distúrbios identitários em tempos de globalização

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distúrbios identitários em tempos de globalização
MANA 7(2):7-33, 2001
DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM
TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
Michel Agier
Neste texto, abordarei primeiramente o estado da questão identitária da
perspectiva da antropologia hoje e, em seguida, farei uma reflexão sobre
os processos culturais contemporâneos. Por um lado, a mundialização
coloca em questão, pelo acesso maciço aos transportes e às comunicações, as fronteiras territoriais locais e a relação entre lugares e identidades. Por outro, a circulação rápida das informações, das ideologias e das
imagens acarreta dissociações entre lugares e culturas. Nesse quadro, os
sentimentos de perda de identidade são compensados pela procura ou
criação de novos contextos e retóricas identitárias. Híbrida ou mestiça,
como se diz agora, a cultura encontra-se assim mais dominada do que
nunca pela problemática da identidade, que se enuncia cada vez mais
como uma “identidade cultural”. Farei a crítica dessa concepção mostrando, inversamente, a emergência das “culturas identitárias” em um
contexto de globalização acelerada das situações locais.
Subjacente a toda essa reflexão, encontra-se a questão do papel dos
antropólogos em um domínio que parece tê-los concernido sempre — o
da cultura e da identidade — e que, ao mesmo tempo, por diversas vezes
já colocou em evidência (durante as colonizações do século XIX ou depois
da Segunda Guerra Mundial) certas falhas de sua intervenção. Hoje em
dia, a reflexão deveria se concentrar em definir o lugar a partir do qual
pode ser construída essa crítica da identidade cultural, que proponho
como horizonte da pesquisa. Esse lugar do antropólogo pode ser definido
de duas maneiras: primeiro, é claro, como lugar social negociado na situação de investigação a partir da qual se pode conceber o engajamento crítico do pesquisador, como expus alhures (Agier 1997a; 1997b); em seguida, como lugar intelectual, no sentido de que o antropólogo tem necessidade, hoje em dia, de ferramentas teóricas atualizadas para dar conta da
relação contemporânea entre identidade e cultura. Este último ponto
constitui o objeto do presente texto.
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Contextos e construções da identidade
Os anos 60/70 e os seminários sobre identidade e etnicidade de Claude
Lévi-Strauss, por um lado, e de Fredrik Barth, por outro, marcaram o surgimento de um objeto controverso, ao qual se atribuiu, logo de saída, uma
propriedade dupla: em primeiro lugar, a presença quase obsessiva da
identidade em todas as ocorrências da vida social, ubiqüidade que a torna inapreensível enquanto tal; em segundo lugar, a possibilidade de sua
descoberta e autonomização como objeto de análise a partir de seus limites. Se essas duas referências são um ponto de orientação para a antropologia, isto se deve ao fato de terem tornado possível a distância crítica
em relação a uma categoria interna da disciplina, a identidade, ao passo
que durante décadas os próprios etnólogos, em suas monografias étnicas
e em seus inventários de tradições, falaram sobre ela, e até mesmo a produziram, sem sabê-lo ou sem medir todas as conseqüências.
Para Lévi-Strauss, a abordagem da identidade desdobra-se em três
níveis distintos. Em primeiro lugar, a identidade é definida como um componente do universalismo, aquele que os antropólogos opõem à infinita
diversidade de culturas e de sociedades: é o “mínimo de identidade” que
funda a unidade do humano, e faz com que as mais diversas experiências humanas sejam “ao menos em parte, mutuamente inteligíveis” (LéviStrauss 1977:10). O segundo comentário é uma crítica, digamos, do interior, de qualquer idéia de identidade substancial: cada sociedade e cada
cultura divide a identidade em uma profusão de elementos cuja “síntese”, a cada momento, “coloca um problema” (Lévi-Strauss 1977:11). No
coração das sociedades, então, a identidade sempre se esconde. É o “mito
da insularidade”: a identidade é “uma espécie de abrigo virtual ao qual
é indispensável nos referirmos para explicar um determinado número de
coisas, sem que este tenha jamais uma existência real” (Lévi-Strauss
1977:332). No entanto, se essa referência é “indispensável”, é porque
existem, em outra parte, outras razões para a identidade. É preciso procurá-las nos limites, nas fronteiras, nos contatos. Lévi-Strauss, que nunca
fez suas próprias pesquisas terem por objeto as razões ou as fronteiras da
identidade, apenas as evoca algumas vezes, ressaltando que esses limites não correspondem a nenhuma experiência própria, interna às sociedades. Ao comentar o exemplo de uma vasta etnia africana, a dos Moose
de Burquina Faso, exposta por Michel Izard (1977) no mesmo seminário,
ele nota assim que “o etnônimo é essencial no exterior, e secundário no
interior” (Lévi-Strauss 1977:313). É nesse plano, do limite, da fronteira e,
mais além, da alteridade, que Fredrik Barth e muitos outros autores inte-
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ressados nos contextos e nas situações da identidade centraram o foco de
suas pesquisas. A antropologia das identidades foi efetivamente constituída abordando seu objeto de maneira contextual, relacional, construtivista e situacional, como veremos agora.
De acordo com a abordagem contextual, não existe definição de
identidade em si mesma. Os processos identitários não existem fora de
contexto, são sempre relativos a algo específico que está em jogo (ver,
esp., Barth 1969; Cohen 1974). A coisa em jogo pode ser, por exemplo, o
acesso à terra (caso em que a identidade é produzida como fundamento
das territorialidades), ao mercado de trabalho (quando as identificações
têm um papel de exclusão, de integração ou de privilégio hierárquico) ou
às regalias* externas, públicas ou privadas, turísticas ou humanitárias (e
as identidades podem ser os fundamentos do reconhecimento das redes
ou facções que tomam para si essas regalias). O que está em jogo é sempre passível de ser detectado na pesquisa empírica contextualizada, aprofundando caso por caso o conhecimento de tudo o que cerca a questão
identitária, constituindo então a parte mais relativa da identidade, aquela que se nota quando as identidades são consideradas como processos
localizados, datados, mas que desaparece quando se fala das identidades
como produtos já dados.
Inscrevendo-se no quadro precedente, a concepção relacional da
identidade permite nos aproximarmos um pouco mais da busca de seu
“abrigo virtual”. Com efeito, o ponto de partida das buscas de identidade
individuais ou coletivas é o fato de que somos sempre o outro de alguém,
o outro de um outro (ver, p. ex., Augé 1994; Balibar e Wallerstein 1988).
É necessário, então, pensar-se a si próprio a partir de um olhar externo,
até mesmo de vários olhares cruzados. Desse ponto de vista, os meios
urbanos podem ser fatores de encadeamento ou reforço dos processos
identitários. A cidade multiplica os encontros de indivíduos que trazem
consigo seus pertencimentos étnicos, suas origens regionais ou suas redes
de relações familiares ou extrafamiliares. Na cidade, mais que em outra
parte, desenvolvem-se, na prática, os relacionamentos entre identidades,
e na teoria, a dimensão relacional da identidade. Por sua vez, esses relacionamentos “trabalham”, alterando ou modificando, os referentes dos
pertencimentos originais (étnicos, regionais, faccionais etc.). Essa transformação atinge os códigos de conduta, as regras da vida social, os valores morais, até mesmo as línguas, a educação e outras formas culturais
* N.T. — Mannes, trad. lit.: maná, ambrosia; figurativo: dom ou vantagem inesperada.
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que orientam a existência de cada um no mundo. Dito de outra forma, o
processo identitário, enquanto dependente da relação com os outros (sob
a forma de encontros, conflitos, alianças etc.), é o que torna problemática
a cultura e, no final das contas, a transforma. O mesmo ocorre com relação à mudança em um mesmo contexto local. Em uma situação de mudança social acelerada, como a que se vive em todas as partes do mundo ao
longo das últimas décadas, os estatutos sociais se recompõem e os indivíduos devem redefinir rapidamente sua posição, em uma ou duas gerações. Nesse momento, a questão identitária torna-se um problema de
ajuste, simultaneamente social na sua definição e individual em sua experiência. A relação do indivíduo consigo próprio ao mesmo tempo que com
sua cultura e sua linhagem se torna então problemática.
A identidade remete portanto a um alhures, a um antes e aos outros.
Antes que como abrigo virtual “sem existência real”, como entende LéviStrauss segundo uma concepção definitivamente autocentrada da identidade, ela pode ser descrita como um caldeirão de enunciados ou de
declarações de identidade alimentado por suas relações com o alhures, o
antes e os outros, que lhe transmitem feixes de informações heterogêneas, insuflando-lhe diversidade. A crítica do essencialismo da identidade, já realizada “do interior”, pode agora ser construída partindo-se do
exterior para o interior. Toda identidade, ou melhor, toda declaração identitária, tanto individual quanto coletiva (mesmo se, para um coletivo, é
mais difícil admiti-lo), é então múltipla, inacabada, instável, sempre experimentada mais como uma busca que como um fato.
Mas essas constatações e esses comentários são hoje em dia insuficientes. Com efeito, ao mesmo tempo que as ciências sociais desconstruíam um objeto que havia sido por muito tempo tratado sob um bias
essencialista, ou “primordialista”, como se diz atualmente, as sociedades
o reconstruíam em seus próprios mundos e geralmente segundo essa
modalidade mesma, ou seja, afirmando o caráter absoluto, autêntico e
atemporal de sua identidade afirmada. Em diferentes pontos do planeta
emergiram movimentos identitários de caráter étnico, racial, regional ou
religioso, que podem ser às vezes maciços, às vezes violentos, mas sempre instauradores de novos quadros de socialização e de expressão dos
sujeitos1. As evoluções sociais e políticas das últimas décadas impõem,
nesse sentido, um objeto empírico relativamente novo para a antropologia: o dos grandes empreendimentos identitários, que tendem a substituir as antigas “tribos”, as aldeias “perdidas” e outras etnias “em via de
desaparecimento” da etnologia clássica. Assistimos então a atitudes que
se dão o ar de retornos (“retorno à etnia”) ou de recolhimento (“recolhi-
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mento sobre si”, “recolhimento identitário”, busca de “raízes”) quando,
ao descodificar os processos e resultados de sua busca, descobrimos antes
inovações, invenções, mestiçagens e uma grande abertura para o mundo
presente. Como abordar essas formas atuais de afirmação identitária?
Essa nova realidade social e política apresenta uma dupla interrogação à antropologia. Por um lado, como acabamos de enfatizar, os movimentos identitários coletivos utilizam freqüentemente conceitos e raciocínios tirados das monografias que foram consagradas à sua cultura ou à
sua região de origem. Assim, legitimações identitárias são, no presente
momento, pesquisadas nos arrazoados diferencialistas de uma antropologia marcada durante muito tempo pela tendência a confundir a defesa
dos povos com a do relativismo cultural.
Por outro lado, esse novo objeto torna particularmente pertinente
para a antropologia social a abordagem da identidade que hoje chamamos construtivista e que permite dar conta dos próprios processos identitários, e não apenas de seu contexto ou do que neles está, de maneira
mais ou menos oculta, em jogo. Segundo essa abordagem, a realidade é
“construída” pelas representações dos atores, e essa construção subjetiva faz parte ela própria da realidade que o olhar do observador deve levar
em consideração. A abordagem construtivista da identidade vai mais longe que a simples recontextualização da questão. Dois momentos podem
ser distinguidos na análise: por um lado, a necessidade experimentada
por alguns grupos, categorias ou indivíduos de edificar, nesse ou naquele
contexto, fronteiras simbólicas (é o momento da identidade); por outro, o
processo dessa edificação ela própria, ou seja, o momento da criação cultural, que se define sempre no quadro precedente2. É esse processo que
Barth descreveu como a “construção social das diferenças culturais”. Para
tornar esse ponto mais preciso, eu diria que é nesse momento de edificação/justificação da identidade a ser construída que se elabora o conteúdo
dos enunciados ou declarações identitárias, os quais, ao fazê-lo, não cessam de receber uma pluralidade de fluxos de informações.
A pesquisa de Clyde Mitchell (1956) sobre a dança de Kalela e o sentido da etnicização em uma cidade mineira do Copperbelt (a região industrial e urbana das minas de cobre da África austral colonial), na Rodésia
do Norte (atual Zâmbia), durante o período colonial, é exemplar dessa
análise da relação construída entre identidade e cultura. Ela permitiu a
Mitchell mostrar que a etnicidade urbana não é o pálido reflexo de uma
etnicidade originária, localizada no universo rural e mais ou menos bem
transplantada para a cidade segundo um princípio de continuidade cultural, mas uma criação propriamente urbana, um modo de classificação
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social que hoje diríamos híbrido, e no qual se combinam os determinantes do mercado de trabalho do Copperbelt, as relações raciais negros/
brancos existentes nas minas e nas cidades e a memória seletiva das relações interétnicas anteriores à urbanização dos trabalhadores africanos
imigrados nos acampamentos do Copperbelt. A dança Kalela é, assim, o
resultado bastante contemporâneo de todas essas informações — misturando caricaturas e roupas dos executivos superiores brancos, textos de
cantos de caráter jocoso interétnico, ritmos e sons militares do exército
colonial britânico — que, reunidas, produzem uma dança “étnica”, na
medida em que a “tribo”, explica Mitchell (1956:243) nos termos de então,
se tornou uma categoria híbrida própria ao sistema social do Copperbelt.
O estudo da relação identidade/cultura, quando distingue na análise, sem os separar, os determinantes sociológicos da identificação e o
“trabalho” de criação cultural, permite recolocar em questão a ilusão de
uma transparência, isto é, o a priori de um continuum natural entre uma
cultura, uma sociedade, um espaço e um indivíduo, tal como foi desenvolvido por um certo modelo holista da identidade na etnologia tradicional. Hoje em dia, está claro que a investigação deve não apenas consagrar mais atenção aos contextos, mas também dar conta da incorporação
dos contextos na constituição dos objetos de estudo. Pelo contrário, se as
descrições do antropólogo não traduzem a imanência do contexto nas
práticas, então recaímos nessa “obscura claridade” da monografia (Bensa 1996:43): a empiria ganha em mistério, em “estranha beleza” (Bensa
1996:43) e, eu diria, recria ao infinito o exotismo — como embelezamento
do espetáculo de toda alteridade —, mas a complexidade da modernidade escapa a essa antropologia.
A complexidade crescente das realidades locais torna mais necessária do que nunca a abordagem situacional das culturas e das identidades
como um instrumento de compreensão das lógicas observadas diretamente, e também como um princípio de vigilância antiexótica da antropologia. A atenção principal do observador deve se colocar antes sobre
as interações e as situações reais nas quais os atores se engajam, do que
nas representações formuladas a priori das culturas, tradições ou figuras
ancestrais em nome das quais se supõe que eles agem. É a partir dos contextos e das questões em jogo nas situações de interação que a memória
é solicitada seletivamente. Clyde Mitchell (1987), para fundar a perspectiva situacional na antropologia, tomou por base a noção de “seleção
situacional” introduzida por Evans-Pritchard, para quem um indivíduo
ou um mesmo grupo étnico podia ter várias lógicas de julgamento e de
ação de acordo com a situação. Existe, dizia ele, uma “plasticidade das
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crenças” em função das situações. Essas crenças, na vida real, não funcionam como um todo, mas em fragmentos: “Colocado em uma determinada situação, um homem escolhe, dentre as crenças, aquelas que lhe
convêm, e as utiliza sem prestar a mínima atenção aos outros elementos,
ao passo que pode ocorrer-lhe se servir destes em situações diferentes”
(Evans-Pritchard 1972:607; ver Mitchell 1987:13). Mais precisamente, é a
cada situação que as crenças de um grupo encontram sua coerência, nota
Evans-Pritchard, ao passo que insuficiências ou contradições aparecem
tão logo o escritor e observador exterior as apresenta sob a forma de um
único e indivisível “sistema conceitual”, um conjunto de crenças e noções
que seria “posto em uma disposição determinada, como objetos sem vida
em um museu” (Evans-Pritchard 1972:607). No mesmo sentido, segundo
Clyde Mitchell (1987:13), a cultura seria um “vasto celeiro de significações” construído pelas pessoas ao longo do tempo e do qual se utilizam
de acordo com as seleções situacionais, o que pode tornar os componentes do celeiro cultural diversos e mesmo contraditórios. O caminho que
vai da cultura à identidade, e vice-versa, não é único, nem transparente
e tampouco natural. Ele é social, complexo e contextual. Apresentarei
adiante um exemplo no domínio da etnicidade.
“Africanus sum”? A propósito da identidade étnica
Freqüentemente, tratamos a identidade a partir da etnicidade. A dimensão étnica está certamente presente nos processos identitários em geral,
precisamente porque ela é exemplar da conexão entre a cultura e a integração aos contextos sociais, como mostra, por exemplo, a emergência
das diferenças, até mesmo das disputas, religiosas ou lingüísticas em contextos interétnicos. A etnia é, no entanto, uma noção imprecisa na definição de seus conteúdos e de seus limites, instável, e seu sentido evoluiu
com o passar do tempo. Noção por demais abstrata e simplificadora, largamente integrada ao “senso comum” em todo o planeta, sua utilização
“endurecida” nas ciências sociais atuais pode obstruir as análises. É o
que ilustra, por exemplo, a idéia do “retorno à etnia”: ela dá a ilusão de
um modelo preexistente, a etnia, em direção ao qual se faria uma regressão, quando os movimentos que designamos por essa expressão, se os
apreendemos em suas lógicas particulares e atuais, são freqüentemente
inovações culturais e identitárias. É o que se pode observar no movimento cultural negro na Bahia, no Brasil, em meio ao qual os próprios atores
podem, eventualmente, declarar sua filiação à “etnia africana”, e até
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mesmo à “etnia negra”. Essa postura étnica faz parte — enquanto declaração de identidade — das categorias internas do objeto que a análise
externa, no sentido de “distanciada”, deve levar em conta e não reproduzir tal e qual 3. Essa objetivação é necessária mesmo quando essas
noções e representações são — como um magnífico retorno de nossa
extrema modernidade — uma retomada das antigas categorias da etnologia. Mais adiante precisarei este ponto.
“Africanus sum”, declarava nos anos 50 o antropólogo francês Roger
Bastide. Com essa afirmação identitária, hoje em dia surpreendente, mas
bem no espírito do engajamento etnológico daquela época, ele queria
afirmar sua familiaridade com seu campo, o candomblé da Bahia. Ao
fazê-lo, ele apresentava implicitamente uma idéia totalmente errônea,
segundo a qual o universo cultural brasileiro pagão que ele estudava era
africano e preservado como tal desde os tempos da escravidão, como uma
“religião em conserva”4. Esta idéia será retomada de diferentes maneiras
algumas décadas mais tarde nos meios religiosos ditos “puros” e “antisincréticos” do candomblé e mais geralmente do movimento de africanização da cultura brasileira. Mas a postura identitária do antropólogo francês requer um outro comentário. Sem saber, Bastide, e antes dele Verger,
por suas pesquisas e posturas ideológicas pessoais, foram, ao mesmo tempo, vetores de globalização cultural e de etnicização local. Eles contribuíram para a desterritorialização da África, para a sua transformação em
um “universal particularizável” (Amselle 2001:50), e para fazer da África
um “conceito-África [que] pertence a todos aqueles que quiserem apoderar-se dela, ligar-se nela” (Amselle 2001:15). Localmente, graças a múltiplas contribuições como as deles, a África tornou-se, ao final de uma
completa recriação, um vasto caldeirão culturalmente mestiço, dando um
sentido “étnico” à nova posição social da identidade negra baiana e brasileira (Agier 2000:197). Outros atores dessa globalização/etnicização
desenvolveram sua postura nos mesmos lugares, como veremos na narrativa abaixo, situada no quadro de minhas investigações etnográficas,
há alguns anos, na Bahia.
O grupo carnavalesco Ilê Aiyê, sobre o qual eu conduzi minhas pesquisas entre 1990 e 1996, foi o inspirador da africanização do carnaval da
Bahia e do movimento cultural negro desde o final dos anos 70. O grupo,
diz-se, encarna a mais pura tradição africana da Bahia e, nos termos de
sua história oficial, “sai” de um terreiro de candomblé, como os mais antigos afoxés5. No entanto, enquanto eu procurava o enunciado, o sentido e
a fonte dos diferentes nomes que tinham sido originalmente propostos
para designar o grupo, a pesquisa conduziu-me à biblioteca de um dos
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centros de pesquisa da Universidade da Bahia, o Centro de Estudos AfroOrientais (CEAO)! Com efeito, no decorrer de diversas entrevistas, eu
havia recolhido a seguinte explicação: um engenheiro europeu, amigo
de um dos primeiros fundadores, havia dado ao grupo de jovens da associação carnavalesca um fascículo intitulado Yoruba tal qual se fala — o
que faz sentido, visto que, o iorubá, enquanto principal língua ritual do
candomblé da Bahia, é a mais unanimemente associada à tradição local
da África no Brasil: “atuar como africano” hoje, na Bahia, é em grande
parte utilizar locuções tiradas do iorubá ritual. A pequena obra havia sido
emprestada a esse europeu, me haviam dito, pela biblioteca do CEAO. A
informação trouxe-me para um lugar que me era familiar, aquele dos
colegas, dos estudantes e do trabalho em biblioteca, o que não deixou de
ser, no princípio, um divertido desconforto! Um lugar de referências que
era mais meu que daqueles com quem eu fazia pesquisa. Precipitei-me,
então, para a biblioteca do CEAO como se vai para o campo, com a curiosidade e a inquietude habituais nesses momentos da pesquisa... Depois
de ter cumprimentado alguns colegas na entrada e nos corredores do
Centro, encontrava-me, enfim, na biblioteca e pude começar a exploração. O estranho é que eu estava lá não propriamente para ler livros, mas
para concluir uma investigação empírica, e reconstituir o mais fielmente
possível um percurso realizado há 21 anos por jovens negros baianos em
busca de identidade, de palavras e de significações. De tanto procurar,
encontrei uma versão recente do fascículo Yoruba tal qual se fala. O
pequeno livro, escrito à mão e publicado em Salvador da Bahia por conta
do próprio autor em 1948, depois reeditado diversas vezes no decorrer
dos quarenta anos seguintes, havia sido escrito por Descóredes Maximiano dos Santos (conhecido como Mestre Didi)6. Ele não continha, no entanto, todas as informações que tinham servido para elaborar os cinco primeiros nomes do grupo — que os esquecimentos, as pronúncias ao acaso
e as transcrições ainda mais aproximativas tinham tornado inicialmente
opacas à investigação direta. As informações tinham sido então completadas, ao que me foi dito, junto ao próprio amigo europeu. A outra fonte
complementar havia sido a mãe de um dos dois fundadores da associação carnavalesca, Mãe Hilda, mãe-de-santo, hoje célebre, que dirigia o
terreiro de candomblé onde o grupo em seguida instalou sua sede. Tendo encontrado os cinco termos, pude colocar em evidência a competição
entre duas referências simbólicas, a do lugar (a partir do termo ilê, “casa
ritual”) e a da identidade racial (a partir do sufixo dúdú, “negro”), e assim
melhor compreender as opções identitárias realizadas no momento da
fundação desse grupo carnavalesco que iria se tornar, em alguns anos,
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um dos principais atores do movimento negro da Bahia. Eles estavam
fabricando uma tradição7.
Mas o percurso que acabo de traçar, metonímia de uma vasta busca
identitária afro-brasileira na modernidade, não acaba aí. Mestre Didi,
autor do pequeno fascículo citado e de diversas outras obras de divulgação da cultura afro-brasileira (contos, narrativas etc.), é um notável erudito do candomblé. É filho biológico de Mãe Senhora, a antiga mãe-desanto do terreiro Axé Opo Afonjá, um dos três mais importantes templos
da Bahia, tido atualmente como o mais ortodoxo no respeito às tradições
religiosas. Ele mesmo chefe de culto, foi próximo de vários etnólogos 8,
fazendo parte dessa categoria sacerdotal que Kadya Tall (1995) designa
como os “herdeiros”. Nascidos e socializados em posições já adquiridas
no universo afro-brasileiro, eles se encontram mais bem armados que
outros para desenvolver estratégias identitárias ao mesmo tempo inovadoras e tradicionalistas. Assim, Mestre Didi é também membro fundador
da “Sociedade de Estudos da Cultura Negra” (SECNEB), criada em 1974,
ou seja, contemporânea da fundação do Ilê Aiyê e do começo do movimento de africanização da cultura baiana. Nessa Sociedade, encontravam-se lado a lado “líderes espirituais”9, intelectuais, pesquisadores e
estudiosos de ciências sociais10.
A etnografia, então, conduziu a pesquisa, não unicamente em direção aos livros e aos etnólogos, mas a uma dessas numerosas agências culturais e étnicas que emergiram durante os processos identitários das últimas décadas um pouco por todo o mundo. A maior parte dos membros
dessa agência ocupa também posições de prestígio e de orientação política em alguns importantes terreiros da Bahia, particularmente no Axé
Opo Afonjá, detentor do rótulo da mais pura africanidade, cuja atual mãede-santo, Mãe Stella, trava um combate aberto contra os sincretismos e
outras alterações ou “descaracterizações” dos ritos. As pessoas que ocupam o topo da hierarquia nos meios sociais e culturais locais e que impulsionam sua etnicização, são as mesmas que, mais que quaisquer outras,
provêm dos circuitos mais globalizados ou circulam neles. Elas mostram,
por sua própria atuação, que hoje há uma relação direta entre globalização e etnicização do local, o que a estranha postura identitária de Bastide — “Africanus sum” — tinha, de certa forma, antecipado.
Para concluir esta narrativa, enfim, é interessante ressaltar o contraste entre o destino da mãe-de-santo que se tornou a “madrinha” da
associação carnavalesca, o símbolo da Mãe negra e uma das celebridades locais da cultura afro-brasileira, cuja contribuição didática para o nascimento e a identidade do Ilê Aiyê é sempre lembrada, e o esquecimento
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em que caiu o amigo europeu da época da fundação do grupo: de acordo
com as narrativas, ele é mencionado como sendo belga, suíço ou ainda
polonês, sem falar das diversas versões de seu nome! Há um duplo ensinamento nessa história e em seu epílogo em forma de uma affirmative
action simbólica: por um lado, a nova versão da África no Brasil, em construção desde os anos 70, recebe um fluxo de informações de origens bem
diversas (socialização e memórias familiares, reportagens de televisão,
revistas, livros e aprendizados escolares, turismo cultural, “viagens” e
coleta de informações e de imagens na Internet etc.); por outro, uma vez
a identidade declarada, todo o “trabalho” cultural que a fabricou é apagado para melhor afirmar o caráter evidente, natural e autêntico da
suposta identidade, tornando-a aparentemente mais verdadeira: “eu não
tive que pensar para ser negro”, diz o líder do Ilê Aiyê para distinguir-se
de determinados concorrentes (intelectuais do movimento negro), mas
apagando com uma só fórmula toda a invenção criadora dessa África na
Bahia. “Nós somos os Africanos na Bahia”; “Ilê Aiyê: o rosto africano da
Bahia”; “Pela cor do pano, se nota que sou africano” etc. Nos seus sambas e roupas de carnaval, os membros do Ilê Aiyê (o “coral negro”)
impõem a aparente “verdade” e o desejo de autenticidade de sua identidade cultural. Não importa: forçados a procurar no presente as múltiplas
imagens e textos capazes de recriar uma identidade negra melhor para
se pensar e viver que aquela imposta pelo racismo, os negros “africanizados” da Bahia são profundamente mestiços culturais.
Lugares, tempo e autores culturais
O exemplo precedente introduz uma crítica mais sistemática da identidade cultural. Antes de proceder a essa crítica, e após ter tentado mostrar o
caráter profundamente construído, processual e situacional da identidade, aprofundarei primeiramente a questão da criação cultural. Em um
mundo inteiramente globalizado, no qual as identidades tendem a perder suas referências locais, devemos nos perguntar a respeito do lugar
onde toma forma a criatividade cultural. Trata-se, em suma, de pensar
conjuntamente as três relações duais e problemáticas entre identidade e
lugar, cultura e lugar, identidade e cultura.
O jogo de escalas é, para as ciências sociais, a efetivação da relação
dialética entre as situações e os contextos (ver Revel 1996)11. Mas esse
“jogo” não é simplesmente uma ferramenta de análise e um objeto de
reflexão. É também um dos componentes da própria atividade cultural,
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tal como se pode observar, de maneira repetitiva, nos mais diversos e distantes campos. Nas escalas microssociais — o campo do etnólogo —, surge uma multidão de pequenas narrativas identitárias, que ocupam o vazio
deixado pelas “grandes narrativas” em crise (missão cristã, destino das
classes, projeção nacional). Elas aparecem nos mais diversos contextos,
mas enraízam-se de preferência nos meios urbanos; elas possuem um
conteúdo religioso, étnico ou regional, mas mostram construções híbridas,
“bricoladas”, heterogêneas; enfim, são o resultado da iniciativa dos indivíduos, dos pequenos grupos ou das redes que, freqüentemente, têm dificuldades em fazer compreender a especificidade que reivindicam para si.
Como se formam essas novas narrativas, com que atores e em que
contextos? Uma boa maneira de descobrir os atores — e autores — dessas novas narrativas é procurá-los junto aos informantes do etnólogo.
Estes, hoje em dia, são intermediários em geral jovens, citadinos, escolarizados e relativamente bem conectados nas redes institucionais e informacionais globais. Eles tendem a substituir os antigos sábios, adivinhos e
detentores de todos os saberes cultuais, poços sem fundo de memórias
tanto ancestrais quanto locais. Os novos informantes são etnicamente
diferentes uns dos outros, mas socialmente bastante homogêneos, e também detêm a iniciativa das microestratégias identitárias. Muitas vezes
autoproclamados “líderes comunitários” ou “líderes espirituais”, eles se
especializam, se profissionalizam, tornam-se profissionais da identidade,
enunciam a identidade das “comunidades”, trabalham na recuperação e
na proteção de suas tradições em via de desaparecimento ou de “descaracterização”, e terminam por viver, eles próprios, desse trabalho identitário. Ao contrário dos antigos, eles parecem ter o mundo inteiro como
interlocutor. Ora, esse mundo, por sua vez, lhes fornece os instrumentos
de pensamento aos quais recorrem em suas estratégias localizadas. Uma
certa uniformização avança dessa maneira: quanto mais nos diferenciamos, mais nos identificamos aos outros, que também estão se diferenciando. Assim, por exemplo, africanos, afro-americanos e ameríndios partilham, hoje em dia, grosso modo, a mesma terminologia étnica, mesmo
tendo passado por histórias muito diferentes, e isso deveria nos incitar a
aproximar os estudos de seus processos identitários, para além dos recortes geoculturais e disciplinares sob os quais a antropologia clássica os
separou12.
Imagens e noções circulam assim de maneira mais rápida e maciça
do que nunca, graças a suportes (jornais, telecomunicações, cartazes, painéis, telas de todos os tipos) acessíveis por toda parte, mesmo se, obviamente, com graus de penetração diversos. Desse modo, difundida ao infi-
DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
nito, uma imagem extremamente simplificada e rasa do mundo tende a
substituir a experiência pessoal e social das realidades dos outros. Em
virtude de sua extensão e eficácia, esses meios incitam os atores/autores
locais a utilizar as mesmas simplificações, que lhes abrirão o acesso aos
meios intelectuais, políticos e econômicos da rede global, e lhes permitirão comunicar-se de maneira mais eficaz com parceiros e patrocinadores.
Os agentes, ou os profissionais das empresas culturais e identitárias, colocam-se localmente como mediadores entre escalas, o que implica competências de tradução, lingüística e cultural, e de acessibilidade, por ativação de redes sociais e políticas de alcance extralocal. Essas competências
fundam seu reconhecimento: um reconhecimento social no contexto local
(onde sua atividade de mediador lhe proporciona status ou até mesmo
renda suplementar) e um reconhecimento étnico no contexto global (onde
são admitidos e legitimados enquanto representantes de uma diferença
cultural entre outras). Essa posição de intermediários lhes confere, ocasionalmente, por delegação, certos poderes, mas ela também lhes impõe
um conflito permanente entre o apelo do global e o apego ao local.
Nesse contexto, em que várias escalas se misturam, a própria criação cultural é tomada por uma tensão do mesmo tipo: ela consiste em
colocar em relação, por um lado, imaginários locais que devem sempre
acomodar a densidade dos lugares, de suas sociabilidades, de suas
memórias, e, por outro, as técnicas, os conjuntos de imagens e os discursos da rede global que, por sua vez, circulam praticamente sem obstáculo, despojados de todo enraizamento histórico. James Clifford (1996) vê
nessa evolução a prova de uma relação mais complexa entre identidade
e cultura, esta última se caracterizando hoje, segundo ele, pela heteroglossia, pelas invenções paródicas, pelas ficções realizadas. Depois da
desaparição das “culturas naturais”, enfatiza o mesmo autor, estaríamos
agora em uma era “pós-cultural”. A partir de uma abordagem diferente,
Marc Augé vê nessa situação, marcada pela invasão das imagens no cotidiano e pela generalização da apreensão ficcional do mundo, um risco de
esgotamento das fontes do imaginário, e prossegue: “a catástrofe seria se
nos déssemos conta tarde demais que o real se tornou ficção, que não há,
então, mais ficções (só é fictício o que se distingue do real), e menos ainda autor” (Augé 1997:159). Finalmente, para Jean Malaurie (1999:32),
“os grandes mitos metafóricos dessas sociedades [inuit] foram apagados
sob o efeito da escola leiga e de uma evangelização mal compreendida,
seguida dessa verdadeira ‘lobotomização’ que os programas de televisão,
as fitas de vídeo pornográficas e de violência provocam, ampliadas agora
pela Internet”.
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DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
Pesquisadores tão diferentes quanto Serge Gruzinski (1999), Sidney
Mintz e Richard Price (1992), Jean-Loup Amselle (2001), ou ainda Pierre
Bourdieu e Loïc Wacquant (1998), abordaram, cada um à sua maneira e
em campos diferentes, as relações entre a globalização e a criação localizada de culturas, devolvendo ao contexto social seu caráter de “base e
precondição” (segundo os termos de Mintz e Price 1992:82) das trocas
simbólicas. Esses contextos são, respectivamente, o da conquista e da ocidentalização do Novo Mundo para entender as imagens e escritos “mestiços” dos ameríndios do México (em Gruzinski); o da escravidão e da
dominação militar e policial dos colonos brancos sobre os escravos — que
partilhavam entre eles, na verdade, apenas a condição de escravo e não
uma falsa origem comum africana — para situar a cultura afro-americana
e analisá-la como uma “criação” (segundo Mintz e Price); o contexto da
dominação política e religiosa das sociedades muçulmanas árabes sobre
a África saheliana pré-colonial que definiu os paganismos negros africanos, “anexando-os” política e simbolicamente à periferia do Islã (segundo Amselle); e, finalmente, o contexto da preeminência atual dos Estados
Unidos sobre a mundialização econômica e política, que impõe ao mundo a transferência de particularismos norte-americanos em “vulgata planetária” em virtude de sua “falsa universalização” (segundo Bourdieu e
Wacquant). Todas essas abordagens convergem no tratamento da cultura
in progress (em fabricação) e em seu contexto, ou seja, partindo de suas
condições sociológicas. Assim, ao nos interrogarmos sobre os “lugares” e
os processos de criação cultural atuais, estamos tratando do sentido social:
é a fabricação sociológica da cultura que é aqui levada em conta e não
somente seus produtos imaginários acabados. Como se define hoje essa
fabricação do sentido social? Dito de outra forma, qual é o processo que
faz a cultura em seu contexto, quando esse contexto está praticamente
por toda parte (e com apenas algumas nuanças de intensidade), definindo-se enquanto um local globalizado? Aparecem, nesse estágio da reflexão, diferenças de análise. Entre, por um lado, a crítica severa de Bourdieu e Wacquant, que apontam para uma globalização cultural considerada um falso universalismo astuto, manipulador e de mão única, e por
outro, o que poderíamos chamar de relativismo sociológico de Amselle,
que associa diretamente globalização e universalismo, há espaço para uma
crítica das dominações globais e das respostas que estas engendram —
crítica suscetível de conduzir a uma reflexão sobre as formas possíveis de
resistência (local, artística, política etc.) a essas dominações.
Tudo se passa como se os imaginários locais fossem “pesados” demais, colados demais nas realidades dos territórios, e sempre tentando
DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
alcançar as retóricas globais mais leves e fluidas com respeito às quais
eles estão sempre atrasados. A dominação dos meios materiais e informativos globais é tamanha que atualmente os autores culturais se vêem
forçados a completar as lacunas de uma retórica pronta, essencialmente
dualista e simplificadora, e obrigados a conceber e colocar sua criação
nesse quadro a título, por exemplo, da cor local, do excedente minoritário ou da estética étnica. Não se trata, exatamente, de um “fim das culturas”, mas de um contexto novo para a criação de sentido, a partir de uma
certa dissociação entre os lugares, as identidades e as culturas. Uma relação desleal se estabelece, então, em uma instância intermediária de criação entre o repertório global, cujo alcance praticamente não encontra
barreiras materiais, e as realidades locais afetadas pelas tensões sociais,
as exclusões e outras fontes de interrogações identitárias. O que a análise percebe como um intervalo de ajuste, um momento pouco nítido e misturado entre constrangimentos de múltiplas escalas, é um tempo de morte do sentido. É nesse intervalo conturbado que se desenvolvem os conflitos e as negociações entre os atores, os aprendizados, as tentativas de
tradução e de diálogo. É aí, nesse nível intermediário de criação que, finalmente, se pode produzir sentido, ao fim de uma alquimia entre discursos e símbolos de inspirações heterogêneas.
Para uma crítica da identidade cultural
O anúncio repetido da “identidade cultural”, nos mais diversos lugares e
circunstâncias, faz parte desse repertório global e mantém, por sua simples presença, a hibridização dos contextos, ao mesmo tempo que a nega
em seu enunciado. De maneira geral, a identidade cultural tornou-se um
lugar comum das novas formas do político, fonte de mobilização popular
em zonas rurais e urbanas, como por exemplo leis fundiárias, educativas
e até mesmo Constituições pluriétnicas promulgadas recentemente. As
diversas formas de institucionalização da identidade cultural atingem
hoje a Colômbia, o Equador, o Brasil, em breve atingirão o México, e também a África do Sul e Moçambique. Suas versões extremas, que podem
ser etnonacionalistas ou guerreiras, mostram, em última instância, a gravidade desse debate, mesmo se essas estão longe de representar a maior
parte dos casos13.
As interrogações que preparam o terreno para a identidade cultural
nascem na modernidade e em suas situações pluriétnicas. Ao fixar a relação, por natureza problemática, entre identidade e cultura, essa concep-
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DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
ção suscita comportamentos de inventário e de “mineralização cultural”14
de tudo o que permite fazer reconhecer e diferenciar uma comunidade
humana no seio de um conjunto de grupos localizados em um mesmo
contexto social e histórico. Isso vai desde determinados aspectos do modo
de vida (maneira de se vestir, de se cumprimentar) até os rituais de nascimento ou de fecundidade cuja memória é mantida ou reanimada em
contextos diferentes daqueles de sua primeira criação. Apesar de sua
aparência tradicional, a cultura mostrada assim — até mesmo “instrumentalizada” — pode existir somente em contextos de trocas sociais, de
plurietnicidade e de olhares cruzados. As cidades são o seu lugar por
excelência. Elas vêem nascer novas etnicidades, para as quais o espetáculo da diferença cultural se torna não somente um objeto identitário,
mas também um recurso político ou econômico para indivíduos e redes à
procura de um lugar na modernidade. É o que se pode observar, por
exemplo, no caso da tomada de poder sobre a organização do carnaval
de Notting Hill, em Londres, pelos negros do bairro originários das West
Indies, na metade dos anos 70. Essa apropriação negra de um carnaval
popular foi uma resposta aos ataques racistas que a população negra de
Londres havia sofrido algum tempo antes. Mas, rapidamente, o formato
do carnaval (que se tornou nesse contexto a expressão cultural de uma
nova declaração de identidade, tal como caracterizamos acima) foi transformado: os novos líderes do carnaval fizeram viagens a Trinidad para
obter formação rítmica e musical. Eles trouxeram, particularmente, as
famosas steel bands (percussão sobre latas de metal) do carnaval de Trinidad, que se tornaram em si mesmas o emblema identitário do carnaval
negro de Notting Hill15.
Exemplos desse tipo são abundantes a partir dos anos 70. Em conflitos políticos, fundiários ou urbanos, movimentos identitários (étnicos, religiosos, locais etc.) inventam-se a si mesmos ao mesmo tempo que expõem
sua “identidade cultural” como fonte de legitimação em face dos outros
ou do Estado. Nesse contexto, os atores negam, por interesse ou convicção pessoal profunda, o trabalho que eles próprios operam sobre fragmentos de cultura, heterogêneos e diversamente acessíveis, para permitir que “a” cultura seja identitária. Ao exibi-la, eles produzem uma concepção museográfica da cultura material, intocável e “pura”. No entanto,
sua ação favorece a dinâmica cultural. Esse é o paradoxo permanente da
relação entre identidade e cultura — uma relação problemática, conflituosa, ou seja, o contrário absoluto da transparência suposta pelo qualificativo de “identidade cultural”. A identidade de um momento será, talvez, mais tarde esquecida, quando outros contextos e outras relações pre-
DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
valecerão, mas a cultura do lugar onde isso ocorre atualmente, esta, terá
sido transformada, “trabalhada” profundamente.
Se a identidade cultural experimenta hoje tamanha presença — tanto no domínio político global e local, como nos destinos individuais —,
isso ocorre porque ela reúne duas exacerbações contemporâneas, na
identidade e na cultura, que acabam por se encontrar. Por um lado, a exacerbação do caráter reflexivo da identidade, pois vivemos em meio a uma
diversidade cada vez maior em termos de contatos, diferenças e disputas
que colocam cada um de nós diante dos outros individualmente e sem
comunidade de pertencimento fixo, exclusivo ou definitivo. Por outro
lado, e de maneira simétrica, a exacerbação do aspecto declarativo da
cultura, termo que tomarei emprestado de Jean-Claude Passeron:
“Trata-se [observa o sociólogo] do aspecto de uma cultura pelo qual esta se
faz discurso oral ou escrito, seja esporádico, seja erigido eruditamente, em
sistema. Essa cultura, que nós chamamos ‘declarativa’, se oferece então à
observação na linguagem freqüentemente prolixa da autodefinição, sobretudo quando ela consegue se fazer teoria (mito, ideologia, religião, filosofia)
para dizer e argumentar tudo o que os praticantes de uma cultura fazem-na
significar, reivindicando-a como marca de sua identidade, por oposição a
outras” (1991:325, ênfase no original).
Assim, à interrogação individual exacerbada (“quem sou eu depois
de todos esses espelhos?”), responde uma retórica coletiva igualmente
exacerbada, ao fim da qual se espera que a cultura recrie os fundamentos de uma comunidade. Uma acompanha a outra e transforma a relação
de força entre identidade e cultura: no campo, hoje em dia, o etnólogo
encontra-se muito mais freqüentemente diante de culturas identitárias
em fabricação do que perante identidades culturais totalmente prontas,
as quais ele teria apenas que descrever e inventariar. A cultura declarativa torna-se o argumento da declaração de identidade, que é a forma de
existência social da identidade. Com o fim das “grandes narrativas”, nosso mundo encontra-se em uma fase de criatividade intensa feita de múltiplas buscas identitárias e, simultaneamente, de novas culturas declarativas de identidade.
Um exemplo das novas narrativas identitárias é a diáspora “africana”, já bem organizada em escala mundial. As estratégias políticas e culturais dos negros da América Latina, ao mesmo tempo que continuam
localizadas, estão atualmente em contato permanente com outros “nós”
de redes que difundem em escala mundial o ponto de vista da identida-
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DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
de cultural da diáspora. O programa “A Rota dos Escravos”, conduzido
há vários anos pela UNESCO, é um aspecto dessa rede mundial, em que
se desenvolve a idéia de uma genealogia cultural indo diretamente da
África ao Novo Mundo, retomando as noções de herança, sobrevivências
e separação entre a cultura e seus contextos sociais, defendidas nos anos
40 e 50 particularmente por Herskovits e Bastide. Mas a diáspora funciona também como um grupo de interesse atual na escala das grandes instituições internacionais. O assistencialismo e o sponsoring de caráter étnico sustentam grupos culturais locais, ritos e ritmos musicais diferentes
uns dos outros, mas todos igualmente transformados, aqui e ali, em símbolos da “cultura negra”. Ao mesmo tempo, as práticas assistencialistas são
portas de entrada para o neoliberalismo econômico. Por exemplo, no final
de 1996, uma reunião, “Afro-América XXI”, realizada em Washington
sob a égide do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), de uma
ONG internacional e de uma agência de cooperação canadense, reunindo organizações negras da Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, Honduras, México, Nicarágua, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela, decidiu favorecer a emergência de uma “rede econômica afro-americana”, com base nas diversas organizações negras existentes nesses países, preconizando a procura de parceiros supranacionais
(OEA, UNICEF, PNUD, OIT), a formação de associações de empresários
negros e de “bancos afro-americanos”, considerados como instrumentos
privilegiados para o desenvolvimento econômico e social.
Essas estratégias, por sua vez, suscitam o surgimento local de reivindicações sociais em uma linguagem de tipo étnico e, conseqüentemente, favorecem um retorno reflexivo sobre a cultura e a ancestralidade. É o que se pode observar examinando as aberturas do pequeno carnaval da cidade de Tumaco, no litoral do Pacífico Sul colombiano, entre
os anos 80 e 90. Descrevo abaixo essa mudança cultural.
A cidade de Tumaco tem cerca de 100.000 habitantes, dos quais a
maior parte é negra ou mulata. Os brancos — uma minoria de comerciantes e funcionários — mantêm-se afastados do carnaval. Este, de maneira
geral, é depreciado como uma manifestação popular suja, desordenada e
pobre. Alguns milhares de pessoas ocupam as ruas do centro dessa
pequena cidade e aí criam um espaço público onde os jovens, os pobres
e os negros podem se encontrar e expressar livremente sob seus disfarces (fantasias individuais) ou em comparsas (pequenos blocos), mesmo
que as apresentações freqüentemente não passem de esboços, tanto no
plano simbólico quanto técnico. Mais elaborada e estratégica, uma comparsa abre oficialmente o primeiro desfile, na sexta-feira de carnaval. O
DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
exame deste nos permite ter uma idéia da evolução, em uma década, do
conteúdo cultural da identidade afro-colombiana da região.
Na metade da década de 80, marcada pelo retorno da democracia
local, o primeiro prefeito negro é eleito para quatro anos de mandato. Ele
suscita então a criação de um original cortejo de abertura para o carnaval de Tumaco: o desfile das “Famílias Quiñones e Angulo”. A inspiração
vem de outro cortejo familiar, muito mais famoso, o da “Família Castañeda”, que abre há mais de um século o carnaval de Barranquilha, o mais
famoso da Colômbia, e diversos outros carnavais do país, dentre os quais
o de Pasto, a capital andina do departamento, situada a cerca de 200 quilômetros de Tumaco. O cortejo da “Família Castañeda” representa um
episódio da escravidão: no começo do século XIX, alguns escravos teriam
sido alforriados por seu senhor (Señor Castañeda) e teriam organizado
um cortejo festivo para comemorar sua libertação. Negros e maltrapilhos,
os ex-escravos da Família Castañeda, entraram assim para a tradição carnavalesca colombiana, mas os que participam desse cortejo hoje em dia
pintam o rosto de negro e se fantasiam de miseráveis. Ora, em Tumaco,
90% da população, uma das mais pobres do país, é negra. E como a
região, além disso, conheceu um isolamento significativo durante séculos, é excepcional que um indivíduo não tenha, em sua genealogia recente, pelo menos um dos dois nomes de família que mais circularam em
Tumaco, Angulo ou Quiñones. A abertura do carnaval, na metade dos
anos 80, pelo cortejo dito das Famílias Angulo e Quiñones foi então a
expressão de uma espécie de “consciência negra”, bem no espírito da
época, marcando a vitória política de um candidato negro: ao contrário
da “Família Castañeda”, o cortejo de Tumaco exibia uma identidade racial
e social de pobres e negros sem pintura facial, real e bem “assumida”.
Após o mandato desse prefeito, seguiram-se três sucessores brancos
e conservadores, e as Famílias Quiñones e Angulo desapareceram do carnaval, até que, em 1997, um novo prefeito negro foi eleito. Conhecido
por ser apegado à cultura da região onde nasceu, ativo em diversas
ONGs, de vocação sanitarista e social, ele era também ligado ao Setor
Cultural da cidade — uma rede composta de algumas dezenas de militantes e de organizações de defesa e promoção da cultura afro-colombiana (danças, música, contos, teatro). Essas associações e seus líderes assumiram a organização dos desfiles carnavalescos. Criaram para o desfile
da sexta-feira um novo cortejo de abertura do carnaval, o “Retorno da
Marimba”, que deveria simbolizar, segundo eles, a volta da cultura negra
do Pacífico para Tumaco16. Associada a essa mensagem política, a comparsa coloca em cena figuras míticas da região — o diabo, o tocador de
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DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
marimba “endiabrado”, um padre. Todos esses personagens apresentam,
nas inumeráveis versões da memória regional, extremamente fragmentada, qualidades ambíguas e aparências múltiplas. No entanto, no contexto
do novo carnaval urbano, eles se encontram reduzidos e simplificados: o
diabo e o tocador de marimba tornam-se os representantes de um paganismo local e de uma resistência negra eternos e supervalorizados,
enfrentando o personagem do padre, representado univocamente como
um branco e como a expressão da dominação católica.
Estimulados pelos novos agentes da política cultural da cidade, diferentes elementos lendários da região conheceram, entre alguns carnavalescos, destino similar. Desfilam assim, ao longo dos cortejos, algumas
das visiones (espíritos, aparições) da floresta e dos rios próximos (a viúva
“Viuda”, o “Duende”, a mulher dos pântanos “Tunda” etc.). Outros personagens e temas são menos locais ou atuais, mas sua exibição (em fantasias individuais ou em comparsas) contribui, de forma híbrida, para a
composição local de uma identidade cultural negra: o feiticeiro “Rei do
vudu negro”, a divindade afro-cubana “Xangô nos tempos do carnaval”,
ou ainda “A África no carnaval” e “O reino infernal”. Esses desfiles são
às vezes resultado de uma ação social conduzida por professores ou militantes de associações que procuram, por atividades desse tipo, afastar da
delinqüência os jovens dos bairros mais pobres e, ao mesmo tempo, valorizar a cultura identitária regional.
Entre os dois desfiles de abertura, o das “Famílias Quiñones e Angulo” primeiro, e o do “Retorno da Marimba” em seguida, pode-se ver a
passagem de um tipo a outro de movimento identitário. O primeiro, na
metade dos anos 80, toma a forma de uma inversão, ou até mesmo de
uma provocação política, em torno da identidade racial, associada à crítica social da pobreza e do isolamento regional. O segundo surge dez anos
mais tarde e representa um trabalho sobre si mesmo, conduzido por citadinos que tiveram contato com a instituição escolar, com a igreja militante e com diversas ONGs e instituições internacionais de ajuda humanitária e desenvolvimento social na região. A identidade cultural que procuram produzir leva-os em direção a fragmentos da cultura regional, que
eles unificam e transformam em cultura-objeto e em suporte de identidade no contexto urbano, em torno de alguns dualismos inspirados no repertório global, transponíveis e compreensíveis alhures: branco/negro, católico/pagão, diabo/padre etc. Um meio social assim se consolida — o “setor
cultural de Tumaco” —, que encontra guarida e alguns recursos na esfera de influência etnoecológica mundial e nacional, bem como na gestão
municipal. Dessa maneira, vários jovens citadinos se reúnem, dançam e
DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
desfilam em casas e artérias da cidade, quando já não se ouve há muito
tempo o som das marimbas nas aldeias da floresta e dos rios que desembocam no Oceano Pacífico.
De modo geral, as estratégias identitárias que se definem no quadro
social e político da mundialização — dentre as quais a diáspora “africana” é um setor entre outros — tendem a solicitar, por seus apelos à inteligibilidade externa, uma simplificação das idéias sob a forma de dualismos facilmente traduzíveis e assimiláveis à retórica global — por exemplo, no caso aqui evocado, branco/negro, natureza/cultura, catolicismo/
paganismo etc. De tal maneira que um certo mimetismo com o que é considerado “etnicamente correto” no mundo influencia o trabalho cultural
neste ou naquele lugar: mesmo se este é sempre localizado, ele já não é
mais exatamente local. Encontramos ainda os efeitos dessa estratégia,
por exemplo, na transformação dos antigos cultos de possessão politeístas em religiões identitárias, tanto na África negra quanto nas Américas
negras. Nessas religiões atuais, a plasticidade e a transformabilidade
desaparecem (e seus adeptos vão procurá-las em outros lugares...). Inversamente, o antigo estigma do colonizador católico contra o paganismo
torna-se referência formal da redefinição desse mesmo paganismo como
religião oficial da identidade. É, em filigrana, o papel que parecem querer dar ao diabo os autores da nova “cultura negra” do Pacífico colombiano sobre a qual acabei de falar resumidamente. Um diabo no qual não
crêem mais enquanto figura pagã, mas que reintroduzem como emblema
identitário — correndo o risco de criar mal-entendidos entre os que, em
Tumaco, crêem nele pelo que é ou era, sem associá-lo à negritude, seja
cultural, seja racial.
Neste ponto da reflexão, e sem fechá-la, temos de retornar à única
identidade que podemos ter como verdadeira, mesmo se ela é maltratada pelas contingências da história. É a que Lévi-Strauss (1977:10) mencionava em primeiro lugar, a saber, a identidade do humano. Esse “mínimo de identidade” permite o diálogo entre todos os humanos e torna compreensível uma intertextualidade mínima entre todas as culturas. De forma simétrica, isso significa que o universalismo da identidade existe
somente através de suas múltiplas socializações, localizações e com o risco permanente dos particularismos excessivos. Um humanismo antropológico parece estar, mais do que nunca, na ordem do dia. Muito além do
simples reconhecimento da diversidade cultural, e mais próximo das lógicas ordinárias da existência, ele é também fundador de um novo e radical antiexotismo da antropologia.
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DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
Recebido em 15/10/00
Aprovado em 4/7/01
Tradução: Pedro Alvim Leite Lopes
Revisão Técnica: Federico Neiburg e Marcela Coelho de Souza
Michel Agier é antropólogo, diretor de pesquisa do Institut de Recherche
pour le Développement (IRD, Paris) e membro do Centre d’Études Africaines (CEA/EHESS, Paris). Há vários anos faz pesquisa na África negra e América Latina (Brasil e Colômbia). Entre seus livros recentes estão L’Invention
de la Ville, Banlieues, Townships, Invasions et Favelas (1999) e Anthropologie du Carnaval. La Ville, la Fête et l’Afrique à Bahia (2000).
DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
Notas
1 Michel Wieviorka (2001) fez recentemente uma análise histórica do crescimento político das identidades culturais a partir dos anos 60 e caracterizou vários
tipos de movimentos identitários surgidos nesse período.
A obra editada por Fredrik Barth (1969) ainda representa a principal referência dessa abordagem. Ver, também, Barth (1994) e uma apresentação geral da
questão em Poutignat e Streiff-Fenart (1995).
2
3 Interno e externo, próximo e distante, emic e etic, subjetivo e objetivo são
qualificações muito aproximativas da pesquisa etnográfica, cada uma falando
apenas de um aspecto da questão. Para dar conta do projeto, ainda atual, de uma
etnografia total, apta a captar a complexidade de cada situação observada em seu
contexto, pode-se partir novamente do enunciado de Lévi-Strauss, formulado a
partir da leitura de Durkheim e Mauss: “Para compreender convenientemente
um fato social, é necessário apreendê-lo totalmente, ou seja, de fora, como uma
coisa, mas como uma coisa da qual, no entanto, faz parte integrante a apreensão
subjetiva (consciente e inconsciente) que nós teríamos se, inelutavelmente homens, vivêssemos o fato como indígenas em vez de observá-lo como etnógrafo”
(Lévi-Strauss 1950:XXVIII, ênfase no original). É preciso ainda conseguir, prossegue Lévi-Strauss, transpor a apreensão interna para os termos da apreensão externa e para a descrição de conjunto que esta permite.
4
Bastide irá sistematizar, a partir do candomblé brasileiro, mas também a
partir da santería cubana, uma visão estática de certos cultos afro-americanos,
qualificados por ele de “religiões em conserva”: com este termo ele queria
“expressar o caráter ferozmente conservador tanto da dogmática quanto da prática africana na América” (Bastide 1967:133). O que não deixa de surpreender hoje
em dia, para além das idéias de “mineralização cultural” atribuídas a fatos sociais
e culturais que sabemos ser, pelo contrário, muito dinâmicos, é a certeza tantas
vezes repetida por escrito nessa época — não tão distante de nós, entretanto —
por Bastide, assim como por Verger ou Herskovits, de estarem não diante de brasileiros, mas de africanos recentemente desembarcados da África!
5 O afoxé é uma forma antiga de grupo carnavalesco (fim do século XIX—
início do XX) inspirado nos rituais religiosos afro-brasileiros.
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7
Reproduzido em Santos (1988).
Os cinco nomes eram Lokun Dú (“O negro forte”), Dara Dú (“O belo
negro”), Oba Dudú (“O rei negro”), Naganzu na Bahia (incerto, derivado de
Naganju, nome de uma das formas de Xangô no candomblé) e Ilê Aiyê (literalmente “A casa do mundo dos humanos”). Eles foram submetidos ao grupo de fundadores e o termo escolhido foi “Ilê Aiyê” (ver Agier 2000:119-122).
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Particularmente de Roger Bastide (que prefaciou um de seus livros), assim
como de Pierre Verger, com o qual ele fez uma viagem à África (Capone 1997:483).
9 Essa é a autodefinição de determinados chefes de culto afro-brasileiros
atualmente na Bahia.
10 Entre os quais, notadamente, Juana Elbein dos Santos (antropóloga e esposa de Mestre Didi), Marco Aurélio Luz e Muniz Sodré, todos autores de obras
antropológicas ou filosóficas sobre a cultura e identidade afro-brasileiras.
No que concerne mais particularmente às relações interpretativas entre
situações e contextos no caso da pesquisa etnográfica, ver Mitchell (1987);
Schwartz (1993); Bensa (1996).
11
12 A título de convergência para abordar os movimentos identitários negros
e indígenas e para questionar o papel dos antropólogos nesse processo, remeto
particularmente aos trabalhos de Bruce Albert (1997) e João Pacheco de Oliveira
(1998; 2001), assim como a Agier e Carvalho (1994).
13
Ver, para um ponto de vista de conjunto e político, Taguieff (1996).
14 Retomo aqui, de um ponto de vista diferente, os termos de Bastide citados
anteriormente.
15
16
Ver a pesquisa de Abner Cohen (1995).
A marimba é um instrumento tradicional da região, espécie de xilofone de
madeira inspirado no balafo mandingo, encontrado por todo o litoral do Pacífico
Setentrional. Conta-se que desde os tempos remotos da colônia e da Inquisição,
alguns padres católicos viam na marimba um “instrumento do diabo”, pois esta
acompanhava danças animadas que simulavam às vezes jogos sexuais, e lembravam outras tantas estados de transe. Para uma análise detalhada dessa cena e da
lenda que a inspira, ver Agier (2001).
DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
Referências bibliográficas
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BARTH , Fredrik (ed.). 1969. Ethnics
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DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
Resumo
Abstract
O presente artigo trata primeiramente
do estado da questão identitária na antropologia atual, e em seguida desenvolve uma reflexão sobre os processos
culturais contemporâneos. As relações
entre lugar e identidade, lugar e cultura
e cultura e identidade são examinadas
nos planos teórico e empírico. Observase que as criações culturais são, atualmente, mais dominadas do que nunca
pela problemática da identidade, e fortemente influenciadas pela globalização acelerada das situações locais. Há
espaço hoje em dia para uma crítica das
dominações globais e das respostas que
elas engendram – crítica suscetível de
conduzir a uma reflexão sobre as formas possíveis de resistência (local, política, artística etc.) a essas dominações.
Palavras-chave Identidade Cultural, Etnicização, Bahia, Colômbia
This article deals firstly with the state of
the question of identity in current anthropology and, secondly, it develops a
reflection on contemporary cultural
processes. The relationships between
place and identity, place and culture
and culture and identity are theoretically and empirically examined. It is observed that cultural creations are, at
present, more concerned with the problem of identity then they were previously, as well as being strongly influenced
by the accelerated globalization of local
situations. There is now room for a critique of global dominations and the responses they bring about – a critique
which may enable a reflection on the
possible forms of resistance (local, political, artistic, etc.) to these dominations.
Key words Cultural Identity, Ethnicization, Bahia, Colombia
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