A Situação dos Refugiados no Mundo 2000

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A Situação dos Refugiados no Mundo 2000
Índice
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Os primórdios
A Segunda Guerra Mundial e o período imediato do pós-guerra originaram as
maiores deslocações de população da história moderna. Calcula-se que, em Maio
de 1945, mais de 40 milhões de pessoas se encontravam deslocadas na Europa,
excluindo os alemães que fugiam do exército soviético que avançava para leste e os
estrangeiros que eram trabalhadores forçados na própria Alemanha. Havia também
cerca de 13 milhões de pessoas de origem alemã (Volksdeutshe) que foram expulsas,
nos meses que se seguiram, da União Soviética, da Polónia, da Checoslováquia e
de outros países da Europa de Leste e que ficaram conhecidas como “os expulsos”
(Vertriebene). E, ainda, mais 11,3 milhões de trabalhadores forçados e pessoas deslocadas que os Aliados encontraram a trabalhar nos territórios do antigo Reich. 1
Além destas pessoas, mais de um milhão de russos, ucranianos, bielorrussos,
polacos, estónios, letões, lituanos e outros fugiram do domínio comunista,
quando se tornou claro que o líder soviético José Estaline estava a impor uma nova
forma de totalitarismo. Entretanto, rebenta a guerra civil na Grécia e surgem outros conflitos no sudeste da Europa, após a retirada nazi, gerando dezenas de milhar de refugiados. Fora da Europa, a guerra está também na origem de deslocações
maciças: milhões de chineses são deslocados de áreas na China controladas pelas
forças japonesas.2
As movimentações de pessoas através do continente europeu, que se encontrava tão devastado pela guerra, era o que mais preocupava as potências aliadas.
Muito antes da guerra ter terminado, já se reconhecia que a libertação da Europa
arrastaria consigo a necessidade de enfrentar este conjunto de convulsões. Deste
modo, em 1943, foi criada a Administração das Nações Unidas para o Auxílio e
Restabelecimento, a qual foi substituída, em 1947, pela Organização Internacional
para os Refugiados. Este capítulo analisa o trabalho destas organizações, predecessoras directas do ACNUR. Assim, descreve os processos que levaram à criação do
ACNUR, em 1950, e à adopção, em 1951, da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados que, desde então, constitui a pedra angular de protecção internacional dos refugiados. Por fim, examina-se neste capítulo a resposta
do ACNUR face ao seu primeiro grande desafio – a fuga de 200.000 pessoas da
Hungria após a repressão da sublevação de 1956 pelas tropas soviéticas.
Esta mulher faz parte do milhão de pessoas que na Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial, teve de procurar uma nova
terra de acolhimento. (ASSOCIATED PRESS-SANDERS/1945)
A Situação dos Refugiados no Mundo
Administração da Nações Unidas
para o Auxílio e Restabelecimento
Em Novembro de 1943, ainda antes do fim da
Segunda Guerra Mundial e do estabelecimento
formal da própria Organização das Nações
Unidas, em Junho de 1945, os Aliados (incluindo a União Soviética) criaram a Administração
das Nações Unidas para o Auxílio e Restabelecimento (ANUAR). Detentora de um vasto mandato de assistência para auxílio e reabilitação das
zonas devastadas, a ANUAR não foi criada especificamente como organização de refugiados. Prestava assistência a todos os que se encontravam
deslocados devido à guerra e não apenas aos
refugiados que tinham fugido dos seus países.
Em 1944-45, a ANUAR prestou assistência de
emergência a milhares de refugiados e pessoas
deslocadas em áreas sob o controlo dos Aliados,
com excepção do território soviético onde não
estava autorizada a operar. Até ao fim da guerra
na Europa, em Maio de 1945, a ANUAR trabalhou estreitamente com as forças aliadas que lhe
proporcionavam apoio logístico e material. Em
meados de 1945, a ANUAR tinha mais de 300
equipas no terreno.
Entre os milhões de pessoas que ficaram
Quando a guerra terminou, a ANUAR consem abrigo no final da Segunda Guerra Mundial,
estes são refugiados da Europa de Leste num centrou grande parte dos seus esforços no repacampo na Alemanha (UNHCR/1953)
triamento. Muitos dos desenraizados pela guerra
estavam ansiosos por voltar às suas casas. Os
países que tinham concedido asilo a numerosos refugiados, como a Alemanha, a
Áustria e a Itália, também queriam que se concretizasse rapidamente o repatriamento
destas pessoas. Além disso, os acordos firmados nas conferências de Yalta e de
Potsdam, em 1945, apontavam para um repatriamento célere dos cidadãos soviéticos.
De Maio a Setembro de 1945, a ANUAR deu assistência no repatriamento a cerca
de sete milhões de pessoas.2 Contudo, como fez notar um historiador, a ANUAR sentia-se constantemente frustrada pela sua subordinação às forças aliadas:
A ANUAR viu desaparecer o seu prestígio e ficar despojada de capacidade para agir de
forma independente ... No vácuo que se criou nesta fase inicial, devido à manifesta falta
de preparação da ANUAR para tão imensa tarefa, os militares tomaram a seu cargo parte
substancial das actividades a favor dos refugiados. Mas os militares pareciam também
não estar suficientemente preparados para lidar com as pessoas deslocadas, em particular com a percentagem cada vez maior que não podia ou não iria ser repatriada.
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Os primórdios
Caixa 1.1
Altos Comissários Nansen & McDonald
O ACNUR iniciou o seu trabalho após a
Segunda Guerra Mundial, mas os esforços
concertados ao nível internacional para
assistência aos refugiados começaram a
desenvolver-se no período entre guerras.
Os violentos conflitos e tumultos políticos
entre 1919 e 1939 desenraizaram mais de
cinco milhões de pessoas só na Europa,
nomeadamente russos, gregos, turcos,
arménios, judeus e republicanos espanhóis.
Dois dos mais importantes pioneiros da
acção internacional a favor dos refugiados
no período entre guerras foram os
primeiros Altos Comissários para os
Refugiados designados pela Sociedade das
Nações, Fridtjof Nansen da Noruega (192130) e James McDonald dos Estados Unidos
(1933-35). Dois homens com perspectivas
diferentes sobre a abordagem dos problemas dos refugiados, mas que deixaram
ambos a sua marca nos esforços subsequentes visando a protecção internacional
dos refugiados.
Fridtjof Nansen
Os esforços internacionais de assistência
aos refugiados começaram formalmente em
Agosto de 1921, quando o Comité
Internacional da Cruz Vermelha apelara à
Sociedade das Nações para prestar
assistência a mais de um milhão de refugiados russos deslocados pela guerra civil
da Rússia, muitos deles ameaçados pela
fome. A Sociedade reagiu, designando
Fridtjof Nansen, um famoso explorador
polar, como “Alto Comissário em nome da
Sociedade das Nações para tratar dos problemas dos refugiados russos na Europa”.
As suas responsabilidades foram mais tarde
alargadas, abrangendo refugiados gregos,
búlgaros arménios e outros grupos específicos de refugiados.
Nansen empreendeu a enorme tarefa de
definir o estatuto jurídico dos refugiados
russos e de organizar quer o emprego dos
refugiados nos países de acolhimentos,
quer o seu repatriamento. A Sociedade das
Nações entregou-lhe £4.000 para executar
esta imensa tarefa e ele movimentou-se
rapidamente na constituição da sua
equipa. Criou o que, afinal, viria a ser a
estrutura básica do ACNUR – um comissariado com um Alto Comissário em Genebra e
representantes locais nos países de acolhi-
mento. A fim de conseguir emprego para os
refugiados, trabalhou em estreita colaboração com a Organização Internacional do
Trabalho, ajudando cerca de 60.000 refugiados a encontrar trabalho.
Nansen dedicou uma atenção particular à
protecção jurídica dos refugiados.
Organizou uma conferência internacional
de onde resultou a introdução de documentos de viagem e de identidade para os
refugiados, comummente denominados
“passaportes Nansen”. Quando se goraram
as negociações com a União Soviética
acerca do repatriamento de refugiados russos, Nansen lançou a adopção de medidas
adicionais, prevendo um estatuto jurídico
seguro para os refugiados nos países de
acolhimento. Estes primeiros instrumentos
jurídicos servirão de base, mais tarde, às
Convenções de 1933 e de 1951 relativas
aos refugiados.
Em 1922, Nansen foi confrontado com uma
outra crise, o êxodo de perto de 2 milhões
de refugiados da guerra entre a Grécia e a
Turquia. Dirigiu-se imediatamente para o
local para coordenar os esforços da ajuda
internacional. Quando se encontrava na
Grécia, Nansen sublinhou a neutralidade do
Alto Comissário face aos diferendos políticos. Apesar de pessoalmente culpar a
Turquia pela crise, presta assistência tanto
aos gregos como aos turcos, encontrandose com oficiais dos dois campos. A
Sociedade das Nações confiou-lhe a
responsabilidade da instalação dos refugiados turcos de origem grega na Trácia ocidental. Dedicou uma parte importante do
resto da sua vida a tentar obter verbas para
reinstalar os refugiados arménios na União
Soviética. Contudo, a forte oposição anticomunista impediu-o de atingir esse
objectivo.
Em 1922, a obra de Nansen é recompensada com o prémio Nobel da Paz. Após a
sua morte em 1930, o Gabinete
Internacional Nansen dá continuidade ao
seu trabalho. Após 1954, o ACNUR atribui
anualmente a medalha Nansen a indivíduos
ou grupos de pessoas que tenham prestado
serviços excepcionais em prol dos refugiados.
James McDonald
Nos anos 30, a comunidade internacional
teve de enfrentar a fuga dos refugiados da
Alemanha nazi. Embora a Sociedade das
Nações tenha recusado financiar directamente a assistência aos refugiados,
designou James McDonald, professor e
jornalista americano, como “Alto
Comissário independente para os
Refugiados (judeus e outros) provenientes da Alemanha ”. De 1933 a 1935,
combateu as restrições à imigração no
mundo inteiro com vista a obter a reinstalação de refugiados judeus.
Distinguiu-se na coordenação de agências voluntárias, donde provém a maior
parte dos fundos para a assistência aos
refugiados. Ao longo dos dois anos da
sua missão como Alto Comissário, ajudou na reinstalação de 80.000 refugiados na Palestina e em outros lugares.
Em Setembro de 1935, James McDonald
foi confrontado com o seu maior desafio
quando os nazis adoptaram as leis de
Nuremberga, privando os judeus da
cidadania e do direito de voto. Os nazis
encorajaram também os alemães a despedir os seus empregados judeus e a
boicotar os empresas judias. Sob a pressão
da perseguição, o fluxo de refugiados
aumentava. Frustrado pela falta de uma
acção mais firme por parte da Sociedade,
James McDonald pediu a demissão a 27
de Dezembro de 1935. Numa carta amplamente publicada na imprensa internacional da época, advertia:
Quando a política nacional ameaça
desmoralizar os seres humanos, as considerações de conveniência diplomática
devem ceder às dos princípios da
humanidade. Seria desonestidade da
minha parte não chamar a atenção para a
situação actual e exorto a opinião pública
mundial a actuar, por intermédio da
Sociedade e dos Estados-membros e de
outros países, para impedir as tragédias
em curso e as que se avizinham.1
Apesar dos esforços de McDonald, o seu
apelo para uma intervenção directa na
Alemanha não foi ouvido. A Sociedade
das Nações continuava a considerar o
tratamento dos judeus como um
assunto puramente interno. Embora os
seus esforços tenham falhado,
McDonald distinguiu-se como um dos
primeiros defensores de uma acção
política decisiva para atacar as causas
que estão na origem dos movimentos de
refugiados.
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A Situação dos Refugiados no Mundo
Brusca e impaciente nas suas funções, a administração militar encarava muitas vezes os
refugiados como um empecilho a ultrapassar.3
A operação de repatriamento tornou-se cada vez mais controversa, em particular
devido à resistência crescente das populações em causa. Entre aqueles que foram rapidamente repatriados neste período, contam-se cerca de dois milhões de cidadãos
soviéticos, dos quais muitos, sobretudo ucranianos e originais dos estados bálticos,
não queriam regressar. Muitas destas pessoas acabaram, eventualmente, por ir parar
aos campos de trabalho de Estaline. Os europeus de leste não foram repatriados tão
rapidamente. Do mesmo modo, muitos deles não queriam voltar para países que se
encontravam sob o regime comunista. Mas muitos foram repatriados, dando-se pouca
importância aos seus desejos pessoais. Embora os países ocidentais não estivessem inicialmente conscientes do que estava a acontecer com muitos daqueles que eram repatriados à força, o governo dos Estados Unidos, em particular, mostrava-se cada vez
mais crítico em relação a esses repatriamentos.
Por volta de 1946, surgira uma azeda polémica sobre se a ANUAR deveria ou não
prestar assistência a pessoas que não queriam ser repatriadas. Os países do bloco de
leste afirmavam que a assistência devia ser dada apenas a pessoas deslocadas que regressassem ao seu país. Os países do bloco ocidental insistiam que o indivíduo devia poder
decidir se queria ou não regressar, não podendo essa opção prejudicar o seu direito a
assistência. Por seu lado, o governo dos EUA denunciara a política de repatriamento da
ANUAR e os seus programas de reabilitação nos países do bloco de leste como servindo
apenas para reforçar o controlo político soviético sobre os países de leste.4
A relutância dos refugiados em voltar para os seus países de origem manteve-se
um problema dominante nos anos do pós-guerra. No seio das próprias Nações
Unidas, a questão do repatriamento tornou-se um problema político importante,
sendo uma das questões mais contenciosas para o Conselho de Segurança das Nações
Unidas durante os primeiros anos da sua existência. A polémica passou para o âmago
dos conflitos ideológicos fundamentais que dividiam o Leste e o Oeste na altura. A
questão em causa era saber se as pessoas deviam ou não ter o direito de escolher o seu
país de residência, de fugir à opressão e de exprimir as suas opiniões.
O governo dos EUA que, no fim de contas, assegurava 70% do financiamento da
ANUAR e muita da sua liderança, recusava-se a prorrogar o mandato da organização para
além de 1947 ou a conceder mais apoio financeiro. Para o seu lugar, e perante a oposição
inflexível dos países do bloco de leste, os Estados Unidos pressionaram fortemente para
se criar uma nova organização para os refugiados com uma orientação diferente.
Organização Internacional para os Refugiados
A Organização Internacional para os Refugiados (OIR) foi criada em Julho de 1947,
como agência especializada não permanente das Nações Unidas. Quando foi estabelecida, esperava-se que o seu programa estivesse concluído ao fim de três anos, ou
seja, a 30 de Junho de 1950.
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Os primórdios
Pessoas deslocadas em fila, frente às instalações da Organização Internacional para os Refugiados na Alemanha, em 1950,
na esperança de reinstalação num outro país. (IRO/1950)
Se bem que o trabalho da OIR se limitasse a prestar assistência a refugiados
europeus, era o primeiro organismo internacional a lidar de forma integrada com
todos os aspectos da questão dos refugiados. As suas funções tinham sido definidas
como abrangendo o repatriamento, a identificação, o registo e classificação, cuidados
e assistência, protecção jurídica e política, transporte, reinstalação e reintegração. Estas
múltiplas funções disfarçavam uma mudança clara de prioridades, passando de uma
política de repatriamento, como a levada a cabo pela ANUAR, para uma política de
reinstalação em países terceiros a partir dos países de asilo.
A Constituição da OIR estipulava que o principal objectivo da organização era
“encorajar e dar assistência de todas as formas possíveis [aos refugiados], visando o
regresso rápido ao país da sua nacionalidade ou ao país onde tinham a sua residência
habitual”.5 No entanto, tal teria de ser perspectivado à luz da resolução da Assembleia
Geral sobre a criação da OIR, na qual se declarava que “os refugiados ou pessoas deslocadas [com objecções válidas] não deveriam ser obrigados a voltar para o seu país de
origem”.6
Esta mudança de prioridade do repatriamento para a reinstalação foi alvo de críticas pelos países do bloco de leste. Argumentavam que a reinstalação era um meio de
aquisição rápida de força de trabalho e de oferecer abrigo a grupos subversivos que
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A Situação dos Refugiados no Mundo
Pessoas deslocadas vindas de campos na Áustria, Alemanha e Itália embarcam num barco fretado pela Organização
Internacional para os Refugiados para começar uma nova vida nos Estados Unidos da América. (UNHCR/1951)
poderiam ameaçar a paz internacional. Em suma, a OIR prestou assistência ao repatriamento de apenas 73.000 pessoas e à reinstalação de mais de um milhão. A maioria
foi para os Estados Unidos, que receberam mais de 30% da totalidade, bem como para
a Austrália, Israel, Canadá e vários países da América Latina.
Era evidente que os anos 50 anunciavam uma nova era de emigração. Um dos
motivos para acolher os refugiados consistia nos benefícios económicos que daí advinham, abastecendo a economia de mão-de-obra abundante. Os governos ocidentais
argumentavam que a disseminação de refugiados por todo o mundo iria fomentar
uma distribuição mais favorável de população, descongestionando a Europa e beneficiando “democracias ultramarinas” menos desenvolvidas e subpovoadas”.7
Contudo, a OIR não conseguiu conduzir o problema dos refugiados ao seu termo.
No final de 1951 continuavam deslocadas na Europa cerca de 400.000 pessoas e a
organização cessava oficialmente funções em Fevereiro de 1952.8 Havia um consenso
geral quanto à necessidade de manter a cooperação internacional para lidar com o
problema dos refugiados, mas havia desentendimentos fundamentais quanto aos
objectivos que essa cooperação deveria atingir. Os países do bloco de leste recrimi18
Os primórdios
navam a forma como, segundo eles, a OIR era instrumentalizada pelos países do bloco
ocidental. Os Estados Unidos, por seu lado, mostravam-se cada vez mais desiludidos,
pois financiavam perto de dois terços dos fundos de uma organização cujo custo de
funcionamento era superior ao orçamento operacional global das Nações Unidas.
A criação do ACNUR
No final dos anos 40 assistiu-se a um endurecimento da Guerra Fria que iria dominar
as relações internacionais nos quarenta anos que se seguiram. Ao Muro de Berlim de
1948-49, sucedeu-se rapidamente a explosão da primeira bomba atómica soviética, a
formação de dois Estados alemães, a criação da Organização do Tratado Atlântico
Norte, a vitória de Mao Tse Tung na China e o início da Guerra da Coreia em 1950.
Ficava cada vez mais evidente que a questão dos refugiados não era um fenómeno
temporário do pós-guerra. Novas crises geravam novos fluxos de refugiados,
nomeadamente após a ascensão ao poder dos comunistas, da Checoslováquia até à
China. Simultaneamente, a Cortina de Ferro entre a Europa Ocidental e a Europa de
Leste restringia a circulação entre os dois blocos.
No seio das Nações Unidas, as tensões ideológicas da Guerra Fria impregnavam as
negociações sobre a formação de um novo órgão da ONU para refugiados. Foi proposta a formação desse órgão por diversos intervenientes, nomeadamente pelo
Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV). A União Soviética, juntamente com
os seus Estados satélites, boicotaram muitas das negociações. Havia também enormes
divergências entre as próprias potências ocidentais. Os Estados Unidos pretendiam um
organismo bem definido, temporário, que requeresse pouco financiamento e com
objectivos limitados, designadamente a protecção dos refugiados da OIR até à sua
reinstalação permanente. Desejavam, especificamente, que fosse negado ao novo
órgão um desempenho em operações de emergência, privando-o da assistência da
Assembleia Geral e negando-lhe o direito de angariar contribuições voluntárias. Ao
invés, os países da Europa Ocidental, que tiveram de aguentar o peso do encargo dos
refugiados, juntamente com o Paquistão e a Índia, que acolheram milhões de refugiados após a divisão da Índia em 1947, eram favoráveis a uma agência de refugiados
forte, permanente e polivalente. Defendiam um Alto Comissário independente com a
capacidade de angariar fundos e de os redistribuir a favor dos refugiados.
O resultado desta polémica saldou-se num compromisso. Em Dezembro de 1949,
a Assembleia Geral da ONU decidiu, por 36 votos a favor, 5 contra e 11 abstenções,
criar o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) por um
período inicial de três anos, a partir de 1 de Janeiro de 1951.9 Tratava-se de um órgão
subsidiário da Assembleia Geral nos termos do Artigo 22º da Carta das Nações Unidas.
O estatuto do ACNUR, adoptado pela Assembleia Geral a 14 de Dezembro de 1959,
reflectia os consensos dos Estados Unidos e outros países ocidentais face ao bloco dos
países de leste e, ainda, as diferenças existentes entre os Estados Unidos e os Estados
da Europa Ocidental em termos de prioridades imediatas. De acordo com um analista:
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A Situação dos Refugiados no Mundo
Caixa 1.2
A assistência das Nações Unidas aos
refugiados palestinianos
Em Novembro de 1947, a Assembleia
Geral da ONU aprovou a divisão da
Palestina em dois Estados, um Estado
Judeu e um Estado Árabe. Cinco meses
e meio mais tarde, o Reino Unido,
mandatado para administrar o território durante o período da Sociedade
das Nações, retirou-se. A população
árabe da Palestina e os Estados Árabes
rejeitaram o plano de divisão que concedia à população judia mais de
metade do território, embora, na
altura, a população árabe fosse mais
numerosa. No conflito que se seguiu
entre judeus e palestinianos, os
judeus apoderaram-se de mais território. O Estado de Israel foi proclamado a 14 de Maio de 1948 e, na
altura em que foi acordado um
armistício, em 1949, Israel controlava
três quartos do território anteriormente sob mandato britânico.
No período que levaria à proclamação
do Estado de Israel, e imediatamente
após os recontros seguintes entre
árabes e judeus, foram expulsos ou
forçados a fugir das áreas sob o controlo dos judeus cerca de 750.000
palestinianos. As Nações Unidas tentaram negociar o seu regresso, mas
essa iniciativa foi bloqueada por Israel.
Rapidamente se foram estabelecendo
novos colonatos de judeus em grandes
extensões de terra pertencente aos
palestinianos e os novos imigrantes
judeus recém-chegados ocupavam as
casas dos palestinianos. A maioria dos
refugiados palestinianos fixou-se em
zonas urbanas dos países árabes ou
foi repatriada. Porém, aproximadamente um terço dos refugiados permaneceu em acampamentos na
região. Desde então que estes campos
de refugiados se mantêm como símbolo do sofrimento dos palestinianos.
A criação do UNRWA
Inicialmente, a assistência aos refugiados palestinianos foi prestada por
20
organizações não governamentais sob
os auspícios da United Nations Relief
for Palestinian Refugees (UNRPR).
Depois, em Dezembro de 1949, a
Assembleia Geral da ONU decidiu criar
o United Nations Relief and Works
Agency for Palestinian Refugees in the
Near East (UNRWA) – Organismo das
Nações Unidas das Obras Públicas e
Socorro aos Refugiados da Palestina
no Próximo Oriente.
A decisão de criar o UNRWA foi principalmente da iniciativa do governo dos
Estados Unidos que presidia a
Comissão de Conciliação das Nações
Unidas para a Palestina. A decisão foi
tomada quando se tornara evidente ser
pouco provável que o governo do novo
Estado de Israel concordasse com
qualquer regresso substancial de refugiados para o seu território. O governo
dos Estados Unidos propôs que a
Assembleia Geral criasse uma organização especial que continuasse a
prestar auxílio aos refugiados, mas
que, sobretudo, fosse responsável por
dar início a projectos de desenvolvimento em larga escala – daí a palavra
“works” na designação do UNRWA. Os
Estados árabes só aceitaram esta proposta após se certificarem que a criação do UNRWA não prejudicaria o
direito dos refugiados regressarem às
suas casas originais, como estipulado
na resolução da Assembleia Geral 194
(III), de 11 de Dezembro de 1948.
Isso ficou claramente estabelecido no
mandato de fundação do UNRWA, pela
resolução 302(IV) da Assembleia Geral
da ONU, de 8 de Dezembro de 1949.
Simultaneamente, decorriam negociações nas Nações Unidas sobre a formação do que viria a ser o ACNUR.
Porém, quando o UNRWA foi criado, os
Estados árabes insistiam em que os
refugiados palestinianos que recebiam
assistência do UNRWA fossem excluídos do mandato do ACNUR e da
Convenção de 1951 relativa ao
Estatuto dos Refugiados. Os Estados
árabes receavam que a definição de
refugiado individual, em discussão no
projecto de Convenção, enfraquecesse
a posição dos palestinianos cujo direito colectivo a regressar fora reconhecido nas resoluções da Assembleia
Geral. Outras partes receavam também que o carácter apolítico do trabalho que se previa para o ACNUR não
fosse compatível com a natureza altamente politizada da questão palestiniana.
Por estas razões, tanto o Estatuto do
ACNUR de 1950, como a Convenção de
Refugiados de 1951 excluem “as pessoas que actualmente beneficiam da
protecção ou assistência” de outro
organismo ou instituição das Nações
Unidas. O âmbito geográfico das operações do UNRWA restringe-se ao
Líbano, Síria, Jordão, Cisjordânia e
Faixa de Gaza. Só se um palestiniano
estiver fora da área de operações do
UNRWA é que cai sob o mandato do
ACNUR e da Convenção de 1951.
Ao contrário do ACNUR, o UNRWA não
tinha um estatuto pormenorizado e,
ao longo do tempo, foi desenvolvendo
a sua própria definição operacional de
refugiado contida nas Consolidated
Registration Instructions. Aí define-se
o refugiado palestiniano como aquele
cujo local habitual de residência era a
Palestina no mínimo dois anos antes
do conflito de 1948 e que, em consequência desse conflito, tenha perdido
a sua casa e meios de subsistência e
se tenha refugiado, em 1948, em
áreas onde o UNRWA opera. Os
descendentes desses refugiados também têm acesso a essa assistência.
Ao contrário do trabalho do ACNUR, a
esfera de acção do UNRWA não inclui
a procura de soluções permanentes
para os refugiados ao seu cuidado.
Também, no mandato do UNRWA, em
primeiro lugar, prevê-se a prestação
de serviços essenciais e não a garan-
Os primórdios
tia de protecção internacional que,
ao invés, constitui uma tarefa nuclear
do ACNUR.
Os primeiros anos do UNRWA
O UNRWA foi criado como um organismo temporário com um mandato
periodicamente renovável. No princípio dos anos 50, os Estados Unidos
ainda se recusavam a financiar o
ACNUR e eram o principal doador do
UNRWA. Desde então, mantêm-se
como principal financiador do
UNRWA.
Em 1950, o UNRWA era responsável
por quase um milhão de refugiados
na Jordânia, Líbano, Síria,
Cisjordânia e Faixa de Gaza. A
primeira tarefa do UNRWA foi
prosseguir o auxílio de emergência
em curso iniciado pelos seus predecessores e ajudar os refugiados a
passarem das tendas para abrigos
mais permanentes. De 1950 a 1957,
o UNRWA apoiou muitos planos
regionais de desenvolvimento
económico concebidos para incrementar a agricultura, manter a
cooperação internacional e absorver
desta maneira os palestinianos na
economia regional. Em meados dos
anos 50, o UNRWA tentou executar
dois importantes projectos de reinstalação. Em ambos os casos, tanto
os países de acolhimento como os
próprios refugiados rejeitaram-nos e
insistiram no seu direito a regressar.
O fracasso destas duas iniciativas
levou a uma reavaliação dos objectivos do UNRWA. De 1957 a 1967,
este organismo abandonou os
grandiosos projectos de desenvolvimento regional e centrou-se em programas de assistência, educação e
saúde nos campos de refugiados.
Em consequência da “guerra dos
seis dias” israelo-árabe, em 1967,
fugiram ou foram expulsos muitos
palestinianos, criando-se um novo
grupo de refugiados palestinianos.
Neste grupo incluíam-se os que
fugiram da Cisjordânia para a
Jordânia e Síria e da Faixa de Gaza
para o Egipto e Jordânia. Tal como
em 1948, logo que os palestinianos
fugiram, o governo israelita bloqueou o regresso dos refugiados ao
que se chamará mais tarde
Territórios Ocupados.
Dos 350.000 palestinianos que fugiram à guerra de 1967, cerca de
metade foram classificados como
“deslocados internamente”. Como
essa deslocação não ocorrera em
1948, não caíam sob o mandato do
UNRWA, o que os tornava ainda mais
vulneráveis. Apesar de não ter sido
feito qualquer ajustamento ao
mandato do UNRWA para integrar
esta nova categoria, esta organização proporcionou-lhes algum auxílio
de emergência com o apoio da
Assembleia Geral da ONU. Os outros
fugiam pela segunda vez em vinte
anos. A ocupação por Israel da
Cisjordânia e da Faixa de Gaza criou
uma relação nova e altamente delicada entre o UNRWA, os refugiados
palestinianos e o governo israelita.
Últimos desenvolvimentos
Decorridos 20 anos, em Dezembro
de 1987, os palestinianos
revoltaram-se aberta e espontaneamente, invadindo as ruas dos
Territórios Ocupados. Um mês
depois da rebelião que ficou conhecida como intifada (insurreição),
o Secretário-Geral das Nações
Unidas propôs um alargamento limitado das actividades do UNRWA, por
forma a incluir funções de “protecção passiva” nos Territórios
Ocupados da Cisjordânia e da Faixa
de Gaza. Posteriormente, as resoluções da Assembleia Geral corroboraram esta abordagem e, na
sequência disso, foi iniciado um
esquema de apoio jurídico com o
recrutamento de mais pessoal local
e internacional e o destacamento de
observadores de direitos humanos.
A Declaração do princípio de autodeterminação dos palestinianos nos
territórios ocupados, assinada em
Setembro de 1993 pelo líder palestiniano Yasser Arafat e o PrimeiroMinistro de Israel Yitzak Rabin, foi
concebida para se efectuar uma
transferência gradual de poderes
para a Autoridade Nacional
Palestiniana. Um mês mais tarde,
com vista a apoiar o processo de paz,
o UNRWA lançou um “programa de
implementação da paz”. Este programa incluía projectos para melhorar as condições de educação e
saúde, construir habitações de
emergência e outras infra-estruturas
e disponibilizar empréstimos para
pequenas empresas.
Os refugiados estão agora na terceira
ou quarta geração. Em 1999, havia
cerca de 3,6 milhões na região,
tirando os cerca de seis milhões de
palestinianos espalhados pelo
mundo. Na Jordânia encontram-se à
volta de 1,5 milhões de refugiados e
na Cisjordânia e Faixa de Gaza 1,3
milhões. Cerca de um terço vive em
59 campos de refugiados e os
restantes vivem em aldeias e cidades
situadas na área de intervenção do
UNRWA. Apesar das dificuldades
financeiras, o UNRWA criou ao longo
dos anos cerca de 650 escolas, que
contam hoje com mais de 450.000
alunos, 8 centros de formação profissional, 122 centros de saúde e muitos
outros projectos destinados a suprir
diversas carências da comunidade.
Mas as necessidades dos refugiados
continuam a ser imensas e, até que se
encontre e desenvolva uma solução
política integrada e a longo prazo
para o problema palestiniano, o
estatuto e o futuro da maioria dos
refugiados palestinianos permanecerão incertos.
21
A Situação dos Refugiados no Mundo
“As sérias limitações em termos funcionais e de autoridade do ACNUR decorreram
principalmente do desejo dos Estados Unidos e dos aliados ocidentais de criarem uma
organização internacional de refugiados que não constituísse qualquer ameaça à
soberania nacional das potências ocidentais nem lhes impusesse novas obrigações
financeiras.”10
O Artigo 2º do Estatuto do ACNUR refere que o trabalho do Alto Comissariado
“terá um carácter totalmente apolítico; será humanitário e social e, como regra geral,
estará relacionado com grupos e categorias de refugiados”. A distinção aí efectuada
entre preocupações políticas e humanitárias é crucial. Muitos funcionários do ACNUR
afirmam ter sido a ênfase colocada na natureza apolítica do trabalho do Alto
Comissariado que permitiu que a Organização operasse durante a época tensa da
Guerra Fria e em situações subsequentes de conflito armado. Outros observadores
defendem que, embora essa distinção se revelasse útil de muitas maneiras, tratou-se
desde o início de algo um tanto ilusório, invocado sobretudo para atenuar os graves
efeitos da bipolarização no início dos anos 50 e para evitar uma total paralisia das
Nações Unidas na resolução dos problemas dos refugiados da época.11 Alguns analistas têm também argumentado que, sendo o ACNUR um órgão subsidiário da ONU,
sujeito ao controlo formal da Assembleia Geral, nunca pode ser inteiramente independente dos órgãos políticos das Nações Unidas.12 A constante polémica sobre este
assunto gira grandemente à volta do lapso incorrido por não se definir claramente o
que constitui “acção humanitária” e “acção política”.
Em que medida é que uma organização pode proteger e dar assistência aos refugiados e se manter apolítica não é uma discussão nova. É mesmo uma questão que
remonta ao período da Sociedade das Nações, quando Fridtjof Nansen e James
McDonald, dois Altos Comissários com responsabilidades por grupos particulares de
refugiados, adoptaram abordagens diferentes [ver Caixa 1.1].
As funções primárias do ACNUR foram definidas como tendo duas vertentes: a
primeira, proporcionar protecção internacional aos refugiados; e a segunda, procurar
soluções permanentes para o problema dos refugiados, ajudando os governos a facilitar o seu repatriamento voluntário ou a sua integração no seio das novas comunidades nacionais. Embora tendo sido garantido à nova organização o direito de
angariar contribuições voluntárias, os Estados Unidos conseguiram que tais angariações ficassem sujeitas à aprovação prévia da Assembleia Geral. Como consequência,
o ACNUR depende de um reduzido orçamento administrativo da Assembleia Geral e
de um pequeno “fundo de emergência”.
Inicialmente, o governo dos Estados Unidos recusou proceder a quaisquer contribuições para este fundo pois, naquela fase, não considerava o ACNUR como o órgão
mais apropriado para canalizar as suas verbas e preferiu financiar o Programa dos Estados
Unidos Escapee e o Comité Intergovernamental para as Migrações Europeias. Este último
foi fundado em 1952 para apoiar a movimentação de migrantes e refugiados na Europa
para países ultramarinos de imigração, tornando-se mais tarde na Organização
Internacional para as Migrações. Dentro do sistema das Nações Unidas, os Estados Unidos
financiaram também o Organismo de Obras Públicas e Socorro aos Refugiados da
22
Os primórdios
Caixa 1.3
A Convenção de 1951 relativa ao
Estatuto dos Refugiados
A Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados foi adoptada pela
Conferência das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados e Pessoas
Apátridas realizada em Genebra de 2 a 25 de Julho de 1951. Foi aberta para
assinatura a 28 de Julho e entrou em vigor a 22 de Abril de 1954.
A Convenção enuncia os direitos e os deveres dos refugiados, assim como
as obrigações dos Estados perante os refugiados. Estipula também padrões
internacionais de tratamento dos refugiados. Estabelece os princípios que
promovem e salvaguardam os direitos dos refugiados em matéria de
emprego, educação, residência, liberdade de circulação, acesso aos tribunais, naturalização e, acima de tudo, de segurança contra o regresso a
um país onde possam ser vítimas de perseguição. Os Artigos 1º e 33º contêm duas das mais importantes disposições:
Artigo 1º - Definição do termo “refugiado”
A(2). [Qualquer pessoa]...receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social
ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a
nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira
pedir a protecção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e
estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual ..., não
possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar ...
Artigo 33º - Proibição de expulsar e de repelir (“refoulement”)
1. Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a
sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça,
religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões
políticas...
A definição de refugiado contida na Convenção de 1951 limitava-se a pessoas que se tornaram refugiados “em consequência de acontecimentos
ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951”. A limitação temporal foi, contudo, retirada pelo Artigo I(2) do Protocolo à Convenção de 1967 [ver Caixa
2.2]. Ao tornarem-se partes na Convenção de 1951, os Estados tinham também a possibilidade de fazer uma declaração limitando as suas obrigações,
nos termos da Convenção, aos refugiados de acontecimentos ocorridos na
Europa.
A Convenção de 1951 – juntamente com o Protocolo de 1967 – ainda é o
instrumento mais importante do direito internacional relativo aos refugiados e o único que é universal. Em 31 de Dezembro de 1999, 131 Estados tinham aderido à Convenção de 1951 e respectivo Protocolo de 1967, e 138
Estados tinham ratificado um ou ambos os instrumentos.
23
A Situação dos Refugiados no Mundo
Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) [ver Caixa1.2] e a Agência das Nações Unidas
para a Reconstrução da Coreia (UNKRA), que prestou assistência a milhões de pessoas
deslocadas na Guerra da Coreia.
O ACNUR, desde o início, sofria de um financiamento inadequado. Cada projecto de
auxílio a refugiados tinha de ser financiado através de contribuições voluntárias, principalmente dos Estados. Não dispunha de recursos para implementar um programa de
repatriamento, como o desenvolvido pela ANUAR, ou um programa de reinstalação,
como o empreendido pela OIM. Mais exactamente, pretendiam que proporcionasse protecção internacional e procurasse soluções permanentes apenas com um magro orçamento. Tal como afirmou o primeiro Alto Comissário das Nações Unidas para os
Refugiados, Gerrit Jan van Heuven Goedhart, corria-se o risco do seu comissariado ficar
reduzido a “administrar o sofrimento”13
Com um orçamento anual que não ultrapassava os 300.000 dólares EUA, gora-vamse as expectativas do ACNUR conseguir colmatar o problema dos refugiados europeus no
espaço de poucos anos. Apesar dos esforços envidados pelo Alto Comissário van Heuven
Goedhart no sentido de persuadir os governos para a amplitude do problema dos refugiados, apenas lhe atribuíram um financiamento mínimo. Mesmo assim, o ACNUR
desenvolveu parcerias cada mais efectivas com organizações voluntárias e de beneficência. O primeiro valor substancial colocado à disposição do ACNUR não proveio dos governos mas da Fundação Ford, nos Estados Unidos, que concedeu 3,1 milhões de dólares
à Organização, em 1951. Este dinheiro foi usado num projecto piloto que, pela primeira
vez, punha a ênfase na integração local nos países europeus como uma solução para os
problemas dos refugiados. Até que, em 1954, foi criado um novo Fundo das Nações
Unidas para os Refugiados (UNREF) destinado à realização de projectos em países como
a Áustria, República Federal da Alemanha, Grécia e Itália. Os Estados Unidos contribuíram
para este fundo, tendo anteriormente recusado financiar o ACNUR devido à decisão
tomada pelo Congresso dos EUA, em 1950, de vetar a afectação de fundos norte-americanos destinados a qualquer organização internacional a operar atrás da Cortina de Ferro.
A rígida oposição inicial da União Soviética ao ACNUR começou também a mudar
em meados dos anos 50. Nessa altura, a Guerra Fria tinha-se espalhado muito para além
das fronteiras da Europa e novos países influenciavam o trabalho das Nações Unidas. A
União Soviética contribuiu facilitando a admissão às Nações Unidas de vários países em
vias de desenvolvimento, e estes países reconheciam agora a potencial utilidade do
ACNUR para os seus próprios problemas de refugiados.
A Convenção das Nações Unidas de 1951 relativa aos
Refugiados
Os direitos e deveres estabelecidos na Convenção das Nações Unidas de 1951 relativa
ao Estatuto dos Refugiados constituem a fonte inspiradora do trabalho do ACNUR. As
negociações para a Convenção realizaram-se paralelamente às que envolveram o criação do ACNUR. A Convenção foi adoptada numa conferência internacional sete
meses depois, a 28 de Julho de 1951.
24
Os primórdios
Era a definição do termo ‘refugiado’ que provocava particular controvérsia. Uma
vez que a Convenção criava novas obrigações, que seriam vinculativas nos termos do
direito internacional, os Estados que participavam no processo de elaboração procuravam restringir a definição a categorias de refugiados perante os quais estavam dispostos a assumir obrigações legais. Os Estados Unidos eram favoráveis a uma
definição estreita, tendo em vista as consequentes obrigações legais que uma definição
alargada iria impor. Por outro lado, os Estados da Europa Ocidental defendiam uma
definição alargada, se bem que também existissem divisões entre eles em relação à
própria definição.
Por fim, chegou-se a uma fórmula de compromisso. Os governos aceitaram uma
definição geral do termo de ‘refugiado’, aplicável universalmente, centrada no con-
Estados Partes da Convenção de 1951 relativa aos Refugiados e/ou do
Protocolo de 1967, 30 Junho 2000
Mapa 1.1
0
1000
2000
Quilómetros
LEGENDA
LEGENDA
Estado Parte da Convenção
e/ouda Convenção e/ou
Estado Parte
do Protocolo
do Protocolo
Nota:
Nota:
As fronteiras indicadasAscorrespondem
às utilizadas
pela Secção
de Cartografia
Nações
Unidas, Nova
fronteiras indicadas
correspondem
às utilizadas
pela das
Secção
de Cartografia
dasIorque.
Nações Unidas, Nova Iorque.
As fronteiras, nomes dos
e designações
não implicam,
a aprovação
ou a aceitação
das Nações
As países
fronteiras,
nomes dosdeste
paísesmapa
e designações
destenecessáriamente,
mapa não implicam,
necessáriamente,
a aprovação
ou a Unidas.
aceitação das Nações Unidas.
25
A Situação dos Refugiados no Mundo
ceito de “receio fundado de perseguição”. Ao mesmo tempo, estabeleceram duas
importantes limitações ao âmbito da Convenção. Primeiro, os benefícios da
Convenção não se aplicavam a pessoas que se tivessem tornado refugiados em consequência de acontecimentos ocorridos após 1 de Janeiro de 1951, mesmo que, sob os
outros aspectos, se enquadrassem na definição. Segundo, ao tornarem-se partes da
Convenção, os Estados tinham a possibilidade de fazer uma declaração que limitava as
suas obrigações por força da Convenção aos refugiados europeus.
A adopção desta definição do termo ‘refugiado’ marcou uma viragem decisiva de
política, pois significava que os refugiados seriam agora identificados não apenas
tendo como base o grupo, mas também numa base individual, de caso a caso. Agora
a definição também era geral, não estando ligada a grupos nacionais específicos, como
os russos da União Soviética ou os gregos da Turquia, como fora o caso do período
entre guerras.
Apesar da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 asseverar o direito do indivíduo procurar e beneficiar de asilo, a importância dos Estados preservarem
o direito soberano de concessão de entrada nos seus territórios, levava a que, mesmo
os Estados que redigiram a Convenção relativa aos Refugiados, não estivessem
preparados para reconhecer o direito incondicional ao asilo previsto neste novo
instrumento juridicamente vinculativo. Deste modo, a nova Convenção não contém
qualquer menção sobre o “direito ao asilo”. No entanto, uma das disposições-chave
da Convenção é a obrigação dos Estados partes não expulsarem ou enviarem um refugiado para um Estado onde possa estar sujeito a perseguição. Isto é conhecido como
o princípio do non-refoulement, usando a palavra francesa constante no Artigo 33º da
Convenção. Outras disposições contidas na Convenção estipulam os direitos dos refugiados em relação a questões como o emprego, habitação, educação, segurança social,
documentação e liberdade de circulação [ver Caixa 1.3].
Tinham sido previstos direitos semelhantes na Convenção de 1933 relativa ao
Estatuto Internacional dos Refugiados, primeiro instrumento internacional a referir o
princípio de que os refugiados não deveriam ser forçados a regressar ao seu país de
origem14. Contudo, esta Convenção fora ratificada apenas por oito Estados. Um outro
instrumento internacional relevante foi a Convenção de 1938 relativa ao Estatuto dos
Refugiados provenientes da Alemanha, mas foi ultrapassado pela eclosão da Segunda
Guerra Mundial, tendo obtido apenas três ratificações. Contrariamente, é no grande
número de ratificações que obteve no mundo inteiro que reside a força da Convenção
de Refugiados de 1951 [ver Mapa 1.1].
A Crise na Hungria em 1956
O primeiro grande teste do ACNUR consistiu no êxodo de refugiados da Hungria após
a repressão da sublevação de 1956 pelos soviéticos. Muitos destes refugiados fizeram
o mesmo trajecto para a Áustria dos que fugiram ao Exército Vermelho em 1944-45.
Embora a grande maioria dos refugiados – cerca de 180.000 – tenha fugido para a
26
Os primórdios
Húngaros fugindo da repressão soviética à sublevação de 1956 passam a fronteira austríaca. (RDZ/1956)
Áustria, cerca de 20.000 escaparam para a Jugoslávia socialista que cortara com a
União Soviética em 1948. Este êxodo proporcionou ao ACNUR a sua primeira experiência com um influxo maciço de refugiados fugindo da repressão política.
Proporcionou-lhe também a primeira experiência de trabalho com a Comité Internacional da Cruz Vermelha (na Hungria) e a Liga das Sociedades da Cruz Vermelha (na
Áustria).
Ao longo de 1956-57, o ACNUR levou a cabo uma grande operação de assistência, cuidando dos refugiados húngaros na Áustria e na Jugoslávia, apoiando-os na sua
reinstalação em 35 países por todo o mundo e no repatriamento voluntário de alguns
para a Hungria. A crise foi gerida por Auguste Lindt que substituiu van Heuven
Goedhart como Alto Comissário a 10 de Dezembro de 1956. Esta operação marcou o
início da transformação do ACNUR enquanto pequeno órgão das Nações Unidas ocupado com casos residuais de refugiados da Segunda Guerra Mundial para uma organização muito maior e com responsabilidades mais vastas. O ACNUR iria sair de uma
crise - que se tornou numa das referências importantes da Guerra Fria - muito fortalecido e com o seu prestígio internacional consideravelmente reforçado.
27
A Situação dos Refugiados no Mundo
Caixa 1.4
Esquemas de compensação da Alemanha
para os refugiados
Logo após a fundação da República Federal
da Alemanha, em 1949, começou a ser
debatida a questão da compensação às vítimas da perseguição nazi. A palavra
“reparação” ou Wiedergutmachung em
alemão (literalmente “ficar bem de novo”)
raramente era usada, pois na generalidade
era consensual que nenhuma compensação
financeira poderia reparar os horrores do
Holocausto.
As primeiras leis da República Federal
definiam como “perseguidos”, para fins de
indemnização ou de compensação, as pessoas que tivessem sofrido devido à sua raça,
religião ou opiniões políticas. Outras pessoas, mesmo que tivessem sido enviadas
para campos de concentração ou para trabalhos forçados como escravos, não se
qualificavam como “perseguidos”, mas sim
como pessoas “prejudicadas por razões de
nacionalidade” (Nationalgeschädigte, em
alemão).
Havia dezenas de milhar destes “perseguidos por razões de nacionalidade” – polacos,
ucranianos, bielorrussos, sérvios checos,
eslovacos e outros que tinham sido encarcerados ou deportados para trabalhar como
escravos nas fábricas alemãs. Na maior
parte dos casos, a vida destes sobreviventes
encontrava-se desfeita: a saúde arruinada,
as famílias desenraizadas e dispersas, as
casas deterioradas ou destruídas. Depois da
guerra, muitos foram para a América do
Norte e do Sul, para a África do Sul ou para
a Austrália. Porém, os seus novos países de
residência só aceitavam as suas pretensões
se fossem cidadãos destes países aquando
da perseguição.
As primeiras negociações sobre indemnizações centraram-se nos perseguidos por
motivos religiosos. A Conferência sobre as
Reivindicações Materiais dos Judeus contra
a Alemanha (“Conferência das
Reivindicações”), fundada em 1951, congregou numerosas organizações judaicas
que, ao longo da segunda metade do
século, intervieram energicamente a favor
dos judeus vítimas do nazismo. Outras
comunidades, como o Povo de Roma
(ciganos) ou os comunistas, por exemplo,
ou ainda os “perseguidos por razões de
nacionalidade”, não beneficiavam deste
tipo de organização.
28
A primeira Lei de Indemnizações da
República Federal da Alemanha, adoptada
em 1953, previa pagamentos limitados a
determinados “perseguidos por razões de
nacionalidade” que se tornaram refugiados
antes de uma data específica e cuja saúde
estava seriamente abalada. A legislação
posterior de 1956 não previa qualquer
ajuda adicional para este grupo .
Em 1957, os governos ocidentais encetaram negociações com o governo alemão
em Bona sobre a compensação aos seus
cidadãos. Falou-se de um fundo global que
incluísse os “perseguidos por razões de
nacionalidade”, mas ficou decidido que a
questão das compensações deveria
aguardar o estabelecimento de um tratado
oficial de paz. Entretanto, a Alemanha inicia conversações com o ACNUR acerca dos
refugiados perseguidos por causa da sua
nacionalidade.
Em 1960, a Alemanha e o ACNUR chegaram
a um primeiro acordo. O ACNUR iria administrar um “fundo do infortúnio” no valor de
45 milhões de marcos alemães, disponibilizado pelo governo e destinado aos
“perseguidos por razões de nacionalidade”
que se tornaram refugiados antes de 1 de
Outubro de 1953. Ao longo dos cinco anos
seguintes, o ACNUR efectuou pagamentos
entre 3.000 e 8.000 marcos alemães a cerca
de 10.000 pessoas.
Entretanto, outros potenciais beneficiários
fugiram para o Ocidente. Em 1965, o Fundo
tinha-se esgotado. Um ano mais tarde, o
ACNUR e a Alemanha assinaram um acordo
complementar, estendendo o prazo para 31
de Dezembro de 1965 e disponibilizando
mais 3,5 milhões de marcos alemães. De
qualquer maneira, os pedidos de compensação eram largamente superiores ao dinheiro disponível e este valor adicional
gastou-se rapidamente.
Era uma tarefa difícil decidir quem iria receber os modestos valores postos à disposição do ACNUR. O pessoal do ACNUR
examinava minuciosamente os pedidos dos
sobreviventes no mundo inteiro. Muitos
juntavam retratos seus antes de serem
deportados e postos a trabalhar como
escravos na Alemanha. Outros incluíam
atestados médicos, orçamentos domésticos
escritos à mão ou facturas por pagar. Os
montantes relativamente pequenos
disponíveis para distribuição não eram de
maneira alguma proporcionais às
perseguições por que tinham passado.
Mesmo assim, considerava-se da maior
importância mostrar às vítimas que não tinham sido esquecidas.
Em 1980, a “Conferência das
Reivindicações” negociou com a República
Federal da Alemanha a criação de um novo
fundo destinado aos judeus que fugiram
para o Ocidente depois de 1965. O ACNUR
procurou também recolher mais fundos para
os “perseguidos por razões de nacionalidade” tornados refugiados depois de 1965.
Das negociações havidas na “Conferência
das Reivindicações” surtiram três novos
fundos no valor total de 500 milhões de
marcos alemães destinados às vítimas nos
termos definidos pela lei alemã, excluindo
os “perseguidos por razões de nacionalidade”. Para este último grupo, foi criado um
novo fundo administrado pelo ACNUR no
valor de 5 milhões de marcos alemães.
Rapidamente se percebeu que não seria
suficiente. A emigração da Europa de Leste,
em especial da Polónia, estava a aumentar
e a nova vaga de refugiados incluía muitos
indivíduos elegíveis para compensação. Em
1984, a Alemanha fez um acréscimo de
mais 3.5 milhões de marcos alemães ao
fundo administrado pelo ACNUR. Em Maio
desse ano, tinham sido recebidos mais de
1.100 novos pedidos, todos eles de sobreviventes que se tornaram refugiados depois
de 1965, e aguardavam-se ainda mais.
As cartas recebidas pelo ACNUR demonstravam que os requerentes ainda sofriam
os efeitos da perseguição. Muitos encontravam-se em condições de saúde tão
precárias que não podiam trabalhar.
Nenhuma quantia monetária podia reparar
os danos sofridos, mas as vítimas queriam
que fosse reconhecido o seu sofrimento,
mesmo que já tivessem atingido a idade da
reforma.
A assistência do ACNUR aos refugiados
através deste fundo cessou em 1993. Por
essa altura, o governo federal alemão tinha
pago 59 milhões de marcos alemães,
através do fundo administrado pelo ACNUR,
a refugiados e antigos refugiados vítimas
da perseguição nazi.
Os primórdios
A crise húngara tem as suas raízes no degelo que se verificou na Europa de Leste
e na União Soviética após a morte de Estaline, em Março de 1953. O regime comunista, que tinha tomado o poder na Hungria em 1947-48, era dirigido por um dos
mais fiéis seguidores de Estaline na Europa de Leste. Em 1949, encenou-se uma série
de pseudo julgamentos, à imagem dos efectuados em Moscovo, em 1936, que resultaram na execução de muitos dirigentes comunistas. Depois, em 1954, um ano após
a morte de Estaline, o próprio Chefe da Polícia de Segurança e o Primeiro Secretário
do Partido Comunista no poder foram presos e julgados, acusados de excederem a sua
autoridade e de efectuarem detenções arbitrárias.
O famoso discurso de Nikita Khrushchev no 20º Congresso do Partido Comunista
da União Soviética, em Fevereiro de 1956, admitindo que Estaline cometera graves
erros, criara uma onda de choque não só através da União Soviética, mas por todo o
mundo comunista. Os seus intentos específicos de reavaliação das relações da União
Soviética com os seus satélites vizinhos tiveram repercussões dramáticas na Europa de
Leste, especialmente na Polónia e na Hungria. Na Polónia, as manifestações e greves
em Junho conduziram a uma mudança de governo e a uma cuidadosa e gradual liberalização do regime, aceite com relutância por Moscovo.
Na Hungria, ao contrário, a tentativa de reforma teve um desfecho trágico.
Primeiramente, o regime parecia reconhecer a necessidade de reforma. Sancionou as
concessões feitas aos camponeses e abrandou o regime de terror, designando, com
relutância, como Primeiro-Ministro, Imre Nagy, um crítico da colectivização e da
industrialização forçadas. Porém, mesmo assim, as manifestações populares de
Outubro de 1956 demonstravam uma oposição generalizada ao regime e à sua polícia secreta. O movimento culminou numa revolta em grande escala a 23 de Outubro,
quando cerca de 300.000 pessoas protestaram nas ruas e se confrontaram com as
forças húngaras e soviéticas. Dando resposta aos anseios populares, a 27 de Outubro,
Nagy formou uma coligação governamental, excluindo os comunistas da linha dura
e prometendo eleições livres. A 1 de Novembro, fez a proposta fatídica de retirada do
Pacto de Varsóvia, declarando a Hungria como país neutro.
Tendo inicialmente retirado as suas tropas da capital húngara, Budapeste, o
exército soviético ataca a cidade em força, a 4 de Novembro. Nas muitas lutas que se
seguiram nas ruas, a resistência ao Exército Vermelho – com 200.000 efectivos e mais
de 2.000 tanques à sua disposição – foi decisivamente esmagada. Milhares de húngaros foram deportados ou executados, como Nagy. Mais de 3.000 pessoas morreram
nas ruas de Budapeste nos 10 dias do que constituiu o mais violento confronto na
Europa entre a Segunda Guerra Mundial e as guerras na Jugoslávia dos anos 90.
O êxodo dos refugiados
Mesmo antes da repressão da sublevação húngara, começaram a chegar refugiados à
Áustria. A 5 de Novembro, a situação já era suficientemente grave para que o governo
austríaco tivesse que pedir ajuda ao ACNUR. Rapidamente chegam ofertas de asilo
permanente e temporário do Canadá, Chile, França, Dinamarca, Noruega, Suécia e
29
A Situação dos Refugiados no Mundo
Reino Unido. A 8 de Novembro, o Presidente Dwight D. Eisenhower anunciava que
os Estados Unidos estavam dispostos a receber imediatamente 5.000 refugiados. Este
número aumentou posteriormente para 6.000 e, em Dezembro, o governo norteamericano anunciara que se poderiam efectuar os procedimentos na Áustria para
admissão nos Estados Unidos de mais 16.500 húngaros.15
No total, cerca de 200.000 refugiados húngaros tiveram de fugir da sua terra. Em
finais de Novembro, havia 115.851 registados como tendo chegado à Áustria.
Homens, mulheres e crianças fugiam, assustados e desesperados, arrastando atrás de
si malas e carros de mão. Seguiam o mesmo caminho, em direcção à cidade fronteiriça de Hegyeshalom, percorrido 12 anos antes por dezenas de milhar de judeus húngaros, deportados pelos nazis. Um refugiado explicava: “Deixámos tudo para trás,
como se a nossa casa estivesse a arder.”16 Entre Dezembro de 1956 e Janeiro de 1957,
chegaram à Áustria mais 56.800 pessoas. As chegadas à Áustria foram, depois, diminuindo radicalmente, principalmente devido ao apertar do controlo nas fronteiras pelo
novo regime de Budapeste, instaurado pelos soviéticos e liderado por János Kádár.
Confrontado com este influxo, o governo austríaco endereçou um apelo urgente
ao ACNUR, solicitando apoio financeiro e a reinstalação do maior número possível de
refugiados em países terceiros. A Áustria estava ainda a recuperar das privações da
Segunda Guerra Mundial, pois, na etapa final, o país fora palco de acesas lutas entre
os nazis e as forças avançadas dos soviéticos. A ocupação da Áustria pelos Aliados que,
tal como a Alemanha, tinha sido dividida em quatro zonas, terminara formalmente
em Maio de 1955. As forças ocupantes partiram quatro meses depois e, no início de
1956, as autoridades húngaras removeram muito do arame farpado entre os dois
países. A Áustria só tinha, portanto, recuperado a sua soberania muito recentemente
e durante a crise sublinhara a sua posição de neutralidade entre os dois blocos da
Guerra Fria.
A operação de assistência aos refugiados foi dirigida pela Cruz Vermelha que trabalhou estreitamente com o ACNUR. Esta seria a primeira de muitas operações de
emergência em que as duas organizações trabalharão lado a lado no terreno. A participação do ACNUR decorre da resolução 1006 de 9 de Novembro de 1956 da
Assembleia Geral das Nações Unidas. Em Dezembro, a poucos dias da sua eleição
como Alto Comissário, Auguste Lindt viajou para a capital austríaca, Viena, para
avaliar por si próprio as necessidades prementes dos refugiados húngaros que atravessavam a fronteira austríaca a um ritmo de 3.000 por noite.17
Alguns refugiados viram como alternativa ao asilo na Áustria a fuga para a
Jugoslávia, também um Estado comunista, mas cujo líder, Josip Broz Tito, cortara com
Estaline em 1948. Após a morte de Estaline, as relações melhoraram e os seus sucessores, Nikita Khrushchev e Nikolai Bulganin, visitaram Belgrado, em Maio de 1955,
assinalando a aceitação soviética do rumo independente da Jugoslávia. Neste contexto,
a actuação de Tito ao acolher os refugiados não deixa de ser um passo corajoso.18
A Jugoslávia tinha sido o único país comunista a participar na conferência internacional em Genebra para elaboração da Convenção de 1951 relativa aos Refugiados.
O primeiro Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, van Heuven
30
Os primórdios
Goedhart, visitara a Jugoslávia, em Abril de 1953, para apresentar o trabalho do
ACNUR ao governo jugoslavo. Foi a primeira vez que se fez uma visita deste tipo a
um país comunista.19 Esta ponte lançada entre o ACNUR e a Jugoslávia iria revelar-se
muito útil durante a crise húngara. Em Dezembro de 1956, Tito apelou directamente
ao ACNUR para que, face ao influxo de refugiados, prestasse a sua assistência.
Primeiro, o governo jugoslavo insistia para que todos os refugiados fossem reinstalados e que teria de ser ressarcido de todas as despesas incorridas. Estas condições
viriam, contudo, a ser abandonadas. Entre Novembro e Dezembro de 1956 chegaram
à Jugoslávia cerca de 1.500 húngaros. Mas, em Janeiro de 1957, já tinham chegado
mais de 13.000.20 Já viviam na Jugoslávia dezenas de milhar de pessoas de etnia húngara, principalmente na região de Vojvodina, o que facilitava a aceitação dos refugiados. Ironicamente, nos anos 90, com o colapso da Jugoslávia, muitas pessoas de etnia
húngara tiveram de realizar esta viagem no sentido inverso.
Na Jugoslávia, a 21 de Fevereiro de 1957, foi criado um comité coordenador para
lidar com a situação de emergência composto por representantes do governo
jugoslavo, do ACNUR, da Liga das Sociedades da Cruz Vermelha, da CARE (Cooperative
Action for American Relief Everywhere), Church World Service e da British Voluntary Society for Aid to
Hungarians. Em Março de 1957, quando o Alto Comissário Lindt visitou Belgrado e elogiou o governo pelo acolhimento prestado aos refugiados húngaros, o ACNUR já
tinha atribuído 50.000 dólares EUA à Cruz Vermelha Jugoslava e afectado mais
124.000 dólares à delegação do ACNUR em Belgrado. 21
A aplicabilidade da Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados
Embora os húngaros que deixaram o seu país em 1956 fossem considerados geralmente
pelos países ocidentais como “refugiados”, não era imediatamente evidente que os
direitos e responsabilidades estipulados na Convenção de 1951 relativa aos Refugiados
se aplicariam para a crise húngara, uma vez que a Convenção mencionava claramente
que só seria aplicável em “acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951”.
Contudo, independentemente da sua situação jurídica, todos os que partiram depois
de 23 de Outubro de 1956, data da insurreição geral em Budapeste, na prática, eram
considerados pelo ACNUR e pelos governos ocidentais como refugiados, desde que a
triagem individual não revelasse provas que os excluísse dessa categoria. A este
respeito, agiu-se de forma semelhante à praticada durante o período da Sociedade das
Nações, quando a determinação do estatuto de um indivíduo se efectuava com base na
sua identificação como pertencendo a um grupo particular de refugiados.
Para a justificação legal desta matéria, bem como sobre muitos outros assuntos
nestas duas primeiras décadas da existência do ACNUR, a voz definidora era a de Paul
Weis, um refugiado de Viena e Consultor Jurídico do Alto Comissário nessa altura. A
pedido do Alto Comissário, Weis definiu a posição do ACNUR num memorando
explicativo, em Janeiro de 1957.22 Fê-lo, não só pela necessidade de clarificação sobre
a matéria, mas também porque se manifestavam certos receios, mesmo entre os países
amigos, como a Suécia, do papel do ACNUR se tornar extensivo a acontecimentos
contemporâneos.
31
A Situação dos Refugiados no Mundo
O ponto de partida de Weis era, obviamente, a definição do termo refugiado contida no Artigo 1º A(2) da Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados e, em
especial, a problemática ligação da definição a “acontecimentos ocorridos antes de 1 de
Janeiro de 1951”. Salientou que o Comité Ad Hoc sobre a Apatridia e Problemas
Relacionados, que elaborara o projecto da Convenção, defendia no relatório da primeira
sessão a 17 de Fevereiro de 1950 que esta expressão “tencionava aplicar-se a eventos de
grande importância que envolvessem profundas mudanças políticas ou territoriais, bem
como a programas sistemáticos de perseguição”. Segundo ele esta interpretação e as discussões que tiveram lugar nos diversos órgãos que elaboraram a definição na Convenção
deixavam claro ser irrelevante a data em que uma pessoa se torna refugiada. Weis argumentava também ser evidente que tinham ocorrido “profundas mudanças políticas” na
Hungria, nomeadamente a instauração de uma República Popular dominada pelo
Partido Comunista em 1947-48. A insurreição de Outubro de 1956 e o consequente
êxodo de refugiados eram, neste sentido, “um efeito posterior dessa anterior mudança
política”. Por conseguinte, desde que preenchessem as condições do Artigo 1ºA(2)
eram definitivamente refugiados.
No que diz respeito ao próprio Estatuto do ACNUR, Weis dizia ser evidente que os
refugiados da Hungria deveriam ser considerados como abrangidos pelo mandato do
ACNUR se preenchessem as condições do Artigo 6ºB. Este artigo estende a competência
do ACNUR a “qualquer outra pessoa que estiver fora do país de que tem a nacionalidade ... porque receia ou receava com razão ser perseguida em virtude da sua raça,
religião, nacionalidade ou opiniões políticas e que não pode ... voltar ao país onde tinha
a sua residência habitual”. Weis garantia que parecia ser “contraditório” o facto do
Estatuto do ACNUR conter duas definições de refugiados abrangidos pela competência
do ACNUR nos Artigos 6ºA (ii) e 6ºB, que são quase idênticos, salvo a menção no Artigo
6ºA (ii) da data limite de 1 de Janeiro de 1951. Atribuía isso ao facto de nos órgãos
deliberativos que enquadraram a Convenção e o Estatuto existirem dois pontos de vista
contrários perante a definição do termo ‘refugiado’, nomeadamente, um universalista,
defendendo uma definição geral alargada, e um mais conservador, defendendo uma
definição com base na enumeração de categorias de refugiados. A definição acabou por
traduzir uma solução de compromisso redigida por um grupo de trabalho informal.
Finalmente, para Weis, a história destas deliberações mostrava claramente que aqueles que se tornassem refugiados em consequência de acontecimentos após 1 de Janeiro
de 1951 também seriam abrangidos pelo mandato do ACNUR. Além disso, o Alto
Comissário podia pedir parecer ao seu Comité Consultivo (que mais tarde seria o Comité
Executivo) ou levar a questão à Assembleia Geral. É neste sentido que apontam os Artigos
1º e 3º do Estatuto. No caso da Hungria, a Assembleia Geral da ONU estabeleceu claramente a competência do Alto Comissário no que respeita aos refugiados húngaros.23
Reinstalação dos refugiados húngaros
Os recursos do Fundo das Nações Unidas para Refugiados, que tinha sido criado em
1954, tornaram possível a operação de emergência do ACNUR a favor dos refugiados
32
Os primórdios
Caixa 1.5
Refugiados chineses em Hong Kong
Cidade na costa meridional da China,
sob a administração colonial britânica
desde 1842, Hong Kong tornou-se um
refúgio para os chineses em períodos
agitados na China continental. A sua
população foi aumentando devido às
pessoas que nela foram procurando
abrigo desde a Rebelião de Taiping nos
anos 50 do século passado, passando
depois pela Rebelião Boxer por volta de
1900, com a proclamação da República
da China em 1912 e a Guerra SinoJaponesa de 1937-45. Após a derrota
das forças britânicas pelos japoneses
em Dezembro de 1941, a população de
Hong Kong decresceu, passando de
mais de um milhão habitantes para
cerca de 650.000, mas a maior parte
dos que fugiram durante a ocupação
japonesa regressou com o restauração
do domínio britânico em 1945.
53% dos imigrantes que chegaram
entre 1945 e 1952. Este número subiu
para 385.000, contando com os “refugiados sur place” (aqueles que inicialmente tinham vindo por outras razões,
mas que não queriam regressar por
razões políticas). Este número ainda
seria mais elevado se fossem considerados todos os membros do agregado
familiar dos refugiados, como os cônjuges e as crianças nascidas em Hong
Kong. Contando com todas estas categorias, na altura da missão de
prospecção, os classificados como
“refugiados” representavam quase 30%
da população total de Hong Kong. Isto
parecia confirmar a ideia então generalizada na Europa e na América do Norte
de que praticamente todos os que
deixavam um país comunista eram
refugiados.
Em 1949-50, a este afluxo de retornados juntaram-se centenas de milhar de
chineses que fugiam assustados com o
avanço das forças comunistas. Muitos
destes recém-chegados regressaram
posteriormente às suas casas no continente, logo que a calma se restabeleceu. A população de Hong Kong
começou a estabilizar em torno de 2,25
milhões de habitantes em 1953-54.
Este aumento de população para mais
do triplo, em apenas oito anos, pesou
enormemente sobre as infra-estruturas
locais.
Dois importantes factores vinham complicar este quadro relativamente simples. Primeiro, os britânicos não
reconheciam a existência de uma situação de refugiados propriamente dita
em Hong Kong. A imensa maioria de
recém-chegados, independentemente
dos motivos para entrar na colónia,
tinha-se integrado e podia movimentar-se livremente. Menos de um terço
dos chefes de família entre os recémchegados estavam registados numa
organização de refugiados. Os britânicos consideravam que, embora houvesse problemas de sobrelotação e
carência de serviços básicos, a população chinesa não era discriminada. A
única excepção à sua inserção na comunidade verificava-se no campo de
Rennie Mill, habitado principalmente
por simpatizantes do Guomindang do
Norte da China, que se mantinham separados da maioria da população de
Hong Kong, natural de Cantão.
O representante da China na ONU
levantou a questão dos recém-chegados na Assembleia Geral da ONU em
1951 e em 1952. O Alto Comissário van
Heuven Goedhart reagiu enviando em
1954 uma “missão de prospecção”,
financiada pela Fundação Ford, para
investigar o caso dos refugiados chineses em Hong Kong. De acordo com o
relatório da missão, apresentado em
1954, nem todos os recém-chegados
poderiam ser considerados refugiados
com “receio fundado de perseguição”.1
Identificavam-se cerca de 285.000 pessoas que tinham ido para Hong Kong
por “razões políticas”, o equivalente a
O segundo factor era o curioso
estatuto jurídico dos recém-chegados
a Hong Kong. Embora centenas de milhar tenham abandonado a China por
razões políticas, nada os impedia,
teoricamente, de voltarem em segu-
rança à China, uma vez que poderiam ir
para Taiwan. Era aí que estava sediado
o governo da República da China (o
governo da República Popular da China
só foi reconhecido pelas Nações Unidas
em 1971). Por consequência, em rigor,
podia argumentar-se que os recémchegados a Hong Kong não eram refugiados, já que beneficiavam de
protecção e podiam regressar ao seu
país de origem. Na prática, contudo, o
número de recém-chegados da China
aceites pelos nacionalistas de Taiwan
era relativamente pequeno, embora a
missão de prospecção tenha revelado
que bem mais de metade dos recémchegados a Hong Kong tenha exprimido o desejo de se reinstalar em
Taiwan. Isto deveu-se talvez aos
receios de Taiwan de que os recémchegados tentassem subverter o governo nacionalista. Por fim, o regime
nacionalista de Taiwan admitiu mais
150.000 refugiados provenientes de
Hong Kong e de Macau entre 1949 e
1954.
Entretanto, o Reino Unido reconheceu
a República Popular da China em
Pequim e negociou directamente com o
seu governo, procurando controlar o
movimento de pessoas para Hong Kong
a partir da China continental. A atitude
do governo colonial e a curiosa situação das pessoas em Hong Kong que
pertenciam às duas Chinas de então,
impediram uma intervenção mais vigorosa por parte do ACNUR. Ainda
assim, em 1957, a Assembleia Geral
das Nações Unidas pediu ao ACNUR
para usar os seus “bons ofícios” e
recolher contribuições destinadas a
ajudar os refugiados em Hong Kong,
marcando assim uma primeira etapa na
acção do ACNUR a favor dos refugiados
fora do território europeu.2 Os fundos
angariados pelo ACNUR durante o Ano
Mundial do Refugiado, em 1959/60,
foram canalizados especificamente
para projectos de construção de
habitação empreendidos por organizações voluntárias em Kong Kong.
33
A Situação dos Refugiados no Mundo
que fugiram da repressão resultante da insurreição húngara. O Alto Comissário apelou
também a contribuições especiais, obtendo uma resposta generosa. Em Novembro de
1956, foi estabelecido um comité conjunto composto pelo ACNUR, o Comité
Intergovernamental para a Migração Europeia, o governo austríaco, o Programa Escapee
dos Estados Unidos e organizações voluntárias. No Inverno de 1956 e ao longo de
1957, estas últimas desempenharam um papel chave, prestando assistência no auxílio
e na reinstalação dos refugiados húngaros.
Desde o início, encorajava-se a reinstalação de refugiados em países terceiros
como solução principal para o problema. A Áustria, que inicialmente carregara um
enorme fardo, precisava de auxílio imediato. Também, em todo o mundo ocidental
se alteraram as opiniões quanto ao seguimento dos acontecimentos na Hungria,
existindo um sentimento de culpa por não se ter ajudado mais na luta do povo húngaro pela democracia.
Havia uma grande pressão popular sobre os governos ocidentais, numa dimensão
que talvez não seja fácil imaginar no final do século XX, para que concedessem entrada
imediata aos refugiados. Não tinha sido criado nenhum organismo central para registar os refugiados que chegavam à Áustria, devido à necessidade sentida de os reinstalar logo que possível. Por exemplo, num memorando de 20 de Novembro de
1956, a delegação do ACNUR em Viena informou o Alto Comissário que não era possível proceder às normais triagens e procedimentos de elegibilidade.24 Por esse
motivo, foi acordado com as autoridades austríacas que seria efectuada uma triagem
pormenorizada no país de reinstalação.
A velocidade com que os refugiados foram reinstalados pode aferir-se pelo
número de chegadas aos Estados Unidos. O primeiro grupo de 60 refugiados húngaros chegou de avião a 21 de Novembro de 1956.25 Foi adaptada para acomodação
temporária dos refugiados uma grande base militar, o Campo Kilmer, em New Jersey.
Nos finais de Fevereiro de 1957, passaram o Atlântico com a Força Aérea Norte-americana mais 9.000 refugiados e outros 7.000 chegaram em navios da Armada Norte-americana. Em meados de 1958, os Estados Unidos tinham reinstalado cerca de
38.000 refugiados húngaros. Contam-se ainda entre os principais países de reinstalação o Canadá (35.000), o Reino Unido (16.000), a República Federal Alemã
(15.000), a Austrália (13.000), a Suíça (11.500) e a França (10.000). Em número
mais reduzido, foram ainda reinstalados em locais diversos como o Chile, República
Dominicana, Islândia, Irlanda, Nova Caledónia, Paraguai e África do Sul.
Repatriamento para a Hungria
Mesmo no contexto de cerrada Guerra Fria, a reinstalação não era a única solução possível para os refugiados. Um certo número de refugiados, nomeadamente e em particular, os que se encontravam separados dos seus familiares mais próximos, optaram
pelo repatriamento. Esse repatriamento foi encorajado pelo governo húngaro. A partir de 1957, o regime de Kádár, instalado sob a égide da intervenção militar soviética,
começou a dar sinais prudentes de independência, tacitamente tolerados pela União
34
Os primórdios
Soviética. Neste sentido, houve uma diferença considerável entre o pós-1956 na
Hungria e o pós-1968 na Checoslováquia, que foi alvo de uma intervenção militar
soviética ainda mais repressiva.
Já nos finais de Novembro de 1956, o novo governo húngaro tinha concedido
uma amnistia limitada aos que fugiram em virtude da insurreição.26 Não obstante as
graves tensões políticas, o Alto Comissário Lindt estabeleceu contactos com o novo
governo. Tal como assinalou mais tarde um consultor jurídico: “A humanidade e coragem deste acto muito fizeram para quebrar o quase completo isolamento do seu
Comissariado em relação aos países socialistas, e facilitar o reagrupamento familiar e
o grande movimento de retorno que teve lugar nos meses e anos que se seguiram.”27
Lindt fez os possíveis para ver o ACNUR desempenhar um papel positivo no repatriamento voluntário dos refugiados. Com esse fim, foram estabelecidos procedimentos específicos, tanto na Áustria como na Jugoslávia. As missões de repatriamento
húngaras foram sempre acompanhadas por funcionários que falavam húngaro e os
refugiados que desejavam regressar foram acompanhados até à fronteira pelo pessoal
do ACNUR. Em Janeiro de 1958, quando Lindt visitou Budapeste a convite do governo
húngaro, encontrou-se com refugiados que tinham regressado a casa.28 Ao todo, cerca
de 18.200 refugiados voltaram à Hungria, representando mais de 9 por cento do total.
O problema dos menores não acompanhados
Uma questão particularmente difícil de resolver foi a levantada pelo problema dos
“menores não acompanhados”, referidos agora frequentemente como “crianças separadas”. Quando as crianças refugiadas fogem por sua conta, ou se separam das
famílias durante a fuga, tornam-se altamente vulneráveis. A determinação do estatuto
de refugiado dessas crianças, embora difícil, é importante, pois só quando o menor é
tido como refugiado é que fica abrangido pelo mandato do ACNUR.
Em Novembro de 1956, as autoridades húngaras solicitaram ao governo austríaco
o retorno das crianças não acompanhadas com menos de 18 anos. O assunto foi discutido numa reunião de emergência entre o ACNUR e o CICV, em Genebra, a 13 de
Dezembro. Foi acordado que seriam repatriadas as crianças com menos de 14 anos,
se o pai e a mãe estivessem na Hungria e pedissem o regresso da criança. Este limite
de idade foi mais tarde abandonado. Os pedidos tinham de ser feitos por escrito ao
CICV que, ao contrário do ACNUR, tinha representações tanto na Áustria como na
Hungria.
Desde o início, era previsível que surgissem problemas se os pais não fossem
encontrados, se apenas um deles estivesse vivo ou, até, se a criança fosse órfã. Nestes
casos, teria de ser tido em consideração o melhor interesse da criança. A autoridade
legal do país em causa era tida como competente nesta matéria.29 Subsistia, contudo,
um problema substancial, ou seja, quando os pais pedissem o regresso da criança para
a Hungria, mas a criança recusasse voltar. O ACNUR iria muitas vezes confrontar-se
com problemas semelhantes no que respeita a menores não acompanhados nos anos
futuros.
35
Ponte na divisão Leste-Oeste
Em Abril de 1961, Lindt comunicou ao Comité Executivo do ACNUR que os progressos realizados na resolução do problema húngaro significavam “que já não era
necessário tratar estes refugiados como um grupo especial”.30 A notoriedade internacional do ACNUR aumentou substancialmente em consequência da operação de ajuda
de emergência aos refugiados húngaros. Se existe um momento decisivo para o
ACNUR nos anos 50, esse momento foi sem dúvida a crise húngara.
Em particular, a atitude do governo norte-americano em relação ao ACNUR
mudou para melhor após 1956. Na verdade, o que era mais marcante na crise era a
submissão passiva dos Estados ocidentais ao que julgavam um fait accompli soviético.
Neste sentido, como em muitas das crises de grandes proporções em que o ACNUR
irá estar envolvido nos anos seguintes, os governos em Londres, Paris, Washington e
outros sentiam-se aliviados por “estar a ser feita alguma coisa”.
A crise de refugiados húngaros foi importante para o ACNUR porque, pela
primeira vez, lhe forem abertas as portas no mundo comunista, tanto na Jugoslávia
como na própria Hungria. Isto deve-se, em grande medida, à forma como política e
diplomaticamente o Alto Comissário Lindt geriu a crise. Uma das principais realizações de Lindt foi alargar a intervenção do ACNUR aos países do mundo comunista
sem se alienar do mundo ocidental em geral e dos Estados Unidos em particular. O
anterior cepticismo dos EUA em relação ao ACNUR cedeu, passando a reconhecer a
necessidade de um organismo internacional com responsabilidades específicas perante os refugiados.
A crise dos refugiados húngaros foi a primeira grande emergência em que o
ACNUR esteve envolvido. Realçou a necessidade de manter um sistema internacional
que se ocupasse das emergências de refugiados quando estas surgissem. Durante a
crise, o ACNUR desempenhou um papel essencial como órgão coordenador, fazendo
a ligação não só com os governos, mas também com organizações não governamentais e agências intergovernamentais. A crise demonstrou também, de forma significativamente clara, as ligações estreitas entre as diversas funções do ACNUR, ou seja,
proporcionar não só protecção internacional e assistência material, mas também
procurar soluções permanentes para os problemas dos refugiados.
O desempenho do ACNUR na situação de emergência húngara teve uma importante influência na passagem da resolução da Assembleia Geral do ano seguinte reconhecendo o problema dos refugiados como um problema global.31 Esta resolução
apontava para a criação de um fundo de emergência. É também estabelecido o Comité
Executivo do Alto Comissariado (EXCOM) para aprovar o programa de assistência
material do Alto Comissário e aconselhar o Alto Comissário, quando requerido, sobre
assuntos referentes às funções de protecção e assistência do Comissariado. Estas duas
alterações organizacionais consagravam o reconhecimento do papel permanente do
ACNUR, depois consolidado pelo Ano Mundial do Refugiado, em 1959/60. Entre
outras coisas, isso chamou a atenção não só para o trabalho do ACNUR na Europa,
mas também para o seu trabalho a favor dos refugiados chineses que fugiram para
Hong Kong [ver Caixa1.5] e dos refugiados argelinos em Marrocos e na Tunísia.
36
Os primórdios
O envolvimento do ACNUR com os refugiados chineses em Hong Kong representou um corte directo na evolução do trabalho da Organização. Foi a favor deste
grupo específico que, em Novembro de 1957, a Assembleia Geral da ONU apelou
pela primeira vez aos “bons ofícios” do ACNUR e autorizou-o a angariar fundos para
prestar assistência a um grupo de refugiados que se encontrava fora da Europa.32
Mesmo que o apoio necessário tenha sido, porventura, relativamente modesto, uma
vez que a economia de Hong Kong em plena expansão rapidamente absorveu os refugiados, o pedido constituiu um importante precedente em termos de participação do
ACNUR nos países em vias de desenvolvimento. Pela primeira vez, a Organização
estava a ser equipada para lidar com grandes crises de refugiados, não só na Europa,
mas para além desta.
37
A Situação dos Refugiados no Mundo
Notas
Capítulo 1
1 E. Hobsbawm,The Age of Extremes:The Short Twentieth Century,
Michael Joseph, Londres, 1994, pág. 50-2; L.W.Holborn,
Refugees:A Problem of our Time:The Work of the United Nations High
Commissioner for Refugees,1951-1972, 2 Vols, Methuen,
Scarecrow Pres, NJ, 1975, pág. 23; G.Loescher, Beyond
Charity:International Cooperation and the Global Refugee Crisis,
Oxford University Press, Oxford, 1993, pág. 46-54; M.R.
Marrus, The Unwanted:European Refugees in the Twentieth Century,
Oxford University Press, Oxford, 1985, pág. 296-345; J.G.
Stoessinger, The Refugee and the World Community, University of
Minnesota Press, Minneapolis, 1956, pág. 45-48.
2 Ibid.
3 Holborn, Refugees, pág. 24.
4 Marrus, The Unwanted, pág. 321.
5 Ver na generalidade, Loescher, Beyond Charity,pág 47-49.
6 Constituição da OIR,Artigo 2º (1) (a);Anexo,Artigo 1º C.
7 Resolução da AG da ONU (8/1), § (c)(ii), 12 de Fevereiro
de 1946.
8 B. Harrell-Bond,‘Repatriation: Under What Conditions is
it the Most Desirable Solution for Refugees? An Agenda for
Research’, African Studies Review, vol. 32, nº 1, 1988.
9 L.W.Holborn, The International Refugee Organization:A Specialized
Agency of the United Nations,Its History and Work 1946-1952,
Oxford Press University, Oxford, 1956, pág. 200;
Holborn, Refugees,pág. 40.
10 Resolução da AG da ONU 319 (IV), 3 de Dezembro de
1949.
11 G. Loescher,‘American Foreign Policy, International
Politics and the Early Development of UNHCR’, relatório
apresentado na conferência sobre "The Uprooted; Forced
Migration as an International Problem in the Pos-War
Era", Lund, 19-21 de Agosto de 1988, pág. 2-3.
12 G. J. L. Coles,‘Conflict and Humanitarian Action:An
Overview’, Genebra, 29 de Novembro de 1993, relatório
elaborado para a Divisão de Protecção Internacional do
ACNUR, pág. 8, 15-16.
13 Ibid.; M. Cutts,‘Politics and Humanitarianism’, Refugee
Survey Quarterly,vol. 17, nº 1, 1998.
14 Discurso do Príncipe Sadruddin Aga Khan,Alto
Comissário Adjunto, no Conselho Norueguês para os
Refugiados, 19 de Maio de 1965.
15 G. Goodwill-Gill, The Refugee in International Law, 2ª ed.,
Oxford University Press, Oxford, 1996, pág. 118.
16 American Council of Voluntary Agencies for Foreign
Service, "Report of Fact Finding Committee of the
Committee on Migration and Refugee Problems on the
Hungarian Refugee Program", Nova Iorque, 1958.
17 J. Furlow, "Revolution and Refugees:The Hungarian
Revolution of 1956", The Fletcher Forum of World Affaires,vol.
20, nº 2, pág. 107-108.
18 Relato oral da entrevista com A. Lindt, 4 de Fevereiro de
1998, F/HCR.36.1.
19 Ibid.
20 Memorando do Alto Comissário, "HC’s Report from
Yugoslavia, No. 1", 15 de Abril de 1953, 1/7/5 YUG,
Missões do AC, F/HCR 11.1.
21 Ver os números do Comité Executivo UNREF, "Report and
Further Recommendations of the Problem of Hungarian
Refugees", Doc. ONU A/AC. 79/73, 8 de Maio de 1957,
Quadros I e IV.
22 Memorando de R.A. Saager para o Alto Comissário, 19 de
Março de 1957, 1/7/5 YUG, Missões do AC, F/HCR 11.1.
23 Memorando de P.Weis para M. Pagès, "Eligibility of
Refugees from Hungary", 9 de Janeiro de 1957,
6/1/HUN, F/HCR 11.1.
24 Resoluções da AG da ONU 1006 (ES-11) e 1129 (XI) de 9
e 21 de Novembro de 1956.
25 Memorando da Delegação do ACNUR na Áustria para o
Alto Comissário, Genebra, "Eligibility Proceedings and
Screening of New Arrivals", 20 de Novembro de 1956,
22/1/AUS,F/HCR 11.1.
26 American Council of Voluntary Agencies, "Report on the
Hungarian Refugee Problem", Nova Iorque, 1958
27 Holborn, Refugees, pág. 395-397; Manchester Guardian, 29 de
Novembro de 1956.
28 Coles, "Approaching the Refugee Problem Today", pág. 7.
29 Entrevista de Lindt, ibid.; ver também G. J.L Coles,
"Solutions to the Problem of Refugees and the Protection
of Refugees", manuscrito não publicado, biblioteca do
Centro de Documentação sobre Refugiados,ACNUR.
30 P.Weis, "Notes Taken on Meeting Held at International
Notas
Committee of the Red Cross Concerning the Question of
Repatriation of Hungarian Refugee Children", 13 de
Dezembro de 1956, 6/9 HUN/AUS, F/HCR 11.1;
Memorando de P.Weis, para M. Pagès, "Status of
Hungarian Refugee Children", 10 de Janeiro de 1957,
6/9 HUN, ibid.Ver também A. Schnitzer, "Some Aspects of
the Legal Situation of Unaccompanied Hungarian
Children", parecer apresentado ao Alto Comissário das
Nações Unidas para os Refugiados, 8 de Maio de 1959,
ibid.
31 Programa do Comité Executivo do Alto Comissariado,
"Progress Report on Programme for New Hungarian
Refugees as of 31 December 1960", Doc. ONU
A/AC.96/112, 19 de Abril de 1961, pág. 1.
32 Resolução da AG 1166(XII), 26 de Novembro de 1957.
33 Resolução da AG 1167(XII), 26 de Novembro de 1957.
Caixa 1.1
1 C. Skran, "Profiles of the First Two High Commissioners",
Journal of Refugee Studies, vol. 1, nºs 3 e 4, 1988.
Caixa 1.5
1 O relatório foi posteriormente publicado como E.
Hambro, The Problem of Chinese Refugees in Hong Kong, Leyden,
1955.
2 Resolução 1167 (XII) da AG da ONU, 26 de Novembro de
1957.

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