baixe aqui o livro - Igreja Vineyard Central

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JOÃO COSTA
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MISSIONAL
MISSIONAL
uma jornada da devoção à missão
por João Costa
Publicado pela Interferência Editora
Primeira Edição: 2012
Editores: Sandro Wagner e Márcio de Souza
Revisão: Márcio de Souza
Capa e Diagramação: Sandro Wagner
ISBN: 978-85-65202-11-4
www.editorainterferencia.com
[email protected]
twitter.com/EdInterferencia
facebook.com/editorainterferencia
É permitida a reprodução de partes deste livro,
desde que citada a fonte e com autorização
escrita dos editores.
JOÃO COSTA
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“‘Entramos no Reino mediante nossa entrega, humildade e confiança
e disposição de começarmos a trabalhar nosso coração, a fim de nos
tomarmos o tipo de pessoa que Deus deseja que sejamos’ - James Bryan
Smith - Sempre vi no João essa sua entrega ao Senhor, seu ardor pela
leitura e a disposição de servir, porém com coração simples que é a
marca daqueles que optaram em levantarem a bandeira do Reino.
Esse livro é um material que ajudará aqueles que trazem dentro
de si a chama de plantar e viver igreja, principalmente no contexto
urbano que é o contexto vivenciado pelo autor na sua jornada como
plantador de igreja. Um livro que aguçara no leitor o desejo de buscar
um caminho que o leve a fazer parte de uma comunidade de gente
ávidas por um coração e caráter moldados pelo Jesus de Nazaré.”
Luciano Manga
Pastor da Igreja Vineyard Rio, líder de adoração e conferencista.
“Um imenso prazer recomendar a leitura do texto em questão. Isto
porque, em meio a uma pulverização do pensamento eclesial, torna-se mais do que necessário a leitura deste texto, para aqueles que
buscam compreender o devido papel da igreja na atualidade.”
André Esteves
Psicólogo e mestrando em Ciências da Religião (Mackenzie/SP).
“É com grande satisfação que recebo essa primeira obra produzida
pelo João Costa. A temática da natureza missionária da igreja é
sempre relevante e, no momento em que vivemos, extremamente
importante. Olhar para a igreja compreendendo-a como o povo de
Deus em missão no mundo é manter a centralidade do Evangelho na
vida e caminhada da Igreja. João não escreve a partir de conceitos
meramente teóricos, mas da sua vivência e prática como um verdadeiro pastor missional. Leia o livro, você não vai se arrepender….”
Ricardo Costa
Pastor da Comunidade Presbiteriana Vinhedo, diretor de
Treinamento da MPC do Brasil, mestre em Missiologia.
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MISSIONAL
“João Costa é um homem de Deus, que ama seu Senhor e que vive
para glorificar o nome daquele que o arregimentou. Recomendo o
livro “Missional, uma jornada da devoção a missão” a todos aqueles
que desejam viver e pregar o evangelho de forma contextual e missional. Tenho certeza que através da leitura desse material você será
ricamente abençoado, bem como desafiado a servir ao Senhor com
seus dons, talentos e ministério.”
Renato Vargens
Conferencista, escritor, plantador de igrejas e pastor da Igreja
Cristã da Aliança.
“Foi uma grata surpresa conhecer o João Costa há cinco anos atrás.
O mais surpreendente é perceber o quanto ele está crescendo e ampliando o seu mundo. A prova cabal de tal expressão é o seu livro.
De maneira ágil e dinâmica, João apresenta o cristianismo pra uma
geração midiática, pluralizada, líquida e secularizada. O seu texto é
um convite desafiador a todos aqueles que anseiam por uma teologia
missional bíblica e santa.”
Vladimir Oliveira Souza
Pastor senior da PIB do Cosmorama, professor de Teologia
Sistemática e escritor.
“Para os que buscam não somente um testemunho da afirmação do
poder do evangelho da cruz na cidade, mas também uma articulação bem elaborada de como fazê-lo, recomendo esse livro do pastor
João Costa, que é uma exposição bíblica, teológica e contemporânea
da tarefa missionária da igreja”.
Franklin Ferreira
Diretor e professor de Teologia Sistemática e História da Igreja
do Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos-SP.
JOÃO COSTA
agradecimentos
À minha amada esposa Mariana, pelo amor, apoio e
companhia na jornada.
Aos meus pais João e Regina, e irmã Neninha, por terem me
cercado de livros desde pequeno.
Aos pastores e missionários que foram e ainda são mentores
e amigos na minha jornada.
Aos amigos e editores Márcio e Sandro por acreditarem e
apoiarem à loucura da pregaçao.
À igreja local onde sirvo junto com meus irmãos, a
Comunidade Vineyard, que tem aceitado o desafio de ser
uma família de filhos semelhantes a Jesus.
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sumário
prefácio . . . . . . . . . . . . 9
apresentação . . . . . . . . . . . . 11
introdução . . . . . . . . . . . . 13
PRIMEIRA PARTE
Por que Somos Missionários? Porque Deus é cheio de Glória.
Capítulo 1 - Glória e Graça . . . . . . . . . . . . 21
Capítulo 2 - O Missionário Definitivo . . . . . . . . . . . . 31
Capítulo 3 - Esperança na Eternidade . . . . . . . . . . . . 41
SEGUNDA PARTE
Por que Somos Missionários? Porque Somos a Comunidade de Discípulos
Capítulo 4 - Senso de Pertencimento . . . . . . . . . . . . 51
Capítulo 5 - Reconhecimento e Revelação . . . . . . . . . . . . 61
Capítulo 6 - Comunicação Expressa . . . . . . . . . . . . 71
TERCEIRA PARTE
Por que Somos Missionários? Porque Somos a Cidade de Deus
Capítulo 7 - Proteção . . . . . . . . . . . . 81
Capítulo 8 - Santificados na Urbe . . . . . . . . . . . . 89
Capítulo 9 - Fronteiras da Contextualização . . . . . . . . . . . . 99
QUARTA PARTE
Por que Somos Missionários? Porque o Mundo Carece de Deus
Capítulo 10 - Expandindo a visão . . . . . . . . . . . . 111
Capítulo 11 - Perspectivas da Unidade . . . . . . . . . . . . 119
Capítulo 12 - Ágape . . . . . . . . . . . . 125
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prefácio
Nossa geração precisa de missionários urbanos comprometidos com
a relevância cultural. Porém, ser culturalmente relevante em detrimento
do conhecimento do evangelho e da profundidade teológica é pura
cosmética religiosa ou, dependendo do caso, arreligiosa.
Nossa geração precisa, então, de missionários urbanos comprometidos
com o conhecimento do evangelho e a profundidade teológica. Porém,
conhecer o evangelho e ter notório saber teológico em detrimento do
conhecimento da realidade que nos cerca é como esconder um farol
debaixo da cama.
Ou seja, não precisamos de missionários “ou-ou”. Por exemplo,
ou teólogo ou evangelista; ou conservador ou relevante. Essa lógica
cria uma falsa dicotomia. Precisamos de missionários “tanto-quanto”.
Essa era a lógica de Jesus. Ele era profundo do ponto de vista teológico
tanto quanto era atraente, relevante. As pessoas se aproximavam dele
para ouvi-lo (Lc 15.1).
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Esse é o ponto de partida das reflexões de João Costa em
Missional: uma jornada da devoção à missão. Acredito que este livro
será uma ferramenta muito útil para aqueles que acreditam que a
ortodoxia cristã não é um empecilho para a relevância do evangelho
hoje. Pelo contrario, no retorno às nossas origens, encontramos
um motor que nos empurra para frente, inclusive nos tornando, ao
contrário do que parece, pessoas a frente de nosso tempo. Parabéns
a Editora Interferência por acreditar nesse livro que não bajula
nossa cultura, mas recebe-a de forma mais verdadeira que a de um
mero beijo no rosto.
Jonas Madureira
teólogo e doutorando em Filosofia
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apresentação
O Conceito de ser Missional não tem nada de novo. Missional
nada mais é do que um adjetivo para a palavra Missão. Então qual o
sentido deste livro?
Aqueles que me conhecem sabem que eu espero ver igrejas mais
centralizadas no Evangelho. Igrejas plantadas com o objetivo de
exaltar a Jesus. Apesar dos vários avivamentos ao longo dos últimos
trinta anos, o Brasil ainda não experimentou muitas de transformações
culturais e sociais como real resultado de milhares de novas igrejas e
milhões de novos cristãos. Temos ainda os mesmos problemas sociais e, em alguns casos, eles são ainda piores: a pobreza, corrupção
e violência ainda existem apesar de milhões de novos evangélicos.
Isto nos faz pensar na seguinte questão...
Alguém poderia pensar que o Evangelho ao entrar na cultura resultaria na transformação da sociedade. Eu, certamente, creio que sim.
Infelizmente, aqui no Brasil, precisamos perguntar sobre que tipo de
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Evangelho está sendo pregado? Ele é saudável? Ele tem exaltado a Cristo?
Este Evangelho tem sido fiel ao conceito de Missão? As igrejas que vem
sendo plantadas neste país têm pregado fielmente todo o Evangelho?
João Costa nos coloca frente a frente a esta discussão extremamente
importante. Não é simplesmente uma discussão sobre como devemos ir
para a missão ou ao discipulado. É uma discussão sobre como devemos
ser fiéis na contextualização do Evangelho. E isto é um convite para
nos engajar em nossa missão de proclamar o Evangelho de Cristo da
melhor forma possível. Isso me faz lembrar o autor e missionário Leslie
Newbingen, que destaca a crise vivida nos dias de hoje na igreja européia:
ele afirma que isto é o resultado do abandono da missão do Evangelho.
Depois de anos de estrada, em meio à igreja brasileira, posso olhar
novamente esta questão e refletir sobre como temos perdido uma
geração inteira de evangélicos cheios de potencial. E isto não é porque
haja falta de igrejas suficientes ou evangelismo. Isto tem acontecido
porque o Evangelho pregado por muitas destas igrejas simplesmente
não é o Evangelho de Cristo. É um evangelho desprovido de poder,
porque se limita a buscar Deus simplesmente pelo que ele pode nos
dar, em detrimento da busca pelo que Ele realmente é.
Eu gostaria de encorajá-lo a ler este livro de João Costa. Faça isso de
mente aberta sobre como podemos nos envolver com a cultura sendo
radicalmente firmado em Cristo. João tem sido um bom exemplo nisto em
minha vida. O que ele relata neste livro é fruto de sua experiência pessoal.
Você pode não concordar com todas reflexões e conceitos expostos,
mas lhe asseguro que sempre é tempo de reconsiderar nossa Missão à
luz da multifacetada beleza desta jóia que nós chamamos de Evangelho.
Jay Bauman
Restore Brasil
Atos 29 Brasil
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introdução
“Eu fui missionário de
um mundo pagão…” *
Rio de Janeiro, final dos anos 90. Vivendo as pulsações da transição
de não apenas uma década, mas do consciente coletivo da virada de
um novo milênio que se aproximava, eu era um jovem envolvido com
todas as ebulições dessa época cinzenta onde os sonhos de liberdade
das décadas passadas se diluíram com as privatizações das estatais.
Era um tempo onde a ironia começou a se tornar o grande escape de
existência como forma de se relacionar com o meio ambiente, com
a política, com a economia e sobretudo com as pessoas.
Como filho da classe operária, afro-descendente e morador da Baixada Fluminense, recebi todo “pedigree” necessário para me tornar o
arquétipo de dois estigmas da sociedade carioca das últimas décadas:
o cara que “só quer ser feliz” embalado pelos “bigbeats” dos bailes
funk, ou o “rebelde com causa” de inclinação política esquerdista.
A segunda opção era o que eu buscava, pois eu era constantemente
movido por ver uma transformação social acontecendo. Vim de
*Referência a música Carta aos Missionários, da banda Uns e Outros - single de sucesso nas
rádios FM brasileiras nos anos 1980.
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uma família tradicionalmente católica, mas naquela altura, todos os
sacramentos e tradições para mim já não tinham mais valor, e eu me
identificava com uma postura agnóstica, alimentada pelos discos de
punk/hardcore, pelos fanzines e por obras de Eduardo Galeano, Karl
Marx, Noam Chomsky, entre outros.
Em meio a tudo isso, conheci um grupo de missionários. Alguns
se ocupavam exclusivamente daquela tarefa, trabalhando nas bases de
JOCUM espalhadas pelas favelas Rio de Janeiro. Outros eram como eu,
jovens empenhados em empregos para dar suporte ao sonho de concluir
seus estudos. O que diferenciava estes jovens de mim, era a causa que os
movia. Lembro-me de um que me falou que seu desejo de se tornar um
profissional na área de gestão de empresas era ser um missionário, porque
ele tinha entendido que a sua própria vida e seus sonhos se construíam
sob um plano maior: o propósito eterno de Deus. Através do convívio
com aquele grupo, reconheci que minha vida não era tão “minha” assim
(por mais que tivesse formado toda uma muralha de independência ética,
e a repulsa por quase todas as formas de governo vigentes) e que existia
um propósito bem maior, inclusivo e genuinamente transformador.
Em 30 de agosto de 1998, pela primeira vez em minha vida, fiz uma
oração consciente, guiada e apaixonada por uma leitura do Evangelho
de João, no Novo Testamento que ganhei de presente de um dos
missionários que conheci no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.
Naquela noite, me arrependi dos meus pecados e nasci de novo.
Por que somos missionários?
O objetivo deste livro não é contar minha história, até mesmo
porque ela ainda esta sendo construída, mas essa nota biográfica remonta ao início da minha caminhada com o Senhor e de como o veio
missionário sempre esteve presente na expressão coletiva da minha fé.
Durante nove meses, aquela base foi a minha congregação local e todo
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o dialeto missional tomou conta da minha vida. Uma coisa que aprendi
desde aqueles primeiros dias na jornada cristã, e hoje reverbera na vida
da comunidade de fé onde sirvo, é que todos somos missionários! Se
apropriando da declaração creditada ao célebre pregador CH Spurgeon,
“todo cristão é um missionário ou é um impostor”, vamos nesta introdução
observar alguns aspectos que dão muito sentido a tal frase.
O grande século das missões, o século XlX, deixou marcas que
definitivamente transformaram o mundo, a ponto de hoje termos um
segmento cultural onde este livro será lido, apenas para citar um exemplo. Podemos dizer que no Brasil, os que receberam a mensagem do
Evangelho propagada séculos atrás foram ao longo dos anos criando
seu gueto, e esse gueto foi se particionando em tribos, à medida que
as denominações foram surgindo no fluxo de divergências históricas,
doutrinárias e até mesmo culturais. A realidade contemporânea nos
mostra o crescimento vertiginoso de estatísticas que apontam pra
popularidade do cristianismo evangélico.
Não temos muito o que comemorar com isso se pesarmos na
balança o fato de que muitas pessoas são na verdade apenas dados
do IBGE, do que de fato discípulos de Jesus. O cenário fica mais
dramático ao vermos o fenômeno de constante evasão de pessoas
da fé, ou na verdade, a constatação de que a conversão que tiveram
foi apenas à denominação da qual fazia parte, ou a figura de um líder
carismático. Com isso, comunidades de fé que não se entregam ao
populismo da teologia da prosperidade ou a rigidez ascética de algumas igrejas históricas, buscam em novas configurações a relevância
dos “homens que tem causado alvoroço no mundo”.
A propósito, em nome desta relevância muito se tem feito, falado, escrito e cantado. E neste ciclo de ativismo frequente e desejoso
de cumprir a grande comissão, temos transformado sermões em
palestras, colocado em primeiro lugar as ações sociais como salvo-conduto da nossa consciência e orgulho manchado pelos abusos e
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escândalos, quase que predominantes no circuito neopentecostal.
Temos vergonha de cantar até mesmo versos da Bíblia ou simples
canções de louvor e adoração para o Senhor (que não apenas falam
sobre Ele, mas para Ele), por querer mostrar o quão antenados com
a cultura estamos e o quanto nossa poesia, que fala muitas vezes de
um Deus que não conhecemos de fato, está afiada.
Talvez você encontre essas características em grupos que se identificam como missionais. Para coroar esta condição, o que talvez hoje
se entenda como missional celebra por vezes a cultura em detrimento
à sã doutrina, à inerência bíblica e em última e mais grave instância, à
soberania divina. No afã de não querer soar religioso, os cristãos deste
tempo por vezes acreditam que para ser missionários eles não devem ser
“fundamentalistas” (será que a bíblia é divinamente revelada?) como os
cristãos históricos e nem “alienígenas culturais” (precisamos orar tanto?
o Espírito Santo me torna alguém estranho?) como pentecostais. Este
relativismo enclausura esta geração no estilo de vida morno de Laodicéia.
O cinismo é a nova indulgência paga para consequentemente se
viver uma religião incrédula, por mais incompatível que isso venha parecer. O missiólogo anglicano Leslie Newbigin, falava do movimento
triangular do Evangelho onde o diálogo entre Igreja + Evangelho +
Cultura era a forma mais simples de traduzirmos a prática para a vida
dos discípulos/missionários, a “missio dei”, a missão de Deus. Nessa
equação, nenhum elemento pode ficar de fora. Se olharmos para a
primeira metade do século passado, quase de forma predominante,
a Igreja e o Evangelho tinham um diálogo tão forte que a cultura
ficava de fora: Igreja + Evangelho - Cultura = Fundamentalismo. Da
década de 60 até o limiar do século passado, a busca pelas verdades
das Escrituras e a conversação com a arte, a política, e a sociedade
em geral minimizaram a força da Igreja por estar tão empedernida
em seus aspectos histórico/institucionais, o que foi o nascedouro
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para novas configurações que formavam comunidades de fé, mas não
necessariamente grupos que se identificavam como Igreja: Evangelho
+ Cultura - Igreja = Para-eclesiásticos. Por último, este tem sido o
tempo da busca desenfreada pela relevância, onde muitos cristãos
apontam Bono Vox como o maior pregador do Evangelho da grande
aldeia global que necessita de co-existência, e onde os absolutos radicais de um livro judaico-cristão, precisam ceder para outras verdades
não-absolutas: Cultura + Igreja - Evangelho = Liberalismo.1
É neste cenário que precisamos discernir e perceber onde nasce o
nosso chamado, para que o nosso envio como missionários não seja
uma declaração baseada na nossa imunda justiça própria. Quando
nos voltamos para a história da Igreja e vemos os movimentos missionários, não por acaso todos eles são marcados de uma gênese na
devoção, na busca pelo Senhor. Ao observar o primeiro capítulo de
Atos, vemos que a expansão territorial (Jerusalém - Judéia/Samaria
- confins da terra) teve como nascedouro um ambiente de espera
e busca orientado por Jesus. Na primeira parte, a glória de Deus é
exposta como a razão primordial e matricial de sermos missionários.
Na segunda parte, observaremos as nuances da vida comunitária. Na
terceira parte, nosso posicionamento como a cidade de Deus. E na
quarta parte, nosso envio a um mundo que carece de amor, pois carece de
Deus. Teremos como fio condutor desta perspectiva MISSIONAL o
texto de João 17, a oração sacerdotal, onde temos Jesus como protagonista da narrativa, sendo umas das mais expressivas demonstrações
do que é ser caminho, verdade e vida. Que possamos ser chamados ao
Sacerdócio de Todos os Santos, ao percorrer essa jornada devocional/
missional proposta pelo Sumo Sacerdote, Jesus Cristo.
Conceito adaptado por: Mark Driscoll - Reformissão: como levar a mensagem sem comprometer o conteúdo - pg 20-22 - 2009 - Editora Tempo de Colheita
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PRIMEIRA PARTE
POR QUE SOMOS MISSIONÁRIOS?
Porque Deus é cheio de Glória.
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capítulo 1
Glória e Graça
“Quando colocarmos as nossas mãos no arado, sem olhar para trás, nos lembraremos:
existimos para a glória de Deus, pois Deus é maior do que nós.”
Ronaldo Lidório
“Depois de falar essas coisas, Jesus levantou os olhos ao céu e disse: Pai, chegou a hora.
Glorifica teu Filho, para que também o Filho te glorifique, assim como lhe deste autoridade sobre toda a humanidade, para que conceda a vida eterna a todos os que lhe deste.”
João 17.1-2
O texto tradicionalmente conhecido como “a oração sacerdotal”
encontrado no capítulo 17 do Evangelho segundo João, é uma das
passagens onde mais percebemos a supremacia de Deus através da
trindade. Ao longo dos evangelhos sabemos que Jesus por vezes se
dirige em oração ao Deus Pai, mas em nenhuma outra parte, as pessoas
de Filho e Pai se tornam tão evidentes como nesta. O texto não está
isolado, pois inicia fazendo uma conexão com o contundente ensino que
Jesus discorre entre os capítulos 14 e 16, só que o nível de intimidade
que se estabelece agora restringe os personagens e nos mostra o tom
de despedida que uma oração como essa nos traz. D.A. Carson ressalta:
“O que é singular nesta oração não depende nem de sua forma nem de suas
associações literárias, e sim daquele que a faz e do momento em que é realizada.
Ele é o Filho de Deus encarnado, e ele está voltando para o seu Pai pelo caminho
de uma morte excessivamente vergonhosa e dolorosa. Ele ora para que o curso no
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qual entrou traga glória para o seu Pai, e que seus seguidores, em consequência
de sua morte e exaltação, sejam preservados do mal pelo privilégio sem preço de
ver a glória de Jesus, que imita completamente, em seu próprio relacionamento, a
reciprocidade de amor manifestada pelo Pai e pelo Filho.” 2
A base da oração de Jesus é a Glória de Deus, e nunca é demais
lembrar da primeira declaração da Confissão de Westminster: “O fim
principal do homem é glorificar a Deus e desfrutá-lo para sempre”. O propósito
de Deus gira em torno de sua própria glória e uma vez que somos
alcançados por este propósito, nossa vida ganha um sentido mais
amplo e bem maior do que as limitadas raias dos nossos anseios. É
fato que a cristandade tem sua missão comprometida a medida que
sucumbe numa espiritualidade frívola, que não consegue contemplar o Sagrado e consequentemente responder em amor a esse “fim
principal” ao qual somos destinados. Uma das maiores ciladas em que
caímos, é o fato de nos apegarmos ao padrão de alta performance,
do muito fazer com excelência, como selo de aprovação divina dos
nossos atos. Precisamos nos despertar como igreja para a seguinte
realidade: a obra missionária não é a prioridade da igreja, pois o que
é prioridade para Deus é a sua glória.
Por vezes nossas campanhas missionárias transculturais são mais
uma forma de pedirmos desculpas pelas atrocidades cometidas pelos
nossos antepassados a povos desfavorecidos economicamente, violentados em todos os sentidos. Quando falarmos em termos urbanos, o
quadro pode se tornar mais patético, porque comunidades de fé têm
iniciativas de assistência social ou até mesmo instituem ONG’s com o
pressuposto missional, mais para garantir uma imagem polida diante
da opinião pública do que para de fato levar o Evangelho todo para o
homem todo, conforme aprendemos com os irmãos no Pacto de Lau2
D. A. Carson - O Comentário de João - pg 551,552 - 2007 - Shedd Publicações
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sanne. A glória de Deus, que satisfaz o Filho, deve, consequentemente
nos satisfazer também.
A condição de constante insatisfação que o ser humano tem, ganha
contornos mais extremos e impactantes num tempo onde somos
cercados de coisas e penduricalhos que, aparentemente, suprem as
necessidades que temos, e até as que não temos. Como diz o personagem Tyler Durden, um símbolo da conturbada década de 1990, no
livro que virou filme, Fight Club: “trabalhamos em empregos que odiamos
para comprar porcarias que não precisamos.”
O “status quo” é apenas um nome sofisticado que damos para a nossa
própria glória, e precisamos de humildade para reconhecer que temos
buscado constantemente esta glória, até mesmo na nossa missão. Os
recursos e resultados, as mídias e ferramentas, o reconhecimento e as
honrarias ainda falam muito alto quando pensamos num ministério
missional. Estes ídolos têm impedido a nós, como aqueles que nasceram
de novo, de contemplar e reconhecer a glória de Deus. Nossa linguagem
missional contemporânea tem encontrado influencia em Nimrod e sua
uniforme linguagem de Babel, que ergue uma torre auto-afirmativa.
A medida que os ídolos são derrubados, a nossa linguagem missional
incorpora a linguagem de Pentecostes, que nos coloca no nosso lugar,
onde somos revestidos do Espírito Santo, e colocados debaixo do infinito teto da soberania divina.A linguagem missional, identificada com
a linguagem de Pentecostes, é o canal de comunhão que encontramos,
primordialmente, na relação pré-existente na Trindade. Não há divisão,
ruídos e confusão, pois a comunicação uníssona nessa relação é a glória
de Deus. Graciosamente somos chamados a falar e literalmente encarnar
esta linguagem, como ensina John Owen:
“Ela se refere à graça. Em todo lugar, isso é atribuído a ele por meio da
eminência. “O verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e verdade” (João 1.14): graça na verdade e na substância. Tudo o que aconteceu foi
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tipológico e representativo. Na verdade e na substância, acontece somente por
meio de Jesus Cristo. “A graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo”
(v.17); “todos nós temos recebido da sua plenitude e graça sobre graça” (v.16),
isto é, temos comunhão com ele na graça, recebemos dele toda forma de graça
que existe. E assim temos comunhão com ele.” 3
O nosso exemplo missional precisa ser estabelecido pelo prisma
da comunhão com Deus, que soberanamente, é Deus em comunhão,
entre Pai, Filho e Espírito Santo.
Se inicialmente como discípulos, que são sacerdotes da nova aliança
e vitalmente missionários, consequentemente seremos levados a uma
vida onde essa comunhão é compartilhada com aqueles que por causa
da ignorância causada pelo pecado, estão de fora desta comunhão. Os
equívocos missionais atuais estão quando tentamos obsessivamente
incluir as pessoas, sem conduzi-las pela porta, que é Jesus. Estes equívocos são atalhos culturais, janelas de possibilidades que insistimos em
pular, por diversas razões, que por muitas vezes não termos a coragem,
ousadia e loucura necessária para encarnar a explícita mensagem do
Evangelho de Jesus, nomeamos de amor. Em nome desse amor de
silício dos dias de hoje, estamos nos distanciando daquele que é Amor
de fato, nosso Senhor. Estes equívocos missionais são resultados de
obras que nascem em corações e mentes bem intencionados. Porém,
precisamos de um exemplo que nasce no lugar certo. O lugar onde
Jesus estava no momento dessa oração era crítico, mas era um lugar de
devoção. E é justamente, entre o perigo e a oportunidade, que disciplinas espirituais como a oração, o jejum, o mergulho na Escritura, nos
conduzirão a percepção de atos que glorifiquem a Deus, da primeira à
última instância. Pela graça, nós ganhamos um destino, o de ser semelhantes a Jesus, e nesta semelhança precisamos buscar todas as esferas
e matizes dessa caminhada. Ao olhar para o menino Jesus, Simeão viu
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John Owen - Comunhão Com o Deus Trino - pg 109 - 2010 - Editora Cultura Cristã
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ali alguém que ia causar a queda e o soerguimento de muitos, além de
ser um sinal de contradição.
Consequentemente, nós como missionários que glorificam a Deus,
sejamos sinais de contradição na presente era. Glorificar alguém
que não seja você mesmo é talvez, o maior sinal de contradição que
podemos expressar. R.C. Sproul declara:
“Jesus não ora só pela restauração de sua própria glória, ele ora pedindo que
aqueles que são dele possam compartilhar na presença da sua glória. Jesus não
orou só pelos discípulos que andaram com Ele na terra, mas também orou
por nós e por todos aqueles que o recebem sinceramente através do testemunho
dos apóstolos.” 4
A presença da glória fez com que Jesus experimentasse a tentação
no deserto em seu período de solitude, jejum e oração e dinamicamente fosse lançado em seguida na efervescência da missão urbana.
A proposta de uma espiritualidade interior exterioriza a missio dei, da
qual somos parte efetiva. A narrativa de Mateus 4 é um exemplo da
devoção que alimenta, que empodera a missão. Jesus, mesmo sendo Deus,
não usurpou ser igual a Deus, a medida que entendia que dependia
dessa busca pela glória de Deus se disciplinando espiritualmente para
o cumprimento do seu chamado. Esse é um dos grandes aspectos da
encarnação de Jesus, ao qual nós, com nossas limitações humanas,
devemos nos apegar.
Por mais que a figura do Jesus encarnado/humilhado desperte
em nós uma identificação imediata, é imprescindível a exaltação de
Cristo em nossa perspectiva missional. Alguns dos sofismas missionais
que mais contaminam uma efetiva prática dos missionários que os
cristãos de hoje deveriam ser, estão diametralmente relacionados a
uma cristologia extremamente humanista, tendenciosa e domestica4
R.C. Sproul - A Glória de Cristo - 2ed - pg 136 - 2004 - Editora Cultura Cristã
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da. A inclinação quase que predominante é de minimizarem Jesus à
posição de um mestre de sabedoria, seja como um revolucionário ou
um pacifista. Ao olharmos a história, o legado de figuras históricas
como Gandhi, Martin Luther King Jr., Che Guevara, Madre Teresa
de Calcutá e tantos outros podemos ver o altruísmo do ser humano
maximizado, mas precisamos da mesma visão que Isaías e João em
Patmos tiveram: a de Jesus exaltado como Deus.
Se nossos olhos naturais pudessem ver Deus hoje, o ícone de cabelos e barbas longas (que sempre quando se vê alguém na rua com
esse visual desperta na massa o brado: “lá vai o Jesus”) daria lugar a
uma imagem que nem os mais sofisticados estúdios cinematográficos
poderiam conceber. Tente imaginar as 45 passagens do livro de Apocalipse que mostram Jesus no seu trono cheio de gloria. A instabilidade, ou até mesmo ausência de paixão, em nossa perspectiva missional
tem origem na falta de uma visão cheia de fé, de um Deus cheio de
Glória. Sim, Jesus é Deus. Amparamos-nos na máxima cunhada no
Concílio de Calcedônia, no ano de 451 d.C. que reconhece que Jesus
foi completamente homem e completamente Deus.
Também sabemos que contemplaremos a vitória de Jesus como o
Leão da Tribo de Judá, porque fomos lavados no sangue da morte de
Jesus, como Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. O Cordeiro
é a graciosa manifestação de Deus que nos capacita a vislumbrar a sua
Glória. Será que nossos avanços missionários ainda estão atravancados
porque não temos conseguido vislumbrar essa gloria? Até que ponto
nossa visão esta tão restrita ao aqui/agora? Por que as pessoas não se
achegam a Deus através da nossa mensagem? A resposta está na falta
de autoridade de uma mensagem que procede apenas do que está no
nosso imaginário e/ou intelecto a respeito de Jesus.
Na sua oração ao Pai Ele declara que recebeu autoridade sobre
toda a humanidade. Mark Driscoll acertadamente diz que:
JOÃO COSTA
27
“A supremacia de Jesus Cristo como nosso Deus soberano e exaltado é a nossa
autoridade para a missão(…). Nós obtemos a nossa autoridade para pregar o
Evangelho a todas as pessoas, em todas as épocas e em todos os lugares da gloriosa
exaltação do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo.” 5
Nesta jornada, que tem como ponto de partida a devoção, devemos conhecer em todas as esferas o Deus que cremos. Em uma
aula em nossa comunidade, o professor Juan de Paula afirmou:
“Qual o problema de não crer corretamente para a devoção? Se focarmos apenas
na divindade de Jesus, nossa devoção será farisaica, legalista, moralista e religiosa
não levando em conta que Jesus chorou e teve compaixão das pessoas. Se focarmos
apenas na humanidade de Jesus, nossa devoção será carnal, humanista e libertina
sem considerar que Deus é Santo e chama os salvos para crescerem em santidade
(Levíticos 11:44).” 6
O mundo como o conhecemos, sobretudo no ocidente, nos grandes centros urbanos tem esvaziado de significados e as pessoas tem se
fragmentado de tal forma, que a redenção graciosa que ansiamos ver
no mundo que geme pela manifestação dos filhos de Deus, necessita
ser anunciada. Porém, como profetizou Habacuque, é o conhecimento da glória divina que encherá a terra (Hc 2:14-15). Nenhuma
outra mensagem poderá preencher o grande abismo existencial que
progressivamente se agravará, pelo esfriamento do amor de muitos
em função do multiplicar da iniquidade (Mateus 24).
Por vezes, esquecemos que a alarmante profecia de Jesus abrange
também os crentes, a igreja, realidade onde o amor não deveria se
extinguir. O multiplicar da iniquidade torna-se visível pela constante
e exponencial fragmentação do Corpo de Cristo em instituições que
John Piper e Justin Taylor (editors) - The Supremacy of Christ in a Postmodern World - pg
132 - 2007 - Crosswsay Books
5
6
Apostila Introdução à Cristologia- pg. 6 - acesse em: http://migre.me/99FkR
28
MISSIONAL
comunicam suas verdades, seus pressupostos, seus pontos de vista e
fatalmente, sua (passageira) glória.
O especialista em pesquisas de opinião, Mark J. Penn, ao fazer
uma radiografia da sociedade do século 21, escreveu:
“Quando os filósofos gregos tentaram explicar pela primeira vez a mudança
natural do mundo ficaram confusos. Até que Demócrito, em cerca de 460
a.C., propôs a teoria de que o mundo era feito de átomos, pequenas, mas
distintas partículas cuja combinação definia o estado e a natureza da matéria. Muitos discordaram, até Aristóteles foi seu principal crítico. Com o
tempo, contudo, demonstrou-se que Demócrito tinha razão. Na verdade,
até mesmo a massa mais sólida é feita de bilhões de átomos invisíveis que
determinam sua natureza. Como qualquer aluno do ensino médio sabe,
apenas uma ligeira mudança nessa combinação de átomos causará efeitos
profundos na resistência do aço, no brilho dos diamantes ou na radioatividade
do urânio enriquecido. Essa analogia reflete a teoria subjacente das micro
tendências. A nossa cultura hoje é cada vez mais produto do que identifico
como átomos sociais, pequenas tendências que refletem hábitos e escolhas que
estão mudando. Hoje, a maioria das pessoas faz críticas semelhantes às
de Aristóteles, uma visão holística dos eventos a partir do próprio ponto de
vista. Entretanto, diferentemente de Aristóteles, elas muitas vezes alegam ter
visto a floresta sem realmente terem examinado as árvores. Especialmente
nesse mundo atual acelerado, as pessoas estão cada vez mais fazendo seus
juízos com base na própria visão de mundo, em vez de construir uma opinião
baseada nos fatos, o que consideram difíceis de determinar. A verdade nua
e crua é que, na maior parte das vezes, não é possível identificar padrões
concretos na vida das pessoas, a não ser por meio de estatísticas. Ainda
assim, afirmamos que nosso entendimento se baseia em nossos próprios pontos
de vista limitados. A tendência, então, é que a sabedoria convencional seja
ao mesmo tempo muito dogmática e muito equivocada.” 7
7
Mark J. Penn - Microtendências - pg 503,504 - 2008 - Editora Best Seller
JOÃO COSTA
29
Ao reconhecer a glória de Deus, como aquele que detém no poder
da sua Palavra a existência de cada átomo do universo, cada ‘átomo
social’ [na linguagem de Penn] está sujeito a este mesmo poder soberano. A extrema fragmentação na cosmovisão do homem conhecido
como pós-moderno, comprometida quase que predominantemente
com as percepções holísticas da vida, mostra a necessidade do
conhecimento daquele que não é medido por estatísticas, e que é
pleno em si mesmo. Se como micro tendenciosos, humanamente
corremos para cada vez mais ter a nossa baia de atuação determinada pelo macro, graciosamente temos um grande Deus, que mesmo
cheio de glória volta seus olhos para nós e é soberano sobre cada
pequeno detalhe de nossas particionadas vidas. Está é a relevância
da doutrina da trindade, a mensagem da unidade entre Pai, Filho
e Espírito Santo.
Newbigin destacou o peso do entendimento da Trindade na prática
missional contemporânea:
“Um verdadeiro entendimento das questões que Deus levanta para nós em
nosso tempo, e uma autêntica reafirmação do significado da tarefa missionária
se reclinarão, assim como o Novo Testamento se reclina, na revelação de Deus
como Pai, Filho e Espírito Santo” 8
A graça se manifesta quando do meio da Trindade, da plenitude
da eternidade, Jesus esvazia-se da sua glória torna-se homem, para
que a humanidade possa ser cheia de todo significado que ela precisa:
viver para a glória de Deus.
Usando a abordagem de Dietrich Bonhoffer, precisamos combater o barateamento da graça de Deus, configurado pela relativização da
mensagem do Evangelho em nome de uma relevância superficial que é
Leslie Newbigin - Trinitarian Doctrine for Today’s Mission - pg 36 - 2006 - Wipf and Stock
Publishers
8
30
MISSIONAL
impressa no vocabulário, na vestimenta, e na cultura em geral. A graça
que nos alcançou alcançará todos aqueles que o Pai na eternidade, já
deu a Jesus. E a nossa missão de proclamar tem como fundamento
fazer tudo para a glória Dele. Eis uma boa forma de respondermos
a Graça: Vivendo hoje a vida eterna, para a sua glória.
JOÃO COSTA
31
capítulo 2
O Missionário Definitivo
“Deus poderia muito bem requerer uma obediência “cega”, mas Ele nos chama a uma
obediência baseada em relacionamento, entendimento e discernimento.”
Beth Wood
“E a vida eterna é esta: que conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo,
que enviaste. Eu te glorifiquei na terra, completando a obra da qual me encarregaste.”
João 17.3-4
A autoridade de Jesus é um sinal de aparente contradição num
mundo onde os que se estabelecem como autoridades isolam-se numa
camada de poder restrito e auto-favorecedor, o que os torna, muitas
vezes autoridades aparentes. Encontramos na autoridade que Jesus
estabelece sobre toda a humanidade, a infinita misericórdia de Deus
se manifestando para que a vida eterna se torne acessível. Autoridades de hoje são mais celebridades inalcançáveis do que qualquer
outra coisa. A autoridade gloriosa do nosso Deus foi manifesta no
caminho de relacionamento que através de Jesus foi restabelecido
para nós.Essa falência das autoridades, ou a mutação da mesma em
autoritarismo, torna-se o palco para a ausência de significado das
nossas mais básicas vocações, em especial a de sermos missionários.
Amamos o testemunho de homens como Abraham Kuyper e William
Wilberforce, por sua preeminência social, cultural e política. Mas vale
lembrar que eles viveram num período onde a mentalidade da Europa
32
MISSIONAL
estava sob a égide do cristianismo. Hoje, é um período onde a verdade
(uma premissa básica do cristianismo) já não representa uma base
de comportamento viável. As palavras do discípulo de Nietzsche, o
filósofo francês Foucault, influenciam extremamente essa geração:
“A verdade é algo deste mundo. É produzida apenas pelas múltiplas formas de
restrição, que incluem os efeitos regulares de poder”. 9
Neste tempo de ceticismo acentuado pela liquefação da verdade e a
ausência de significados, precisamos de um exemplo atemporal para nossa
missão. O pesquisador David Wells, sabiamente afirmou que:
“Crer em Cristo é entrar no reino e tornar-se uma parte do século futuro. Paulo,
no entanto, expande esse pensamento muito além do campo pessoal e eclesiástico.
Se Cristo é o Senhor ao qual todo crente serve, a Cabeça à qual todo o corpo da
Igreja deve responder, também é o Criador de quem tudo deriva a sua existência, o centro sem o qual não há realidade. Seja acima, no firmamento estrelado,
ou abaixo, nas consciências humanas, Jesus tem “supremacia” (Cl 1.15-20).
Nesse mundo caído, em suas vidas decadentes, aqueles que se separaram de Deus
constituem uma parte deste século, que agora está morrendo. Ele não tem futuro,
e existem indicações disso nas profundezas da consciência humana, onde há uma
confusão de contradições, pois fomos criados para ter significado, mas encontramos
somente vazio. Somos feitos como seres morais, mas somos afastados daquilo que
é santo. Somos feitos para entender, mas somos frustrados em muitas buscas.
Estes são os sinais definitivos de uma realidade desconjunta em si mesma. Isso é
o que, na verdade, aponta para outra coisa. Essas contradições não têm solução
na ausência daquele século vindouro que se enraíza no Deus trino, de quem falam
as Escrituras. É Ele que não somente sustenta toda a vida, conduzindo tudo ao
seu fim determinado, mas que também é a medida daquilo que permanentemente
é verdadeiro, certo e a fonte de todo significado, propósito e esperança.” 10.
Michel Foucalt - Power/Knowledgment: Selected Interviews and Other Wriitings - pg 131 1980 - Colin Gordon
10
John Piper e Justin Taylor (editors) - The Supremacy of Christ in a Postmodern World - pg
48,49 - 2007 - Crosswsay Books
9
JOÃO COSTA
33
E esta fonte é Jesus Cristo, o primeiro e definitivo missionário.
O primeiro missionário é o próprio Deus que encarnado nos
mostrou com sua vida, morte e ressurreição o propósito eterno de
ser humano, em todas as esferas sociais e políticas desta palavra.
Pensar em ser missional, longe destas esferas é tentar domesticar a
nossa humanidade e encaixotar nossa espiritualidade. Justamente por
isso, não temos condições de ficar sossegados com as representações
religiosas que “domesticam” Jesus. Ampliando a escala, e ajustando o
foco da encarnação de Jesus e suas implicações sobre nós pelo prisma político, não podemos mais ignorar o impacto do imperialismo
ocidental sobre povos subordinados e sobre as formas de reação de
povos que sentem suas vidas invadidas.
A analogia histórica “coincidente” é muito inquietante, isto é, que
o Império Romano, viera para controlar o antigo Oriente Médio, incluindo a Galiléia e Judéia, onde Jesus operava. Passamos a reconhecer
que o antigo povo palestino reagiu ao domínio romano numa longa
série de protestos e movimentos. É difícil continuar imaginando que
Jesus tenha sido o único personagem imune à submissão do seu povo
à ordem imperial romana. Se não há outro, talvez o simples fato de
que Ele foi crucificado, uma forma de execução que os romanos
adotavam para intimidar os rebeldes nas províncias, deve levar-nos
a reavaliar a situação.
Podemos identificar pelo menos quatro fatores inter-relacionados,
de suma importância, nesta construção de um Jesus despolitizado mas recentemente sob a aparência de um mestre de sabedoria11:
1. Mais determinante é o pressuposto ocidental moderno de que
a religião está separada da política e da economia. As sociedades
Uma boa análise crítica dessa identificação: Jesus and the Cynics: Survey and Analysis of a
Hypothesis - Hans Dieter Betz - http://www.jstor.org/stable/1203757
11
34
MISSIONAL
ocidentais institucionalizaram essa divisão da realidade não apenas
na separação da Igreja do Estado e da economia capitalista, mas também na divisão acadêmica do trabalho, faculdades e universidades em
departamentos distintos de religião, ciência política, economia, etc. A
educação nos cursos de pós-graduação e de preparação profissional
continua em escolas separadas de teologia, administração política
e negócios. Projetamos então o pressuposto ocidental moderno de
que a religião está separada da política e da economia nas sociedades
antigas. Presumindo que Jesus está adequadamente categorizado
como figura religiosa, até certo ponto ignoramos os aspectos políticos e sociais e as implicações da pregação e da prática de Jesus.
2. Ao pressuposto da religião como esfera separada associa-se estritamente ao individualismo ocidental moderno. O individualismo é
um desenvolvimento social relativamente recente e peculiar, característico das sociedades ocidentais modernas (especialmente forte nos
Estados Unidos). Novamente projetando um pressuposto ocidental
moderno na sociedade antiga, pensamos em Jesus como uma figura
individual independente das relações sociais em que estava inserido.
E pensamos em Jesus relacionando-se principalmente com outros
indivíduos, não com grupos sociais e instituições políticas.
3. Outro fator importante na despolitização de Jesus é a orientação
científica dos seus interprétes acadêmicos. Captando sinais da cultura
acadêmica dominante, os pesquisadores bíblicos se sentem forçados
a ser científicos em seus critérios e procedimentos de pesquisa e interpretação de Jesus. “Dados” dos Evangelhos precisam ser isolados,
analisados e postos sob rigoroso controle para então ser usados na
reconstrução histórica. Somente os dados que passam no teste da
razoabilidade/racionalidade moderna podem ser aproveitados. Depois
de reduzir os Evangelhos a fragmentos religiosos dirigidos a indivíduos e de passá-los pelo crivo científico, eliminamos os resíduos de
tudo que seja milagroso, místico ou fantástico e deixamos as pepitas
JOÃO COSTA
35
puras de ditos e parábolas que podemos testar para comprovar a sua
“autenticidade”. Indiscutivelmente, esses três fatores reduzem Jesus
a um mestre religioso que proferia sentenças e parábolas isoladas
relevantes apenas para pessoas em sua individualidade.
4. Alguns interprétes recentes de Jesus despolitizaram-no ainda
mais, eliminando do “banco de dados” das suas palavras “autênticas” tudo o que implicasse juízos embaraçosos. Eles sustentam
que João Batista, era um profeta apocalíptico que proclamava o
juízo, e que os discípulos de Jesus, logo depois da sua morte, o
interpretaram como uma figura apocalíptica, o Filho do Homem,
vindo para julgar. O próprio Jesus, dizem eles, não pregou o juízo.
As expressões proféticas de condenação são produtos posteriores
dos seguidores de Jesus, que ficaram ressentidos por fracassarem
e serem perseguidos. Assim, o próprio Jesus não era profeta, mas
um mestre de sabedoria, como os filósofos cínicos errantes nas
cidades da Grécia, ensinando um modo de vida alternativo, como
o dos hippies modernos, a um bando de nulidade sem raízes. Seja
qual for a credibilidade deste quadro como reconstrução histórica,
ele mostra um instrutor individual despolitizado pronunciando
aforismos isolados que pertencem apenas a um estilo de vida contracultural individual fora de qualquer contexto político-econômico
particular e sem implicações sociais. É difícil compreender por que
Pôncio Pilatos se incomodaria em crucificar uma figura como essa.
Os pressupostos e procedimentos que levam a um quadro de Jesus
assim, porém, são indefensáveis na pesquisa e reconstrução histórica.
1. É simplesmente impossível separar a dimensão da espiritualidade
confessional da vida político-econômica nas sociedades tradicionais. Se os norte-americanos não tinham consciência disso antes
de 11/09/01, estão cientes hoje de que, na maioria dos países
do Oriente Médio, é extremamente difícil separar a fé e a prática
muçulmanas das questões políticas e econômicas e da vida social
36
MISSIONAL
em geral. A julgar pelo extravasamento de patriotismo de feições
religiosas ocorridas depois dos ataques terroristas, também nos EUA
é difícil dizer onde termina a religião civil americana e onde começa
o processo político estadunidense e a sua economia de consumo.
2. O individualismo é uma ideologia ocidental, evidente de modo
especial nos grandes centros urbanos, mas em grande parte é uma
ficção operacional. Com o advento das redes sociais na internet,
é impossível separar identidade, crenças e comportamentos individuais da rede de relações e de instituições nas quais as pessoas
estão inseridas. Identidades são sempre complexas e híbridas. As
vidas das pessoas estão sempre entretecidas numa rede de formas
e instituições sociais. Como insistem as pensadoras feministas, as
próprias relações maritais e sexuais são políticas. As pessoas estão
sempre envolvidas em relações de poder complexas.
3. Os procedimentos adotados pelos pesquisadores para criar um
“banco de dados” que sirva de base para construir um quadro de
Jesus, são especialmente problemáticos como método histórico. As
pessoas não se comunicam com frases isoladas. O significado de
enunciações como provérbios ou parábolas depende totalmente do
contexto em que são feitas e da tradição cultural a que tanto o orador
como os ouvintes pertencem. Em vez de isolar intencionalmente os
ditos de Jesus do único contexto de significado a que ainda temos
acesso, isto é, os Evangelhos, precisamos começar exatamente por
essas fontes literárias.
4. A afirmação de que Jesus não pregou o juízo de Deus é resultado
da aplicação dos conceitos acadêmicos dicotomizados modernos
de “sabedoria” e “apocalipticismo”, que minimizam a divindade
de Cristo, em detrimento ao diálogo relativista predominante.
Essa abordagem aponta para a urgência do tempo presente, onde
os desdobramentos políticos imprimem o medo no consciente cole-
JOÃO COSTA
37
tivo. Um coletivo que enganado pela proposta da individualidade vive
acuado pelo medo, um dos subprodutos do poder restrito e visível do
presente século. Nosso desejo é de sermos agentes, proclamadores do
Reino e anunciantes do ano aceitável do Senhor e do dia da vingança do
nosso Deus. Mas para que isso ocorra efetivamente e não seja apenas
uma iniciativa romântica e utópica precisamos de um início, que não é
exposto publicamente. Necessitamos de conhecimento. Não de causa,
ou de nós mesmos. Mas do conhecimento do único e verdadeiro Deus.
Como diz Rubem Amorese:
“Qualquer ação ministerial que não se tenha originado do quarto é, no mínimo, deficiente, pois apenas nesse lugar de intimidade com Deus se apreendem
e recebem as habilitações carismáticas para o serviço, para a abnegação, para
o amor sacrificial, enfim, para o sacerdócio real cristão. A adoração genuína e
secreta se revela, então, a experiência primária, geradora e dinamizadora de tudo
isso. Conforma-nos à imagem do Filho, para que Ele seja o Primogênito entre
muitos irmãos. O quarto da adoração é o berço da ética cristã. Muito mais que
fonte de bem-viver, é fonte de vida eterna.” 12
Como tornar conhecida uma pessoa que não conhecemos? Para
cumprirmos nossa vocação que glorifica o Senhor precisamos conhecê-lo. A intimidade com nosso Deus, expressa através de uma vida
que vai além do que nos habituamos na rotina das nossas reuniões
de celebração. O ministério de Jesus foi marcado por uma profunda
relevância porque sua intimidade com o Pai era o fator determinante
para a realização de sinais visíveis do Reino. Nossa expressão autômata e imediatista precisam ceder ao exemplo de Jesus que quando
foi interpelado pelos principais da religião acerca dos milagres que
realizara, declarou: “Eu lhes digo verdadeiramente que o Filho não
pode fazer nada de si mesmo; só pode fazer o que vê o Pai fazer,
porque o que o Pai faz o Filho também faz.” João 5:19.
12
Nelson Bomilcar (org) - O Melhor da Espiritualidade Brasileira - pg 146 - Editora Mundo Cristão - 2005
38
MISSIONAL
O reconhecimento da veracidade de Deus é um elemento fundamental na missão, pois enaltece a glória de Deus. Esta veracidade
ganha contornos de pessoalidade quando reconhecemos Jesus Cristo
como enviado de Deus. Uma prática encarnacional é necessária em
dias de relativização e virtualização das ideias, onde as relações e
algumas personalidades são moldadas no ambiente midiático da internet. Tendo como base a devoção, nossa missão não será produto
de um impulso emocional ou meramente religioso, mas a resposta a
um chamado, como bem descreve o missiólogo Ed Stetzer:
“Talvez nossa grande falha se dê numa nebulosa urgência em pressionar nossas
ações antes de ouvir Deus. Nós temos o chamado de Deus para testemunhar
e compassivamente cuidar dos perdidos. E nós deveríamos praticar isso e
ensinar a Igreja a fazer o mesmo. Nós falhamos quando lançamos um novo
modelo, implementamos um novo estilo de adoração, e tentamos desevendar o
código missional antes de ter ouvido o suficiente a voz daquele que escreveu o
código humano original.” 13
Um texto que é decorado por muitos é a chave interpretativa para
esse trecho da oração de Jesus: “Porque Deus tanto amou o mundo que
deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas
tenha a vida eterna. Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para
condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio dele” (João
3:16-17). A missão tem perecido pelo não conhecimento de Deus, pela
distância desse Jesus que foi enviado. Por não conseguir contemplar o
Cordeiro, declarar que cada discípulo de Jesus é um missionário torna-se um absurdo para os ouvidos de muitos. A experiência missionária
marcou a história, e nos inspira até hoje.
Uma das mais marcantes é a dos Morávios (ou Moravianos), que
curiosamente têm sido mencionados com frequência recentemente.
Vale relembrar como e onde ela nasceu. A comunidade denominada
13
Ed Stetzer - Breaking The Missional Code - pp 22 - Broadman & Holman Publishers - 2006
JOÃO COSTA
39
Hernhut, que significa “Abrigo do Senhor”, em 1722, dava refúgio a
cristãos perseguidos da Morávia. Num memorável domingo, em 13
de agosto de 1727, quando estavam reunidos para a Ceia do Senhor,
o Espírito Santo veio sobre eles, através de uma visão da glória divina
revelada no Cordeiro, quebrantando-os e levando-os à maior reunião de
oração de todos os tempos, que durou mais de 100 anos ininterruptos.
Movidos por tal devoção, os moravianos enviaram missionários para
as Ilhas Virgens (1732); Groenlândia (1733); Suriname (1735); África
do Sul (1736); Jamaica (1750); Canadá (1771); Austrália (1850); Tibet
(1856), entre outras localidades. A paixão com que Jesus viveu como
missionário será possível para nós se começarmos hoje a conhecê-lo e
amá-lo profundamente.
John Piper diz:
“Quando esta era terminar e representantes de toda raça, tribo e nação se dobrarem diante do Cordeiro de Deus, a obra missionária não existirá mais na Igreja.
Mas existira o louvor e a adoração. Permanecerá na Igreja o culto. (Paixão de Deus
por sua própria glória: Is 48.9-11). O homem natural busca a sua própria glória,
mas Deus, a sua. A adoração é o combustível e meta das missões. É a meta das
missões porque nelas simplesmente procuramos levar as nações ao júbilo inflamado
da glória de Deus. O alvo das missões é a alegria dos povos na grandiosidade de
Deus. Quando a chama da adoração arder com o calor da verdadeira excelência de
Deus, a luz das missões brilhará para os povos mais remotos da terra.” 14
Adorar o Senhor vai abrir nossos olhos para a realidade da eternidade, que se manifesta hoje, que não encontra limites culturais,
sociais e temporais. Essa perspectiva imersa na glória de Deus é nossa
esperançosa inspiração.
John Piper - Alegrem-se os povos - a asupremacia de Deus em missões - São Paulo-SP - Ed.
Cultura Cristà - 2001 - p. 13
14
40
MISSIONAL
JOÃO COSTA
41
capítulo 3
Esperança na Eternidade
“A vida eterna já não é mais uma esperança para o último dia”
C.H. Dodd
“Agora, pois, glorifica-me, ó Pai, junto de ti mesmo, com a glória que eu tinha contigo
antes que o mundo existisse.”
João 17.5
Toda a primeira sessão de João 17 (versículos 1-5) enfatiza a glória de Deus através do relacionamento de Pai e Filho, em situações
extremas onde a vida e o tempo como conhecemos não podem ser
mensurados. Essa trama na qual somos envolvidos e para a qual
somos chamados também nos envia. Da mesma forma que Jesus
foi enviado ao mundo, nós também somos enviados a realidade do
século presente, não como espectadores do teatro religioso, ou como
especulador da espiritualidade, mas como missionários.
O mundo continua sendo decaído e ao mesmo tempo está sendo
redimido. Jesus morreu, mas ressuscitou. Por isso vivemos o presente
com gratidão e adoração por um fato passado, a redenção pela cruz,
e na esperança de um futuro prometido, o Reino que virá.
Existe uma tensão, no aparente paradoxo do Reino que já veio e o
Reino que virá. Onde estamos vivendo um tempo intermediário, entre a
42
MISSIONAL
primeira e a segunda vinda de Cristo. Estes fatos acabam gerando uma
verdadeira tensão entre o objetivo e o subjetivo, entre o já e o ainda não.
O “já e ainda não” do Reino de Deus, é a dimensão em que nós
contemplamos a eternidade em profundo amor e reverência à glória
de Deus. O estudioso George E. Ladd escreveu:
“O Reino de Deus, portanto, é a realização da vontade de Deus e o gozo
das bênçãos que a acompanham. No entanto o Novo Testamento ensina de
forma clara que a vontade Deus não será perfeitamente realizada nesta era.
A doutrina da segunda vinda de Jesus Cristo é central na teologia bíblica.
A Bíblia entende que toda a extensão da história humana repousa na mão
de Deus, mas ela busca realização final do Reino de Deus em uma esfera
“além da história”, ou seja, em uma ordem de existência nova e diferente.”15
Com esse entendimento, podemos estar em missão como discípulos de Jesus, engajados com nossa vocação, mas livres de uma
responsabilidade que não cabe a nós: A expansão do Reino de Deus.
Proclamamos o Reino de Deus, mas não cabe a nós a expansão de uma
realidade centrada na eternidade.
Estamos habituados a nos relacionar com a graça como o favor de
Deus que resolve as pendências do pecado no passado, mas de acordo
com Paulo em sua carta ao discípulo Tito, fica evidente a plenitude da
atuação divina na nossa esfera humana de tempo nos dando esperança:
“Porque a graça de Deus se manifestou, trazendo salvação para todos os povos,
nos ensinando a renunciar à impiedade e às paixões mundanas, e a viver com
domínio próprio, e de forma justa e piedosa nesta era presente, aguardando
a nossa bendita esperança, a manifestação da glória do nosso grande Deus e
Salvador Jesus Cristo” (Tito, 2.11-13 - ESV).
George Eldon Ladd - O Evangelho do Reino: Estudos bíblicos sobre o reino de Deus - p
25 - Ediçòes Vida Nova - 2008
15
JOÃO COSTA
43
Por isso é necessário rever sempre o objetivo de existirmos como
homens e mulheres que nasceram de novo, que antes de sermos
missionários, é, além de glorificá-lo, desfrutar d’Ele para sempre.
A espiritualidade fastfood com a qual lamentavelmente estamos
habituados, desmorona ao vislumbrarmos unicamente Jesus, como o
Filho de Deus, podendo declarar ao Pai: “Agora”. Jesus era o verbo
que estava com Deus, e era (e é!) Deus. Esse expressar, esse falar, esse
verbo é Deus, pois um Deus que não fala, um Deus sem a Palavra,
não é Deus. E uma palavra que não é Deus nada realiza.
Segundo a profecia de Isaías:
“…assim como a chuva e a neve descem dos céus e não voltam para lá, mas
regam a terra e a fazem produzir e brotar, para que dê semente ao semeador
e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca; não voltará
para mim vazia, mas fará o que me agrada e cumprirá com êxito o propósito
da sua missão.” (Is 55.10-11).
Assim a Escritura estabelece a base para a declaração do evangelista
João de que o verbo estava com Deus e o verbo era Deus.
O termo verbo ou Palavra, na língua grega, é logos. Embora logos
tenha desempenhado um papel no gnosticismo pagão (doutrina herética que tumultuava a Igreja primitiva), como um dos passos através
dos quais a pessoa desenvolve seu caminho em direção a Deus, e
como tal é encontrado dessa forma em numerosas heresias judaicas
cristãs, aqui ela não evidencia uma inclusão pagã no NT, como alguns
supõem. Pelo contrário, logos corresponde ao termo aramaico memra
(também “palavra”), um termo técnico e teológico usado pelos rabinos nos séculos antes do nascimento de Jesus, quando tratavam da
expressão de Deus a respeito de si mesmo.
Se existe uma forma de iniciarmos um relacionamento genuíno com
o Deus que “é” antes que o mundo existisse, esse relacionamento come-
44
MISSIONAL
çará pela Sua Palavra, revelada nas Sagradas Escrituras. Como declara o
renomado professor de Teologia bíblica e sistemática, Wayne Grudem:
“A suficiência das Escrituras significa que elas contêm todas as palavras que
Deus deseja que seu povo tenha em cada estágio da história da redenção e que
Deus nos diz, pela Bíblia, tudo que precisamos saber sobre a salvação, sobre
confiar nele de maneira perfeita e sobre como obedecer a ele de forma perfeita.
Essa definição enfatiza o fato de que somente nas Escrituras devemos procuras
às palavras de Deus para nós. Isso também nos lembra que Deus considera o
que Ele nos diz na Bíblia como suficiente para nós e que devemos nos regozijar
e nos contentar com a grande revelação que ele nos outorgou.” 16
A imersão nas Escrituras desperta em nós o fascínio que se transforma no culto racional, fruto de mentes com entendimento renovado. A
experiência da adoração é uma disciplina espiritual que se desordenou ao
longo dos anos, e precisamos resgatá-la com todo zelo, pois se existe uma
forma de nos conectarmos com a realidade da eternidade é nos prostrando
em apaixonada devoção diante de Jesus, e servindo ao próximo, para que
de fato sirvamos ao Senhor, que não vemos com nossos olhos naturais.
As nossas discordâncias particulares devem ser colocadas de lado
ante a infinita grandeza da concordância entre Pai e Filho. A glória neste
versículo reforça tudo o que foi tratado até aqui: a deidade da Pessoa de
Jesus. Ele possuía a glória divina antes do mundo existir, na eternidade
que chamamos de passada. Portanto, deve ser glorificado agora com
essa glória juntamente com o Pai. O Senhor tem participação na glória
divina não por si mesmo, mas junto com o Pai, pois Ele e o Pai são um.
Esta unidade na eternidade é um sinal de esperança para
nós no tempo chamado hoje. E na verdade um alento para repensarmos a nossa missão. Como já afirmamos, ser missional diz
respeito a estar alinhado com a missio Dei, a missão de Deus. Portanto, alguns temores com as temporalidades, como os discípulos
16
Wayne Grudem - O Dom de Profecia - pp 336 - Editora Vida
JOÃO COSTA
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demonstravam em Atos 1.7, ao perguntar a Jesus quando o reino
seria restituído a Israel, são desnecessários. À luz da boa nova, da
qual nós como missionários somos cartas vivas, pouca diferença
faz a posteridade da modernidade, a liquefação da sociedade e até
mesmo a cosmovisão relativizada. Não que a experiência com a
glória de Deus nos aliene, mas ao contrário, recebemos um genuíno
choque de realidade.
E assim somos levados a um genuíno compromisso comunitário onde
passamos a considerar a nós mesmos e o próximo, como parte da eternidade divina. Desta forma temos nossa relação construída com Deus pela via
da oração, do jejum e das Escrituras não como um documento histórico,
mas como a palavra do nosso Deus que era, que é e que há de vir.
A busca por atender uma agenda de novos programas tem nublado
nossa verdadeira atuação missional. Precisamos encontrar nosso caminho novamente. Não em busca de uma espiritualidade que se auto-intitula como monástica (até porque para muitos isso é mais uma moda
do cristianismo líquido, moldado pelos apelos de uma espiritualidade
horizontalizada, do que, a busca pela referência histórica do precioso
legado de alguns dos chamados pais do deserto), mas que tem a devoção
como plataforma de lançamento para a missão de Deus.
Precisamos ir além das convicções enjauladas em confessionalismo
religioso, que suprem apenas as expectativas transitórias de uma ou
outra argumentação da presente era. Precisamos de uma fé madura,
que tem peso em todos os aspectos da nossa vida, a ponto de imprimir
em nós uma esperança sólida em Cristo, a ponto de nos dar uma nova
perspectiva sobre a própria história. Através dessa bendita esperança,
nossa visão aponta para uma consumação futura, tendo como garantia,
a vitória de Cristo na cruz. A visão cristã da história, pelo prisma do
NT, é que ela é um desenrolar do propósito eterno de Deus, tendo
como centro, a redenção da cruz. Então todas as cerimônias, tipos,
promessas do AT, têm seu cumprimento na vida, morte, ressurreição
46
MISSIONAL
de Jesus, e alcançará sua plenitude ou consumação final na segunda
vinda de Cristo, no novo céu e na nova terra, na plena redenção.
Podemos afirmar que pelo fato de Jesus ser o Senhor da História, ela obedece a um plano eterno e soberano e caminha para
um propósito final, que é a Glória de Deus. As Escrituras nos
ensina a ler a História como a esfera da redenção. Para o apóstolo Paulo, o Espírito Santo hoje em nós, é o penhor (Ef 1.14;
2 Cor 1.22; 5.5), o selo (Ef1.13; 4.30; 2 Cor 1.22) e as primícias
(primeiros frutos - Rm 8.23). Paulo via a era entre a primeira e a
segunda vinda de Cristo como uma era “provisória”, com base
nisso cremos que já temos as bênçãos que Deus nos deu em Cristo
(Ef 1.13). Mas ainda não as temos em plenitude. E uma dessas
bênçãos é a maturidade.
Precisamos desenvolver uma maturidade que nos leve, como
Igreja, a participar ativamente na sociedade, visualizando sua
transformação, mas acima de tudo reconhecendo que o poder
de moldar o futuro da mesma não está em nossas mãos, e que
tudo que é feito é para a gloria do Todo-Poderoso e Senhor da
história, Jesus Cristo. Recebemos, assim, a instrução de Paulo aos
Filipenses (Fp3.2-16), onde nos é apresentado um caminho para a
maturidade cristã. Do ponto de vista moral e legal, Paulo poderia
ser considerado uma pessoa madura, pois cumpria os requisitos
da lei e andava de acordo com os padrões morais mais elevados da
sua cultura e religião. Era também zeloso, responsável e coerente
para com suas convicções e seus compromissos religiosos. Como
ele mesmo afirma: “circuncidado no oitavo dia, da descendência
de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei,
fui fariseu, quanto ao zelo, persegui a igreja; quanto à justiça que
há na lei, eu era irrepreensível”. O que chama atenção é que, para
ele, tudo o que consideramos fundamental para o caminho da espiritualidade e amadurecimento, tudo o que vimos anteriormente,
JOÃO COSTA
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tudo aquilo que consideramos um forte fundamento, ele considera
como “esterco” diante daquilo que é superior e sublime.
Fica para nós o ensino que outrora o apóstolo Paulo trouxe à
Igreja de Roma, ressoando ainda hoje como uma verdade que nos
faz ser comunidade de Jesus:
“Pois tudo o que foi escrito no passado, foi escrito para nos ensinar, de forma
que, por meio da perseverança e do bom ânimo procedentes das Escrituras,
mantenhamos a nossa esperança. O Deus que concede perseverança e ânimo
dê-lhes um espírito de unidade, segundo Cristo Jesus, para que com um só
coração e uma só boca vocês glorifiquem ao Deus e Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo. Portanto, aceitem-se uns aos outros, da mesma forma como Cristo os
aceitou, a fim de que vocês glorifiquem a Deus.” Romanos 15:4-7
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MISSIONAL
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SEGUNDA PARTE
POR QUE SOMOS MISSIONÁRIOS?
Porque Somos a Comunidade de Discípulos
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MISSIONAL
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capítulo 4
Senso de Pertencimento
“Sendo cristãos, entendemos que não somos de nós mesmos, mas fomos comprados por
preço. Por meio de sua graça salvadora, o Senhor Jesus se apropriou de nosso coração de
pedra, e o regenerou, e o transformou em um coração espiritualmente maleável, derramando
nele o seu amor, mediante o Espírito Santro, que nos foi dado”
Burke Parsons
“Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste. Eram teus, e tu os deste a
mim; e eles obedeceram à tua palavra. Agora sabem que tudo quanto me deste vem de ti”
João 17.6-7
Jesus revelou a glória do Pai, quando fez conhecido aos homens o
Seu nome. Aos eleitos, o entendimento do nome aponta para o caráter
de Deus, se entendermos a necessidade que essa resposta imprime
ao olharmos para Ex 3.13-15. A revelação que Jesus faz do nome
de Deus é clara na sua encarnação, se fazendo cumprir a profecia de
Isaías 52.6: “Por isso o meu povo conhecerá o meu nome.” Ao orar
pelos discípulos, Jesus deixa claro o pertencimento. Os discípulos são
o Seu povo. O caráter do Pai é revelado àqueles que ele escolheu, e
que mediante adoção não são mais criaturas, mas agora são filhos. 17
Como filhos de Deus, co-herdeiros em Cristo, passamos a ser
uma comunidade, não um mero ajuntamento. Como diz Pedro:
“Antigamente, não éreis povo; agora, sois povo de Deus; não tínheis
recebido misericórdia; agora, recebestes misericórdia.” (1Pedro 2.10).
17
Se você ainda não conhece este texto, pare a leitura desse livro AGORA e leia Romanos, capítulo 8
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MISSIONAL
O chamado dos que conheceram a Deus, evoluí para a vida comunitária. Não pelo pertencimento unicamente à comunidade, mas,
sobretudo, por pertencer ao próprio Senhor Jesus. Pertencendo a
Jesus e sendo parte da comunidade de discípulos a nossa identidade
vai sendo moldada nesse ambiente.
Timmis e Chester declaram:
“A Bíblia mostra que somos pessoas da comunidade, feitas para amar a Deus e
os outros. Com relação à humanidade, Deus não é simplista em falar apenas uma
palavra de comando - Ele inicia um diálogo. “Façamos o homem à nossa imagem”
(Gn 1.26). Esse diálogo mostra que o próprio Deus é um ser social e não solitário.
Portanto, sua imagem não pode ser portada por um indivíduo, mas pelo homem e a
mulher juntos (Gn 1.27). O segundo capítulo de Gênesis reforça isso quando o autor
nos diz que a única coisa em toda a criação, que não era boa, era o que o homem
estivesse só (v.18). A individualidade divina é definida em termos relacionais. O Pai
é o Pai porque tem um filho. Deus é parte de uma comunidade. A individualidade
humana também é definida em termos relacionais. A existência de uma pessoa sem
relacionamentos é tão impossível quanto a de uma mãe sem filhos ou um filho sem
pais. O entendimento trino da nossa humanidade sugere que devemos definir a nós
mesmos pela rede de relacionamentos em que vivemos. Sou pai, marido, membro da
Igreja, filho de Deus. Isso me torna singular (ninguém possui a mesma matriz de
relacionamentos), mas também me define com relação às outras pessoas. Não sou
autónomo. Sou parte de uma comunidade. Não posso ser quem eu sou sem considerar
as outras pessoas. Na nossa difundida cosmovisão individualista, falamos sobre
a mensagem evangélica da reconciliação, unidade e identidade como povo de Deus.
Talvez esse seja o maior abismo cultural que a Igreja precisa fechar”. 18
Muito tem se falado do resgate do caráter comunitário da Igreja brasileira, que se desgastou com a excessiva institucionalização, caracterizado
pelo clericanismo (a escalada de poder e títulos extrapolaram o ‘bispaSteve Timmis e Tim Chester - Igreja Total: repensando radicalmente a nossa apresentação
do evangelho na comunidade - pg 40,41 - Editora tempo de Colheita - 2011
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do’ e ‘apostolado’ e tem alcançado níveis galácticos!). Pela apologética
doutrinário-denominacional (a defesa marcial das tradições segmentadas
pelas confissões teológicas e agremiações das históricas até as neopentecostais). Pelo uso cansativo de programas (o franchising de modelos de
gestão de membresia ou os cultos temáticos que glorificam tudo, menos
o Senhor), pela indústria fonográfica (a fogueira de vaidade ‘gospel’ que
se equipara aos programas televisivos Ídolos ou Qual o seu talento?).
Para combater isso, esforços de se viver comunidade têm sido
constantes por parte da Igreja. Mas existe um grande perigo: o de nos
fecharmos numa espécie de bunker religioso, ou transformar a Igreja
num centro de recuperação de crentes feridos. É claro que a Igreja
deve acolher a todos, mas não fomentar a amargura religiosa. O melhor
tratamento de recuperação nesses casos é formar discípulos. A formação espiritual não propõe isolar pessoas, mas levá-las ao Senhor, para
ouvindo a sua voz, correspondam a seu chamado como missionários
em seu contexto. Por isso, antes de pensarmos o conceito ‘comunidade
missional’, precisamos pensar uma comunidade de discípulos.
Um engano recorrente na Igreja é o de excluir o princípio do
discipulado da vida cotidiana da comunidade, fazendo com que o
discípulo se torne uma marionete de domínios de subaproveitamento
‘apostólico’ ou apenas um mero leitor de uma apostila. O discípulo é
o ser comunitário, que reconhece a sua necessidade da vida de Igreja.
Precisamos da Igreja porque a partir da doutrina da Trindade e do
mistério da comunhão é que vemos que a vida cristã é basicamente
relacional, é a conversão do indivíduo em pessoa diante de Deus.
O indivíduo é o ser encapsulado em si mesmo. Realiza-se a partir
de suas próprias conquistas, interpreta a liberdade como autonomia e
rejeita tudo o que vem de fora como sendo menos real e verdadeiro.
Já a pessoa, é o ser liberto de si mesmo para uma vida de entrega e
auto-abandono, que se realiza na comunhão e na experiência de amor
com Deus e o próximo. Alegra-se com a co-dependência, aprende
54
MISSIONAL
a confiar, aceita a paternidade de Deus e alegremente submete-se a
ela provando o cuidado amoroso do Pai e a comunhão com o Filho.
A conversão ao Evangelho não é apenas uma conversão de convicções
e comportamento, mas uma conversão do ser. É a transformação do egoísmo na generosidade, da mágoa no perdão, da alienação na comunhão.
As virtudes de um discípulo de Jesus raramente são experimentadas solitariamente, só podem ser provadas em comunhão, na relação com o outro.
Essa relação de pertencimento ao Senhor nos conduz à fidelidade horizontal, que não pode ser determina por relações de poder,
mas pelo amor e compromisso de sermos parte da mesma família,
remando contra a correnteza de decepções que o evangelicalismo
contemporâneo tem proliferado. Isso resulta na falta de constância
que as pessoas demonstram com a Igreja.
A socióloga Sandra D. Souza relata:
“No Brasil, como em outras partes do mundo, o fiel já não é mais tão fiel
assim a sua religião, ele transita em diversas expressões religiosas. O perfil
religioso do homem e da mulher contemporâneos pode ser altamente cambiante,
favorecendo um aspecto religioso num determinado momento, e outro logo depois
(…). A ideia de “trânsito religioso” admite o “passeio” por diversas religiões
(mesmo, em alguns casos, havendo predileção por uma ou outra) não demanda
mudanças intestinais na forma de vida dos transeuntes e dispensa ou atenua
o compromisso com uma instituição específica. Isso pode ser melhor verificado
entre aqueles que, apesar de admitirem uma pertença religiosa, transitam e se
apropriam dos mais variados aspectos simbólicos. Não que isso não acontecesse
anteriormente, mas estamos falando de uma intensificação disso.” 19
A comunidade dos discípulos é uma comunidade de pertencimento. Outro grande engano das Igrejas que tem enfatizado uma
Sandra D. Souza - Transito religioso e construções simbólicas temporárias: uma bricolagem
contínua - p. 164,165
19
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experiência comunitária é o de se fecharem num gueto próprio, com
um dialeto característico, com usos e costumes específicos, seguindo
os caminhos religiosos (no pior dos sentidos) predominantes. E uma
das práticas é abrir mão do “pertencer ao Senhor, pertencer um ao
outro” em nome de uma pretensa liberdade. Precisamos desfrutar
da riqueza de buscarmos o Senhor, conhecer o Senhor, juntos, como
família. Dietrich Bonhoffer sabiamente escreveu:
“A vida em comum sob a Palavra começa com a adoração coletiva (…). A
família comunitária se encontra para louvar o Senhor, render ações de graças,
ler as Escrituras e orar.” 20
Toda forma doentia de escapismo que os cristãos contemporâneos
utilizam, é resultado, segundo Thabiti Anyabwile, de uma:
“falha em entender ou assumir seriamente o propósito de Deus para a Igreja
local - que ela seja central à vida de seu povo. As pessoas não se tornam membros
comprometidos de Igreja, e, por consequência, discípulos saudáveis, porque não
entendem que esse compromisso é exatamente o meio pelo qual Deus tenciona que
seu povo vivência a fé e e experimente o amor cristão.” 21
Fugir da ideia do pertencimento (ao Senhor e ao próximo), através
de subterfúgios filosófico-existencialistas é fugir de si mesmo. Pois
essa construção nasce da falta da espiritualidade centrada no Evangelho, que revela a glória de Deus. Essa falta de espiritualidade, gera uma
crise de identidade que pode nos enclausurar em duas celas: a apatia
ou a do ativismo. Se existe uma ‘cura’ para essa crise, a obediência à
Palavra, vai nos apontar o caminho e as possibilidades para alcançá-la.
O fato de sermos a comunidade de discípulos, não significa que
somos guiados pelo discipulado em si, porque o princípio, é da relação
20
21
Dietrich Bonhoffer - Life Together:The Classic Exploration of Faith in Community- p 42 - Harper Collins - 1978
Thabiti Anyabwile - O que é um membro de Igreja Saudável - p.66 - Editora Fiel - 2010
56
MISSIONAL
entre mestres e alunos. Somos a comunidade de discípulos de Jesus,
consequentemente, o que nos conduz e nos guia é o Evangelho. Em
sua oração Jesus posiciona os discípulos na relação trinitariana, reconhecendo que eles lhe foram dados pelo Pai, e que a marca disso é o
fato deles guardarem e obedecerem ao Evangelho.
O que precisamos resgatar, para sobrepujar a crise ensimesmada da
cristandade, é a experiência dos discípulos em Jerusalém, que mesmo
com dúvidas, medos e nítidas limitações, se converteram ao Evangelho
e deixaram suas identidades/atuações serem moldados pelo Evangelho,
como fica evidente, por exemplo, no capítulo 2 de Atos dos Apóstolos.
Jonathan Dodson descreve que: “ao contrário do que alguns possam pensar o
discipulado não é o motor da Igreja. O Evangelho “é”. Sem o Evangelho, tanto o
discipulado como a própria Igreja falha. Sem a força motriz do Evangelho, o discipulado se transforma em auto-ajuda religiosa motivada por um pietismo conservador. A
Igreja é reduzida a uma organização sem fins lucrativos, em que as pessoas perdem o
interesse. Mas o Evangelho reativa a Igreja e desmascara o dissimulado!” 22
Os discípulos que são empodeirados pelo Evangelho, sabem que
o mestre, o rabi é o próprio Deus soberano. A soberania de Deus se
descortina para aqueles que têm a Palavra de Deus como pavimentação da sua jornada. A.W. Pink diz:
“Verdadeiramente, reconhecer a soberania de Deus é, portanto, contemplar
o próprio Deus soberano. É comparecer à presença da augusta “Majestade
nas alturas”. É ter a visão do Deus três vezes santo, na excelência da sua
glória. O efeito de tal visão se pode aprender em trechos bíblicos que descrevem
a experiência de várias pessoas que contemplaram o Senhor Deus.” 23
Uma proposta para uma comunidade de discípulos.
Alguns insights mais práticos para a vida devocional de cada discípulo:
No coração da nossa fé está o discipulado, e de forma bem espe22
23
Jonathan Dodson - http://theresurgence.com/2011/11/04/theres-a-discipleship-crisis-in-the-church-today
AW Pink - Deus é Soberano - p.140 - Editora Fiel - 2009
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cífica, o aprendizado de vida direto que temos através de Jesus (Mt
28.18-20). Amadurecer como um discípulo de Jesus não acontece por
acidente, a intencionalidade é necessária. Para um discipulado efetivo
precisamos de um foco definido.
FOCO: Confiar em Jesus, Amadurecer em santidade e Viver em missão.
CONFIAR EM JESUS.
Em toda a Bíblia, a grande boa notícia para a humanidade pode ser
resumida em duas palavras: Confie Nele. Jesus é esta boa notícia. Nós
fomos criados por Ele e para Ele, portanto, a vida que é realmente vida,
só pode ser encontrada Nele. No entanto, o mundo, a própria carne e o
Diabo, fazem tudo para desalojar, distorcer e distanciar nossa confiança
e contentamento Nele. A maior arma que nós temos contra esses oponentes é uma fé empodeirada pelo Espírito Santo, que nos leva a crer
nas promessas de Deus, que é, que era e que há de vir. Isso significa
que devemos seguir os “gemidos que não se expressam com palavras”.
Romanos 8.26, mostra que não temos em nós mesmos a capacidade sequer de orar. Sendo assim, o caminho do discipulado, é um caminho de
espiritualidade que tem o Espírito Santo como condutor, nos levando a
crer nas promessas de Deus, ao invés de seguir os impulsos da carne. Não
são as promessas do orgulho em se sentir importante, da auto-piedade
para curar nossa baixa auto-estima, da luxúria sexual para a satisfação,
ou o ódio para obter justiça. O Espírito Santo nos dá a capacidade de
crer em promessas melhores, verdadeiras e duradouras. Então, ao invés
de acreditar em promessas superficiais e fugazes, ponha sua fé nas promessas de Deus. Peça ao Espírito Santo para fortalecer a sua fé, para ir
além dos impulsos da carne e crer em Deus.
AMADURECER EM SANTIDADE.
A semelhança de Cristo é o nosso critério para amadurecer em santidade. Já sabemos que não é nossa aparência piedosa, ou nossa própria
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MISSIONAL
justiça que vão nos levar a esta estatura (Ef 4.13). Mas, devemos entender
que santidade não é de uma hora para a outra. Santidade é uma colheita
(Gl 6.7). Nós temos duas estratégias aqui. Em primeiro lugar, para amadurecer, nós devemos nos tornar bem familiarizados com as áreas da nossa
personalidade que extraem o pior de nós, onde nós somos mais propensos a pecar. A fim de vencer os impulsos da carne, nós temos que saber
como, quando e onde eles são mais efetivos. Peça ao Espírito Santo para
lhe convencer dos pecados que precisam ser identificados e combatidos.
Em segundo lugar, é importante saber o porquê de gravitarmos
em certos pecados. Precisamos investigar em nós mesmo porque somos atraídos para estes pecados. Quais as vantagens que eles trazem?
Aceitação, satisfação, auto-estima, significado? Conheça a mentira
em que você acredita quando você cede a estes impulsos. Santidade
resulta do enfraquecimento habitual da carne através de uma busca
intencional de uma vida guiada pelo Espírito Santo.
VIVER EM MISSÃO.
O viver missional que constrói relacionamentos por causa do
Evangelho tem que ser experimentado pela comunidade de discípulos,
onde encaramos pessoas como amigas e não como projetos. O grande
mandamento de Jesus é amar a Deus e amar ao próximo. A grande
comissão de Jesus é fazer discípulos. Por vezes, nosso discipulado se
pulveriza na procura por fazer discípulos. Como isso acontece?
Quando por vezes procuramos fazer discípulos nas florestas ou no
sudeste da Ásia, sem ao menos compartilhar nossa fé com o vizinho
ao lado. Os seguidores de Jesus proclamam o Evangelho, à medida
que revelam Jesus em suas próprias vidas pautadas pelas boas novas.
Podemos experimentar nos encontrar regularmente com 3 ou 5 pessoas que não seguem a Jesus, incluindo-as amorosamente na nossa
vida, orando por elas e convivendo com elas. Tim Chester orienta:
JOÃO COSTA
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“Hospitalidade envolve acolhimento, criar ambiente, ouvir, prestar atenção e
generosidade. Refeições desaceleram as coisas. E alguns de nós não gostamos
disso. Nós gostamos de coisas pré-prontas. Mas o compartilhar de uma refeição nos força a sermos orientados para pessoas ao invés de orientados para
tarefas. Compartilhar uma refeição não é o único caminho para construir
relacionamentos, mas é o número um da lista.” 24
Compartilhar da mesa é uma expressão das mais eficazes quando
queremos fazer alguém se sentir parte da nossa família. Se temos a
intenção de cumprir a grande comissão, temos que entender o caráter
de redenção da identidade que a mesma carrega. Inserir, trazer para
a nossa vida, aquele que não segue a Jesus, é uma forma de mostrar
o caminho que trará para a vida dessa pessoa o resgate da sua identidade, em Deus. Brad House define bem essa questão:
“Nós somos portadores da imagem de Deus, criados à sua imagem para proclamar sua grandeza à toda criação. Isso é quem nós somos, não o que fazemos.
Isto significa que nós temos um valor intrínseco como portadores da Sua imagem
e que nós fomos criados com um propósito - reconhecer a glória de nosso Criador.
É a partir da imagem de Deus e da obra reconciliadora de Cristo na cruz que
nós expressamos nossa identidade como discípulos de Jesus, adorando a Deus,
em comunhão com o corpo de Cristo e em missão no mundo.” 25
24
Tim Chester - A Meal With Jesus - p.46 - Re: Lit/Crossway - 2011
25
Brad House - Community - pg 91 - Re: Lit/Crossway - 2011
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MISSIONAL
JOÃO COSTA
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capítulo 5
Reconhecimento e Revelação
“Por sua própria natureza, o fascínio é algo que nos pega desprevenidos e está acima de
qualquer expectativa ou suposição, E não pode ser colocado dentro de um esquema nem
explicado. Requer a presença e o envolvimento da pessoa.”
Eugene Peterson
“Porque lhes transmiti as palavras que tu me deste, e eles as acolheram e verdadeiramente
reconheceram que vim de ti e creram que tu me enviaste.”
João 17.8
O nosso senso de pertencimento procede do reconhecimento
que temos da identidade do nosso Deus, não é um acolhimento
sentimental, mas uma consciente tomada de postura diante da revelação de quem é Ele e qual o seu propósito para nós. À medida que a
“imago Dei” (a imagem de Deus) vai definindo nossa imagem como
discípulos, a opus Dei (a obra de Deus) é revelada ao corpo de Cristo,
a Igreja, que se lança em missão por crer que Jesus foi enviado em
missão. Desta forma, podemos viver em missão de forma holística,
interpretando as nuances de fazer parte de uma obra, como Igreja.
Muito se fala hoje dos aspectos orgânicos da vida da Igreja, o que
para alguns se tornou praticamente um novo “modelo” de Igreja.
É incoerente com o princípio central ensinado por alguns líderes
que articulam há alguns anos o conceito “orgânico” da Igreja como
Wolfgang Simson, John White, Alan Hirsch, Michael Frost, Milt
Rodriguez e Neil Cole. Mais ainda, é incoerente com o ensino de
62
MISSIONAL
Jesus. A grande questão de “acolhermos a palavra e reconhecer quem
é nosso Deus” que nos envia em missão, é a nossa própria vida. Se
você tiver revelação em relação a isso, então, no momento em que
fizer a menor coisa individualista e não relacionada ao Corpo, você
sentirá e saberá que está errado, mesmo sendo uma coisa pequena.
Não existe absolutamente qualquer lugar para a independência ou
individualismo, pois isto é o ego, isto é você, não é Cristo.
Se você não tem consciência do Corpo, então seu entendimento está
na esfera mental e não vem por revelação. Se for assim, é algo que você
recebeu de fora, não algo que veio do interior. Não é espontâneo e não
é vida para você. Pelo contrário, é algo nas esferas superficiais de quem
somos, e não uma revelação. Caso contrário, você teria consciência do
Corpo. Se for algo que você pode jogar fora, de que pode livrar-se ou
pôr de lado, então você não tem revelação sobre o Corpo.
Esta revelação nos impulsiona ao envolvimento com a obra de
Deus, com o trabalho comunitário de ser e fazer discípulos. E é com a
mente cheia de reconhecimento e o coração iluminado pela revelação,
que nossa caminhada se livra das cadeias do ativismo característico de
comunidades regradas pelas tradições denominacionais e programas e
nos liberta da apatia bocejante das comunidades “neo-alguma-coisa”
que se escondem atrás do cinismo pseudo-intelctual.
Se você está realmente no Corpo, como uma experiência resultante de
revelação, você não tem como se livrar dele. Você não tem outro caminho, não existe outra escolha, só existe um caminho para você. Se você
não segui-lo, não existe outro caminho para você, simplesmente porque
você viu o Corpo por revelação. Se for revelação será algo interior, no
seu espírito, e não algo exterior fruto de manobras de comportamento.
Fora da Igreja, que é o Corpo de Cristo, não há possibilidade de
trabalhar para Deus. Se você for a um lugar onde existe uma Igreja
verdadeira, isto é, uma expressão do Corpo de Cristo que é realmente
JOÃO COSTA
63
Sua Igreja, você não pode trabalhar separado daquela Igreja, isto é, não
relacionado com ela. Não abrigue a idéia de que os pastores, líderes ou
pessoas com evidência eclesiástica são os únicos missionários que Deus
estabeleceu no Corpo e para o Corpo. Realmente não são os únicos.
Cada membro do Corpo é designado por Deus para trabalhar para
Deus, o Corpo e a edificação do Corpo. Não é que alguns são obreiros
e outros são simplesmente membros do Corpo. Todos são obreiros,
por isso enfatizamos aqui, todos são missionários.
O Corpo de Cristo deve edificar a si mesmo, porque a origem
dessa edificação é o Cabeça, Jesus Cristo, e por meio do seu Espírito
temos a revelação que nos faz reconhecer Cristo em todas as partes
do Corpo. Pedro Arruda diz:
“A falta de revelação impede muitos de encontrarem Cristo na leitura da Bíblia
ou na oração. Pelo mesmo motivo, a grande maioria não consegue encontrar Cristo
no outro. Trata-se da mesma revelação que fez a opinião de Pedro distinguir-se
das outras, que eram baseadas no conhecimento humano das Escrituras, quando
respondeu a Jesus: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!” (Mt16.16). Foi essa
revelação também que possibilitou a Simeão olhar para o menino Jesus e ver o
que o sacerdotes que o circuncidaram não viram (Lc 2.26)” 26
Na verdade, a obra de Deus (não nossa obra, mas a obra de Deus
através de nós) só começa quando há revelação. Exteriormente é a
visão celestial, interiormente é a revelação. Deus não quer que façamos uma espécie de trabalho genérico ou uma miscelânea de obras
para Ele. Ele deseja que conheçamos todo o Seu plano e trabalhemos
com Ele em direção a um plano e propósito claros. Pois não somos
apenas Seus servos, mas também Seus amigos (Jo 15:15).
Toda entrega e consagração é valiosa, mas, falando francamente,
só depois da revelação é que a entrega e a consagração podem ser
26
Pedro Arruda - A Comunhão Nossa de Cada Dia - pg 74 - CCC Edições - 2010
64
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de muito valor, pois somente assim podem ser completas.
Nossa entrega antes dessa revelação só tem em vista a salvação.
“Ele me comprou com Seu sangue, Seu amor por mim é indescritível.
Por isso, devo dar a mim mesmo a Ele. Eu devo dar a mim mesmo
e tudo o que tenho por causa do Seu amor e graça salvadora.” Mas
depois da revelação, isso é totalmente diferente, pois procede do
reconhecimento inicial da nossa condição de pecadores diante da
soberana graça divina.
DUAS FORMAS DE EDIFICAR O CORPO
Como podemos ser parte efetiva dessa edificação do Corpo? Se
nossa missão é “salvar pessoas”, o obreiro que estiver fazendo isso
vai dar a impressão de estar realizando algo importante. Em certo
sentido, vai parecer que é uma obra para o homem. Mas se nossa obra
tem como propósito edificar o Corpo, então o homem, o indivíduo
por si só, perde o destaque; porque o Corpo é de Cristo. É tudo sobre
Ele! É tudo para Ele!
Em 1 Coríntios 12 temos o registro dos muitos dons do Espírito, e
Paulo enfatiza tanto as palavras quanto os atos. Mas em 2 Coríntios 4
só temos atos. Existem duas formas diferentes de edificar a Igreja. Na
verdade, qual é o valor desses dons do espírito na edificação da Igreja?
O que é esse valor comparado ao valor da vida no Espírito? Paulo, em 2
Coríntios, capítulos 3 a 10, enfatiza o que é o ministério da nova aliança.
Esse ministério não está nos dons, mas na suprema grandeza do tesouro
contido no vaso de barro, isto é, Cristo dentro dele. Em 2 Coríntios lemos: “Levando sempre no corpo o morrer de Jesus, para que também a
Sua vida se manifeste em nosso corpo. (...) De modo que, em nós, opera
a morte, mas, em vós, a vida” (4.10, 12). Isso é totalmente diferente de
Romanos 6, pois a idéia aqui é da contínua operação da morte. A morte
de Cristo opera e continua operando dia a dia em nós, resultando na vida
que flui para os outros. Assim a Igreja é edificada.
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Aqui também temos duas maneiras pelas quais a Igreja é edificada:
(a) em 1 Coríntios 12, pelos dons do Espírito; e (b) em 2 Coríntios
4, pela operação da morte em nós, para que a vida possa operar nas
pessoas. Qual das duas mais tem edificado você? Sua vida interior
tem sido edificada mais pelos dons do Espírito ou por aqueles que
você sabe que conhecem a aplicação da cruz na vida interior e levam
sempre neles o morrer de Jesus para que a vida de Jesus seja manifesta?
Isso é carregar a cruz. Que a morte nunca cesse de operar em você e
em mim, para que também a vida nunca cesse de fluir para os outros.
Vemos pessoas ricas no uso dos dons: dom de cura, dom de expulsar
demônios, dom de eloquência ou de falar em línguas.
E pensamos quão ricas, abençoadas e usadas por Deus são tais
pessoas. Mas isso é realmente assim? Estes são os dons da meninice.
Eles são para o estágio de bebê, útil e necessário para aquele período,
mas devemos crescer. O que realmente edifica e mais ajuda não são os
dons ou eloquência, mas a vida daqueles que conhecem profundamente a
cruz, que a conhecem no íntimo e diariamente, e com os quais entramos em contato. Tome, por exemplo, um grupo de cristãos recém-salvos. Nos primeiros anos o Senhor pode lhes conceder dons, para
que fiquem maravilhados com Seu poder e glória, e para fortalecer
sua fraca fé. Mas uma vez que ela esteja suficientemente forte, Ele
removerá os dons e trará a cruz.
Existem graves perigos associados com os dons, e o maior deles é
o orgulho espiritual. Alguém no meio de um culto pode levantar a voz,
direcionado pelo Espírito, e pronunciar umas poucas frases maravilhosas que ninguém mais pode pronunciar. Então, ele pensa: “Sou mesmo
importante!”. Todavia, sua vida interior pode ser infantil comparada com
outro crente que não tem os dons, mas conhece profundamente a cruz.
Deus concede soberanamente os dons a alguém aqui e ali para
que possam servir como Seus porta-vozes por algum tempo, pois
neste período nada mais será entendido porque são bebês, e Ele
66
MISSIONAL
não tem como encontrar-nos em outro nível qualquer. Na verdade,
Ele usará qualquer boca, até mesmo a de um jumento. Mas este é
um ministério limitado, do tipo “jardim-de-infância”, e é propenso
à vaidade. O que Deus realmente quer e está aguardando e trabalhando para obter somos nós, os vasos nos quais as palavras dadas
por Ele para as expressarmos sejam tomadas por Seu Espírito e
entretecidas no mais íntimo do nosso ser pela cruz, até se tornarem
nossa vida. Somente então nossa missão será de vida, vida que flui
sempre da morte que opera em nós continuamente. Sendo assim,
todos os que confiam nos dons são tolos, porque estes dons não
mudam o homem interior.
Uma Igreja que procura se edificar por meio dos dons sempre
acabará sendo uma Igreja carnal, porque esta não é a forma de Deus
para edificar a Igreja, a não ser no estágio da tenra infância. O método
de Deus é: vida e por meio da vida. E os cristãos que estão “inteiros”
ou “intactos” nunca podem ministrar vida, pois apenas os que foram
quebrados podem ministrá-la. Somente através do quebrantamento
deles é que a vida pode manifestar-se. Esse é o método perfeito
de Deus. Existem duas maneiras de servir o Corpo: uma, através
do dom, é objetiva; e a outra, através da cruz, trabalhada, lavrada
interiormente pelo Espírito, é subjetiva. Em algumas Igrejas locais,
Deus precisa usar uma dessas maneiras e, em outras Igrejas locais,
Ele pode usar a outra.
O dom espiritual pode ser chamado de “empréstimo Divino”:
o Senhor empresta Seu próprio poder e dons a você. Isso é algo
realmente fora de você, separado de você. Tomemos Sansão como
exemplo: ele podia fazer muitas coisas incomuns, coisas bem singulares e diferentes de todas as outras. Todavia, o homem mesmo
não era de modo algum incomum aos olhos de Deus. Deus simplesmente empresta Seu poder a pessoas comuns por algum tempo
porque Ele tem uma necessidade especial, mas isso não significa
JOÃO COSTA
67
que o indivíduo é uma pessoa de santidade ou de valor espiritual
especial. Na verdade, mais tarde ele pode até dar provas de ser o
contrário disso.
NÃO FAZER, MAS SER
A sociedade que se faz conhecida pela alta performance, enfatiza o que a pessoa diz e o que faz, mas presta pouca atenção
àquilo que a pessoa é. Muitos quando pensam em serem discípulos de Jesus, missionários inseridos em seu contexto, desejam
ardentemente falar com poder e eloquência, anseiam falar de
forma brilhante a fim de mover e ajudar as pessoas. Eles falham
em reconhecer que este não é o ponto vital. A questão vital é:
quem e o que você é? O que tem valor, a questão de superior importância não é que você tenha recebido um dom e, por isso, seja
capaz de falar, mas sim que você conhece o Senhor e, por isso,
pode falar. Por isso, os dons estão conectados a uma questão de
maturidade, a condicional dos dons é que eles sejam ferramentas
que nos conduzam à semelhança de Jesus.
John Stott diz:
“A forma mais comum usada por Paulo para definir cristãos é dizer que eles
são homens e mulheres “em Cristo”. Não dentro de Cristo, como roupas em
um armário ou ferramentas em uma caixa, mas como os ramos que estão
na videira e como os membros que estão no corpo, ou seja, unidos em Cristo.
Assim, estar “em Cristo” é estar relacionado a ele de forma pessoal, vital e
orgânica. Nesse sentido, ser maduro é ter um relacionamento maduro com
Cristo, no qual o adoramos, confiamos nele, o amamos e lhe obedecemos” 27
Os dons são necessários? Sim, eles são até certo ponto. Todavia, não devem continuar além do ponto em que o Senhor busca
27
John Stott - O Discípulo Radical - p.36 - Editora Ultimato - 2011
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MISSIONAL
interrompê-los para trazer a operação da cruz, o quebrantamento,
o enfraquecimento e o conhecimento do Senhor. Nesse sentido
não precisamos de expressões sobrenaturais. Pelo fato de a boca
falar do que está cheio o coração, e porque Cristo foi trabalhado
interiormente pelo Espírito Santo que habita interiormente, é que
posso expressar a vida interior Dele. Podemos dizer hoje exatamente a mesma coisa que dissemos dez ou quinze anos atrás, mas
será algo totalmente diferente. “Sim, eu conhecia e cria nestas
coisas, mas agora elas foram interiormente trabalhadas no meu
próprio ser. Sou eu, isto é, Cristo em mim.”
O QUEBRANTAMENTO PRODUZ O MINISTÉRIO
Isaque representa aquele que tinha tudo por meio dos dons. Observe que tudo o que ele recebeu veio do seu pai. Era algo objetivo
para ele, algo fora dele. Até mesmo quando Isaque abençoou os
filhos, ele ficou bastante confuso, pois estava quase cego e confundiu os rapazes. Não foi assim com Jacó, pois ele foi quebrado e
realmente despedaçado pelo Senhor e o Espírito de Deus trabalhou
interiormente a própria vida de Deus nele, até que ele disse: “A Tua
salvação espero, ó Senhor!” (Gn 49.18).
Quando abençoou seus filhos, ou melhor, os filhos de José,
Jacó sabia exatamente o que estava fazendo. Ele o fez com inteligência. Ele disse: “Eu sei, meu filho, eu o sei” (Gn 48.19).
Muitos perguntam: “Por que muitos servos bastante usados por
Deus falham ou terminam sendo colocados de lado, isto é, não
são mais usados por Ele?” Quem pode dizer que Deus já os havia usado? E se Ele usou, foi apenas concedendo os dons. Deus,
em Seu direito soberano, escolheu alguém para lhe conceder um
dom temporário, para ser usado por ele durante algum tempo,
porque o homem não era interiormente digno de qualquer outro
JOÃO COSTA
69
ministério. “Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para
que a excelência do poder seja de Deus e não de nós” (2 Co 4.7).
O Senhor nos conduz através de provas de fogo as quais não
poderíamos suportar nem por elas passar, situações em que não
seríamos vitoriosos e nas quais seríamos liquidados. Todavia, é
exatamente aí que descobrimos que aquilo que é precioso em
nosso interior funciona. Por causa daquilo que é precioso dentro
do vaso, por causa da vida de Cristo no interior, nós seguimos
até o fim. Somos vitoriosos onde não poderíamos ser. Levamos
no corpo o morrer de Jesus e, consequentemente, a vida de Jesus
se torna manifesta.
O reconhecimento e revelação de que Jesus foi enviado, como
o primeiro missionário, o primogénito, o cabeça do Corpo, nos
conduz ao reconhecimento e revelação da nossa missão, que
não é individualizada, tão pouco, um fim em si mesmo. Somos
cooperadores na missão que é de Deus, bem como a sua própria
obra. Por isso, uma comunidade de discípulos, não se baseia no
que faz, em suas obras, em publicidade. Jesus é o grande exemplo,
como servo, e o grande exaltado, quando de fato reconhecemos
nossas limitações e temos sua soberania revelada. Lançando um
olhar sobre os equívocos da Igreja contemporânea, Leslie Newbigin afirmou:
“Numa reação necessária contra a ideia de uma Igreja que age como o “vice-reinado” de Deus na terra, uma Igreja triunfalista, nós temos nos últimos anos
enfatizado Cristo no seu papel de servo. Nós estamos certos em buscar seguir
o exemplo de Jesus, que definiu seu papel como de um servo (por exemplo, Mc
10.45). Mas, esse papel de servo não pode ser mal interpretado. Jesus não se
permitiu simplesmente estar a disposição dos outros. As tentações no início do
ministério de Jesus eram tentações no sentido de fazer o que as pessoas queriam
que o messias fizesse. Enquanto Ele respondeu instantaneamente ao toque da
70
MISSIONAL
necessidade humana, Ele ainda manteve a soberania em suas próprias mãos.
Ele escolheu os momentos, locais e maneiras dos seus atos. Ainda no fim, Ele
estava no controle, como vemos em João 10.17-18 “porque dou a minha vida
para retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou espontaneamente.
Tenho autoridade para dá-la e para retomá-la” 28
28
Leslie Newbigin - The Gospel in a Pluralist Society - p. 224 - Eerdmans - 1995
JOÃO COSTA
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capítulo 6
Comunicação Expressa
“O ponto de partida para quem deseja viver pela fé é reconhecer que Deus revelou
tanto a respeito de sua vontade que temos além do suficiente para viver sem precisarmos ouvir mais nada”
Erwin McManus
“Eu rogo por eles. Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, pois são teus.
Todas as coisas que me pertencem são tuas, e as que te pertencem são minhas; e neles
sou glorificado.”
João 17.9-10
O contraponto entre a comunidade dos discípulos e o sistema
mundo fica evidente nesse momento da oração de Jesus, mas devemos
entender que não é um tratado de isolamento absoluto dos discípulos.
É claro que o pai ama o mundo criado, ao ponto de sacrificar seu
próprio Filho como o Salvador do mesmo (Jo 4.42; 3.17; 12.47). Em
contrapartida, Jesus não intercede pelos discípulos os enxergando
apenas como meios de se alcançar o mundo.
Por mais que a missão fique clara versículos adiante, por mais que
o canal de comunicação da Sua mensagem seja a vida dos discípulos,
Jesus tem um relacionamento com aqueles homens, e o nível de amor
desse relacionamento é a via de comunicação do Evangelho.
Carson comenta que:
“o motivo fundamental da restrição auto-imposta de Jesus em relação à por quem
Ele ora nesse ponto não é utilitária ou missiológica, e sim teológica: eles são teus.
MISSIONAL
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Por mais amplo que seja o amor de Deus (Jo 3.16), por mais salvífica que seja a
postura de Jesus para com o mundo (Jo 12.47), há um relacionamento peculiar
de amor, intimidade, exposição, obediência, fé, dependência, alegria, paz, bênção
escatológica e frutificação que une os discípulos entre si e com a divindade. Esses
temas dominaram o discurso da despedida. Somente se pode orar pelo mundo com
o objetivo de que alguns que nesse momento pertencem a ele possam abandoná-lo
e juntar-se a outros que foram escolhidos do mundo. (…) Orar pelo mundo, a
ordem moral criada que está em ativa rebelião contra Deus, seria o mesmo que
blasfemar. Não há esperança para o mundo. Há esperança somente para alguns
que nesse momento constituem o mundo, mas que cessarão de ser o mundo e se
juntarão àqueles a quem Jesus se refere ao dizer pois são teus.” 29
Essa passagem deixa claro que o peso da nossa mensagem, não
é direcionado exclusivamente, como enganosamente alguns pressupõem, para o ‘mundo perdido’. Tudo é sobre Jesus e a Sua glória.
Pertencemos a Ele, conhecemos a Ele e nossa expressão como comunidade comunica direta e expressamente quem Ele é, a medida
em que Ele é glorificado em nós.
Quando olhamos os esforços missionários empreendidos pela Igreja
enquanto instituição se sucateando nos últimos anos, temos nas bases
das comunidades de discípulos missionais, um sinal de esperança para
a proclamação do Reino de Deus no presente século. Isso não significa
que tais comunidades são uma alternativa global à Igreja como instituição.
Bill Clem adverte:
“Frequentemente, nossa necessidade e desejo de ser agraciado nos faz distorcer
o conceito de comunidade. São nossos desejos ou necessidades sentidas que
tendem a nos motivar a ingressar num grupo em primeiro lugar. (…) É mais
seguro concluir que a maioria das distorções são nascidas e criadas no porque
de formarmos ou ingressarmos em um grupo.” 30
29
30
D.A. Carson - O Comentário de João, pg 561,562 - Shed Publicações - 2007
Bill Clem - Disciple - pg 141,142 - Re:Lit/Crossway Books - 2011
JOÃO COSTA
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Ao dizermos que as comunidades de discípulos não poderão
pretender ser uma alternativa global à Igreja-instituição, não estamos
menosprezando seu real valor renovador da expressão eclesial. Tentamos situar seu significado da Igreja universal.
As comunidades de discípulos, sem dúvida, significam um aguilhão
capaz de mobilizar os aspectos enrijecidos da instituicao-Igreja e representam uma chamada para uma vivência mais intensa dos valores
autenticamente comunitários do Evangelho. Podemos dizer que toda
a pregação de Jesus consistiu em reforçar esses aspectos comunitários.
Num sentido horizontal, conclamando os homens ao respeito mútuo,
à doação, à simplicidade das relações. Num sentido vertical, abrindo o
homem à sinceridade da relação de filho para com Deus, à singeleza da
oração simples e do amor que corresponde ao amor do Pai. Jesus não
se preocupou muito com o aspecto institucional, senão com o espírito
que deve ser vivido em todas as expressões do convívio humano. Esta
era sua comunicação expressa: através da vida da Igreja.
A Igreja, em sua globalidade, é a coexistência concreta e vital da
dimensão societária e institucional com a dimensão comunitária. Nela
há uma organização que transcende as comunidades particulares,
atendendo à comunhão de todas elas. Há uma autoridade, símbolo da
unidade do mesmo amor e da mesma esperança. Há um credo, expressão da mesma fé fundamental, há metas globais, comuns a todas as
comunidades locais. As reflexões sociológicas ganham relevância para
a teologia, por desfazerem ilusões e por manterem as nossas efetivas
atuações missionais sobre bases realistas. Pode ocorrer uma infiltração
de velhos erros históricos e eclesiológicos sob outros nomes, como
a demasiada insistência na polarização de terminologias, entre Igreja
na “base” e Igreja na “cúpula”, entre missiologia e eclesiologia.
Pode haver uma verdadeira renovação dos quadros institucionais
da Igreja, vindos dos impulsos das bases comunitárias, sem que a Igre-
74
MISSIONAL
ja perca a sua identidade ou se perverta em sua essência ou histórica.
A missão que nasce no povo é a mesma que nasceu nos apóstolos.
O que muda nela é sua aparição sociológica no mundo, suas formas
de expressão. Não muda a coexistência permanente um aspecto mais
estático, institucional, permanente com o outro dinâmico, carismático,
vital. Sendo assim, persistirá na Igreja em missão sempre a incansável
vontade de impregnar de espírito comunitário o aspecto institucional
e organizacional da Igreja.
O problema da missão não reside, na verdade, no contraposto
instituição/comunidade. Haverá sempre a persistência de ambos os
pólos. O real problema reside no modo como se vive tanto o comunitário como o institucional. Se um quer absorver o outro, limitá-lo
e liquidá-lo, ou se ambos se respeitam e se abrem mutuamente num
constante ‘deixar-se questionar’, que comunica o Evangelho. Essa
última atitude não deixará que o institucional assuma características
enrijecedoras e venha a predominar, e também não permitirá que o
comunitário degenere num puro utopismo, pretendendo que a Igreja
global se transforme numa comunidade. O institucional não pode, na
Igreja, predominar sobre o comunitário. Este deve guardar sempre
a primazia. O outro vive em função dele. O comunitário, por sua
vez, deverá encontrar sempre sua adequada expressão institucional.
Atualmente, em meio à dinâmica da comunicação do Evangelho,
despontam nítidos, dois modelos eclesiológicos da Igreja única. Um orientado para a Igreja-grande-instituição, com todos os serviços organizados
institucionalmente em função das necessidades da Igreja universal, em
estruturas maiores. Este modelo de igreja possui seu centro sociológico
e cultural, geralmente, nos setores opulentos da sociedade, goza de poder
social e constitui o dialogador exclusivo com os poderes da sociedade.
O outro se centra na rede de comunidades de discípulos no meio
dos setores populares e nas maiorias pobres, à margem do poder e
JOÃO COSTA
75
dos meios de comunicação, vivendo mais profundamente as relações
horizontais/verticais de amor e da co-responsabilidade. A evolução
dos últimos anos tem mostrado que nem a igreja-grande-instituição
existe para si e em si mesma, mas como apoio às comunidades de
discípulos, conferindo-lhes universalidade e permitindo-lhes uma
ligação com o passado, nem a rede de comunidades pode prescindir
da igreja-grande-instituição. Mais e mais a instituição descobre o seu
sentido e responsabilidade no cooperar com as comunidades. Evidentemente isso tem levado a debilitar o seu compromisso com os
setores influentes da sociedade e do Estado em favor de mais pureza
evangélica e de qualidade profética de sua atuação missional. As comunidades, por sua vez, compreendem mais e mais a necessidade da
Igreja instituição para a sua continuidade e até mesmo manutenção
para a sua unidade local. Essa coletividade entre realidades eclesiológicas tem uma reverberação missiológica nessa geração.
Leonard Sweet diz: “O coração da pós-modernidade é uma dislexia
teológica: eu/nós ou a experiência do indivíduo em comunidade. Não é tanto a
questão, percebida primeiramente por William Tyndale, de que a palavra eu como
expressão de individualismo isolado não aparece nos Evangelhos. É mais o fato
de que, nos Evangelhos, nenhum “eu” individual pode se tornar “eu” sem “você”
e “os outros”. Os pós-modernos querem aproveitar uma identidade própria dentro
de um quadro conectivo de amizades, virtudes cívicas e valores espirituais.” 31
A convergência desses modelos eclesiológicos e sua interação
dialética contribuíram para que a Igreja como totalidade tomasse
consciência profunda de sua ação missionária, especialmente entre
os pobres deste mundo, de cuja paixão ela participa, assistindo-os.
Para a Igreja como instituição se faz cada dia mais iniludível a escolha entre as seguintes opções: ou continua a manter boas relações
para com o Estado e as classes ricas que ele representa, ou toma a
31
Leonard Sweet - Peregrinos do Novo Século - pg 124 - Garimpo Editorial - 2010
76
MISSIONAL
sério a rede de comunidades de discípulos, com as exigências que
elas implicam em termos de justiça e de transformação social. Na
primeira opção a instituição tem garantida a sua segurança pessoal e
organizacional e pode contar com apoio à sua ajuda assistencial, mas
deve renunciar a fazer missão de modo eficaz as grandes maiorias
pobres. A segunda escolha recuperará sua missão, representará os
reclames justos que nascem do coração da terra e vão até Deus,
mas deve contar com a insegurança, a difamação oficial e a sorte
dos discípulos de Jesus. Vale lembrar, que o espectro opressor do
Estado foi uma realidade enfrentada pela primeira comunidade de
discípulos da História, em Jerusalém.
Ao longo de Atos dos Apóstolos, acompanhamos o desenvolvimento dessa comunidade de discípulos e sua expansão urbana e
transformadora em todos os aspectos, que em meio à violenta perseguição, se mantiveram firmes em posicionamento diante do Estado,
e acima de tudo diante da soberania de Deus.
Que futuro possui a missão, no nosso contexto brasileiro, pela
lente da comunidade de discípulos? É o que perguntávamos anteriormente. Cremos que é possível, a partir da vivência, responder. Possui
um futuro permanente desde que saiba entender-se no contraponto
da instituição da Igreja. Não deverá querer o impossível utópico de
esgotar em si o conceito de comunidade, de tal modo que nenhum
outro grupo ou formação possa existir, apresentando-se como a
única forma de ser Igreja hoje. Agora de forma sem precedentes se
renova o veio transformador dos ideais missionários, da comunidade
de irmãos, da vivência simples da mesma fé e do culto espontâneo do
Cristo no meio dos homens, do serviço intencional e da preocupação
para com as necessidades de cada membro.
Nunca pereceu na Igreja a utopia do Reino que se antecipa na
comunidade fiel por laços mais humanos, por uma fé mais viva e
JOÃO COSTA
77
por relações marcadas pelo amor de Deus. A nossa missão, se quiser
manter o espírito comunitário, não deverá querer substituir modelos
eclesiológicos, deverá conservar os valores centrados no Evangelho
em primeira instância, e a vida de orgânica e natural da Igreja para
evitar a burocratizarão e facilitar o “face a face” dos membros. Deverá
abrir-se à comunhão da Igreja global com suas instituições e formas
societárias e, ao mesmo, tempo, sustentar a tensão dialética com ela,
para não se deixar absorver. Dessa forma, a missão não deteriora, seja
um grupo fanático escatológico-futurista, seja num grupo retrógrado
“velhista”, mas permanece constante e fluente, em sua comunicação
das boas novas do Reino vindouro, no século presente.
Uma proposta para uma comunidade de discípulos.
Alguns insights mais práticos para a comunicação expressa entre
a comunidade:
Uma tri-perspectiva baseada em: TEXTO - TEOLOGIA - VIDA
(envolvendo 3-5 ou 10-15 pessoas)
TEXTO
Oriente o grupo a ler o mesmo texto bíblico durante toda a semana. Se a Bíblia não for central, o grupo acabará confiando em si
mesmo, suas experiências e seus sentimentos. Por mais que outros
livros possam ser de grande ajuda, nada pode substituir a Bíblia. Se
a Bíblia é central no encontro, é mais provável que o grupo incline
sua confiança em Jesus. É bom que o grupo decida junto qual texto
das Escrituras será lido durante a semana. Eu sugiro a leitura de
pelo menos um capítulo por semana e pedir o Espírito Santo que
direcione sua atenção para o que Ele quer que você faça. A cada
semana faça do texto bíblico o foco inicial, compartilhando como o
Espírito Santo se moveu em você, gerando transformação, através
das Escrituras durante a semana.
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MISSIONAL
TEOLOGIA
Mova-se do texto para a teologia, através do entendimento da
motivação do autor. Nesse ponto, tente desvendar a mensagem central do capítulo. Abra espaço para questionamentos. Se esforce em
ser cristocêntrico, e não centrado na aplicação de um programa. O
objetivo não é “aplicar”, mas imergir na beleza do texto com Jesus,
não é “fazer”, mas se deleitar Nele. Então, do nosso deleite Nele e
por crer em suas promessas, nós podemos aplicar o texto as questões
do cotidiano. Faça de Jesus a pessoa central.
VIDA
Mova-se da teologia para a vida, traga sua vida para a conversação. Não limite demasiadamente o tempo para essa parte. Levante
perguntas. Graciosamente e amorosamente, encoraje uns aos outros
a discernir as motivações não direcionadas por Deus das motivações
do Evangelho. Em contrapartida, esse não é um estudo bíblico. Compartilhe suas vidas, não seus insights. É um ambiente para oração,
confissão, arrependimento e mover do Espírito Santo para que haja
encorajamento para enfrentar o tumultuado dia a dia das cidades e
que, para nesse turbulento cenário, as vidas sejam inspiradas a ponto
de comunicar com as mesmas, o Evangelho.
JOÃO COSTA
TERCEIRA PARTE
POR QUE SOMOS MISSIONÁRIOS?
Porque Somos a Cidade de Deus
79
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MISSIONAL
JOÃO COSTA
81
capítulo 7
Proteção
“Em cada cidade terrena, existem duas cidades competindo por controle: a cidade
dos homens e a cidade de Deus”
Agostinho
“Não estarei mais no mundo; mas eles estão no mundo, e eu vou para ti. Pai santo guarda-os no teu nome que me deste, para que sejam um, assim como nós. Enquanto eu estava
com eles, eu os guardei e os preservei no teu nome que me deste. Nenhum deles se perdeu,
senão o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura. Mas agora vou para ti. E
digo isso enquanto estou no mundo, para que eles tenham a minha alegria em plenitude.
Eu lhes dei a tua palavra; o mundo os odiou, pois não são do mundo, assim como eu
também não sou. Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno.”
João 17.11-15
Quando nos deparamos com o livro de Apocalipse, vemos a
História tendo seu ápice na instauração da cidade que desce dos
céus. Aprendemos a guardar nossa esperança nesse glorioso dia,
mas o nosso viver em missão tem uma realidade ao redor, que pulsa
com as agruras da realidade mundana. De um mundo e sistema que
essencialmente, odeia aqueles que representam a comunidade de
discípulos. A partir do entendimento de que nós somos a Jerusalem
espiritual, a nossa unidade em missão inevitavelmente nos impulsiona
para o contexto urbano.
Aliada à dimensão missional como elo fundamental da proclamação do Evangelho, verificamos ao longo da História da Igreja,
que a comunidade corre o risco de se fechar em torno de si mesma,
assumindo o papel de um corpo um tanto quanto alheio a tudo o
que acontece ao seu redor. Em sua oração sacerdotal, Jesus deixa
82
MISSIONAL
claro o desdobramento que lança os seus discípulos num inevitável
ambiente de hostilidade, por isso o pedido de proteção. E como se
dá essa tensão que Jesus propõe a nós como seus missionários? Essa
tensão, apesar de estar hoje numa realidade distinta daquela, continua
persistindo em nossos dias.
Santo Agostinho, a partir de sua cidade, Hipona, conseguiu fazer
uma leitura do caos urbano de Roma de 410 d.C. que impactava na
realidade da África. A partir daí, surge a obra Cidade de Deus, que
expõe a grande tensão entre duas cidades: a divina e a dos homens. O
senso de pertencimento, a essência da revelação de quem é Jesus e o
comprometimento com o seu Reino, em contraponto ao desprezo em
relação à soberania divina, vão marcar as características que fundam
essas duas cidades: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o
amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao
desprezo de si próprio, a celestial.” 32
A grande maioria das novas configurações de comunidades assume
em muitos casos o perfil comportomental paroquiano, como se fosse
um grupo fechado para si mesmo, por mais que isso seja totalmente
incoerente com seu discurso que busca freneticamente a evangelização
relevante. Muitos destes grupos assumem estas posturas para se proteger. Pior ainda é quando, em algumas metrópoles, se procura estabelecer
rígidos limites geográficos para demarcar territórios pertencentes a
cada comunidade. Outro fator que ainda persiste, em menor escala,
é a tendência de circunscrever a tarefa da comunidade como sendo o
atendimento das necessidades religiosas dos moradores do perímetro.
A unidade da comunidade dos discípulos não deve formar em
nós um comportamento isolacionista, ao contrário, o fato de sermos
essa família de irmãos que buscam a semelhança de Jesus é o que
determina nossa origem e destino, nosso amor e missão.
32
Agostinho - A Cidade de Deus - XIV, XXVIII, 2 - pg 169 - Editora Vozes - 2002
JOÃO COSTA
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Nossa perspectiva de “oikos” não nos encerra em nós mesmos,
mas dinamiza a nossa missão no contexto urbano. Como o apóstolo
Paulo escreve à Igreja em Eféso, “Assim, não sois mais estrangeiros, nem imigrantes; pelo contrário, sois concidadãos dos santos e
membros da família de Deus…” (Ef 2.19). A proteção que temos
como cidadãos da cidade de Deus, não deve proceder de cordões de
isolamentos estabelecido por nós mesmos, mas da nossa origem/
destino celestial.
Como cidade de Deus, tornamo-nos a comunidade missional de discípulos. Assumimos a responsabilidade de assumir sua condição como
concidadã em nossa pátria, e por essa perspectiva escatológica, que define
bem nosso destino, poderemos ter uma atuação relevante, profética e
transformadora, agindo como Jeremias que assumiu o desafio missionário
de procurar a paz na cidade e orar por ela ao Senhor (Jr 29.7).
É tempo de discernir claramente os tempos e seus sinais. Jonathan
Wilson-Hartgrove diz: “Estou convencido de que nós encaramos uma crise
muito similar a que Jesus visualizou e nomeou no primeiro século na Palestina.
O fim do mundo está próximo (…) Alguns cientistas políticos e ambientalistas
tem fortes e bem pesquisados argumentos para chegar ao mesmo ponto básico.
Muitos cristãos têm uma lista de textos bíblicos que eles gostam de citar para
dizer a mesma coisa. Mas, Jesus é o ponto interpretativo e instigante para tudo
isso: tudo que nós temos que fazer nesse momento é ler os sinais dos tempos.” 33
Essa ênfase, profundamente profética/missional, exorta a comunidade para sua verdadeira vocação missionária no meio urbano: ser um
movimento renovador e mobilizador da cidade. A dimensão do amor
misericordioso recebeu um tratamento religioso unilateral: direcionado
ao indivíduo. Essa dimensão é verdadeira e bíblica, mas não é todo o
Evangelho. A profunda compaixão de Deus quer a transformação
Jonathan Wilson-Hartgrove - New Monastics: What it has say to today’s church - pg
15 - Brazos Press - 2008
33
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MISSIONAL
pelo poder do Espírito Santo de toda cidade, de todo país, enfim, quer
redimir toda a criação que geme e sofre sob o cativeiro do pecado (Rm
8.19). Para corresponder a esse mandato do Evangelho é urgente buscar
em humildade uma dimensão da espiritualidade capaz de amar além
das dimensões do bem-estar pessoal e familiar.
É sintomática a percepção de que jamais ou excepcionalmente
uma comunidade, como um todo, tenha sido despertada para se levantar em nome do Senhor contra um mal que ameaça a cidade ou
um povo. Geralmente as iniciativas missionárias brotam de pessoas
que recebem uma visão ou passam por uma profunda experiência
de conversão, ou então, as iniciativas por transformações brotam de
grupos que desencadeiam movimentos de inovação ou reforma. Por
outro lado, sem aprofundar a questão aqui, é notório que no Brasil de
nossos dias tenha surgido uma enormidade de comunidades e movimentos. Alguns expurgados de igrejas históricas, outros resultantes
de competição religiosa entre líderes despóticos, outros como fruto
genuíno do Espírito Santo. Na verdade, a Igreja evangélica brasileira
hoje deve creditar a grande parcela de seu crescimento, numérico e
qualitativo, à ação desses movimentos. À medida que eles se organizam, abrem-se as portas para um diálogo promissor de aprendizado
mútuo para varrer esse país com a misericórdia do Senhor.
Grandes metrópoles, como o Rio de Janeiro, com seus contrastes
e ambiguidades apontam para uma ideia das duas cidades, que nesse
momento da sociedade expurgam todas suas mazelas, incubadas durante décadas de ouro da modernidade positiva, como bem descreve
Arnaldo Jabor na introdução da obra “Cidade Partida” de Zuenir
Ventura: “Na verdade, já existiam então “duas cidades” ou uma cidade partida,
mas a convivência amena, a obediência civil, a falta de antagonismos de classe e
a despreocupação com os problemas sociais nem sempre deixavam perceber que
havia um ovo de serpente chocando no paraíso.” 34
34
Zuenir Ventura - Cidade Partida - pg 11 - Companhia das Letras - 1994
JOÃO COSTA
85
Uma proposta missional nesse tempo encontrará seu impacto
evangelizador, à medida que buscar na palavra do Senhor a espiritualidade capaz de permitir um surgimento de comunidades que
saibam conjugar esses dois eixos: evangelização e serviço. Ou seja,
redescobrir uma vivência de comunhão plena, koinonia que abarca
todas as necessidades da pessoa e da cidade.
Ao longo de todos os tempos a comunidade é tentada a fechar-se em torno de uma mentalidade auto-preservativa, um grupo
de mentalidade voltada para si mesma. Sempre que isso ocorrer,
ela precisa ser exortada a se abrir para ser oikos, abrigo, lar para
aqueles que não tem casa. O processo urbanizatório brasileiro
e as pautas da política neoliberal de nossos dias transformaram
as metrópoles em mostruário de desintegração humana, social e
ecológica. Está na hora de construir cidades de refúgio, compreendendo pelas Escrituras, que o soberano Deus é o nosso refúgio.
Essa construção se dará pela multiplicação de comunidades missionais, onde cada cidadão possa reconstruir sua vida pelo Evangelho e que a cidade seja abraçada com a crítica e a misericórdia,
a exemplo de Jesus: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas
e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes eu quis ajuntar
teus filhos, como a galinha ajunta seus filhotes debaixo das asas,
e não quiseste!” (Mt 23.37).
Tim Keller, um dos pioneiros de uma postura missional no seio da
Igreja-instituição, e com forte atuação numa das maiores metrópoles
do mundo (Nova York), constata que:
“Muitas pessoas que tomam uma postura intelectual contra o cristianismo,
o fazem combatendo um pano de fundo de decepções pessoais com cristãos e
a Igreja. Todos nós baseamos nossas predisposições intelectuais em nossas
experiências. Se você conhece muitos cristãos sábios, gentis, amorosos e perspicazes ao longo dos anos, e se você já viu igrejas devotas em sua fé e ainda
86
MISSIONAL
assim comprometidas com a sociedade e generosas, você vai encontrar um ‘case
intelectual’ para o cristianismo muito mais plausível.” 35
É inevitável que o mundo nos odeie, pois somos embaixadores
do Reino de Deus. Carregamos em nossas vidas a mensagem que
abala os alicerces do sistema mundo. Mas, o bloqueio da hostilidade
e rejeição total da mensagem é uma possibilidade. Somos guardados,
protegidos do maligno para o cumprimento da nossa missão.
Historicamente, o cristianismo serviu como um movimento revitalizador que se ergueu em resposta ao caos, miséria, medo e brutalidade
presentes na vida urbana do mundo greco-romano. Essa revitalização
aconteceu nas cidades, provendo novas formas e maneiras de relações
sociais capazes de lidar com os muitos e urgentes problemas urbanos.
Para cidades cheias de necessitados, o cristianismo ofereceu caridade,
bem como esperança.
Para cidades cheias de pessoas de outras localidades, o cristianismo
ofereceu bases imediatas para esses novos agregados. Para cidades
divididas por violentos combates étnicos, o cristianismo trouxe novas
bases de solidariedade. E para cidades enfrentando epidemias e catástrofes, o cristianismo ofereceu efetivo serviço. No nosso contexto
brasileiro, grandes metrópoles nasceram no contexto da sociedade
rural, e a hostilidade em relação a mensagem do Evangelho tem se
transmutado ao longo dos anos, mesmo com o acento provinciano
presente no consciente colectivo brasileiro. No campo, a cultura era
homogénea, a religião era homogénea e era o centro da cultura. A
religião transmitia-se na família e na vizinhança com a cultura e como
a cultura. Os filhos adotavam os comportamentos dos pais. Alguns
eram mais religiosos e outros menos, mas todos estavam de alguma
forma inseridos na igreja, como o peixe na água. O peixe nem se dá
conta da água, ele está dentro da água. Assim, os camponeses estavam
35
Tim Keller - The Reason For God: Belief in an age of skepticism - pg 53 - Penguin Books - 2008
JOÃO COSTA
87
dentro da Igreja mesmo se ignoravam o que era Igreja. Podiam ser
cristãos inconscientemente.
De todos os modos, o cristianismo se transmitia sem que os sacerdotes tivessem que empenhar-se muito. As famílias encarregavam-se
de levar as novas gerações para os sacramentos, o catecismo, as festas
religiosas e a pratica da moral aceita commumente na sociedade rural
como sendo a moral cristã (cada cultura tem os seus pecados permitidos e os seus pecados proibidos). Justo González diz:
“A questão da relação entre a fé e a cultura sempre foi um dos temas fundamentais de toda teoria e prática missiológicas. Cada vez que a mensagem do
Evangelho atravessa uma fronteira, cada vez que cria raízes em uma nova
população, cada vez que é pregada em um novo idioma, coloca-se uma vez
mais a questão da fé e da cultura.” 36
Nas cidades modernas já não é assim. Não há mais garantia de
transmissão da religião dos pais para os ilhós. Primeiro porque na
cidade há várias ofertas religiosas. As pessoas podem escolher. Em
segundo lugar, as novas gerações não aceitam simplesmente o modo
de viver, o modo de pensar ou de agir dos pais. Adaptam-se mais
depressa à vida urbana e consideram seus pais como ultrapassados.
Além disso, os pais estão muito ocupados e os meios de comunicação
estabelecem uma barreira: não deixa tempo para a conversa. Não
há mais momento do dia nem da semana em que os pais possam
tranquilamente explicar aos seus filhos os seus valores. Eles próprios
duvidam dos seus valores tão diferentes daqueles que a vida urbana
exalta. Sentem-se intimidados e deixam que os filhos sigam cada um
o seu caminho.Durante 1500 anos, a fé foi comunicada pelos país aos
filhos. Este processo deixou de funcionar nas cidades. Isto constitui
para a Igreja um real desafio. A necessidade de proclamar o EvangeJusto L. Gonzalez - Cultura e Evangelho: O lugar da cultura no plano de Deus - pg 31 Editora Hagnos - 2011
36
88
MISSIONAL
lho a adultos que aprenderam a pormenorizar a fé, a necessidade de
sermos agentes em conversões pessoais.
Falando sobre a missão na cidade, Darrin Patrick diz:
“Deus, através dos seus profetas, instruí seu povo a construir casas numa
terra estrangeira, e vivendo ali, plantar jardins e comer de sua colheita. Leva
tempo construir casas. Leva tempo plantar e cuidar de jardins. O que me
parece é que Deus está ordenando ao seu povo a se enraizar profundamente
na estrutura dessa cidade perversa”. 37
A palavra do Senhor neste momento, não nos tira do mundo.
Temos uma missão a cumprir aqui na perversidade urbana. E pela
palavra do Senhor, seremos guardados do maligno para o cumprimento da missão.
Darrin Patrick - Church Planter: The man, the message, the mission - pg 227 - Re: Lit/
Crossway Books - 2010
37
JOÃO COSTA
89
capítulo 8
Santificados na Urbe
“Pelo Evangelho, encontramos a forma de viver interiormente cheios do Espírito, e
comunicar em missão a boa nova num mundo que se volta contra Deus”
Sam Storms
“Eles não são do mundo, assim como eu também não sou. Santifica-os na verdade, a
tua palavra é a verdade.”
João 17.16-17
Guardados e devidamente protegidos do maligno, temos na cidade o nosso contexto. Cidades são centros estratégicos de influência
espiritual, social e cultural. O ritmo da cidade imprime o ritmo do
mundo. De fato, toda a trajetória humana culminará numa cidade.
Em nenhum outro lugar do planeta encontramos tanta diversidade
de pessoas num mesmo lugar, de todas as idades, de todas as etnias,
de todas as classes sociais.
Essa ambiência é a expressão máxima da urbe, é nessa extrema e
crescente rotatividade que a humanidade cada vez mais tem dado as
costas pra Deus. Em Romanos 1.19-25, o apóstolo Paulo, escrevendo
a uma comunidade plantada numa grande cidade, traça a realidade
dessa cidade que dá as costas para Deus: “Pois a ira de Deus se revela
do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens, que impedem a
verdade pela sua injustiça. Pois o que se pode conhecer sobre Deus é
90
MISSIONAL
manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois os seus atributos invisíveis, seu eterno poder e divindade, são vistos claramente
desde a criação do mundo e percebidos mediante as coisas criadas, de
modo que esses homens são indesculpáveis; porque, mesmo tendo
conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram
graças; pelo contrário, tornaram-se fúteis nas suas especulações, e o
seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos e substituíram a glória do Deus incorruptível por imagens
semelhantes ao homem corruptível, às aves, aos quadrúpedes e aos
répteis. É por isso que Deus os entregou à impureza sexual, ao desejo
ardente de seus corações, para desonrarem seus corpos entre si; pois
substituíram a verdade de Deus pela mentira e adoraram e serviram
à criatura em lugar do Criador, que é bendito eternamente. Amém”.
Francis Schaeffer discerniu sua época à luz dessa verdade, e concordamos com ele quando diz:
“Qual então deve ser a nossa mensagem nesse contexto ao mundo, à Igreja e
a nós mesmos? Nós não temos que tentar adivinhar o que Deus diria sobre
isto, porque existiu um período da história bíblica, que grandemente se compara aos nossos dias. É o tempo de Jeremias. O livro de Jeremias e o livro
de Lamentações mostram como Deus olha para uma cultura que o conheceu
e deliberadamente virou-lhe as costas. Mas isto não é somente o caráter dos
tempos de apostasia de Jeremias. É o meu tempo. É o seu tempo. E se vamos
ajudar nossa própria geração, nossa perspectiva deve ser aquela de Jeremias
“(…) que no meio das suas lágrimas, falou sem mitigar sua mensagem de julgamento para um povo que tinha tido tanto e ainda assim havia se desviado” 38
Em razão disso, nas cidades, vários ambientes estão impregnados de
preconceitos anticristãos. Trata-se dos intelectuais, universitários, professores e alunos de colégios públicos ou particulares, dos empresários,
Francis A. Schaeffer - Morte na Cidade: A mensagem à cultura e à igreja que deram as costas
a Deus - pg 15 - Editora Cultura Cristã - 2003
38
JOÃO COSTA
91
mas também de operários ou empregados de comércio que assmiliam
os preconceitos dos patrões ou foram secularizados na ação política
ou social. Para essas pessoas a Igreja é uma instituição do passado,
responsável por muitos dos males que vêm da história do Brasil. A
Igreja é feita de pessoas atrasadas, ignorantes da ciência, da tecnologia, das exigências da vida moderna: defende uma moral antiquada e,
sobretudo, se dedica a atividades aborrecidas. Para muitos a Igreja é
velhice, aborrecimento, vida parada, moral superada, obsessão do sexo,
dependência dos líderes, uma instituição sem futuro e sem novidade.
Então, a vida em missão, que expressa à cidade de Deus, consiste
em tornar presente uma figura diferente do que se estabeleceu. Pela
graça, nossa caminhada que busca a semelhança de Jesus, é uma
forte expressão missional. A possibilidade de vida sendo manifesta
na cidade dos homens se dá pela santificação daqueles que não são
deste mundo, mas são oriundos da cidade de Deus. J.C. Ryle descreve: “De uma coisa estou bem certo: é insensatez fingir santificação, se não
estivermos seguindo a mansidão, a longanimidade e a benignidade, porquanto a
Bíblia salienta essas virtudes. As pessoas que habitualmente dão lugar a atitudes
intempestivas e caprichosas na vida diária, e que se mostram continuamente ferinas
no uso da língua, desagradáveis para todas as pessoas ao redor - pessoas dignas
de dó, vingativas, exigentes, maliciosas, e das quais, infelizmente, o mundo anda
cheio! - todas elas conhecem pouco do que deveriam conhecer sobre a realidade da
santificação. Esses são os sinais visíveis de um homem santificado.” 39
A atribuição do verbo grego hagiazô [santificar], no Evangelho de
João é sempre destinada à missão.
Muitos deram as costas para Deus por causa de Marx, Freud,
Nietzsche. Para muitos, Deus morreu porque os cristãos o mataram
como dizia Nietzsche. Não adianta dizer que Deus está vivo, se está
na cara dos crentes que está agonizando. A santificação é a nossa
39
J.C. Ryle - Santidade - pg 52 - Editora Fiel - 2002
92
MISSIONAL
resposta à vida que recebemos do Senhor. Por outro lado, há muitos
ambientes urbanos em que simplesmente falta a presença da Igreja.
Com efeito, não basta que haja o prédio, o espaço onde a Igreja se
reúne para que haja presença. O que faz e marca a presença na cidade,
são as pessoas.
A presença vem de pessoas que, como missionárias, buscam o
contato e não se contentam em esperar que venham, porque não virão
espontaneamente. Daí a necessidade de missionários e missionarias
em todos os ambientes em que se realiza a socialização urbana, e
através da semelhança de Jesus, sejam agentes transformadores desses
ambientes, os transformando em locais de encontro.
A experiência dos movimentos religiosos que fazem conversões
deve nos instigar. Estamos na época da história do mundo em que
houve mais conversões pessoais, conversões para uma fé pessoal, livre,
sem nenhum constrangimento, sem interesse material, mesmo com
toda sorte de pregações antropocêntricas que enaltecem as necessidades do povo. Os pentecostais já conseguiram no mundo centenas
de milhões de conversões individuais. Os movimentos carismáticos
em geral conseguiram dezenas de milhões de conversões individuais.
A prova está dada. Só não vê quem não quer.
Há uma metodologia de conversão que funciona. Existem variantes,
mas os elementos fundamentais são comuns. Sempre é um apelo a uma
pessoa individual, um chamado para uma nova vida, uma libertação, um
êxodo. Uma pessoa descobriu o seu estado de pobreza espiritual, de vazio
de sentido da vida, percebeu a nulidade da sua existência e este reconhecimento foi ajudado por outra pessoa, um convicto discípulo de Jesus.
Neste momento, surge o chamado para uma vida nova. O contato e o
convívio são as ferramentas virais dessa grande vocação. Pelo exemplo,
pelo testemunho, e acima de tudo, pela Palavra os discípulos de Jesus
são chamados a proclamar a novidade do Evangelho em cada setor da
JOÃO COSTA
93
cidade. Pois, em cada setor, algo pode e deve mudar. A Evangelização
da sociedade é tarefa de formiga: milhões de pessoas trabalhando juntas.
Cada uma levando um grão do Evangelho e, assim, indefinidamente sem
cessar, sem jamais ver o fim da tarefa. Pois a cidade muda constantemente
e a missão deve recomeçar sempre de novo a partir de uma realidade nova.
Nesta realidade, o Espírito Santo envia missionários para a missão. Porém, não são aceitos pela burocracia da Igreja, por uma série
de motivos, todos válidos e até justificáveis, porém destrutivos da
espontaneidade e da liberdade do Espírito.
Uma prática de libertação passa por milhares de pequenas transformações no tecido urbano. Não existe mais a possibilidade de imaginar
uma mudança global, As experiências da revolução russa e da revolução cultural chinesa mostraram que o preço de tais transformações é
inaceitável e que os resultados em longo prazo são irrisórios. Estamos
diante do desafio de montar outra estratégia de mudanças. Milhões
de iniciativas particulares são necessárias nas nossas sociedades. Em
cada cidade, seriam necessárias milhares de iniciativas.
Somente conversões individuais numerosas podem fornecer essas
iniciativas: na liberdade de redefinirem sua identidade santificando-se
à sombra da cruz vazia. Wilberforce atestou:
“Fica claro que as verdades acerca da corrupção da natureza humana, de
nossa necessidade de reconciliação com Deus por meio da expiação de Cristo
e da restauração de nossa dignidade original por meio da influência santificadora do Espírito Santo são todas partes de um todo único. Interdependente e
reciprocamente apropriado.” 40
Muitos missionários repetem sem cansar que o Evangelho é uma
boa nova, mas não dizem qual é esta boa nova. Na sensibilidade de
William Wilberforce - Cristianismo Verdadeiro: Discernindo a fé verdadeira da falsa - pg
116 - Editora Palavra - 2006
40
94
MISSIONAL
muitas pessoas, tudo o que se refere à religião é “má nova” e querem
livrar-se dela. Não adianta comentar que o Evangelho é boa nova. Se
for boa ou má, vai resultar do conteúdo. Os ouvintes se enflieiram
como juízes para dizer se foi boa nova ou se não foi. No cristianismo
tradicional, o Evangelho não é nenhuma “nova”. Pelo contrário, é a
coisa mais antiga do mundo. A religião é tradição do passado e tira o
seu valor da tradição. Receber a boa nova cabe dentro da psicologia
e das expectativas das pessoas urbanizadas. Na cidade percebemos o
interesse pela espiritualidade chamando a atenção. Por vezes não se
sabe o que é, mas atraí porque é novidade. Temos na cidade, portanto,
uma grande seara, um múltiplo campo missionário. As “multidões
como ovelhas sem pastor” que Jesus contemplou em Mateus 9, continuam perambulando pela cidade até hoje, em busca de respostas.
Em Romanos 12.2, Paulo coloca a premissa: no processo de
aceitação do Evangelho por parte das pessoas da cidade não se
trata de moldar a boa nova ao esquema do tempo presente, mas
de propiciar uma transformação através da renovação da mente.
Portanto, o Evangelho leva a uma renovação do modo de pensar,
a partir do discernimento daquilo que Deus quer. Mais ainda: o
Evangelho pede um modo novo de agir como “culto racional” a
Deus (Romanos 12.1). Podemos exemplificar o significado desta
premissa para a prática da cidade de Deus por meio de dois exemplos
referentes a conflitos de conotação tipicamente urbana: a questão
da carne sacrificada aos ídolos (1 Coríntios 8-10) e a questão da
ceia do Senhor (1 Coríntios 11.17-34).
O conflito em torno da questão se é permitido ou não comer
carne sacrificada aos ídolos é abordada extensamente por Paulo
em 1 Coríntios 8-10. Vamos destacar alguns momentos desta
abordagem. O conflito está vinculado à realidade urbana enquanto
reflexo da diversidade religiosa. Esta se expressa nos mais diferentes
JOÃO COSTA
95
cultos organizados em torno de diferentes templos, o que é típico
da paisagem urbana daquele tempo. Alguns desses cultos incluíam
refeições em comum na presença da entidade. Além disso, via de
regra, a carne vendida em açougues esta vinculada a um sacrificio
ou à dedicação a algum deus.
Ingressando nessa realidade, o Evangelho de Jesus traz o conhecimento de que há um só Deus e um só Senhor e que os demais assim
chamados “deuses e senhores” na verdade não o são. É a confissão
monoteísta marcando presença no mundo urbano politeísta e desafiando para a renovação do modo de pensar essa questão. Paulo qualifica esse conhecimento de libertador. Ele liberta as consciências em
relação aos deuses e permite usufruir as dádivas de Deus sem falsos
escrúpulos (“Pois do Senhor é a terra e a sua plenitude” 1Cor10.26).
Mas a questão não é tão simples. Por trás da diversidade dos deuses
se esconde outra realidade, a dos demónios. Do conhecimento acima
poderia-se tirar a conclusão lógica: podemos participar livremente e
sem problemas dos cultos aos deuses em seus templos. Mas isto justamente significaria dar-lhes o status de deuses, ignorar a manobra dos
demônios e provocar ciúmes no Deus verdadeiro. O conhecimento
do Evangelho de Jesus Cristo justamente abre a nossa mente para
vermos além da realidade aparente e discernirmos a estrutura que a
sustenta. No entanto, a questão é mais complicada ainda. Existem
aquelas pessoas que, embora tendo aceitado o Evangelho de Jesus
Cristo, ainda não deram o passo libertador que este conhecimento
proporciona. Elas ainda não renovaram sua mente e suas consciências
ainda estão presas ao costume antigo da adoração aos deuses. Essas
pessoas cristãs se escandalizam com a demasiada liberdade das outras
e correm o risco de abandonarem a fé.
Assim, se em relação ao mundo circundante do Evangelho proporciona liberdade, na relação intracomunitária pode levar à falta de
96
MISSIONAL
amor e à divisão. Portanto, renovação da mente neste aspecto significa
abandonar o individualismo e levar em consideração justamente a
pessoa mais fraca na sua necessidade e buscar de modo construtivo
em relação a ela, tendo a liberdade inclusive de desistir da demonstração de sua própria liberdade.
Vemos aqui que o apóstolo com o seu modo argumentativo e não
autoritário tenta fazer jus à complexidade das relações sociais urbanas.
Ele não dá receitas prontas de como proceder, mas analisa e discute
o problema apontando critérios teológicos para a sua solução. Esses
critérios de cunho mais geral devem pautar a prática específica, para
a qual cada comunidade deve ser capacitada. Nesta parte tem papel
fundamental o uso da “razão”, isto é, da capacidade de refletir e pensar
como meio de definir os parâmetros da ação missional comunitária e
individual. Trata-se, portanto, da aplicação da premissa “renovação da
mente” para oferecer a Deus um “culto racional”, ou seja, um culto
constante guiado pela reflexão a partir do Evangelho de Jesus. Não
há como negar que é um procedimento bastante flexível e versátil,
adequado à diversidade e à complexidade da realidade urbana.
Podemos observar o mesmo ainda no segundo exemplo: a distorção do sentido da ceia do Senhor na comunidade de Corinto (1
Corintio 11.17-34). Este problema está vinculado com a diferença
de condição social entre as pessoas que formavam a comunidade na
cidade de Corinto. A comunidade urbana era, nesta parte, espelho
da sociedade. Dela faziam parte poucas pessoas mais abastadas e
uma maioria de pobres trabalhadores ou escravos. As reuniões se
realizavam nas casas dos membros mais abastados, pois ofereciam
mais espaço e condições para a realização das refeições e dos cultos. 41
O que Paulo criticou na celebração da ceia em Corinto foi que
Para explorar os temas abordados aqui, indico os ótimos livros: W.A. Meeks - Os primeiros cristãos
urbanos - Editora Paulinas; e Gerd Theissen - Sociologia da cristandade primitiva - Editora Sinodal.
41
JOÃO COSTA
97
ela não estava espelhando a novidade do Evangelho, mas a realidade
circundante, caracterizada pela divisão e pelo individualismo. Uns
comiam e bebiam antes da chegada dos outros, de modo que aqueles
se embebedavam e empanturravam, enquanto estes passavam fome.
Essa situação fazia com que houvesse na comunidade pessoas que
enfraqueciam, adoeciam e morriam. É o resultado da desigualdade social que se reflete na situação comunitária. Mas onde está a
novidade dos discípulos de Jesus? O Evangelho justamente chama
para um exame de consciência sobre a responsabilidade de cada
pessoa nesta situação. A vivência comunitária deve ser “digna” do
Evangelho, isto é, deve corresponder ao espirito da boa nova acerca
de Cristo. A celebração da ceia do Senhor como comunhão com
Cristo deve levar necessariamente a outro modo de pensar e agir.
Ou seja, a consequência lógica é que, por ocasião da refeição, uns
pensem nos outros. Concretamente, que uns esperem pelos outros
e, se não puderem se aguentar, que comam alguma coisa em casa.
O critério é teológico: a unidade e a comunhão no corpo de Cristo,
expressas na participação no pão e no cálice da ceia. A partir dele
é possível superar a fragmentação da existência e o individualismo
e formular novos parâmetros para pensá-lo e o agir individual e
comunitário no contexto urbano.
Paulo os ajuda na formulação da nossa estratégia de acão no
mundo urbano, primeiro, porque não nos indispõe geologicamente
de antemão com o mundo urbano. Como cidadão urbano, ele vivia
a cidade e via nela um lugar para a vivência digna do Evangelho de
Jesus Cristo. Em segundo lugar, Paulo nos ajuda, porque usou a razão
para refletir o modo como o Evangelho poderia tomar forma no
mundo urbano. Seu procedimento argumentativo, avesso a receitas
prontas, proporcionava critérios para facilitar a decisão autônoma
das comunidades. Paulo era um parceiro de dialogo na busca por
fazer das comunidades um espaço dentro do mundo urbano que
98
MISSIONAL
correspondesse à vontade de Deus. Nesse sentido, este é o terceiro
destaque é que a comunidade de discípulos é a representatividade da
cidade de Deus, se configurando como um segmento importante da
sociedade urbana. Testemunha desta importância é, não por último,
a conflitividade que o Evangelho provoca.
No entanto não se trata de fugir do meio urbano para viver o
Evangelho, mas de viver o Evangelho no meio urbano de modo digno
do mesmo. Ou seja, exercer a cidadania de modo correspondente ao
Evangelho de Jesus. Os critérios podem ser formulados de modo
abrangente: a confissão de fé, a edificação da comunidade, a comunhão, o amor e assim por diante. Eles são norteadores da reflexão.
Pois a situação urbana precisa ser pensada a partir de critérios novos.
Os passos concretos da ação missional precisam ser formulados em
cada caso, em cada cidade, por quem vive o Evangelho nela. Assim,
o ingresso do Evangelho no mundo urbano progride.
JOÃO COSTA
99
capítulo 9
Fronteiras da Contextualização
“Uma das razões pelas quais estamos cada vez mais sem voz em nossa cultura, é que
abaixamos o Cristianismo a um nível extremamente ridículo. Talvez seja tempo dos
Cristãos viverem uma vida tão emocionante, tão desafiadora e tão interessante que as
pessoas naturalmente queiram entender o que nos leva a viver do jeito que vivemos”
Todd Hunter
“Assim como tu me enviaste ao mundo, eu também os enviei ao mundo. E por eles me
santifico, para que também eles sejam santificados na verdade.”
João 17.18,19
As grandes cidades são como verdadeiras antenas repetidoras
de informações e tendências, onde as fronteiras são praticamente,
inexistentes. Da mesma forma que o Pai enviou Jesus para este contexto, nós somos enviados pelo nosso Senhor como missionários.
Nossa mensagem não encontra fronteiras, mas as formas, métodos
e linguagens em seu contexto precisam ser ponderadas, avaliadas e
testadas pelas Escrituras. Quando a Bíblia fala da cidade via de regra
usa conceitos de valor revela uma postura em relação a mesma. Desde
a crítica vinda do campo e da periferia (Gn 11.1-7; Mt 11.20-24; Mt
23.33-38) e também dentro da cidade (Is 1.21-26) até a à esperança
da cidade de Deus (Is 65.17-2; Ap 21.1-8), passando pela tentativa
de salvar a cidade (Gn 18.16-33; Lc 19.41-48), nenhuma dúvida
subsiste a respeito do que o autor do texto pensa da cidade. Estes
textos mexem com nossas emoções e preparam o nosso estado de
espírito para nos confrontarmos com o urbano. Eles criam um cli-
100
MISSIONAL
ma de rejeição e compaixão, juízo e esperança, realidade nua e crua
e utopia esperada. Eles nos ajudam a tomar posição em relação ao
tema. Animam a denunciar e anunciar.
Porém, ficam devendo a resposta quando perguntamos pelo
“como”, pelo modo de proceder dentro do urbano. Entretanto, quando
se trata do envolvimento prático no mundo urbano, precisamos saber
como ir além do sentimento e da emoção. Precisamos distinguir essa
tensão pelo poder do Espírito Santo, como Alan Hirsch descreve: “a
maioria das pessoas, quando perguntada sobre como elas acham que esses movimentos
notáveis (de expansão da mensagem na cidade) ​​cresceu tão espantosamente, respondem que foi porque eles eram vivenciados por verdadeiros crentes. Isto é, havia uma
autenticidade de sua fé e eram, obviamente, empodeirados pelo Espírito Santo.” 42
Voltemos nossa atenção para o processo que se deu quando o
Evangelho ingressou no mundo das grandes cidades gregas e romanas. Sabemos que, a certa altura, a mensagem do Reino de Deus
transpôs os limites interioranos da Palestina e se espalhou pelo mundo
urbano antigo. Muitas pessoas estiveram por trás dessa irradiação da
mensagem do Evangelho. De Antioquia na Síria até Roma na Itália,
passando por Éfeso na Ásia Menor, Corinto na Grécia, Filipos e
Tessalonica na Macedonia e Alexandria no Egito, o anúncio sobre
Jesus Cristo foi acompanhado as grandes rotas comerciais da época,
interligavam os grandes centros urbanos por mar e terra.
Menos de vinte anos após a ressurreição de Cristo havia pequenas
comunidades de discípulos por todo o mundo urbano mediterrâneo
e até além dele. O que chama a atenção nao é o tempo nem a amplitude da divulgação. Vinte anos é um tempo razoável e o tamanho
das comunidades em relação a popoulacao das respectivas cidades
não deve ter sido muito significativo. O aspecto intrigante extamente
Alan Hirsch - The Forgotten Ways Handbook: A pratical guide for developing missional
churches - pg 38 - Brazos Press - 2009
42
JOÃO COSTA
101
é que a mensagem do Evangelho encontrou ressonância num meio
totalmente diferente do de sua origem e logrou fazer a cabeça e o
coração de pessoas da polis e da urbe, as quais a principio nem eram
visadas. Como aconteceu isso?
A resposta deve ser a mais abrangente possível. Mas, no espaço deste
livro, somente vamos poder realizar uma abordagem parcial, construindo em cima do que outros já elaboraram. Para fazer um início mais ou
menos seguro, vamos considerar o que podemos conhecer melhor: a
atividade de Paulo de Tarso. Não sabemos o que ele pensava da cidade
em si. Assim, ele não nos irá predispor ou indispor de antemão contra
ela. Ele, provavelmente, cultivava uma esperança na cidade de Deus (Fp
3.20), mas não nos dá nenhuma descrição dela. Ele não conhecia um
conflito “campo-cidade”. Parece que, para ele, além da cidade e do mar,
só existia ainda o “deserto” (2Co 11.26). Mas, por isso mesmo, ele pode
nos ajudar. Como cristão urbano, nascido numa grande cidade do seu
tempo, artesão livre, ele escreve em filipenses simplesmente: “exerçam
a sua cidadania de maneira digna do Evangelho de Cristo” (Filipenses
1:27 - NVI; compare com 1 Ts 2.12). Aqui é preciso embarcar na
perspectiva correta: Paulo não escreve estas palavras para pessoas que
vêm de fora da cidade, animando-as a serem, dali em diante, cidadãs.
Ele escreve, antes para pessoas cidadãs, que de qualquer modo iriam
exercer a sua cidadania, animando-as a fazê-lo de modo a corresponder ao Evangelho de Cristo. Ou seja, aqui não se coloca a questão da
legitimidade ou mesmo da possibilidade da cidadania.
Ela é pressuposta como um dado vital. A questão em pauta é
a maneira de viver na cidade, ou o que faz a diferença agora que o
critério se tornou o Evangelho de Cristo?
Precisamos assumir a cidadania como um dado e o Evangelho
como critério da ação. Creio que esse foi o fator fundamental que
permitiu construir a ponte entre o interiorano e o urbano. Este dado
102
MISSIONAL
constitui também o pressuposto básico da transformação da mensagem do Evangelho e da sua maneira de divulgação para dentro do
mundo urbano. Quem divulgou o Evangelho não questionou a cidade
em si, mas a viu como um lugar de concretização vital da mensagem.
Não foi o Evangelho que acolheu o meio urbano, mas o meio
urbano que acolheu o Evangelho. Este é o primeiro dado importante: O Evangelho não problematiza o urbano por princípio. O
segundo dado é que essa acolhida não foi unânime, indicando para a
complexidade e a diversidade do meio urbano. Paulo caracteriza, na
passagem acima mencionada (Fp 1.27-30), o exercício missional da
cidadania como um ato militante (v. 27,30) que desafia adversários
e gera conflitos (v.28), podendo provocar sofrimentos (v.29). Paulo
concebe o exercício da cidadania pautado pelo Evangelho como luta
organizada contra muitos adversários, para os quais a boa nova de
Jesus Cristo justamente não é sinal de salvação, mas de destruição (v.
28). Assim o caminho do Evangelho no meio da cidade é caracterizado
pela conflitividade. Destacamos, portanto, que o urbano, com suas
caracteristicas peculiares, reage ao Evangelho e lhe cria problemas.
Devemos levantar ainda um terceiro dado a partir do texto. O exercício missional da cidadania não se concerta no isolamento em relação ao
urbano, mas no esforço organizado, comunitário. A comunidade cristã
se qualifica como segmento da cidade. Isto é, o Evangelho encarnado
no segmento “comunidade” participa da luta pelo poder e pelo espaço
vital no meio urbano, visando qualifica-lo com os valores vislumbrados
no Evangelho de Jesus Cristo. Rene Padilla diz que:
“A encarnação torna óbvia a aproximação de Deus à revelação de si mesmo
e de seus propósitos: Deus nao proclama sua mensagem aos gritos desde os
céus; Ele se faz presente como homem em meio aos homens. O clímax da
revelação de Deus é Emanuel. E Emanuel é Jesus, um judeu do primeiro
século! De maneira definitiva a encarnação mostra que a intenção de Deus
é revelar-se a partir de dentro da situação humana. Em virtude da própria
JOÃO COSTA
103
natureza do Evangelho, somente conhecemos o evangelho como uma mensagem
contextualizada na cultura.” 43
Reconhecendo o efeito do Evangelho do Reino de Deus no contexto temos, assim, dois pontos a considerar: a) o novo contexto do
Evangelho e b) a estrutura da ação dentro do novo contexto.
O novo contexto do Evangelho.
De início recordemos que Jesus atuava em povoados e vilas do
interior da Palestina e costumava frequentar lugares pouco ou nada
habitados (Mt 14.13; 15.33; Mc 1.35,45; 8.4; Lc 4.42; 5.16). Quase não
procurava as cidades e, quando o fazia, entrava em choque com elas
(Mt 11.21; Lc 13.34; 23.28). Seu contexto vital era agrícola, marcado
pela exploração tributária por parte do império romano. A perspectiva
de sua atuação era provinciana e nacionalista (Mt 10.6; 15.24).
O primeiro passo da mudança de contexto aconteceu quando a
mensagem de Jesus Cristo e então também sobre Jesus Cristo fixou
residência em Jerusalém com a primeira comunidade cristã. Jerusalém
era a maior cidade da Palestina, com uma população residente estimada entre 30 e 55 mil habitantes. Apesar de mal localizada, pobre em
água e recursos naturais, mas por ser um centro religioso importante,
prosperava comercialmente e atraia a cada ano, um grande número de
estrangeiros, e nas grandes festas acomodava uma população diversas
vezes maior do que a residente. Via Jerusalém o Evangelho “agrícola”
de Jesus, já transformado em Evangelho sobre Jesus, espalhou-se por
todo o mundo urbano mediterrâneo. No caminho do Evangelho estão
também, e especialmente, as grandes cidades daquele tempo. Para
dar uma ideia desse novo contexto do Evangelho, vamos observar
uma descrição breve das três cidades significativas e sua relação com
Rene Padilla - Missao Integral - Ensaios sobre o Reino e a Igreja - pg 95 - Fraternidade
Teologica Latinoamericana - Setor Brasil - 1992
43
104
MISSIONAL
a missão urbana em formação. Segundo o relato de At 11.19-30, o
Evangelho chegou a Antioquia da Síria por meio dos “helenistas”
expulsos de Jerusalém por volta de 35 d.C.
A comunidade de Antioquia foi pioneira na missão urbana daquele tempo, preparando e enviando missionarios para o oriente e
para o ocidente e exercendo grande influência na formação daquele
modelo de cristianismo urbano. Atos 13.1, apresenta uma lista de
nomes vinculados a essa cidade, entre eles Saulo. Antioquia era a
terceira maior cidade do imperio romano em número de habitantes,
somente superada por Roma e Alexandria. Segundo estimativas, a
sua população na época do surgimento das comunidades cristãs era
de 250 mil a 450 mil habitantes. Fundada em 300 a.C. por Seleuco
l, às margens do rio Orontes, a cidade se desenvolveu e chegou ao
apogeu no primeiro século da era cristã. Habitada por macedonios,
gregos, sirios e judeus, a cidade era um centro pulsante. Sua localização portuaria favorável trouxe muita prosperidade e diversidade
cultural. Como sede do procurador romano era um centro politico
importante. Sua arquitetura e arte eram famosas no mundo antigo.
Tessalonica entrou em contato com o Evangelho por meio da
iniciativa de Paulo, Silvano e Timóteo antes da metade do primeiro
século (1 Ts1.1,9; At 17.1-9). Ponto de contato foi a sinagoga do lugar. Tessalonica era a maior e mais importante cidade da Macedônia,
centro de comércio e sede do procônsul romano. Estava situada no
entroncamento de duas das principais estradas do império romano e
tinha um porto privilegiado. Entre a população estrangeira residente
destaca-se também uma forte comunidade judaica. Tinha administração grega própria exercida por meio das instâncias da assembléia
dos cidadãos, do conselho legislativo e do grupo de magistrados.
A chegada do Evangelho a Corinto é narrada em Atos 18. Segundo
este relato, Paulo chegou sozinho e se pôs a conquistar espaço para
o Evangelho, associando-se profissionalmente a patrícios cristãos
JOÃO COSTA
105
vindos de Roma e usando como ponto de contato a sinagoga. Mas
não foi somente Paulo que atuou em Corinto.
Devido a pulsação da cidade, outros missionários foram atraídos
como Apolo e Pedro. Corinto era, depois de Atenas, a segunda maior
cidade da Grécia e um dos maiores centros comerciais da época antiga,
provido com dois portos: Cencréia e Lecaion, um de cada lado do
estreito coríntio. Para evitar a perigosa circunavegação do Peloponeso,
a maioria dos comerciantes transportava suas mercadorias pelos portos correntios. Por ter sido reconstruída em 46 d.C. pelos romanos,
tinha características marcantes de cidade romana. Ali se encontrava
todo tipo de gente, todo tipo de culto, todo tipo de manifestação
cultural da época. Era sede do procurador romano da província da
Acaia. Sua atividade era industrial era marcante: cerâmica, metalurgia
e tecelagem, o que levou à existência de um proletariado industrial
muito forte. A cidade, incluindo a região periférica, tinha cerca de
900 km2 de área e uma população de 100 mil habitantes para mais.
O contexto vital de Paulo e demais missionários era o mundo
urbano, marcado pelo comércio intenso, pela indústria, pelo trabalho
livre e escravo, pelas viagens, pela diversidade cultural e religiosa.
Tarso, cidade natal de Paulo era um centro comercial e cultural de
grande importância, capital da província romana da Cilícia e sede
do procurador. Neste contexto surge uma perspectiva ampla, não
nacionalista, levando em conta a diversidade universal sob o pressuposto da vida urbana. Paulo não precisava mais entrar na lógica da
vida da cidade. Ele cresceu e viveu o tempo todo nela. Dessa visão
ampla e diversificada surge também a estratégia missional global
característica de Paulo.
A estrutura da ação: ser tudo para com todos sem entrar no esquema
A estrutura de ação de Jesus e Paulo era determinada pelas possibilidades que a situação contextual oferecia. Para destacar a diferen-
106
MISSIONAL
ça da estrutura da ação de Paulo e seus companheiros lembremos
novamente as características mais marcantes da ação de Jesus. Ele
empregava preferencialmente uma aproximação individual e “direta”:
Escolhia pessoas, ia até elas e chamava-as pelo nome para o seguirem
(Mt 4.18-22). Com estas pessoas criou um grupo pequeno, itinerante,
que o acompanhava e sustentava.
Característico para este grupo era a renúncia à pátria, à família à propriedade (Mt 19.27-29); o sustento provinha de pessoas
simpatizantes proprietárias de bens. Jesus parece não ter visado
a formação de um grande grupo de adeptos ou mesmo uma comunidade. Relacionava-se com as multidões através de discursos
públicos no intuito de ensinar, proclamar e oferecer ajuda concreta.
Porém, Ele não buscava publicidade (Mt 13.36;14.22;15.39 Ele
despede as multidões). Sua linguagem era determinada pelo seu
contexto vivencial agrícola e interiorano e pautada pela capacidade
de compreensão dos ouvintes. Pode-se dizer que a estrutura da ação
do apóstolo Paulo e seus companheiros urbanos se equilibrava na
corda bamba entre “ser tudo para com todos” (1Co 9.22) e “não
entrar no esquema desta época” (Rm 12.1.2). Tratava-se por um
lado, de não se tornar o próprio proclamador um impedimento para
o Evangelho (1Co 10.32), por outro lado, de não entrar simplesmente na onda geral, o que desvirtuaria a novidade do Evangelho,
A estrutura da ação de Paulo não era, quanto a isso, em princípio
diferente da estrutura da ação de Jesus, mas na sua forma assumia
outras peculiaridades, justamente as do mundo urbano. A estratégia
missional, que determinou a contextualização da mensagem do
Evangelho no contexto paulino perpassava a afinidade étnica. As
sinagogas como ponto de mobilização, o trabalho profissional, a
cooperação em equipe, a comunicação vibrante, a organização da
comunidade em casas, seu caráter doméstico e familiar é a solução
para conflitos típicos do meio urbano.
JOÃO COSTA
107
Todas essas informações e inquietações da vida na cidade eram,
de fato, a periferia das ações missionais dos discípulos de Jesus,
que impulsionados pelo genuíno fôlego apostólico, tiveram como
núcleo a direta obediência ao Senhor, sendo conduzidos assim,
pela verdade, e não pelo contexto meramente em si. O poder da
mensagem do Evangelho transcendeu os limites da cidade, alcançando o mundo, porque as fronteiras da contextualização estavam
submetidas à obediência ao Senhor.
Como disse Calvino:
“Assim como a mais certa fonte de destruição dos homens é obedecerem a
si mesmos, assim também o único lugar de segurança é não ter qualquer outra
vontade, qualquer outra sabedoria, senão a de seguir o Senhor onde quer que
Ele guie. Esse deve ser o primeiro passo para renunciarmos a nós mesmos e
dedicarmos todo o vigor de nossa mente ao serviço a Deus. Esse serviço significa
não somente aquilo que consiste em obediência verbal, mas também aquilo pelo
que a mente, destituída de seus sentimentos carnais, obedece implicitamente à
chamada do Espírito de Deus”. 44
44
João Calvino - Institutes of Christian Religion, 3.7.1 - Grand Rapids: Eerdmans - 1947
108
MISSIONAL
JOÃO COSTA
QUARTA PARTE
POR QUE SOMOS MISSIONÁRIOS?
Porque o Mundo Carece de Deus
109
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JOÃO COSTA
111
capítulo 10
Expandindo a visão
“O mundo pode ser alcançado quando o nosso coração como missionários
for tomado por uma só coisa, pela qual o mundo clama: Deus.”
Dwayne Roberts
“E rogo não somente por estes, mas também por aqueles que virão a
crer em mim pela palavra deles, para que todos sejam um; assim como
tu, ó Pai, és em mim, e eu em ti, que também eles estejam em nós, para
que o mundo creia que tu me enviaste.”
João 17.20,21
Quantas vezes, equivocadamente, pensamos que quando nos dedicamos à busca por uma vida de oração, onde submetemos cada passo a
ser dado em nossa caminhada ao Senhor é uma fuga da realidade e que
não contempla a necessidade ao nosso redor? O pragmatismo imediato
tem sido um grande rival do cumprimento missional da nossa vocação.
As turbulências da cidade imprimem ritmos que não são cadenciados
pela graça. Este ponto da oração de Jesus, amplia a escala e nos mostra a
perfeição do propósito eterno de Deus, transcendendo tempo e espaço.
A unidade em obediência dos cristãos missionais a partir de Jerusalém, avançaram por cidades além do seu contexto, teria uma reverberação que talvez os discípulos não imaginassem que alcançariam,
mas que o Senhor em sua soberania já tinha estabelecido. Carson
comentando essa passagem diz: “Essa unidade é análoga à união que Jesus
desfruta com seu Pai, nesse ponto esclarecida com as palavras assim como tu, ó
112
MISSIONAL
Pai, és em mim, e eu em ti (…) Da mesma forma, os crentes, devem ser um em
propósito, em amor, em ação empreendida com todos e uns pelos outros, unidos
na submissão à revelação recebida” 45
O fato é, que nossa unidade missional hoje, assim como foi com os
primeiros discípulos e a Igreja chamada primitiva, tem como contraponto a
diversidade de vozes e visões a respeito da missão, que é configurada pelas,
muitas vezes, bem intencionadas, ações da Igreja-instituição. Bem dizia
Pascal: nunca o mal é tão bem-feito, quando vem feito com boa-vontade.
Por causa desse equivoco, profetas foram chacinados e os primeiros
mártires da Igreja surgiram. A expressão da Igreja, como o organismo
efetivamente missional, que congrega os discípulos, que é a expressão da
cidade de Deus, é a expressão de unidade, que tendo Jesus como cabeça,
alcança os confins da terra. A Igreja como mera instituição, lamentavelmente tem feito muitas vítimas e provocando sofrimento injusto.
Centralizada em si mesma e em seu próprio poder, ela é expressão
daquilo que Paulo chama “a carne”. A carne traz a morte (Rm 8.6; Gl
6.8). A carne não entende as coisas do Espírito (Rm 8.5). E a Igreja
como Corpo de Cristo, em missão na terra nasce da fé do povo pelo
Espírito Santo, e não pelo poder de dominação e imposição imperial,
clerical e institucional. Esta Igreja “missional” tem como referência
máxima o mistério da Trindade santa, o protótipo derradeiro de toda
convivência da diferença e da unidade. Frost e Hirsch dizem:
“Missão não é meramente uma atividade da Igreja. É o verdadeiro batimento
cardíaco da obra de Deus. É na pessoa de Deus que a base da iniciativa
missionária é encontrada. O Senhor é o Deus que envia, com o desejo de ver
a humanidade e a criação reconciliada redimida e curada. A Igreja missional,
então, é uma Igreja enviada. É uma Igreja que vai, um movimento divino
através de seu povo, enviado para trazer cura a um mundo decaído” 46
D.A. Carson - O Comentário de João, pg 569 - Shedd Publicações - 2007
Michael Frost e Alan Hirsch - The Shaping of Things to Come: Innovation and mission for
the 21st-century church - pg 18 - Hendrickson Publishers - 2007
45
46
JOÃO COSTA
113
Assumindo que fomos enviados e somos a Igreja em missão,
devemos saber atuar politicamente, na perspectiva do espírito das
bem-aventuranças e no horizonte de uma espiritualidade pascal, que
aprende das crises e se fortalece nas perseguições.
Importa continuar a penetração no continente dos pobres e permitir que eles construam o projeto popular de Igreja. A partir desta
inserção, explorar tudo o que chamamos de sacerdócio coletivo, onde
todos ministram e servem. Crescer, portanto, para o fundo. John
Wimber ensinava que:
“Esse ministério é todo baseado em compaixão e misericórdia de Deus.
Jesus foi a evidência viva da compaixão e misericórdia de Deus para aqueles
que estavam desamparados e necessitando do Seu amor (…) Hoje, como o
Corpo de Cristo, nós continuamos essa missão, incorporando o ministério de
compaixão e misericórdia.” 47
Faz-se necessário fortalecer uns aos outros, através de juntas e
ligamentos, fazendo com que mais e mais irmãos e irmãs tornem-se de fato missionários, fazer de nossa comunhão algo intencional.
Crescer, portanto, para os lados.
É urgente garantir um diálogo constante com líderes institucionais,
pois não existe vilania neles, e muitos estão apenas desinformados. Estes
são aliados contraditórios porque vivem uma cumplicidade dolorosa,
mas são imprescindíveis no processo de legitimação e consolidação do
entendimento holístico da Igreja em missão. Crescer, portanto, para cima.
Arrebatar o Evangelho como inspiração para a insurreição e libertação da velha e perversa ordem que tanta iniquidade perpetrou na
historia e que soube cooperar para si o poder da igreja como aparelho
de legitimação de seus ideais e interesses. Os sonhos baseados em
justiça social não são monopólio das esquerdas indiferentes, gnós47 John Wimber - Everyone Gets To Play - pg 38 - Ampelon Publishing - 2008
114
MISSIONAL
ticas e atéias ou está enclausurado no que chamamos de teologia da
libertação.
Não cair na tentação de transformar a igreja “missional” num
modelo eclesial. Missão não é um movimento na Igreja, mas a Igreja
toda em movimento. Caso contrário, ficara configurada num quadro
canônico anacrônico e perderia sua originalidade. Elas devem continuar com o dinamismo que penetra todo o tecido eclesiástico.
De fato, estamos todos em missão de alguma forma. A questão
é: qual é a sua missão? O que define o propósito da sua vida? Isso
é sua missão. Jesus deu a Sua Igreja, ao Seu povo uma missão: fazer
discípulos. Na prática, isso consiste em chamar rebeldes pecadores
a crer em Jesus para alcançar o perdão para os pecados. Entretanto,
frequentemente a Igreja tem se desviado dessa missão. Isso acontece quando a Igreja deixa outra coisa tornar-se a missão primária: a
construção de um prédio, uma não declarada teologia do tipo “tragam
pessoas a nós”, o tamanho da congregação, orçamentos, ativismo e
até mesmo apatia.
Pior ainda, é quando a igreja deixa uma nuvem de suspeita contaminar suas ações, quando deixam parecer que não são bem vindos
aqueles que não se parecem conosco, não votam como nós, não se
vestem como nós, ou que não tem o mesmo perfil socio-econômico
que nós. Quando a missão se desvia a igreja indefinidamente para
de alcançar pessoas.
Através de um corte missiológico, vamos observar três características que ajustam o foco da igreja “missional”:
ENCARNACIONAL
Igrejas missionais são profundamente conectadas a comunidade.
A não é focada em seu prédio, mas é focada em viver, demonstrar e
oferecer uma comunidade bíblica a um mundo perdido. Isso implica
JOÃO COSTA
115
em seguir o exemplo de Jesus, o Deus que se tornou homem. Nós
devemos estar comprometidos agora a nos tornar parte do contexto
em que Deus nos colocou, agindo como agentes redentivos.
AUTÓCTONE
Igrejas missionais são autóctones, naturais da região onde atuam.
Comunidades que são autóctones são enraizadas na cultura local e
refletem, de forma redentora, a cultura local. Igrejas missionais vão ter
expressões diferentes a partir de suas localidades, e por isso devemos
com humildade, estudar as variadas culturas para alcançá-las com o
Evangelho de forma que compreendam a veracidade da mensagem.
INTENCIONAL
Igrejas missionais são intencionais em sua prática:
Intencionais em produzir missionários ao invés de consumidores
no processo de discipulado;
Intencionais em equipar pessoas para viver o cotidiano com a
intencionalidade do Evangelho;
Intencionais em edificar uma grande cidade e não uma “boa igreja”;
Intencionais em se envolver com as mazelas e doenças sociais
através de misericórdia e justiça;
Intencionais em outras igrejas que irão fazer o mesmo;
Intencionais em fundir fidelidade bíblica com engajamento cultural.
Quando Jesus em sua oração diz “que também eles estejam em nós,
para que o mundo creia que tu me enviaste” Ele não se refere a um
grupo seleto de missionários transculturais. Ao invés disso, o fato de
estarmos Nele possibilita a todos nós respondermos ao seu chamado
em nosso contexto. Jesus é nosso principal exemplo. A encarnação,
Deus se tornar homem, nos ajuda a entender e nos relacionar uns
116
MISSIONAL
com os outros. A cruz provê o quadro geral pra nossa teologia (no
que nós cremos e como nós nos relacionamos com Deus). Mas é a
encarnação que provê o quadro geral da nossa missiologia (no que
nós cremos e como nós nos relacionamos com a cultura).
Driscoll e Breshears descrevem bem isso ao constatar que:
“na maioria das religiões, o homem mais sagrado dos homens era aquele que
se afastava da cultura e dos pecadores. Reciprocamente, Jesus Cristo veio para
dentro da desordem da história humana e gastou tempo em comunhão com
crentes e não crentes, semelhantemente” 48
Durante seu ministério terreno, nós vemos Jesus amando pessoas,
gastando tempo com pessoas, e compartilhando sua vida com pessoas.
Nós vemos um pária ministrando a outros párias, nós vemos graça
manifesta na vida de uma prostituta, de um adúltero, de um coletor de
impostos. Nós vemos um Deus-homem vivendo com absoluta compaixão, enxergando as pessoas ao seu redor que “andavam atribuladas
e abatidas, como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9.36). E Ele diz: Eu
estou aqui. Eu estou aqui para buscar e salvar aquele que está perdido.
Uma Igreja missional não vê as pessoas e a cultura como inimigos,
mas como tesouros perdidos que Deus está restaurando. A restauração
só é feita completa e abertamente, através do Evangelho, sendo comunicado pelo povo enviado por Deus, a Igreja. Isso é ser missional.
Nós temos um remetente (Jesus), uma mensagem (o Evangelho), e
os destinatários (pessoas reais inseridas na cultura). Estar em missão nos faz compreender aquilo que muitos tem buscado de várias
formas: a Igreja é ao mesmo tempo instituição e acontecimento. É
instituição na sua organização que vem do passado, na sua esturtura
sacramental, ministerial, dogmática e liturgia. A instituição garante a
continuidade histórica e insere a fé no conjunto da sociedade. Mas
Mark Driscoll e Gerry Breshears - Doctrine - what christians should believe - pg 240 - Re:Lit/
Crossway Books - 2010
48
JOÃO COSTA
117
a Igreja não é apenas isso. Ela, em missão, também é acontecimento. Quando pessoas se encontram em qualquer lugar, mesmo sem
grandes estruturas físicas e estratégicas, mas onde a Palavra conduz
a transformação das mesmas, aí está presente o Senhor com seu Espírito, aí emerge a Igreja como acontecimento. O missiólogo David
Bosch identifica esse processo: “O Evangelho deve permanecer como a boa
nova tornando-se, até certo ponto, um fenômeno cultural, enquanto considera os
sistemas de significado presentes no contexto” 49
Talvez hoje, dado o peso da instituição milenar, sua pouca flexibilidade, seus compromissos históricos com certos setores da cultura
dominante, esse caráter de acontecimento da igreja missional torne
novamente apetecível a mensagem de Jesus, a faça menos contraditória aos sentidos humanos, e lhe devolva de novo seu caráter de
boa nova.
David Bosch - Transforming Mission: Paradigms shifts in theology of mission - pg 454 - Orbis
Books - 1991
49
118
MISSIONAL
JOÃO COSTA
119
capítulo 11
Perspectivas da Unidade
“A unidade e a diversidade que existem neste mundo são simplesmente um reflexo
da unidade e da diversidade que existem na Trindade”
Wayne Grudem
“Eu lhes dei a glória que me deste, para que sejam um, assim como nós somos um;
eu neles, e tu em mim, para que eles sejam levados à plena unidade, a fim de que o
mundo reconheça que me enviaste e os amaste, assim como me amaste.”
João 17.22,23
A unidade é a expressão divina no Corpo de Cristo que faz com
que não sejamos apenas agremiações, ministérios, denominações
e movimentos temporais. A unidade nasce da perspectiva de que
Jesus se revelou a nós, e que o desenvolvimento dessa revelação nos
levará a uma plenitude de quem somos como Igreja do Senhor. A
glória que Jesus recebeu nos é dada, mediante a graça, com a finalidade de sermos os anunciadores do Reino. Sem essa glória, como
revelação da pessoa de Jesus, não temos unidade. E sem unidade,
o reconhecimento global de quem é Deus e do seu amor não acontece. Com esse raciocínio, nós não podemos separar eclesiologia (o
pensar e o praticar Igreja) da missiologia. A revelação de quem é
Jesus não nos leva, como uma igreja missional, a ser uma alternativa
para a instituição vigente. A vida cristã, pela perspectiva missional
da unidade, se caracteriza pela ausência de estruturas alienantes,
120
MISSIONAL
pelas relações diretas, reciprocidade, profunda fraternidade, auxílio
mútuo, comunhão de ideiais e igualdade entre os membros. Está
ausente aquilo que caracteriza as sociedades: regulamentos rígidos,
hierarquias, relacionamentos prescritos num quadro de distinções
de funções e atribuições.
O entusiasmo gerado pela vivência interpessoal do “nós” e a
experiência de saborear a atmosfera do Evangelho levanta, com frequência, um problema não desprovido de gravidade. Os missionários
têm que estar atentos a ele para não cair em ilusões. Por vezes, se crê
e se alimenta a expectativa de que toda a Igreja, enquanto instituição, se transformar numa comunidade missional. E expreessão da
unidade, por um entendimento missional, se dará na expressão de
redes. Neil Cole diz:
“A formação expansionista de redes de discípulos, líderes, igrejas e movimentos
podem acontecer somente se prestarmos atenção cuidadosamente como Deus criou
a humanidade para interagir. Por muito tempo, a Igreja ocidental tem ignorado
esses importantes conceitos e, no processo, perdendo uma real oportunidade de
mudar vidas, e consequentemente transformar de vizinhanças à nações.” 50
A comunidade não constitui uma formação típica de uma fase da
humanidade ou possível de se realizar atualmente em estado puro.
Concretamente existe sempre a estrutura de poder, seja de versão
dominativa, seja de versão solidária, vigoram desigualdades e papéis
estratificados de acordo com uma escala de valores. Há conflitos, interesses particulares. Historicamente as formações sociais apresentam-se como entreveros com características societárias e comunitárias.
Nesse sentido, não há realismo na luta por uma sociedade sem classes,
totalmente fraterna, sem conflitos, mas somente na luta por um tipo
50
Neil Cole - Church 3.0: upgrades for the futures of the church - pg 162 - Jossey Bass - 2010
JOÃO COSTA
121
de sociabilidade onde seja menos difícil o amor e onde haja melhor
distribuição de poder e de participação. A comunidade deve ser entendida como um espírito a ser criado, uma inspiração que alimenta
o esforço de continuamente superar as barreiras entre as pessoas e
gerar um relacionamento solidário e reciproco.
A convivência humana sempre será cheia de tensões entre o aspecto organizatório, impessoal e outro pessoal, íntimo. Lutar para
que predomine a dimensão comunitária implica em lutar para que
as estruturas e as ordenações não se substantivem, mas ajudem a
humanizar o homem e a fazê-lo cada vez mais próximo do outro
e dos valores evangélicos. O predomínio do comunitário sobre o
societário apresenta-se mais viável em pequenos grupos. Daí a importância do cultivo da comunidade dos discípulos como expressão
missional dentro da sociedade eclesial. Para que se mantenha seu
vigor renovador, o espírito comunitário precisa ser alimentado e
impulsionado. Não basta os missionáios estarem juntos para executarem algumas tarefas. O que constitui um agrupamento humano
com características comunitárias é seu esforço de criar e manter a
envolvência comunitária, comum um ideal, um espírito a sempre
ser recriado, vencendo o rotineiro e o ambiente institucional e castrador. O Evangelho, com seus valores expressos em amor, perdão,
fraternidade, a renúncia ao poder opressor, acolhida do outro, entre
outros, essencialmente se orienta na criação, dentro das estruturas
societárias, do espirito comunitário. Há, entretanto, que se advertir:
a institucionalização é um fenómeno inevitável a todo grupo que
visa permanecer e estabilizar-se.
Com isso, surge a codificação das experiências bem-sucedidas, e
por ai a comunidade missional pode ser ameaçada. Para conservar-se,
o espírito comunitário precisa revitalizar-se continuamente. Tal tarefa
122
MISSIONAL
será facilitada se os grupos se mantiverem relativamente pequenos
e não se deixarem absorver pela institucionalidade, que por vezes
atende as necessidades das nossas próprias vontades, por meio do
ativismo. Cícero Bezerra diz: “O serviço para Deus não é um fim em si
mesmo. O trabalho é uma oportunidade para contribuirmos com a geração atual,
e testemunharmos das grandes coisas que Deus tem feito.” 51
A vida missional, enquanto significar a presença do comunitário no
cristianismo e dentro da Igreja, não pode pretender ser uma alternativa
global à Igreja como instituição, mas seu permanente elemento renovador. Ao dizermos que a “igreja missional” não poderá pretender ser
uma alternativa global ao institucional, não estamos menosprezando
seu real valor renovador no tecido eclesiástico. Tentamos situar seu
significado da Igreja universal. Ela sem dúvida significa um aguilhão
capaz de mobilizar os aspectos enrijecidos da Igreja como instituição e representa uma chamada para uma vivência mais intensa dos
valores autenticamente comunitários da mensagem do Evangelho.
Podemos dizer que toda a pregação de Jesus consistiu em reforçar
esses aspectos comunitários.
Num sentido horizontal, conclamando os homens ao respeito mútuo, à doação, à fraternidade, à simplicidade das relações.
Num sentido vertical, abrindo o homem à sinceridade da relação
de filho de Deus, à singeleza da oração simples e do amor generoso para com o Pai. Não se preocupou muito com o aspecto
institucional, senão com o espirito que deve ser vivido em todas
as expressões do convívio humano. A Igreja, em sua globalidade,
é a coexistência concreta e vital da dimensão social e institucional com a dimensão comunitária. Nela há uma organização que
transcende as comunidades particulares, atendendo à comunhão
51
Cícero M. Bezerra - Conversas Sobre Espiritualidade - pg 79 - 2001
JOÃO COSTA
123
de todas elas. Há uma autoridade, símbolo da unidade do mesmo
amor e da mesma esperança, há um credo, expressão da mesma
fé fundamental, há metas globais, comuns a todas as comunidades
locais. As reflexões sociológicas ganham relevância para a teologia,
por desfazerem ilusões e por manterem os termos instituição e
missão sobre bases realistas.
A Igreja que nasce no povo é a mesma Igreja que nasceu nos apóstolos. O que muda nela é a sua aparição sociológica no mundo, sua
forma de expressão litúrgica, ministerial e organizacional, não muda
a coexistência permanente de um aspecto mais estático, institucional,
permanente com o outro dinâmico, carismático e vital. Persistirá na
Igreja sempre, e isto expressa sua vitalidade, a perseverante vontade
de impregnar de espirito comunitário o aspecto institucional e organizacional da Igreja.
O problema da Igreja não reside, na verdade, no contraposto
Igreja como instituicao/Igreja em missão. Haverá sempre a persistência de ambos os pólos. O real problema reside no modo como
se vive tanto o comunitário quanto o institucional: se um quer
absorver o outro, tolhi-lo e liquidá-lo, ou se ambos respeitam e
abrem mutuamente suas fronteiras num constante movimento em
que se deixam questionar. Essa última atitude não deixará que o
institucional assuma características enrijecedeoras e venha a predominar, e também não permitirá que o comunitário/missional
degenere num puro utopismo, pretendendo que a Igreja global se
transforme numa missão.
A convergência desses dois modelos eclesiologicos, por assim
dizer, e sua interação dialéctica contribuíram para que a Igreja como
totalidade tomasse consciência profunda de sua ação missionária,
especialmente entre os pobres deste mundo, uma majoritária massa a
124
MISSIONAL
ser alcançada, de cuja paixão ela participa, servindo-os. Pedro Arruda,
um irmão que viveu bem essa tensão, diz que:
“As 95 testes de Lutero, de certa forma, perderam a importância até mesmo
entre os seus muitos seguidores, que praticam de maneira descarada aspectos que
foram nelas denunciados. Penso que uma única afirmação poderia ser pregada
na porta de todos os templos cristãos denunciando o maior erro da Igreja: “Sedes
perfeitos em unidade para que o mundo creia”. Quando alcançarmos esta prática,
o ciclo da Reforma estará completo. Jamais podermos considerar a unidade como
um elemento que podemos produzir por nós mesmo, pois ela tem o caráter e a
natureza divina, e como tal, só Deus pode produzi-la em nós. Ela é o resultado
de comunhão, e esta só pode ser encontrada na prática de uma só vontade: a de
Deus. Assim, a prática da vontade de Deus gera a comunhão, que por sua vez
produz a unidade.” 52
Pedro Arruda - A Comunhão Nossa de Cada Dia: A reforma da unidade da igreja - pg 112 - CCC
Edições - 2010
52
JOÃO COSTA
125
capítulo 12
Ágape
“Deus é o maior bem do ser humano, e o amor por Ele á a única alegria que pode
satisfazer nossas almas”
Jonathan Edwards
“Pai, meu desejo é que aqueles que me deste estejam comigo onde eu estiver, para que
vejam a minha glória, a qual me deste, pois me amaste antes da fundação do mundo.
Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheço; e estes reconheceram que tu
me enviaste. E fiz que conhecessem o teu nome e continuarei a fazê-lo conhecido; para
que o amor com que me amaste esteja neles, e eu também neles esteja.”
João 17.24-26
O mundo carece de amor. A aldeia global, e sua pretensa proposta de horizontalização de valores, buscam desesperadamente amor.
Desde as expressões originalmente lúdicas que se manifestam numa
libertinagem que grita por atenção, até as microrevoluções pulsantes
nas esferas da política e da economia, culminando no colapso do
ecosistema, a criação geme por uma manifestação que traga redenção.
E esta manifestação é o amor. A oração de Jesus expressa a vontade
soberana do Senhor, que sobrepõe os desejos escusos e confusos da
humanidade. O teólogo luterano Gottfried Brakemeier constata que:
“Embora seja condição humana universal, a carência de salvação se agudiza em situações concretas, muito em analogia aquela experimentada pelos
seguidores de Jesus no barco. É sentida com especial gravidade por pessoas e
grupos vítimas da fome, da doença, do crime. Assim aconteceu com o povo de
Israel no Egito, ao viver submetido ao jugo da escravidão. Assim testemunha
126
MISSIONAL
a lamentação de autores de Salmos, trazendo diante de Deus suas agruras.
Assim documentaram os gemidos de torturados, oprimidos, sofredores de todos
os tempos. Na America Latina, o flagelo da injustiça, da exclusão social, da
absoluta miséria de amplas parcelas da população, confere ao brado por salvação, particular intensidade. A violência, quase “normal” deste continente, é
um dos temíveis sintomas da mesma. Junta-se o clamor todo o assim chamado
“Terceiro Mundo”, ou seja, o mundo pobre, explorado, “subdesenvolvido”.
Esta é a razão por que o Conselho Mundial de Igrejas colocou a Conferencia
Mundial de Missão, realizada em Bangkok, Tailandia, em 1973, sob o
tema: “Salvação Hoje”. Qual o significado de salvação em meio às dramáticas
rupturas sociais e crises e sentido do mundo globalizado?” 53
A perfeição comunitária na Trindade é o veio de esperança para
a humanidade.
E ela se manifesta ao homem, com o romper do tempo/espaço
quando Jesus ora inclusive, por aqueles que iriam crer na mensagem
dos seus primeiros discípulos. Sabemos ao longo da História bíblica que
essa mensagem não criou uma religião, mas efetivamente, transformou o
mundo. Cremos, na conclusão da História bíblica, que o desfecho desta
jornada, com o estabelecimento pleno da Cidade de Deus, onde a glória de Deus será vista por nós, sem mais nenhuma barreira, pois como
vemos nos momentos finais da oração sacerdotal, “estaremos” Nele,
imergidos em sua realidade plena no Reino vindouro. A devoção que
há na pessoa de Jesus a inspiração faz com que nosso altar tenha como
nascedouro o lugar secreto, o quarto. Mas, enquanto comunidade de
discípulos, esse altar vai ser o cenário de atuação do sacerdócio de todos
os santos, que não se restringe a subcultura religiosa, mas vai ganhar nas
ruas e nas extensões múltiplas que alcançam os confins da terra, através
da mensagem encaranada do Evangelho do Reino de Deus. Newbigin diz:
Gottfried Brakemeier - O Ser Humano em Busca de Identidade: Contribuições para uma
antropologia teológica - pg 191,192 - Editora Sinodal/Paulus - 2002
53
JOÃO COSTA
127
“Jesus proclamou o Reino de Deus e enviou seus discípulos a fazerem o mesmo.
Mas isso não foi tudo. Sua missão não dizia somente respeito a palavras, e o
mesmo acontece conosco. Se o Novo Testamento falasse somente da proclamação
do Reino, poderia não haver nada que justificasse o adjetivo “novo”. Os profetas
e João Batista também proclamaram o Reino. O que é a “novidade” é que em
Jesus o Reino é presente (…). No Novo Testamento nós não estamos apenas
lidando com a proclamação do Reino, mas também com a presença do Reino.” 54
Essa presença do Reino se dá pela nossa ação missional, que acima
é movida pelo amor que em primeiro lugar nos alcançou e nos faz
enxergar a carência de um mundo decaído.
A grande comissão, que predominantemente lemos pela perspectiva de Mateus, é encarada e vivenciada no aspecto da evangelização,
que diversas vezes se limita a um programa isolado em nossas igrejas.
A vida em missão é vida de amor sacrificial, não se contenta em apenas olhar para Jesus, o missionário definitivo, o cordeiro pascal. O
seu novo e vivo caminho nos redime, mas também nos envia. John
Stott, falando sobre missões nessa geração declarou:
“A forma crucial como a Grande Comissão foi entregue a nós (apesar de ser a mais
negligenciada, por ser a mais custosa), é a joanina. Jesus havia antecipado isso em
sua oração no cenáculo quando disse ao Pai: “Assim como tu me enviaste ao mundo,
também eu os enviei ao mundo” (Jo 17.18). Agora, provavelmente no mesmo cenáculo,
mas depois de sua morte e ressurreição, ele transforma sua oração-declaração em uma
ordem: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”(Jo 20.21). Nessas duas
sentenças, Jesus fez mais do que traçar um paralelo vago entre sua missão e a nossa.
Precisa e deliberadamente, Ele fez de sua missão um modelo para a nossa, dizendo:
“assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”. “Portanto, nossa compreensão
da missão da Igreja deve ser deduzida da nossa compreensão da missão do Filho.” 55
Leslie Newbigin - The Open Secret: An introduction to the theology of mission - pg 40 Eerdmans - 1995
55
John Stott - A Missão Cristã no Mundo Moderno - pg 27 - Editora Ultimato - 2009
54
128
MISSIONAL
Algo de novo está acontecendo na presente geração de cristãos no
Brasil. Está surgindo uma sede ou um despertamento para um testemunho vigoroso e encarnado do Evangelho. Através de iniciativas
pequenas e silenciosas, ou na condição de movimentos e comunidades
que estão se organizando, onde os dons espirituais têm sido buscados
e manifestos de forma relevante, naturalmente sobrenatural, nota-se
o surgimento de um genuíno amor.
Esta nova sensação vem carregada de certa inconformidade com
tudo o que é demasiadamente institucional e pesado para ser mobilizado
para uma nova e expandida visão do Evangelho. Tem-se a impressão
que está nascendo uma profunda sintonia com o espírito das primitivas comunidades cristãs e missionais, no sentido de avançar com um
mínimo de engessamento denominacional e o máximo de criatividade.
Essa profusão missional e criativa já começa com a iconoclastia
dos próprios membros que formam essas comunidades, onde ter o
nome destacado pelas suas obras não é uma meta. Se a comunidade
de Jerusalém nos serve como um modelo de formação espiritual entre
os discípulos, a comunidade de Antioquia é a comunidade do envio
intencional, guiado pelo Espírito Santo, dos primeiros missionários
que de fato alcançaram os confins da terra. Michael Green descreve:
“A pregação aos samaritanos e prosélitos religiosos como o eunuco etíope e
Cornélio é realmente notável, mas pode ser considerada uma ampliação dos
laços de Israel com os “estrangeiros dentro de casa”. O mesmo não ocorre
com a pregação a pessoas totalmente pagãs, começada em Atioquia, conforme
somos informados. Isto é uma mudança decisiva, e a Igreja de Jerusalém
aceitou-a, e até enviou uma comissão de um homem para aprová-la, acabando
por reconhecer que os adeptos gentios da fé não precisavam cumprir a Lei de
Isarel nem trazer a marca da aliança, a circuncisão; a própria fé e o batismo
associavam as pessoas ao Messias, sejam judias ou gregas.” 56
56
Michael Green - Evangelização na Igreja Primitiva - pg 138 - Editora Vida Nova - 1989
JOÃO COSTA
129
No capítulo 13 de Atos vemos o envio dos primeiros apóstolos,
Saulo e Barnabé, enquanto eles jejuavam e oravam durante um culto
de adoração a Deus (Atos 13.1-3). A linguagem de pentecostes foi
comum entre aqueles que ali estavam.
Mas no início do relato sobre a Igreja em Antioquia vemos algo
muito interessante: “Os que foram dispersos pela tribulação que se deu por
causa de Estêvão foram para a Fenícia, Chipre e Antioquia, anunciando a
palavra apenas aos judeus. Mas havia entre eles alguns que tinham vindo de
Chipre e de Cirene, os quais, entrando em Antioquia, falaram também aos gregos, anunciando o evangelho do Senhor Jesus. E a mão do Senhor era com eles, e
um grande número de pessoas creu e se converteu ao Senhor” (Atos 11.19-21)
- percebam que alguns que tinham vindo de Chipre e Cirene, é que
foram as vozes missionais, que não conseguiam conter o Evangelho
na sua cápsula exilada. Por mais que Atos 13 destaque os nomes e os
dons dos irmãos que ali adoravam o Senhor, o fervor missional de
Antioquia nasce entre anónimos, que tinham essencialmente, como
capacitação missionária, a mão do Senhor.
Este avanço espontâneo e livre do Espírito Santo representa
ameaça para aquelas comunidades históricas que estão fortemente
estruturadas e organizadas para controlar seus fiéis através de fichários e manuais proselitistas de suas próprias tradições confessionais.
Fato é, que hoje, especialmente no meio urbano, manifesta-se uma
livre busca por preferências espirituais. Isto é bom e ruim ao mesmo tempo. Tem o lado positivo porque desafia as comunidades a se
atualizarem para as novas necessidades missionárias, com o objetivo
de alcançar um mundo carente de Deus. O lado negativo é que pessoas são levadas a consumir espiritualidade de acordo com gostos
ou pecados que impedem uma verdadeira conversão ao Evangelho.
Entendemos que nossa jornada nasce na devoção e desemboca na
missão, porque é apenas ouvindo o Senhor que vamos saber trilhar
neste estreito e tênue caminho. O desafio da Igreja, neste momento, é
130
MISSIONAL
encontrar o equilíbrio. Não se “ancorar” no equilíbrio, para justificar
intolerância e omissão. Ficar ancorado na rocha eterna do Evangelho, mas simultaneamente possuir um coração aberto e sensível para
agir criativamente a fim de não perder as novas oportunidades que
surgem, sendo missionários que vislumbram pela fé, o cumprimento
da missão, no Grande Dia, o casamento do Cordeiro com sua Noiva,
a Igreja. Onde todo joelho se dobrará e toda língua confessará que
Jesus Cristo é o Senhor.
JOÃO COSTA
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São 13 lições com aplicações práticas sobre cada
capítulo do livro. Ideal para ser usado para reflexão
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MISSIONAL
JOÃO COSTA
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MISSIONAL
JOÃO COSTA
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Percepção
Enxergando um Deus imutável em meio
a um mundo mutante
Autor: J. C. Ryle
64 páginas
Formato: 14 X 21 cm
“Essa obra se opõe à idolatria religiosa de se
tentar chegar a Deus sem Cristo, mesmo frequentando a igreja. Estar na igreja não quer
dizer necessariamente que a vida está sendo
transformada pelo Evangelho. Por isso, essa
obra é extremamente relevante para o contexto
evangélico brasileiro. Estudiosos e observadores do fenômeno religioso tem falado e escrito
muito sobre o crescimento da igreja evangélica brasileira e seu potencial numérico para os
próximos anos.” Juan de Paula, Pastor batista e professor de teologia.
Músicos, calados!
Porque música é enfeite de louvor.
Autor: Márcio de Souza
64 páginas
Formato: 14 X 21 cm
“Sem dúvida alguma uma das vertentes mais
importantes desse livro é a ênfase do Pr. Márcio, ele mesmo um músico, à vida de adoração
pessoal de quem pretende servir na área da
música. É a isso que o autor chama de “Músico sem música”, ou seja, esse princípio espiritual de que o músico deve ser um adorador
na vida antes de se colocar frente ao povo de
Deus.” Stênio Marcius, músico e poeta.
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MISSIONAL
Confiança em tempo de crise
Aprendendo a viver sob os cuidados do Pai.
Autor: Claudio Alvares
64 páginas
Formato: 14 X 21 cm
“No livro ‘Confiança em tempo de Crise’,
o pastor Claudio nos ensina através da
vida de Elias de que o Deus da Bíblia independente da circunstância que estejamos
vivendo se faz presente em nossas vidas,
suprindo as nossas necessidades de forma
extraordinária.“ Renato Vargens
O Sangue
Autor: Dwight L. Moody
64 páginas
Formato: 14 X 21 cm
“Que Deus nos ajude a dar importância
ao sangue de Seu Filho. A Deus lhe custou muito dar Seu Filho, e vamos procurar que não chegue ao mundo a notícia de
que ele está perecendo por falta Dele? O
mundo pode nos abstrair, mas não a Cristo. Preguemos a Cristo em tempo e fora
de tempo. Vamos aos enfermos e aos que
morrem e apresentemos ao Salvador que
veio para buscá-los e salvá-los, que morreu para redimir-lhes.“ Dwight L. Moody