por
exemplo, Z. ofereceu-me, além de um poema, cinco
prendas diferentes, uma por cada um dos cinco sentidos
e em cinco momentos diferentes desse dia. Eu oferecilhe umas cuecas. Está visto que não consigo dar-me em
nada e a ninguém (também é verdade que após os
quarenta anos comecei a sentir sintomas da
perimenopausa e fiquei terrivelmente assustada. Mas só
isso não explica o meu comportamento egoísta, abúlico e
indiferente para com Z).
Não estranhei assim aquela primeira noite em que não
aconteceu o ritual do seu telefonema. Nem nas noites
seguintes essa falta me incomodou minimamente, pelo
contrário, sentia até um certo alívio da obrigação que era
atender sempre aquela chamada. Nem sequer me
passou pela cabeça a ideia de ser eu a ligar para saber
dele ou o que se passava.
Quase dois meses depois, sem nos vermos nem
falarmos, uma amiga da minha filha que conhecia a
nossa relação, com um mal disfarçado embaraço, disseme tê-lo visto, numa tarde de Primavera, passeando á
beira-mar, de mão dada com outra mulher.
62
Curiosamente, depois do afastamento de Z. comecei a
pensar mais nele e a sentir a sua falta. Não sei bem
porquê mas ficara sentida por saber que me substituíra,
assim sem mais nem menos.
Uma das minhas irmãs disse-me que o merecera, pois
apenas me tinha deixado amar e nada dera a quem, de
uma forma apaixonada e verdadeira, tanto me deu.
Certo. Então, fechei-me ainda mais dentro da minha
concha.
Nunca mais voltei ao Meco (demasiadas recordações…)
e substitui-o por Aberta-a-Nova, em Melides, na Costa
Alentejana, onde arrendei uma casa com um enorme
alpendre virado para a estrada e rodeada por um jardim.
Meses depois, ainda nesse ano da separação, convidei
Z. e outros amigos para o meu aniversário que celebrei
na nova casa. Gostei de o ver mas ostensivamente exibi
uma alegria um pouco exagerada para que ele visse
como estava feliz. Nessa noite, na varanda, Z. segredoume ao ouvido: Quero dormir contigo. Sorri, mas não lhe
respondi. Pouco depois fui para o meu quarto, à cautela
fechei a porta à chave e deitei-me mas não consegui
dormir. Sei que ele também não pregou olho. No dia
seguinte, na despedida, Z. disse-me que nunca mais cá
voltaria. Perguntei-lhe porquê, ao que ele respondeu: não
sou masoquista.
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OXALÁ PICASSO TE PINTE!
(Paloma Negra cantada por Chavela Vargas)
O sofrimento é a única fonte de consciência
Cena única: Um quarto. Uma janela. Um quadro. Uma
cama desfeita. Ao lado da janela, na parede principal, um
quadro domina, a mulher fragmentada, de Picasso. Um
homem e uma mulher deitados. Corpos movendo-se
lentamente debaixo dos lençóis. Silêncio entrelaçado de
sons de amor. De súbito, um grito abafado!
Mulher:
Pára! Pára... Já te disse!
Homem:
O que foi, amor?
Mulher:
Não consigo! Deixa-me...Tens as mãos frias.
Homem (após um silêncio prolongado):
Não são as minhas mãos... é o teu coração!
E afastando as roupas da cama levanta-se subitamente e
caminha até à janela onde fica de pé e nu, olhando
através dela.
Homem (com raiva de ciúme):
Não consegues esquecê-lo! Continuamos a dormir os
três na mesma cama com ele no meio.
Mulher:
Tu não sabes! Não me sabes tocar. Não sabes como me
despertar…
Homem:
Não! Tu é que estás bloqueada por um sem número de
ideias feitas. Estás completamente fechada em de ti
própria.
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Mulher:
As coisas não fluem entre nós. Não há química! Não te
sinto…
Homem:
E como queres sentir-me se o teu pensamento e o teu
coração estão algures por aí perdidos no tempo…
Mulher:
Desculpa, mas isso são lugares comuns e eu sou eu e o
meu passado…
Homem:
Pois eu queria que fossemos capazes de voltar a ser
como crianças, esquecidos de tudo o que aprendemos
ou vivemos até agora para começarmos de novo como
virgens aos quarenta anos!
Mulher:
Isso é impossível! Como queres que esqueça as minhas
vivências? Os homens que entraram por mim adentro e
me fizeram ouvir os meus próprios gritos… que me
fizeram sentir cheia, possuída e vencida… como queres
que troque essas memórias pelas tuas que não tenho
porque nunca mas destes? As tuas carícias ou me
arranham ou nem sequer as sinto…
Homem:
Diminuis-me com essa brutal subtileza de que só as
mulheres são capazes. Esqueces que és tu que entras
na cama completamente vestida e te apagas…
Mulher:
Sim! Não suporto o contacto da tua pele nem as tuas
mãos a escorrer-me pelo corpo. O único desejo que sinto
é fechar os olhos e ficar muito quieta abraçada ao teu
calor de forno mas nada mais que isso… não quero fazer
amor… não te desejo… o meu corpo não te
reconhece…não me apetece!
Homem:
Não sei se é o teu corpo ou se é a tua cabeça que não
me reconhece.
Mulher:
Talvez. E se for?
66
Homem:
Estou a sentir-me ridículo! Olha, volta para os teus
homens ou mata-os de vez. Eles não podem continuar a
dormir entre nós… como posso eu competir com a
memória de dois homens excepcionais, um dotado de
um sexo monstruoso e o outro que fodia como um
deus…
Mulher:
Desculpa, amor, mas é o que sinto. Tenho tanta pena…
Homem:
Eu dou-te tudo… como posso aceitar menos? Esta tua
indiferença falta-me ao respeito, mutila o meu amorpróprio. Como pode um homem continuar a encarar-se
quando a mulher que ama não sente com ele prazer?
Mulher:
Não é verdade! Sabes bem que adorava que me
tocasses. Mas só às vezes…
Homem:
Lembras-te daquele texto que te escrevi: Nua pareces
uma mancha negra de prazer no lençol branco da cama
onde te possuo com o azul dos meus olhos… “
Mulher:
… E onde é que isso já vai…
Homem:
Eu sei que não sou, nem nunca fui o teu sonho…. Sinto
que vou morrer às tuas mãos na praia do meu desejo
incontido. Que se passa comigo? Desejo mas não dou
prazer, quero amar e não consigo.
Mulher:
Não te martirizes mais. Não falamos a mesma linguagem
sexual. Ponto.
Homem (exasperado e fora de si, lança-lhe a pior praga
que conhece):
Oxalá Picasso te pinte!
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O homem que amou demais
(Eu sei que vou te amar cantada por Caetano Veloso)
Deus está dentro de nós
Amor de todas as minhas vidas o teu sorriso persegue o
verão no céu de espelhos das nossas bocas ainda
húmidas das últimas chuvas és horizonte a que nunca
mais chego barco ou ponte ave tímida sobre mim a pique
tinta da minha escrita visão única e breve como a serra
de Sintra quando as nuvens parecem neve meu amor
deusa maior no altar dos meus sentidos nascer do sol
em fogo no meu horizonte longínquo és gota de chuva na
terra quente da minha língua milagre de dias há muito
apetecidos doce sabor de uva a morar na boca alegria de
encontrar sonhos perdidos cada dia sem ti é um peso
morto que arrasto como pesado lastro um trapo velho
que cobre e descobre o meu mundo veneno suave que
bebo com as duas mãos juntas neste mar onde tudo é
deserto ponho a minha vida a teus pés o ar cheira a
laranjais suspensos e fecho os olhos para poder ver tudo
tu vens em transparências de mascara bela e misteriosa
como um arco-iriado que estranho paladar tem a dor do
amor desprezado o vestígio de uma mentira maior onde
em reflexo me vejo como o amante que nunca chega a
tempo e quer ser grande em tudo mas a vida é um
buraco de desejo uma rosa negra de fogo.
Escrevo como se pintasse um quadro e te desenhasse
de um só traço com medo que desaparecesses pois a
vida troca as voltas aos amantes inseguros como um
olhar que se debruça sobre um rio de memória nele se
demorando pego na tua imagem pela mão sinto a vida a
tremer ouço ao longe um solo de saxofone e o tempo
passa com a força de um mar bravio procuro abrigo no
sonho como alguém que planta flores no deserto julgo
ver-te nas sombras da noite e espero que algo aconteça
a tua presença ou uma verdade por revelar só me resta a
esperança mas sinto ter ainda tudo e o meu amor é um
sentimento feminino de uma pureza branca como uma
paisagem de neve ou uma torre transparente.
No meio do mar procuras na noite a estrela da manhã
em busca do teu norte e quando falas os longos dedos
da tua voz tocam harpa na minha alma não digas nada
deixa-me só olhar-te como se fosse a última vontade de
um condenado a amar-te agora olha tu para mim vê
como estou alegremente triste tão perto das lágrimas não
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te importes sei cada vez melhor como sofrer como
aguentar os dias um a um quando quiseres vem ter
comigo estarei à tua espera tudo se há-de resolver e se
quiseres toma o meu corpo para fazer parte das tuas
mãos.
Abres o silêncio numa respiração de água e dizes que se
fosses amada nada mais importava a alegria estaria
sempre primeiro e o Verão seria logo em Janeiro as
flores nunca murchavam a tua voz não se calava e o riso
seria luz na tua face se fosses amada não haveria noites
só madrugadas as flores seriam prata e o teu coração
estaria sempre em viagem todos os ruídos soariam
música o coração seria riso e sempre que chovesse seria
prata se fosses amada todas as vozes seriam música o
coração seria a tua face e o riso estaria sempre em
viagem o Verão seria prata não haveria ruídos só
madrugadas e a alegria não se calava se fosses amada
o teu coração teria só madrugadas todos os ruídos
seriam prata e sempre que chovesse soaria música o
verão não se calava o coração seria luz na tua face e a
alegria nunca murchava se fosses amada as flores
seriam a tua face o coração soaria música e a alegria
seria logo em Janeiro o Verão nunca murchava e nada
mais importava se fosses amada.
A noite vestiu-se da tua pele para amar as estrelas para
nos amarmos à sua luz de vela negra e luzidia de olhos
bem fechados num esgar dos sentidos renascemos em
luz imitando o dia o amor soltou seu nocturno grito
chamando os corpos dos amantes adormecidos e a noite
escondeu o tempo nos anéis do teu cabelo anoitecido
que véu é esse de tristeza tecido como que do céu caído
do teu olhar se desprende que vê o teu coração adivinho
no fundo do horizonte lágrimas dor e sangue alegria pão
e vinho a vida em ti existe tu a criaste não desafies o
destino não lhe chames má sorte fiquei só dentro de ti
quando me amaste vou apertar-te nos meus braços
quero com as mãos tocar-te a alma beijar-te o coração
no meio dos lábios desconhecendo se já é dia Maio ou
Verão ou se irei nascer a teu lado.
O silêncio cala o sentir deste olhar estranho cálida
borboleta esvoaçando de mim a fugir entre palavras de
amor ferido a noite apaga o rosto deste sorriso triste anjo
caído inerte espelhando o desgosto do segundo sentido
da morte irradias a paz da lua quando meditas no vazio
em que estás não estando quando falas calando na alma
um vago grito em que pensas sonhando e apagas
brilhando meu ser clandestino que passa ficando quando
chegas saindo em corpo e em espírito e te esqueces
70
lembrando que me amas sorrindo penso em ti luz do céu
amor estrangeiro fresca cascata clareira bosque jardim e
quando te vejo vejo-te sempre com o assombro da
primeira vez o deslumbrado clarão que nos deixam as
coisas simples e belas o mar o sol quando nasce ou um
fresco dia de Primavera algo na melodia dos dias
cinzentos me lembra mares de Inverno um disco de
Kitaro os mistérios longínquos do Oriente ou a cor
escondida do céu na nostalgia do poente ligados num
invisível fio que nos chama sem chamar onde falamos
sem falar num sinal sem voz num quieto olhar de silêncio
que vemos sem nos vermos e as tuas palavras tão reais
que me dizes sem dizer que ouço sem ouvir num espaço
iluminado num leve brilho acetinado que nos toca sem
tocar onde só o silêncio é oração o amor tempestade e a
poesia religião em que repito o teu nome como um
mantra vivo como se fosses todo o meu mundo a minha
única realidade na qual desapareço sem mais saber
quem sou para reaparecer cem anos depois como se
tivesse estado fechado na cela do meu corpo e
vagueasse agora em labirintos de solidão buscando a luz
escondida das estrelas na palma da tua mão já nem sei
onde habito meu amor antigo minha fortaleza de luz se
ao menos a dúvida me restasse se ao menos o teu olhar
ilusionista continuasse a fazer magias no meu coração
fecho os olhos infantilmente voltas quando eu tiver
contado até vinte?
No meu amor por ti há um pássaro que esvoaça sem
ninho nem céu por abrigo ou destino e antes que o
apanhes na mão dos teus olhos longínquos admira-lhe o
voo um rasto colorido de penas caídas como folhas no
chão ó meu amor no meio dos desertos no secreto poço
de mim tens tanta água para beberes e quando quiseres
pintar eu serei a cor impossível que hás-de inventar em
cada recomeço em cada instante o mar nasce doce da
tua boca como um rio perdido como um raio de luz nas
nossas mãos aquecido um pássaro voa dócil dos teus
lábios como um canto vivo como um rasto de céu nos
nossos olhos escondido em cada instante o dia cai
quente dos teus braços como um orvalho delicado como
um manto de cores nos nossos ombros esquecido em
cada instante o amor se ergue grande do teu corpo como
uma pálpebra fechada como um mastro de água nos
nossos sexos metido existo quando me sonhas quando
sou o braço invisível nos teus ombros a musica inaudível
que só tu ouves quando sou todas as cores das pedras
que descobres ou das flores que à noite se abrem nos
teus sonhos é calmo o teu respirar silêncio barco à vela a
partir lento passar do tempo leve sentir do vento lavra-me
71
na pele um fogo de verão chamas de vento ar do deserto
as tuas mãos são cisnes amando-se na calma de um
lago delírios de seiva escadas para o céu os teus lábios
rios correndo negros no teatro da noite guerra de
mundos ondas de mistério os teus cabelos murmúrios de
água em brilho de pedras luz de fogueiras estrada lisa de
seda a tua pele é alma nua bebendo a frescura de um
bosque passagem breve delicado toque a tua língua
belos jardins árabes ocultos por muros de céu anjos nus
maviosos véus os teus olhos neles assentam mundos e
se movem flores e pétalas são terra benta os teus pés.
Prostrado sob o pálio da tua imagem me resigno é tão
frágil esta altivez de totem índio à volta do qual dançam
os meus medos e depois os poemas que te dei deixasteos estragar no esquecimento de uma prateleira cheia de
livros eu sei por isso o meu corpo traça o coração da
noite a lápis de gemidos não silvestres não pacíficos em
tantos riscos tantos riscos rubescentes por toda esta
cidade de Lisboa nuvem na palma da mão das colinas
marca de água na paisagem com o céu ao fundo lugar
onde rios inclinados de ruas desaguam no mais belo dos
aquedutos há em ti Lisboa um mar branco arquejante
numa paz de sono fora nada existe só a margem entre o
azul e o verde és a minha raiz quadrada de tudo onde
vagueio em gerúndio onde ouço o mar quando me falas
quando os teus longos dedos de água me escorrem pela
alma nua ficando no chão uma poça onde medos e
silêncios se vislumbram e na boca a aridez de um sabor
sem nome e nos olhos a cor da noite minha dor incógnita
a chamar pelo teu nome num murmúrio branco e doce de
criança cega olhos presos ao céu como duas lâmpadas
sem luz acesas ininterruptas meu amor queria ser chuva
se fosses terra sangue nas veias a correr-te frio ou neve
se lã fosses o mais suave pincel se fosses tela seria até
mosca se fosses teia ou vela se te acendesses chama os
dentes do teu riso ou pégada se fosses lama mel seria se
fosses favo ou manta da tua cama anão palhaço no teu
circo folha voando se fosses vento ávida boca se pão
fosses anel enroscado nos teus dedos água se fosses
areia ou lenço aconchegando os teus cabelos seria ainda
e mais coisas estranhas os teus pés se fosses meia ou
até espanhol se fosses Espanha!
Amor de todas as minhas vidas está tudo tão claro devia
ser fogo e não água devia ser riso e não mágoa serei
talvez a pálida macieza da neve em vão esperei à
esquina das palavras pondo ordem no meu desejo digo
que te quero mas sem incêndios nas veias o teu corpo
não me ouve e arde-me o sangue na agonia da
72
impaciência fujo à solidão inevitável da paisagem dos
corpos juntos colhidos do frio de um inexplicável atrito
quando as tuas palavras se desprendem e como chuva
de folhas secas cobrem meu coração aflito no silêncio
nupcial da madrugada onde a memória do teu corpo em
vão se demora nas noites dos meus dias e eu digo
devíamos ser capazes de voltar a ser como crianças
esquecidas de tudo e começar de novo como virgens vou
tirar de ti o sentido este amor não tem futuro nem
presente só tem passado este amor não é nosso é só
meu sinto-o quando vejo os teus olhos cobrirem-se de
mantos súbitos de tristeza ou quando eu digo amo-te e tu
respondes também eu a minha poesia não escancarou a
porta do teu amor só entreabriu uma fresta por onde a
curiosidade espreitou sei que tentaste amar-me mas as
almas livres não se entregam facilmente a alguém como
eu e o desencanto desta realidade desabou inteiro sobre
mim como um universo de pesadelo alimentei a ilusão
deste amor como quem atira miolo de pão aos cisnes de
um lago e regresso agora à minha solidão como quem
após uma longa viagem volta a casa e a reencontra
intacta a deusa alada na minha mesa pousada sorri
beatificamente com as duas mãos juntas parece orar
talvez por mim no meu quarto o frio cheira pior que a
morte dispo-me lentamente o meu corpo magro e nu
estremece falta-me o teu riso quente o teu olhar de fogo
a tua alegria ardente e o verão ainda tão distante do
inverno do meu presente não tremes nos meus braços a
tua água apaga o meu fogo mil labaredas de mágoa
incendeiam-me de tristeza na combustão de mim num
frio de mortalha sem fim num calor de vida inventada vou
esquecer apagar o coração em chamas lançar as cinzas
ao vento quero aprender com a eternidade das marés
aceitar o amor como um mistério lamber a dor aceitar o
facto de não ser amado os porquês não importam
nenhum deus os conhece vou lembrar-me apenas e
sempre de mim apagar dos olhos a luz e oferecer o
clarão ao tempo transcender a realidade viver sem
desejos renunciar aos sonhos para não sofrer talvez eu
não seja o teu sonho a paisagem que vês quando olhas
o horizonte a alma do homem que ames acima de tudo
talvez eu seja o sino de uma torre caída suspenso na
varanda de um céu nocturno a luz de um candeeiro
apagado e soturno talvez eu seja um véu transparente e
obscuro cobrindo a fugaz sombra de um fraco vulto
pouco mais que nada muito menos que tudo.
73
74
A princesa
(Dance me to the end of love de Leonard Cohen)
O desejo é aquele deus que faz estremecer até os
pequenos pássaros
Nesse Verão, também por um acaso, conheci uma
princesa: a minha X. De novo “à primeira vista”, (“os
homens são menos cautelosos e desenvolvem nos seus
cérebros conexões visuais exacerbadas que facilitam o
apaixonarem-se à primeira vista”) voltei a apaixonar-me
mas desta vez era retribuído e por uma mulher muito
mais nova. Quando a vi estava ela a passear com a filha
num fim de tarde, usando um vestido tão simples e tão
curto que, do que ele não escondia, o meu olhar se fez,
de livre vontade, cativo, pelo resto da noite.
Conversámos muito. Ela estava fascinada pelas minhas
ideias e palavras (“os homens apaixonam-se pelo que
vêem e as mulheres pelo que ouvem”). Umas semanas
depois de nos conhecermos ofereceu-me um pequeno
íman onde estava escrito esta frase: Há pessoas que
tornam o mundo melhor apenas com a sua presença.
X. era uma mulher fabulosa, como aliás o são, todas as
mulheres profundamente apaixonadas. Tudo aquilo que
integra as fantasias eróticas masculinas: o amor – esse
sentimento feminino impiedoso de olhar assustado -, a
excitação – esse momento incandescente -, o prazer –
essa ponte entre o céu e a terra -, ela me deu. Era
incrível a paixão com que se entregava e demonstrava
que me amava!
Com ela tive a sensação única, provavelmente
irrepetível, de me sentir um deus na cama a fazer amor
com uma deusa. A fusão total. A força da sua excitação e
a facilidade do seu orgasmo dispensava os necessários
e longos preliminares (“que para as mulheres é tudo
aquilo que acontece nas vinte e quatro horas antes da
penetração e para os homens os três minutos que a
antecedem”). Diz-se que Eros não escolhe os parceiros,
e que o universo pertence aos bailarinos. X. era bailarina.
75
Possuía uma rara beleza, herdada de mãe goesa e pai
africano branco. Tinha cabelos africanos, olhos orientais,
um rosto europeu e lábios sul-americanos (Linda, você é
linda sim, onda do mar do amor que bateu em mim).
Os colegas chamavam-lhe POCAHONTAS tais eram as
parecenças físicas. Uns olhos negros rasgados, um
sorriso doce, infantil, a pele só muito ligeiramente
tisnada, os cabelos uma longa crina de azeviche caída
pelas costas, e as pernas esculpidas e perfeitas
terminavam num rabinho de comer à colher. Num
pequeno poema descrevi-a assim:
Vivem em ti mulheres/ de todas as raças/ numa subtil
aliança /entre mãe e cortesã/ que escondes e disfarças/
no teu sorriso de criança/ no teu corpo de garça.
E depois assim:
Náufrago, no mar dos teus olhos me sinto, mas não
perdido antes vento de Verão acariciando a rosa
vermelha e bailarina da tua boca
Com 33 anos era uma espécie de menina,
aparentemente ingénua, toda entregue desde a infância
à dança. Vivia ainda em casa dos pais com os quais
mantinha uma relação de total e recíproca dependência e
de um mega temor reverencial. O que os pais diziam era
lei. Casara-se tarde pois havia-se guardado para um
príncipe encantado que depois não virou apenas sapo,
virou monstro. Desse casamento, destruído ao longo de
um ano, ficara uma filha. Sentia-se perseguida e
ameaçada. Vivia no pânico de perder a filha num
processo judicial de atribuição do poder paternal, penoso
e tumultuoso, que se arrastava sem fim. O sonho dela
era impedir para sempre o ex-marido de ver a filha.
Estava obsessivamente convencida que ele, depois de a
maltratar a ela, maltratava agora a menina, psicológica e
sexualmente. Um caso muito complicado com queixascrime recíprocas, exames médicos e periciais,
investigações policiais, sessões de tribunal e a menina
no meio de todo aquele impressionante braço-de-ferro.
X., naturalmente, tudo fazia para a proteger com uma
dedicação feita de força de vontade e paixão. Tentei
ajudá-la em tudo quanto pude e ser o amparo forte que
ela tanto necessitava. Cheguei a propor que nos
casássemos para que desse modo e com uma nova
família a questão mais facilmente se resolvesse. Mas
acho que não me levou a sério.
76
(Nunca lho disse mas cheguei mesmo a fantasiar
casarmos na praia do Meco ou na fortaleza do Guincho,
apenas entre pais e amigos íntimos, com ela vestida, não
de noiva mas daquilo que ela era, uma princesa índia. E,
no momento do juramento, em lugar da gasta e
superficial fórmula, sonhei que diríamos um ao outro:
“meu bem amado quero fazer de um juramento uma
canção/ eu prometo por toda a minha vida/ ser somente
teu e adorar-te/ como nunca ninguém jamais amou
ninguém”.
Mas a voz do sangue e o instinto maternal de fêmea a
proteger a cria, falaram mais alto. E quem consegue
competir com uma criança, ainda por cima, nestas
circunstâncias? Sei que X. me amava porque o amor não
se consegue fingir mas, entre o amante e a filha, ela não
teve dúvidas e sinto que fui, no altar das suas
inseguranças, sacrificado. Como se o problema da filha
não bastasse, sem que nada o fizesse prever, o céu
caiu-lhe em cima com a extinção da companhia de ballet
onde trabalhava.
De um momento para o outro, o palco onde o mais
importante de toda a sua vida se passava, foi-lhe retirado
debaixo dos pés sem uma única explicação nem um
simples agradecimento por tantos sacrifícios e anos de
dedicação (Já não há aplausos nem flores/ e há muito
que não agradeces / com vénias à boca de cena/ mas
não deixes cair o pano/ na tua vida ou sobre ti/ a plateia
não te agradece/ nem na tua dor se reconhece/ eu serei
sempre o teu maior admirador/ que te enaltece e
envaidece/ com palavras simples de amor).
De todas as humilhações que X. sofreu, para ser e
continuar sendo bailarina, esta foi-lhe fatal. Recordo-lhe
o sorriso triste quando me dizia que era a única bailarina
a não ter sido promovida, tendo mantido sempre a
categoria de corpo de baile com que havia ingressado na
companhia dezassete anos antes ou quando, ao meu
lado na cama me confessava que, em tournée, ficava
sempre sozinha num quarto porque nenhuma das
colegas queria ficar com ela. Como qualquer boa
bailarina vivia na dor, à qual havia habituado o corpo e a
mente, interiorizando-a ao ponto de a ignorar.
Vivíamos uma espécie de relação clandestina pois, com
excepção dos pais, ela não queria que ninguém mais
soubesse. Víamo-nos também muito pouco, numa média
de duas noites por semana. Aos fins-de-semana ela
ficava sempre com a menina. Eu passava-os a sós
comigo mesmo pensando nela (“amar uma mulher é
odiar a vida?”) Nos outros dias, chegava à minha casa já
de noite (depois de adormecer a menina) e saía ainda de
madrugada (para acordar a menina).
77
O mínimo pedido da filha era uma ordem e as suas
tropelias ou birras nunca eram castigadas porque não se
podia magoar a menina e a mãe era ainda pior, muitas
vezes desautorizando-a mesmo diante da miúda. Era
uma espécie de escrava da filha e, em função dela vivia,
como se a quisesse compensar pelo desastroso pai que
lhe arranjara. Provavelmente, estará a criar um
monstrinho ou um futuro adulto egoísta e dependente.
Mas, nos intervalos dos pais e da filha, existia eu, e os
poucos momentos que em estávamos juntos eram uma
verdadeira bênção. Obrigado, amor. (“que estúpida coisa
é o amor! Sugere-nos coisas que não acontecem,
fazendo-nos acreditar que são verdadeiras”).
78
Poema aos amores não correspondidos
(Bolero de Ravel)
Nunca podemos saber ao certo que não estamos a
sonhar
Nua pareces uma mancha negra de prazer no lençol
branco da cama onde te possuo com o azul dos meus
olhos começo por esmagar suavemente a tua boca onde
as línguas crescem mornas e imprevistas resvalo depois
para o pescoço e nele abro por entre as veias sulcos
sinuosos de saliva entretanto fechas os olhos sentes a
pele levantada enquanto prossigo a perigosa descida
travada pelos bicos firmes dos teus seios de rapariga que
sorvo pelo céu-da-boca até ao coração empurrada por
um gemido viras-te convidando-me a descer com a
língua a longa escadaria das tuas vértebras uma a uma
até ao sítio em que a mulher é mais criança para trás
deixo as concavidades entre os braços e por detrás dos
joelhos onde a pele é mais branca mais para baixo
perseguindo as mãos deslizam os lábios procurando os
outros que entre os sobressaltos das ancas mais a sul os
aguardam como guardas de um templo entre colunas
escondido para o beijo fatal e húmido de duas diferentes
bocas abres os olhos e o teu corpo oscila como barco à
deriva em alto mar ou flecha tensa de arco inglês pronta
a disparar é nesse momento que me vês crescer para ti
tapando-te como um cobertor de pele e nos fundimos
com as tuas pernas esguias e altas querendo tocar o céu
e tu dizes quero que desças a partir da boca e da
garganta e me lambas os bicos dos peitos e depois
voltes a descer pela frente até ao umbigo mas não pares
vai vai-me até ao sexo aperta-o suavemente abre-lhe os
lábios molha-os de saliva passeia-lhe os dedos
ternamente se quiseres podes enfiá-los fundo e também
afastar-me por dentro as pernas devagar deixando na
pele um rasto lento e quente desejo tanto que o metas
mas não ainda não volta-me ao contrário beija-me os
ombros e o pescoço marca-o com os dentes segue até
ao fim pelas costas morde-me as nádegas aperta-as ora
suave ora com força quero sentir o calor dessa mão tão
79
boa a respiração da tua boca e depois mete sim mete-me
a língua macia pelo meio das coxas e faz faz-me senti-la
como se ma metesses na boca e eu digo vem partamos
em viagem colemos os corpos num só corpo todo de
fúria feito sente o mastro do meu barco navegar-te por
cima e por baixo toca-me com a macia suavidade das
penas todas as minhas partes vou incendiar-te a pele
assistir ao nascer do desejo no crepúsculo de medo do
prazer que mereces e queres mais até do que eu vamos
trocar de pernas inverter os braços inventar gestos e
mexer os sexos como cordas de guitarra dedilhadas em
excesso ou estrelas a riscar o céu vem-te e tal como eu
sente fugir o instante da morte breve do clarão inocente
do aguilhão de prazer que desaparece em lava quente
por dentro de nós e tu dizes vem façamos a viagem o
sinal de partida são teus olhos que eu amo depois as
mãos a boca o teu cheiro estranho vais andar e parar em
mim várias vezes nos contornos do pescoço nas curvas
dos ombros nos montes do peito ou de Vénus nas
planícies do tronco no lago do umbigo vão os teus dedos
escrever-me na pele palavras ilegíveis pinturas sem tinta
que leio sem voz desenho sem ver que só as sinto em
arrepios e só as ouço em gemidos vou aquecer as mãos
no fogo do teu sexo lamber-lhe as chamas de modo lento
espreitar-lhe o desejo fazê-lo crescer por mim a dentro
vens-te mas sou eu que grito ao te sentir irromper num
esgar aflito e então sorrindo acredito que tua alma
ascendeu linda ao meu céu.
80
E o teu olhar era de adeus
(Ne me quitte pas de Jacques Brel)
O mundo não é verdadeiro mas é real
Num Sábado de sol, em Maio, X. veio ter comigo ao
Meco. Era meio-dia, estava a cozinhar e não dei pelo
carro chegar só me apercebendo da sua presença
quando assomou à porta. Abri a minha boca de espanto
e logo a fechei na sua. Depois, sentados na relva com as
nossas mãos entrelaçadas, disse-me que não conseguia
aguentar mais a pressão, pediu-me tempo, deu-me um
beijo e com um olhar triste desapareceu. Até hoje.
(“Quando olhaste bem nos olhos meus e o teu olhar era
de adeus…”) Desapareceste-me! Não sei porque razão
tenho de continuar a viver sem ti!. (“Ne me quittes pas,
moi je t’offrirai perles de pluie, venu d’un pays où il ne
pleut pas … ) A tua ausência dói-me tanto… (“a rejeição
é tão penosa quanto as dores físicas porque activa as
mesmas zonas do cérebro”).
As minhas filhas para me consolar dizem-me que ela
agiu assim por amor. Por não me poder dar o que eu
queria, ou seja, vivermos juntos reconstituindo uma nova
família. Por medo de me arrastar e envolver na relação
tumultuosa com o seu ex e de este me poder fazer algum
mal. Por pânico de perder a tutela da filha por ordem
judicial. Claro que não acredito a cem por cento nestas
versões piedosas e um facto inegável é que X. me
apagou da sua vida como se eu fosse uma luz. Não sei o
quê mas algo em mim a terá desencantado. Terão sido,
talvez, as minhas tentativas de desdramatização do caso
da filha ou as minhas insistências para não continuarmos
em encontros esporádicos, breves, tardios e noctívagos
e passarmos mais tempo juntos? Não sei. Não sei
mesmo o que terá acontecido! E ainda hoje me custa
acreditar que acabou. Acho que o amor de X. por mim,
tendo nascido das palavras, acabou por morrer dos
factos. Quando se foi embora, levou apenas consigo as
chaves da minha casa deixando tudo o mais atrás de si.
Roupa, sapatos, brinquedos da filha e um rasto sem fim
de saudades.
Não sei se o terá feito por extremo cansaço e pressa de
se evadir ou se, por pensar que um dia poderia voltar.
Eu enlutei a minha cama com lençóis negros, forrei a
casa de banho de toalhas pretas retintas incluindo papel
higiénico preto. Decorei o meu quarto em tons brancos e
pretos, excepto uma das paredes que pintei de vermelho
81
nirvana para simbolizar a ferida ainda aberta do meu
coração e a meio coloquei um quadro pintado por mim
com uma só cor: preta. Numa das outras paredes escrevi
em caracteres japoneses este poema simples e belo:
Nana korobi ya oki (sete vezes caímos e oito nos
levantamos).
Recordando porém, tudo o que aconteceu, reparo agora
ter havido um afastamento lento e manso ao longo dos
últimos meses. Terá começado no dia em que os pais
dela (e não ela) me disseram que, por prevenção, a
menina deixaria de vir à minha casa. Tal como já havia
deixado de ir, aos fins-de-semana, ao Meco, (onde
passeávamos os três de mão dada, a menina sempre no
meio, a suplicar que a levantássemos ao mesmo tempo e
fizéssemos baloiço!) Receavam, não sei se por excesso
de imaginação ou de cuidado, que eu e as minhas filhas
fossemos envolvidos, por suspeição, nos processos ou
acabássemos sendo vitimas de retaliação do louco que
havia casado com a filha. Por vezes, já de noite à sua
espera, telefonava-me a dizer que estava a ser seguida,
que tinha medo e ia regressar a casa. Noutras dizia
necessitar de recolher elementos que os advogados lhe
haviam solicitado para o processo. Até chegou a dar a
entender que, quando à noite se dirigia para minha casa,
se sentia como uma puta a visitar um cliente. E em
algumas dessas noites chegava junto a mim muito
nervosa, com os olhos húmidos de quem teria estado a
chorar e depois, não se continha e chorava mesmo à
minha frente. Tenho pensado muito nisto e chego à
conclusão que os pais deviam exercer sobre ela uma
grande pressão, semelhante à que fizeram naquela
incrível manhã, na minha casa do Meco, na primeira
noite em que ela lá ficou comigo. Com uma grande
diferença: agora, não estava eu lá para a apoiar e
argumentar em sua defesa. Nunca mais falámos nem
nos encontrámos. De vez em quando, demasiado
frequentemente, (como agora) as lágrimas soltam-se, só
me parando nos lábios e uma tristeza profunda garrotame a garganta como uma corda de enforcado. Os olhos
fazem-se mar e a vista neblina. Eu sei que não devo
chorar porque acabou, mas sorrir porque aconteceu. Mas
não consigo e choro porque não compreendo. (“A
infelicidade ou a felicidade não está no que nos acontece
mas no que fica em nós depois de acontecer…”)
No meu quarto, por masoquismo, esperança ou saudade,
ainda conservo um dos seus retratos, aquele em que ela
me olha um pouco de lado, suavemente oblíqua. A sua
face lisa repousa no verso da sua mão direita, enquanto
os dedos longos se estendem, juntos e alinhados, pela
linha do pescoço.
82
Os seus olhos parecem lagos tranquilos perdidos no
infinito. Ela continua a ser ainda a última coisa em que
penso e a primeira que me vem sempre à cabeça... (e o
que pensará ela? O que pensas quando fechas os olhos
e a noite se faz dia dentro de ti? Como se sentirá? Do
que recordará de nós? Será que também chora? A
cabeça de uma mulher, por vezes, pode ser a rocha mais
dura ao cimo da terra!) (No meu quarto o frio cheira pior
que a morte dispo-me lentamente o meu corpo magro e
nu estremece falta-me o teu riso quente o teu olhar de
fogo a tua alegria ardente e o Verão ainda tão distante do
Inverno do meu presente)
Não sei precisar bem quando é que a saudade ou a
nostalgia começaram de mansinho a penetrar-me os
poros da alma e com elas, o sofrimento (“dias há que na
alma se me tem posto/ um não sei quê que nasce não
sei onde/ vem não sei como e dói não sei porquê”).
Primeiro, uma ferroada traiçoeira da memória, depois um
súbito aperto na garganta e uma furtiva lágrima até
chegar a pranto de soluços e tudo. Não sendo
masoquista esta situação só era possível porque o
assunto com X. estava mal resolvido. Pensei: Chega!
Não passa de hoje! E hoje era o seu aniversário. Envieilhe mensagens e fiz-lhe telefonemas sem fumo de
resposta. Liguei à mãe e foi remédio santo. Nesse
mesmo dia, estava na FNAC ouvindo os Portishead
quando atendi o seu telefonema. Pediu desculpa por me
não ter respondido logo, mas estava a dar aulas, só
agora tinha visto as mensagens (está bem abelha!) e
sugeria um encontro em casa do meu irmão (queria
testemunhas!). Está bem, respondi, aceitando as suas
condições. À hora combinada lá estava eu com o meu
irmão e a minha cunhada quando ela chegou…
acompanhada pela mãe (vá lá… não vinham de mão
dada nem ela de bibe!). Se esta muleta significava
insegurança não a deixou transparecer no que me disse.
Recusando falar a sós comigo e diante de todos,
Informou-me do que eu já sabia. A sua tese era não ser
justo continuarmos, naquelas circunstâncias, a prenderme a uma relação impossível. Que eu merecia ser feliz e
não podia ficar eternamente retido neste impasse.
Deixou-me um saco de plástico com coisas minhas e
pediu-me que desse as dela aos pobres. Não bem o que
disse mas a calma com que o fez, surpreendeu-me de
verdade. A voz não lhe tremeu, aos olhos não assomou
sequer um brilho de lágrima. Foi firme e decidida em
todos os momentos. Pouco depois, alegando já ser tarde
e nada mais a dizer, em primeiro lugar ela e depois a
mãe, levantaram-se e saíram. (Não digas nada, deixa-me
só olhar-te, é a última vontade de um condenado a amar83
te). Na despedida como à chegada, beijámo-nos nas
faces como conhecidos que não se viam há muito tempo,
desejando-nos, recíproca e civilizadamente, felicidades.
Nessa noite, deitado na cama do meu luto, trocámos
estas mensagens:
Eu: Apagaste-me da tua vida como a uma luz. Mas eu compreendo-te.
Tinhas de salvar a tua filha. Responde-me só a uma pergunta:
Ainda me amas e pensas em mim?
Ela: Só penso na minha filha como te disse várias vezes hoje.
É a única coisa que interessa.
Eu: Responde-me, por favor, à pergunta que te fiz.
Ela: Não penso em ti.
Eu: Pois eu penso e muito em ti. Agradeço o amor que me deste
ainda que por pouco tempo e amar-te-ei sempre.
Na noite seguinte, tentando de novo estabelecer
contacto, enviei-lhe outra mensagem:
Eu: Compreendo e respeito a tua atitude
mas não vou desistir de ti e por ti vou esperar
Ela:
(
)
Silêncio. Insisti com uma pergunta:
Eu: O teu coração é assim tão pequeno que nele
não caibam ao mesmo tempo um criança e eu?
Ela:
(
)
De novo o silêncio. Voltei a insistir:
Eu: Não podemos ao menos trocar mensagens?
Mais uma vez, o silêncio como inequívoca declaração de
intenção, foi a única resposta que obtive. Sem conseguir
controlar uma maldita lágrima de raiva e pena, escrevilhe com ingenuidade:
84
Eu: Talvez esteja a aborrecer-te com estas mensagens
mas apetecia-me falar contigo. Dizer-te que a minha filha
passou de ano e está feliz como há muitos anos não a via.
Descrever-te as mudanças que fiz no meu quarto.
Contar-te todas as pequenas e grandes coisas que fiz hoje.
Do outro lado, o grande silêncio manteve-se. Nessa
noite, no pequeno diário que guardo à cabeceira da
minha cama, escrevi este pensamento: Só podemos dar
o nosso amor. Não podemos obrigar ninguém a aceitá-lo.
85
86
Como num filme de Almodôvar
(Eu não existo sem você de Vinicius e Jobim cantada por
Rosa Passos)
A arte é a confissão que a vida não basta
Quando conheci o Z. pensava já não ser possível voltar a
amar, tão desiludida e aterrorizada me sentia, com a
experiência de casamento que vivera durante uns longos
doze meses. De homens não queria saber e deles nada
esperava. Esperara tanto por um e para quê? Casara
pressionada por mim própria, pois já tinha ultrapassado
os trinta anos e queria conhecer o amor, ser amada, ter
filhos e família. De tudo o que queria ficou-me apenas
uma filha. Era com ela que passeava, naquele fim de
tarde numa praça de uma terra do Algarve, onde
passava uns dias de férias com os meus pais e o meu
irmão, quando o vi.
Era o irmão mais velho de um colega meu da companhia
e estavam juntos em férias. Pouco minutos depois de o
conhecer, desapareceu-me com a minha filha,
reaparecendo pouco depois com ela e com uma prenda:
uma pequena placa de porcelana com a inscrição do seu
pequeno nome: Maria. Sem saber bem o que fazer,
encenei uma pequena festa com a miúda. Não consegui
olhar para ele, nem sequer lhe agradeci mas fiquei logo
de quatro.
Nos dias seguintes fui-o descobrindo devagar e aos
poucos, nas entrelinhas das conversas que ia ouvindo
com o irmão e com os amigos, na forma doce e
experiente como se relacionava com a minha filha, na
simpatia que se desprendia das suas atitudes e palavras
para com os meus pais e para comigo, sempre com um
atencioso sentido de equilíbrio que me desvanecia. Eu
bebia as suas palavras quase com devoção.
No dia em que uma das suas amigas ou namoradas o
veio visitar, deliberadamente quis mostrar-me, insinueime entre eles e, para minha surpresa (ou talvez não) fui
eu quem recebeu mais atenção.
Mas a prova de fogo só aconteceu na noite do último dia,
uma directa passada em grupo na praia, com direito a
fogueira e banho nocturno e muitas, muitas conversas,
estórias e gargalhadas.
87
Ao amanhecer, dançámos uma morna cabo-verdiana
(aquela que, coreografada por Pina Bausch no bailado
Masurca Fogo, integra a banda sonora de um filme de
Almodóvar) e no final, ao desprender-se, beijou-me
levemente no pescoço. Desmoronei, implodindo por
dentro. No regresso, fiz questão de voltar com uma
amiga. Sabia que se entrasse no seu carro, a sós, tudo
se aceleraria. Não responderia por mim porque só me
apetecia, confesso, saltar-lhe para cima. No dia seguinte,
Z. regressou a Lisboa e eu senti-me perdida. Mas com
um alento e coragem que ignorava possuir liguei-lhe para
o telemóvel, já nem sei bem o que disse e combinámos
encontrar-nos no dia seguinte na casa dele no Meco.
Quando lá cheguei ele esperava-me e a primeira coisa
que fez foi beijar-me suave e timidamente como se eu
fosse de vidro e tivesse medo de me partir.
Nos primeiros meses, eu que só bebo água, senti-me
permanentemente embriagada e tonta de emoção. Nem
precisávamos de nos tocar, bastava olharmo-nos, para
as hormonas se descontrolarem e tudo mexer e crescer,
literalmente, por dentro e para fora de nós. Sentia-me
não apenas mulher mas uma fêmea em cio. Fazíamos
amor onde calhasse, sôfregos mas sábios e sem
pressas. Aliás, Z. conseguia controlar-se de tal forma que
passava semanas sem se vir enquanto eu me perdia na
minha conta pessoal. Já ouviram falar em sexo tântrico?
Mas a inquietação dos meus pais, carregada pelo lastro
do meu recente passado de casada, inquinou desde o
início, a nossa relação. Na minha primeira noite passada
fora de casa, os meus pais e o meu irmão apareceram
de madrugada, no Meco, em casa do Z, onde calcularam
que eu estaria. Esperaram do lado de fora o momento
em que nos levantássemos, batendo de quando em
quando palmas, para assinalarem a sua presença. Sem
imaginar quem seria, Z. levantou-se e abriu a porta.
Depois, ensonado e de troco nu, mas cheio de paciência,
com todos sentados à mesa, por baixo do alpendre de
madeira e buganvílias, sentindo a aragem matinal ainda
impregnada do cheiro doce das damas-da-noite,
recebeu-os ouviu-os e pacificou-os. Eu não necessitei
sequer de abrir a boca e ainda o fiquei a admirar e amar
mais (“se eu não te amasse tanto assim/ talvez perdesse
os sonhos dentro de mim/ e vivesse na escuridão/ Se eu
não te amasse tanto assim/ talvez não visse flores por
onde eu vim/ dentro do meu coração”). Mas esse foi
apenas o primeiro acto de uma resistência surda e
subterrânea que se viria a revelar eficaz. Acho que os
meus pais desde logo se aperceberam da intensidade
deste amor e recearam que a minha relação com Z.
pudesse conduzir novamente à minha saída de casa.
88
E, talvez, não tanto por mim, mas mais pela neta que era
a luz mais brilhante das suas vidas, essa perspectiva
era-lhes insuportável. Começaram a agitar o papão do
meu ex. e do que ele poderia fazer para me tirar a
guarda da menina. Recordaram os erros do meu
casamento e as suas consequências. O meu regresso a
casa sem nada e com uma filha, mais todas as despesas
e preocupações que ambas lhes estávamos a dar. E eu,
confesso, fui-me deixando minar.
Pressionada, deixei de levar a menina comigo aos finsde-semana para o Meco porque ela podia falar no Z. e
dizer em tribunal que via a mãe, outras mulheres e outros
homens, nus na praia. Depois, deixei eu mesma de ir aos
fins-de-semana ao Meco porque a menina tinha uma
mãe e não podiam ser apenas os avós a ficarem com a
criança e a tratarem dela. Depois, deixei também de a
levar para casa de Cascais, porque receavam que o meu
ex-marido pudesse elidir a sua responsabilidade,
imputando ao Z. as práticas abusivas e criminosas sobre
a menina de que o acusávamos. Depois, comecei a ir a
Cascais apenas à noite, uma ou duas vezes por semana,
após adormecer a menina, já cheia de sono e sem
vontade para nada. Por fim, extenuada por este ritmo
infernal de desgaste físico e emocional mantido durante
tantos meses e, sem gota de paciência para continuar a
ouvir os medos verbalizados dos meus pais, comecei a
arranjar desculpas e mais desculpas até que deixei
definitivamente de ir ter com ele. Espero que me tenha
perdoado e que possa refazer a sua vida, liberto do lastro
da minha. Sei bem o que perdi. Já não há homens assim.
89
90
Se eu quisesse enlouquecia
(I will survive cantada por Gloria Gaynor)
O sofrimento é uma dor a que nos agarramos
O casamento, já o disse, foi o maior erro da minha vida.
Mas como poderia adivinhar tudo o que iria acontecer?
Estava apaixonada pela primeira vez e não via nada. O
dia do casamento foi logo trágico. Casei pela Igreja e
ainda no altar o meu marido recusou-me ostensivamente
o beijo da praxe. No copo-de-água, embebedou-se com
os amigos, tornando a minha noite de núpcias no pior
dos nightmares de qualquer noiva. Durante a minha
gravidez, a pretexto de me massajar para aliviar as dores
e tensões, magoava-me seriamente. Quando me
queixava das nódoas negras dizia que eram das quedas
que eu dava durante os ensaios. Até que um dia, em
férias no Algarve, tinha a minha filha poucos meses,
simulou (ou terá mesmo tentado) matar-me, apertandome a garganta até me obrigar a gritar. No dia seguinte,
respondendo ao apelo que lhes fiz, os meus pais foramnos buscar. O meu casamento, ou o meu sonho,
terminou ali e um impensável pesadelo começou.
Perseguições, ameaças, insultos, quase agressões, de
tudo houve um pouco. Mas o pior era o que ele fazia à
minha filha. Só por isso me apetecia matá-lo (“raios
partam a vida e quem lá ande!”).
Z. era o oposto. Um poeta. Não só porque a escrevia
mas porque a sua visão das coisas e o seu discurso
eram poéticos. Frequentemente, dizia de memória
extractos ou poemas completos de Pessoa, Sofia,
Eugénio, Herberto e, naturalmente, dele próprio. Para Z.
dizer poesia era uma forma de dizer a vida com palavras
que a não dizem, era sentir e ouvir a voz dos outros
dentro dele. (És meu poeta e porto seguro/ abrigo que
me protege a alma/ só com o calor das mãos/ És meu
amigo e estrela do norte/ farol que me guia o caminho/ só
com o clarão dos sentidos/ És meu amor e tranquila
paixão/ sol que me ilumina a vida/ só com a luz dos
olhos)
Para mim escreveu também alguns poemas mas poucos.
Antes de me conhecer, tinha tido uma grande paixão que
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quase lhe esgotara a força criadora. Eu não tinha ciúmes
porque ele embora não escrevesse poesia com tanta
intensidade, vivia-a comigo, entregava-se-me todo e era
só meu. E queria casar comigo… (no dia do terceiro
aniversário da minha filha alguém nos tirou uma foto, a
branco e preto, onde estamos todos a rir. Ele ao centro,
com a minha filha, de dedinho na boca, toda derretida, ao
seu colo – ela chamava-lhe o meu amigo Z. - eu ao seu
lado encostando ligeiramente a cabeça no seu ombro
com um ar sonhador e os dentes todos a rirem, enquanto
as outras três filhas dele nos envolviam com poses e
sorrisos). Sei que era esta era a visão que ele tinha do
nosso futuro. Sei que ele seria o melhor pai que poderia
desejar para a minha filha. Mas também sabia que não
podia ter os dois ao mesmo tempo na minha vida.
Primeiro tinha que salvar a minha filha. Depois logo se
veria. A equação dos afectos nem sempre dá certa e a
vida acaba por se tornar um conjunto de somas e
subtracções cujo resto é quase sempre igual a zero.
Como podia eu pensar em reconstituir uma nova família?
Ir viver para casa dele tal como tinha ido viver para a
casa do outro? E se, novamente, não desse certo,
repetiria o regresso com a filha nos braços à casa
paterna? Alguém imagina a humilhação que sofri ao ter
que pedir aos meus pais (que nunca foram favoráveis ao
meu casamento e até à última me tentaram dissuadir),
para me irem buscar e acolher novamente em sua casa?
(“a sedução e o abandono por parte dos homens são
práticas que remontam aos primórdios da espécie”)
Sim, eu sei que Z. era muito diferente. Um homem
estruturado e maduro, honesto consigo e com os outros,
de vida aberta e transparente em todas as suas vertentes
e que me amava, tenho a certeza, via-lhe esse amor nos
olhos e nas atitudes, ouvia-o das suas palavras sempre
doces. Doce, é! Doce era a palavra que melhor traduzia
a sua maneira de ser, de estar e de amar. Com ele podia
ter sido feliz! Mas a minha filha era o principio e o fim de
tudo, a partida e a meta da minha vida e por ela tive que
me sacrificar e esquecer a sensação de transcendência
que o amor de Z. me dava (“a meio do nevoeiro não se
pode voltar atrás”).
Naquele dia no Meco senti-me a morrer devagarinho.
Apareci-lhe num sábado à hora de almoço. Ele
cozinhava e vi-lhe o espanto do inesperado nos olhos.
Terá pensado que iria passar, finalmente, um fim-desemana com ele. Deixou o que estava a fazer em lume
brando e, a meu pedido, fomos conversar.
Nunca esquecerei a nobreza triste dos seus olhos
enquanto me ouvia dizer-lhe que o meu coração e a
minha cabeça não eram suficientemente grandes para,
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ao mesmo tempo, o albergar a ele e à minha filha (“o
mínimo da dignidade é levar porrada como se a
déssemos”). Que a pressão sentida nos últimos meses,
pelos meus pais e também por ele, se tornara intolerável
e me sentia a perder o juízo, o discernimento e as forças.
Que não me sentia capaz de lhe dar o que ele
necessitava nem sequer via possibilidade de as coisas,
com brevidade, mudarem para melhor. Que já não me
sentia mulher, mas apenas mãe e filha, tentando
responder, o melhor que podia e sabia, às mil obrigações
inerentes. E foi tudo! No carro, de regresso, só via à
frente dos olhos, a sua mão acenando num gesto de
adeus que apenas eu sabia ser até nunca.
Ano e meio depois, o reencontro mais temido aconteceu.
No dia em que fiz trinta e seis anos, e como não lhe
respondia às mensagens, Z. ligou à minha mãe,
deixando-me sem alternativa. Consegui conduzir o
encontro para terreno neutro (a casa do seu irmão e meu
ex-colega) e, como medida de segurança, levei comigo a
minha mãe. Após as sempre necessárias e
apaziguadoras palavras de circunstância, frente a todos,
disse-lhe tão firme e serena quanto fui capaz, o que já
lhe havia dito antes, mas agora de forma mais definitiva.
Devolvi-lhe, num pequeno saco de plástico azul, as
chaves de casa, o telemóvel e o anel de ouro branco e
amarelo que ele me oferecera no nosso primeiro
aniversário e que eu adorava (a minha mãe, coitada,
tirou-me a respiração ao deixar escapar, em voz alta, o
comentário de que aquela cena lhe partia o coração…)
Tudo isto, sem perder atitude, sem soluçar uma só vez,
de olhos límpidos e desertos. Tendo sido sempre
bailarina desta vez fui actriz (“se eu quisesse
enlouquecia…”)
Z. tudo ouviu, sem desviar um segundo sequer os seus
olhos dos meus, procurando descobrir através deles, a
verdade das minhas palavras e a sua real
correspondência com os meus sentimentos. Lia-lhe nos
olhos todas as perguntas que não lhe dei oportunidade
de me fazer. Aparentou sempre uma tranquilidade
resignada mas eu sabia que lhe estava a partir o coração
e que a sua vontade era confrontar-me com o amor que
tantas vezes eu lhe jurara e perguntar-me porque havia
desaparecido, porque estava a dizer aquelas coisas?
Eu sabia que a sua vontade era levantar-se, agarrar-me
pelos ombros, calar-me de vez com um beijo e levar-me
dali para fazermos amor, com carácter de urgência, no
primeiro sítio que encontrássemos.
Mas não lhe dei qualquer hipótese e tal como entrei, saí.
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Sem vida, é verdade, mas com dignidade. Sabia bem
que se permitisse um momento a sós com ele toda a
minha pose se desmoronaria com consequências, para
todos, imprevisíveis. Fiz o que tinha que ser feito.
(“Tenho de continuar. Não posso continuar. Vou
continuar”.)
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FOODAA-SSSEE!!!
(I Gotcha de Joe Tex)
Adoro falar sobre nada. É a única coisa de que percebo
muito.
Claro que fiquei chateado! Senti-me mesmo como marido
traído, duplamente enganado, por aquela família filha-daputa! Quando conheci X., aquele ar de parvinha que ela
tinha, fez-me pensar que seriam favas contadas e uma
mera questão de tempo, para chegar aonde eu queria,
mas afinal não foi bem assim. Durante três anos foramme iludindo com as frequentes referências aos bens que
possuíam em Goa, as jóias, as casas e até uma praia.
Tudo treta! Eu devia ter desconfiado porque se tivessem
tudo o que diziam não necessitavam de viver num andar
minúsculo em Massamá. Mas eu também andava um
pouco cego e a pensar demasiado com a cabeça de
baixo porque na verdade ela também tinha coisas boas…
umas mamas pequeninas é certo mas o corpo perfeito
umas pernas…!!!
Mas depois veio a menina e mais do que enganado,
senti-me encornado! Sendo ela quase preta e eu bem
moreno como é que a miúda me sai branquinha, cabelos
loiros e olhos verdes? A gaja enrolou-se de certeza com
algum daqueles maricas dos colegas e depois queria
fazer-me passar por parvo. Foda-se! A minha mãe já me
tinha avisado que naqueles meios artísticos são todas
umas putas e galdérias. E tudo o que a minha mãe diz ou
faz para mim é sagrado. Amo-a e odeio-a e ao mesmo
tempo. Tenho-lhe um medo de morte. Basta ela abrir-me
os olhos e nem sei onde me esconder. Em criança davame tareias de cinto e fivela e depois enquanto eu
chorava de dor e de raiva, abria a blusa e metia-me a
cabeça nas suas mamas enormes e quentes repetindo
com voz esganiçada mas meiga: A mamã é boazinha, tu
é que és um menino mau! De resto nunca me deu um
beijo ou um abraço. Com o meu pai era a mesma coisa.
Dava-lhe com cada murro nas costas que o desgraçado
até ajoelhava.
Mas ele desculpava-a sempre justificando os maus
humores e a agressividade com o ciclo menstrual.
Apesar disto tudo a minha mãe seria a única mulher com
quem eu me casaria por verdadeiro amor.
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Quanto à outra, cedo comecei a fazer-lhe a vida negra
com ameaças e tanta porrada que às vezes até dava
para jogar às damas no corpo dela. Não sei porquê mas
desde miúdo que gosto de ver e de fazer sofrer,
principalmente as mulheres. Quando deixei de poder
fazer sofrer X., porque a gaja me fugiu de casa, comecei
a fazê-lo com a putinha da filha. Era cá um gozo… Nos
dias em que ficava com ela, depois de a arrancar dos
braços do avô e de aproveitar nas escadas para, entre
dentes, o insultar devidamente, levava-a para a minha
casa, despi-a devagarinho, dando-lhe muitos beijinhos
naquele corpinho ainda a cheirar a leite e metia-me com
ela na banheira. Sou um pai muito moderno, caralho!
Depois, de pau teso, dizendo-lhe com uma vozinha
cómica que o papá estava a brincar com ela, ia-o
esfregando pelo rego do rabinho e da ratinha, (sem
nunca a penetrar, claro) até me vir todo na água. Depois
era a minha vez de lhe pedir que desse beijinhos no
“ursinho” do papá e ela dava. E ela achava graça e se
calhar até gostava.
Mas depois aqueles cabrões, desconfiando de alguma
coisa, começaram a inventar desculpas e a impedir-me
de levar a menina comigo aos fins-de-semana. Fizeram
queixa de mim à polícia e meteram-me em tribunal. Mas
eu também fiz queixa deles, alegando violação dos meus
direitos de pai e levantando as suspeitas para cima do
velho. Uma figura caricata aquele velho de barbas e
cabelos brancos tipo neve. Já viram o Pai Natal? Era tal
e qual, igual e cuspido. O que eu me divertia a aterrorizálos, a ele e à velha, quando os perseguia e lhes atirava
com o meu Range Rover para cima. Que gozo! E no
casamento? Até parecia um filme cómico. Muito tive eu
que beber para esquecer a merda que estava a fazer.
Aquele sim quero, diante do senhor Padre, custou-me
mesmo a sair. Foda-se!! No fim não via já nada à minha
frente e no fim do copo-de-água quase ia atropelando o
preto do irmão dela. O escarumba ainda quis tirar
satisfações mas mandei-o logo à merda e tinha-lhe ido
aos cornos se os meus amigos não me tivessem
agarrado. Mas o que eu gostei mais foi quando os meus
convidados começaram a fazer bolinhas de miolo de pão
e a atirá-las como berlindes para cima dos convidados
deles. Íamo-nos mijando a rir com as caras que eles
faziam. Nós uns trastes e eles uns tristes! Mas não posso
dizer que tenha sido só tempo perdido aquele ano do
meu casamento.
Além de ter vivido à custa dela, a comer e a beber, sem
fazer nada, e de lhe ter ficado com todo o dinheirinho que
ela possuía no Banco numa conta conjunta, as tardes
que passávamos até às tantas deitados numa manta no
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chão, a ver televisão e vídeos pornográficos, foram
mesmo muito bem passadas. Foi com esses filmes
educativos que ela aprendeu a chupar-me a vida por
dentro. A boca em oval perfeito, a língua solta, a mão
trabalhando bem e, de quando em quando, de soslaio,
lançando-me olhares gulosos para aferir o meu grau de
gozo e se excitar ainda mais. Foda-se, Caralho! Era
mesmo uma brasa! Porra! Que saudades…
E agora há meses que nem sequer vejo a miúda! Que
merda, pá!
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ACTO DE MISERICÓRDIA
(Sufre como yo de Alberto Pla )
A água demasiado pura não tem peixe
Não estou nada arrependida. Matei-o como a um cão
danado e vi-o sangrar até morrer. Estou agora presa mas
salvei a minha filha. O julgamento foi mais uma farsa
como haviam sido todos os outros em que participei
contra ele como autora ou como ré. Fiquei tão farta que
já não posso ver juízes, nem advogados, nem
testemunhas á minha frente. Como nunca consegui fazer
a prova dos factos que alegava acabei por perder todas
as acções que intentei desde a de ofensas corporais até
á acção principal do poder paternal. Nunca poderia
aceitar que me tirassem a minha menina. Preferia matar
alguém e foi isso que fiz. Matei-o a ele.
Toda a minha vida viajei numa diáspora familiar, primeiro
por Angola, depois Goa, Brasil e por fim Portugal. Pouco
me lembro de Luanda e de Goa mas do Brasil, de
S.Paulo lembro-me de tudo e como adorei lá ter estado.
Nasci lá para a dança que acabaria por ser toda a minha
vida nunca sendo o meu futuro. Recordo nitidamente as
minhas amiguinhas brasileiras da escola pública e do
bailado e as conversas e as descobertas, inclusive
sexuais, que fizemos e partilhámos sem qualquer pudor.
Z. dizia muitas vezes que eu era uma mulher de várias
raças e tinha razão pois era assim que eu me sentia
principalmente quando fazia amor e me transfigurava
num ser selvagem possuído por aquele instinto básico e
antigo que deu origem à vida.
Quando conheci o meu ex-marido pensei ter encontrado
o homem da minha vida. Era massagista num clube de
futebol de Lisboa e as suas mãos moldaram-me o
coração que começou a bater só por ele. Como foi
possível, pergunto-me agora, mas não consigo encontrar
resposta. O amor é cego, verdade? Não, não é verdade
mas isso agora não interessa.
O que interessa aconteceu assim: Estacionei o meu
carro numa rua adjacente à casa dele, liguei o rádio na
Antena 3 e aguardei. Ele chegou por volta das nove da
noite.
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Estacionou sobre o passeio como sempre me lembro de
o ver fazer e saiu assobiando feliz a atravessar a rua em
direcção à casa onde vivia ainda com os pais. Nessa
altura acelerei a minha raiva a fundo e o seu olhar de
espanto antecedeu o brutal embate que o elevou no ar,
sem um único grito, em direcção aos infernos. Travei
mais à frente e meti a marcha atrás. Nem olhei mas o
salto que senti o carro dar comprovava que mais uma
vez não falhara. Saí do carro com os faróis nos máximos,
servindo de holofote, iluminando a cena. Tombado no
asfalto e enrolado sobre si, com o rosto emborcado no
seu próprio sangue, o animal estava finalmente morto.
Senti então uma sensação visceral de prazer. Foi um
momento perfeito. Infelizmente, todos os momentos
perfeitos contêm em si o seu próprio fim.
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Interlúdio
(Boa sorte e Good luck cantada por Vanessa da Mata e
Ben Harper)
Se nada há a fazer então um beijo e adeus
Depois da ruptura com B. e antes de conhecer X.
encontrei Pat. Uma reunião, um almoço de trabalho no
qual, em resposta à referência de ter passado sozinho a
meia-noite de 31 de Dezembro, ela comentou em
surdina: Que desperdício! Fiz de conta que não ouvi mas
registei. Umas semanas depois, enviei-lhe um email,
convidando-a para uma night at the opera que,
naturalmente, aceitou. Nessa noite, saídos do S. Carlos,
fomos jantar ao bairro Alto e no regresso ao carro, em
plena rua, beijou-me. Verdadeiramente admirável e
surpreendente. É tão raro, uma mulher ter a ousadia de
tomar a iniciativa… (Neste dia irrompeu em ti um mar de
lava barro ou estanho ou seria nos teus olhos o abrir do
castanho a colorir o sorriso de teu nariz levantino)
Depois desse beijo demorou ainda algum tempo até
fazermos amor pois ela queria criar o ambiente próprio
para se entregar e necessitava de algum tempo para
recomeçar a tomar a pílula. Quando achou que estava
pronta, fomos jantar ao Pinóquio, ela vestida de vermelho
com uma saia curtíssima, exuberante e sedutora, onde
comemos marisco e bebemos um bom vinho branco.
Nessa noite, fizemos amor de uma forma desesperada e
pela primeira vez na minha vida senti que estava a ser
violado por alguém ainda mais carente do que eu.
Pat era divorciada, tinha dois filhos ainda pequenos, e o
que mais nela me atraiu foram os lábios vermelhos e
carnudos como frutos do bosque e verdadeiramente
divinos a beijar. Mas eu não estava apaixonado e foi
agora a minha vez de me deixar amar. Pat reconcilioume com a minha auto-estima sexual tão abalada com B.
e preparou-me fisicamente para o que viria a seguir com
X. Mas só deixei Pat porque entretanto conheci X. e o
universo reconstituiu-se perfeito dentro de mim.
Um amigo disse-me uma vez que depois de um desgosto
de amor acabamos por inconscientemente nos
vingarmos na pessoa que vier a seguir. Depois de B. e
do que ela me fez sofrer, ter-me-ei vingado em Pat?
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Não creio, pois sempre fui honesto ao ponto de nunca
lhe ter dito estar apaixonado, o que muito a surpreendia
pois estava habituada à situação oposta e, só depois de
acabar com ela, senti a liberdade necessária para me
assumir perante X.
Entretanto, nos intervalos destas ligações passaram
fugazes, outras mulheres pela minha vida, quase
perfazendo um alfabeto inteiro de falsas partidas.
C., por exemplo, tinha uns olhos tão lindos e azuis que
lhe escrevi e enviei por mail este poema que merecia
melhor sorte. Sei que ela o leu mas nem sequer
agradeceu:
Já tinha visto os teus olhos nas asas das borboletas que
perseguia em criança
Os teus olhos cantam o nascimento das cores que vivem
no grande silêncio da terra quando vista do espaço
É uma cor feita de água debruçada nas tuas pálpebras
lentas onde a beleza adormece ao som de cânticos
Abraço a nudez desse olhar e quase morro só de o
contemplar
Conheci M. num blind date arranjado por uma das
minhas filhas e durante umas semanas encontrámo-nos
regulamente mas eu continuava a chorar por X. e não só
o admitia como o demonstrava e ela naturalmente não
aceitou esse facto. (Ao encontro cego te entregaste /
fosse o que fosse / viesse o que viesse, pensaste/ não
sei o que achaste / talvez estranhando gostasses /do
sabor da poesia / do calor das palavras sussurradas/ do
som da lareira feito maresia/ das caminhadas ou do
vento quente que soprava / mas não penses sente/ se
pudesse pensar o coração parava)
De J. e L. nem vale a pena falar. Nem sequer as conheci
no sentido bíblico. Estes relacionamentos breves
fizeram-me pensar que nos puzzles das nossas vidas,
podemos tentar manipular as peças, de modo a
conseguir encaixá-las com mais facilidade mas o que
resulta nunca nos dá a imagem completa nem
verdadeira.
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A dança dos ventos dos céus
(Atrás da porta de Chico Buarque)
É mais fácil viver com Deus do que com outro ser
humano
Nunca vivi com nenhuma das duas mulheres que amei
nem qualquer delas o desejava. Tinham as suas
maneiras de viver muito próprias, as suas idiossincrasias,
e refazerem comigo uma família não fazia parte dos seus
projectos de vida. É agora evidente que não olhávamos
na mesma direcção… Porque será que o amor não
chega?
B. podia ter ficado comigo mas não quis e X. queria ter
ficado comigo mas não podia. Mas eu adorei-as e ainda
as amo, no sentido mais translato do termo, tal como
amo os meus amigos, as minhas filhas ou os meus pais.
Possuíam as qualidades que para mim são mais
admiráveis numa mulher: a simplicidade, a sensibilidade,
a sensualidade e a simpatia, e ainda como extra, esse
Sol do rosto a que chamamos sorriso, que nelas era fácil
e verdadeiramente luminoso. (“A beleza, só por si, não é
importante, apenas provoca o medo de a perder, pois
que fique para os homens sem imaginação”).
Nunca precisavam de nada e para elas estava sempre
tudo bem. Não eram consumistas nem sequer gostavam
de gastar dinheiro, características raras nas mulheres e
que eu admirava por razões óbvias. Ouvíamos a mesma
música, líamos os mesmos livros e gostávamos das
mesmas coisas. Eram lindas, sem necessidade de
pinturas nem nuances no cabelo (não me lembro de
alguma vez terem ido ao cabeleireiro) e tinham corpos
sublimes. Ambas tinham seios pequenos como maçãs,
raramente escondidos por sutiãs, e que eu adorava
guardar no côncavo das minhas mãos. Riamos muito e
de tudo! Nunca discutíamos, não nos zangávamos, nem
amuávamos. Havia espaço nas nossas relações e “os
ventos dos céus dançavam entre nós”. É frequente ouvir
as mulheres dizerem que o sonho delas é encontrar um
homem sensível e verdadeiro. Como se vê as mulheres
dizem sempre o contrário do que pensam.
Curiosamente, depois de mim nenhuma delas voltou a
amar e continuam, ainda hoje, sós. Ambas consideram
que neste momento o amor de um homem não lhes
acrescentaria qualquer valor às suas vidas e que, pelo
contrário, seria mesmo um obstáculo aos seus propósitos
mais próximos.
103
B. começou a estudar medicinas alternativas com um
espírito militante de missão, andando permanente e
obsessivamente ocupada a estudar para os exames nos
quais, aliás, consegue notas excelentes. Embora este
curso fosse um antigo sonho, acho que ela entrou nele
como antigamente algumas mulheres entravam nos
conventos: para esquecerem o passado, fugirem de si
próprias e se esconderem da vida. Por sua vez, X.
continua na sua rotina de dedicação exclusiva à filha e
aos pais, vinte e quatro horas por dia, com total
abdicação dela própria. Nenhuma delas tem espaço nas
suas vidas para amar alguém. Irão envelhecer sozinhas
e um dia, talvez se arrependam. Será minha a culpa?
Serei uma espécie de eucalipto emocional que seca a
vida afectiva das mulheres que amo?
Algumas diferenças, contudo, existiam entre elas: o nível
de entrega e partilha, a forma como se relacionavam com
as suas famílias e o modo como se comportavam comigo
na cama.
B. pouco ou nada falava de si e dos seus problemas, era
muito ciosa das suas coisas, nunca me deu a chave de
sua casa, nem sequer me deixava conduzir o seu Jeep.
X. expunha-se toda e tudo partilhava, entregava-me tudo,
o seu carro, o seu corpo e o seu coração.
B. havia saído cedo de casa e era totalmente
independente e autónoma face à sua família, vivendo
desde sempre com a sua filha em casa própria e
raramente se encontrava com a mãe e os irmãos. Pelo
contrário, X. o único período que viveu fora de casa dos
pais foi a eternidade daquele ano em que esteve casada
e dos pais era ultra dependente e subserviente. Estou
mesmo convencido que enquanto os pais forem vivos
nunca esta situação se modificará
Quanto ao sexo, B. sentia um pavor frio que se lhe via
nos olhos e se lhe lia nas atitudes, quando a hora de ir
para a cama se aproximava. Parecia uma ave assustada.
Nunca me abraçava e dormia sempre afastada porque
me achava muito quente e tinha sempre muito calor.
Nunca tinha vontade de começar (a maior parte das
mulheres é mesmo assim) e dizia, frequentemente, que
para ela, fazer amor uma vez por mês era mais que
suficiente. Talvez os seus níveis de testosterona
tivessem descido muito abaixo do normal e estivesse a
perder o interesse pelo sexo. Seria?
O certo é que a mulher necessita de criar previamente
disposição para o sexo e B. nunca a tinha, nem sentia
aquele impulso neuroquímico a que chamamos desejo.
(“Ironicamente, a activação sexual feminina só começa
com o desligar do cérebro”).
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Qualquer pequena coisa da minha parte, um movimento
desajeitado, uma palavra errada, uma expressão menos
feliz podia por termo ao já de si difícil inicio e
desenvolvimento do seu prazer. Também poderia ser
uma qualquer recordação desagradável do seu passado,
a induzir sentimentos como a vergonha, a insegurança
ou o medo e a conduzir ao mesmo resultado (“as
hormonas influenciam a configuração dos desejos, dos
valores e da própria percepção da realidade”).
Ao invés, X. estava sempre pronta e nunca satisfeita.
Agarrava-se a mim como se quisesse colar para sempre
os nossos corpos. Tinha ainda a felicidade rara de ser
multiorgásmica. Nela, as constelações de estrelas
neuroquímicas estavam sempre em conjugação. (“O
orgasmo é um processo delicado. Os nervos da
extremidade do clítoris comunicam directamente com o
centro de prazer do cérebro feminino. Quando esses
nervos são estimulados desencadeiam uma actividade
electroquímica até alcançar um certo limiar em que
ocorrem uma série de impulsos e a libertação de
substâncias químicas neurológicas afectivas e de bemestar como a dopamina, a oxitocina e as endorfinas.
O clímax!”.)
Recebia e dava prazer generosamente. A sua
respiração, expressões e palavras (vira-me! faz-me!
Estou tão lá em cima!) ficaram-me para sempre gravadas
nos sentidos. Eram diferentes na cama porque uma
estava apaixonada e a outra não. Paradoxalmente (ou
talvez não) também eu era o oposto. Com B., mais vezes
do que seria aceitável, poucos minutos após a
penetração, ejaculava incontida e desastradamente,
aumentando a frustração de ambos. Com X. eram horas
e horas de puro êxtase recíproco, sempre nas alturas, só
me vindo mesmo quando queria ou quando ela me pedia.
Que absurdo! Será que a única forma de coerência é
sermos uma coisa e o seu contrário ao mesmo tempo?
(“Não sei se, como dizem os budistas, o mundo não será
um deus a brincar às escondidas consigo próprio”)
Todos vivemos alternadamente entre montanhas e vales.
B. foi um vale. X. foi uma montanha. Talvez por isso não
consigo suportar a ideia de que nunca mais a irei ver.
Que nunca mais a irei ter. Que nunca mais. Nunca mais.
Nunca mais. Nunca Mais. Nunca Mais. Nunca mais (em
cada Natal que passa o seu retorno à minha vida é o
único pedido que faço ao menino Jesus mas nunca é
atendido). Mas NUNCA MAIS é muito tempo. E não
importa em quantos bocados ficou partido o meu
coração, o mundo não pára para que eu o conserte
105
Agora atravesso novamente um vale, cavado, inóspito e
deserto. Durante quanto tempo? Quando voltarei a atingir
as alturas da montanha? A nossa vida é mesmo assim,
vem em ondas. Como o mar, a vida dá-nos e tira-nos.
Volta a dar-nos e, de novo, nos volta a tirar.
Os extremos tocaram-me. Quando nos apaixonamos
ficamos sempre a um pequeno passo da psicose. E não
vale a pena lutar porque contra nós próprios nunca há
vencedores. (“Nas tuas mãos repousa a minha
vida/Falta-me um gesto teu para acordar/ Pássaro triste
asa enfraquecida/Sem o teu corpo o céu para voar/ Nas
tuas mãos deixei a minha vida parar”)
106
Olhar o mar é tudo
(Why should I care de Diana Krall)
A simplicidade é a maior das sofisticações
Desde o divórcio que vivo com as minhas filhas que,
sendo agora adultas, têm naturalmente a sua própria
vida. (“Os teus filhos não são teus filhos/ São filhos e
filhas do desejo da vida/ Vêm através de ti mas não de ti/
E embora estejam contigo, não te pertencem.”)
As minhas filhas são as outras mulheres da minha vida.
Vivo com elas desde o dia em que nasceram. Fui o
primeiro a vê-las assomar ao mundo rompendo pelas
entranhas da mãe e fotografei esses momentos
gravando-os no tempo. A L., a mais velha, é inteligente e
sonhadora, toda sensibilidade no seu estado
quimicamente mais puro mas teimosa que nem uma
burra. Saiu-me a mim. A R., é a energia e a realidade
personificadas e vencerá, faça o que fizer. A T. é o
equilíbrio tranquilo e sábio. Nem se dá por ela mas faz
tudo bem feito. Mudei-lhes as fraldas, dei-lhes papinhas,
adormeci-as com histórias e canções de embalar.
Acompanhei-as em todas as horas, minutos e segundos
das suas vidas e mesmo quando ausente estava sempre
presente dentro delas. Ainda hoje, sou pai para toda a
obra. De motorista a fiador, de cozinheiro dos seus
pratos preferidos a paitrocinador, faço de tudo um pouco.
A minha vida para elas é transparente, de mim tudo
sabem, de tudo lhes falo e lhes confidencio. Depois de
mim elas são sempre as primeiras a saber tudo o que me
acontece. Nada lhes escondo e nunca lhes minto (“quem
busca a verdade só pode começar essa busca dentro de
si”). Aliás, estou convencido que as únicas coisas
verdadeiramente importantes que podemos deixar aos
nossos filhos são os valores, como os da verdade, da
bondade, da honestidade e do trabalho que o exemplo
da nossa vida lhes pode dar. Foi esta a única herança
que recebi dos meus pais e será a mesma que deixarei
para as minhas filhas. O dinheiro não é realmente
importante e só me interessa na medida em que possua
o suficiente para não ter que pensar nele. Talvez por isso
não o acumule nem procure obter mais do que já tenho.
107
Aliás, sempre que por vezes necessito de mais algum
para fazer face a uma despesa inesperada, ele apareceme nem sei como. Comigo, não gasto muito, trapos só os
indispensáveis, mas perco a cabeça com livros e discos
e as filhas dão-me as despesas normais mas que
multiplicadas por três doem muito (“Estão comigo mas
não me pertencem, dou-lhes o meu amor mas não os
meus pensamento”).
Aos fins-de-semana, quero estar a sós com a minha
solidão e refugio-me, feito eremita de mim mesmo, na
simplicidade da minha casa do Meco, o meu espaço de
liberdade perto do mar (a praia que eu mais gosto em
todo o mundo é esta ampla aberta e nua onde um dia
minha alma deserta se enamorou para sempre da tua)
onde a paisagem é um silêncio com forma (no silêncio da
luz dormem as cores e a noite é um silêncio negro/ o
silêncio é o espaço entre nós e a morte é o silêncio no
corpo todo/ as palavras têm o seu próprio silêncio e o
perfume é o silêncio das flores.)
Costumo pensar na minha casa do Meco como um ninho
de águia onde voo solitário e mais alto. É uma casa que
repousa distraída na paisagem dos pinheiros só se
dando por ela quando lá chegamos. Harmonia pura. (“Lá
imito o Olimpo no meu coração e sou selvagem entre
árvores e esquecimentos”). Lá vagueio, folheando em
mim o livro dos meus momentos mais íntimos,
escrevendo no ar com a pena dos pensamentos e,
sempre extasiado, contemplo o mar.
Adoro olhar o mar porque olhar o mar é olhar tudo.
Também, as ondas, na sua eterna repetição, me dão
sempre a sensação de renovação e a esperança de que
tudo pode voltar a acontecer. Diz-se que a esperança
deve ser a última coisa a morrer porque quando ela se
perde morre-se sem se saber.
Sinto, diante do mar, a analogia rítmica das nossas vidas
com as ondas e uma voz interior que me diz: Calma,
espera. Vais voltar a amar… e amarás como se nunca
ninguém te tivesse feito sofrer. (Olhando a linha fina do
horizonte/ frente ao mar/espero por ti/ como o dia/ espera
a noite/ como o viajante aguarda um porto/ numa espera
feita onda/ de um mar que não existe)
Nesses momentos, sinto a vida como se ela fosse a tal
Divina Melodia de que Osho fala e eu tento praticar (em
tuas palavras o silêncio fala, nos teus olhos o universo
nos vê/ És uma flauta nos lábios do infinito). Vivo o aqui
e agora. Transformo os venenos em mel. Compartilho a
positividade. E tento ser… nada (“Não sou nada/não
quero ser nada/nunca hei-de ser nada/à parte isso tenho
em mim todos os sonhos do mundo”).
108
Leio, escrevo e ouço música. São momentos
formidáveis, logo pela manhã, a caminho da praia por
entre o ondular elegante e fresco dos pinheiros, ouvir a
Pastoral de Beethoven ou à noite, sozinho na estrada de
terra batida, coberto pelo negro cósmico do universo
realçando o pálido branco da lua, a vibrar com A
Valquíria de Wagner.
Também trato da casa, do jardim e brinco com os bandos
de pássaros que como doidos felizes não param um
segundo nos arbustos e nas árvores. Sempre só.
(“Senta-te, descansa, trabalha. Só contigo mesmo. Na
orla da floresta vive feliz, sem desejo”)
Quanto a afectos que mais posso esperar da vida? Não
tenho o instinto predador e macho da espécie e sem
pretender ser sarcástico ou redutor, todos os dias
constato que o universo feminino se reduziu para mim a
dois grandes grupos: as mulheres que acham que já
passei o prazo de validade e aquelas que eu acho que já
o passaram (“Para saber envelhecer é preciso aceitar
que as oportunidades diminuem e a vida se torna num
funil cada vez mais estreito…”).
OK. Concordo. Por isso questiono-me: Que probabilidade
terá um homem de se apaixonar à primeira vista, na
mesma vida, duas vezes seguidas, sendo retribuído,
como eu fui? Mas não haverá mesmo duas sem três?
Não esqueço que o passado é memória, o futuro
imaginação e só o presente é eterno. Assim tento viver
cada dia com se fosse o último (um dia acabarei por
acertar). Sei perfeitamente que para sonhar é preciso
não ter ilusões. Mas sei lá porquê, o meu sonho continua
sendo, amar e ser amado. Quando será? Amanhã?
Às vezes quase me sinto uma espécie de versão
masculina da carochinha, debruçado numa janela
qualquer sobre o mundo cantando “ Quem quer namorar
com o Zézinho, que está disponível e é tão bom
mocinho”. Outras vezes tenho vontade de pôr um
anúncio como este num jornal qualquer:
Cúmplice procura-se
para uma vida a dois
de entrega, de partilha
e de atenções
Mas o pior de tudo (e que dói mesmo) é a falta de sexo.
Embora o sexo só pelo sexo não me interesse, nem
relações rápidas e muito menos, rapidinhas. Na verdade,
o que eu queria mesmo era viver histórias de amor.
109
Mas como a acção faz o órgão, receio o dia, em que sem
dar por isso, ele me caia no chão, morto de inacção.
Aprendo agora a viver sem sexo. Há quase dois anos
que os meus únicos gemidos de prazer acontecem
apenas debaixo da água quente do meu duche matinal
que todos os dias me acorda para a vida. É mais uma
aprendizagem feminina pois as mulheres conseguem
lidar melhor com a abstinência sexual que os homens.
Um dia, devia estar mesmo mal, o desespero ditou-me
este poema (“Será a poesia mais real que a verdade dos
sentidos”?):
:
Apaguem as velas de todos os altares
Que as crianças não cresçam e o seu riso se cale
Fechem as portas e janelas de todos os andares
Que o sol nunca mais nasça e a sua luz se apague
Pisem as flores de todos os jardins
Que o seu perfume comece a cheirar mal
Fiquem todas as gaivotas em terra
Que a maior das sedes seque os mares
Que as mais ferozes epidemias recrudesçam
E as piores doenças dizimem a humanidade
Que mais nenhuma música se ouça
E os instrumentos desafinem e emudeçam
Cortem-me os dedos que lhe afagavam o cabelo
Tapem-me a boca que lhe beijava as mãos
Ceguem-me os olhos que me alimentavam o sonho
Queimem-me o corpo e arranquem-me o coração
O meu amor partiu e não mais o verei
O meu amor deixou-me e só eu fiquei
O meu amor morreu e com ele morri eu
110
ENTROU NA MINHA VIDA UMA LOUCURA BRANDA
Todas as idades se submetem ao amor, ária da ópera
Eugene Oneguin de Tchaikovsky
Se um dia amasse não seria amado
Filipa,
Sei que a vi pela primeira vez nas escadas ou num dos
corredores da escola. Nesse momento, lembro-me que
trocámos olhares tão súbitos quanto curiosos. Você tinha
algo de tão evanescente como o ar de uma manhã no
campo. Calculei que fosse aluna e imaginei que um dia
talvez tivéssemos oportunidade de nos conhecermos.
Ainda demorou alguns meses a acontecer. Mas no
primeiro dia de aulas do segundo semestre, entrei na
sala e vi-a sentada na primeira carteira da segunda fila.
A partir desse dia, cada aula foi para mim um prazer e
uma dor. Estar ali, de pé, de um lado para o outro, a falar
sem parar, lutando contra a obsessão de olhá-la nos
olhos para avaliar o impacto das palavras que ia atirando
para o ar e que em nada correspondiam às palavras que
na realidade gostaria de lhe dizer. E o que, gostaria de
lhe ter dito desde a primeira vez que a vi era que a Filipa
é a mulher mais bela que já vi em toda a minha vida. A
frase é vulgar, eu sei, mas é o que sinto. Outras vezes
muito resisti para não lhe dizer, mesmo diante de todos,
este poema que escrevi para si:
Posso chamar-te sem voz pois sei que me ouves
Imaginar-te tão só pois sei que me sentes
sem que o saibas de verdade
Posso ver-te de olhos fechados, sentir-te
sem te tocar e passar por diante de ti
sem que o saibas na realidade
Posso renunciar ao teu amor adolescente
pôr o meu ar mais sério e desistir de mim
sem que saibas a verdade
Posso ser tudo o que quiseres como o pai
a quem dares a mão o brilho do teu olhar
ou o teu animal de estimação
Posso ser ainda mais e porque não
o sopro do teu coração a linha do teu horizonte
ou o teu professor de Distribuição
111
É muito estranho para mim sentir esta atracção por uma
mulher da idade das minhas filhas. Sei que um abismo
de tempo nos separa. Um abismo de anos, de vivências
e de sonhos. Toda uma distância feita de uma ou duas
gerações que só um sonhador romântico como eu
acreditaria ser capaz de ultrapassar.
Há dois ou três anos, uma aluna no meio de uma aula
perguntou-me em tom de desafio: e o amor, professor?
Fiquei sem palavras. A pergunta entrou como um míssil
por mim a dentro sem pedir licença. Não me recordo que
facto a poderia ter suscitado porque, como é habitual nas
minhas aulas, costumo fazer frequentes associações de
temas e de ideias abrindo extensos parêntesis, onde
conto estórias, episódios vividos, faço citações e até digo
poesia. Talvez tenha referido a necessidade de trabalhar
muito e cada vez mais neste mundo competitivo e
exigente onde vivemos e no qual a velocidade da nossa
corrida pode fazer toda a diferença entre o êxito e o
fracasso (embora a vida não seja uma corrida mas uma
viagem). Talvez lhes tenha mesmo contado a minha
metáfora preferida sobre concorrência, a tal do tapete
rolante no qual, ao se entrar nele no sentido contrário ao
do seu movimento, se ficarmos parados andamos para
trás, se caminharmos não passaremos do mesmo sítio e
somente conseguiremos avançar se corrermos. Ou então
talvez tivesse falado sobre… sim acho que foi isso, sobre
a felicidade. Do alto da minha idade falando a jovens de
vinte e poucos, terei feito uma incursão pessoal
chamando-me a mim mesmo à colação e dito que ainda
tinha os meus pais vivos, que as minhas filhas me
amavam e viviam comigo, que os amigos me
respeitavam, os colegas me admiravam, que não tendo
fortuna pessoal tinha o necessário para viver bem e
fechei a evocação com a sacramental pergunta, que
mais posso desejar?
É aí que a sua colega me atinge com a farpa da
pergunta, e o amor, professor, que lugar ocupa na sua
vida? Após longos segundos de estupefacção, respondilhe com meras evasivas e mudei de assunto, o que é um
privilégio de quem dá aulas. Indiciaria porventura aquela
pergunta mais que mera curiosidade mas nunca levei
muito a sério as manifestações de admiração ou de
interesse recebidas das minhas alunas pois sempre as
considerei território proibido por onde nunca ousei
avançar com passos de sedução. Talvez por ter sempre
tido o coração ocupado e indisponível. Mas agora, sem
ninguém há vários anos, espaço em mim não falta e a
natureza, como se sabe, tem horror ao vazio.
112
Talvez por isso, e pela primeira vez na minha já longa
vida de professor, tenha tido, não sei se a coragem se a
loucura, de me expor desta maneira perante uma aluna
com o objectivo de render uma simples homenagem à
mulher bela e inteligente que você é (e, ao mesmo tempo
agradecer a permanente atenção dedicada às minhas
aulas que tanto me compensava por ter que aturar
aqueles tontos infantis dos seus colegas). Filipa, você
possui as qualidades que para mim são mais admiráveis
numa mulher: a simplicidade, a sensibilidade, a
sensualidade, a simpatia, e como extra, brilha-lhe
sempre esse Sol do rosto chamado sorriso.
Não tenho a vã ilusão de pensar que a minha admiração
por si possa ser correspondida mas tinha a obrigação de
lha manifestar e nada neste mundo me teria impedido de
o fazer.
Sou um homem tranquilo e independente, nada receio
nem sequer o ridículo, e nunca se é ridículo por se
obedecer à lei do amor, sendo completamente indiferente
às opiniões dos outros. Também não desejo causar-lhe
qualquer perturbação na sua vida e muito menos ofender
os seus sentimentos. Mas, se calhar, a culpa é do seu
nome Ana.
É também o nome das minhas três filhas e sei há muito,
que seria o nome a dar a uma quarta filha se a tivesse
tido… Ana Filipa (nesta altura você levanta os olhos do
computador, suspende a leitura, estupefacta, e pensa
para si: o homem endoideceu!). Não endoideci, não,
simplesmente sei que não podemos escolher as pessoas
por quem nos apaixonamos e que nos iluminam por
dentro. O amor não se explica nem precisa de
explicações mas terá o amor de ser sempre um malentendido? Teria preferido dizer-lhe tudo isto
pessoalmente, iluminado pelo brilho dos seus olhos, mas
as circunstâncias não mo permitiram.
Gostaria, naturalmente, de receber uma resposta sua,
fosse qual fosse o conteúdo, mas sei não ser fácil fazêlo. E, quando assim é, a melhor resposta é o silêncio que
compreendo e aceito. Mas quem sabe talvez as palavras
que acabou de ler fiquem guardadas num recanto do seu
coração e num dia que faça chuva e frio na sua vida,
talvez o calor desta recordação possa servir ao menos
para lhe aquecer a alma.
Os homens e mulheres da Antiga Índia chamavam ao
amor a eterna dança do Universo. Espero que esses
ventos dos céus dancem sempre consigo no seu
coração.
113
114
O AMOR NÃO É PARA VELHOS
(Rosa, de Rodrigo Leão, cantada por Rosa Passos)
Filipa,
Desculpe, se me apaixonei por si. Não tinha essa
intenção mas o brilho único do seu olhar cegou-me a
razão. E afinal parece que a ofendi com umas simples
palavras de admiração e elogio que fariam qualquer
mulher sentir-se lisonjeada e especial.
Mas você não! Respondeu à minha carta com um
silêncio ruidoso, aliás já esperado, mas o que mais me
surpreendeu e magoou, aconteceu no outro dia, ao nos
cruzarmos na escola, você baixou os olhos e desviou-se
ostensivamente de mim. Na sua expressão senti
vergonha e porventura medo na atitude. Mas medo de
quê? De mim? De si? Da vida? Do amor? Medo do amor
manifestado, não por um velho, mas por um homem,
apenas mais velho? Eu não me limitei a abrir-lhe o
coração, eu abri as minhas veias diante de si sendo
autêntico e espontâneo nas minhas emoções.
Depreendo, porém, da sua atitude, considerar que a
minha idade não me daria o direito de sentir amor e
muito menos de o manifestar. É muito nova ainda mas
saiba que o direito a amar não prescreve com a idade.
No fundo, sinto ter traído a sua confiança e acredito que
tenha ficado realmente assustada! Sei-o só agora após
ter falado com a minha filha mais nova. Mostrei-lhe o
e.mail e contei-lhe o sucedido. Ela respondeu-me que se
fosse com ela teria ficado em pânico e nunca mais
poderia encarar o professor. Ainda pior foi a reacção de
outra das minhas filhas, não só se recusou a ler o mail
como me assegurou nunca poder aceitar uma minha
namorada mais nova que ela...
Devo reconhecer, ser para si impensável, enamorar-se
ou andar de mão na mão com um homem da idade do
seu pai. Imagino o pesadelo que seria apresentar-me às
suas amigas ou o embaraço de o fazer à sua família
porque o lugar-comum tem sempre razão. Peço-lhe, de
novo, desculpa. A forma como lidei com a situação não
foi apenas resultante de um erro de cálculo, difícil pela
minha parte de evitar, foi a prova da minha incapacidade
de compreender os estados mentais, os desejos e a
intenções dos outros, principalmente, se o outro é uma
miúda de vinte anos a desejar, naturalmente, o mundo.
115
E como poderia eu competir com o mundo? O delírio
nunca tem explicação!
De todas as alunas que já tive, porventura mais de mil, a
única por quem me deixei deslumbrar foi por si. Foi
mesmo pontaria. No dia do exame tive muito tempo para
a observar bem e tudo me encantava. Debruçada sobre
a folha escrevias. Rápida. A cabeça oblíqua quase
tocando o tampo da carteira assentava por momentos na
curvatura do antebraço esquerdo o qual, suavemente,
abraçava o enunciado. De vez em quando passeavas os
dedos pela testa e assim ficavas contemplando as
últimas linhas do que acabaras de escrever. De repente
uma das mãos saltava num gesto incontido agarrando
levemente o pequeno lóbulo de uma das orelhas e lá
ficava parecendo esquecida. O cabelo apanhado ainda
fazia parecer maior a testa que num momento de
impaciência as duas mãos por vezes escondiam. Azar
meu. Julguei-a uma mulher adulta mas afinal não passa
de uma criança medrosa e insegura que provavelmente
não perderá ainda nenhum episódio dos Morangos com
Açúcar revendo-se em todas aquelas personagens
adolescentes.
A crua realidade é que o seu campeonato ainda é o de
juniors, enquanto o meu, nem sequer é o de seniors mas
já o das velhas-guardas. Isso explica que tendo batido à
porta da sua vida, indignada me tenha dado com a porta
na cara. A nossa bioquímica será seguramente diferente
e os nossos mapas de amor, ou seja, os gráficos
psicológicos esculpidos pela nossa bioquímica e
experiências pessoais desde a infância, que são subtis,
difíceis de ler e quase sempre inconscientes, também
serão, porventura indecifráveis, para cada um de nós.
Mas o que é o amor? A magia capaz de fazer
enlouquecer o mais lúcido dos homens como escreveu
Homero ou uma necessidade, um impulso, um anseio
que nos encharca de substâncias químicas? Parece-me
evidente que, tal como temos necessidade de comer, de
beber também temos necessidade de amar e de ser
amados. E quando o amor acontece a nossa consciência
muda e toda a realidade se altera. Focamo-nos de forma
total e por vezes obsessiva no ser amado, enaltecendolhe todas as qualidades e ignorando os seus defeitos,
sentindo-nos vazios e incompletos na sua ausência,
mudando as nossas prioridades e deixando-nos ficar
face a ele emocionalmente dependentes, senão mesmo
indigentes como dizia Sócrates. Aliás os Gregos antigos
reconheciam existir muitos e diferentes tipos de amor,
desde o Eros até ao Mania ou ao Ágape, ou seja, o amor
é uma sinfonia de sentimentos de muitas notas e acordes
por vezes até dissonantes.
116
Mas a maior parte das pessoas não sabe amar nem ser
amada, porque é necessário ter muita coragem para se
amar incondicionalmente. Têm medo de se entregar e de
se revelarem ao outro. Eu não tenho. Mas a natureza
não é exacta e numa perspectiva menos poética mas
mais científica, o amor é um sistema primário de
motivação do cérebro destinado a criar o impulso
fundamental de acasalamento do ser humano. O espelho
químico manda e você não se revendo em mim, não
sendo eu, naturalmente, o macho jovem e certo para
acasalar, rejeitou-me. E a rejeição (se bem que você
ainda não o saiba) é tudo o que precisamos de saber
sobre o inferno.
117
A VIDA NÃO TEM CURA
(Uns Versos de Adriana Calcanhoto)
Professor,
Quando abri o seu mail e comecei a ler nem queria
acreditar que aquela pessoa que aprendi a admirar me
tivesse escrito uma declaração de amor. O senhor
desiludiu-me profundamente. Por isso, não lhe respondi
nem o consegui encarar quando depois nos vimos. As
suas palavras não me deslumbraram nem me fizeram
sentir lisonjeada como pretenderia, antes me fizeram
corar de vergonha e pensar se algo no meu
comportamento lhe teria dado motivo para pensar que
sentiria por si mais que o respeito naturalmente devido a
um professor. Gostava das suas aulas, ouvia-as
atentamente e na última, até me despedi de si com um
simpático: adeus professor, foi um prazer conhecê-lo.
Mas como se atreveu a enviar-me aquele e.mail? E
dizer-me aquelas coisas? Estaria por acaso convencido
que lhe iria cair nos braços desvanecida pelo tom
elogioso e quase baboso das suas palavras? Acha
mesmo que basta coragem e palavras para seduzir uma
mulher? Leu isso nalgum livro barato de auto-ajuda
comportamental?
Já reparou que tem idade para ser meu pai e quase meu
avô? Não percebe que eu quero um homem novinho em
folha e por estrear com zero quilómetros e sem “pneus”?
As hormonas não são cegas e na minha idade só a
juventude conta. E como sei que gosta de metáforas
digo-lhe que para mim a vida é como uma maratona que
pretendo correr com alguém que esteja ao meu lado na
linha de partida e não com quem está quase a chegar à
meta.
Não se ofenda, mas só a ideia de me poder abraçar e
beijar me repugna, seria quase como se fosse agarrada
ou seduzida por um dos meus tios ou pelo meu pai! Por
outro lado, sinceramente, acha mesmo que me iria
impressionar com os seus patéticos arroubos
sentimentais de velho carente? Ou que estaria
interessada nas suas cenas com outras alunas ou que
118
me comoveria com a enternecedora referência às suas
filhas?
A beleza é uma força que possuo. Sei-o há muito e o
senhor não foi a primeira nem será o último homem a
senti-la. Aliás, a primeira vítima sou eu própria mas
aprendi a defender-me. Sabe, por acaso, o que é ser
incomodada, desde os meus doze anos, por homens que
no comboio ou na rua, se colam a mim e me tentam
apalpar ou me sussurram com palavras de mau hálito:
Oh murcona, deixa-me ir-te ao sufixo!
Não o comparo, claro, com esses idiotas mas não
consigo deixar de me interrogar sobre o que terá
passado pela sua cabeça para se me declarar? E se eu
tivesse reencaminhado o seu e.mail pelos meus colegas
ou pelos outros professores? E se me tivesse queixado
de assédio à Direcção da escola?
Mas pode estar tranquilo que não o fiz nem farei. Serei
apenas eu, a única espectadora da comédia desta sua
presunçosa e estúpida vaidade. De facto, a vida não tem
cura.
119
EM SILÊNCIO E POESIA
(A vanishing act de Lou Reed)
Toda a minha escrita é um pedido de amor
Estou na praia. Só. Tão só e em silêncio que até me
ouço a pensar. Há já alguns anos que deixei de estar
acompanhado nestas dunas onde o mar vem morrer
devagarinho. Atrás de mim as falésias de argila exibem o
seu recorte picotado na contraluz azul do céu. Alguns
desses recortes, mais parecem sentinelas imóveis e
atentas ao que se passa cá em baixo do que aquilo que
na verdade são, meras excrescências de areia
solidificada. Antes, com B. sentia-me o homem mais
invejado do mundo, porque quem olhasse para nós
pensaria: que sorte aquele gajo tem por estar com
aquele pedaço de mulher… Hoje quem olhar para mim
muito provavelmente pensará: mais um velho solitário
que é gay ou vem ver mulheres sós e nuas e tentar a sua
sorte. Nos momentos em que me sinto mais necessitado
e desamparado, entro no mar e faço amor com as ondas.
No seu ritmo lento, num vai e vem molhado, trocamos os
nossos corpos e fluidos de vida entre espasmos de
espuma. Quando estou só, na praia, não consigo deixar
de me sentir, como escreveu Pessoa, uma “criança triste
em que a vida bateu e a quem puseram num canto de
onde se ouve brincar”. Talvez seja um reflexo Kármico.
Tantas vezes me vangloriei que a solidão não me
incomodava e até a desfrutava com prazer
(parafraseando W. Allen, chegava a brincar dizendo que
quando estava só, estava acompanhado pela pessoa
que mais amava no mundo) que alguém me terá feito a
vontade, e cá estou eu, só. (“cuidado com os desejos
que expressamos, porque um dia, podem realizar-se”).
À minha volta, casais e grupos de homens e mulheres,
riem, trocam carícias, banham-se e aquecem-se juntos
ao sol. E eu fico a vê-los viver. Leio, olho o mar e todos
os dias penso nas últimas mulheres da minha vida, em B.
e em X., e chego à conclusão que o sonho é a única
realidade que me vale a pena viver. Por isso, sonho com
elas sem a falsidade das percepções que não passam de
meras somas dos nossos mal entendidos.
Com elas sentia-me um jovem, todo iluminado por
dentro, com a vida a revelar-se-me a todos os instantes
numa perspectiva atemporal e quase irreal.
120
Com elas sentia a alquimia da vida, ou seja, a matéria
bruta da minha natureza de chumbo transmutar-se em
ouro num trabalho de laboratório no interior de mim.
(“Cavalga a Ave da Vida, se queres saber. Abandona a
tua vida, se queres viver. A não ser que ouças, não
poderás ver. A não ser que vejas, não poderás ouvir”.)
Não. Não quero ficar preso a momentos cujo tempo já
passou mas por mais anos que viva nunca me
esquecerei dos seus olhos e dos seus sorrisos,
maravilhosos e singularmente divinos.
À primeira vista os olhos delas pareciam castanhos, mas
se o sol lhes dava ficavam da cor do mar num dia de
tempestade e na cama, à luz das velas, ficavam mais
negros que noites sem luar e, se excitadas, os seus
olhos brilhavam mais que o mar sob um sol de fim de
tarde. Os sorrisos, eram tantos e tão diversificados, que
nem um catálogo de mil páginas os poderia conter a
todos. Tinham o sorriso estremunhado da manhã quando
acordavam ao meu lado e me diziam: bom dia!.e a
manhã nascia dentro de mim. O sorriso de tímido prazer
que faziam quando lhes dizia que as amava, e o sorriso
das gargalhadas que soltavam quando riamos das
nossas brincadeiras e das minhas parvoíces. Por incrível
que possa parecer o sentimento que ainda hoje sinto por
elas é amor, sem paixão é certo, mas amor sem qualquer
dúvida.
Agora, prosseguimos as nossas vidas, cada um por seu
lado, em silêncio estendemos as mãos e não agarramos
mais que o vazio daquilo que a vida nos foi tirando.
(Queridas, o que pretendem fazer com o resto das
vossas vidas?) Por mim, vivo a minha vida como um
espectador de mim próprio e sinto a vossa falta nesta
minha era de viuvez tentando conter, ao longo das
madrugadas, os impulsos hidráulicos da minha anatomia.
Ainda ontem á noite, vi numa série americana da RTP2,
curiosamente chamada Erva, uma cena onde uma jovem
viúva, visualizava um vídeo em que ela e o marido
faziam amor de forma apaixonada e plena de prazer.
Aquela personagem olhava as imagens, sem
compreender porque razão, pertenciam ao seu passado
e não ao seu presente. A sua expressão incrédula, de
espanto triste, e as lágrimas que os seus olhos soltavam
são também as minhas, chorando como se não
tivéssemos ainda compreendido bem o que nos
aconteceu. Sim, é verdade, um homem também chora.
121
Sinto-me cada vez mais um monge de espírito. Pratico o
meu Yoga e o meu Zazen, a meditação na posição
sentada, sem objectivos e em silêncio (shinkantaza). O
Zen, é isso mesmo, silêncio e poesia
Vivo no presente considerando-o como a parcela mais
ínfima de tempo na intersecção entre o passado e o
futuro. (O passado, o presente e o futuro existem em
simultâneo no espaço e no tempo, a nossa posição como
observadores é que muda e torna tudo diferente. Não há
um tempo universal, nem um presente universal. O
tempo passa a velocidades diferentes conforme a
velocidade do movimento do espaço. Existe tanto espaço
num cm2 como no Universo inteiro. Existe tanto tempo
num segundo como em toda a eternidade).
Sinto que viver no aqui e agora me tornou independente
porque a minha vida deixou de ser marcada pelo ritmo da
vida dos outros ou pelas suas opiniões. Também eliminei
o sofrimento da minha vida (sei que é ousado afirmar isto
mas é o que sinto) mas não as emoções que cultivo
como flores (há uma razão para as flores serem bonitas)
e tento harmonizar as minhas contradições e seguir o
caminho universal do Zen que não é uma filosofia do
pensamento mas uma filosofia da vida. Tento não
desejar adquirir mais que o que já tenho (mushotoku) e
não viver através dos meus pensamentos. Sei que a
verdade reside na simplicidade. Se conseguir manter as
minhas mãos sempre abertas, toda a areia da vida
poderá passar através delas, ao passo que se as fechar
com nada mais ficarei do que alguns grãos. Só com as
mãos abertas se poderão agarrar todas as coisas. (“O
dedo que mostra a lua não é a lua. Quando olhamos não
vemos. Quando ouvimos não escutamos”.)
Mas por mais que faça, e este é um dos meus dramas
pessoais, não consigo deixar de ser romântico. E como
romântico estou sempre à procura de encontrar a mulher
dos meus sonhos. Um dia talvez a encontre. Mas essa
mulher não estará necessariamente à minha espera nem
disponível e, se calhar, nem sequer dará mim. Recomeço
então nova procura ou nova espera e, sendo ingénuo,
passe a redundância, ainda continuo a sonhar com essa
mulher. Frente ao mar, na solidão do meu quarto ou,
simplesmente, com os olhos no céu imagino como
seriam as circunstâncias do nosso encontro, que
palavras trocaríamos, o mistério do primeiro beijo, a
magia da entrega recíproca.
Mas a minha pior ingenuidade é pensar que a mulher dos
meus sonhos também será romântica e que, como um
espelho ou um universo paralelo, estará igualmente a
sentir, a pensar e a agir como eu e por minha causa…
122
UM PAGÃO DA DECADÊNCIA
(the story cantada por Brandi Carlile)
Nos últimos tempos, olhando para dentro de mim com a
máxima atenção, comecei a sentir-me, na curiosa
acepção do Pessoa e do Almada, um tanto ou quanto
sensacionista. Como eles também comecei a sentir mais
e a pensar menos, a compreender mais e a ter menos
ideias. Porque só sentir é compreender e quase sempre
erramos quando pensamos. A sensação é tudo e o
pensamento uma doença. Na verdade, os pensamentos
envenenam a vida e matam o futuro.
Eu nunca pensei muito no futuro. Dantes porque tinha
ainda tudo para viver. Agora porque já vivi tudo. Há muito
que me limito a viver o instante porque só quem vive o
instante está tranquilo. Deve ser da idade. No seu último
livro, Venenos de Deus e Remédios do Diabo, Mia Couto
coloca na boca de um dos seus personagens, uma
reflexão que só a idade podia produzir:
“Aos 10 anos todos nos dizem que somos espertos, mas
que nos faltam ideias próprias. Aos 20 anos dizem que
somos muito espertos, mas que não venhamos com
ideias. Aos 30 anos pensamos que ninguém mais tem
ideias. Aos 40 achamos que as ideias dos outros são
todas nossas. Aos 50 pensamos com suficiente
sabedoria para já não ter ideias. Aos 60 ainda temos
ideias mas esquecemos do que já estávamos a pensar.
Aos 70 só de pensar já nos faz dormir. Aos 80 só
pensamos quando dormimos.”
Por mim, há muitos anos que paciente mas
sistematicamente tenho vindo a desconstruir o meu ego,
desmaterializando a minha vida e desapegando-me dos
desejos. Há uns tempos atrás recebi um e. mail com um
alegado texto de Woody Allen que não conhecia, mas
que sintetiza com humor e genialidade, aquilo que
poderia ser o desejo secreto daqueles que como eu já
viveram tudo mas gostariam de recomeçar de novo,
embora de forma diferente:
“A minha próxima vida quero vivê-la de trás para a frente.
Começar morto para despachar logo o assunto. Depois
acordar num lar de idosos e sentir-me melhor a cada dia
que passar. Ser expulso do lar por estar demasiado
saudável, ir receber a pensão e começar a trabalhar,
recebendo logo um relógio de ouro no primeiro dia.
123
Trabalhar 40 anos até ser suficientemente novo para
gozar a reforma. Divertir-me, embebedar-me, ser de uma
forma geral promíscuo e depois entrar no liceu.
Em seguida, fazer a primária, ficar criança e brincar. Não
ter responsabilidades e ficar um bébé até nascer. Por
fim, passar 9 meses a flutuar num spa de luxo com
aquecimento central, serviço de quartos à descrição e
um quarto maior de dia para dia. E depois Voila! Acabar
com um orgasmo! “
Também eu voltei a ser bebé dando por mim a acariciarme sem pudor. A idade faz-nos descansar das mulheres
e os orgasmos tornam-se uma agridoce recordação.
Todas as noites ao deitar-me sou sistematicamente
invadido por um pensamento recorrente: Mais uma! Mais
uma noite sozinho. E farto-me de rir… para não chorar.
Agora quando escrevo, procuro-me por toda a parte e
visito-me solenemente para me salvar de mim. Eu aceito
envelhecer mas recuso-me a ficar velho. Daí não
procurar mas também não desisti de encontrar (os
homens estão sempre à procura de uma mulher e as
mulheres estão sempre a fugir de um homem). Se ao
menos o coração dos velhos fosse de pedra!
.
124
Um lugar carregado de cactos
(Happy dreamer de Laidback)
Nunca desejei ser o melhor em nada mas sempre quis
ser bom em tudo
Que mais dizer de mim? Que sou um sonhador à procura
de uma mulher que não existe? Que sei amar, tenho
prazer em viver e gosto de quem sou? Que faço Yoga e
treino Aikido? Que já venci um cancro? Que sou um leitor
ávido e compulsivo? Que me emociono, a ponto de
lágrima, quando ouço certas óperas? Que sou um ser
livre, independente e autónomo? (ainda bem que já não
sou novo e nunca fui católico senão faria quase o pleno
das universidades portuguesas) Que não tenho ídolos
nem sigo modas? Que adoro dar aulas e conhecer todos
os anos novos alunos? Que nasci no Alentejo, vivo em
Lisboa, sou europeu, mas que me sinto um cidadão sem
mundo? Que tenho o culto da verdade e abomino a
mentira? Que se fosse música seria o andante do
Concerto nº 2 para piano e orquestra de Shostakovich ou
o andante do concerto para piano e orquestra número 21
de Mozart? Que não pretendendo ser melhor, sou de
facto muito diferente dos outros homens (talvez por ter
uma sensibilidade quase feminina)? Que não sinto a
solidão porque tendo uma vida interior nunca me sinto
só? Que sou um anarquista platónico e um optimista
trágico? Que acabei de fazer cinquenta anos que não
aparento (é o que me dizem!) nem sinto?
Na verdade, por dentro não daria mim próprio mais de
trinta. Sinto-me com aquela mistura certa e ideal, de
juventude e maturidade, que só a patine do tempo pode
dar. Porque os cinquenta anos, sendo sempre o princípio
e o fim de alguma coisa, são uma nova medida do
tempo. Nesta idade uma pessoa começa a tornar-se
independente dos filhos e a deixar de lhes telefonar, a
pensar que já sabe tudo e que não precisa de conselhos.
Sinto que só tenho cinquenta anos e todos os sonhos
intactos. Mas, seja qual for a nossa idade de bilhete de
identidade, a nossa visão ou percepção da realidade, é
como um mapa que temos de fazer e refazer
permanentemente.
125
Há uns tempos atrás, um ex-aluno que ficou meu amigo,
falava-me ao telefone sobre a namorada e eu, meio a
sério meio a brincar, perguntei-lhe se a namorada não
tinha amigas. Claro que tem amigas, respondeu-me ele,
mas todas têm metade da tua idade. E o peso desta
realidade esmagou-me, deixando-me sem palavras.
Por isso, estou convencido que a essência do equilíbrio é
saber prescindir ou renunciar, no momento certo à
infância, à juventude, aos filhos, ao sexo e, por fim, à
vida. Neste momento falta-me a última destas renúncias.
Mas mesmo neste particular, sinto-me livre do medo da
morte porque para mim a realidade é simples, com a
morte voltamos ao que éramos antes de nascermos. Se,
é verdade que se envelhece quando tomamos
consciência que tudo se repete inexoravelmente,
também é verdade que só morremos quando deixamos
de saber porque acordamos. E eu, continuando a saber
porque acordo e não receando a morte, não tenho medo
de nada. (“Os medos, mesmo os pequenos, projectam
sempre grandes sombras na nossa vida”.)
Há uns anos atrás decidi fazer um exame à próstata pois
desconfiava que algo não estava bem embora
desconhecesse o que seria. Desse exame resultou um
diagnóstico fatídico: cancro na bexiga.
Quando o médico me leu esta sentença e me disse que
teria de ser imediatamente operado, juro que a
importância que lhe dei foi semelhante à que daria se ele
me tivesse dito: tens um dente estragado e tens que o
extrair. Saí do consultório, fumei a minha última cigarrilha
no passeio e fiz-me de novo à vida. Uma semana depois
fui operado e até hoje nunca mais tive qualquer
problema. Não tive um único pensamento negro, ou seja,
nem uma única vez pensei na morte ou nas suas
consequências. Eu sabia que não ia morrer. Aliás, sei
que quando esse momento chegar, haverá sinais que
permitirão preparar-me para a sensação fantástica que
deverá ser sentir a transição do último momento de vida
para o primeiro momento da morte (“sabemos bem que
um dia todos perderemos esta guerra mas o importante
são as batalhas que vamos conseguindo ganhar”).
Um dia, alguém irá dizer: O Z. morreu! E será
naturalmente verdade. Uns dirão: Ainda tão novo…
Outros pensarão: Já tinha uma certa idade… e ninguém
é eterno. Alguns dirão coisas bonitas sobre mim
daquelas que só se dizem quando morremos e já não
podemos ouvir. Muitos sentirão no seu mais profundo
íntimo a sorte de ter sido a minha vez e não a deles.
126
Depois, uns homens desajeitados vestindo fatos negros
irão expor-me num caixão, com um lenço rendado
cobrindo-me o rosto, já um pouco desfigurado, pela
rigidez borbulhante da morte. Virão depois muitas
pessoas com um ar mais ou menos pesaroso e sentido,
perturbadas na tranquila rotina do seu dia-a-dia, dizer
uma coisas simpáticas sobre mim às minhas filhas
lamentando a minha inesperada morte. Era um homem
bom, é a única coisa que espero que digam
Cá por mim, já o disse, há muito que me libertei do medo
da morte. Quero ser cremado e espalhado em cinzas
num dia de vento pela areia e pelas ondas da praia do
Rio da Prata, enquanto alguém for lendo em voz alta
alguns dos meus poemas. Ficarei assim a fazer parte
integrante do local da Terra com que me sinto mais
identificado, solitário e perfeitamente discreto na
paisagem, como sempre vivi. Ora, sendo a vida (“essa
centelha de luz entre duas trevas”) uma espécie de
montanha que todos subimos e descemos, na minha
idade, sei que estou ainda no cimo mas sinto ter já
iniciado a descida. Aliás, este sentimento reflecte-se no
poema que escrevi por ocasião do meu primeiro meioséculo de vida:
Abril, dezasseis, de dois mil e sete.
Hoje, um milhão de milhões de galáxias, estão
suspensas no universo.
O sol brilha no céu há cinco mil milhões de anos e na
terra a vida surgiu mil milhões de anos antes deste dia.
O primeiro homem teria hoje mais de cem mil anos,
Jesus Cristo dois mil e Portugal apenas mil
E eu, que respiro, faz hoje apenas cinquenta anos,
Sinto-me “um lugar carregado de cactos junto à água, um
lugar que transborda”.
Um lugar sem mundo definitivo
Um espaço vazio de apátrida religioso
Não crio expectativas e nada desejo
e há muito sei que tudo é breve e relativo.
Sei que todos estamos sós e no mais fundo de nós
aguardamos um milagre que mude as nossas vidas.
Somos os espectadores menos lúcidos de nós mesmos
Só com perguntas e sem respostas
127
Sei que as coisas mais simples são as mais difíceis de
conseguir
que a vida é uma dádiva para ser vivida dia a dia
que o amor é a maior mentira da vida e que a morte
se move ágil e em profundidade
E sei ainda como estamos perto de perder tudo
a todo o instante: a vida, o luxo de acreditar ou a beleza,
essa puta frágil.
Escrevo hoje para cortar em paz as minhas veias com
palavras
fazer sangue até à extremidade dos dedos usando
a linguagem da minha pele a tremer de desejo
num rio de tempo a correr pela minha margem póstuma
mas não é ainda tarde para saber que as diferenças
entre a vida e a poesia são simples erros de forma.
Aliás, como escreveu Pessoa, a vida pode ser
comparada a um bordado. De início, vemo-la pelo lado
do direito e no final pelo avesso que não sendo tão
bonito é mais esclarecedor, pois deixa ver como são
dados os pontos. (“Há metáforas que são mais reais que
muita gente que anda na rua”.)
Tenho os meus pais vivos, as minhas filhas adoram-me,
os meus amigos admiram-me, os meus colegas
respeitam-me, sinto-me, tanto quanto é possível sentir,
realizado profissionalmente e, não sendo rico, vivo bem.
Sou um homem tranquilo e feliz, sem que tal signifique
uma vida isenta de problemas ou um quotidiano sem
espinhos. Embora a idade não faça sábios mas velhos,
tenho hoje a pretensão de pensar que adquiri um pouco
de sabedoria, se considerarmos que a sabedoria é uma
maneira de ser e de estar, temperada por uma humildade
alegre e um êxtase calmo.
Também tenho, naturalmente, os meus problemas,
embora prefira pensar que não existem problemas mas
apenas soluções. Para mal dos meus pecados tenho
também que suportar muitos seres pequeninos,
intoxicantes e patéticos. (“Onde acaba a solidão começa
a praça pública, e onde começa a praça pública, começa
o vozear dos grandes comediantes e o zumbido das
moscas venenosas”)
Mesmo assim que mais posso desejar? Como Neruda
também poderia dizer: confesso que vivi. Conheci o
amor-familia, o amor-paixão e o amor-sexo. Qualquer
deles foi temporário. Mas o amor não é sempre a prazo?
Sinto hoje (e ainda?) a falta de outra espécie de amor:
O amor-harmonia. Seja o que for que isto signifique.
128
É uma vulgaridade o que vou dizer mas, digo-o na
mesma, sinto-me incompleto. Falta-me uma parte
qualquer de mim. E não me refiro à mítica alma gémea
que é assim como que uma espécie de Unicórnio, um
animal lindo mas que não existe para além dos nossos
sonhos e imaginação. O que realmente importa é o
nosso desenvolvimento espiritual que é e será sempre
um processo individual que não depende de ninguém
mais. Mas, talvez me falte mesmo uma mulher como a
que descrevi neste poema:
És selvagem e inocente como uma criança
Passas como o vento foges como as nuvens
Os rios gostariam de ser como tu libertos das suas
margens
Dentro de ti há um deus que ri e se passeia todo
iluminado por dentro
És frágil e humilde como uma flor exposta ao risco da
beleza
Simples e única como uma gota perdida num oceano de
paz
És mulher e és homem tal como eu a querer ser capaz
De aprender a eterna geometria do amor
És minha oração e minha prece minha Avé Maria
Cheia de graça e única entre as mulheres
És misteriosa e inacessível como um universo longínquo
Esperarei sempre por ti, procurar-te-ei infinitamente
Por outras palavras, (“sou razoável, quero o impossível”)
procuro e desejo uma mulher que possua apenas estas
dez características:
1) Goste de ouvir música clássica e ópera 2) Adore ler e
escrever, de preferência, poesia 3) Aprecie a solidão a
dois 4) Seja simples, sensível, sensual e simpática 5)
Possua um sorriso bonito 6) Seja morena com um corpo
atlético 7) Não seja muito alta, nem muito magra nem
muito gorda 8) Saiba apreciar boa comida e bons vinhos
9) Goste de caminhar 10) Ame o sol, a areia e o mar
Ou seja, o que eu queria mesmo era um Z. de saias!
Mas, às mulheres, adapta-se na perfeição o Princípio da
Incerteza da Física Quântica, ou seja, podemos saber
com rigor o que uma mulher faz e o que uma mulher
pensa mas nunca as duas coisas ao mesmo tempo.
129
Daí não ser possível prever as suas acções, daí a
incerteza e imprevisibilidade do comportamento feminino.
Talvez por isto, há uns tempos atrás, listei o que designei
pelas 10 Razões para Não Amar Ninguém:
1- Não sofrer
2- Ser Livre
3- Poupar dinheiro
4- Ter paz
5- Dormir mais
6- Não mentir
7- Tomar decisões
8- Estar tranquilo
9- Não ser enganado
10- (a que vocês quiserem)
Agora a sério, voltando ao princípio. O que me falta?
Falta-me o AMOR (“I’m a dreamer, I believe in love”)
porque um homem sem amor envelhece rapidamente.
O AMOR na forma em que eu o entendo, de total,
absoluta e recíproca partilha e entrega. Será que nunca o
encontrarei? (“a esperança é a maior das torturas”). Não
me resigno nem desisto de o viver a dois, mas também
não procuro para o poder encontrar. O segredo da
felicidade está em saber aceitar e agradecer o que a vida
nos dá, seja muito, seja pouco, seja bom, seja mau, seja
o que for… (“se não podemos ter o que amamos, temos
que saber amar o que temos”.) Se pensarmos bem, a
principal função do amor é fazer sonhar, porque o amor é
um sentimento visionário, uma ilusão a querer ser
realidade. O amor é uma forma de mentira escondida
atrás da verdade e, por vezes, o gosto de mentir com a
verdade. E a verdade, só se pode alcançar através da
compreensão dos opostos. Por isso, de todos os afectos
individuais, o amor é o mais vaidoso e, o amor
correspondido é a suprema manifestação de uma
contradição nos seus próprios termos. Tudo bem. O
amor eterno e recíproco pode ser um mito (“o nada que é
tudo”) mas será um mito pelo qual estarei sempre
disposto a lutar (“por mais longa que seja a noite o dia
acaba sempre por nascer”). Ouço agora, nem de
propósito, em jeito de lamento final, a voz de Margaret
Price, na canção de Amor e Morte da última cena de
Tristão e Isolda, a perfumar o fim de tarde.
130
José da Graça Andrade nasceu num país europeu donde
nunca saiu e jamais voltou. Tem vivido longos períodos
no estrangeiro, sem profissão certa nem ocupação
regular, limitando-se a viver a vida, sempre ao ritmo de
um dia de cada vez. Como pessoa é desprendido de
tudo excepto dos seus sonhos, não possuindo quase
nada, nem sequer idade. É autor de uma vasta obra
nunca publicada que abrange todos os formatos e
géneros literários, desde listas de compras até textos
científicos sobre a influência dos dezassete diferentes
tamanhos do gene receptor da vasopressina na
fidelidade masculina. Actualmente vive só, perto do mar,
onde lê, escreve, ouve música e não faz mais nada.
131
È a idolatria que faz os deuses
Todas as religiões se baseiam em rumores de rumores
de rumores
Nós não paramos de brincar porque envelhecemos mas
envelhecemos porque paramos de brincar – Bernard
Shaw
Sabemos cada vez menos de mais coisas
Morrerei, sem dúvida, do coração por ter amado demais
Os velhos não precisam de amor precisam é de cuidados
Uma vida sem sexo é para mim um território estrangeiro
Estou cada vez mais selectivo e menos apetecível
E como elas é que escolhem estou fodido
A religião é mais um placebo que uma droga do povo
O fundamentalismo religioso é uma forma de racismo ou
de distúrbio mental
A minha vida está saborosa como uma fatia de pata
negra combinando o trabalho e o lazer
Apóstata do amor
Todas as noites ao me deitar sou sempre trespassado
pelo mesmo pensamento: Mais uma! Mais uma noite
sem ninguém.
A aparência é a única coisa que não engana
Uma maratona de solidão
Sinto-me a ser gasto pelo tempo ou a ser ultrapassado
pelo tempo
As mulheres sabem sempre quando um homem está
interessado nelas
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O amor é uma fixação
Silêncio carregado de significado
A vida é drama, acção e paixão
Ah quem me dera a juventude! Ah quem me dera a
imortalidade (J.M. Coetzee)
A vida está cheia de aparições e desaparições
Não me limitei a deslizar pela vida acho que deixei
algumas marcas
Com a idade o nosso universo interior contrai-se depois
de se expandir
Um estúpido carneiro solitário, um solitário como um
macho nobre
Obrigação Confuciana de fazer o bem
As sociedades são conduzidas por agitadores de
sentimentos e não por agitadores de ideias
133
Chamo-me Raul e embora ainda não tenha sido referido
por Z., serei hoje, porventura, o seu amigo mais íntimo.
134

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