Experiência masculina da paternidade nos anos - Pagu
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Experiência masculina da paternidade nos anos - Pagu
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Departamento de Sociologia EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias S ANDRA G. U NBEHAUM Dissertação de mestrado, sob a orientação do Prof. Dr. Antônio Flávio Pierucci, apresentada ao Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, julho de 2000 Banca Examinadora Dr. Sérgio Carrara (IMS/UERJ/RJ) Dra. Cristina Bruschini (FCC/SP) Dr. Antonio Flávio Pierucci (orientador) 2 À memória de Erika Elfriede Mewes Unbehaum, dona-de-casa, 5 filhos. Aos 32 anos, sem mais nem menos, partiu deixando-me a revelação de que a vida pode ser breve e por isso merece ser intensamente vivida. 3 Agradecimentos Ao ler o romance autobiográfico de Marguerite Duras – Escrever – achei as exatas palavras para o sentimento que não poucas vezes me acompanhou durante a elaboração desta dissertação: Escrever. Não posso. Ninguém pode. É preciso dizer: não se pode. E se escreve. É o desconhecido que trazemos conosco: escrever, é isto o que se alcança. Isto ou nada. (...) A escrita é o desconhecido. Antes de escrever, nada se sabe do que se vai escrever. E em total lucidez. (...) Se soubéssemos algo daquilo que se vai escrever, antes de fazê-lo, antes de escrever, nunca escreveríamos. Não ia valer a pena. Escrever significa tentar saber aquilo que se escreveria se fôssemos escrever – só se sabe depois – antes, é a coisa mais perigosa que se pode fazer. Mas também a mais comum. A escrita vem como vento, nua, é de tinta, a escrita, e passa como nada mais passa na vida , nada, exceto ela, a vida. Foi exatamente assim, nem sempre consegui manter a serenidade de quem sabe que com esforço e perseverança pode escrever, deixar as idéias fluírem sem censura, sem medo; quanta insegurança! Havia sempre alguma coisa mais urgente, que precisava de minha atenção. Houve, é claro, também muitas outras tarefas a serem conciliadas, já que a vida não se sustenta fazendo mestrado! E mudanças na rota da vida pessoal, bom não esquecer! Algumas vezes sentia-me fora de lugar, uma imigrante de Rolândia (PR) na cidade grande, denunciada pelos “erres” carregados e pelo desconhecimento de um certo tipo de cultura “erudita” e acadêmica. Mas em nenhum momento me senti sozinha e estes vínculos foram decisivos na minha trajetória pessoal e profissional. Ao longo desses anos aqui, em São Paulo, fui colhendo amigos que de diferentes maneiras participaram de minhas pequenas conquistas, entre as quais esta dissertação de mestrado. Uma dissertação pode tomar corpo em poucos meses, mas sua alma é gestada ao longo de muito mais tempo, não se cria sozinha. Algumas idéias e reflexões expostas nesta dissertação são devedoras dos incontáveis diálogos que travei com esses amigos e amigas nos últimos cinco anos. Como nos encontros, desde 1994, do Edges (Grupo de Estudos de Educação, Gênero e Cultura Sexual, FE/USP) com Cláudia Vianna, Miriam Morelli, Diana Vidal, Marília Carvalho, Thereza Pegoraro, Teresa Citeli, Daniela Auad; Nas reuniões mensais do Gesmap, desde 1995, (Grupo de Estudos sobre Masculinidades e Paternidade, na Ecos) com Margareth 4 Arilha, Wilza Villela, Susana Kalckmann, Reginaldo Bianco, Sérgio F. Barbosa, Sandra Garcia, minha Xará, Jorge Lyra, Benedito Medrado, Leandro Feitosa, Malvina Muszkat, Bete Cruz, Bete Pinto, Iara Guerriero, Elisiane Pasini, Marko Monteiro, Pedro Paulo M. Oliveira, Silvia Cavasin, Silvani Arruda. Nestes grupos pude discutir o projeto inicial, meu texto de qualificação, trocamos referências bibliográficas, discutimos metodologias e meus primeiros ensaios. Foram verdadeiros laboratórios para esta “aprendiz a pesquisadora”. Na Fundação Carlos Chagas, onde iniciei minha jornada, declaro minha dívida com Cristina Bruschini, pelo primeiro empurrãozinho em direção aos estudos de gênero. Obrigada pela confiança e pelo apoio inestimável e pelo suporte que garantiu o desenvolvimento desta pesquisa, agradeço também à Bernardete Gatti, coordenadora do DPE. Na FCC conheci Heloísa Padula, amiga que se tornou irmã, não faz idéia de quanta coisa me ensinou. Não posso esquecer da mãe da Heloísa, que me deu Santa Rita, abençoada, para me proteger! Agradeço às meninas da BAMP, Zezé, Ana e Helena, pela ajuda nos levantamentos bibliográficos, na aquisição de livros etc. Com Gisela Tartuce, agora, mais recentemente, parceira de sala e amiga, os desabafos, a troca de impressões sobre orientadores, a sociologia e suas diversas tendências teóricas. As caronas e conversas com Celso Ferreti. Albertina O. Costa, conselheira e amiga, pelos bate papos e sugestões. Não esqueço de Danielle Ardaillon, do rico aprendizado e das trocas durante a nossa construção do TEG (Tesauro para Estudos de Gênero e sobre Mulheres); das nossas saídas para tomar um vinho e falar da vida, de relacionamentos, de cinema e de uma paixão comum: a natação. A generosidade e o carinho de Teresa Citeli, amiga querida, e nossas histórias compartilhadas. Neide Rezende, amiga para a vida toda, colocou-me frente a frente com o desafio da escrita. Agradeço a leitura cuidadosa dos primeiros capítulos: de fato, nem sempre a palavra escrita consegue expressar o que gostaríamos de dizer. Cláudia Vianna, amiga querida, sempre presente, generosa, ajudou-me a juntar as primeiras peças, quando as idéias ainda estavam confusas, perdidas em algumas páginas. Obrigada também por “orientar-me” na finalização do texto. Thereza Pegoraro, amiga-anjo da guarda, segurou as “pontas” nos momentos de sufoco e esteve ali sempre pertinho. Tudo teria sido mais difícil sem essa ajuda. Miriam Morelli, saudades das nossas conversas... Jorge Lyra, parceiro de tema, de artigo, amigo, irmão tanto quanto Benedito Medrado, agradeço o carinho, a força, o entusiasmo, perto ou longe, sempre presente. Paulo Baroukh, uma amizade inesperada iniciada na pesquisa de campo. 5 Luiz Ramirez, primeiro apenas um professor de inglês, hoje um amigo querido, a quem admiro e respeito pelo empenho diário para evitar que a diferença não se submeta à intolerância. Agradeço aos professores da Pós-Graduação, Antônio Flávio Pierucci, Eva Blay, Vera Silva Telles, James Holston (professor visitante Universidade da Califórnia, San Diego), José Machado Paes (professor visitante Universidade de Lisboa, Portugal) que ao longo do curso de mestrado alimentaram minhas reflexões sobre o tema de minha pesquisa; a Lucila Scavone (Unesp-Araraquara) sou agradecida pela disponibilidade para discutir no Seminário de Projetos meu pré-projeto. A James Holston agradeço também sua participação em minha banca de qualificação e seus estimulantes comentários. Agradeço a Isabel, Sonia e Samara da Secretaria de Pós Graduação pela simpatia e atenção. À CAPES pela bolsa de estudos, fundamental nos dois primeiros anos da pesquisa. Agradeço a Antonio Flávio Pierucci por aceitar-me como orientanda. Em nossos encontros foi gentil, respeitoso com minhas idéias. Não poderia deixar de mencionar Benício, Carlos, Leonel, Luciano, Luiz, Marcos, Mauro, Péricles, Renato, Saulo, nomes inventados para os personagens reais dessa história. Obrigada pela disponibilidade e pelo respeito ao meu trabalho. Carlito, Helga, Clóvis e André; Ivan e Claudia, Silvana e Diego; Simone, Gabriel e Artur; Flávia, Beto, Eric e agora a Nicole. Tão longe, lá em Rolândia e Londrina, nem imaginam como são importantes. Colho hoje um fruto que foi semeado há muito mais tempo, num outro momento de vida, numa outra história que deve ser lembrada. Agradeço a Marcelo Ridenti, Márcia Ridenti e Stela Ridenti que foram especiais nesta minha trajetória. Marco Antonio e Luis Guilherme Ridenti, meus filhos, iluminam minha vida. Agradeço a paciência pelos fins de semana diante do computador ou dos livros, pelos atrasos por ter ficado até mais tarde na FCC, pelo mau humor, às vezes inevitável. E, finalmente, a Jefferson Alves da Costa Jr., presença amada, agradeço o apoio revelado dia a dia em pequenos e grandes gestos, o carinho e respeito com os meninos, por colocar música logo pela manhã para animar o dia, pelas panquecas com melado de cana no inverno, pelo feijãozinho bem temperadinho à moda da vó Julieta, pelo brinde a cada refeição só para saudar mais um dia, pelas longas conversas ao redor da mesa, enfim, pelo sorriso contagiante e pela mão segurando firme a minha na hora de dormir... 6 Resumo Um acelerado processo de transformações socioculturais tem marcado a vida de homens e mulheres, mais especificamente destas, que passaram por significativa mudança, como atestam estudos realizados nas ultimas três décadas. O advento da pílula anticoncepcional, por exemplo, permitiu que as mulheres tivessem autonomia quanto a sua sexualidade e ampliou o poder de decisão sobre quando ser mãe ou parar de trabalhar. Há expressivo aumento da taxa de participação das mulheres, especialmente as casadas, no mercado de trabalho, bem como aumento de sua participação em espaços antes de domínio masculino. A opção pelo trabalho fora de casa traz para as mulheres e para os homens a necessidade de articular responsabilidades familiares e profissionais, além de administrar conflitos de ordem pessoal. Tais transformações fomentam especulações sobre a presença de um “novo” homem, de um “novo” pai, mais participativo na esfera doméstica, particularmente nas famílias de camadas médias. Este é o panorama que suscitou meu interesse em pesquisar as dimensões que a paternidade adquire nos anos 1990. A análise está restrita a um grupo de 10 homens, com escolaridade de nível superior, profissionais qualificados, residentes na cidade de São Paulo, casados e pais de filhos(as) com idade até 10 anos. A escolha deste universo social e cultural se baseia em uma bibliografia que aponta para sinais de transformações nas relações entre homens e mulheres e para deslocamentos dos significados tradicionalmente atribuídos à paternidade e à maternidade. Esta pesquisa procura verificar se diante de tantas mudanças, a experiência masculina da paternidade, também tem se alterado e se tais transformações têm, de fato, estimulado, por parte dos homens, processos de negociação com suas parceiras no que diz respeito ao cuidado com os filhos pequenos e à distribuição de afazeres domésticos. Abstract Lives of women and men have been marked with a hasty process of sociocultural changes. Many studies show that these changes had a more profound meaning to women’s life. The advent of new methods of birth control, like the contraceptive pill, allowed women to be more free towards their sexuality and enlarge their power of decision about being a mother or stop working. There was an impressive increase in the number of women in the work market, especially the married ones. At the same time, there was an expansion in their involvement in some spaces previously occupied by men. Working outside the household brought to both women and men the need of dealing with family and working responsibilities, besides the fact they have to handle personal conflicts. From the thought about these sociocultural changes was born the idea of a “new man”, a “new father”. This idea asserted that this “new man” was more involved with household affairs. The analysis was made with 10 graduates, married men that live in the city of Sao Paulo. All of them have children with ages from 0 to 10. This universe was chosen based on a bibliography which shows some signals of changing in the relation between women and men and that brings new meanings to the concepts of fatherhood and motherhood. The research wants to show if the father roles are being affected by these sociocultural changes; if these changes have stimulated an increase on men involvement towards child care and the division of house work. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................... 10 A PROPOSTA DE PESQUISA ....................................................................................................................... 17 O GÊNERO COMO REFERENCIAL DE ANÁLISE ............................................................................................ 19 CAPÍTULO 1 DA MATERNIDADE À PATERNAGEM: ...................................................................... 31 UMA QUESTÃO DE GÊNERO ............................................................................................................... 31 A INVENÇÃO SOCIAL DA MATERNAGEM ..................................................................................................... E O LUGAR DA PATERNIDADE ................................................................................................................... 34 34 Cuidar: atribuição f eminina? ................................................................................................... 47 Paternagem e maternagem: a contradição na divisão das taref as............................... 49 CAPÍTULO 2 A PATERNIDADE EM FOCO ........................................................................................ 53 Estudos sobre paternidade ...................................................................................................... 54 O LUGAR DO PAI ..................................................................................................................................... 65 CAPÍTULO 3 O CONTEXTO DA PESQUISA....................................................................................... 72 A FAMÍLIA COMO LOCUS DE MUDANÇAS ................................................................................................... 78 A f amília de classe média:........................................................................................................ 83 locus privilegiado de mudanças .............................................................................................. 83 CRITÉRIOS PARA A DEFINIÇÃO DO UNIVERSO EMPÍRICO ............................................................................ 91 A COLETA DE DADOS ............................................................................................................................... 96 PROCEDIMENTO DE ANÁLISE DAS ENTREVISTAS ...................................................................................... 100 APRESENTAÇÃO DOS ENTREVISTADOS .................................................................................................... 101 CAPÍTULO 4 A FAMÍLIA DE ORIGEM: ............................................................................................ 107 A DESMITIFICAÇÃO DO PAI-HERÓI ................................................................................................ 107 O ESPAÇO DOMÉSTICO, EXPRESSÃO DA DESIGUALDADE DE GÊNERO ....................................................... 117 A divisão das taref as domésticas ........................................................................................ 119 A empregada doméstica .......................................................................................................... 125 PAI: PROVEDOR, HERÓI......................................................................................................................... 127 RELAÇÃO PAI-FILHO: ............................................................................................................................ 136 O CONFLITO COMO UMA DIMENSÃO DA PATERNAGEM ............................................................................. 136 Adolescência e sexualidade: o conf lito geracional ........................................................... 140 A DESTRADICIONALIZAÇÃO DA PATERNIDADE ........................................................................................ 145 CAPÍTULO 5 A PATERNIDADE NOS ANOS 1990 ........................................................................... 147 PLANEJAMENTO FAMILIAR E GRAVIDEZ .................................................................................................. 151 A gravidez não planejada e não desejada: a opção pelo aborto ................................. 153 A “GESTAÇÃO” DA PATERNIDADE: A GRAVIDEZ DESEJADA ..................................................................... 157 Pré-Natal e Parto........................................................................................................................ 162 Sentimentos e contradições do ser “pai” ............................................................................ 167 O pai ajudando a cuidar do bebê: o desaf io de dividir as taref as .............................. 170 O papel da avó ........................................................................................................................... 173 O RELACIONAMENTO DO CASAL E A ROTINA DA CASA .............................................................................. 177 Rotina Doméstica e Familiar .................................................................................................. 179 Taref as de homem, taref as de mulher ................................................................................ 182 AFINAL, O QUE É SER PAI?..................................................................................................................... 185 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................................... 192 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................................... 201 ANEXO ................................................................................................................................................... 218 ROTEIRO DE ENTREVISTA ....................................................................................................................... 218 8 — (...) Eu acho uma missão fudida de super herói. E o primeiro filho que eu tive, achava que não entendia, que isso não acontecia comigo, mas aos poucos você vai vendo que a gente tem instinto, a gente é bicho, sabe criar, sabe pegar. Você pensa que só vai ensinar coisa, você vê que não sabe tanta coisa, aprende coisa com o filho, aprende coisas por ter que cuidar de criança. Então, para mim, ser pai é muito um aprendizado pessoal. Eu não vou ser piegas aqui e falar “Pô, que coisa mais legal, ah, meus filhos!”, bem por aí, mas eu acho assim, é um puta exercício para você, para pessoa humana, é ser pai. Mas ser pai direito, não é simplesmente ser, chegar de noite, ver o que ele está fazendo, o que ele não gosta, dar umas porradas nele, comprar um monte de brinquedos e sair fora, eu acho que não. Paternidade é assim, é dar tapas sim, sair na chuva para se molhar, não tem como. Fez, não tem como não, ou você some do mapa e desiste, deixa para alguém criar, mas se você está dentro, cara, é uma coisa que (...) é uma atividade mutante! Você pega o tempo do meu pai, era de um jeito, você pega hoje é outro, não tem regra, não tem...(Benício, músico, 2 filhos) — Sei tudo, sou aquele que escutei as tias falarem, sei tudo. Falava “sai da frente, que eu faço tudo”. Esse negócio de blá, blá, blá comigo não tem não. Eu peguei, lavei, fiz, bordei no primeiro dia. — Você que deu o primeiro banho? — Não, eu não, a enfermeira. Aí foi para casa, aí, eu deixei ela, ela é a mãe, deixei ela fazer. ‘Posso fazer agora?’ Posso. ‘Tchum, pá, pá, como é que é?’ ‘É aqui, faz assim ó’. ‘Tó’, ‘Ohhh!’. Lógico, vocês têm medo do quê? Por quê? Eu assisti a enfermeira dando banho, fazendo tudo, eu fiquei quatro horas olhando pelo vidro, e aquilo gravou, memorizou, então é só juntar o pescoção aqui, acabou.(Renato, gerente de correio, 2 filhas) — E você costumava ficar com a Lara sozinho, quando sua mulher tinha plantão? — Então, eu que sou a mãe da Lara, nesse sentido assim, se for comparar com a minha infância, quem é que fica, eu fiquei com a minha mãe. E a Lara fica comigo. (...) (Saulo, produtor de vídeo, 1 filha) 9 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Introdução Escolhi como epígrafe trechos de 3 depoimentos de homens, casados, com filhos até 10 anos de idade, entrevistados para esta pesquisa. Estes trechos sintetizam a complexidade que envolve as relações de gênero e a dificuldade de ter que estabelecer modelos explicativos para paternidade, maternidade, para o masculino e o feminino. A fala desses homens sugere que ser pai é uma “missão”, de “super-herói”, mas é também diferente do que era há uma ou duas gerações anteriores. Não se pode ser pai de qualquer jeito. Além disso, a mãe parece não deter mais o monopólio do cuidado: os filhos “ficam” também com o pai. O discurso deles sugere ainda que o pai pode ser mesmo diferente da mãe, porque há algo que é da “natureza” da maternidade e que, por sua vez, é diferente da paternidade. E ainda, o pai dos anos noventa pode saber tudo sobre como cuidar dos filhos, aprende observando as tias ou a enfermeira a dar banho, trocar fraldas etc.; e sabendo como fazer deixa que as mulheres continuem cuidando elas próprias de seus filhos. Muitos são os fatores que influenciam a construção social da paternidade: a relação familiar (com o pai, com a mãe e depois com a própria mulher ou mãe de seu filho); as condições sociais e econômicas; a relação com o grupo de pares etc. A estrutura sociocultural de uma dada sociedade marca a vida de homens (e de mulheres) e por conseqüência exerce efeito sobre a paternidade, até mesmo na disponibilidade de tempo que os homens tem para se dedicar aos filhos e à família. Algumas tarefas com relação aos filhos e a casa demandam mais tempo do que outras, influenciando a divisão social e sexual do trabalho (Nauhardt, 1996). Da mesma forma que certos valores e costumes estabelecem expectativas com relação à masculinidade e à paternidade. Deve-se considerar também, segundo Marcos Nauhardt 10 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias (1996: 2): “A idade, a maturidade, o tipo de emprego e salário e o status atribuído a esta ocupação, o nível de educação e informação, a qualidade de relação com os próprios pais; fatores relevantes na maneira como os pais (e os homens em geral) formam uma cosmovisão, de como entendem a vida e a importância das relações nela contidas, assim como, a aceitação dos papéis paternos e as possibilidades de mudanças desses papéis.” As falas de Benício, Renato e Saulo são emblemáticas da heterogeneidade que caracteriza o grupo de homens entrevistados, embora todos pertençam a um mesmo segmento social, e das contradições que envolvem as relações de gênero que, por sua vez, ajudam a constituir a paternidade nos anos 1990. Está presente a idéia de que a paternidade (e também a maternidade) não deve ser a mesma que a de seus próprios pais. Não há regra, não há modelo, a paternidade “é uma atividade mutante”, como afirma Benício. Não há um modelo “novo” de paternidade (modelos são sempre questionáveis, porque escamoteiam a complexidade e a diversidade da realidade social), mas há no discurso desses homens uma clara reflexividade sobre o que é ser pai e uma auto-confrontação com o ideal de chefeprovedor. Essas primeiras elucubrações, estimuladas por trechos dos depoimentos, como aqueles, antecipam as reflexões que irão se seguir. Antes de prosseguir, todavia, retorno ao início do processo que resultou nesta pesquisa de mestrado. 11 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Meu interesse pelo tema da paternidade decorreu da pesquisa Família e Trabalho Domiciliar em São Paulo1, realizada de agosto de 1992 a fevereiro de 1992, e da qual participei como assistente. Na ocasião, foram entrevistados homens e mulheres de diferentes segmentos sociais que realizavam suas atividades profissionais no interior do espaço domiciliar. Essas pessoas encontravam-se em diferentes situações no curso da vida familiar — solteiras, casadas, sem filhos ou com filhos pequenos ou adultos. A distinção fundamental entre os homens e as mulheres foi o destaque dado por elas à maternidade como o principal motivo para a opção pelo trabalho remunerado realizado na moradia2. Essa justificativa, recorrente entre as entrevistadas, aguçou minha curiosidade em relação à persistência de certa estrutura familiar e de uma certa modalidade de divisão sexual do trabalho, segundo as quais cabem prioritariamente às mulheres as responsabilidades com o mundo doméstico e em especial com o cuidado e a criação dos filhos. A princípio, a conciliação da maternidade e dos afazeres domésticos com uma atividade profissional realizada no domicílio parecia ser uma opção espontânea e uma solução bastante sensata. Mas, por outro lado, as falas daquelas mulheres sugeriam uma certa resignação diante do “sermãe” e da responsabilidade que essa tarefa representa, atribuição que aparentemente assumiam como sendo natural e inexorável. Cuidar da casa e dos filhos era visto por elas como uma atividade feminina, uma obrigação. 1 2 Pesquisa realizada na Fundação Carlos Chagas, sob a coordenação da pesquisadora Drª Cristina Bruschini, no período de agosto de 1992 a fevereiro de 1994. A pesquisa resultou no artigo “Desvendando o oculto: família e trabalho domiciliar em São Paulo”, publicado na coletânea organizada por Abreu e Sorj (1993), e no artigo “Trabalho Domiciliar Masculino”, Revista Estudos Feministas ( v.3, n.2, 1995). As mulheres eram costureiras, professoras particulares, manicures e profissionais liberais, compondo uma amostra bastante heterogênea; tinham em comum, além de trabalhar na moradia, a necessidade de conciliar as responsabilidades profissionais e familiares. Entre os homens havia dois marceneiros, um ourives, um professor de desenho/arquiteto, um restaurador de cadeiras, um eletricista, um relojoeiro, um artista plástico, um artista gráfico e um tintureiro. 12 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Em nossa análise, observamos que para as trabalhadoras, os limites entre a identidade profissional e a familiar revelavam-se tênues em função da concomitância das atividades profissional e doméstica e do uso do tempo e do espaço para a sua realização. O trabalho era realizado, muitas vezes, nos intervalos de tempo entre os afazeres domésticos, não dispondo a maioria de um espaço específico para executar a atividade profissional, nem havia grande preocupação com investimento em capacitação ou aperfeiçoamento da atividade. A exceção ficava por conta das solteiras ou chefes de família, ou daquelas cujas atividades eram mais formalizadas. Para esse grupo, o doméstico e o familiar sobrepunham-se ao profissional com um certo questionamento. Os homens, por sua vez, procuravam garantir uma relativa separação entre o espaço doméstico e o profissional, mesmo quando os limites físicos entre os ambientes de vida familiar e de trabalho não eram tão claros. Ou seja, conforme o sexo do entrevistado, o espaço e o tempo domésticos eram vivenciados de maneira distinta do espaçotempo profissional. Imaginávamos que o fato de estes homens permanecerem mais tempo no domicílio deveria favorecer uma maior integração com o cotidiano doméstico e a dinâmica que o acompanha. Muitos deles eram casados, mas o fato de trabalharem no espaço doméstico não significou a garantia de uma divisão sexual do trabalho mais eqüitativa, pois, por trás de todo afazer doméstico havia sempre mãos femininas. Poucos foram aqueles que demonstraram efetivo envolvimento com esses afazeres: cuidando das compras, levando ou buscando os filhos na escola, fazendo a limpeza da casa. Ao mesmo tempo, no meu cotidiano eu observava um número significativo de homens assumindo as mais diversas tarefas com as crianças e com a casa: nas reuniões na escola de meus filhos, homens e 13 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias mulheres estão presentes em proporção quase equivalente; no cinema, nos parques, nos restaurantes é sempre possível encontrar homens sozinhos com seus filhos, enfrentando situações de indisciplina, preocupados com o menor que não quer comer, perdendo o fôlego no jogo de futebol ou ainda ensinando-os a andarem de patins ou bicicleta. Outros levam as crianças ao pediatra ou ao dentista sem nenhum constrangimento, enquanto suas mulheres estão no trabalho ou estudando. No bairro onde moro é comum cruzar com homens levando seus bebês para a creche ou para tomar sol ou simplesmente acompanhando-os à padaria no meio de uma manhã de terça ou quinta-feira. Onde estaria a mãe daquelas crianças, por que o pai estaria com elas? – ocorreu-me. Em conseqüência de que atividades o pai se envolve e se responsabiliza cotidianamente por seus filhos? Meu estranhamento não deixava de revelar um certo preconceito, decorrente de uma ideologia de gênero na qual se espera que aquele homem, naquele horário, esteja no trabalho e não cuidando dos filhos. Apresentava-se a necessidade de definir e caracterizar melhor a experiência masculina da paternidade. Em geral, a atuação do pai é definida como extradomiciliar, e a princípio não é equiparável a atividades que visam atender certas necessidades infantis, como, por exemplo, dar banho, preparar alimentos, acompanhar nos deveres de casa, levantar durante a noite quando a criança está doente, enfim, tarefas que as mães estão habituadas a enfrentar em seu dia-a-dia, trabalhando fora ou não. Aquele pai poderia ser descrito como o encarregado de inserir a criança no espaço “fora da casa”: leva-a à escola, para passear, brincar no parque, cortar o cabelo, enquanto a mãe provavelmente a ensina a portar-se à mesa, a cuidar da higiene corporal, a lidar com as tarefas escolares. 14 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Para muitos, as atividades exercidas pelas mães envolvem uma certa habilidade, para as quais os homens não estariam preparados; elas são especialistas no assunto filhos. Em geral, a referência para essa idéia de distribuição de tarefas é o trabalho doméstico, que na maioria das culturas ocidentais é realizado pelas mulheres: limpar a casa, cozinhar, lavar e passar roupas, cuidar dos filhos (e isso envolve: dar banho, trocar roupa, alimentar, zelar pela disciplina, acompanhar nas tarefas escolares etc.), enfim toda a rotina doméstica. O envolvimento masculino na vida familiar é então formulado a partir desses critérios. Quando a divisão sexual do trabalho é questionada, pressupõe-se uma redivisão das tarefas domésticas, pelas quais o homem deveria ser também responsável. A trajetória do meu argumento até este ponto chega a um primeiro obstáculo conceitual ou etimológico: o que estou entendendo por paternidade? A aparente obviedade merece uma tentativa de esclarecimento. Paternidade e maternidade, se referem à condição ou qualidade de ser pai e mãe, respectivamente. Isto é, referem-se à capacidade biológica de reproduzir. Porém, com a possibilidade de adoção de crianças e o avanço das tecnologias reprodutivas, não só casais heterossexuais, mas também casais homossexuais (de ambos os sexos) e pessoas individualmente podem ascender à qualidade de ser pai ou mãe, sem necessariamente vivenciar uma gravidez. Neste sentido, paternidade e maternidade dizem respeito mais a uma relação social, estabelecida entre dois adultos ou apenas a um deles e um ou mais bebês, e menos a um vínculo estabelecido por herança genética. Ou seja, o aspecto biológico (a junção do espermatozóide com um óvulo e a sua gestação) é apenas uma dimensão da condição de ser pai ou de ser mãe, não a sua condição primordial; homens e mulheres podem tornar– se pais ou mães de crianças que não possuem seu material genético. 15 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Não obstante deve-se reconhecer que a sociedade moderna não se desprende tão facilmente dos laços biológicos e a celeuma com exames de DNA para comprovar paternidade, e a crescente demanda por tecnologias reprodutivas reforçam em certa medida a ideologia de família “natural”. Alguns estudos, na tentativa de estabelecer uma diferença entre a capacidade biológica para a reprodução — encerrada nos termos paternidade e maternidade — e a dimensão social do ato de cuidar dos filhos, de ampará-los, optam pelos termos maternagem (uma tradução quase literal da palavra mothering3) e paternagem (fathering). Ambos, paternagem e maternagem, são termos êmicos, próprios às ciências sociais, e respondem mais à uma tradução literal a partir de textos americanos, não constando inclusive nas versões mais recentes dos dicionários da língua portuguesa. Na cultura brasileira, os termos maternidade e paternidade designam muito mais do que mera capacidade biológica de gerar; significam também responsabilidade social, responsabilidade que apresenta uma conotação distinta conforme o gênero: a mãe, podendo ser biológica ou não, é responsável pelo bom desenvolvimento da criança, pela sua educação, alimentação, saúde; e o pai é visto como responsável por prover as necessidades materiais da família, sendo seu condutor moral4. O que se constata é que tanto a paternidade como a maternidade englobam significados que são construções socioculturais, e, por isso, fortemente influenciadas pela constituição das identidades e dos papéis de gênero. Nesta pesquisa, interessam-me as relações que certos 3 4 homens estabelecem no espaço familiar, decorrentes da Ver Nancy CHODOROW. Psicanálise da Maternidade. Uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1990. Sobre os significados do termo responsabilidade e sua apreensão pelos homens, em particular, ver a dissertação de mestrado de Margareth Arilha Silva(1999). Masculinidades e gênero: discursos sobre responsabilidade na reprodução. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, (Mestrado em Psicologia Social). 16 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias experiência de ter um filho, explorando as condições individuais, culturais e sociais que contribuem para o exercício da paternagem e para o desenvolvimento da masculinidade e suas implicações nas relações de gênero. Hoje, algum tipo de envolvimento masculino nas tarefas domésticas e no cuidado com os filhos parece ganhar destaque; já não é como nos tempos de nossos avós ou mesmo de nossos pais. Contudo, por que então na divisão das atribuições domésticas o peso maior parece ainda recair particularmente sobre as mulheres? Não caberia perguntar qual a lógica que determina serem certas tarefas definidas como maternas e outras como paternas? Mais: se os homens passassem a trocar fraldas, dar banho em seus filhos, ir ao supermercado e lavar a louça do jantar, isso significaria igualdade? Bastaria para romper com a idéia de que desempenhar com êxito as tarefas domésticas é uma prerrogativa do gênero feminino? O princípio da igualdade de oportunidades na vida pública, baluarte de feministas e de movimentos de mulheres, pode ser transposto para a vida privada? Era preciso saber mais sobre a relação dos homens com o espaço doméstico e familiar, sobre o que pensam a respeito da gravidez e da paternidade, sobre cuidar dos filhos e de como conciliam essa tarefa com a carreira profissional sua e da companheira. A proposta de pesquisa Estas reflexões, que foram surgindo no processo da Pesquisa sobre Família e Trabalho Domiciliar em São Paulo e durante as leituras sobre relações de gênero, levaram-me a essa dissertação, uma vez que mostraram a necessidade de estudar as diferentes formas de expressão das desigualdades de gênero, sendo uma delas a responsabilidade quase exclusiva das mulheres pelo cuidado com os filhos. Optei, então, 17 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias por examinar qual a experiência vivida por homens casados, pertencentes a um certo segmento das camadas médias paulistanas e com filhos até 10 anos de idade, observando o seguinte contexto: - o significativo aumento, na última década, da taxa de participação das mulheres, especialmente as casadas, no mercado de trabalho; - as necessidades econômicas, mas também o desejo de ascensão social e de realização profissional de ambos os sexos; - a divisão do orçamento doméstico entre os cônjuges; - os indícios de mudanças de valores e costumes, apontados pela mídia e por estudos acadêmicos, que indicam alterações nos arranjos familiares e o questionamento de significados atribuídos à maternagem e à paternagem; procurei, a partir dos depoimentos, apreender: 1) se, para esses homens, essas mudanças têm provocado processos de negociação no que diz respeito ao cuidado com os filhos pequenos, à prática da anticoncepção e à distribuição de afazeres domésticos; 2) se, para eles, essas mudanças resultaram numa maior participação masculina e como ela se manifesta. Esta minha proposta de investigação se justifica porque, apesar de uma série de pesquisas mostrarem que as mudanças têm ocorrido muito mais nas relações das mulheres com o mundo “lá fora” — por meio de sua inserção no mercado de trabalho e de sua participação política e social —, e menos por transformações em seu cotidiano doméstico, tem sido veiculada tanto na mídia como em pesquisas acadêmicas uma “nova” representação da participação do homem, na qual se estimula seu envolvimento na gravidez, durante o parto, e na 18 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias criação dos filhos. Essa representação pretensamente revela mudanças nas relações conjugais, em particular nos casais de camadas médias, fato apontado por vários estudiosos (Salem, 1980, 1985, 1989; Velho, 1983; Dauster, 1987; Romanelli, 1986; Novelino, 1989, entre outros). Por outro lado, há indícios também de que prevalece a hierarquia de gênero, que associa as mulheres à esfera da produção da vida e não da riqueza (Izquerdo, 1994). Senão como explicar o fato de a grande maioria das mulheres ainda se concentrar em atividades de cuidado com outros, particularmente em atividades de prestação de serviços e ganhando salários inferiores aos dos homens para funções semelhantes? Ou, então, invertendo a questão: por que tem sido difícil ampliar a participação de homens em atividades que envolvem o cuidado com o outro, tais como em pré-escola, creches, no ensino fundamental (em geral os homens são os professores de educação física) ou como enfermeiros numa pediatria etc.? O gênero como referencial de análise Essas e outras questões levaram-me a orientar a análise segundo a categoria gênero, por entender que ela permite desvelar significados atribuídos às relações sociais e aos comportamentos individuais em nossa sociedade. O gênero têm sido uma categoria analítica importante para a compreensão do que representam as desigualdades entre homens e mulheres, entre o masculino e feminino em determinada sociedade e período histórico5. O gênero, porém, é mais do que uma categoria analítica; juntamente com raça/etnia e classe social opera na 5 Minhas reflexões sobre gênero se devem às discussões que travamos no Edges (Grupo de Estudos sobre Educação, Gênero e Culturas Sexuais, FEUSP), particularmente à síntese que elaboramos a quatro mãos, apresentada no Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 1996: “O uso analítico do gênero: balanço crítico de estudos contemporâneos” (Vianna, C.; Morelli, M.; Pegoraro, T. e Ridenti, S.) 19 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias realidade empírica como categoria histórica que permite a compreensão da organização das relações sociais. A historiadora Joan Scott tem sido, nas diferentes áreas de conhecimento, a principal referência dessa perspectiva entre os estudos de gênero no Brasil. Suas idéias oferecem pistas para uma possível compreensão do modo como as sociedades representam o gênero e o apreendem, estabelecendo as regras das relações sociais (Scott, 1990). A história, para Scott, é o registro das mudanças da organização social dos sexos, e é também participante da produção do conhecimento sobre a diferença sexual. Participa, portanto, da construção do discurso que estabelece significados para a diferença sexual. Esse raciocínio permite chegar a outro conceito importante em sua teoria e que vai ser fundamentado a partir de Foucault6: se o saber é o significado de compreensão produzido pelas culturas e sociedades sobre as relações humanas, este significado e o seu uso nascem de uma disputa política, por meio da qual as relações de poder – de dominação e subordinação – são construídas. O saber é, assim, um modo de ordenar o mundo e, como tal, não antecede à organização social, mas é inseparável dela. Os significados podem variar no tempo de acordo com as culturas e os grupos sociais, contrariamente a uma concepção universalizante da realidade social que tende a tornar secundárias as diferenças, a exemplo da sexual. Uma das características do significado é a sua variabilidade, volatilidade e natureza política de construção. Ou seja, os 6 As implicações da filiação de Scott aos principais céticos do modernismo, entre eles Jacques Derrida, Michel Foucault, Jacques Lacan não serão objeto de análise dessa dissertação. Para acompanhar essas discussões ver Harding (1993); Lovibond (1990); Sorj (1992), entre outras. Minha intenção é situar sua elaboração teórica, extraindo pistas para a análise. Sem deixarme seduzir por um certo relativismo sociológico, o discurso pós-moderno tem se revelado atraente justamente porque as categorias e explicações universalizantes surgem frágeis diante de questões como a da desigualdade social, dos conflitos étnicos e religiosos. Sabine Lovibond (1990), por exemplo, argumenta contra a idéia de que a modernidade constitua um projeto já acabado, bastando ver a situação das mulheres e os níveis de desigualdades a que estão submetidas em diferentes instâncias sociais. É a heterogeneidade que se faz presente e exige reconhecimento, se contrapondo ao modernismo e às concepções de unidade, de geral e universal. 20 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias significados dos conceitos não são fixos no repertório de uma cultura; são, ao contrário, dinâmicos, se estabelecendo por meio de processos conflitivos. Para Scott (1994) é fundamental entendermos como ocorre a construção das hierarquias entre os gêneros. E isto pode ser feito mediante um estudo dos processos, das causas múltiplas, da retórica, do discurso. Não se trata, contudo, de abandonar a explicação via estruturas e instituições; trata-se de entender o que elas significam. O papel do pesquisador, neste sentido, é o de interpretar como os significados subjetivos e coletivos de homens e mulheres foram construídos. Apreender a dimensão da construção social do gênero através da história e nas diferentes culturas nos coloca no interior da proposta metodológica de Joan Scott de estudar sistematicamente os processos conflitivos que produzem “os significados variáveis e contraditórios atribuídos à diferença sexual, os processos políticos através dos quais esses significados são criados e criticados, a instabilidade e maleabilidade das categorias 'mulheres' e 'homens' e os modos pelos quais essas categorias se articulam uma em termos da outra, embora de maneira não consistente ou da mesma maneira em cada momento” (1994, p.25-6). Ao desenvolver essa proposta, Scott permite pensar que todo significado se apoia na negação ou repressão de algo que está em oposição a esse significado. Ou seja, cada conceito oculta contraditoriamente, tal como Lilith – o outro lado da lua – uma faceta reprimida ou negada. E como tal, as oposições binárias fixas escondem a heterogeneidade de cada categoria, bem como a extensão da interdependência que se estabelece entre as oposições. Segundo ela, essa interdependência "é comumente hierárquica, um termo sendo 21 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias dominante, prioritário e visível e seu oposto subordinado e freqüentemente ausente invisível”. (1994, p. 21). Como desvelar essa relação analiticamente? Estudando, segundo Scott, sistematicamente os processos conflitivos que produzem o significado, o que implica a introdução de novas oposições, a reversão das hierarquias, a tentativa de expor termos reprimidos, de contestar o estatuto natural das dicotomias aparentes e de expor sua interdependência e instabilidade interna. É na literatura que ela vai buscar suporte teórico-metodológico. Mais especificamente, na análise de texto, pois esta permitiria a decomposição dos processos pelos quais os significados são constituídos. Tanto a história quanto a literatura como formas de saber permitiriam “uma análise dirigida aos conceitos, aos significados, aos códigos e à organização da representação”. Scott pretende uma análise crítica da história através do estudo dos processos pelos quais o saber é e tem sido produzido, inclusive a produção do saber de gênero. Mas será possível transportar essas reflexões para uma análise sociológica? Como ela mesma observa, isso é possível se o gênero não for considerado meramente uma categoria descritiva das relações entre homens e mulheres. Gênero é um conceito que permite visualizar como, em tempos históricos distintos e em sociedades distintas, os significados construídos para as diferenças sexuais corroboram o conjunto das relações sociais (Scott, 1992). Todavia, Heleieth Saffioti (mimeo., s/d), numa leitura crítica de Scott, destaca que a ênfase na desconstrução do discurso não é suficiente para a compreensão de como operam as relações de gênero e 22 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias as estruturas sociais e sua inter-relação7. Ela credita às raízes derridianas e foucaultianas a rejeição de Scott ao conceito de estrutura. Para Saffioti, “o discurso está sempre, negativa ou positivamente, referido às condições materiais e não-materiais da existência concreta de seus produtores. Ou seja, a linguagem não é apenas instituinte; é também instituída. Donde não se pode resolver o problema da transformação pela mera desconstrução do discurso” (mimeo., s/p). Mas Saffioti relativiza dizendo que não há que se desprezar a força do discurso para o poder da ideologia, é preciso considerar que linguagem e posição estrutural dos sujeitos estão imbricados, sendo o sujeito constituído por gênero, classe e raça na mesma medida em que é autor dessas subestruturas e expressão de suas contradições. Uma das dificuldades em enxergar o gênero para além do discurso sobre as diferenças sexuais, está o fato de que muitas teorias, mesmo afirmando o caráter de construção social das diferenças entre homens e mulheres, utilizam o corpo, os fatores biológicos — a natureza, enfim —, para estabelecer generalizações para as sociedades em geral e explicar os significados do que é socialmente compreendido como masculino e feminino (Nicholson, 1994). Estudos sociológicos sobre reprodução e sexualidade, por exemplo, talvez por estarem lidando com questões muito próximas da biologia, tendem a tomar o corpo como base para descrever diferenças e semelhanças entre 7 Louise Tilly (1994) e Eleni Varikas (1994) também questionam a opção de Scott pela desconstrução como método. Para elas a proposta de Scott subestima a ação humana e superestima a coerção social. Segundo Varikas, Scott “parece conceder uma parte importante à intervenção dos sujeitos agentes quando, por exemplo, trata da instabilidade do sentido dos conceitos como resultado dos processos de contestação e de redefinições múltiplas, dos quais eles são o resultado. Mas, por outro, a impessoalidade das forças discursivas que, segundo ela, constróem o sentido (mesmo múltiplo e instável) de uma cultura, assemelha-se de maneira inquietante à impessoalidade das forças produtivas que por muito tempo determinaram o curso da história na historiografia. (...) se no centro da sua teoria da produção do sentido e da formação do gênero se encontram relações conflitantes em confronto permanente, os atores deste conflito são ‘as forças de significação’, ‘oposições fixas’, ‘duplas oposicionais’ ou ‘procedimentos de diferenciação’ que (...) fazem desaparecer do horizonte as pessoas implicadas nesses ‘jogos de poder e de saber que constituem a identidade e a experiência’.” (Varikas, 1994:77-78, grifo meu). 23 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias homens e mulheres. Como aponta Marília Carvalho, em sua leitura de Nicholson, “A dificuldade está em que certos domínios da vida social têm sido sistematicamente associados à natureza e assim retirados à ação humana, à história e às relações sociais: a infância, a família, a sexualidade, as mulheres são alguns exemplos. Parte do esforço das teóricas feministas tem sido exatamente de desnaturalizar estes domínios [...] construindo sua história, afirmando sua variabilidade e sua inserção no campo da cultura” (Carvalho, 1999: 31). Em muitas sociedades ocorre a distribuição das tarefas entre os sexos como uma espécie de extensão das diferenças procriativas entre homens e mulheres. A atribuição às mulheres da responsabilidade pelo cuidado dos filhos, estabelecida então como “natural” nas sociedades ocidentais, está em parte fundamentada na capacidade que elas têm de engravidar, dar à luz e amamentar e na suposição decorrente de que elas são mais ternas, mais carinhosas e habilitadas para cuidar da prole (Durham, 1983, Heilborn,1992). Não se trata de eliminar o corpo e as implicações biológicas de nossas análises, mas de considerá-los como objeto de investigação histórica e de variação cultural e social. Ou seja, o sexo não é algo que podemos separar do gênero8. Nas palavras de Joan Scott: “o gênero é a organização social da diferença sexual percebida” (1994:13). Neste sentido, a adoção do conceito de gênero repercute diretamente nas análises sobre a identidade feminina e masculina9. 8 9 Linda Nicholson (1994) defende a impropriedade das generalizações afirmando que a população humana é formada por grupos distintos e que diferem quanto às expectativas sociais sobre como cada um pensa a si mesmo, sente e age; da mesma forma que também diferem nas variadas formas culturais de atribuir significados ao corpo e nas interpretações sobre o significado do ser mulher ou homem. Ver Marília Carvalho (1999), que seguindo as pistas de Nicholson, faz uma análise crítica de algumas teóricas feministas que tendem a generalizações essencialistas sobre as diferenças de gênero. De acordo com Arango, Leon, Viveros (1995) “a identidade de gênero é trabalhada como uma problemática transversal, cuja análise requer uma aproximação pluri e interdisciplinar e um questionamento das categorias binárias que mapeiam a análise social, tais como natureza/cultura, público/privado, produção/reprodução e incluindo também masculino/feminino” (p. 25) (tradução minha). 24 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Maria Luiza Heilborn (1992) observa que, quando a antropologia fala de identidades socialmente construídas, refere-se "à perspectiva relacional e sistêmica que domina o jogo de construção de papéis e identidades para ambos os sexos" (Heilborn, 1992, p.40). Segundo Heilborn, a centralidade da mulher no domínio familiar e, em particular, do seu papel reprodutivo tende a constituir a base da determinação das identidades femininas. Da mesma forma que a identidade masculina, particularmente na cultura latina, é muitas vezes construída com base na força física e na virilidade. Caracterizado a partir do complexo simbólico honra-vergonha que organiza a sociedade ocidental, o masculino está associado ao machismo latino e refere-se ao prestígio e ao poder, cujo exercício se expressa no controle sobre as mulheres e na centralidade da moral. Ao feminino, por sua vez, estão relacionados aspectos mágicos, profanos, de negatividade. A sociedade ocidental assim organizada estabelece distinções entre o público e o privado, vendo no lar o refúgio e o espaço de culto aos ancestrais. A casa é também o espaço destinado à mulher. Como então, sendo a mulher representante do mal, a casa pode ser o espaço de culto aos antepassados? Para Heilborn, esta incongruência é resolvida com a santificação das mulheres, o que implica em sua assexualização. Essa situação, porém, não deixa de ser permeada por conflitos e tensões, uma vez que a impossibilidade do homem não conseguir garantir o controle sobre a mulher se mantém latente. A afirmação da virilidade implica a capacidade de controle e ao mesmo tempo a transgressão da honra (Heilborn, 1992). O que se conclui dessa explicação é que a identidade feminina, em particular, é influenciada pela centralidade da função reprodutora na vida das mulheres, e que, por intermédio de mecanismos ideológicos, tende a se estender a outros campos da vida social. E a identidade masculina, por sua vez, teria como fundamento de sua elaboração uma 25 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias dimensão mais social (moral, prestígio e poder) e menos biológica. Heilborn ressalta a assimetria valorativa entre os gêneros, fundada na diferença sexual e cultural e simbolicamente reelaborada. A questão, de fato, é que o corpo também inscreve a identidade masculina. Na sociedade atual não só os corpos femininos tornaram-se “corpos dóceis”, numa acepção foucaultiana, sujeitos ao poder disciplinar da modernidade, ao aperfeiçoamento, mas também os corpos masculinos estão inseridos numa cultura narcisista e disciplinadora. É interessante observar como corpos masculinos têm sido bombardeados por uma estética do homem saudável e pelo conhecimento científico, em particular pela medicina — por exemplo, a incidência do câncer de próstata frente a resistência de muitos homens ao exame preventivo (parte do exame implica o toque retal, execrado pela maioria dos homens que temem pela sua masculinidade) registra a importância da construção social de um certo dado biológico na determinação da identidade masculina. Masculinas expressam representações sobre e femininas, masculinidade as e identidades feminilidade e diferentes formas de apropriação do corpo num dado momento e contexto histórico. Estudar as relações de gênero envolve, assim, dois tipos de análise: do gênero como uma construção ou categoria do pensamento que ajuda na compreensão de histórias e mundos sociais particulares; e do gênero como relação social que entra em todas as outras atividades e relações sociais e parcialmente as constitui (Flax, 1991). Este último significa adotar o gênero numa perspectiva relacional, na qual as relações de gênero se constituem e são constituídas nas relações sociais, ou seja, sem considerar o próprio conceito gênero como unívoco, capaz de explicar, por si só, toda a trama social. Como já mencionado anteriormente, outras variáveis devem ser acionadas e estar articuladas ao gênero, tais como: classe, raça, religião, diferenças 26 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias regionais e etárias. As relações de gênero não se estabelecem, portanto, a partir de uma simples extensão das diferenças biológicas, são, pois, resultado de um processo de aprendizagem e de trabalhos contínuos (Almeida, 1995). Para exemplificar as implicações dessas variáveis na diferenciação de gênero cito a pesquisa realizada por Maria Luiza Heilborn (1995) em bairros populares do Rio de Janeiro, na qual ela buscava analisar o tempo gasto por crianças de ambos os sexos com trabalho dentro de casa. Ela observou que as meninas em função da socialização para um determinado papel de gênero usavam boa parte dos seu tempo em atividades voltadas para o grupo doméstico — a partir dos 5 anos de idade exerciam tarefas como varrer a casa, lavar e passar roupa, cuidar dos irmãos menores. Enquanto que, em comparação, os meninos dispunham de muito mais tempo livre para brincar e desempenhavam tarefas domésticas “externas” à casa, tais como levar o lixo, varrer o quintal. Esse exemplo ilustra como no processo de socialização certos valores — meninas em casa/meninos na rua — marcam a diferença de gênero, caracterizando a assimetria das relações entre homens e mulheres. Se consideradas as relações de gênero e sua dinâmica particular, a análise da divisão sexual do trabalho permite, na opinião de Teresita de Barbieri (1991), revelar conflitos de poder, por ser esta divisão uma arena de controle da capacidade reprodutiva. O esquema binário, que coloca o masculino e o feminino como oposição, e designado segundo o sexo — masculino/homem, feminino/mulher — dificulta pensarmos as relações sociais de outras maneiras. Essa relação dicotômica se estende para as definições que temos do que é ser pai e mãe em nossa sociedade e cristaliza concepções do que devem ser as relações de homens e mulheres com seus filhos. O cuidado, por exemplo, exercido por mulheres, é visto como uma característica de gênero feminino e 27 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias portanto– para alguns como manifestação “natural”, para outros, fruto da socialização das mulheres. Muitas atividades profissionais, por exemplo, que se relacionam ao cuidado são consideradas femininas (enfermagem, babás, professoras de pré-escola e creches etc.)10, e como trabalho são socialmente pouco valorizadas. É preciso, pois, desvelar os sistemas de significados, ou seja, perceber como as sociedades representam o gênero e o utilizam para articular regras que conformam a divisão sexual do trabalho e que, por sua vez, tem definido a maternagem e a paternagem. Assim sendo, nesta pesquisa procuro apreender a concepção de paternidade socialmente construída, expressa no discurso de homens de camadas médias; observar se os indícios de mudanças nas relações familiares, apontados pela literatura, se confirmam; e até que ponto têm alterado as relações de gênero na esfera privada. *** É com esta preocupação que escolhi o tema da paternidade: verificar as mudanças e permanências que definem as dimensões sociais de ser pai nos anos 90. Um eixo básico norteia minha argumentação: as distinções socialmente construídas do gênero e que definem atribuições especificas para homens e para mulheres no que se refere ao cuidado com os filhos pequenos. Esta dissertação explicita nos capítulos que se seguem a definição desta opção analítica. No Capítulo 1, com a intenção de melhor compreender por que o cuidado com os filhos se constituiu na cultura ocidental como uma atribuição exclusiva das mulheres, recorro aos textos de Nancy Chodorow e Elisabeth Badinter. As distintas abordagens dessas autoras sobre a maternidade e maternagem — 10 Sobre a definição de atividades de gênero masculino e feminino ver Maria Jesus Izquerdo, 28 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias considerando os distintos campos de conhecimento em que estão situadas e enfoques teóricos, bem como suas limitações —, subsidiaram a elaboração do problema de minha pesquisa, encaminhando minhas preocupações para a questão da paternidade e da paternagem. A partir daí percorri, até onde foi possível, parte da bibliografia sobre paternidade e outros temas a ela relacionados, procurando destacar aspectos relevantes que pudessem ajudar na análise da construção social da paternidade em um segmento social das camadas médias paulistanas. Uma síntese sobre os estudos da paternidade constitui o capítulo 2. No Capítulo 3, a intenção é situar a pesquisa, particularmente considerando o lugar onde ela foi realizada – a cidade de São Paulo – e a importância desse posicionamento na visão de mundo das pessoas que nela vivem. Como parte da contextualização da pesquisa, desenvolvo o tema da família, pensada como uma das instituições onde, nos últimos anos, muitas mudanças vêm acontecendo. Neste aspecto, destaco a literatura sobre as famílias de camadas médias, grupo no qual se situam os homens que entrevistei para a pesquisa. A presença masculina na vida familiar contemporânea, o envolvimento masculino no cuidado com as crianças e a relação entre os diferentes significados de paternidade e maternidade podem ser decisivos para a compreensão de como operam as hierarquias e desigualdades de gênero no espaço familiar. O exame dos significados que homens de camadas médias atribuem à paternidade e ao seu envolvimento com os filhos pequenos, suas perspectivas e conflitos em relação à educação das crianças estão diretamente relacionados à investigação dos padrões de gênero que constituem socialmente a paternagem. Neste capítulo apresento ainda os critérios para a definição dos sujeitos entrevistados, os 1994. 29 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias procedimentos utilizados na coleta dos dados e na análise das entrevistas, bem como o perfil dos 10 entrevistados. No quarto capítulo, desenvolvo a análise dos depoimentos. Inicio com a família de origem, pois estou levando em conta que a vivência com o pai nos diferentes momentos da trajetória de vida pode influenciar não só na construção de sua própria paternagem, mas também na autocrítica e na construção de um outro significado para a família e para a relação conjugal. No Capítulo 5, procuro desvelar os conflitos e as ambigüidades que a experiência da paternidade apresenta para esses homens, bem como os processos de negociação entre os casais e que expressam os limites e as possibilidades da experiência masculina de paternagem. E, por fim, faço um balanço de minhas reflexões iniciais e das revelações da análise, destacando os obstáculos para uma efetiva constituição de “novos padrões” de paternidade, bem como os avanços em direção a essa constituição presente nas formas que esses homens têm encontrado para dar outros significados à paternidade, paternagem e às relações de gênero na família. 30 à EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Capítulo 1 Da maternidade à paternagem: uma questão de gênero (...) do cuidado das mulheres depende a primeira educação dos homens; das mulheres dependem ainda os seus costumes...assim, educar os homens quando são jovens, cuidar deles quando grandes, aconselhá-los, consolá-los...eis os deveres das mulheres em todos os tempos. Rousseau Como expus na introdução a esse trabalho, as concepções de maternidade e maternagem presentes tanto na literatura sobre família e nos estudos sobre as mulheres, como nos resultados da Pesquisa Família e Trabalho Domiciliar em São Paulo, mencionada na Introdução, ofereceram as primeiras pistas para o desenvolvimento do projeto desta pesquisa. Embora eu supusesse que as mudanças nas relações entre homens e mulheres estivessem forjando uma concepção de paternidade distinta daquela até então descrita em estudos sociológicos sobre família — e que merecia ser investigada —, prevalecia em minhas próprias concepções a força da relação mãe-filho como definidora de uma paternidade mais (ou menos) participativa. Nas sociedades ocidentais, não só a naturalização da maternagem, mas também da instituição família torna-se especialmente marcante pela manipulação de concepções científicas para a sua legitimação, contaminando a própria reflexão científica sobre a paternidade. O fato das mulheres gestarem e a longa dependência do recém nascido aos cuidados maternos, tornaram “legítimas” concepções como a de Rousseau, descrita na epígrafe deste capítulo, sobre o lugar das mulheres na sociedade ocidental. 31 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Até mesmo o parentesco é tido como uma extensão natural dos laços familiares. A divisão sexual do trabalho —como decorrência dessa naturalização — acaba por vincular as atribições sociais das mulheres, derivadas de sua capacidade reprodutiva, a funções biológicas. A paternidade, em contrapartida, não é formulada a partir da participação do homem no processo reprodutivo. Na divisão sexual do trabalho, o pai tem sido socialmente definido com a função de garantir e possibilitar a maternidade e esta função nem sempre está associada ao vínculo biológico, genético como mostram os estudos antropológicos (Strathern,1995). O fato de o pai ser sempre nomeado, presumido — o homem pode até se autodenominar o pai da criança, mas é a mulher que define quem é o pai — contribuiu para reforçar a idéia de que o homem não é um ator no processo reprodutivo. Como observa Margareth Arilha (1998): “Se a reprodução é aprendida e apreendida pela maior parte das pessoas como um processo biológico que se concretiza essencialmente num corpo do sexo feminino, como provocar novas linguagens acerca da reprodução? Seria possível valorizar menos a gestação e mais a concepção, apontando para uma posição compartilhada em termos de significados, de mulheres e homens diante da reprodução biológica da vida?” (Arilha, 1998:73, grifos meus). A questão parece um pouco mais complexa, na verdade. Não se trata de uma graduação na valorização da produção da vida, mas de valorização da participação individual, de homens e de mulheres, nesse processo. A proposta de uma gravidez do casal, muito em voga nos anos oitenta entre alguns grupos de classe média, estava centrada na valorização da participação masculina no processo gestacional; as novas tecnologias reprodutivas são também um mecanismo que aloca a participação masculina no processo de concepção, concretizando o seu lugar biológico na reprodução. Ou seja, avento a possibilidade de que a 32 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias suposta “exclusão masculina” do processo reprodutivo está para o homem da mesma forma que estava para as mulheres a sua exclusão e desvalorização do processo produtivo e dos postos de tomada de decisões. Mesmo considerando alguma relutância dos homens em assumir os cuidados com os filhos e as tarefas domésticas, deve-se levar em conta que há uma indeterminação cultural quanto às formas de conduta para homens, quando se pensa em outras que não aquela do macho bem-sucedido, do chefe-provedor, contrariamente à mulher, cujo sucesso profissional é aceito e estimulado, desde que não se sobreponha à mãe e esposa dedicada (Quadros, 1996). O “homem andrógino” — aquele que corporifica elementos masculinos e femininos, mas atenuados de seus atributos mais radicais — tem alimentado mais a criatividade de diretores e atores, de escritores e publicitários do que fundamentado o homem concreto, em particular o homem heterossexual. As mudanças na experiência masculina da paternidade nos últimos anos, convivem com a permanência de valores que reproduzem algumas dimensões da divisão sexual do trabalho. Há todo um conhecimento elaborado, como veremos mais adiante, que busca explicar e compreender por que são as mulheres que cuidam dos filhos e das tarefas domésticas. Mais especificamente, a maternidade sempre foi tema importante entre aqueles que se debruçaram sobre a condição feminina e mesmo entre as militantes feministas. O enfoque da maternidade como uma função natural da mulher, responsável exclusiva pelos deveres e obrigações na criação dos filhos, alimentou ao longo dos anos 70 o discurso de algumas correntes do movimento feminista, que atribuíam a essa concepção a causa da opressão feminina e das desigualdades entre homens e mulheres (Scavone, 1995). 33 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Numa outra perspectiva, o diferencialismo inspirado pela psicanálise, a maternidade é concebida como um poder insubstituível, e por isso invejado pelos homens. Essa dimensão definiu a pauta de feministas que reivindicavam uma divisão mais eqüitativa das responsabilidades familiares. Segundo Lucila Scavone, foi uma tomada de posição decisiva para “um processo de construção de uma escolha reflexiva da maternidade e abriu espaço para debates sobre o lugar do pai” (Scavone, p.8, grifos da autora). A invenção social da maternagem e o lugar da paternidade Nesta direção, a literatura sobre maternidade/maternagem foi, num primeiro instante um ponto de partida para o desenrolar das minhas reflexões, voltadas para a compreensão das relações parentais na sociedade contemporânea. Duas leituras, em particular, que focalizam a construção social da maternidade, direcionaram minhas preocupações para a apreensão da experiência que certos homens, nos dias atuais, num contexto de muitas mudanças, manifestam sobre a paternidade e a paternagem. Assim, a paternidade foi se estabelecendo como foco de análise, acompanhada de uma preocupação: afastar-me da expectativa de que os homens deveriam cuidar dos filhos e assumir as atribuições domésticas segundo um modelo feminino, como única via para a equidade de gênero. Antes, é preciso saber como eles têm vivenciado a paternidade e negociado as relações conjugais, num contexto cultural e social que não corresponde àquele da sociedade de Rousseau ou mesmo ao modelo de pai-herói/provedor tão marcante em décadas passadas. Nancy Chodorow 34 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Na tentativa de explicar por que as mulheres “maternam”, Nancy Chodorow, em Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher (1990)11, argumenta que a reprodução do sistema (sóciopolítico-econômico) patriarcal estaria relacionada à exclusividade das mulheres no cuidado dos filhos. As idéias de Chodorow, de que a estrutura das relações de gênero pode ser explicada pela dinâmica psíquica dos indivíduos, têm influenciado não só feministas como, mais recentemente, estudiosos da masculinidade12. Uma das críticas a esta autora está em sua fundamentação teórico-metodológica, com base na psicanálise (teoria das relações-objetais), e em sua tentativa de tecer interpretações “sociológicas”, atribuindo distinções de gênero a características de personalidade, necessidades, defesas e capacidades particulares; criadoras, por conseqüência, das condições para a reprodução da divisão sexual do trabalho. A teoria de Chodorow é bastante simples. A reprodução contemporânea da maternagem ocorreria por meio de processos psicológicos estruturalmente induzidos. Para ela, as mulheres maternam porque foram maternadas por mulheres e essa capacidade e necessidade nasceriam da própria relação mãe-filha. Seguindo esse raciocínio, a capacidade dos homens de cuidarem de seus filhos, por oposição, estaria sendo sistematicamente reprimida. Nancy Chodorow defende que a teoria das relações objetais, como base para uma utilização sociológica da psicanálise, pode esclarecer como a família produz mulheres para serem mães e preocupa-se com os modos como a estrutura e o processo familiar, em especial a organização assimétrica dos cuidados maternos e paternos, afetam a estrutura psíquica e os processos inconscientes. As diversas formas de identificação acabariam determinando funções adultas de gênero que situam as mulheres O título original norte-americano é The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender (Berkley/Los Angeles, Univ. of California Press, 1978). 12 Uma leitura crítica a respeito dessa influência pode ser lida em Oliveira, 1998, e Carvalho, 1999. 11 35 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias sobretudo na esfera da reprodução. Na visão de Chodorow, a alteração desse quadro dependeria basicamente da maior integração dos homens no cuidado com os filhos. Ou seja, seria a destradicionalização13 da família, em que as práticas tradicionais — tal como a maternagem — seriam questionadas e reconstruídas. A maternagem das mulheres seria um aspecto central e definidor da organização social do gênero, implicando a própria construção e reprodução da dominação masculina. Para ela é possível distinguir em todas as sociedades aspectos domésticos e públicos da organização social. Seria então pertinente definir e articular certas assimetrias universais dos sexos na organização social do gênero, em decorrência da maternagem das mulheres. Essa atividade determinaria a posição das mulheres na esfera doméstica como sendo a principal, gerando a diferenciação estrutural entre as esferas pública e privada. A dominação cultural e política da esfera privada pela esfera pública estabeleceria a dominação masculina sobre as mulheres14. A ideologia que cerca a atividade de maternar, formulada ao longo do tempo, tem, ainda hoje, influenciado a dinâmica das relações de gênero. Sabe-se que não é possível sustentar a separação das esferas privada (como feminina) e pública (como masculina) como áreas opostas (auto-excludentes) e hierárquicas, quando na realidade elas se articulam, se influenciam mutuamente, envolvendo relações que De acordo com Anthony Giddens (1993,1997) a sociedade moderna está vivendo um processo no qual as tradições só persistem na medida em que se tornam passíveis de justificação discursiva. O contexto social da atualidade confronta práticas tradicionais com outras tradições e outros modos alternativos de fazer as coisas. 14 O trabalho de Nancy Chodorow está diretamente influenciado por Gayle Rubin, de quem empresta a categoria de análise “sistema sexo/gênero”. Segundo esta autora, o “sistema sexo/gênero” organiza a sociedade em dois gêneros, com domínio do gênero masculino. Referindo-se ainda a Rubin, os cuidados maternos e paternos e a organização da família formariam o núcleo do “sistema sexo/gênero” de qualquer sociedade. 13 36 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias também são de poder. E, mais do que isso, é preciso considerar que é no público que muitas decisões sobre o privado são tomadas15. Chodorow se permite criticar algumas teorias, feministas e não feministas16, por não questionarem e muito menos explicarem pelo prisma cultural a reprodução da própria maternagem nas sociedades modernas. Essa omissão estaria associada à definição corrente em alguns estudos de que a estrutura da noção de cuidado materno e paterno é explicativa por si mesma do ponto de vista biológico; levando os cientistas sociais a reificarem a organização social do gênero e a considerar como um produto natural e não uma construção social. É interessante observar que, se de um lado, Chodorow parece operar uma destradicionalização da maternagem, ao propor uma construção social, por outro acaba reafirmando a idéia (essencialista e a-histórica) de que as mulheres sempre cuidaram das crianças. Esse comportamento social definiria, por sua vez, um processo psicológico estruturante: mulheres maternam porque sempre foram maternadas por mulheres. Sua explicação não rompe com argumentos funcionalistas da teoria dos papéis sociais. Ao contrário, em sua Quando menos se percebe, essa abstrata separação público/masculino, privado/feminino é reforçada, dificultando avanços teóricos e políticos para a equidade de gênero. Uma interessante discussão crítica sobre o papel do feminismo, em particular do “feminismo social”, nessa questão é apresentada por Mary Dietz (1998). Esta autora retoma Aristóteles para mostrar que tanto a vida familiar e privada, como a econômica e social estão no âmbito das decisões políticas e, portanto, públicas: “[o que] ele quer sugerir é que a política é uma experiência integradora, todos os outros atos e as ações humanas são examinados sob sua luz e transformados em sua matéria. (...) que a vida familiar e privada, bem como as práticas sociais e os assuntos econômicos, são questões que concernem a uma decisão política. As práticas familiares, o controle sobre a propriedade familiar, os direitos das crianças, a natureza das leis sobre a educação e o trabalho das crianças, benefícios para as mães solteiras, o controle de natalidade - todas estas coisas, gostemos ou não, estão potencialmente abertas ao controle político e podem ser politicamente determinadas. (...) Este exercício do poder se estende através de toda nossa vida e determina as condições do que consideramos ‘ privado’ e do que consideramos que são objetivos ‘públicos’.” (p. 53-4, tradução livre) 16 Discorda daqueles antropólogos que combinam uma interpretação funcionalista das sociedades coletoras-caçadoras com uma explicação evolucionista do homem. Ou seja, o homem teria uma composição biológica mais apropriada à caça e as mulheres ao cuidado dos filhos e à coleta de alimentos. Para a autora essas explicações são questionáveis, uma vez que o comportamento humano é mediado culturalmente e não apenas determinado instintivamente. Nem mesmo escapam de suas críticas a psicanálise e teorias psicológicas que reforçam a existência de um suposto instinto maternizante, dando portanto como natural que as mulheres maternem. 15 37 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias análise, as diferenças sexuais são constitutivas das diferenças sociais nas relações de gênero. Elisabeth Badinter Com o objetivo de mostrar que a relação mãe-filho é apenas mais uma relação humana entre tantas outras — e portanto, não é nem essencial, nem inerente às mulheres —, a historiadora Elisabeth Badinter (1985) em Um amor conquistado: o mito do amor materno17 busca demonstrar que o instinto materno é um mito e que não há conduta materna universal e necessária. Mesmo sendo passível de críticas18, especialmente quanto aos argumentos de que a infância não existia como conceito antes do século XVIII, Badinter foi citada em inúmeros trabalhos para contestar a maternagem como uma atribuição feminina universal. Procurando traçar um panorama histórico, demonstra a oscilação do comportamento materno entre a dedicação e a indiferença e rejeição, num período que durou cerca de dois séculos. Descreve como desde Aristóteles o poder paterno vem acompanhando a autoridade marital, fundamentado principalmente na idéia da desigualdade natural entre os seres humanos. Passa pelos escritos da bíblia cristã, que vieram, posteriormente, reforçar a submissão da mulher à autoridade do homem. Estado e Igreja, sustentando-se em concepções que defendem a existência de uma hierarquia natural entre os indivíduos, teriam arbitrado durante centenas de anos a arena da desigualdade entre homens e mulheres. Ao homem cabia chefiar a família, os negócios, as questões políticas, e à mulher, o cuidado dos filhos, o gerenciamento da casa. A análise histórica operada pela autora revela que durante um longo período a criança esteve relegada, tanto pela sociedade quanto 17 18 O título original é L’amour en plus (Paris: Flamarion,1980). Ver o artigo de Maria Lygia Q. de Moraes. Infância e Cidadania. Cadernos de Pesquisa. São Paulo : Cortez; FCC, n.91, nov. 1994. 38 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias pelos estudos históricos e científicos, a um segundo plano. Badinter ilustra esta afirmação com vários exemplos: a medicina infantil só teria surgido no século XIX, a literatura até o final do século XVIII pouco se referia às crianças e a amamentação mercenária era adotada em quase todas as classes sociais. Comportamentos como esses, associados a um alto índice de mortalidade infantil, pareceriam algo de escandalosos para os valores das sociedades ocidentais nos dias atuais, mas não naquela época19. O que teria motivado as transformações na sociedade com relação às crianças, à família e às mulheres? Segundo Badinter, uma das principais razões teria sido a valorização do ser humano como mão-deobra em potencial, produtor de riqueza e garantia de poderio militar. Datam do final do século XVIII, por exemplo, os primeiros estudos voltados para a questão demográfica. Ao final desse mesmo século há uma mudança radical na imagem da mãe: pululam publicações que recomendam às mães cuidar pessoalmente dos filhos e amamentá-los. O discurso da igualdade, do amor e da felicidade, de um lado, e o apelo ao senso do dever, da culpa, da ameaça, de outro, foram os principais instrumentos ideológicos usados para conduzir a mulher à função nutrícia e maternante, apregoada desde então como uma manifestação natural e espontânea. Essa condição promoveu mudanças de todas as ordens, inclusive nas relações de poder. Se antes do século XIX o pátrio poder era inquestionável, podendo ser até mesmo injusto — o pai podia, por exemplo, deixar toda a sua herança para o filho primogênito, podia 19 Badinter conta, por exemplo, que quase não havia manifestação de luto pela família e, em algumas regiões, nem mesmo iam ao enterro dos filhos menores de 5 anos, uma vez que a morte infantil era vista como uma conseqüência natural da vida. As mulheres de segmentos sociais mais altos, não amamentavam seus filhos e as tarefas domésticas eram rejeitadas pela pouca valorização e pelo não reconhecimento da sociedade. A solução, então, eram as amas de leite, pobres em sua maioria, que além de terem seus próprios filhos para amamentar acolhiam outros bebês, a fim de ampliar o rendimento familiar. Quando crescidas, essas crianças eram geralmente entregues à governanta ou a um preceptor, ou ainda colocadas num internato. 39 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias decidir o destino das filhas —, a partir daí ele se mantinha, só que justificado pelo bem-estar da criança. Por outro lado, se muitas mulheres relutavam às mudanças, outras descobriram que a maternidade, vista então como uma tarefa necessária e nobre, tornavase, de um lado, a porta para o reconhecimento social e, de outro, espaço de poder nas relações familiares. É o período de pensadores como Rousseau, Montesquieu, Voltaire e Condorcet. As idéias, desenvolvidas por Rousseau em sua obra Émile teriam influenciado o comportamento das mulheres burguesas20. Com o objetivo de estimular e justificar a maternagem, surgem obras científicas que comparam o amor materno animal ao humano, exaltando o amor instintivo nos animais, cujas fêmeas se privam de muitas coisas em função dos filhos21. Esses discursos moralizantes, segundo Badinter, não foram suficientes para modificar os hábitos e costumes das mulheres em geral, o processo de mudança foi longo e lento. Mesmo porque para muitas delas esse novo comportamento com relação à maternagem representava a possibilidade de desempenhar um papel mais gratificante no seio da família e na sociedade. Aleitar o próprio filho, por sua vez, tornou-se um sinal de modernidade. Mas esse comportamento é, até meados do século XIX, heterogêneo e variável segundo a classe social: as burguesas teriam sido as primeiras a incorporar as mudanças, influenciadas principalmente por Rousseau22; já as A epígrafe na abertura deste capítulo ilustra o pensamento de Rousseau sobre o papel das mulheres na sociedade da época. 21 Estudos comparando a vida de animais de outras espécies com o ser humano são freqüentes até hoje, numa tentativa de justificar e explicar comportamentos mediante uma natureza comum. A mídia é pródiga em divulgar informações dessa ordem. Um exemplo é a revelação de comportamento homossexual entre animais de várias espécies, inclusive entre os leões, publicada na Revista Superinteressante em 1999. Ver também, Citeli, Maria Teresa. Ciência e gênero: a tenacidade das metáforas deterministas. Campinas:IFCH/Unicamp, 1999. (apresentado no Seminário Gênero e Reprodução). (mimeo) e Citeli, Maria Teresa. Fronteiras em litígio: mídia, ciência e humanidades. Campinas:NEPO/Unicamp, 1999. (apresentado no Seminário Saúde Reprodutiva na Esfera Pública e Política na América Latina). (mimeo). 22 O discurso moralizador herdado de Rousseau, segundo Badinter, revelava uma nova imagem de mulher: passiva e submissa, feita para agradar ao homem; elegante e prendada; deveria aprender a ler e escrever essencialmente o necessário para governar a casa e ser uma boa educadora. 20 40 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias aristocratas e as pobres foram as últimas a assimilar o novo perfil materno. A interpretação histórica de Badinter procura demonstrar que a relação mãe-filho não é nem universal e nem natural, tendo sido a maternagem uma construção social, a partir de interesses sóciopolíticos específicos, entre os quais a sobrevivência das crianças, necessária para o desenvolvimento da sociedade burguesa. A autora aponta também o papel da psicanálise e do discurso médico na consolidação da mulher como personagem central da família e da maternagem23. Discursos como o de Winnicott, por exemplo, para quem a boa mãe é aquela que se dedica ao filho, sendo até mesmo a responsável pela boa paternidade do marido, contribuíram para a culpabilização das mulheres com relação à maternagem e incitaram, por outro lado, várias feministas a questionar os fundamentos da teoria da mãe naturalmente devotada. Mais recentemente, entre alguns estudiosos da masculinidade, esses argumentos têm contribuído para explicar por que os homens dominam as mulheres ou por que negam suas necessidades afetivas. É o que Pedro Paulo Martins de Oliveira (1998) definiu como “discurso vitimário”, no qual o homem é visto por alguns autores como um sexo que também é frágil e sujeito à opressão de gênero. O “homem vítima” seria fruto de um conjunto de fatores sociais e psíquicos, corroborados por dados estatísticos alarmantes, como taxas de homicídios, uso de drogas, incidência de acidentes etc. O nãoenvolvimento dos homens no cuidado dos filhos, a falta de expressão afetiva seria apenas reflexo de sua sujeição a um modelo de masculinidade e feminilidade, no qual a paternagem estaria fundada em 23 Como foi visto anteriormente, as pesquisas sobre as diferenças anatômicas contribuíram em parte para a construção de um saber sobre as diferenças de gênero, ao difundir justificativas para os papéis socialmente distintos para homens e mulheres (Laqueur, 1987). 41 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias outras bases, distintas da maternagem. O distanciamento das demandas afetivas é, em nossa sociedade, reconhecido como inerente a um certo modelo heterossexual de masculinidade e que norteia o comportamento masculino. A crítica a esse modelo e a falta de clareza, de certeza sobre uma outra forma de comportamento, ou de significados para certas práticas estaria o cerne da crise da masculinidade. É neste contexto que surgem tentativas midiáticas (jornais, revistas, filmes) de estabelecer novos padrões de comportamento, tais como o do homem que parece gay, se comporta como gay, mas não é. Esse “tipo” heterossexual seria “admirado” e desejado pelas mulheres, ainda que a adoção de comportamentos refinados, mais sensíveis não deve, no entanto, anular a independência, autonomia, capacidade de prover, segurança (emocional e material) atribuídos ao velho modelo masculino heterossexual. Enfim, Chodorow ataca a maternagem mostrando que ela se reproduz mediante mecanismos psicológicos e sociais estruturalmente induzidos, Badinter, por sua vez, aponta para o amor materno como um sentimento não inerente às mulheres, mas fruto de uma construção histórico-social. Para a construção da maternagem tal como pensada por ambas, corresponderia também a construção de um certo tipo de paternagem. Maternagem e paternagem não são apenas relações entre pais e filhos, mas relações contraditórias entre homens e mulheres. A dimensão tradicional de maternidade e paternidade pode estar sendo questionada, mas fica ainda uma pergunta a anuviar minhas reflexões: por que a organização do trabalho doméstico e a divisão das responsabilidades familiares é ainda desigual, segundo o gênero? A invenção social da maternagem, de acordo com Anthony Giddens (1993), deu forma concreta à idéia de que é a mãe quem deve atender às necessidades específicas da criança. A maternidade, vista como uma função natural da mulher, passa a ser o componente central, 42 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias definidor, da identidade feminina. Maternidade e feminilidade são associadas como sendo qualidades da personalidade. E embora a dissociação entre sexualidade e reprodução tenha se tornado possível nos dias atuais, a relação mulher-mãe mantém a sua força no imaginário e nas representações sociais sobre o gênero feminino24. Maternidade e feminilidade continuam a se confundir e, segundo Aida Novelino (1989), recusá-la significaria para muitas mulheres, no mínimo, desviar-se do curso evolutivo que caracteriza o gênero feminino, negando-se a experimentar de forma plena a condição de mulher. As mulheres acabam enredadas no ideal da maternidade: fonte de realização, prazer e necessidade. É comum a idéia de que filho e mãe vivem uma relação simbiótica: a mãe “sabe” quando alguma coisa não está bem com suas crias. Seguindo esse raciocínio, a construção social da maternidade e da maternagem favorece uma menor participação masculina no cotidiano familiar. Operar a desnaturalização de uma evidência biológica – mulheres procriam, bebês precisam de cuidados por longo tempo, mães amamentam e por isso maternam (evidência social) – tem funcionado mais no discurso do que na prática. O ponto está justamente em que uma necessária divisão de tarefas (relativa à procriação) tem se estendido a outras dimensões da vida social, definindo e determinando uma divisão social de trabalho baseada nas diferenças sexuais, estabelecendo uma desigualdade de gênero que se reflete, por exemplo, no lugar ocupado pelas mulheres no mercado de trabalho e por discriminações salariais (Bruschini, Lombardi, 1996) e no lugar ocupado pelos homens na vida familiar. Isso aponta 24 para as É preciso considerar, todavia, que o advento da pílula anticoncepcional foi importante no processo de emancipação da mulher nessas últimas décadas. O controle sobre sua sexualidade e sobre a procriação ampliou o poder de decisão das mulheres quanto ao seu destino. Elas podem escolher quando ser mãe, quando começar ou parar de trabalhar. 43 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias dificuldades de evitar algum tipo de essencialização quando se discute maternidade ou mesmo paternidade25 . Nem a maternagem nem a paternagem existem isoladamente, ambos são aspectos constituintes da divisão do trabalho por sexos, e, por conseguinte, encontram-se estruturalmente relacionados a outros arranjos institucionais e formulações ideológicas que justificam essa divisão de trabalho. A socialização, por exemplo, é importante na reprodução da estrutura social e, conseqüentemente, na construção social de modelos ideais de maternagem e paternagem. Os meios de comunicação, a distribuição de renda, as escolas e a família, ou seja, as relações sociais e econômicas, as instituições, os valores e a ideologia, atuam diretamente na viabilização do cuidado com os filhos pelas mulheres e não pelos homens. Para Chodorow, a desigualdade de oportunidades e a menor remuneração das mulheres no mercado de trabalho, por exemplo, servem como justificativa para explicar de forma “racional” a divisão de atribuições: as mulheres cuidariam dos filhos e da família por não compensar financeiramente a sua saída de casa. Nos dias atuais, a desigualdade de gênero não pode mais ser explicada apenas segundo essa lógica. Sabe-se que as mulheres estão inseridas no mercado de trabalho e ocupam vários espaços antes masculinos e não se limitam a ficar em casa maternando. A decisão, inclusive, de ter filhos tem sido cada vez mais adiada, cedendo lugar a outras prioridades, como a carreira profissional. Sabe-se também que o salários das mulheres, em alguns setores do emprego, tem favorecido a ascensão social e em outros é fundamental para o sustento familiar. Ainda assim, os salários, em geral, são mais baixos do que os dos homens e sua ascensão ocupacional é permeada de obstáculos. Como explicar de “forma racional” essa disparidade? 25 Parceval (1986) e Corneau (1995) também apontam para o engodo do papel materno. 44 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Todavia uma outra questão se impõe: a mulher grávida, ao se olhar no espelho vê barriga concreta e mamas concretas aumentarem; as contrações, o trabalho de parto, estão longe de ser uma construção social. Difícil não ceder aos apelos do bebê que precisa ser alimentado, limpo e acarinhado para sobreviver. Após longa convivência intrauterina, como contestar que os cuidados infantis não sejam uma função feminina? Como contrariar as teses psicanalíticas, religiosas e pedagógicas de que o melhor para a criança é ser cuidada pela mãe ou, na impossibilidade desta, por outra mulher? Inventa-se a maternagem, que transfere o ato de procriar para uma outra atribuição culturalmente destinada às mulheres: a de cuidar dos bebês e criá-los. Mais do que isso: no caso específico da sociedade brasileira, a tradição patriarcal, reforçada pela formação católica, contribuiu para estruturar, ao longo de nossa história, as relações familiares em uma rígida divisão de atribuições. Percebe-se que a maternagem se mantém atrelada a aspectos biológicos (necessidades físicas do bebê que só a mãe pode satisfazer) e psicológicos (o bom desenvolvimento da criança depende de uma boa maternagem), em oposição à paternagem que se define social e culturalmente (o pai deve prover a família e dar-lhe respaldo moral) e aparece desvinculada do processo reprodutivo. Não caberia questionar, entretanto, se expressões masculinas tais como “fiz um filho” ou “ quem foi que te fez...” não estariam indicando que o homem de alguma maneira está posicionado no processo reprodutivo? O argumento de que o homem se encontra ausente desse processo precisaria ser mais bem elucidado. Esta exclusão pode estar se constituindo culturalmente como parte do processo de diferenciação e hierarquização dos sexos. Thomas Laqueur (1987) em sua análise sobre a literatura médica a respeito da anatomia humana mostra como o conhecimento contribuíram sobre para os justificar corpos, sobre supostas as diferenças diferenças morais físicas, e de 45 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias comportamento. A própria forma de conceber o corpo é uma construção social26. Segundo Laqueur, os séculos XVII e XVIII pontuam a passagem de um conhecimento teleológico do mundo para uma explicação mais racional, baseada no conhecimento científico. Foi neste período que o corpo passa a ser visto como constituído de dois sexos distintos. Até então os corpos masculinos e femininos não eram definidos por uma diferença em termos biológicos, mas em termos de grau de perfeição, compondo uma hierarquia vertical: os orgãos reprodutivos vistos como iguais em essência, sendo o corpo masculino o padrão. A partir do Renascimento, o modelo do dimorfismo, da diferença biologicamente determinada impôs uma anatomia de diferenças incomensuráveis; as teorias médicas que despontavam, centradas no aparelho reprodutor feminino, geraram justificativas biológicas que instituíram uma diferença radical entre o masculino e o feminino (Spink, 1994). Laqueur nos mostra que a historicidade do corpo, cujo conhecimento esteve atrelado a demandas específicas, de momentos históricos específicos, favoreceu a justificação das diferenças de gênero. A fundação dessas diferenças não estaria mais baseada em algum fator transcendental, cosmológico, mas na diferença biológica. A ciência, em franco progresso no período, era convocada a validar o debate ideológico. A natureza distinta de homens e mulheres fornecia um modo de explicar diferenças sociais27. O conhecimento sobre o corpo e a forma como esse saber foi formulado, destacando a bipolaridade dos sexos, e a persistência ao longo do tempo, na forma como a diferença entre os sexos é explicada, alerta-nos para a reprodução de modelos autoexplicativos, como já observei anteriormente: o homem excluído do processo 26 27 Ver também o artigo de Fabiola Rohden (1998) sobre Laqueur. A comparação entre a conformação dos esqueletos de um homem e de uma mulher, associando a diferença do tamanho do crânio da mulher com uma menor capacidade intelectual é um exemplo. Ver Laqueur (1987), Rohden (1998) e Citeli (1999). 46 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias reprodutivo porque a gravidez ocorre no corpo feminino, tendo essa exclusão se espraiado para outras dimensões da paternidade, tal como a educação e o cuidado com os filhos. Cuidar: atribuição feminina? A noção de cuidar de alguém, na sociedade ocidental, está associada à figura feminina (mãe, enfermeira, babá, dama de companhia)28. Bren Neale (1995) observa que mesmo a lei tende a reforçar essa idéia no caso de disputa dos pais pela custódia dos filhos. Embora muitos homens venham conquistando não só a custódia dos filhos como o direito à adoção, a regra geral ainda é o vínculo da mulher com seu filho, interpretado como um direito “natural”. Esse mesmo discurso norteia as políticas de bem-estar social, apoiadas no fato de que, na maioria dos casos, são mesmo as mulheres que cuidam das crianças e dos velhos. Para se contrapor a isso, algumas feministas procuraram problematizar a noção de cuidado. Basearam-se em trabalhos sobre identidade de gênero, como os de Nancy Chodorow, e em psicólogas como Carol Gilligan (1982), que desenvolve a idéia de uma “ ética do cuidado”. Em um destes trabalhos, Joan Tronto (1997) contesta a concepção de que o cuidado é um atributo feminino intrínseco ao desenvolvimento moral das mulheres, argumentando que as feministas “não podem supor que qualquer atributo das mulheres seja automaticamente uma virtude digna de ser defendida como causa” (p.187). Tronto distingue duas formas de cuidado: cuidado com/caring about (forma mais geral de compromisso) e cuidar de/caring for (implicando um objeto específico, que seria o centro dos cuidados). Essa distinção é apenas instrumental e permite apreender como o ato de cuidar pode ser generificado. 28 Ver Carol Gilligan, 1982. 47 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Tanto homens como mulheres “cuidam”, uma vez que cuidar envolve responder às demandas particulares, concretas, físicas e emocionais de outra pessoa ou grupo de pessoas. O que distingue a forma desse cuidado é que cuidar de refere-se às estruturas privadas, localizadas particularmente na família29. Não fica difícil, então, compreender por que muitas atividades femininas envolvem cuidado: as mulheres cuidam de (dos filhos, dos netos, dos velhos, dos doentes, da família, enfim). O cuidado com remete a preocupar-se: com o trabalho, com a família, com a justiça ou injustiça etc. instituindo aí o seu valor moral. A questão, porém, é quando o cuidar de adquire significado moral, não pelo fato de se referir à atividade de cuidar de alguém, mas como essa atividade se reflete nas obrigações sociais atribuídas a quem cuida e em quem detém essa atribuição, neste caso, as mulheres. Tronto não localiza nessa lógica um espaço onde julgamentos de moral têm lugar. E é a esse aspecto e às suas defensoras que as críticas de Tronto se dirigem, particularmente à psicóloga Nell Noddings, Carol Gilligan e Sara Ruddick30. O incômodo manifestado por Tronto localizase na pressuposição de que há uma ética diferente das mulheres, baseada não em princípios morais abstratos, mas expressão da atividade de cuidar31. Mesmo que na atualidade as posições de homens e mulheres na família não sejam mais aquelas definidas segundo o modelo teórico de Parsons, que distingue claramente as atribuições maternas e paternas, e no qual a atividade de cuidar se sobressai como atribuição exclusiva Tronto chama atenção para o fato de que “as profissões que proporcionam cuidados são muitas vezes interpretadas como um apoio ou um substituto para cuidados que não podem mais ser proporcionados dentro da família.” (1997, p.188) É o caso, por exemplo, da enfermagem, da medicina, da docência etc. 30 Noddings, N. Caring: a Feminine Approach to Ethics (Berkley: University of California Press, 1984); Gilligan, C. In a Different Voice (Cambridge: Harvard University Press, 1982) e Ruddick, S. Maternal Thinking (Boston: Beacon Press, 1989). 31 Destaco o livro de Marília Carvalho (1999) como outra referência de uma análise crítica das concepções de Noddings e Gilligan, e de suas influências no feminismo da diferença e na educação. Carvalho está particularmente interessada em compreender o trabalho docente nas séries iniciais do ensino fundamental, espaço privilegiado de atuação feminina (mas não só) e 29 48 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias das mulheres, a força dessa estrutura parece ainda se manter. Mais ainda, soma-se a ela um modelo idealizado de maternagem e paternagem, difundido pela mídia e referendado por teorias psicologizantes, que não correspondem à realidade social. Na mídia, a figura de um homem cuidador está quase sempre associada à imagem do efeminado, ou então do homem pouco habilitado para uma tarefa tão bem executada pelas mulheres, como observou Benedito Medrado (1998) em sua análise dos comerciais televisivos veiculados em âmbito nacional por uma rede de grande audiência, ao longo de 1996. Ou seja, a atividade de cuidar ainda aparece como um delimitador de atribuições e responsabilidades. E se observarmos ao redor, de fato, as atividades que envolvem cuidado são maioritariamente exercidas por mulheres. Diante desse quadro, como situar a paternagem? Paternagem e maternagem: a contradição na divisão das tarefas Segundo Eunice Durham (1983), todas as sociedade apresentam uma divisão de trabalho baseada na diferença entre homens e mulheres, no que é masculino e feminino. Essa divisão se constituiria em torno de uma tendência praticamente universal de separação da vida social: a esfera pública, associada ao homem (a política e a guerra) e a esfera doméstica, privada, vinculada à reprodução e ao cuidado com as crianças. Atribuir a todas as culturas os mesmos critérios para a separação entre as esferas pública e privada é, no mínimo, precipitado. Contudo, é possível concordar com a autora que a divisão sexual do trabalho se constrói socialmente a partir das diferenças biológicas, sendo que cada sociedade organizaria e modificaria essa divisão de modo a ressaltar fundamentação ou suprimir biológica de as acordo características com valores, que possuem costumes e interpretações específicas. A maternidade, por exemplo, pensada como desenvolve sua análise problematizando a inter-relação entre a atividade docente e a noção de 49 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias uma capacidade natural e exclusiva das mulheres, em algumas sociedades se constitui como base para a divisão do trabalho entre os sexos, estabelecendo posições diferenciadas para homens e mulheres na sociedade. Nas sociedades ocidentais, segundo Durham, o modelo tradicional de divisão sexual do trabalho determina que o trabalho remunerado é função do marido, chefe de família, que, portanto, deve prover o sustento dos membros. As mulheres são responsáveis pelo trabalho doméstico e pelas crianças. Esse modelo tradicional, observa a autora, vem se mantendo, apesar de as mulheres estarem sendo motivadas a buscar ocupações remuneradas dentro ou fora de casa. Essas atividades, contudo são complementares ao orçamento doméstico, preservando, pois, a posição de subordinação da mulher na família e na sociedade. Durham localiza aí uma ambigüidade: a conquista pelas mulheres do direito à igualdade na esfera do trabalho se mantém ao lado de sua desigualdade como mulher, porque ancorada na esfera da reprodução. Esses argumentos revelam, por outro lado, que se a esfera da reprodução é atribuída à mulher, o homem é excluído como coparticipante, contribuindo para naturalizar a diferença entre os sexos e justificar a maternidade como uma atribuição feminina e para reafirmar a desigualdade entre homens e mulheres em relação ao espaço privado. A divisão de tarefas baseada em diferenças sexuais foi apontada por alguns teóricos (entre complementaridade das eles Parsons) funções, não como um havendo, exemplo portanto, de uma hierarquia das atividades, dada a dependência recíproca de ambas as esferas, pública e privada. cuidado como uma característica intrínseca do gênero feminino. 50 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias A disseminação de técnicas contraceptivas permitiu a liberdade sexual e a autonomia em relação à reprodução, em parte garantindo a individualidade das mulheres. Somente em parte, uma vez que a responsabilidade social associada à maternidade e à paternidade continua sendo um entrave à igualdade entre os sexos. Curiosamente, as diversas propostas de solução para a questão dos filhos acabam reforçando a desigualdade entre os sexos. Durham (1983) nos fala das estratégias dos movimentos hippies e dos Kibutzin, que encontram na coletivização do cuidado infantil a solução para promover a igualdade entre homens e mulheres e garantir a liberdade individual. Ou ainda outras propostas que colocam nas mãos do Estado a responsabilidade de prover a assistência necessária para atender as crianças e liberar a mulher para o mercado de trabalho. Todas essas soluções tendem a privilegiar a participação igualitária das mulheres no mercado de trabalho e a liberação de sua sexualidade, mas também, retiram do casal a responsabilidade com a prole. Em nossa sociedade cobra-se do Estado auxílio tanto para garantir a liberdade sexual das mulheres, através da implantação do planejamento familiar e de técnicas reprodutivas, como de participação no cuidado infantil por meio de creches e/ou escolas em tempo integral, para que as mulheres possam trabalhar. Durham vê aí a persistência de um conflito básico marcado por dois aspectos: a livre expressão da individualidade (que pode enfraquecer o vínculo conjugal) e a responsabilidade conjunta em relação aos filhos comuns (que exige o fortalecimento do vínculo conjugal). Para ela, A competição individual de cada cônjuge no mercado de trabalho estabelece para cada um deles, separadamente, um conflito entre o tempo dedicado às tarefas domésticas e o tempo de trabalho e do lazer, que pode se refletir numa luta interna à família no sentido de fazer com que ‘o outro’ assuma uma carga doméstica maior. Na inexistência de novos modelos estáveis, o estabelecimento de padrões de divisão do trabalho na família fica na dependência do confronto interpessoal entre 51 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias os cônjuges, criando uma enorme área de conflito aberto possível (p.40). A meu ver, o conflito pode ser também um momento de barganha, de negociação, diversificando as formas de distribuir as responsabilidades e tarefas concretas. É neste contexto que as relações conjugais e os arranjos familiares na sociedade contemporânea devem ser analisadas. É preciso observar quais os critérios que têm sido usados por homens e mulheres para negociar suas relações, sejam elas familiares ou pessoais. Avento até mesmo a possibilidade de que a divisão atual das funções parentais pode estar sendo redefinida, mantendo-se entretanto uma seleção generificada das atividades, que não é necessariamente complementar, mas fruto de negociações e de condições sociais concretas. 52 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Capítulo 2 A paternidade em foco Na tentativa de desvincular o cuidado infantil da maternidade e associá-lo também a uma atividade realizada pelo pai, a paternidade vem sendo pesquisada sob diferentes prismas. Em muitos casos, esses estudos são tributários das concepções de Chodorow na idéia de que a participação masculina na socialização primária das crianças é a única forma para alterar a representação corrente da maternagem; ou seja, bastaria que mulheres e homens mudassem seu comportamento para que a história da desigualdade de gênero fosse outra. Além disso, embora as pesquisas empíricas constatem alguma tendência para transformações envolvimento nas relações masculino, a parentais, maioria até desses mesmo estudos um maior continuou apontando um comprometimento das mulheres com os seus filhos maior que o dos homens32. Essas reflexões, reforçam a idéia de que, em nossa sociedade, a dimensão econômica da paternidade é socialmente reconhecida e valorizada. Embora muitas vezes homens e mulheres sejam hoje em dia responsáveis ambos pelo sustento do grupo familiar, ainda é possível sustentar o argumento de que socialmente espera-se que o homem seja o principal provedor e o chefe da família. Os dados demográficos ilustram essa afirmação: são eles que lideram como chefes de família. Na cidade de São Paulo, segundo a Pesquisa de Condição de Vida – PCV, realizada pelo Seade para 1994, taxa de distribuição das famílias segundo o sexo do chefe era de 78,4% para os homens e 21,6% para as 53 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias mulheres. Essa mesma pesquisa realizada em 1998, indicava para a Região Metropolitana de São Paulo um percentual de 77,1 de homens chefes de família contra 22,9 de mulheres. Esses dados mostram que, provavelmente, mesmo entre as famílias de “dupla carreira”, isto é, famílias nas quais ambos os cônjuges têm atividade remunerada (e, possivelmente, dividem as despesas e responsabilidades familiares), o homem continua sendo nomeado como o chefe33. O status masculino é definido pelo seu sucesso profissional e pela chefia da família, e o desempenho da paternidade está atrelado a esses fatores (exemplo disso é o impacto que o desemprego causa sobre o homem e sobre a família). Embora o status da mulher “moderna”, de certa maneira, também se defina como o masculino, ainda está marcado pelo sucesso em articular trabalho profissional e família, mais especificamente a responsabilidade pelos filhos. Estudos sobre paternidade Se há uma vasta produção sobre maternidade e sobre famílias, pouco foi produzido sobre paternidade no Brasil34. Foram localizadas dezenove teses e dissertações, a maioria delas na área de psicologia social e de jurisprudência, como os próprios temas indicam: Ausência paterna: correlatos cognitivos e de personalidade dos filhos na idade préescolar, CAMPOS, J. C. (1979); Políticas de controle de natalidade e ideologia da paternidade responsável, OLIVEIRA, Célia C. de (1983); Os preconceitos sobre o papel, dever e direito do pai na legislação brasileira: um estudo psicológico, ALMEIDA, Heloisa A. D. R. de (1985); A maioria das pesquisas consultadas sobre famílias de camadas médias (anos 80 e 90) e mesmo sobre paternidade, aponta para a mesma tendência: Bruschini (1990); Salém (1980); Romanelli (1986); Quadros (1996) entre outros. 33 Sabe-se que a partir do Censo de 1980, o recenseador deve instruir o informante sobre a tarefa de designar a pessoa que acredita ser a chefia familiar, isto é, cabe ao informante indicar quem considera como a pessoa de referência na família. (Bruschini, 1998). 34Informações completas, ver em Referências Bibliográficas. Parte desse levantamento foi realizado por Jorge Lyra para sua pesquisa de mestrado, em Psicologia Social, sobre a paternidade adolescente, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 32 54 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Paternidade: uma forma de existir, CARUSO, Ilda A (1986); Reflexões sobre o pai: um estudo sobre a construção da paternidade na história de vida e no desenvolvimento do sujeito, CARVALHO, Lilian A (1989); Pai divorciado: auto-percepção de seu papel paternal antes e após o divórcio, BREDA, Virgínia B. dos S. (1991); Paternidade: um enfoque evolutivo do homem-menino ao homem-pai, DIAS, Isabel M. Q. (1991); Paternidade presumida: do código civil a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, FACHIN, Luiz Edson (1991); Papel da figura paterna na formação da personalidade: um estudo com adolescentes toxicômanos, SILVA, Alzira S. B. P. da (1991); A construção do papel paterno, STINGEL, Ana M.(1991); As representações sociais da paternidade e da maternidade: implicações no processo de aconselhamento genético, TRINDADE, Zeide A.(1991); Paternidade negada: contribuições ao estudo sobre o aborto, VON SMIGAY, Karin Ellen (1992); Ser/estar pai: uma figura de identidade, MACIEL, Alexandrina A.(1994); Paternidade em transformação: o pai singular e sua família, SOUZA, Rosane M. de (1994); Pais e filhos: uma relação co-construída, CRUZ, Elaine V. de A.(1995); A experiência de ser pai de uma mulher, MATOS, Diva M. S. (1995); Construindo uma nova paternidade? As representações masculinas de pais pertencentes às camadas médias em uma escola alternativa do Recife, PE , QUADROS, Marion T. (1996); A paternidade ativa na separação conjugal, SILVA, Evani Z. M. (1996); Paternidade adolescente: uma proposta de intervenção, FONSECA, Jorge LYRA da (1997). Ao acompanhar o fluxo desta produção, percebe-se que nos anos 90 o tema da paternidade ganha um fôlego especial, aglutinando a maioria das pesquisas desenvolvidas. É também neste período que o tema da masculinidade aparece com maior ênfase, tanto na academia como na mídia. Até então nos estudos sobre a vida privada a fala de mulheres de diferentes camadas sociais é predominante. São poucas as 55 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias informações sobre o impacto do processo de modernização reflexiva35 na vida privada dos homens. Sobre a intimidade masculina paira um quase silêncio, quebrado apenas por pesquisadores/psicanalistas que chamam atenção para uma “crise da masculinidade”. Pedro Paulo Martins de Oliveira (1998) já havia chamado atenção para uma dada característica na emergência deste tema entre alguns autores: “a percepção de uma crise no modelo de comportamento masculino socialmente sancionado”, com ênfase em supostas prescrições sociais impostas ao gênero masculino. Além disso, a ausência de informações, de dados sobre os homens (em particular sobre sua vida reprodutiva e sexual e sobre sua participação na esfera privada) também estimulavam o interesse por uma área de reflexão interdisciplinar, denominada nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, como Men’s Studies. Na América Latina, incluindo o Brasil, o assunto ganha força na década de 90 mediante pesquisas de mestrado e doutorado, publicações, eventos e concursos de incentivo à pesquisa sobre masculinidades36. Vários pesquisadores reúnem às suas próprias reflexões e publicações, artigos de autores anglo-saxãos, que tornamse referências constantes em estudos sobre os homens e sobre a masculinidade, entre os quais: ARANGO, Luz G., LÉON, Magdalena, VIVEROS, Magdalena (org.). Género e identidad: ensayos sobre lo femenino y lo masculino, 1995; VALDÉS, Teresa, OLAVARRIA, José (eds.). Masculinidad/es: poder y crisis, 1997; VALDÉS, T. & Para Giddens (1993, 1997),a sociedade moderna vem passando por etapa que denomina de “modernização reflexiva” e de “destradicionalização”, referindo-se a uma ordem social na qual a tradição muda de status, mas não desaparece. Compartilhando dessa idéia, Ulrich Beck (1997) argumenta que a sociedade moderna em seu dinamismo tem transformado suas formações de classe, os papéis sexuais, as relações familiares, os modos de produção, a organização do trabalho – num processo de destruição e reconstrução fruto da autoconfrontação dos indivíduos com o processo de globalização e o dominio de determinadas certezas da sociedade industrial que ainda povoam o pensamento e a ação das pessoas, como por exemplo o consenso para o progresso ou a abstração dos efeitos e dos riscos ecológicos (1997, p. 16). 36 Arilha, Ridenti e Medrado (1998); Heilborn e Carrara (1998) contextualizam o interesse por esse assunto no Brasil. Para América Latina ver Valdés e Olavarria, 1998. 35 56 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias OLAVARRIA, J. (eds.). Masculinidades y equidad de género en América Latina, 1998. Estas coletâneas incluem artigos de autores americanos e europeus, cujas principais obras — KIMMEL, Michael S. (ed). Changing men: new directions in research on men and masculinity,1987; KIMMEL, Michael S., MESSNER, Michael. A (orgs). Men’s Lives. 1994; CONNELL, Robert W. Masculinities: knowledge, power and social change. 1995; CONNEL, Robert W. Políticas da masculinidade. 1995 (artigo traduzido); ALMEIDA, Miguel Vale de. Senhores de si: uma interpretação antropológica da masculinidade. 1995; BOURDIEU, Pierre. La Domination Masculine. 1998 (traduzido para o português em 1999, pela Editora Bertrand do Brasil)37 — vêm subsidiando pesquisas brasileiras, além de serem também objeto de reflexões críticas38, consolidando o tema da masculinidade entre os estudiosos das relações de gênero no Brasil. Em parte, essa temática surge como reflexo do desenvolvimento que os estudos feministas e de gênero alcançaram desde a década de 1970 e que demonstravam a necessidade de novas e diferentes estratégias para maior eqüidade entre homens e mulheres bem como, para expressão das sexualidades e subculturas sexuais. Os modelos hegemônicos de masculinidade e feminilidade heterossexuais como via única na conformação das identidades sexuais e dos comportamentos têm sido colocados em xeque. Em minha pesquisa, optei em não abordar a (vasta) literatura que discute o conceito de masculinidade(s), suas limitações e possibilidades para os estudos de gênero. Contudo, pareceu-me importante registrar alguns do principais autores que têm O arrolamento destas referências bibliográficas apenas ilustra e contextualiza o tema da pesquisa; não é pois exaustivo, destaca, no entanto, obras mais recorrentes, citadas nos textos consultados. 38 Garcia (1998); Oliveira (1998); Heilborn, Carrara (1998), Correa (1999) entre outros. 37 57 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias influenciado as discussões sobre o assunto, na medida em que subsidiam as pesquisas sobre paternidade. Completa o levantamento uma série de artigos e livros de autores americanos, europeus e latino-americanos, onde a paternidade e o envolvimento masculino com os filhos vêm sendo estudados mais atentamente há pelo menos duas décadas39. Boa parte desta bibliografia tem subsidiado as pesquisas no Brasil. Os estudos sobre a paternidade poderiam ser classificados em, pelo menos, dois recortes: 1) estudos de caráter histórico40 (incluindo uma abordagem a partir da mitologia); 2) estudos sobre identidade masculina. Dentre esses últimos, alguns trabalhos fundamentam-se sobretudo em depoimentos autobiográficos41, numa tentativa de mostrar que é perfeitamente possível ao homem falar de suas experiências cotidianas intencionalmente, tendem e conflitos a pessoais; essencializar a mesmo não masculinidade, generalizando uma experiência que pode ser socialmente distinta. Os estudos sobre identidade masculina são uma interface das discussões sobre paternidade. Ser ou não pai, biológico ou não, é um dos elementos que caracterizam, em cada cultura, de maneiras distintas, a identidade masculina. Os estudos sobre o “novo pai” direta ou indiretamente acabam remetendo à existência de um “novo homem” Ver Lamb (1982); Lamb, Sagi (1983); Lamb (1983); Eisikovits (1983); Jalmert (1990); Näsman (1990); Combes, Devreux (1991); Singly (1993); Sachs (1994); Engle (1995); Evans (1995); Neale, Smart (1995). 40 A partir de uma perspectiva histórica há o livro de Jacques Dupuis: Em nome do pai: uma história da paternidade. São Paulo : Martins Fontes, 1989. Trata-se de uma análise histórica que atribui ao período neolítico a descoberta da paternidade. Para o autor teria sido no quinto milênio que egípcios e indo-europeus se conscietizaram do papel do homem na procriação. Esse conhecimento teria dado origem à revolução social que subverteria particularmente as estruturas familiares, a vida sexual, as religiões e suas mitologias. Sobre um análise da paternidade a partir da mitologia ver Colman, Arthur, Colman, Libby. O pai: mitologia e reinterpretação dos arquétipos. São Paulo : Cultrix, 1991. 41 Cito como exemplo na literatura brasileira: Gadotti (1985); Montgomery (1992); Von (1992), Nolasco (1993, 1995). Nos EUA a principal referência do denominado “movimento mitopoético” é o best seller Iron John, de Robert Bly, traduzido no Brasil como João de Ferro. Rio de Janeiro : Campus, 1991. 39 58 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias e evidentemente problematizam o modelo de masculinidade hegemônico42. Ao contrário dos estudos sobre mulheres, as pesquisas sobre paternidade não surgiram exatamente a partir de reflexões sobre a condição masculina, menos ainda sobre a opressão masculina. Em geral, enfatizam as conseqüências da ausência paterna ou do divórcio na relação pai-filho e, em alguns casos, não deixam de lado preocupações quanto aos efeitos da paternidade no desenvolvimento moral da criança e na definição da identidade sexual heterossexual (Lamb, 1982). Curiosamente, a ênfase parece recair muito mais na necessidade de ampliar a presença física e simbólica do pai — referência para modelar comportamentos e minimizar os efeitos de uma ausência no ajustamento psicológico das crianças —, e menos na crítica ao modelo de estrutura das relações de gênero. A influência da psicologia nesses estudos é bastante evidente. De maneira geral, a paternidade é focalizada a partir de dois eixos que destacam: 1) uma suposta mudança na identidade masculina e nas relações familiares — o “novo homem” e o “novo pai” são expressões recorrentes; 2) a necessidade do envolvimento masculino na vida familiar e com os filhos, como meio de viabilizar transformações nas relações de gênero, além de atender às necessidades básicas das famílias, particularmente das crianças43. Sobre esse assunto consultar: Connel (1995); Kimmel (1987; 1992); Almeida (1995); No Brasil, Medrado (1998); Oliveira (1998); Nolasco (1995); Nascimento (1999) entre outros. 43 Judith Evans (1995) conta que em 1994, Ano Internacional da Família, discutiu-se em vários países a respeito das políticas sociais que pudessem auxiliar famílias carentes. Em geral, essas políticas são voltadas para as mulheres e crianças (e por isso as políticas sociais para famílias acabavam sendo vistas como uma questão das mulheres), mas nesse a ênfase das discussões foi a importância do homem para a vida das crianças. Uma recomendação do Conselho de Ministros Europeus sugeria a promoção e o encorajamento de uma maior participação masculina na vida familiar. Isso implicaria em discutir o envolvimento de homens em serviços para as crianças, uma mudança cultural do ambiente de trabalho de forma a apoiar esse envolvimento no cuidado infantil, atuação junto à mídia como divulgador da importância dessa participação etc. 42 59 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Nas pesquisas sobre o “novo pai”, a “nova paternidade” e mesmo “novo homem”, o psicólogo Michael Lamb aparece como a principal referência entre os que pontuam as mudanças contemporâneas nas relações parentais a partir de uma participação mais efetiva dos homens no cotidiano familiar. Lamb e seus colaboradores (1983) têm enfatizado a necessidade de analisar mais detidamente a atuação do homem na família e de investimentos em políticas sociais para dar suporte à participação masculina. O tema da paternidade tem sido também abordado por pesquisas que relacionam identidade masculina e paternidade. Há uma tendência, nestes casos, a situar as discussões sobre uma suposta “nova paternidade”, com o surgimento de um “novo homem”, configurando uma “nova heterossexualidade”, da qual faz parte a crítica a uma masculinidade hegemônica que se pensa no singular. Numa perspectiva não muito distinta, no Brasil, Sócrates Nolasco (1995) reforça os estudos sobre a paternidade, em especial os mais recentes, que procuram desmontar um modelo tradicional de pai e de masculinidade, questionando denominações tais como “bom pai”, “pai honrado”, “pai provedor”, que se sobrepõem a expressões como virilidade, iniciativa e objetividade. Há um esforço em afirmar a importância do envolvimento paterno com o filho: “do vínculo da obrigação passa-se para o vínculo de afeto e prazer”. Autores como Nolasco têm-se preocupado em questionar o papel masculino na sociedade contemporânea, que restringe e constrange as subjetividades masculinas, propondo um outro modelo de comportamento, que não aquele do “homem máquina”. Outra tendência nos estudos é a de explorar as denominadas famílias não-tradicionais (Lamb, 1982), nas quais os homens têm maior ou igual responsabilidade pelo cuidado diário com seus filhos, motivados por um novo estilo de vida ou porque ambos, homem e 60 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias mulher, trabalham em tempo integral. Algumas pesquisas mostram que os efeitos dessas mudanças não são tão perversos quanto poderia se supor. Graeme Russel (1982) constata, por exemplo, que nas famílias australianas em que homens e mulheres trabalham fora, o pai tende a contribuir mais no cuidado com as crianças do que os maridos de mulheres que não trabalham44. Outra pesquisa, realizada por Phyllis Moen (1982), mostra que homens cujas mulheres trabalham despendem 1,8 hora em trabalho doméstico e 2,7 horas no cuidado com os filhos por semana a mais do que maridos de mulheres que não trabalham. Cabe destacar que a natureza do trabalho de cada cônjuge, que afeta, por exemplo, a disponibilidade de tempo, interfere na forma como ocorre a divisão do trabalho doméstico. Mais recentemente, na década de 90, as discussões sobre maternidade e paternidade têm sido influenciadas especialmente pela introdução de novas tecnologias reprodutivas e suas implicações para os direitos reprodutivos e para a saúde das mulheres. A crescente interferência da medicina procriativa tem fomentado um novo leque de discussões e estudos, reavivando as indagações sobre a dicotomia natureza (feminino) e cultura (masculino). Certos autores destacam a polêmica provocada pelo desenvolvimento de algumas tecnologias reprodutivas como formas de apropriação pelos homens do corpo reprodutor feminino e conseqüentemente das crianças, ou então como forma de questionamento da paternidade e da maternidade45. A essas discussões, somam-se pesquisas sobre identidades sexuais, vida reprodutiva e sexualidade masculina, e questões relacionadas à violência. Na pesquisa de Graeme Russel (1982) com famílias australianas, dentre os motivos apontados para a opção de um estilo de vida no qual as responsabilidades com os filhos são divididas, 6 famílias disseram que era porque o marido estava desempregado, 19 por causa dos benefícios financeiros, 12 por causa da carreira (inclusive da mulher), 13 pela crença de que essa é uma tarefa que deve ser compartilhada. 45 Mais adiante irei explorar essa questão a partir da análise de Marilyn Strathern do impacto das tecnologias reprodutivas sobre a cultura urbana contemporânea, naquilo que tange o parentesco, a paternidade e maternidade (ver também: Ferrand, 1989; Scavone, 1995). 44 61 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias A paternidade tem sido objeto de investigação de autores também preocupados com o crescimento, nas famílias carentes, do desemprego masculino — muitas vezes apontado como uma das causas da desagregação familiar — e das famílias chefiadas por mulheres — fenômeno associado à pauperização das mulheres. Essas pesquisas, em geral, visam subsidiar políticas sociais, especialmente para os países do Terceiro Mundo. Nessas abordagens o homem é apontado como um ator importante para a saúde e para o desenvolvimento infantil. Argumentam, por exemplo, que os homens, em muitas sociedades, ao ocuparem espaços de poder fora da família, atuando como líderes religiosos, comunitários, como professores, agentes de saúde etc. podem contribuir para a implementação de programas sociais (Evans, 1995, Mundigo, 1995). No Brasil, as pesquisas sobre paternidade não diferem substancialmente das anteriormente citadas. A maioria delas situa-se no campo da psicologia social e sustenta seus argumentos a partir das concepções de Nancy Chodorow e Michael Lamb. A idéia de que uma “nova paternidade” estaria surgindo situa várias dessas pesquisas numa mesma linha de argumentação: a da paternidade como um momento de redefinição do lugar do homem na família e na sociedade contemporânea. Esse homem é marcado por ambigüidades, por conflitos etc., pois atrelado a valores tradicionais. A literatura psicológica tende a analisar a paternidade a partir do impacto de uma participação mais ou menos efetiva no desenvolvimento infantil e a partir dos efeitos do divórcio e a conseqüente disputa pela custódia dos filhos. A participação dos homens no pré-natal e durante o parto é definida como um marco na passagem para a “nova” paternidade (Souza, 1994). 62 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Karin Von Smigay (1992), por exemplo, investiga a “paternidade negada” a homens de camadas médias e altas, cujas parceiras praticaram aborto. Esta psicóloga destaca que a vivência da gravidez intensifica um sentimento de ambivalência em relação ao próprio pai, com manifestação de disputa e inveja da capacidade geradora da mulher. Há uma reativação dos conflitos relativos à sexualidade e sentimentos de incapacidade quanto ao papel paterno. Esses fenômenos são denominados por ela de “psicose da paternidade”. A paternidade é analisada como um ritual de passagem marcado por conflitos e expressões de afetividade. Focalizando o impacto das experiências vividas por homens na construção da paternidade, Ilda Caruso (1986) analisa o depoimento de dez homens, com diferentes níveis de escolaridade e origem sócioeconômica. A partir de uma perspectiva psicológica, conclui que a paternidade é representada como possibilidade de garantir a continuidade genética, sendo o filho o meio dessa perpertuação; significa crescimento, reajustamento psicológico e independência em relação à família de origem. Investigando o processo de transformação da identidade masculina, a partir da paternidade de homens que ficam com a custódia dos filhos após o divórcio, Rosane M. Souza (1994) observou que os homens entrevistados por ela de início concentravam-se na organização da casa e no ajuste da rotina dos filhos, perseguindo na vida familiar um padrão semelhante ao do mundo do trabalho; depois, diante das necessidades afetivas dos filhos, as dificuldades favoreceram um funcionamento familiar mais flexível e incitaram a um processo de transformação individual, sem, contudo, questionamento da função de provedor. Para Souza, o fato de os homens não lutarem pela custódia dos filhos após a separação reforça a idéia de que a paternidade diz respeito mais à satisfação pessoal de ter um filho (reafirmação da 63 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias masculinidade e, mais do que isso, a garantia da perpetuação) e menos ao desejo de estabelecer uma relação concreta com o filho. As representações de paternidade a partir de uma perspectiva de trajetória de vida, isto é, a relação avô-pai-filho, foram investigadas por Lilian A. Carvalho (1989). Segundo suas conclusões, muito do padrão da família de origem permanece, mesmo quando as mulheres trabalham fora. A aproximação com os filhos é maior do que em relação à família de origem e se expressa num diálogo mais aberto. No campo da saúde, destacam-se dois trabalhos: o de Célia C. Oliveira (1983) e de Alexandrina Maciel (1994). O primeiro faz uma análise do sentido ideológico da política de controle da natalidade no período das décadas de 1970 e 80 no Brasil. Já Maciel, focalizando a gravidez e o parto, entrevista pais e profissionais da saúde com o intuito de verificar a possibilidade de uma nova definição para o “ser homem”. Suas considerações finais indicam que, embora o homem esteja receptivo às transformações (participando do processo de gestação e do parto), ele ainda está preso ao estereótipo masculino representado na figura do pai protetor e provedor material. Numa perspectiva antropológica, Marion T. de Quadros (1996) investigou as representações masculinas do papel de pai e de mãe no cotidiano de famílias de camadas médias recifenses. Procurou verificar a existência ou não do fenômeno da “nova paternidade” e de como ocorre o envolvimento e a participação do pai no cotidiano familiar. Conclui que os pais mais participativos tendem a apresentar maior proximidade e afinidade com o cônjuge e com os filhos, porém a maioria dos pais que entrevistou participava pouco do cotidiano familiar, reafirmando relações conjugais assimétricas e conflituosas. A gravidez na adolescência tem sido um tema vastamente abordado, mais especificamente como um fenômeno social afetando 64 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias precocemente a vida de milhares de meninas, contudo a paternidade adolescente tem sido pouco explorada. Pretendendo suprir essa lacuna, Jorge Lyra (1997) não só desenvolveu uma pesquisa sobre o menino adolescente e sua vida sexual e reprodutiva, como elaborou uma proposta de intervenção específica nesse grupo. Trata-se do projeto Paternidade Adolescente: Construindo um Lugar, desenvolvido com bolsa individual do Fundo de Capacitação e Desenvolvimento de Projetos da Fundação MacArthur (1997-1999). O projeto resultou no Programa PAPAI, que tem promovido ações e estudos em saúde e relações de gênero. As ações estão voltadas particularmente para a participação de jovens adolescentes (com ênfase na população masculina de Recife, Pernambuco) no campo da sexualidade e reprodução. A iniciativa de Lyra se coaduna com uma proposta mais ampla de organismos internacionais de promover políticas sociais de atendimento à população masculina quanto às demandas saúde, sexualidade e reprodução, sem contudo, neste caso, deixar para um segundo plano a reflexão teórica46. O lugar do pai Procurei apresentar um sucinto panorama da produção acadêmica sobre paternidade. Alguns desses estudos discorrem a respeito das vantagens, tanto para os homens como para as mulheres e as crianças, de um maior envolvimento masculino com as atribuições familiares. Se há vantagens é preciso pensar em como se constitui o lugar do pai na família contemporânea. Estudos etnográficos revelam que em todas as sociedades há sempre alguma forma de organização do trabalho, no interior da qual os homens participam na criação dos filhos. Margaret Mead (1971), por 46 Para maiores informações consultar o site: http://www.ufpe.br/papai. 65 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias exemplo, interpreta como uma conduta nutridora do homem a busca por alimentos para a mulher e a prole47. O homem aprende que deve alimentar e cuidar daqueles que fazem parte do seu núcleo de convivência, podendo ser a família consangüínea ou não. Em muitas culturas, o pai representa uma importante figura na educação e formação do jovem, em especial dos meninos, não só no aspecto moral, mas de aprendizado dos costumes, tradições e ofícios. Rivka Eisikovits (1992) cita o exemplo dos esquimós que levam seus filhos de 6 e 7 anos para as caçadas, assim como os Kpelle da Libéria. A atividade dessas crianças consiste em observar os adultos e eventualmente ajudar em alguma coisa, iniciando seu aprendizado. Outro autor (Evans, 1995) lembra os costumes dos muçulmanos, cujas mulheres raramente podem sair de casa. O pai muçulmano é o elo da criança com o mundo fora da casa, é ele quem a leva para a escola e o médico. O pai precisa, neste caso, saber quais são as necessidades de seus filhos. No entanto, esse envolvimento paterno não se traduz em relações mais igualitárias (ao menos segundo uma concepção ocidental de igualdade de gênero); ao contrário, nesse caso, a ideologia religiosa reforça a distinção de gênero: homens na rua (na vida pública/política), mulheres em casa. A organização do trabalho e a concepção de que as mulheres e as crianças devem ser sustentadas e protegidas variam de cultura para cultura; em nossa sociedade, por exemplo, o padrão é geralmente o do homem sustentando sua família biológica. No entanto, o crescente número de famílias chefiadas por mulheres que assumem as responsabilidades pelos filhos demonstra a exigüidade do tempo de relação pai-filho nas sociedades contemporâneas, podendo facilmente ser abolida, ao contrário do elo mãe-filho. 47 Na sociedade trobriandesa, estudada por Malinovski, o homem também desempenha uma função nutriz. No intercurso sexual com uma mulher grávida, o homem garante o desenvolvimento do feto, dá-lhe forma e feição, é, portanto, nutridor e criador (Ver Strathern, 1995). 66 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Recentemente, tal exigüidade, aliada às novas tecnologias reprodutivas, veio à baila com a polêmica da “Síndrome do Nascimento Virgem”. Marilyn Strathern (1995) explica que a Síndrome48 foi assim denominada a partir das reivindicações de um grupo de mulheres, na Grã-Bretanha em 1991, pelo direito de gerar filhos sem relações sexuais, recorrendo à inseminação artificial. Um desejo, aparentemente tão natural, pois é esperado que as mulheres queiram ter filhos, causou significativo impacto na imprensa e na comunidade científica. A “Síndrome do Nascimento Virgem” gerou polêmica porque essas mulheres buscavam o processo de inseminação sem uma necessidade aparente, movidas apenas pelo desejo de engravidar sem ter relações sexuais. Em circunstâncias como essas a concepção não tinha o objetivo de unir pessoas, não criava a parentalidade. Para existir a parentalidade, segundo Strathern (1995), pressupõe-se o parentesco, a existência de dois indivíduos iguais em termos de doação genética e desiguais nas relações sociais que estabelecem entre si e com a criança. O debate promovido a partir do desejo desse grupo de mulheres reavivou, de um lado, as discussões em torno das práticas das clínicas de inseminação e, de outro, a importância da família nuclear heterossexual, mais especificamente, a família como a vêem os euroamericanos49, uma formação de relacionamentos com base na procriação, que atribui significado à parentalidade. Um aspecto polêmico é que a iniciativa dessas mulheres desmonta a relação existente entre o ato sexual e a concepção na Essa polêmica, segundo a autora, já havia aparecido nas décadas de 60 e 70, denominada então de Polêmica do Nascimento Virgem e referia-se a depoimentos etnográficos (de comunidades da Austrália, Melanésia, mais especificamente nas ilhas Trobriand) sobre concepções que desvinculavam a reprodução do ato sexual. 49 A autora embora utilize um acontecimento europeu para tecer sua análise, considera que trata de “características de sistemas de parentesco que abrangem tanto a América do Norte quanto a Europa” (p.306) e por isso usa o termo euro-americanos. 48 67 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias definição do pai. Tanto na representação da classe médica quanto no senso comum euro-americano, a problemática estava em que, ao negar a relação sexual, aparentemente essas mulheres estariam negando a necessidade da presença de um pai. As tecnologias reprodutivas deveriam ter um único objetivo, ajudar as relações físicas, o intercurso sexual, mantendo intacto o processo “natural” da procriação. Entretanto, as mulheres virgens que solicitam os tratamentos de fertilidade a fim de evitar relações sexuais desmontam esse princípio e evidenciam o lugar “generificado” (gendered) do clínico que concebe com a ajuda da tecnologia um bebê. O pedido de inseminação para evitar o intercurso significa que não há nenhum pai pretendido, e simbolicamente transforma o médico no único parceiro sexual. A princípio não é imperativo explicar a “necessidade da mãe”, ela é presumida, por ser socialmente inconcebível para os euro-americanos (eu acrescentaria, para os latino-americanos também) que um filho nasça sem mãe50. A legislação sobre o uso de tecnologias reprodutivas prevê em algumas circunstâncias a fertilização a partir de material genético de uma terceira pessoa — nos casos de doação de espermatozóides é garantido o anonimato do doador, isto é, o pai biológico não é reconhecido. Além disso, socialmente a idéia de que um filho nasça sem pai não é um sentimento que provoque indignação moral. Há, porém, a pressuposição da possibilidade de existência de um pai, se não biológico, ao menos social. Os homens podem desejar uma relação sexual e não desejar o filho que dela resulta, e isto não incomoda. O desejo das mulheres da “Síndrome do Nascimento Virgem” é justamente o contrário. Para Strathern, essa polêmica se revela incoerente, uma vez que culturalmente é esperado que as mulheres tenham filhos e é socialmente aceito o descaso paterno. 50 Supõe-se que com os avanços das novas tecnologias num futuro bem próximo já será possível desenvolver em útero artificial um embrião humano. 68 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Aparentemente, a questão, nesse caso, seria que essas mulheres estariam negando aos homens o exercício da opção de assumir ou não a paternidade: eles dependem da presença física das mulheres para se constituírem como pais; elas, por sua vez, não dependem diretamente deles para serem mães — as tecnologias reprodutivas garantem a fertilização. Por outro lado, o que também causou indignação foi o fato de elas deixarem evidente que não queriam jamais ter relações sexuais. Na sociedade euro-americana, é desejável que as crianças convivam com os pais para que possam aprender o significado do relacionamento amoroso. A relação sexual seria o fundamento do amor conjugal, cuja importante função simbólica consistiria em realizar uma necessidade biológica, estimular o amor entre os pais e conseqüentemente o amor destes pelos filhos. Essa seria a descrição de uma família ideal e, portanto, deveria ser preservada como forma de manter o sistema social. As mulheres da “Síndrome do Nascimento Virgem”, ao planejarem ter filhos sem o intercurso sexual e, portanto, negando a existência de um pai, ameaçariam esse ideal. (...) as mulheres são as guardiãs do ideal. São elas que têm de mostrar que a procriação é um fato natural, estabelecer a possibilidade de sua criança ter um pai, e, dispondo-se ao intercurso sexual, mostrar que os filhos nascem necessariamente de relacionamentos (Strathern, 1995, p. 3145). Strathern chama a atenção para o fato de que essa argumentação, ao pressupor que o intercurso faria o pai e a mãe e, por tabela, a família, desconsidera que o ato sexual reúne pessoas que são diferenciadas pelo gênero e que, portanto, atribuem significados específicos não só ao ato em si, mas à relação que dele poderá eventualmente decorrer. Isto posto, a autora afirma que para as sociedades euro-americanas a relação mãe-filho em si e por si não significa sociabilidade, havendo a necessidade de uma terceira pessoa – o pai –, que teria a função de promover essa sociabilidade. 69 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Outra questão importante levantada por Strathern diz respeito às interferências de ordem biológica que a cultura incorpora na definição de pai e mãe. Por exemplo, a definição da parentalidade física e jurídica é fundamentada no caráter biológico (a mulher engravida e tem o parto). O filho, porque gestado no ventre materno, é quem define a mãe, estabelecendo um processo no qual o ato sexual está subsumido. E é a mãe quem, por sua vez, define o pai. No caso da polêmica, o implante de um embrião não bastaria para criar uma mãe e muito menos um pai. É preciso o desejo dos parceiros conjugais um pelo outro e conseqüentemente pelo filho. O esforço humano estaria em promover o relacionamento que fará o filho e a gravidez seria um processo biológico (quase) inevitável. Mesmo que a gravidez seja fruto de um intervenção clinica, está presente a idéia de um pai social, ou seja, a criança nasce como uma pessoa que necessita de relacionamentos. É o filho quem cria a possibilidade de união entre indivíduos que são primeiramente distintos quanto ao sexo e, segundo, quanto ao gênero, uma vez que cada um, homens e mulheres, atribuiria significados diferentes à relação. É o filho quem determinaria o pai e a mãe. Não é objetivo desta pesquisa discutir o impacto das tecnologias reprodutivas nas representações de família das sociedades ocidentais, porém a discussão posta por Strathern nos mostra que o pai desempenha uma outra atribuição além daquela de sustentar sua família ou de exercer a autoridade moral. O lugar de pai lhe é assegurado até mesmo independentemente do vínculo biológico. Este pai soma um conjunto de valores simbólicos, presentes mesmo quando se encontra fisicamente ausente, mas considerados socialmente fundamentais para a organização de qualquer arranjo familiar. Strathern tem o cuidado de não afirmar que a necessidade do pai é a necessidade de família, ela fala em relacionamentos. E talvez seja 70 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias uma expressão adequada, se considerarmos os diversos arranjos, que sempre acabamos denominando como “famílias”, que alteram o referencial fundado no modelo de família conjugal heterossexual. A paternidade, relacionamento portanto, que irá virá conformar-se a ser por intermédio estabelecido do entre homem/mulher/criança; relacionamento por sua vez mediado por variáveis como gênero, geração (diferencial de idade) e contexto sóciocultural. Por suposto, o lugar do pai, atrelado a valores simbólicos, parece marcado particularmente por um conjunto de obrigações para com os filhos. A partir desse pressuposto todo um sistema defensivo é construído, desde o legislativo até às políticas sociais, que determina a paternidade a partir de suas conseqüências familiares e institucionais: o sobrenome que é dado pelo pai, o reconhecimento paterno, as diversas obrigações jurídicas para o sustento dos filhos, as leis referentes à herança etc. (Parceval, 1986). Até aqui busquei descrever o percurso de minhas reflexões a partir de uma série de leituras que culminaram na proposta de investigar como a paternidade e a paternagem vêm sendo elaboradas por homens de camadas médias, que residem na cidade de São Paulo. Entendo que o lugar de onde as pessoas falam imprime alguma especificidade à sua visão de mundo, sendo este lugar referente a uma posição social de classe, de idade, de sexo e até mesmo de localidade. Assim, antes de debruçar-me sobre os temas que explorei a partir dos depoimentos, apresentarei um capítulo contextualizando a pesquisa, o lugar de onde os homens/pais que entrevistei estão falando. Aproveito para situar a pesquisa em relação aos estudos sobre família, tema relacionado à pesquisa. E, por fim, apresento os critérios de seleção dos entrevistados e um perfil biográfico sobre eles, com o objetivo de introduzi-los como sujeitos desta história que estou construindo. 71 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Capítulo 3 O contexto da pesquisa Onde foi a esquina já não é. Já não é a torre onde ficou. E a praça, a grama, o angico, onde foram? Onde foi o rio, agora é rua, e essa em que te enuncias é pedra que foi antes sol que será lodo. Onde hoje é o café, pois aí foi livraria. Onde foi o silêncio não será jamais. (...) Branco universo de aço e papel, nunca o imprevisto, nunca a surpresa em tua agenda terão lugar. Tuas cores faltam, tuas flores cautas mal se advinham. Fragor é música aos teus ouvidos. Martelo e estaca embalam sonhos aterradores. (...) (Afrânio Zuccoloto, Porto Geral) Este poema de Afrânio Zuccoloto foi citado por Florestan Fernandes no artigo O homem e a cidade-Metrópole (1974), publicado a primeira vez em abril de 1959, no Diário de São Paulo. O poema fala de um lugar que já não é o mesmo, de um lugar metaformoseado pela urbanização, pela industrialização, um processo constante, ininterrupto, cadenciado no som barulhento do martelo e da estaca, dos motores de carros. São Paulo, a capital, é assim dinâmica, febril, barulhenta, tumultuada, onde se pode ser tudo e nada ao mesmo tempo, é moderna ou, como querem alguns, pós-moderna. Com seus quase 10 milhões de habitantes, caras e bocas de diferentes etnias e nacionalidades, é uma cidade de “fronteiras móveis, capaz, de manter, alimentar e expandir extensas zonas suburbanas, compensando assim pela extensão horizontal o rápido crescimento vertical que a afetou” (Fernandes, 1974). 72 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias A industrialização acelerada e a transformação urbana definiram um cenário ecológico caótico. Se de um lado, o crescimento urbano favoreceu a distribuição e ocupação do espaço social, de outro essa ocupação foi também marcada por condições precárias de serviços públicos. Como bem observou Florestan Fernandes há quatro décadas: “No conjunto o homem conquistou o espaço, mas não o domesticou no sentido urbano”. Maior cidade da América Latina, graças à uma mobilidade demográfica intensa, São Paulo recebe pessoas do interior do Estado, de outros Estados brasileiros e de países estrangeiros. Aqui primeiro os senhores rurais e os estrangeiros conseguiram depressa afirmar-se econômica e socialmente. Em busca dessa mesma oportunidade de ascensão social e de enriquecimento, muitos migrantes continuam chegando a São Paulo51. As “tradicionais famílias” paulistanas do final do século passado foram diluídas em meio a uma massa de “estrangeiros” vindos de todas as partes, que traziam na bagagem interesses, costumes e valores próprios instituindo uma ordem moral e social peculiar, credenciando São Paulo à modernidade. Em suas avenidas e praças centrais acontecem manifestações sociais e políticas, cujo berço foi a luta contra a escravidão e as campanhas republicanas. As minorias e os contestadores de toda ordem e ideologias encontram em São Paulo espaço e ouvido para seus clamores. Esse contexto urbano foi sendo desenhado por uma divisão social do trabalho e desenvolvimento industrial que inaugurou um processo de mudanças significativas em todas as esferas da vida social. Como observou Florestan Fernandes, o acelerado desenvolvimento sócio-econômico de São Paulo estabeleceu “condições 51 Sobretudo nos anos 60 e 70 o processo de migração foi marcante, como parte de um processo de expansão econômica e intensa urbanização. Boa parte do contingente de migrantes se instalou na periferia paulista e compõe a massa de trabalhadores: operários, autônomos de baixa renda, pequenos comerciantes, ambulantes etc. Ver Durham, 1978, Sarti, 1996. 73 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias favoráveis à expansão da sociedade de classes, ao funcionamento da democracia e à constituição de um sistema educacional complexo, suscetível de servir como um canal de peneiramento e de ascensão sociais.”(1974:299). E por isso é uma cidade de contrastes sociais marcantes, conseqüência de seu crescimento desordenado, de uma distribuição de renda desigual refletida na coexistência do luxo com a miséria. São Paulo congrega bairros sofisticados fronteiriços com bairros populares e favelas. O crescimento urbano, comercial e industrial associado a políticas econômicas e sociais pouco eficazes favoreceu essa segmentação: de um lado segmentos sociais carentes de infraestrutura básica e de outro o desenvolvimento de um segmento médio constituído de profissionais liberais, pequenos comerciantes, industriais e funcionários públicos. O ideário desenvolvimentista, da década de 50, expandiu esse segmento social, fortalecendo-lhe uma característica — a flutuação social, econômica e política — descrita já em 1959 por Florestan Fernandes: Estas constituem uma condição importante ao equilíbrio de uma sociedade de classes e à estabilidade do regime democrático. Apesar de sua insegurança econômica e de sua labilidade política, as classes médias exercem papel influente nos movimentos de opinião e nas decisões que ponham em choque valores centrais da ordem estabelecida. Pois bem, as tendências à ampliação das classes médias em São Paulo, e à diferenciação dos níveis de vida no seio delas estão sofrendo rudes golpes sob o processo inflacionário. Seus estratos mais baixos tendem a nivelar-se com o proletariado; enquanto os estratos mais altos se encontram na contingência de recorrer ao endividamento para manter um nível de vida conspícuo e salvar as aparências. (1974:303). O desenvolvimento brasileiro sempre esteve marcado por um movimento de fluxo e refluxo, que imprimi significativas mudanças na estrutura social, econômica, política, geográfica e espacial em todo território nacional, e em particular nos grandes centros urbanos. 74 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias O panorama econômico da década de 1980 e início de 90 está associado a desequilíbrios decorrentes dos sucessivos planos econômicos, déficit público e inflação. Em apenas uma década (19861994), logo após o processo de abertura política, o país passou por seis planos de estabilização econômica (o Cruzado I, Cruzado II, Plano Bresser, Plano Verão, Brasil Novo e Real). Período que também correspondeu à consolidação democrática e a elaboração de uma nova Constituição em 1988, e um longo processo de eleições livres. Tratou-se de um processo de mobilidade social e expansão da sociedade de consumo acompanhada de desigualdade, de mudanças na estrutura de ocupação no mercado de trabalho; marcada pela insuficiência na criação de empregos na indústria e pela concentração da pobreza nas áreas metropolitanas (Faria, 1984). Esse processo de mudanças de ordem política, social e econômica afeta a vida cotidiana e as relações sociais. Já em 1902, Georg Simmel (1979), observa que nas metrópoles convivem e se confrontam visões de mundo diferenciadas, e tantas vezes antagônicas, que produzem combinações geradoras de novos significados. Mais do que nunca a metrópole está associada à pluralidade de modos específicos de recortar e construir a realidade, com concepções particulares de tempo, espaço e indivíduo. As reflexões de Simmel parecem ter inspirado Gilberto Velho (1995) a descrever vivamente o estilo de vida urbano contemporâneo, retratando elementos que se assemelham às reflexões de Ulrick Beck, Anthony Giddens e Scott Lash (1997) sobre a modernização reflexiva, já referida no capítulo anterior: A cidade tornou-se o locus, por excelência, dessas mudanças não como receptáculo passivo, mas como produtora de novas formas de sociabilidade e interação social, de modo genérico. A explosão demográfica, resultado de mudanças sócioeconômicas, com progressos médicos e sanitários, multiplicou 75 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias muitas vezes em curtos períodos de tempo o número de habitantes dos principais centros urbanos. As correntes migratórias e os diversos deslocamentos de população alteraram a relação tradicional entre cidade e campo. A divisão social do trabalho, com novas regras e características do capitalismo em ascensão, destruiu modos de vida tradicionais, alterando drasticamente tanto as estruturas sociais como o ambiental natural. As sucessivas inovações econômicas e tecnológicas, aceleradas a partir do século XVIII, cujas origens recentes remontavam, pelo menos, aos séculos XV e XVI, geraram um processo inédito de globalização ao estabelecerem vínculos econômicos, políticos e culturais entre quase todas as grandes regiões do planeta (Velho, 1995:228). Uma metrópole como São Paulo não inaugura a heterogeneidade, mas associada a todos esses elementos transformadores revela-se como um espaço paradigmático de novos modos de vida. Ou como diz Velho, a “interação intensa e permanente entre atores variados, circulando entre mundos e domínios, num espaço social e geograficamente delimitado, é um dos seus traços essenciais” (p.229); e que só pode ser compreendido se associado, segundo este antropólogo, à formação de um mercado mundial, à expansão da moeda como meio de troca universalizante e à ampliação do horizonte de trocas materiais e simbólicas. A divisão do trabalho numa sociedade como São Paulo propicia o surgimento de tarefas e carreiras, profissões que expandem quantitativa e qualitativamente as alternativas; oferecendo-se como espaço de menor controle social e de maior autonomia, ainda que relativa. O alto nível de especialização da sociedade moderna oferece a possibilidade do indivíduo transitar entre mundos e esferas diferenciadas; a própria fragmentação do trabalho tende a desenvolver áreas e domínios especializados de sociabilidade, crenças religiosas, atividade política etc. Nesse trânsito o confronto com valores tradicionais produz combinações, sínteses conflituosas que caracterizam a reflexividade institucional apreciada por Giddens (1997), e que permitem aos indivíduos “transitar entre domínios e papéis, num processo de 76 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias constante metamorfose”, na expressão de Gilberto Velho (1995, grifo do autor). Isto não significa, como ele mesmo alerta, que “poderosas forças históricas e sociais — e, por que não dizer tradicionais52 —, que estabelecem tendências, direções e limites” atuem sobre as biografias individuais ou sobre determinados estilos de vida. A clareza de que uma metrópole como São Paulo incorpora visões de mundo e estilos díspares, que produzem formas alternativas de arranjos sociais e de formas de identidade social, reforça a necessidade de situar o lugar de onde falam os homens que entrevistei para esta pesquisa. A visão de mundo destes sujeitos está contaminada pela agitação febril característica de uma sociedade reflexiva. O bombardeio cultural, o acesso quase ilimitado a todo tipo de informação, os modismos, a necessidade de estar “antenado” nas últimas novidades ou de rejeitá-las e, mais do que isso, de estar integrado a um grupo formado por pares, são elementos que devem ser considerados na leitura do discurso destes sujeitos. É neste contexto que deve ser pensada a paternidade, como relação que ainda comporta significado constituído a partir de uma “verdade formular”53 e por isso aceito como verdade incontestável. Porém, se for considerado o momento histórico atual como “póstradicional”, essa verdade é tratada pela sociedade – então reflexiva – como verdade proposicional contestável, aberta à crítica. A própria família aglutina valores como verdades incontestáveis, ainda assim, é a Refiro-me a tradição no sentido em que Giddens (1997) formula: estruturas normativas de conteúdo moral obrigatório, relacionadas a memória coletiva e que ao reconstruir o tempo passado, permitem organizar o tempo futuro. 53 A verdade formular, segundo Anthony Giddens, está restrita ao domínio de alguns que detêm sua compreensão; envolve aceitação incondicional e atribui eficácia causal aos ritos. Para pensar a paternagem e a paternidade como um domínio sob a mira da ação reflexiva adotei a analogia de Scott Lash (1997) para a ciência: “ a ciência, por exemplo, em uma modernidade precoce, é um campo de especialistas, mas o público aceita suas verdades inquestionavelmente, como verdades formulares. Somente na modernidade tardia as afirmações científicas são tratadas pelo público – agora reflexivo – como verdades proposicionais contestáveis, abertas à ‘articulação discursiva’ e à crítica.” (p. 240). 52 77 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias instituição social que maiores transformações sofreu nas últimas décadas. A família como locus de mudanças Uma das lições aprendidas no desenrolar da pesquisa Família e Trabalho Domiciliar em São Paulo, foi a de que, quando se vai falar sobre qualquer tema associado à família, é preciso esclarecer o que se está entendendo por família. A literatura sobre esse tema é vasta e percorre várias áreas de conhecimento: História, Antropologia, Sociologia e Demografia. Em cada uma delas é possível encontrar uma ampla discussão sobre o significado do termo família e sobre seu estatuto teórico54. No Brasil, esse tema só veio ganhar fôlego como objeto de estudo a partir da década de 70, cujo interesse foi despertado por estudos sobre as estratégias de sobrevivência das camadas populares e a reprodução do trabalhador. Também as pesquisas sobre a condição das mulheres convergiram para o tema das relações familiares. Percebia-se que a inserção da mulher no mercado de trabalho estava submetida, entre outras coisas, à sua posição na família, aos ciclos de vida familiar, à presença ou não de filhos e aos valores. A articulação trabalho e família (trabalho produtivo/reprodutivo) e a crítica do mito presente na definição do espaço doméstico como “espaço natural” da mulher, mobilizaram muitos pesquisadores. Posteriormente, a noção de que a família deveria ser tomada como grupo de pessoas, cada uma delas com individualidade própria, inspiraria na década de 80 vários outros 54 Uma primorosa revisão bibliográfica sobre os estudos de família, as várias tendências teóricas e suas limitações foi realizada por Cristina Bruschini (1989; 1990). Ver também na Antropologia: Correa, M. (1981); Durham, E.; Sarti, C. (1996); na História (1983); Samara, E. (1983); Almeida et. al. (1987); Ribeiro, Ribeiro (1995); na Demografia: Berquó (1989); Goldani (1993), entre outros. 78 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias pesquisadores, notadamente antropólogos, voltados, particularmente, para as camadas médias. O nível da formulação teórica a respeito da família demonstra certo grau de dificuldade em estabelecer uma definição a partir de uma única vertente teórica. Como bem observou Cristina Bruschini (1989), os limites e possibilidades aparecem em todas as áreas de conhecimento que se dedicam ao assunto : Se na Antropologia predomina a noção de família como grupo de pessoas ligadas por relações afetivas construídas sobre uma base de consangüinidade e aliança, durante muito tempo o pensamento sociológico foi dominado por uma representação de família como grupo conjugal coincidente com a unidade residencial. Esse modelo foi reforçado pelos estudos históricos, que descreviam a transformação de famílias que se supunha anteriormente mais extensas e que se nuclearizavam com a industrialização. Na Demografia, que se interessou pela família em seu papel mediador na reprodução, predominou o modelo da sociologia funcionalista, para a qual a família é definida como núcleo conjugal composto do casal e seus filhos, nos limites de um domicílio comum. (1989 : 9) É certo, porém, que de lá para cá muitos desses limites foram sendo superados e a discussão crítica dos estudos sobre família se mantém na agenda do dia, permitindo que novas pesquisas possam apreender a diversidade e riqueza das relações sociais que marcam o grupo familiar. Basta acompanhar as discussões do GT Família e Sociedade, da ANPOCS e a literatura mais recente. Tradicionalmente, a representação de família presente em muitas pesquisas tem sido aquela da família nuclear composta por um casal e seus filhos, abrigados sob o mesmo teto, nos limites da unidade doméstica. De acordo com Bruschini (1989, 1990), várias razões podem ser apontadas para explicar o predomínio dessa forma de organização familiar nas pesquisas. Entre elas a influência de teorias sociológicas americanas (marcadas pelas teorias funcionalistas e particularmente 79 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias por Talcott industrializadas Parsons55), onde essa que analisam forma de sociedades organização urbanas familiar é predominante. Outra razão é a possibilidade de investigar formas de organização e vivência familiar mediante pesquisas domiciliares, com a adoção de um modelo de família coincidente com a unidade doméstica. De fato, a organização familiar conjugal é predominante em muitas sociedades, inclusive na brasileira. Deve-se, porém, ter cuidado para não descrevê-la ou analisá-la tomando como referência o modelo tipíco-ideal universal e a-histórico pensado por Parsons, para a sociedade americana de uma determinada época. A família é mais do que um grupo de pessoas ligadas por laços de parentesco ou consangüinidade; é mais do que um grupo cujos indivíduos têm obrigações específicas. A família, tal como foi definida por Bruschini, é “um grupo social composto de indivíduos diferenciados por sexo e por idade, que se relacionam cotidianamente, gerando uma complexa e dinâmica trama de emoções; ela não é uma mera somatória dos indivíduos que a compõem, mas sim um conjunto heterogêneo composto de seres com sua própria individualidade e personalidade. (...) É também no cotidiano da vida familiar que surgem novas idéias, novos hábitos, novos elementos, através dos quais os membros do grupo questionam a ideologia dominante e criam condições para a lenta e gradativa transformação da sociedade” (1990:80-81). A História e a Antropologia, em particular, mostram que as relações sociais observadas no dia a dia entre o grupo conjugal, a rede de parentesco e a unidade doméstica ou residencial podem apresentar, 55 Talcott Parsons é uma das principais referências nos estudos sobre a família nuclear. Ele a descreve como pequeno grupo-tarefa, no qual os membros adultos desempenham papéis altamente diferenciados, assimétricos e complementares, cuja distinção de gênero é marcante. O homem se caracteriza por ser o líder “instrumental” do grupo, enquanto que a mulher, de natureza “expressiva”, estaria voltada para os assuntos internos da família, sendo acima de qualquer coisa mãe e esposa. Mesmo sendo apenas um modelo teórico de análise, essa descrição de família muitas vezes foi tomada como expressão da realidade social. Entre os autores que ressaltaram as limitações da concepção parsoniana de família, cito Bott (1976), Bruschini (1990), Romanelli (1986). 80 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias em diferentes momentos históricos, uma significativa diversidade. A Antropologia lembra que as relações de parentesco, o casamento e a divisão sexual do trabalho existem em todas as sociedades, variando apenas as formas como que se combinam. Alguns historiadores (Ariés, 1977; Poster, 1979), por exemplo, destacam que o modelo nuclear de família só se consolidou por volta do século XVIII, com a privatização da instituição familiar e a passagem das funções socializadoras para o âmbito mais restrito do lar. A família deixa de ser unicamente uma unidade econômica, tornando-se um espaço de refúgio, de afetividade, de relações de sentimento entre o casal e os filhos. No período contemporâneo, dois aspectos irão reforçar, segundo François de Singly (1993), um certo domínio do destino pessoal sobre o familiar: um sistema de valores que aprova de certa maneira a autonomia, desvalorizando a herança material e simbólica, e as condições objetivas — entre elas o progresso científico-tecnológico — que aumentam a facilidade desse controle pessoal, autônomo, tal como a contracepção. Os indivíduos estariam envolvidos numa busca, explícita ou não, de autonomia pessoal, o que tende a desvalorizar qualquer relação de dependência com as instituições comunitárias adscritas. Há uma recusa declarada das pessoas de se prenderem aos hábitos e uma tentativa de transformar os papéis sociais de marido e esposa. A recusa é expressa por um duplo movimento de contestação: da instituição casamento (o crescimento de uniões consensuais é um exemplo) e uma crítica à divisão do trabalho por sexo (homem/provedor, mulher/dona-de-casa). Vemos aqui novamente a idéia de destradicionalização da sociedade moderna, defendida por Giddens (1993), processo no qual certas práticas tradicionais podem mudar de status, mas não desaparecem necessariamente. Com o desenvolvimento das instituições modernas, que deixaram a família nuclear em um enorme isolamento, declarou-se amplamente 81 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias que as relações de parentesco foram se destruindo. Para Anthony Giddens (1993) trata-se de uma visão equivocada: para ele, na sociedade da separação e do divórcio, a família nuclear em transformação gera uma diversidade de novos laços de parentesco — e não sua destruição — associada, por exemplo, às chamadas famílias “recombinadas”56. A natureza desses laços modifica-se à medida que os indivíduos estão sujeitos a uma negociação maior que a anterior. Tratase da natureza reflexiva das relações sociais, conseqüência da modernidade, tal como sugerido por Giddens. Também no Brasil houve a tendência, entre alguns autores, de apontar para a existência de uma suposta crise/desagregação na família. Atribuída ao crescimento populacional, à crise econômica, à violência, aos menores abandonados, a explicação para mudanças era quase sempre negativa. Ou atribuída a mudanças estruturais, tais como: padrão de comportamento, diferentes tipos de união, declínio da fecundidade, aumento das famílias monoparentais, divórcios etc. (Goldani, 1993) Cláudia Fonseca (1995) observa que não só no senso comum, mas também no interior de estudos progressistas – reforçados por uma retórica da “desagregação”, das “estratégias de sobrevivência” etc. – tem prevalecido uma idéia evolucionista de família, ou seja, a família antes extensa, na qual a figura paterna personificava a autoridade, teria se transformado na família conjugal contemporânea. A crítica à desagregação da família, em função da estrutura social capitalista, remete à idéia de que existiria uma família ideal e que esta corresponderia à família conjugal comum das camadas médias, quando, na realidade, segundo essa autora, as sociedades tendem historicamente a oscilar entre a conjugalidade e a consangüinidade nos diferentes segmentos sociais. 56 Cônjuges com filhos de relacionamentos anteriores, mais os filhos (ou não) da atual relação. 82 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias O modelo de família conjugal, com o qual se está acostumado a pesquisar ou trabalhar, não pode ser tomado como estrutura única, mas como uma dentre outras formas válidas de organização social, tais como as famílias que contam com apenas um dos cônjuges, entre elas as chefiadas por mulheres. A família de classe média: locus privilegiado de mudanças A família de classe média, em particular, tem sido considerada um locus privilegiado da ideologia do individualismo e por isso possibilitando comportamentos inovadores. De acordo com as premissas de uma vertente antropológica marcante na década de 80 — refiro-me particularmente aos antropólogos do Museu Nacional do Rio de Janeiro57 —, homens e mulheres de camadas médias metropolitanas apresentariam uma maior predisposição — em função de um nível de escolaridade mais alto, maior acesso às informações, inclusive às teorias psicanalíticas e pedagógicas —, para relações mais igualitárias. É preciso observar que estas características fazem referência a um certo segmento do conjunto denominado como classe média. Alguns fatores podem ser apontados como promotores, nas últimas décadas, de uma acelerada transformação na área dos costumes. Maria Luiza Heilborn (1995) enumera, por exemplo, a forte concentração de renda, a existência de um mercado de consumo mais sofisticado, a redução do tamanho da família, a eclosão dos movimentos de liberação das mulheres e dos homossexuais, entre outros. Além disso, o atual comportamento das mulheres em relação ao espaço familiar e doméstico e uma possível valorização da escolha profissional 57 Vários desses estudos trataram de uma fração muito específica das camadas médias, isto é, grupos intelectualizados e psicanalizados da zona sul do Rio de Janeiro. Ver particularmente Velho (1983, 1985), Dauster (1987, 1984, 1990), Salém (1985, 1986,1989), Heilborn, 1992 entre outros. As orientações teóricas que pautam esses estudos repousam em autores como Georg Simmel e Louis Dumont. 83 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias podem ser, no segmento das camadas médias, um fator desencadeador de mudanças na relação com o companheiro e nas atribuições domésticas e com os filhos. E como não há indícios de reversão no ingresso das mulheres no mercado de trabalho — ao contrário, tem-se verificado um aumento da participação das mulheres casadas (Bruschini, Lombardi 1996) —, pode-se supor que a participação masculina no cuidado com as crianças e nas tarefas domésticas estaria se ampliando. As famílias igualitárias (modernas) contestariam a divisão tradicional de papéis sexuais e propagariam o esmaecimento das diferenças entre o masculino e o feminino. Enquanto que o relacionamento doméstico na família tradicional estaria pautado na assimetria da autoridade e respeito, na família moderna prevaleceria uma relação mais aberta, baseada no diálogo e na dedicação aos aspectos subjetivos e psicológicos da personalidade individual58. Essa dimensão atingiu, por exemplo, a educação dos filhos, manifestada na década de 1970 e 80 no crescimento de escolas cuja proposta pedagógica se mostrava "alternativa” em oposição a um modelo tradicional de ensino (Revah,1994). Havia aí coerência com a ideologia do “individualismo libertário” que percorreu o imaginário social da classe média intelectualizada dos anos 60, trazendo no seu bojo o questionamento radical de todas as formas de poder e de autoridade, de negação do sistema político vigente e de contestação aos valores tradicionais (Salém, 1991). Apesar de trazer uma significação mais libertária e igualitária para a família nuclear, destacada da rede de parentesco, esse modelo de família esbarra em algumas contradições, como quando há separação dos cônjuges ou o nascimento de uma criança, muitos valores se aproximam da família tradicional (Salém, 1986 ). 58 Ver também Bruschini (1990). 84 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Parece ser ainda difícil explicar a tensão entre os princípios individualizantes e os hierárquicos, ou o que é chamado pelos estudiosos das camadas médias de dilema de mudar ou permanecer. Os autores analisados por Tânia Salém “sustentam que a tensão e a oscilação entre os modelos ‘moderno’ e ‘tradicional’ resultariam de uma descontinuidade entre sistemas simbólicos internalizados em diferentes momentos da biografia dos sujeitos” (1986:33). O principal autor que trabalha essa idéia no Brasil é Sérvulo Figueira (1985), mediante o conceito de desmapeamento, empregado como metáfora para designar a presença de ordens, formas e mapas contraditórios – a convivência de um processo de mudança com formas internalizadas de processos anteriores, nem sempre explícitos e por isso, geradores de conflitos. O problema dessa abordagem, na visão de Geraldo Romanelli (1986), está no fato de que a resposta a esses conflitos estaria no plano individual e o universo psi surgiria como instância mediadora59. O confronto se daria entre sistemas simbólicos e a família seria o instrumento para se pensar a oposição entre os valores tradicionais e a ideologia individualista. Numa outra direção, Gilberto Velho (1981) prefere interpretar a oscilação dos sujeitos entre códigos dispares e contraditórios como um fenômeno da coexistência de visões de mundo concorrentes e de domínios sociais operando com linguagens próprias, que levariam os sujeitos a internalizarem códigos diferentes e oscilarem de acordo com o contexto. Para ele, numa sociedade como a brasileira, na qual a hierarquia determinada 59 exerce um família é papel crucial, elemento o pertencimento fundamental no a sistema uma de Para Figueira (1985) a solução desses conflitos estaria na psicanálise, um recurso utilizado por uma parcela das camadas médias. Geraldo Romanelli (1986) observa que o processo de modernização, responsável pelo surgimento de novos códigos culturais, teria sido responsável também por um boom psicanalítico dos anos 70. Os conflitos gerados no plano das práticas sociais teriam encontrado seu ponto de chegada no nível das soluções individuais (p. 16). Ver também Salém (1991). 85 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias classificação dos grupos que investigou, até mesmo nos processos mais radicais de individualização. Ou como argumenta Anthony Giddens (1997), a vida pessoal na sociedade globalizada ou pós-tradicional, como ele prefere denominar, constitui um projeto aberto a novas demandas e ansiedades, ainda que alguns elementos da tradição não tenham sido tocados, em especial aqueles que se referem à família e às diferenças de gênero. As pessoas têm sido afetadas por acontecimentos, universalizados por meio dos processos de globalização, que extrapolam os limites de sua comunidade. Isto é, são influenciadas e influenciam acontecimentos que podem afetar outros indivíduos para além de sua vizinhança. Um exemplo típico é qualquer agressão ao meio ambiente. Inauguram, assim, um tipo de confrontação das bases da modernização e de suas conseqüências a partir da apropriação reflexiva do conhecimento, vertida em ação reflexiva. Essa ação levaria, segundo Scott Lash (1997), os indivíduos a se libertarem das expectativas normativas das instituições da modernidade simples e a se engajarem no acompanhamento reflexivo dessas estruturas, assim como na autoavaliação da construção de suas próprias identidades. O caráter aberto da auto-identidade e a natureza reflexiva do corpo, que se manifesta por exemplo na luta das mulheres para se libertar dos papéis sexuais e na contestação dos estereótipos heterossexuais dominantes, são características fundamentais de uma sociedade de alta reflexividade (Giddens , 1993). Mais do que nunca, podemos escolher como será nosso estilo de vida, podemos decidir como ser e como agir. Para Giddens até os vícios são escolhas, pois são maneiras que as pessoas têm encontrado para enfrentar a multiplicidade de possibilidades que a vida cotidiana “destradicionalizada” oferece. Um exemplo é o consumo de cigarro. Todas as campanhas publicitárias de cigarros são obrigadas a divulgar que o fumo é prejudicial a saúde; ainda assim a população fumante não parece decrescer, a despeito de todo o movimento pró- saúde que permeia o cotidiano. Não surpreende que o consumo do 86 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias tabaco tem crescido particularmente entre as mulheres, sobretudo entre as mais jovens. É certo, porém, que essas escolhas estão condicionadas pela necessidade de rotinas exigidas e algumas vezes até obrigatórias, ou seja, “todas as escolhas, mesmo aquelas dos mais pobres ou aparentemente impotentes, sofrem refração das relações de poder preexistentes. Por isso, a abertura da vida social à tomada de decisão não deve ser identificada ipso facto com o pluralismo; é também um meio de poder e de estratificação.” (Giddens, 1997:95-6) Essas aspirações, próprias de uma sociedade reflexiva, coadunam-se com o princípio de individualização, de desincorporação de um modo de vida que não se ajusta mais aos interesses individuais e coletivos de um dado grupo social ou mesmo de toda uma sociedade. As lutas dos movimentos feministas, associadas a mudanças estruturais têm provocado uma série de questionamentos sobre os lugares que homens e mulheres ocupam na estrutura social, sobre os significados de masculinidade e feminilidade e suas decorrências na constituição da identidade dos indivíduos. Isto significa, seguindo a análise de Giddens, que os comportamentos e as atitudes precisam ser justificados, ou seja, as razões devem ser explicitadas e ao fazê-lo dão visibilidade às relações de poder, provendo seu questionamento. De certa maneira, esses argumentos estão por trás do crescente interesse que os homens e temas a eles associados (tais como paternidade, violência, sexualidade, masculinidade etc.) têm despertado nas ciências humanas. Esse interesse está relacionado, no âmbito mais geral, à necessidade de mudanças nas relações de gênero, e na inadequação dos paradigmas explicativos frente a complexidade da dinâmica social; no âmbito mais restrito, político até, relaciona-se à constatação de que a compreensão das práticas masculinas, por exemplo, pode contribuir para melhorar os resultados de programas 87 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias voltados para a saúde das crianças, para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e para as decisões de planejamento familiar. Conseqüência, de certo modo, de uma agenda política mundial, expressa nas últimas conferências internacionais relativas aos direitos das mulheres e sobre população, que destacaram a necessidade de incorporar os homens como alvo de políticas públicas (Arilha, Ridenti e Medrado, 1998; Garcia, 1998; Silva, 1999). Militantes engajados em campanhas de prevenção contra doenças sexualmente transmissíveis estão a cada dia mais convencidos de que somente obterão melhores resultados se sensibilizarem os homens. Estudiosos americanos e europeus de várias áreas têm, desde a década de 80, insistido para que as políticas voltadas para as famílias se preocupem com o envolvimento masculino no cuidado com os filhos, uma vez que a eqüidade entre os sexos depende fundamentalmente da participação dos homens em todas as instâncias da vida privada, inclusive em decisões sobre planejamento familiar e sexualidade.60 Esse interesse surge também de um contexto no qual vários estudos, que versam sobre o cotidiano das mulheres e suas relações com o mundo do trabalho, argumentam que são pequenas as transformações com relação à assimetria heterossexual das atribuições em relação aos filhos, a despeito do processo de individualização das mulheres e de sua autonomização (Novelino; 1989; Di Ciommo, 1990; Massi, 1992; Ardaillon, 1997). A profissionalização das mulheres, como observou Danielle Ardaillon (1997), representa para elas a aquisição de outra identidade, envolvendo outro modo de sociabilidade. O trabalho fora de casa é um “projeto individualizador”, em particular para as mulheres de camadas médias. E se nesse processo as mulheres têm caminhado passo a passo 60 Lamb, 1982; 1983; Jalmert, 1990; Näsman, 1990; Evans, 1995; Neale, 1995; Mundigo, 1995 entre outros. 88 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias rumo à igualdade na valorização de sua condição de profissional, o mesmo não acontece quando ao homem e à mulher é associada a condição de pai e mãe: Ao acoplar “pai” ou “mãe” às categorias originais, a via iluminada da igualdade prometida entre os profissionais se vê totalmente obstruída. Por que o desempenho ativo de sua profissão não é requerido igualmente do profissional-pai e da profissional-mãe? Mais competente profissionalmente, mais bem-remunerado, melhor pai. Mais amamentadora, mais caseira, melhor mãe. Dois pesos, duas medidas. De um lado a valorização da paternidade no seu aspecto social, do outro, a valorização da maternidade no seu aspecto biológico. (Ardaillon, 1997 : 34-35) Apesar de todas as conquistas femininas, o cuidado com os filhos continua recaindo sobre as mulheres. O desafio proposto às mulheres é o de integrar, da melhor forma, seu mundo pessoal às várias conquistas. Esta mudança exige uma nova estruturação da organização familiar e das relações entre homens e mulheres, além de envolver, inclusive, outros significados para a maternidade e a paternidade. Nem sempre o discurso, o desejo se coaduna à prática cotidiana, ainda que a autoreflexão, o questionamento, a confrontação dessas práticas possa ser localizada nos depoimentos de mulheres em várias pesquisas ao longo dos anos 80 e 90. Marina Massi (1992), por exemplo, descreve que, embora o trabalho profissional representasse para muitas das mulheres que entrevistou a possibilidade de desenvolvimento pessoal e independência, em seus relatos a maternidade aparece fortemente como a maior contribuição social da mulher. “O trabalho fora de casa é considerado mais como um complemento ao desenvolvimento pessoal” (p.42). Massi observou que são poucas as mulheres que trabalham seguindo a carreira que escolheram, que são bem remuneradas e bemsucedidas. A socialização da mulher é baseada preponderantemente na 89 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias construção da família, na maternidade e nos cuidados com a casa. Para a mulher, a relação entre trabalho fora de casa e maternidade parece acontecer entremeada pelo conflito da realização pessoal e da formação moral/social que delega à mulher os cuidados com os filhos e com a família, como sendo um atributo natural. A partir de outro enfoque, Maria Isabel Mendes de Almeida (1987) realizou uma pesquisa que considera a maternidade como uma das possíveis portas de entrada para uma reflexão sobre o processo de modernização da família de classe média urbana no Brasil. Constatando a formação, no início dos anos 80, de grupos de preparação e orientação de casais para a gravidez e o parto, conduzidos por psicólogos, médicos homeopatas e outros especialistas, Almeida acreditava que se iniciava a implementação de uma proposta “alternativa” a uma visão tradicional da maternidade e a um conjunto de valores e comportamentos tidos como ultrapassados. A busca por essa “maternidade alternativa” estaria ocorrendo em função de um sentimento de perda, de ausência de referências, mapas e guias diante da maternidade, além de representar também uma fuga do modelo de suas mães. Sua pesquisa, entretanto, demonstrou que a experiência da maternidade, da forma como foi observada e relatada por suas entrevistadas – um grupo de gestantes e suas respectivas mães –, não chegou a configurar uma marcante mudança na visão de mundo entre as duas gerações. Revelou, na realidade, a coexistência de um amplo conjunto de valores ditos “modernos” com modalidades tradicionais de vida61. O longo período de dependência que garante o desenvolvimento do ser humano e o fato de a gravidez ocorrer no corpo da mulher poderiam ser consideradas justificativas para que certas atribuições se 61 Para Gilberto Velho (1981) os grupos de camadas médias vivem o dilema de mudar ou permanecer mais do que outras camadas sociais, justamente por estarem mais expostos à ideologia da modernização. 90 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias mantenham atreladas às mulheres. A “natural” vocação da mãe para cuidar da criança e compreender suas necessidades é argumento usado por médicos, educadores, psicólogos e mesmo cientistas sociais, dando fundamento aos discursos tanto de instituições como a Igreja e o Estado, como do senso comum. Observa-se, no entanto, que a separação das atividades segundo o sexo cria um significativo grau de dependência entre os indivíduos e atribui, por outro lado, a cada um, homens e mulheres, uma área de autonomia e independência62. Uma análise do possível não- envolvimento masculino no cuidado dos filhos deveria, no meu entender, levar em consideração o fato de as mulheres serem culturalmente consideradas habilitadas para cuidar dos filhos e dos afazeres domésticos. Deter esse conhecimento revela duas dimensões: de autonomia e, portanto, de poder (uma mãe não precisa de um homem para aprender como criar seus filhos) e ao mesmo tempo de dependência (há a suposição de que os homens e as crianças precisam das mulheres para suprir suas necessidades, enquanto elas precisam dos homens para garantir o exercício de uma boa maternidade), tornando complexa subordinação a (feminina), relação entre desvalorizando dominação essa (masculina) ordem e hierárquica, ameaçando sua naturalização. Critérios para a definição do universo empírico A posição dos indivíduos numa dada sociedade — podendo ser marcada por classe social, etnia, idade e sexo e espaço geográfico —, influencia seus modos de pensar e ser, contribuindo para a diversidade nas relações sociais. Se essa posição influencia a maneira de os 62 A reprodução, por exemplo, seria uma área de autonomia das mulheres e, portanto, de poder (Durham , 1983). 91 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias indivíduos atuarem na vida pública, ela define critérios para as relações familiares e interpessoais. Desta forma, algumas variáveis foram privilegiadas na definição do universo empírico: o sexo dos sujeitos pesquisados — masculino; a situação de conjugalidade — homens que estivessem vivendo maritalmente e com filhos até 10 anos idade; e a que se refere à posição sócio-econômica dos sujeitos — classe média. Esta variável, assim denominada, se baseia, não somente na escolaridade de nível superior, mas também na renda, no acesso a um mercado de consumo sofisticado e por aceitar e compartilhar valores e comportamentos que, em princípio, deveriam expressar uma ideologia igualitarista, tais como: a afirmação da liberdade do exercício da sexualidade para os dois sexos, a aceitação da proliferação de arranjos conjugais, do divórcio, da maternidade voluntária fora do casamento etc. (Heilborn, 1995). Considerando que a classe média se caracteriza por ser propícia a aceitar mudanças e mesmo a difundi-las, circunscrevi minha pesquisa a este universo, cujas informações, do ponto de vista sociológico para os estudos de gênero e sobre família, são importantes para a compreensão da desigualdade de gênero e do processo de transformação nas relações sociais entre homens e mulheres. Minha meta é saber como homens deste segmento social elaboram e vivenciam a paternidade, num contexto no qual significativas mudanças têm sido apontadas. Os homens de minha pesquisa são de uma geração cujos valores culturais mesclam ideais libertários com a medicina “alternativa” (filosofia antroposófica, homeopatia, acupuntura), alimentação natural, experiência com drogas (mais especificamente a maconha) e uma busca por relações interpessoais mais afetivas e sinceras, por relações mais harmoniosas com o corpo e a sexualidade. Esse estilo de vida teve, com certeza, inspiração nos ideais libertários dos anos 70 e 80, período histórico marcado por movimentos sociais e políticos de contestação do 92 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias sistema político vigente (ditadura); por uma pedagogia e psicologia influenciadas em idéias socialistas e anarquistas e pelas transformações culturais que vinham se desenvolvendo desde os anos 60 (Revah, 1994). Cabe observar, todavia, que os critérios que definem a denominada classe média ou camadas médias ou ainda setor médio não são suficientes para circunscrevê-la como homogênea. O fato de possuir nível de escolaridade superior ou razoável poder aquisitivo e acesso a um mercado de consumo mais sofisticado (em comparação ao setor popular) não significa necessariamente defesa de uma ideologia igualitarista (o que a distinguiria das elites sociais e dos setores populares). Do mesmo modo, considerar que sujeitos psicanalizados, afeitos ao mercado “alternativo” sejam menos conservadores, também pode ser precipitado. Obviamente, as classes médias (talvez, seja mesmo mais seguro usar a expressão no plural) apresentam uma certa especificidade em relação aos setores populares e a elite; sendo uma de suas particularidades a heterogeneidade. Tal como metáfora bem empregada por Francisco de Oliveira (1988), as classes médias são como a Medusa e sua cabeça cheia de serpentes, cada qual apontando em uma direção. Feita essa mediação, a escolha deste universo sócio-cultural se baseou em uma bibliografia que aponta mudanças nas relações entre homens e mulheres e deslocamentos dos significados tradicionalmente atribuídos à paternidade e à maternidade. Isto não significa, porém, que outros segmentos sociais não possam apresentar padrões de comportamento autodenominados “modernos”. As diferentes formas de inserção desses grupos no espaço urbano, a difusão de informações nesse meio e a própria dinâmica das relações sociais não permitem a cristalização de um modelo familiar e 93 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias conjugal em um único segmento social em detrimento de outro63, inclusive porque os limites entre os segmentos populares e médios se flexibilizam a cada nova crise econômica. Mas não só: o grau de reflexividade atingido também relativiza o peso estrutural da classe em cima do ator individual. A pesquisa se restringe, portanto, a dez profissionais qualificados, todos do sexo masculino, com escolaridade de nível superior, vivendo maritalmente, e pais de filhos com idade até 10 anos, residentes na cidade de São Paulo. A variável idade do sujeito foi negligenciada, uma vez que o recorte etário foi fixado segundo a idade dos filhos. Já a etnia não foi considerada como critério de seleção. Os critérios que se referem à situação conjugal e à presença de filhos respondem a um interesse bastante específico: criar uma situação “ideal” que pudesse balizar a análise a partir do problema de pesquisa. Isto é, foram entrevistados homens casados, que têm filhos numa idade em que o grau de dependência em relação aos pais ainda é significativo. Além disso, compartilho do mesmo critério de Marion T. Quadros (1996), em sua pesquisa de mestrado sobre a “nova” paternidade nas camadas médias de Recife, ao selecionar casais que tivessem filhos entre 2 e 7 anos: a possibilidade de focalizar uma geração que teria desenvolvido sua socialização primária nos anos 1970, sob a influência de importantes acontecimentos tais como a contracultura, a difusão da pílula e de métodos anticoncepcionais, o movimento feminista, que traziam em seu bojo o questionamento dos papéis de gênero. A opção por esse tipo de família foi meramente um recurso metodológico. É certo que a sociedade das décadas de 1980/90 apresenta mudanças nas formas de conceber e viver as relações 63 São vários os autores brasileiros que procuram desmistificar uma concepção unívoca de família recorrente em alguns estudos acadêmicos, que está na verdade baseada em um modelo conjugal de camada média idealizado. Ver Fonseca, 1995; Duarte, 1995, Sarti, 1996, entre outros. 94 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias familiares como, por exemplo, as famílias conjugais constituídas a partir de segundas uniões, muitas vezes com a presença de filhos de casamentos anteriores, de ambos os cônjuges. A maioria das famílias não compartilha mais o modelo idealizado de uniões baseadas no amor romântico. O crescimento das dissoluções dos casamentos é um dado a toda prova: as separações e divórcios por casamento apresentavam, em São Paulo, um percentual de 22.2% em 1988, passando para 32,4% em 1991 (Oliveira, 1996). Alguns trabalhos sugerem que as famílias adotivas ou reconstituídas a partir de um segundo casamento estabelecem relações distintas das famílias biológicas. Essas relações refletiriam ambigüidades quanto à parentalidade e confusão sobre as expectativas individuais (Hanson, 1985). Incluir essas especificidades complexificaria a pesquisa, o que, por um lado, poderia ser extremamente rico; mas, por outro, as famílias nucleares, formada pelo casal e seus filhos ainda são predominantes na sociedade brasileira e acredito ser relevante uma análise mais cuidadosa dos impactos das mudanças e resistências aí. Mesmo consciente da diversidade, optei por essas famílias, por considerar que, apesar do crescimento de famílias chefiadas por mulheres, do aumento da taxa de divórcio e da própria contestação da instituição casamento, marcada pelo crescimento de uniões informais, há indícios de que elas estão se reestruturando, por meio de um processo de negociação, a partir de uma ética da vida cotidiana, numa tentativa de transformar suas relações como marido e esposa, pai e mãe, homem e mulher64. A preocupação em selecionar homens cujas esposas trabalhassem fora se refere à possibilidade de averiguar se a inserção das mulheres no mercado de trabalho promoveria, forçosamente, um maior envolvimento masculino com os filhos e com os afazeres domésticos, 64 Singly (1993) e Giddens (1993) 95 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias favorecendo a simetria nas relações de gênero. Estou considerando que um dos aspectos das relações igualitárias deva ser a contestação de um princípio básico do modelo familiar parsoniano: o homem provedor e a mulher dona-de-casa. É preciso salientar que a delimitação do campo de pesquisa leva em conta dois aspectos: 1) circunscrever um campo de investigação do qual se pressupõe dar conta; 2) consciência de que a escolha de um determinado grupo de sujeitos, a partir de critérios bem definidos, não é sinônimo de um bloco monolítico em relação a outros segmentos sociais ou mesmo internamente. Sempre haverá diferenças e foi minha tarefa buscar as relações de convergência e de divergência a respeito da maneira pela qual esses sujeitos pensam e constróem a paternagem. Vale destacar ainda que os depoimentos de cada um desses homens, ao mesmo tempo únicos em sua singularidade, são reveladores de códigos culturais e simbólicos que denunciam sua inserção em uma certa fração de classe social e isto funda a possibilidade de um certo grau de generalização, mesmo porque possibilita comparações com grupos semelhantes em outros contextos. A coleta de dados Para localizar estes sujeitos recorri à “rede de relações”. Informei amigos e conhecidos sobre a pesquisa e os critérios para a seleção de possíveis entrevistados. intermediárias, Essas responsáveis pelo pessoas primeiro fariam contato. as vezes de Preocupei-me também em diversificar características ideológicas dos entrevistados (diversidade de profissões, universo cultural e político). Marquei as entrevistas após o primeiro contato já ter sido realizado pela minha “rede de relações”. Ao telefonar, os homens sabiam quem eu era e por que os estava procurando. Normalmente aproveitava 96 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias para falar um pouco mais dos objetivos da pesquisa, mesmo quando era evidente que aceitariam dar a entrevista. Todos os que me foram indicados demonstraram significativo interesse em falar sobre o assunto, curiosos também com o fato de haver alguém pesquisando sobre paternidade. As entrevistas foram realizadas ao longo de 1997. Procurei deixar que eles próprios definissem o local para a entrevista, somente observando que caso escolhessem o domicílio era importante que a esposa e os filhos não participassem do depoimento. Seis entrevistas aconteceram no local de trabalho, sendo que das outras quatro, dois usavam o domicílio como principal ambiente de trabalho e um estava desempregado. De todas as indicações que recebi, apenas duas não resultaram em entrevista. Não por recusa, mas por desencontros de agenda, viagem etc. Cabe destacar que um dos entrevistados, fugindo à regra de ser meu total desconhecido, era morador do edifício onde eu residia, por ocasião da pesquisa de campo. Por ter o perfil definido para a pesquisa e como não tínhamos nenhum laço mais estreito de convivência, achei que poderia testar com ele o roteiro de entrevista. Realizei a entrevista no domicílio e após comparação com as demais entrevistas, não encontrei nenhuma razão para descartá-la. As entrevistas duraram, em média, duas horas. Apenas uma delas, coincidentemente a última, durou apenas quarenta e cinco minutos. Tratava-se de um sujeito bastante falante, mas que propositadamente iniciou a entrevista dizendo que era bastante objetivo sobre qualquer assunto relativo a sua vida, não ficava “dramatizando” e assim foi, minimalista. Apesar de tão sintética entrevista, e talvez por isso mesmo, decidi mantê-la para análise. A delimitação de 10 sujeitos deve-se mais a uma estratégia de tempo e de recursos financeiros, do que propriamente a um critério 97 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias metodológico. Considerando que cada uma das entrevistas durou, em média, 2 horas, disponho, aproximadamente, de 30 horas de depoimentos; material suficientemente extenso para uma análise sobre a paternidade, sem a pretensão de esgotar o assunto. As informações colhidas a cada entrevista foram se somando às demais e após o último depoimento, nenhum dado novo surgiu, que exigisse um redirecionamento das entrevistas. Atribuo esse fato aos critérios para seleção dos sujeitos, que favoreceram o estabelecimento de um certo padrão, inclusive para as contradições. A técnica de pesquisa privilegiada foi a de depoimentos gravados, a partir de um roteiro semi-estruturado (em anexo). Com o claro objetivo de perseguir os dados que me revelassem o processo de construção da paternidade, o roteiro foi organizado em dois blocos principais de questões. O primeiro apresenta uma estrutura fundamentalmente biográfica. É a reconstituição dos acontecimentos mais significativos, a trajetória de vida à luz das lembranças da família de origem que permite captar mudanças e permanências em relação à família de procriação. A entrevista foi iniciada com a descrição da família, o número de irmãos, a escolaridade, a profissão dos pais, seguido de relatos sobre o cotidiano familiar e escolar durante a infância e a adolescência, o relacionamento familiar, e, sempre que possível, colocando a figura paterna como o elemento desencadeador da memória. Como dizem Jacqueline Gysling e Maria Cristina Benavente (1996), essa narrativa permite que o indivíduo se tome como objeto, olhando-se à distância, expressando uma consciência reflexiva sobre si mesmo, interpretando o mundo que o rodeia e sua própria vida. “Revela-se e revela ao outro como quer que o vejam”. Na seqüência, o depoimento fala do período da adolescência até o momento atual, enfocando aspectos como métodos contraceptivos durante o relacionamento com a atual companheira e depois no 98 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias casamento; a gravidez e o nascimento do filho, explorando o cotidiano do casal com a chegada do bebê; a organização da rotina familiar no atendimento à criança, abordando inclusive a divisão de algumas tarefas domésticas. Para encerrar a entrevista, fiz algumas questões que defini como “provocativas”. Foram perguntas com o objetivo de captar eventuais contradições, ambigüidades em relação à narrativa desenvolvida durante a entrevista. Como, por exemplo, qual a opinião dos entrevistados sobre homens que solicitam na justiça a custódia dos filhos em caso de separação65, e o que pensam sobre homens solteiros adotarem crianças. O roteiro foi elaborado de tal maneira que a narrativa dos informantes pudesse revelar, mediante fatos e acontecimentos marcantes, suas concepções sobre a temática da pesquisa. Este procedimento induz o informante a seguir uma ordem de questões, dando à entrevista a forma de seu próprio pensamento, a partir de um objeto de interesse arquitetado pelo pesquisador. Mesmo com um roteiro semi-estruturado, a imprevisibilidade se manteve e muitas vezes acabou precipitando a formulação de novas questões que conduziram a conversa para outros caminhos, não previstos inicialmente. A fala pertence, portanto, sempre ao contexto do diálogo; o roteiro apenas desencadeia o processo e o mantém vivo. Adotei como parte de meus procedimentos de pesquisa um caderno de campo para registrar após cada entrevista não só uma breve identificação do entrevistado, mas também minhas impressões. Nele constam observações sobre as características do entrevistado, suas reações às minhas perguntas e anotações de conversas importantes 65 As reflexões sobre essa questão deram origem ao artigo A desigualdade de gênero nas relações parentais: o exemplo da custódia dos filhos, de minha autoria (Ridenti, 1998) e, portanto, não foram retomadas aqui. 99 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias ocorridas depois de encerrada a entrevista. Esse procedimento já se revelara bastante útil durante a pesquisa Família e Trabalho Domiciliar em São Paulo, permitindo que descrevêssemos, por exemplo, o local de trabalho, que era também residencial e pequenas situações domésticas impossíveis de serem captadas pelo gravador. É nesse caderno que também anotei, a cada leitura das transcrições das entrevistas, fatos importantes que me vinham à memória, completando meus registros sobre cada um dos contextos de diálogo. Procedimento de análise das entrevistas A análise das entrevistas seguiu os seguintes procedimentos: ! leitura das entrevistas acompanhada do áudio da fita gravada; O objetivo é rememorar a situação de entrevista e anotar no caderno de campo pequenos detalhes trazidos pela lembrança. É também nesta fase que sublinhei as falas “interessantes”, que remetem às questões da pesquisa. Tratou-se de uma leitura vertical das entrevistas, cada uma sendo analisada individualmente. ! segunda leitura, ainda vertical; Nesta etapa procurei captar se havia um roteiro subliminar ao roteiro utilizado para conduzir a entrevista. Afinal, em decorrência da própria dinâmica da entrevista e da relação (de conflito e de poder) que se estabelece entre informante e entrevistador outras questões podem se interpor. Teoricamente falando, essas questões poderiam reorganizar a problemática da pesquisa, até mesmo refutar o problema inicial. ! última leitura: a visão do conjunto; 100 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Nesta fase procurei reconstruir as entrevistas horizontalmente, numa nova totalidade, captando convergências e divergências no conjunto dos depoimentos a partir dos recortes que havia feito na leitura de cada entrevista isoladamente e na qual defini temas, em consonância com as questões de pesquisa, para desenvolver em minha análise. Apresentação dos entrevistados Com base nas informações anotadas no diário de campo e na leitura dos depoimentos, elaborei um sintético perfil dos entrevistados que permite visualizar a composição do grupo familiar de origem e de procriação. Cada um deles recebeu um nome fictício, evitando que possam ser identificados. Benício é músico, tem 37 anos. Nasceu em São Paulo e até os 14 anos morou na Vila Olímpia. O pai, publicitário, nasceu em Campinas e a mãe na capital. A mãe exerceu várias atividades: deu aulas de piano, trabalhou no INPS e foi micro-empresária. Ambos têm curso superior. Na casa dos pais sempre tiveram empregada doméstica. Benício é o primogênito, têm mais dois irmãos. Saiu da casa dos pais aos 25 anos, quando se casou com Luiza, 30 anos, professora numa grande escola privada. Eles têm um casal de filhos: Marlon com 6 anos e Manoela com 3. Ele fez jornalismo e a mulher pedagogia. A primeira gravidez aconteceu um ano e meio depois do casamento, não foi planejada, a tabelinha “furou”. Usam camisinha, preferida por Benício à pílula, que considera prejudicial à mulher. Tem empregada doméstica e moram em casa própria. Carlos tem 48 anos. O pai nasceu no interior de São Paulo, trabalhou a vida toda como gerente de banco federal e por isso Carlos nasceu no Paraná. A mãe é do sul de Minas, mas morava no norte do Paraná quando conheceu o marido. Ele é o irmão mais velho, de cinco, dois homens e três mulheres. Na primeira oportunidade o pai se transferiu para o Estado de São Paulo, onde nasceram os outros irmãos. A mãe nunca trabalhou fora. A mulher de Carlos tem 46, é da região do triângulo mineiro. Ela é cineasta e professora universitária. Ele cursou a Poli e atualmente é professor titular numa universidade pública. Ambos fizeram especialização na Europa. Moram em casa própria com os 2 filhos, um menino de 11 anos e uma menina de 7. Antes do nascimento do primeiro filho fizeram dois abortos. A mulher usava pílula e 101 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias diafragma. A gravidez do primeiro filho foi planejada e aconteceu 10 anos após o último aborto. Tem empregada doméstica. Leonel, 39 anos, é engenheiro. Nasceu na Ilha da Madeira, em Portugal, vindo para o Brasil aos cinco anos com a família. Ele é o caçula de seis irmãos, quatro mulheres e dois homens. O irmão mais velho, aos onze anos foi morar na Venezuela, na casa de parentes. Lá trabalhou e ajudou a família que continuava em Portugal. Com a falência do pai vieram para o Brasil. Mais tarde o irmão se juntaria à família em São Paulo. Aqui o pai de Leonel teve uma panificadora e depois um posto de gasolina, no qual ele trabalhou quando adolescente e depois por um período como sócio. A mãe não estudou, sempre foi dona de casa. Nunca tiveram empregados domésticos. Leonel e a irmã mais nova são os únicos filhos que possuem curso superior. Morou na casa dos pais até os 27 anos, quando se casou. À época da entrevista Leonel estava desempregado. A mulher, 40 anos, é funcionária pública da prefeitura, na área da saúde. Eles têm uma filha de 7 anos. Usavam a tabelinha como método contraceptivo. A gravidez ocorreu 4 anos após o casamento, numa falha da tabelinha. Por contenção de despesas, no momento da entrevista não tinham empregada doméstica. Moram em apartamento próprio. Luciano, 35 anos, é descendente de poloneses judeus nãoortodoxos, nascido no interior de São Paulo, veio com dois anos para a capital, se considera paulistano. O pai nasceu no interior e a mãe no Rio Grande do Sul. Primogênito, tem mais uma irmã. Moraram por muitos anos no Bom Retiro em apartamento próprio; lá o pai teve uma loja de móveis e depois de tecidos. A escolaridade do pai é ginásio incompleto, a mãe concluiu o segundo grau. A mãe trabalhava inicialmente com o pai na loja de tecidos e tinha outras atividades, uma delas numa escola pública onde substituía professores. Até a adolescência dos filhos sempre tiveram empregada doméstica. Luciano formou-se em química pela Mackenzie, logo depois fez extensão para Química Industrial e outros cursos de especialização. Atualmente, trabalha na área comercial e de marketing. Luciano saiu da casa dos pais com 28 anos, quando casou. Sua esposa, 37 anos, formou-se em Engenharia Química. Por ocasião do casamento estava desempregada e não quis voltar a trabalhar, optando por cuidar da casa e dos filhos que pretendia logo ter. Moram com as duas filhas, uma de 4 anos e outra de 2 anos, em apartamento próprio. Usavam pílula alternando com tabelinha e camisinha. A gravidez foi planejada e aconteceu 2 anos após o casamento. Tem faxineira. Luiz tem traços orientais, herança do pai nascido no Japão. O pai era protético, habilitação adquirida num curso técnico de segundo grau. A mãe, brasileira, neta de italianos, completou o segundo grau. Após o casamento dedicou-se à família e aos filhos, não exercendo nenhuma atividade profissional. Nunca tiveram empregada doméstica. Tiveram 3 filhos, dois homens e uma mulher. Luiz é o filho mais velho. Aos 39 anos, ocupa o cargo de diretor de sistemas e processos, numa empresa multinacional. Formou-se pela Politécnica em 102 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias engenharia de produção com especialização nos Estados Unidos. A mulher de Luiz tem 37 anos, formada em Psicologia, atualmente coordena o sistema de creches de uma universidade pública. Eles tem uma filha de 6 anos. Moram em apartamento próprio. Após três anos do nascimento da filha, o casal passou por uma crise e separou-se por um ano e meio. Luiz conta que o distanciamento da mulher após o nascimento da filha e sua exclusão dessa relação foi responsável pela separação. Usavam camisinha como método contraceptivo. A gravidez foi planejada e ocorreu 7 anos após o casamento. Tem empregada doméstica. Marcos, 37 anos, é formado em engenharia, mas atua na área de finanças, no apoio a financiamentos e execução de projetos. Marcos nasceu no interior de São Paulo. Tem mais 4 irmãos, 2 homens e 2 mulheres. Ele é o segundo. O pai é fazendeiro e a mãe professora, mas quando as filhas nasceram deixou de trabalhar fora, em casa fazia bordados e enxoval para bebês. Sempre tiveram empregada doméstica. Os pais têm escolaridade superior. Marcos morou no interior até os 14 anos quando veio para São Paulo estudar. A mulher de Marcos, que também é do interior, tem 30 anos, formou-se em publicidade, após o nascimento da primeira filha parou de trabalhar. Atualmente está montando uma confecção infantil. Eles têm 3 filhos, a mais velha tem 7 anos, o menino tem 4 e a mais nova 2 anos. Usavam camisinha e tabelinha como método contraceptivo. A primeira gravidez não foi planejada e aconteceu 1 ano após o casamento. Tem empregada doméstica. Mauro, 35 anos, nasceu em São Paulo, filho de imigrantes egípcios, judeus. Ambos se conheceram e se casaram em São Paulo. O pai, já falecido, era engenheiro químico, formado por escola Britânica, no Cairo. A mãe, quando solteira, trabalhou numa empresa de aviação, casou-se aos 18 anos deixando os estudos e o trabalho. Mauro nasceu primeiro, depois vieram mais dois irmãos. Sempre tiveram empregada doméstica. Depois da morte do pai, a mãe de Mauro voltou a estudar, fez colegial e cursinho e formou-se há dois anos em psicologia. Está começando a clinicar e casou-se novamente. Atualmente, ele é produtor de vídeo, cursou até o terceiro ano de jornalismo mas não concluiu. Mauro namorou a mulher por 2 anos e estavam casados há 8. Porém, ao final da entrevista, revelou que há duas semanas morava no escritório de sua produtora. Estavam passando por uma crise conjugal, que poderia resultar em separação definitiva, o que de fato aconteceu posteriormente. A mulher de Mauro, 33 anos, é formada em pedagogia e jornalismo; leciona numa escola privada. Eles têm dois filhos, um menino de 5 anos e uma menina de 3. A primeira gravidez foi interrompida. Usavam como método contraceptivo camisinha e diafragma. A gravidez do filho foi planejada e aconteceu dois anos após casamento. A mulher tem empregada doméstica. Péricles, 39 anos, único negro entre os entrevistados, é formado em engenharia eletrônica, com mestrado em administração financeira. Atuava como juiz classista do trabalho e pelo Instituto Nacional de Mediação em Arbitragem, na área de conflitos da vara 103 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias de família e civil. Também leciona matemática financeira para executivos. Mineiro, nasceu em Governador Valadares, sendo o mais velho de seis irmãos, 4 homens e 2 mulheres. O pai é fazendeiro e a mãe dona-de-casa. Tinham empregada doméstica. Até os setes anos Péricles morou na fazenda, mudou-se para a cidade quando foi à escola. O pai tem o segundo grau completo e a mãe, incompleto. Péricles morou na casa dos pais até os 18 anos, quando foi para a faculdade em outra cidade. Aos 24 anos conheceu a esposa e em um ano estavam casados. Sua mulher tem 39 anos, formada em administração de empresa, trabalha num banco federal. Eles têm duas filhas, a mais velha com 9 anos e a segunda com 7. Usavam pílula como método anticoncepcional e a gravidez foi planejada, ocorrendo 3 anos após o casamento. Tem empregada doméstica. Renato tem 39 anos e sua esposa 32. Sempre viveu em São Paulo; onde seu pai trabalhou por 45 anos numa concessionária e há um ano e meio está aposentado. A mãe quando solteira trabalhou numa fábrica de sapato, depois de casada tornou-se dona-de-casa. Ambos têm o segundo grau completo. Renato tem apenas uma irmã, que é mais velha. Ele cursou somente até o segundo ano de administração e deixou a casa dos pais aos 31 anos para morar com a atual esposa. Há 4 anos tem uma franquia dos Correios. Sua mulher cursou matemática e pedagogia, foi gerente de banco, mas no momento não trabalha. Eles moram em casa própria com as duas filhas, de 7 e 2 anos. Usavam pílula como método anticoncepcional, a primeira gravidez ocorreu sem planejamento 3 meses após o casamento. Tem empregada doméstica. Saulo, 39 anos, é formado em engenharia mecânica, mas atua como produtor de vídeo. Os pais de Saulo são nascidos no interior de São Paulo e vieram para a capital para cursar faculdade. Ele é cirurgião dentista e ela fez pedagogia, mas nunca trabalhou na área. Saulo é o quarto filho, entre seis, mas o primeiro homem. São 3 mulheres e 3 homens. Moraram sempre numa mesma casa, no bairro da Lapa. Depois de casada a mãe não trabalhou mais. A família dispunha de empregados domésticos, arrumadeira e cozinheira. Saulo deixou a casa dos pais aos 27 anos, quando passou a morar com sua atual mulher. Ela tem 35 anos e é formada em enfermagem, com especialização em pediatria; trabalha como coordenadora de uma creche, numa empresa do setor de cosméticos. Eles têm uma filha de nove anos. Saulo e a mulher passaram por dois abortos, um provocado, antes do casamento e outro involuntário, logo após o casamento. Usavam tabelinha e camisinha como método contraceptivo. A gravidez da filha foi planejada, 2 anos após um segundo aborto. Tem empregada doméstica e moram em casa alugada. Para situar os entrevistados em relação à sua família de origem, algumas informações básicas foram organizadas no quadro 1 e apresentam dados sobre a ocupação dos pais do entrevistado, 104 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias escolaridade, número de irmãos, ordem de nascimento e presença de empregada doméstica. Quadro 1 Características principais da família de origem Nº de ordem Ocupação Nome Escolaridade Pai Mãe Pai Mãe Nº de irmãos Ordem de nascimento Empr. doméstica Idade que saiu de casa 1 Benício Publicitário Funcionária pública Superior Superior 2 (H) Primeiro Sim 25 2 Carlos Gerente de Banco Dona de casa Médio Médio 1 (M) Primeiro Sim 14 3 Leonel Comerciante Dona de casa Fundamental Analfabeta 1(H) e 4 (M) Sexto Não 27 4 Luciano Comerciante Funcionária pública Fundamental Médio 1 (H) Primeiro Sim 28 5 Luiz Protético Dona de casa Médio Médio 1 (H) e 1 (M) Primeiro Não 22 6 Marcos Fazendeiro Dona de casa Superior Superior 2 (H) e 2 (M) Segundo Sim 14 7 Mauro Engenheiro Químico Dona de casa Superior Superior 2 (H) Primeiro Sim 22 8 Péricles Fazendeiro Dona de casa Médio Médio 3 (H) e 2 (M) Primeiro Sim 18 9 Renato Gerente de Oficina Dona de casa Médio Médio 1 (M) Segundo Sim 31 10 Saulo Dentista Dona de casa Superior Superior 2 (H) e 3 (M) Quarto Sim 27 Apresento no quadro 2 alguns dados sobre a família do entrevistado: idade dele e da cônjuge, escolaridade e ocupação de ambos, número de filhos e idade a por fim a indicação da presença de empregada doméstica e de casa própria. 105 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Quadro 2 Características da família do entrevistado Nº de ordem Nome Dele Cônjuge Dele Cônjuge Dele Cônjuge H M 1 Benício 37 30 Superior Superior Músico Professora 1 1 05 - 02 mensalista Casa 2 Carlos 48 46 Superior Superior Prof. Univ. Prof. Univ. e Cineasta 1 1 11 - 07 mensalista Casa 3 Leonel 39 40 Superior Superior 1 7 não Apto. 4 Luciano 35 37 Superior Superior Diretor Comercial Dona de casa 2 4-3 faxineira Apto. 5 Luiz 39 37 Superior Superior Diretor de Sistemas Coord. de Creche (func. publ.) 1 6 mensalista Apto. 6 Marcos 37 30 Superior Superior Diretor de Finanças Dona de casa 1 2 7-4-2 mensalista Casa 7 Mauro 35 33 Superior Incompl. Superior Produtor de vídeo Professora 1 1 5-3 mensalista Casa 8 Péricles 39 39 Superior Superior Juiz Classista/ Bancária 2 9-7 mensalista Apto. Idade Escolaridade Ocupação Nº de filhos Engenheiro Funcionária (desempregado) Pública Idade dos filhos Empregada Residência doméstica própria Professor aut. 9 Renato 39 32 Superior Incompl. Superior Gerente de Correio Dona de casa 2 7-2 mensalista Apto. 10 Saulo 39 35 Superior Superior Produtor de vídeo Coord. de Creche (empr. Privada) 1 9 mensalista Não Considerando que a vivência com a família de origem, o relacionamento com o pai, a mãe e os irmãos são geradores de experiências, conflituosas (ou não), mas fundamentais no processo de construção da pessoa, inicio o próximo capítulo descrevendo a família de origem e analisando os depoimentos que aludem à figura do pai, em particular, com o objetivo de apreender quais aspectos da experiência de filho incidiram sobre a experiência de pai. Os relatos sobre a vivência com a família de origem permitem ainda visualizar como a desigualdade de gênero se expressava num outro momento histórico e como, no 106 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias momento presente, em que a destradicionalização do modelo de paternidade na família de origem possibilitou mudanças, ainda se manifesta como uma das faces da constituição da paternidade nos anos 90. Capítulo 4 A família de origem: a desmitificação do pai-herói Com o objetivo de recuperar a trajetória de vida dos homens desta pesquisa e estabelecer correlações entre a vivência com o pai e a construção da própria paternagem, iniciei cada uma das entrevistas com questões sobre a família de origem: o cotidiano familiar, as brincadeiras com o pai, o lazer da família, as questões de disciplina e como descreviam o pai, a mãe, enfim, sobre o relacionamento e a rotina doméstica na infância e adolescência. A idéia era buscar na memória do entrevistado sobre a relação pai-filho, mãe-pai, mãe-filho o repertório que poderia estar favorecendo, ou não, uma paternidade reflexiva e, portanto, aberta a questionamento e à reformulação de seu conteúdo tradicional. A tradição, tal como pensada por Anthony Giddens (1997) está ligada à memória e tem uma força de união que associa conteúdo moral e emocional. A memória se refere à organização do passado em relação ao presente; sendo que o passado não é preservado, mas continuamente reconstruído, tomando como base o presente, a partir da experiência acumulada, das relações sociais e familiares, num processo que é, por isso, apenas parcialmente individual (Giddens, 1997:81). 107 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Pensada como estratégia metodológica, a fala inicial sobre a infância facilitou o diálogo e permitiu que eu apreendesse os aspectos relevantes sobre a família de origem. Por outro lado, a possibilidade de ouvir sobre essa relação pai-filho com o olhar da vivência, com uma experiência de paternidade já constituída, possibilitou aos entrevistados, diluir críticas e atenuar eventuais ressentimentos com relação ao pai. Ter seus próprios filhos habilitou-os, de certa maneira, a entender as razões que levaram o pai ou a mãe a adotar um comportamento mais ou menos autoritário, mais ou menos ausente, bem como para descrever a sua própria experiência de paternidade, através da analogia por negação ou por aproximação com um modelo de paternagem e de relação conjugal. Embora o enfoque deste capítulo seja o entrevistado e sua relação com a família de origem, em particular com seu pai, algumas questões, suscitadas no decorrer da análise, levaram-me a antecipar algumas reflexões sobre a experiência presente do entrevistado com a cônjuge e com os filhos. Neste sentido, estabeleci uma interrelação entre o tempo presente (relação com a cônjuge e filhos) e o tempo passado (relação com o pai e com a mãe) que permite visualizar o processo reflexivo de construção da paternidade e da masculinidade. Esse vai e vem permite apreender indícios de mudanças e, algumas vezes, permanências de comportamentos e valores que estão relacionados à vivência com a família de origem, à socialização, bem como revelar formas de resistência encontradas por esses homens para instituir uma forma própria de posicionar-se no mundo. O perfil registrado da família de origem mostra que, de maneira geral, os pais dos entrevistados ascenderam às camadas médias na esteira do processo de industrialização e urbanização que caracterizou a sociedade brasileira nos primeiros cinqüenta anos do séc. XX. A ascensão da família de origem se reflete especialmente na atual posição 108 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias social dos entrevistados — todos têm curso superior e apenas um não tem casa própria. A trajetória de vida da família de origem registra tanto a migração dos pais que vieram de outros estados ou cidades para a capital, como a imigração (o pai de Luiz veio do Japão; os pais de Leonel de Portugal quando ele ainda era pequeno e os pais de Mauro vieram do Egito). As dificuldades econômicas e culturais enfrentadas pela família marcam a atuação paterna. O pai dos entrevistados é um pai provedor, a quem cabe também a tarefa de encaminhar um futuro melhor para os filhos e garantir o status familiar. Quase sempre essa expectativa é conduzida para o filho primogênito de quem se espera que possa conquistar uma carreira promissora, avançando no projeto familiar de ascensão. A história pregressa da família, as dificuldades financeiras, os sacrifícios são elementos resgatados para explicar o autoritarismo, a rigidez, que conformam um certo tipo de paternidade e de masculinidade: (...) A família do meu pai era pobre. Então, é assim, eles tentaram segurar a barra lá. Tentaram achar que “isso vai passar”. Eles sofreram muitos atentados, meu tio foi esfaqueado lá, ele tem origem judaica. Eles ficaram muito com isso não resolvido. Não sei se isso tem a ver, então ele tinha essa coisa de ser autoritário demais, machista demais, rígido demais com as coisas. E ele realmente queria que eu, como filho mais velho, fosse um cara que... tinha muita expectativa em cima do filho mais velho. Então, tinha que ser bom na escola, tinha que ter objetivos parecidos com os dele. Coitado, foi tudo ao contrário. Acabou saindo tudo ao contrário (Mauro, produtor de vídeo)66. Mauro, filho primogênito, frustou as expectativas de seu pai ao não se tornar nem engenheiro (tal como o pai), nem médico, nem advogado67. Ele acredita que para seu pai as dificuldades enfrentadas pela família 66 67 Esse trecho do depoimento de Mauro se refere ao relato sobre a questão da disciplina. Contrariando o desejo paterno Mauro não só abandonou a faculdade de engenharia, mas passou por outras três faculdades na área das ciências humanas, não concluindo nenhuma. Atualmente, é um bem sucedido produtor de vídeo. 109 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias de origem deveriam ser recompensadas na forma de uma condição de vida melhor, oferecida pelos filhos mediante uma carreira profissional bem sucedida. A escolarização e uma boa carreira profissional seriam os instrumentos. Essa mesma frustração, por supostamente não ter correspondido aos anseios do pai, aparece na fala dos demais entrevistados — Qual é a principal lembrança, qual a principal referência que você tem dele? Quem vem primeiramente, que te marca, que é a marca do teu pai, assim, na tua vida? — Olha, o que me marca hoje é que meu pai nunca foi empregado, ele sempre trabalhou por conta, foi caminhoneiro, mas sempre teve o caminhão dele, mas foi caminhoneiro. Depois trabalhou com meu avô na casa de móveis, mas ele que fazia o carregamento, loja pequena; isso nós estamos falando da década de 50, início da 60, mas ele nunca foi empregado, mesmo na vida profissional dele, mesmo nos momentos baixos, quando teve um sócio, tiveram problemas, brigas tal, perda de dinheiro e tal. Mas ele sempre teve o seu afazer, daí o seu ganha pão, na qual constituiu toda a família. Eu tenho quase certeza de que ele gostaria.... por exemplo, meu pai tem uma loja, uma fábrica pequena, tem quatro funcionários e tudo mais, mas é o que garantiu a sobrevivência da família e o que eu tenho hoje, muitas coisas da minha irmã também. Eu acho que ele queria que a gente continuasse isso, e dessa loja criasse outras lojas, por aí. Tanto eu como minha irmã tivemos profissões completamente diferentes. Eu nunca fui dono de nada, sempre fui empregado, continuo sendo até hoje. Minha irmã não, minha irmã é fono, tem um consultório. Então, meu pai sempre fala o seguinte “que basta você ser empregado, para você ser despedido amanhã”. Então, ele fala de não se envolver muito, eu ouço isso dele há muito tempo, acho que desde a época que eu optei por alguma profissão, na época do vestibular. Então, ele falou, isso é o que me marca. “Basta ser empregado para amanhã você estar desempregado”. Isso é algo que me marca, sei lá, como filosofia de vida, mas como coisa que ele fez, assim, eu não tenho não, nada marcante. (Luciano, diretor comercial) Mesmo apresentando uma trajetória social distinta, que garantiu-lhes uma ascensão relativa através da escolarização ou de ocupações profissionais qualificadas, os relatos enfatizam as dificuldades enfrentadas pela família de origem para chegar aonde estão. Destaca-se neste contexto a dedicação ao trabalho e que conforma a categoria pai110 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias de-família e chefe-provedor. A idealização deste tipo de paternidade e de masculinidade, fortemente marcada na figura do chefe provedor, do homem trabalhador, capaz de sustentar o grupo familiar se revelou persistente no imaginário social e por isso presente nos depoimentos. Para Cynthia Sarti (1996) a ética do trabalho se constitui em ética do provedor em razão de uma concepção de trabalho e de relação de trabalho em que fatores econômicos se articulam a elementos morais. Sarti está se referindo aos trabalhadores pobres, da periferia paulistana que estudou para sua pesquisa de doutorado, na década de oitenta. Essa mesma articulação ética entre trabalho e provedor pode ser identificada no discurso dos entrevistados ao falarem sobre o pai: — Como você descreveria seu pai? — Descreveria da seguinte forma, um cara quatrocentão. Cara assim da antiga, que foi criado da mesma forma que ele me criou, meio seco, meio ríspido, assim. Pegava muito pouco [no colo], deveria ter pego mais (...) ele passou a infância com muita dificuldade, então acredito que por falta de estudo ele se tornou aquele cara meio o chefão, dono da família. Tem que sair lá fora, resolver tudo para todo mundo e aqui dentro quem manda é ele. Então mais ou menos desta forma (...) uma pessoa muito trabalhadora, muito honesta, meu pai era o que todo mundo queria ter e que amigos invejavam...(Renato, gerente de correio) O trabalho se impõe como referência e afirmação da identidade masculina e atua sobre o modo de conceber a paternidade, como veremos mais adiante. Sarti (1996) observou que “A identidade masculina, na família e fora dela, associa-se diretamente ao valor do trabalho, não apenas para os pobres. O trabalho é muito mais do que o instrumento da sobrevivência material, mas constitui o substrato da identidade masculina, forjando um jeito de ser homem.” (p.66). A ascensão social da família dos entrevistados foi particularmente favorecida pelo processo de industrialização dos anos 1950. O nível de escolaridade é o diferencial, ao qualificar o pai para o exercício tanto de 111 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias uma profissão liberal como para ocupar um cargo no funcionalismo público ou ainda na indústria: quatro pais tinham curso superior e os demais haviam no mínimo completado o ensino fundamental e exerciam atividades técnicas qualificadas: protético dentário, metalurgia, gerência de banco. Os de menor escolaridade tornaram-se comerciantes: o pai de Leonel era proprietário de uma padaria e posteriormente de posto de gasolina; o pai de Luciano possuía uma loja de tecidos no Bairro do Bom Retiro. Entre as mães, o nível de escolaridade se assemelha ao dos cônjuges, com exceção da mãe de Leonel, que era analfabeta. Filho de pais imigrantes portugueses, vindos da Ilha da Madeira, somente Leonel e a irmã caçula tiveram oportunidade de cursar a universidade. Os outros 4 irmãos (3 homens e 1 mulher) trabalharam desde cedo para ajudar no sustento da família. A família se constitui num “empreendimento cooperativo” na ascensão social e na educação dos filhos, principal investimento, facilitado por um sistema público de ensino de boa qualidade. O nível de escolaridade das mães e o fato de muitas delas terem trabalhado antes do casamento não impediram que a maioria interrompesse a carreira profissional após o casamento e a chegada dos filhos: oito mães eram donas-de-casa. Só três delas têm 2 filhos, as demais têm entre 3 e 6 filhos. Sabe-se que o estado conjugal e a maternidade são fatores determinantes na trajetória profissional das mulheres. Estudos sobre a força de trabalho feminina indicam que somente a partir da década de 1970 a participação da mulher casada no mercado de trabalho começou a se expandir. Até então as mulheres casadas apresentavam uma taxa de atividade de apenas 9,8%, sendo que em 1980 esse percentual sobe para 19,5% e em 1993 para 49,7% (Bruschini, 1989, 1998). Ou seja, o casamento e a educação dos filhos tinham, na geração dos pais dos 112 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias entrevistados, primazia sobre uma eventual carreira profissional, como é possível ver pelo relato de Luiz: — Ela nunca pensou em voltar a trabalhar, já que ela era uma mulher que trabalhava fora? — Acho que não. Até porque... quer dizer, minha mãe tinha um pouco uma coisa... um pouco nessa linha, de ter se preparado para casar, de ter feito enxoval, e na família dela tem várias, tinha muitas mulheres na família, várias que morreram solteiras. Então acho que tinha muito essa coisa de se preparar para se casar, de se dedicar ao marido... Assim, ela tinha uma coisa de obediência cega, assim até de matar totalmente a opinião dela e a vontade dela em função do marido ou dos filhos. Então a minha mãe, assim, estar omitindo opinião...Sei lá, submissão, falta de iniciativa, vontade própria. A vontade era... do marido e da família. (Luiz, diretor de sistemas) O fato da mãe não trabalhar fora é avaliado, em parte, como uma postura de submissão ao marido e, de outra, falta de vontade própria, como mostra o relato acima. Ou ainda, resultado de “bloqueio interno”: — E a sua mãe, como você descreveria a sua mãe? — A minha mãe é aquela mulher que queria muita coisa, mas foi sempre muito submissa ao marido (...) eu descrevo a minha mãe, mais ou menos assim, aquela mulher muito submissa ao marido, com a vontade muito grande de ter as coisas, de batalhar, de crescer, mas sempre foi meio... é... bloqueada por aquelas regras internas. Ela era muito mais atirada e meu pai muito mais pé no chão. Mas também uma pessoa maravilhosa, passava muito carinho, tratava muito bem todo mundo. (Renato, gerente de correio) A vontade do marido associada a valores tradicionais sufoca desejos pessoais e, em alguns casos, somente após a viuvez o desenvolvimento pessoal da mãe pôde ser conquistado: — E qual era o nível de escolaridade dos seus pais? — (...) a minha mãe quando eu nasci, eu sou o primeiro filho, tinha 18 anos. Portanto, segundo os padrões da época, ela largou a vida dela toda, parou de estudar...Ela trabalhava antes, porque como eles eram imigrantes, mesmo as mulheres precisavam trabalhar para trazer dinheiro (...) E a minha mãe a vida inteira ela quis muito estudar, ela tentou muito estudar, mas meu pai era muito machista, muito autoritário e dificultou o que pôde. Apesar disso ela fez o madureza para terminar o ginásio, que ela não tinha terminado e só 113 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias depois que ele morreu, que ela ficou viúva, que ela conseguiu fazer daí o colegial, o cursinho e entrou na Faculdade e há dois anos atrás se formou em Psicologia. Ela está começando a atender agora, como ela se formou no ano passado, ela está começando, está com alguns pacientes, tal. Casou de novo. (Mauro, produtor de vídeo) A submissão da mãe à vontade do marido e dos filhos não significava necessariamente passividade, como bem demonstra o relato de Mauro. A casa é considerada um espaço de autonomia feminina. A mãe é, em geral, descrita como uma mulher forte no comando da disciplina, da vida familiar e presença marcante na vida dos filhos: — Mas ela era mais severa? — Ela era mais severa, controladora, né. Dona do pedaço. Sempre essa impressão de matriarcado, né. Ela era a galinha da casa mesmo. Tinha os pintainhos ali... Respeitava demais meu pai, mas a gente sentia que a força da minha mãe era muito grande. Transmitia força para meu pai, essa era a sensação que até hoje eu tenho. Sensação de criança. (Leonel, engenheiro, desempregado) Os estudos sobre família68, em especial aqueles desenvolvidos nos anos 80, mostram que para as mulheres ser boa mãe, boa dona-de-casa têm um forte significado de realização e é fundamental na construção da identidade feminina. A persistência de um certo modelo cultural de maternidade e de feminilidade foi discutido por Danielle Ardaillon (1997) em sua pesquisa de mestrado realizada nos anos 80. Para ela, o impacto da maternidade sobre a vida das mulheres, no caso mulheres profissionais, expõe o choque entre o modelo tradicional da mãe que se dedica à família e o desejo/necessidade do trabalho profissional: No discurso das mulheres profissionais, a referência ao modelo de “boa mãe” é fonte de dúvidas quanto ao seu desempenho cotidiano por mais de um motivo. A sensação que eu tenho é de que ELAS tentam responder a vários apelos, não somente dos outros (maridos, filhos, empregadores, colegas etc.), como seus próprios, de indivíduos com direitos dos mais diversos: à liberdade, à 68 Ver Salém (1990), Dauster (1987), Di Ciommo (1990), Buschini (1990), Sarti (1996), Ardaillon (1997) entre outros. 114 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias igualdade, à cidadania. Assim, as ambigüidades com as quais ELAS se defrontam não são apenas aquelas da profissional versus a “boa mãe”, mas do indivíduo livre e criador, sujeito de suas ações versus aquele outro, determinado por uma sujeição a papéis sociais pré-moldados. ELAS deixam claro que não se trata de deixar de ser mãe porque profissional, ou vice-versa, e começam a estar conscientes de que estão desbravando caminhos desconhecidos (Ardaillon, 1997, p.140). Ao mencionarem a submissão da mãe à família e à vontade do marido e dos filhos, ressaltando a abdicação daquelas mulheres à vida profissional, os entrevistados sinalizam os primeiros indícios de confrontação ao ideal de maternidade e de relação conjugal. A independência da mulher, proporcionada pelas conquistas feminista, pelo trabalho e pelo investimento em uma carreira profissional, é um aspecto de significativa mudança na geração desses homens em relação a de seus pais: as esposas de sete entrevistados trabalham fora e eles consideram fundamental para “a relação do casal” e para ela que mantenha um projeto próprio de desenvolvimento pessoal. Mais do que isso, reconhecem que a dedicação exclusiva a família não é um fator de realização pessoal. Mesmo entre aqueles cuja mulher optou por dedicarse à família, está presente no discurso o receio de que essa opção possa no futuro ser motivo de insatisfação e cobrança. É o que expressa claramente Luciano quando perguntei-lhe sobre o que pensava sobre as mulheres trabalharem fora: — As crianças já estão grandes, as duas estão na escola. No meu modo de ver ela já devia estar retomando um pouco. Eu sempre a incentivei para não parar de trabalhar, mas eu não vejo ela querendo retomar o mercado de trabalho. Apesar de com alguma freqüência eu tocar no assunto, sempre escuto desculpas mais esfarrapadas. Na época das crianças ela falou que queria curtir ser mãe, não tinha nenhuma intenção...ela queria viver essa fase de mãe até a pré-escola, era o objetivo dela, ser mãe. Mas eu tenho muito medo disso, eu falo para ela que a gente não sabe o dia de amanhã e amanhã ela pode jogar na minha cara que ela se dedicou à família e perdeu a atividade profissional dela. Tem hora que eu tenho medo do meu casamento...(Luciano, diretor comercial) 115 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias O trabalho profissional da mulher, a sua realização pessoal é visto como vital, menos pelo fator financeiro e mais pela satisfação dela e, conseqüentemente, como garantiria para o bom relacionamento conjugal. Por outro lado, a maternidade parece não mais sustentar o vínculo conjugal. Espera-se que a cônjuge desenvolva outros interesses, minimizando desta forma possíveis expectativas em relação ao parceiro e à própria relação conjugal: — Eu acho que é vital. Assim, eu acho que eu não conseguiria casar com uma mulher que não tivesse a vida dela, que não gastasse a energia dela, não tivesse as ambições dela, não cruzasse outras pessoas, sabe? Eu acho vital até para o casamento funcionar, areja sabe? Não fica em cima do marido, não fica em cima do filho, tem as próprias coisas que ninguém precisa saber, leva a vida, passa o tempo fora de casa, eu acho que é vital...(Benício, músico) — Você acha importante a mulher trabalhar fora? — Super...faz parte hoje, não tem porque não trabalhar. A Tãnia, se Tãnia não trabalhasse ela não existiria. (...) hoje ela é cineasta, trabalha com montagem, que é o que ela mais gosta (...) Fico imaginando a vida da Tânia sem o cinema. Ela simplesmente não ia existir. Tem as suas dificuldades, claro, com relação aos filhos, eu vejo nela que ela sempre acha que é devedora com os filhos por conta do trabalho. Acho isso meio bobagem, acho ainda coisa de cultura que vem arrastando aí, também não precisa ficar grudado no filho o tempo todo. (...) (Carlos, professor universitário) — Eu lembro que no começo, no primeiro ano que a gente estava namorando, ela não trabalhava. Então tinha até uma certa...não uma briga, mas uma insistência para ela começar a fazer isso. Quer dizer, da mesma forma que para mim hoje seria ruim a Isadora não estar numa escola, não estar tendo uma vida mais ampla do que ela teria dentro de casa, para mim é ruim ver uma mulher que não trabalha. Um pouco como eu vejo a minha mãe, de ter uma limitação em uma série de aspectos, de como ela vê o mundo, porque há quase 40 anos ela está dentro de casa... então sempre tive uma insistência com a Débora para ela trabalhar...Não é nem por questão financeira (...) eu me sentiria muito incomodado por ela deixar de ter toda uma relação...acho que não daria certo se ela não trabalhasse. (Luiz, diretor de sistemas) 116 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias As falas deixam transparecer uma crítica a um certo ideal de maternidade, no qual a mãe dedica-se exclusivamente aos filhos — mais do que isso — prevalece a idéia de que as crianças não necessitam de tanto empenho materno para se desenvolverem. Diferentemente da geração de seus pais, a realização pessoal da mulher está associada ao investimento numa carreira profissional. No entanto, a condicionam ao mero desejo da mulher (basta querer) e não identificam eventuais obstáculos que podem ter levado algumas delas a abandonarem ou a adiar a carreira profissional. Para esses homens nem a casa nem a presença de filhos justifica a opção de não trabalhar fora. A questão que se coloca é: como operacionalizar a carreira profissional e as imposições do mercado de trabalho frente à dinâmica da vida familiar, que inclui demandas diversas com os filhos pequenos ? O espaço doméstico, expressão da desigualdade de gênero Os entrevistados relatam que era a mãe quem cuidava dos afazeres domésticos ou orientava o trabalho da empregada doméstica, assumindo para si as atividades relativas aos filhos e ao preparo da comida. Apenas dois deles não relataram a presença da doméstica: Leonel e Luiz. A família de Luiz era de imigrantes; pai japonês e mãe filha de italianos; moraram durante algum tempo com familiares maternos, estabelecendo com a rede de parentesco a divisão das tarefas domésticas. Mesmo quando passam a morar em casa própria é a mãe que continua a assumir os afazeres domésticos. Leonel, por sua vez, também filho de imigrantes, vem de uma grande família com muitas irmãs (quatro). Todo o trabalho doméstico e de sustento da família era dividido entre o grupo familiar. As mulheres tanto ajudavam nos afazeres domésticos como na atividade comercial dirigida pelo pai e, diante da necessidade, até os filhos homens podiam ser convocados 117 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias para ajudar nos afazeres domésticos, se não estivessem trabalhando, como foi o caso de Leonel, o caçula da família: — Todo mundo se empenhava em fazer a limpeza, fazer as coisas da casa e trabalhar no negócio junto com o meu pai. Então fazia aquele revezamento. Também uma das minhas irmãs casou na Madeira e foi para a África do Sul, depois é que veio para o Brasil, muitos anos depois. Então a idade era... as duas mais velhas, eram duas, ajudando meu pai e na limpeza da casa, e os pentelhos, eu e a Tita, atrapalhando e de vez em quando até ajudando alguma coisa. Enxugar a louça era basicamente a minha tarefa. A Tita gostava de lavar. E eu não tinha muito o que opinar, se gostava ou não, tinha que enxugar. (Leonel, engenheiro desempregado) Cabe destacar que Leonel, na ocasião da entrevista, por estar desempregado, era responsável por boa parte dos afazeres domésticos de sua casa, já que o orçamento não permitia custear uma faxineira. A experiência vivida na casa dos pais, durante a infância e adolescência, foi providencial: — E você, tem alguma tarefa sua na casa? — Tenho. Arrumar a casa (risos). Atualmente...fazer limpeza, vassoura, lustra móveis, lavar louça... Enxugar a louça eu não enxugo muito, deixo escorrer, passo um paninho e largo. Antes também fazia [de estar desempregado], mas como nós dispensamos a faxineira, já um período grande, nós dispensamos a faxineira e eu passei a fazer. Mas antes quando não tínhamos faxineira, também fazia. A Julia era pequenininha, e eu que saía limpando apartamento, lavando azulejo, chão. Era um apartamento no térreo, tinha um quintalzinho, lavava o quintal... — E a Raquel te ensinou a fazer isso ou você foi fazendo? — Não, eu fazia isso em casa. Fazia em casa, meus pais... o quintal dos meus pais era um horror. Duas horas limpando aquele quintal... meu Deus do céu... Também tinha minhas irmãs, ‘não, você vai limpar o seu quarto’, aí vai lá e limpava o quarto, lavava o banheiro, faxina. Vai limpar não sei o quê...(Leonel, engenheiro, desempregado) Diferente da geração de Leonel, o envolvimento paterno nos afazeres da casa era restrito a algum auxílio com a arrumação da mesa para as 118 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias refeições (normalmente o jantar), ou algum conserto. Ou ainda, o pai podia fazer as compras de supermercado ou da feira. Todos foram unânimes em responder que o cuidado da casa era uma tarefa da mãe, que muitas vezes contava com a presença de uma empregada doméstica ou com a ajuda das filhas. Ao pai cabia o trabalho remunerado, externo à casa. A divisão das tarefas domésticas Na fase da primeira infância o pai não é citado como alguém que divide ou ajuda nas tarefas domésticas. A ele cabe prover o sustento, e em relação a família, agir na disciplina quando fosse necessário. Seu envolvimento com os filhos, no entanto, não era desprezível, e muito provavelmente representou um avanço em relação à geração anterior. Um exemplo é a disponibilidade de alguns para sentar com os filhos e ensinar matemática ou inglês, acompanhando as tarefas escolares. Como foi observado, o investimento na educação dos filhos é valorizado como forma de ascensão social. Ainda assim, o relato dos entrevistados mostra que a família de origem estava organizada de maneira tradicional, cabendo à mãe o gerenciamento da casa. As mães, como mencionado anteriormente, apresentavam um bom nível de escolaridade e muitas delas trabalhavam antes do casamento ou antes do nascimento dos filhos. Contudo, o casamento e a maternidade se impuseram como um destino pouco questionado naquele contexto cultural (anos 50 e 60). O relato de Saulo é bastante revelador deste quadro e da reprodução das desigualdades de gênero no processo de socialização. Saulo tem três irmãs mais velhas e um irmão mais novo: — E a sua mãe, depois do casamento, não trabalhava? 119 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — Não trabalhava mais. Ela ficou em casa cuidando da gente, muito presente em casa. — Mesmo assim vocês tinham empregadas domésticas? — Eu costumo dizer, na forma pejorativa, que minha mãe foi uma dondoca, porque a família dela era muito rica, um chegou a ser deputado federal, e a família do meu pai já não, meu pai já veio de um meio humilde. Então, a impressão que passou é que o meu pai quando casou com ela quis mantê-la no mesmo padrão, desatou a trabalhar que nem um alucinado para manter esse padrão. Então ela teve sempre uma ou duas empregadas em casa, lembro muito da infância que tem assim, a arrumadeira e a cozinheira. Geralmente a arrumadeira cuidava da gente também. Essa história de dar banho ou mandar para o banho, hora do lanche, gerenciava essa situação (...) Eu sempre lembro da minha mãe trocando botão, dando trato na roupa, bainha, esse tipo de coisa. E na cozinha, ela fazia os quitutes, assim, pratos especiais, um doce, ela sempre fez doces deliciosos, tal. Então, ali na rotina era isso. — E você e seus irmãos, eram irmãs, né, eram responsáveis por alguma tarefa doméstica? — As meninas, com certeza. — Você ficava livre... — Ah... noventa por cento dos casos. Eu não era envolvido... — Nem a sua cama você precisava arrumar? — Nunca. Nem pegar cueca do chão, nada. Zero. Já as minhas irmãs, tinham atribuições de deixar o quarto em ordem, elas tinham... e assim eu lembro de levantar, de ir para o banheiro, tomar café, e quando eu voltava, minha mãe já tinha feito a minha cama. A ação era ela, ela arrumava. — E você se lembra do teu pai ajudando em alguma tarefa na casa? — (...) em casa ele fazia muito pouco, muito pouco mesmo. Trazia... a impressão que me passa, ‘a minha função é equipar a casa, vocês se viram. Eu providencio a entrada em grana, e vocês se viram’. Ele... vamos ver, tem que dividir um pouco as etapas da vida, porque na primeira infância, ele com seis filhos, crianças, trabalhava de manhã, de tarde e de noite no consultório, e à noite ia dar aula num cursinho, cursinho pré vestibular. Então ele ia para o consultório e para o cursinho. Quando ele vendeu o cursinho, ele começou a comprar fazendas, a administrar fazendas, tal. Ele ia para o consultório, ficava até tarde no consultório, e nos dias em que ele não ia para o consultório ia para as fazendas. O tempo inteiro fora. Essas coisas de... do dia a dia, ele não se envolvia. Não se envolvia mesmo! Mais tarde, ele teve alguns acidentes de percurso, acidentes físicos de 120 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias carro (...) algumas rotinas acabaram sendo mudadas. Então nessa segunda fase, que eu já estou adolescente, jovem, ele acaba se comprometendo a de manhã levantar e comprar um pão. Isso ele fazia. Mas por épocas.... Aí de repente vem uma empregada que chega todo dia às sete da manhã, já traz o pão. Que eu acho que o formato de hoje é esse, a empregada chega e traz o pão (...) Gozado, se tem alguém ele não faz absolutamente nada. Se não tem, ele faz. Só que estou falando essas coisas, de um pai jovem. Hoje ele tem 72 anos, eu vejo ele e a minha mãe super dividindo, ele fazendo as coisas, lavando... agora ele está mais doméstico... (Saulo, produtor de vídeo) O relato de Saulo sintetiza o processo de socialização no qual se estabelece uma clara divisão sexual do trabalho e que compõe um certo padrão de gênero adotado em nossa sociedade. Às meninas cabem arrumar o quarto, ajudar a mãe nos afazeres domésticos. Tarefas femininas. A Saulo, por sua vez, nem mesmo é cobrado “pegar as cuecas do chão”. Saulo é menino69. Maria Luiza Heilborn (1995), em pesquisa realizada em bairros populares do Rio de Janeiro identificou um processo de socialização semelhante ao relatado por Saulo, no qual é estimulado o envolvimento feminino nos afazeres domésticos, ao contrário dos meninos, que são incentivados a exercer pequenas tarefas externas à casa. O comportamento em relação ao envolvimento do pai, não é muito distinto. Ele, como chefe-provedor, sai cedo para o trabalho, volta muito tarde e está ocupado em ganhar dinheiro para o sustento da família. Não há porque esperar que ele divida os afazeres domésticos. Sua participação é mencionada como ajuda e não há questionamento desta ordem das coisas. Diferentemente do que virá a acontecer com a unidade familiar do entrevistado, no qual mesmo que ele mantenha uma posição de provedor (até porque seu rendimento em geral é o maior 69 A maioria dos homens entrevistados tinham filhas (são 14 meninas e 4 meninos), assim não foi possível avaliar como se processava a educação dos meninos com relação às tarefas domésticas, por exemplo, comparativamente às meninas. Há que se considerar também a idade das crianças, a maioria tem menos de 7 anos, além da presença da empregada doméstica. Não houve registro de preocupação com a educação das crianças, com relação a uma maior equidade de gênero. 121 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias no orçamento doméstico) é esperado da cônjuge uma outra forma de atuação na estrutura familiar, e que não deve limitar-se ao espaço doméstico. No caso da família de origem, somente num outro momento de vida, o da aposentadoria, há por parte do homem disponibilidade para uma maior participação na esfera doméstica. Sem ter que sair para trabalhar, sem estar sujeito aos horários rígidos ele divide com a sua companheira os afazeres domésticos. Esta diferença do ciclo de vida foi observada também por Luiz, Luciano e Marcos, que vêem o pai mais envolvido nesta fase de sua vida com as coisas da casa, do que outrora. Os depoimentos mostram que é a mãe quem normalmente levava os filhos ao médico ou dentista e a justificativa é sempre a mesma: “o pai trabalhava o dia inteiro”. Levar os filhos para escola é uma tarefa para o pai somente quando a mãe não pode ou porque o trajeto até o trabalho é o mesmo. — Quem costumava levar você e seus irmãos ao médico, ao dentista? — Minha mãe. — Sempre ela? — Sempre ela. Na escola, meu pai levava por que tinha aquela coisa da condução familiar, meu pai saía de manhã para trabalhar, já levava, deixava todo mundo na escola. Nessa época de infância, a gente tinha um carro só. A partir do momento que a gente teve dois carros, minha mãe sempre fez isso. (Mauro, produtor de vídeo) — Quem costumava ir às reuniões escolares? — Minha mãe. — E quem costumava te levar ao dentista, ao médico? — Minha mãe. — Sempre ela? 122 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — É, por que ela era do lar. Meu pai que trabalhava das oito às oito, às dez ou as doze. (Renato, gerente de correio) A mãe é do lar e por isso é “natural” que seja ela e não o pai a levar os filhos para o médico, para a escola, enfim acompanhá-los em suas necessidades cotidianas. Por outro lado, nenhum dos entrevistados se referiu, ao longo das entrevistas, à própria mulher como sendo “do lar” ou “dona-de-casa”, mesmo entre aqueles cuja cônjuge não desempenha atividade profissional. Como destaquei anteriormente, não é “natural” para esses homens que a mulher não trabalhe fora. Poderíamos pensar que neste subtexto há a indicação de que as tarefas domésticas podem estar sendo negociadas, diferentemente do que ocorria no caso do grupo familiar de origem. O pai de Carlos levava os filhos ao médico, quase como um ritual anual, que acontecia quando iam a São Paulo, já que na época moravam no interior do estado. No entanto, esse seu comportamento não significava conhecimento sobre o estado de saúde dos filhos; apenas acompanhava os meninos ao médico. Diferentemente do comportamento do pai, Carlos acompanha os filhos ao médico, sozinho ou com a esposa. — Quem te levava ao médico? — Meu pai. isso eu lembro direitinho. Ele que me levava. Ao médico, médico a gente ia uma vez por ano, que era tradição, tivesse onde estivesse a gente vinha para São Paulo, as tias minhas, irmãs do meu pai que moravam aqui no Ipiranga, então era tradição, nas férias, pelo menos uma semana das férias, era gasto em São Paulo para ir em médico, fazer exame de fezes, porque no interior não tinha nada disso. Fazia um check-up. — E aí nessas situações iam os dois, ou ia a sua mãe? — Não, ia o meu pai. Acho que minha mãe cuidava de outras coisas, eu não lembro direito, mas eu lembro que quem ia no médico era meu pai, e quem cuidava dessas coisas era ele. Comigo foi assim. Eu não sei dizer com os outros irmãos, como é que foi, mas comigo foi assim. 123 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias No dentista era ele que me levava... eu lembro direitinho porque era um escarcéu para ir ao dentista. — Quer dizer, para levar uma criança ao médico você devia saber um pouco da rotina da criança, né, das coisas, o que come, o que não come, o que faz e não faz... — Eu não sei se a consulta passava tanto por aí naquela época, não, viu Sandra. Porque o meu pai era uma pessoa assim de poucas palavras, acho que ele não sabia o que eu comia, ele cumpria essa função, tinha que levar, ele levava, mas...examinar, e acho que ele não saberia responder muita coisa a meu respeito não. Minha mãe sim, mas ele não. Mas era ele que levava. Acho que ele confiava em exame clínico, essas coisas. Diferente de hoje, quando a gente vai num pediatra homeopático, que tem toda uma conversa, vou eu e Tânia junto, essa... — Você costuma ir, costuma levar os seus filhos? — Vou, algumas vezes a gente divide. Vou eu ou vai Tânia; sempre que possível a gente vai junto. (Carlos, professor universitário) Esse comportamento, de acompanhar os filhos ao médico, à escola, enfim, compartilhar o cotidiano dos filhos com a mulher, é outra marca de distinção entre a geração dos entrevistados e de seus pais. No capítulo seguinte, ao explorar o envolvimento desses homens com seus filhos, veremos que muitos deles estão empenhados não só em participar, mas em “saber” sobre o filhos: o que sentem, o que pensam. No entanto, destaco em minha análise dos depoimentos, que a negociação entre o casal para estabelecer uma divisão das demandas familiares leva em conta critérios tais como a disponibilidade de tempo de cada um; a possibilidade de ganho (renda); o tipo de ocupação (que por sua vez define a disponibilidade de tempo), além de escolhas/decisões de ordem subjetiva. O resultado desta negociação tende a manter a divisão sexual das tarefas. Em geral, os depoimentos revelam que as demandas impostas pelos filhos acabam por absorver mais tempo de dedicação das mulheres. 124 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias A empregada doméstica A presença da empregada doméstica entre as camadas sociais de melhor poder aquisitivo, como é o caso nesta pesquisa, constitui uma característica da sociedade brasileira70. Os afazeres domésticos, culturalmente definidos como uma responsabilidade da mulher, são condicionados por relações afetivas entre ela e os demais membros do grupo familiar. Isto é, o trabalho doméstico quando realizado pela donade-casa não é considerado como trabalho, sendo socialmente pouco valorizado, mesmo quando remunerado, como no caso das empregadas domésticas. Ao contratar uma terceira pessoa para desempenhar essa atividade, a mulher com melhor poder aquisitivo se libera das tarefas que exigem esforço, porém menor habilidade, para trabalhar, estudar ou exercer outras atividades domésticas, mais valorizadas, como por exemplo cuidar dos filhos pequenos. A presença da empregada tem o efeito perverso de reforçar o trabalho doméstico como uma seara feminina. Ao passar os afazeres da casa para outras mãos femininas, a estrutura de gênero não é questionada. O que é reafirmada é a hierarquia de classes. A presença da empregada doméstica é particularmente marcante no período da infância, ou seja, na fase em que as crianças são pequenas e a demanda por atenção é redobrada. Na fase da adolescência esse padrão muda, mas é a mãe quem continua assumindo a casa, cabendo aos filhos participarem eventualmente de alguma tarefa. — Vocês tinham empregados domésticos? 70 Para um aprofundamento sobre o emprego doméstico e sua decorrência para a desigualdade de gênero ver Saffioti, Heleieth I.B. Emprego Doméstico e Capitalismo. Petrópolis:Vozes, 1978.; Chaney, Elsa M.; Castro, Mary G. (eds.) Muchacha/ cachifa/criada/emp leada... Trabajadoras domésticas en América Latina y el Caribe. Venezuela: Editorial Nueva Sociedad, 1993.; Melo, Hildete Pereira de. De criadas a Trabalhadoras. Revista de Estudos Feministas. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ/PPCIS/UERJ.2, v.6, 1998, p.323-357. 125 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — Ó, eu acho que a gente era bem mimado em casa, pelo fato de ter empregadas antigas, sabe, que nem a minha madrinha de casamento, é uma, cara, que foi empregada, há uns trinta anos, estava lá. Tinha essa preta velha, que pô, que me ensinou um monte de coisa, também criou metade da minha família. Então, a gente tinha uma mordomia legal nesse ponto. Algumas coisas, eu tendo a ser bagunçado com minhas coisas, como você vê aqui, eu sei onde está tudo, mas eu sou bagunçado, até porque como eu não tenho um trabalho fixo, estou sempre trazendo coisa para trabalhar e nem sempre arrumo ou jogo fora tudo. Eu sempre ajuntava muita papelada, muita coisa, então a minha [empregada] de vez em quando dava uma arrumação, e o que eu costumava fazer? Eu costumava arrumar a minha cama, não sei de onde eu peguei esse hábito, mesmo tendo quem fizesse. E uma época que eu andei natureba, assim, eu cuidava do meu café da manhã e tal, mas eu acho ... Eu tinha uns dezesseis, dezessete, sei lá. Mas era isso, uma parte da minha alimentação teve uma época em que eu fazia pão, essas coisas. Mas de modo geral acho que a gente era bem mimado... (Benício, músico) Lembro de empregado doméstico desde Assis, eu lembro da gente ter empregado em casa. Quando a gente era em três filhos. Pres. Wenceslau também lembro...É, uma pessoa que ajudava a minha mãe nas tarefas da casa. Quem cozinhava sempre foi a minha mãe, e que eu me lembro, a empregada ajudava na limpeza da casa. Mas algumas vezes, eu me lembro, provavelmente porque estava sem empregada, eu lembro de encerar, passar escovão...(Carlos, professor universitário) No grupo familiar de procriação a presença da empregada doméstica é também marcante. Entre os entrevistados, apenas um deles não conta com ajuda nem desempregado. Na de diarista, família de nem de origem mensalista, a porque empregada está doméstica desempenhava o papel de ajudar a dona-de-casa com os afazeres domésticos, liberando-a para atender outras necessidades da família e particularmente dos filhos e menos para um trabalho profissional. Na atualidade, a presença da empregada em famílias de dupla carreira (quando ambos os cônjuges trabalham), como é o caso nesta pesquisa, garante não só o funcionamento da casa como complementa o atendimento às necessidades dos filhos. A empregada não é responsável somente pelo serviço doméstico, suas atribuições incluem também levar 126 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias as crianças à escola e buscá-las, colocar os filhos para dormir, quando os pais chegam mais tarde do trabalho etc. A presença da empregada doméstica garante a autonomia para a mulher, que pode dedicar-se ao trabalho profissional. De certa maneira, a presença dela minimiza os conflitos de gênero, pois tira das mãos da cônjuge os afazeres domésticos que são repassados para as mãos de uma outra mulher de classe social inferior. Na ausência da empregada, os afazeres domésticos teriam que ser negociados e divididos entre os membros da família. O que se observa é que há ainda uma relativa dificuldade quanto à negociação dos afazeres domésticos. Essa negociação implicaria em adequação dos horários de trabalho de cada um dos cônjuges às necessidades dos filhos e da rotina doméstica. Veremos mais adiante que o tipo de ocupação profissional, tanto dos homens como das mulheres, contribui para determinar a intensidade e a forma de participação do casal na rotina familiar e doméstica. Pai: provedor, herói Como vimos, o grupo familiar de origem é organizado de forma tradicional, sendo o pai o chefe provedor e a mãe, dona de casa, responsável pelo gerenciamento da casa e pelas necessidades dos filhos. O pai, além da figura de provedor, é relembrado como o pai-herói da infância, o pai forte que sabe e pode tudo. Na medida em que o filho também se torna adulto essa imagem se desfaz, transformada em outra: a do homem com qualidades e com defeitos, do homem que também é frágil. Essa constatação sobre o pai é também o reconhecimento de seus próprios limites como pai. Afinal, na infância e na adolescência há um certo olhar sobre a figura paterna, diferente daquele da maturidade, quando filho e pai se aproximam, se identificam: 127 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — Como é que você descreveria o teu pai? — Esses dias eu vi, essas coisinhas que tem em banca de jornal. Vi uma de pai, que falava um negócio bem estereotipado e eu falei, “um dia vou pensar assim”, e no fim acaba sendo mais ou menos isso. Então... no começo da minha infância meu pai era o super homem, o super herói, um cara super alto, meu pai... Eu sou baixinho, ele é mais baixo que eu. Mas para mim ele era o mais alto do mundo, o mais forte... sabia tudo, tinha aquela coisa de autoridade muito presente, e tal. Então isso, até essa fase quase até os dezoito anos, quando a gente começou a divergir, aí foram também divergências profundas... (Luiz, diretor de sistemas) — Como é que ele era? Como é que ele foi para você? — Como toda criança, até os dez anos de idade, pelo menos, do que eu me recordo, era um pai herói. Teve alguns momentos, extremamente amigo, menos pai mais amigo, em outros momentos muito menos amigo e mais pai. É difícil colocar isso no tempo, mas, como eu podia dizer, papai foi sempre muito preocupado com as coisas dele mesmo, muito possessivo com as coisas dele (...) Depois, de uma certa época, ele deixou de ser possessivo com os bens, deixou de ser possessivo com tudo, numa outra Era. Agora que ele está entrando numa outra fase, ele percebe que tem muito mais para receber do que para dar, então, ficou carente, aquelas coisas. Meu pai está com sessenta anos, mas está com o Mal de Parkinson...(Péricles, juiz classista) Como chefe provedor o pai quase sempre está ausente; trabalha em período integral, às vezes também durante a noite e nos finais de semana, dependendo da atividade profissional, como foi o caso do pai de Leonel que mantinha a padaria aberta todos os dias da semana; ou o pai de Marcos e Péricles, ambos fazendeiros; ou ainda o pai de Saulo, dentista, professor e fazendeiro de ocasião. Se há um qualificativo comum para descrever o pai, este é o trabalho. Paternidade e trabalho estão intrinsecamente relacionados, mesmo quando o assunto era sobre lazer com o pai: — E você se lembra de brincadeiras com teu pai? — Olha, com o meu pai a única situação de brincadeira que ficou, muito forte foi de brinquedos de pilha, brinquedos elétricos, essas coisinhas. Na verdade, na época era muito caro, não era como hoje que a gente compra na feira. Então, ele comprava esses brinquedos e 128 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias não deixava a gente brincar. O barato era... ‘pai, vamos brincar com aquilo’, tal, então ele reservava uma tarde de domingo para descer todos os brinquedos e montar, e eu lembro de brincar com ele, assim mas na verdade acho que era ele que brincava. Tipo, não podia encostar naquilo ali, eram os brinquedos dele. E a presença dele em casa era muito rara. A impressão que me passa era que ele estava sempre trabalhando. Mesmo nos fins de semana, porque ele teve fazenda, nos fins de semana ou a gente ia para o sítio, fazenda. Ou ele ficava ou ele realmente ia para a fazenda. Então, em casa não lembro dele, muito. Nem em fim de semana. (Saulo, produtor de vídeo) — Então, meu pai por esse trabalho muito grande na padaria, um tempo muito grande, na infância e mesmo assim boa parte da adolescência, eu lembro pouco assim do meu pai porque ele estava muito tempo fora de casa. E eu, por outro lado, também saía para brincar na rua, então tinha um contato pequeno...no domingo, na hora do almoço... Então lembro mais do meu pai, numa fase dos 14 anos em diante, que aí eu comecei a estar lá junto com ele no posto, era o posto de gasolina, ia lá ajudar... mas uma pessoa carinhosa, na minha idéia sempre muito alto, grande... depois acabei ficando mais alto que ele, mas uma pessoa muito alta, muito forte, né. Mas carinhoso, carinhoso. (Leonel, engenheiro, desempregado) A afetividade do pai é lembrada pela dedicação aos assuntos escolares e pela preocupação em relação ao futuro dos filhos. Se ele não podia acompanhar a rotina escolar diariamente, o fazia quando o aproveitamento escolar não ia bem e nestes momentos dedicava algum tempo para ensinar a matéria ao filho. Esse dado reforça ainda o argumento de que o investimento na educação, na formação dos filhos era significativo para as famílias em projeção social: — E alguém te acompanhava nas tarefas escolares? — Meu pai, sempre foi assim atento ao boletim. Era o tipo rigoroso. Então, conforme o andamento do boletim, ele se empenhava. Fins de semana, me lembro assim... na... primeira série do ginásio, por exemplo, eu observo agora no meu filho, começa a ter a primeira vontade de malandragem, fazer cola, essas coisas. Eu me lembro assim, na época tinha francês e inglês no ginásio. E eu me lembro que eu ia mal, não gostava, não entendia e relaxava. Eu sempre fui bem aplicado, só em francês e inglês eu não fui com a cara e não me empenhava. Então quando veio minha primeira nota, não lembro qual mas deve ter sido muito baixa, eu lembro que tive vários fins de semana com o meu pai, que não entende de inglês nem francês, mas sentava comigo sábado e domingo inteirinho. Na prova seguinte eu já faturei e daí embalei, fiquei por conta. Entrei no ritmo. Ele era bom de 129 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias matemática, isso ele sempre acompanhava.. Ele era assim, muito ligado, não podia ter nota baixa nem em matemática nem em português. Isso eu lembro bem. Ele não admitia. (Carlos, professor universitário) — (...) Vários momentos, ele investiu na minha educação, quem sabe eu não tenha dado o retorno que ele esperava. — Você acha que ele tinha expectativa, quer dizer, ele tinha um projeto, assim, para você? — Eu acho. Não que ele me cobrasse, mas ele com muita dificuldade, ele sempre dava aulas de inglês para mim, até hoje eu não falo inglês, mas por uma culpa minha não porque ele não investisse em mim. Eu faço, eu estudo inglês há anos, hoje eu estou investindo em mim, mas meu pai investiu há muito mais tempo, então, alguns retornos, ele sabia ou porque ele estava fazendo isso, eu que não tive consciência na época de aproveitar. Mas ele nunca deixou de investir. (Luciano, diretor comercial) O pai rigoroso com as coisas da escola é também o pai severo com relação à disciplina, ainda que convocado somente quando a mãe não consegue resolver o assunto. A disciplina desta maneira aparece como uma responsabilidade de ambos, pai e mãe. A mãe, mais presente no cotidiano, é quem cuida de resolver os aperreios do dia a dia e, em geral, recorre mais aos castigos físicos do que o pai. Os relatos, no entanto, deixam transparecer a severidade, a autoridade paterna sempre presente e ameaçadora. Ser repreendido quotidianamente pela mãe era menos ruim do que sentir a “voz autoritária do pai”, mesmo que uma única vez. Esse poder era, de certa maneira, alimentado pela própria mãe, que transforma a autoridade paterna num instrumento de coação e de controle contra os filhos: — Quem cuidava da disciplina? — Os dois. Ele mais pela imposição de pai mesmo. Me lembro dele ter me dado um tapa só na vida, e minha mãe era no chicote mesmo. Minha mãe não sei se era fruto de ficar ali em casa com os capetinhas rondando em volta era mais intempestiva. Então lembro de muita surra que eu e meu irmão levamos por conta dela. (Carlos, professor universitário) 130 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — Minha mãe, no meu caso, o caçula. Dos outros eu não lembro, mas acho que era minha mãe também. Eu só lembro de um safanão do meu pai, o único que levei. Devia ter uns sete, oito anos. Estava lá pentelhando a vida dele na padaria e ele me deu...do jeito que bateu eu entrei pela casa adentro. Foi o único que levei do meu pai. Da minha mãe não, uma infinidade, né. De cinta...(Leonel, engenheiro, desempregado) — Era um problema, por que quem me dava bronca no dia-a-dia era a minha mãe, mas o pior era o meu pai. Então, quando eu tinha que mostrar o vermelho [notas escolares] era castigo direto. E é interessante que com tudo isso, minha mãe me protegia, por exemplo, para meu pai castigo era não ir no jogo do São Paulo, então, porque meu pai sempre me levou, desde pequenininho (...) Então, quando era época de provas, que a gente ia mal e tinha que mostrar o boletim e minha mãe sabia que eu queria ir no jogo tal, deixava passar: ‘não vou contar para o teu pai nesse final de semana, vou esperar segunda ou terça-feira’. Então, ela sempre dava essa canja, mas no dia-a-dia ela é quem me cobrava (...) (Luciano, diretor comercial) — Quem era, estava ali, era minha mãe, mas quem era a voz, autoritário, era o meu pai. A gente tinha até um certo medo da historia, porque meu pai, como trabalhava muito, chegava em casa só para dar bronca, assim: ‘Espera só o seu pai chegar’, ‘seu pai chegar e vai te dar uma dura’, era essa a ameaça. Então se o meu pai entrasse na... na discussão da disciplina, aí a coisa pegava. A gente tentava sempre manter a negociação no nível da minha mãe, que ela ainda era mais mansa. Havia muita ameaça, tipo vai pegar o chinelo, dar dois quentes e três fervendo, minha mãe costumava dizer, para tentar acalmar a moçadinha. Mas a grande autoridade era o meu pai. Tinha muita ameaça, puxão de orelha, tapinha na bunda, uma coisinha assim. Mas a coisa era oprimida na ameaça do ‘vou te trucidar’, não era bem essa palavra, não lembro qual era, mas era muito verbal. (Saulo, produtor de vídeo) Esse mesmo pai, forte, autoritário passa a ser desmistificado quando o filho, ao tornar-se adulto, descobre que na vida real, ele pode sim mostrar-se frágil e inseguro. Aqui repousa uma diferença em relação à geração da família de origem, para alguns dos entrevistados é possível, e necessário, mostrar a fragilidade em certos momentos. A masculinidade apoiada no conceito do homem machão, durão, é uma referência fundamental na constituição da própria identidade, mas permite também o questionamento das premissas que embasam este modelo de masculinidade tido como hegemônico na sociedade 131 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias latinoamericana. A fragilidade encontra um espaço para se manifestar e esboçar outras formas de conceber a masculinidade heterossexual: — (...) se você fosse fazer um retrato dele, como é que você o descreveria? — Meu pai era uma pessoa assim muito... meu pai era muito..., eu acho que a característica principal, que eu lembro, principalmente por ele já ter morrido, ele era muito íntegro, muito honesto, levava a honestidade e integridade até as últimas conseqüências. Ele sofreu muito com isso, porque no Brasil tem aquela coisa do jeitinho, que ele nunca conseguiu entender, e, ao mesmo tempo, muito autoritário, muito rígido com as coisas. Ele queria que as coisas funcionassem do jeito que ele idealizava, muito idealista mesmo. Eu vou te falar uma coisa, eu vou te falar uma única vez que eu vi meu pai frágil: morto. Foi a única hora que eu olhei para ele e disse “pô!”, foi a única hora que eu percebi que ele era mortal, porque ele sempre se colocou como um imortal. Então, eu procuro sim mostrar a fragilidade, quando é a hora, quando eu estou realmente frágil, mostrar a dúvida, quando eu estou em dúvida. Agora, por exemplo, eu estou numa fragilidade prá caramba e também mostrando força, porque para haver essa ruptura, para haver essa iniciativa,[a separação] que foi minha, foi preciso uma grande força, uma grande coragem, mas ao mesmo tempo, assumindo todas as minhas fraquezas, minhas fragilidades, meus complexos. Não vou falar com eles [com os filhos] na mesma linguagem que eu estou falando com você, mas vou falar e espero que eles entendam. Eu acho importante se manter maleável. (Mauro, produtor de vídeo) — Como é a sua relação com ele hoje? — Ele sempre foi a referência de poder para mim, de autoridade, pouquíssimas vezes eu o questionei, se ele falou eu não entrava em celeumas com ele, não discutia. Eu tinha uma... dificuldade de conversar com ele assim olhando no olho, ele começava a falar eu já abaixava, às vezes chorava e me sentia oprimido por esse pai. E ele acabou sendo uma referência masculina para mim, de poder, de força. Referência de trabalho. Eu sempre o vi um grande trabalhador, uma pessoa que... não mede esforço para trabalhar, atividade sete dias por semana, férias eu não lembro dele tirar, as férias que a gente tirou dá para lembrar três ou quatro, sempre trabalhando, trabalhando, trabalhando... Tanto é que aos 72 anos continua trabalhando, não pára de jeito nenhum. É... ele não tem... movimentos de carinho. Eu sinto falta disso, senti falta disso, hoje eu consigo lidar com isso muito mais fácil ‘ele não me dá carinho, fodase, eu dou carinho a ele’. (Saulo, produtor de vídeo) 132 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias A irrestrita dedicação ao trabalho com objetivo de garantir o sustento familiar é também explicativa da dificuldade daqueles homens expressarem afeto. Um relativo esmaecimento nas décadas mais recentes do ideal de chefe provedor (relativo porque é crescente a participação das mulheres no orçamento doméstico e no gerenciamento da família) abre fissuras que desencadeiam um processo de confrontação em relação às expectativas sociais e individuais da masculinidade e da paternidade. Paradoxalmente, há uma “necessidade” de expressar sentimentos, muito alimentada pela mídia e pela literatura psi. Ao observar o passado, os entrevistados são levados a captar e compreender certas atitudes de seu pai. A falta de tempo em decorrência da dedicação integral ao trabalho, é vista hoje como referência masculina, referência de trabalho. Mesmo assim, o pai que na infância é o herói, na adolescência é posto em questionamento, pequenos defeitos aparecem e os conflitos surgem na vida adulta e a vivência da paternidade torna o olhar sobre o próprio pai, de certo modo, condescendente: — Como é que você descreveria o seu pai? — Eu acho assim, hoje, eu descreveria diferente de vinte anos atrás, até porque hoje eu sou pai, até porque eu descrevo como sou hoje, com a crítica... Ele tinha um lado muito bem humorado e tinha essa coisa dele não ser ditador, então, tinha um lado mais folgado com ele, não era muito tradicional, a coisa de ser publicitário, um cara muito rápido na idéia e tal. Então, tinha essa coisa dele ser divertido, acho que a principal coisa de quando eu era pequeno, era isso. Depois, quando eu estava adolescente, eu fiquei meio cismado, eu falei ‘pô o cara não é ditador, mas também o cara não se coloca muito, ele não está aí nunca’. — Você sentia falta da presença dele? — Eu acho que sentia, ou pelo menos, eu acho que na hora do pau ele não estava lá mesmo, porque não era um assunto, o assunto doméstico não era muito dele, o esquema da casa. E depois, que eu tive filho, eu revi mesmo, eu pensei assim, ‘bom, essa coisa do homem ficar fora de casa o dia inteiro, tudo bem, ela tem um lado que 133 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias é uma imposição, tem um lado que é uma folga que todo homem pode ter’. Porque a coisa doméstica enche o saco, se você for ver, desgasta mais do que a vida profissional. Mas, eu dei todo desconto depois que eu tive filho, sabe? Eu pensei assim, era outra geração, de uma geração de transição, não sei. E acho que até dentro da geração deles, eles estavam tentando abrir para cabeça da gente rolar. Eu acho que eles fizeram o possível, eu acho que eu não tenho, hoje eu não tenho tanta crítica (...) eu acho que, por um lado, tem a cabeça de italiano e, por outro lado, tem uma coisa de modernizar os hábitos entre aspas, que é você cair na... sabe, significa um pouco não ter amarre, significa ser, bem ou mal, você respeitar a liberdade de todo mundo se movimentar. E essa coisa de ser casa de homem, eu acho que influencia seguramente. Eu sinto o fato de não ter tido irmão mulher, eu acho que a casa ia ser diferente, na dinâmica (...). (Benício, músico) O relato de Benício é paradigmático das mudanças e das contradições que engendram a paternidade e o lugar do homem no espaço privado. Já na adolescência ele percebe a ausência do pai como uma ausência de quem não quer enfrentar os problemas domésticos. Diferente dele, que hoje como pai e, muito provavelmente, por estar mais presente no espaço doméstico, em função de sua atividade profissional, acaba mais envolvido com a rotina familiar. Reconhece que a rotina doméstica “desgasta mais do que a vida profissional”. Porém, “dá um desconto” ao comportamento do pai, pouco envolvido com as coisas da casa, afinal ele era de uma outra geração. Ao mesmo tempo, o fato do pai “ não estar muito aí” é interpretado como uma forma de abrir espaço para a “ liberdade de cada um”, para a individualidade e neste sentido, representava para Benício, naquele momento, uma modernização das relações familiares. A contradição está na justificativa usada para explicar o comportamento masculino do próprio pai, no passado, e o dele, na vida adulta: a casa ser só de homens. Isso teria imprimido uma dinâmica diferente, menos sensível às necessidades domésticas, o que não quer 134 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias dizer que eles não fossem afetivos, eram sobretudo tímidos. A mãe, neste caso, era durona: — (...) o lance do meu pai é o seguinte: ele é muito afetivo agora que está mais velho. É até mais claro . Mas também era muito tímido, mas muito tímido. A afetividade ela era muito devagar para sair, mas sem dúvida é afetivo. Minha mãe é até mais durona do que ele. (Benício, músico) Outra expressão de contradição aparece quando o assunto é a disciplina dos próprios filhos. Todos os entrevistados situam a disciplina em relação aos filhos como uma responsabilidade de ambos, pai e mãe. Ainda que a mãe possa ser mais atuante por estar mais presente no cotidiano dos filhos. Há neste aspecto muitas semelhanças com as atitudes tomadas na família de origem, em particular com a questão da “autoridade paterna”. A autoridade e o autoritarismo acabam se confundindo quase como sinônimos em alguns momentos e são referidos como um instrumento necessário para impor limites aos filhos: — Bom, a gente estava falando dessa coisa da disciplina, dessa divisão da disciplina, aí você estava dizendo que tem, quer dizer, a Lú cuida da disciplina no varejo, mas... — Assim, eu estou muito presente também, eu também cuido desse varejo, porque o varejo é a bronca, é o cara estar brigando com a outra, você separa, essa coisa. Agora quando a coisa é mais grave, assim, ou é os dois, ou tem que ser eu, como se... não que eu mando mais que a Lú, mas, porque não sei, “Ó, vai falar com seu pai”, não sei de onde vem essa expressão “vai falar com seu pai”... — A Lú usa essa expressão? — A Lú usa porque ela também é filha de mineiro, o pai dela era bravo para burro, um puta mineiro estourado. E mesmo na minha casa, onde o meu pai não mandava nada, também minha mãe falava “Ó você vai falar com o seu pai”, isso é da cultura brasileira, não sei o que quer dizer. Outro dia a Lú reclamou para mim “Pô, o Marlon não tem medo de você como eu tinha medo do meu pai”, eu falei “Graças a Deus que ele não tem medo de mim”. Eu não sou, eu jamais vou dar um esporro no cara, eu sou contra isso, mas assim, uma certa disciplina, vou lá e dou uma dura, mas não vou. As coisas não vão 135 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias ser sem argumentos, mas eu sinto que o cara tem um certo respeito, assim que...Até por que quando eu fico invocado com um negócio não tem muita conversa, acho que não tem nem que conversar muito, porque eu acho que o cara é inteligente, ele sabe qual é a história. E, as vezes, ele faz para provocar ou ele está de sacanagem, então não tem conversa — Aí, é a bronca, mesmo? — Dou bronca ou dou umas palmadas no cara, também, que eu acho importante. Não acho nada lógico dar palmadas, mas o cara precisa tomar umas também, por que não sei por quê, acho que isso é da educação, e até faz parte do afetivo, assim... — Teu pai fazia isso com você? — Um pouco. Minha mãe dava um pouco de (porrada). Eu acho, assim, a gente lá em casa, a gente discute isso, a gente precisava ter tomado uns, a gente precisava ter apanhado e ter sofrido autoritarismo, para gente ter até mais limite ...é que se você é criado solto, até você fabricar teus limites, cara, isso demora até os trinta anos, então, acho que a gente está sendo prático dentro do limite, muito limite. (Benício, músico) Benício identifica a “autoridade paterna” como uma característica da cultura brasileira: é assim, o pai representa a autoridade e deve ser acionado quando necessário, mesmo que na prática essa divisão não seja tão nítida, pois como ele mesmo se refere ao pai:“(...)ele não manda em casa” . Por outro lado, ele questiona a necessidade de uma atitude mais enérgica para educar os filhos, o melhor é usar argumentos. Mas quando a “conversa” não funciona, Benício acha legitimo o uso de algo mais convincente e admite que seu próprio pai deveria ter recorrido a um certo “autoritarismo” para impor limites que ele mesmo hoje sente falta. Relação pai-filho: o conflito como uma dimensão da paternagem Ao descrever o perfil da família de origem destaquei a idade com que o entrevistado deixou a casa dos pais. Essa informação, em 136 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias particular, chamou atenção, uma vez que cinco entrevistados saíram da casa dos pais após os 25 anos, quando constituíram sua própria família. Nesta fase de sua trajetória de vida já haviam concluído os estudos e exerciam alguma atividade profissional. A princípio busquei uma explicação na hipótese de que esses jovens pertenciam a uma geração cujo modelo familiar era pouco autoritário e que, portanto, não havia estímulo para grandes rupturas, próprias das relações entre gerações. Além disso, tratava-se de um segmento social em que o valor da educação (escolarização) era maior do que o do trabalho. Isto é, a família investe nos estudos dos filhos, adiando o ingresso no mercado de trabalho para quando estivessem com o “diploma nas mãos”. Este investimento, além de garantir a manutenção do status social da família ou de ampliá-lo, possibilita alguma forma de retorno para os pais, em sua velhice. Contudo, os conflitos estão presentes e não só se mantém como expressam um rito de passagem, que pode ser interpretado como um confronto necessário de idéias, de valores e princípios; de questionamento e afirmação da própria identidade. É a partir deste confronto que a pessoa se realoca no mundo, redefinindo seus princípios. Esse processo ganha uma nova luz quando é entendido como um processo de destradicionalização, tal como pensado por Giddens (1997). Dispor de um emprego, de um salário que permita garantir o sustento é fundamental para desencadear o processo de independência da família. Vejamos o depoimento de Luiz (diretor de sistemas) contando-me sobre os conflitos com o pai e sua saída de casa: — Foi um momento de ruptura com a tua família? — Foi. Inclusive... eu não falei assim que estava saindo de casa, falei que ia passar um tempo na casa deles [de amigos]. Foi uma linguagem cifrada que eu estava... saindo, eles sabiam que eu estava saindo, mas oficialmente estava indo passar um tempo... sei lá porque. Aí, foi uma ruptura. Porque aí, no período imediatamente anterior, estava ficando bastante... difícil a relação 137 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias principalmente com o meu pai, que estava muito ruim, porque a gente estava divergindo completamente. E para mim o problema maior... não é que eu tinha uma idéia diferente da dele, era que ele não aceitava as pessoas terem outra idéia. Independente de ser oposta, mais ou menos igual, mas o fato da gente... eu, em particular, ter uma linha de raciocínio que não era exatamente a mesma da dele. Aí tanto é que depois que eu saí, aí a minha relação com ele melhorou profundamente. Porque aí, rapidamente ele aceitou isso daí... — Você já estava trabalhando naquela época? — Já. (...) do ponto de vista financeiro, sempre me virei. (...) eu sempre tive uma independência, entre aspas, né. Aí quando me formei, estava trabalhando no Itaú, aí já tinha um salário, vamos dizer, razoável, estava me formando, então dava para eu me virar, quer dizer, mais tranqüilamente. É preciso salientar que os conflitos se iniciaram porque Luiz, filho mais velho, manifestou desinteresse em seguir carreira militar, a exemplo do avô. Tendo sido imigrante, o pai de Luiz não pôde seguir a tradição da família e esperava que o filho o fizesse. A situação de imigrante é acrescida de outros fatores, como a educação, a socialização em outra cultura, e intensifica o conflito geracional. Esse aspecto é apontado por Boris Fausto (1998) em seu ensaio sobre a vida privada dos imigrantes em São Paulo: Seria equivocado, porém, associar a família tão-somente a um signo positivo, como suporte afetivo e material, pois, no seu interior, ocorrem fortes e às vezes explosivas tensões. Sob esse aspecto, membros da família imigrante — assim como de qualquer família — descarregam, em certas situações, no âmbito privado, problemas e frustrações reprimidos na vida social. Para além desse quadro geral, alguns elementos específicos integram a complexidade do relacionamento doméstico no âmbito familiar do imigrante e seus descendentes. Entre eles, destaquemos o conflito geracional, decorrente entre outros fatores da educação, trazendo como conseqüência a apreensão de dimensões diferentes da vida, o aprendizado da norma culta da língua do país, os contatos com gente de outras etnias, os quais conduzem a amizades e ligações afetivas não controláveis (Fausto, 1998:36) 138 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias É interessante observar que o pai de Luiz, japonês, já havia ele próprio rompido com a regra endogâmica, típica de sua etnia, casando-se com uma descendente de italianos, revelando ele próprio uma postura de resistência aos costumes de seu povo. Mas nem sempre a ruptura com o tradicional é definitiva; ao contrário persistem comportamentos que são claramente não-reflexivos. Coube a Luiz avançar na desincorporação de valores tradicionais nas esferas mais imediatas da vida cotidiana: na relação pai-filho, neste caso. O conflito com a autoridade paterna, no plano da vida privada, ganha força com a resistência à autoridade política, do período da ditadura que marcou a adolescência de Luiz. — (...) Tanto é que até essa idade, até os 18 anos, eu diria que nunca tive nenhum grande problema em casa, nenhum grande atrito, até a hora em que eu comecei a ter algumas atitudes próprias, da minha cabeça. Quer dizer, comecei a falar isso por causa do período de... tanto é que quando comecei a ir para a faculdade, um período que tinha uma agitação política muito grande... — Você fazia parte do movimento estudantil? — É, eu entrei na faculdade exatamente no ano que o movimento estudantil foi retomado no Brasil, foi o ano em que começaram a se reorganizar as entidades estudantis, depois de anos de ditadura, de repressão. Então essa coisa para mim estava ficando muito colocada de... se rebelar contra a, vamos dizer, a repressão... até hoje eu tenho... se vou num lugar, o cara fala de uma maneira muito rígida, muito enérgica, é um negócio que me incomoda. E isso de alguma maneira, tinha esse mesmo sentimento dentro de casa. Tinha algumas coisas que eu estava brigando fora de casa, e dentro de casa eu também sentia só cobrança... Na minha cabeça, eu não estava fazendo nada errado, continuava cumprindo minhas obrigações, vamos dizer assim, estava na melhor universidade do país, estava... estudando, e estava sendo... comecei a ser cobrado em casa. Quer dizer, comecei a sair de uma situação, que eu sempre quis tudo dentro dos conformes, mas não tinha nenhuma vida externa. A partir do momento que comecei a ter isso, começou a ter um conflito dentro de casa. A partir daí, minha relação em casa sempre... quer dizer, começou a ser mais complexa, principalmente com o meu pai. O direito de se expressar negado pelo pai ao filho, de ter atitudes próprias é o mesmo direito reivindicado pelo estudante inconformado 139 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias com a autoridade do “superpai” (superpadre na expressão utilizada por Regina Nava, 1995) corporificada “no conjunto de instituições que, dirigem, controlam e detém, em diferentes níveis, os poderes políticos, econômicos e sociais e, simultaneamente estabelecem os conjuntos de normas que conformam os modelos hegemônicos para organizar a sociedade”, tais como o Estado, os partidos políticos, as classes dominantes e os meios de comunicação de massa (Nava, 1995, tradução livre). O enfrentamento de Luiz à autoridade paterna, sua resistência às imposições do pai sobre seu futuro têm o mesmo significado da recusa de Mauro a cursar uma faculdade apenas para satisfazer um desejo do pai. Saulo encontrou outra estratégia de enfrentamento: fez o curso de engenharia, como o pai desejava, entregou o diploma ao pai, e seguiu a carreira profissional de seu agrado: produção de vídeos. Percebe-se que nestes embates familiares, valores e comportamentos são questionados e reavaliados. A negação, num primeiro momento, de tudo o que a família e o pai representam age como esteio para a conformação da identidade. O modelo hegemônico de masculinidade (e por suposto de paternidade) está presente, como verdade secular, mas é a todo momento confrontado, questionado e neste sentido, permite que outras formas de atuação, mediadas por valores tradicionais e outros póstradicionais (ou modernos), possam co-existir. Adolescência e sexualidade: o conflito geracional A fase da adolescência é reconhecida como momento de transição, como período de transformação física e comportamental, na qual se destaca a iniciação da vida sexual. Os homens que entrevistei embora tenham feito parte de uma geração de transição dos comportamentos 140 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias sexuais desvendaram os mistérios de sua sexualidade da mesma forma que seus próprios pais, isto é, entre amigos ou sozinhos. — Olha, um pouquinho de falta, eu senti, talvez, foi nessa parte sexual, que eu acho que ele devia ter falado mais comigo, vai, primeiro por ser homem. Você vai falar “mas, a tua mãe que deveria ter falado com você” Não, minha mãe, naquela época, seria um pouco difícil, mas ele podia ter chegado e “Ó meu, o papo é o seguinte: Ó lá na rua, vai rolar isso, isso, isso, fica esperto com isso, com isso, com aquilo”. Essa é uma parte que eu acho que ele faliu, do resto tudo que ele fez, fez muito bem feito e na hora certa. (Renato, gerente de correio) A vivência da sexualidade masculina é perpassada por repressões e desconhecimento; não havia espaço para falar naturalmente sobre a sexualidade. Mesmo entre aqueles que tiveram algum tipo de diálogo, a orientação sexual se limitou a aspectos “técnicos” da questão e não emocionais, afetivos. Neste sentido, não só a sexualidade feminina é cercada de interdições, de regras de comportamento ou exigências. A idéia de que a sexualidade masculina é valorizada e evidenciada, de que o exercício da sexualidade dos meninos é estimulado está mais presente no imaginário social do que na prática. O próprio ocultamento é uma maneira de falar sobre a sexualidade, como aponta Foucault. É certo que sempre houve um controle explícito da sexualidade feminina, porém, a sexualidade dos meninos sofre interdições menos rígidas, mas que têm conseqüências sobre a identidade masculina. Benício é um homem que vem fazendo terapia há algum tempo o que lhe permite refletir sobre os conceitos de masculinidade que lhe foram impingidos. Fez-lhe falta uma dose de afetividade, de sensibilidade, e que atribui entre outras coisas ao fato de ter sido criado numa família predominantemente masculina: — Você teve algum tipo de conversa sobre orientação sexual com seu pai? 141 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — Teve com meu pai e com minha mãe, saca, de dar um papo e tal. Mas, assim, acho que o que eu conversei com meu pai sobre a minha iniciação sexual, tecnicamente até resolve para você perder algum medo, mas assim o afetivo, a geração é bem diferente. Então, eu até quebrei a cara quando eu tinha que quebrar, mas eu levei uns anos para entender que pelo menos o meu temperamento funcionava mais afetivamente, para coisas que na geração dele, acho que se resolvia, não digo friamente, mas o macho tinha que desempenhar mais antes do que agora, e eu acho que dá para ser mais afetivo. — Essa mudança que você sente em relação a essa pressão de ter um determinado comportamento do homem, na adolescência, isso te marcou muito? — Para mim, se é sexualmente? Me marcou, me marcou. Acho que não tanto quanto se a minha casa fosse tão tradicional, sabe, se fosse família de italiano, assim, mas não deixou de influenciar. E eu acho que o fato da casa ser uma casa de homens também influenciou, talvez, até mais isso do que a pressão, a pressão natural de educar esse homem. Pô, porque uma casa de homens você não tem uma mulher para ver o outro lado da iniciação, por exemplo. E casualmente, o colégio do Estado que eu estudei, nos anos 70, quando eu estava entre os dez e quatorze, era só de homem. O diretor achava que homem e mulher não combinavam, isso também me influenciou, assim, a cabeça. Não é que você fica machista, mas você fica com um certo tipo de falta de finesse, que dá quando um sexo fica muito perto da própria prática, acho que isso vai para mulher também, muita mulher junto também acho que não dá certo. (Benício, músico) A fala de Benício é expressiva de um comportamento autoreflexivo sobre masculinidade. O modelo paterno é reconhecido por ele como aquele do “macho que tem que desempenhar”. Benício questiona este modelo e, mais do que isso, se permite ser mais afetivo do que socialmente é esperado do homem macho heterossexual latinoamericano. Ao refletir sobre a influência do modelo masculino recebido em sua socialização, atribui à falta de convivência no ambiente familiar, e mesmo na escola, com mais mulheres. Neste sentido, reconhece que há um código de conduta próprio aos homens, aos seus pares e que poderia ser corrompido se mesclado a uma maior convivência com o universo feminino. 142 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Se para muitos falar de sexo com os pais não era uma tarefa fácil, para alguns o contato com outras famílias mais liberais permitiu contrabalançar as dificuldades enfrentadas com o próprio pai. Saulo conta uma longa passagem de sua adolescência sobre isso: — Ah, essa passagem é interessante. Eu gosto de falar dela. Eu... sempre quis namorar, desde muito cedo, eu queria namorar. Não tanto pela parte sexual do namoro, mas pela coisa de querer estar junto com uma menina, era uma coisa que eu morria de vontade. E tinha uma dificuldade absurda, porque na primeira fase da adolescência, dos treze aos quinze, eu rapidamente ficava amigo das meninas, então na escola, eu era tipo o líder da classe, mas não o líder assim de ser o conquistador, é que todas elas eram muito amigas minhas (...) Mas logo que eu consegui dar um jeito na história e consegui uma namorada, devia ter uns 16 anos, 17 anos, eu grudei na menina. Grudei! Os pais da menina, super cabeça aberta, deixaram a gente namorar à vontade, então saí de casa, praticamente desapareci da minha casa e fui morar na casa da menina. Mas o morar, era um morar super careta, eu ia para a escola, à tarde eu ia passar a tarde na casa dela, e à noite voltava para casa. Não tinha aquela coisa de dormir na casa da menina. Mas meus pais ficaram tudo de orelha em pé: ‘como? que história é essa? Como os pais deixam?’ Essas coisas todas. Aí um dia, estou na casa dela, jantando, no meio da semana, meu pai liga dizendo que eu tinha que ir para casa que ele tinha que ir para o sítio e queria que eu fosse junto. Eu falei , ‘não estou a fim, não vou’ . Imagina, tinha 17 anos...trocar pelo sítio.. Só que quem falou isso foi minha mãe, não foi meu pai. Minha mãe pegou o telefone e falou, ‘olha, vem prá cá que você tem que ir para o sítio’, ‘Eu não vou, não sei quê’. Aí ela começou com a ameaça, ‘olha, vem, que o seu pai quer que você vá’, fez aquela pressão psicológica e falei ‘está bom, vamos lá’. E saímos de casa, umas nove horas da noite, até Cabreúva, Itú, para ir para o sítio. Falei ‘o que você vai fazer à noite, no meio da semana’... E a ida para o sítio era para uma conversa porque estavam ficando apavorados com as questões sexuais. Mas eu já com 17 anos, trepando com a menina à vontade, e ela... eles agora tinham acordado que podia acontecer alguma coisa. Aí, abordou a questão toda só para o lado da medicina, da medicina da época, nem tinha Aids. ‘Você pode pegar uma sífilis, uma gonorréia, uma coisa’, e falei ‘pai, estou namorando uma menina de 15 anos, sou o namorado dela, é com ela que eu trepo, não vou para uma zona, nada disso’. ‘Não, são as meninas mais direitas que acabam tendo as doenças’. Um papo totalmente equivocado, em termos de conceito e linguagem para aquela situação. Foi a única vez que houve abordagem direta, do assunto, do caso. A minha mãe não conseguia nem falar no assunto, zero e com ele foi esse papo. Só. A descoberta da mecânica do sexo, com nove, dez anos, foi com 143 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias amigos. ‘Ei, sabe como é que é?’, e pega e conta, e ‘nossa, mas é assim, não é possível!’, né. A partir daí, com amigos, nem com os irmãos a gente conversava, era um assunto super tabu, assim, não se falava. Por outro lado, a minha casa tem uma biblioteca fantástica. E tem muitos livros, não atualizados, porque... hoje eles estariam superados, mas com informações claras, técnicas, assim ‘a nossa vida sexual’, ‘sexo no casamento’, coisas assim, que na hora que eu comecei a me interessar eu mesmo fui na biblioteca, pesquisei, eu lia e tirava minhas dúvidas nos livros, pesquisando, eu mesmo... O depoimento de Saulo mostra a dificuldade da família, mesmo entre os mais instruídos, de orientar seus filhos para a vida sexual, particularmente com relação à gravidez. O relato de Saulo sobre a descoberta da entrevistados, mecânica que do também sexo se recorreram assemelha a amigos, a de outros primos para “aprender” sobre a vida sexual. Por tratar-se de um menino, a orientação é dirigida aos riscos das doenças sexualmente transmissíveis. A gravidez, como veremos na seqüência do depoimento de Saulo, era um assunto para as mães das meninas: — E como é que você, porque, pelo que você me fala da preocupação do teu pai, em relação a isso, era em relação a possíveis doenças que você podia ter. Mas e a questão de uma gravidez? Como você lidou com isso? — Não se abordou, com ele pessoalmente não teve esse tipo de abordagem. As questões da gravidez, para mim, aconteceram quando eu comecei a transar com a Liliana. Os pais dela, muito diferentes dos meus, eram muito abertos, o pai dela era médico, a mãe dela era professora de português, então tinha um nível cultural super legal, tal, quer dizer... com eles a gente acabava conversando. Me lembro que a menina, perguntou para a mãe se podia usar O.B, a mãe falou, ‘se você ainda é virgem, é meio complicado, precisa fazer uma coisa mais bem feita’, e ela ‘não, mãe, já não sou mais virgem’. Aí a mãe ‘mas como, você e o Saulo já estão transando?’, ‘é, estamos’. Aí ela sentou com a gente, a mãe da menina, para ter um papo a respeito de perigos, de como funcionava, anticoncepção... Só que eram todas conversas, que bem ou mal a gente já tinha tido eu e ela. ‘Olha, funciona assim, tem que esperar a menstruação, não pode transar no intervalo’... Informações que a gente sabia de boca a boca, e por pesquisar, eu tinha pesquisado nos livros. Eu queria saber dessas coisas. (Saulo, produtor de vídeo) 144 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias É interessante notar que se havia dificuldades para a família de Saulo abordar assuntos relativos à sexualidade, para outras o assunto podia ser abertamente discutido, inclusive como forma de controle. Saulo usufruiu do contanto com uma destas famílias, mais liberais e de sua própria curiosidade que o levou a pesquisar o assunto em livros, estabelecendo a partir daí seus próprios critérios para o exercício de sua vida sexual. A destradicionalização da Paternidade Anthony Giddens (1993,1997) argumenta que na sociedade moderna, ou pós-tradicional, como ele prefere, as tradições se mantém somente quando bem justificadas. Os relatos desses 10 homens, de um segmento das classes médias, corroboram o argumento de Giddens, na medida em que seu discurso sobre o pai, sobre o cotidiano familiar está permeado por críticas, avaliações e questionamentos sobre masculinidade, paternidade e sexualidade, como é possível apreender nos depoimentos. Vimos que o pai-herói, provedor dedicado à família se constitui numa referência masculina positiva, ainda que passível de crítica e até mesmo de reformulação. O olhar crítico sobre o comportamento do pai e a vivência pessoal com a paternidade, com a vida conjugal, mais o capital cultural adquirido em sua trajetória de vida (adquirido num momento de muitas transformações sociais, mudanças de valores e costumes) favoreceu que esses homens formulassem outras formas de conceber a masculinidade heterossexual, na qual a afetividade e a fragilidade puderam encontrar espaço para manifestação. O olhar crítico se espraia também sobre as relações com as mulheres. Os homens que entrevistei compreendem a atitude de 145 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias submissão da mãe que abdicou de uma carreira profissional, mas entendem que esse comportamento não cabe às mulheres de sua geração. Percebe-se que a ideologia da mulher independente está incorporada pela geração destes homens e a consciência de viver uma relação onde o outro tem autonomia em suas decisões desencadeia um processo no qual os arranjos familiares e a participação de cada um na estrutura familiar é articulada de maneira distinta daquela na família de origem. Pode-se afirmar que há um movimento favorável às mudanças nas relações de gênero, no espaço da vida privada. No capítulo seguinte procuro apreender dos depoimentos as diferentes formas de expressão das desigualdades de gênero, sendo uma delas o cuidado com os filhos. Temas como gravidez e parto, a rotina com os filhos e com a casa, a relação do casal com a chegada do filho, e o significado de ser pai emergem como um roteiro, descrevendo como esses homens expressam a paternidade e a paternagem e como essa experiência se faz em suas vidas. 146 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Capítulo 5 A paternidade nos anos 1990 A experiência paterna de que trata esta pesquisa é constituída a partir de uma relação entre um homem e uma mulher, ou seja, a partir de uma relação heterossexual, assentada na família. Esta experiência foi construída também ao longo da vivência na família de origem, constituída por um pai e uma mãe, seguindo um determinado padrão hegemônico de organização das relações familiares. Ainda que se saiba que a sociedade vem apresentado formas variadas de organização familiar, o modelo conjugal, heterossexual, mantém caráter hegemônico e normativo respondendo à necessidade de assegurar a reprodução biológica e sócio-cultural da sociedade brasileira. O pai, seguindo a definição de Regina Nava (1999), é aquele homem que se vincula afetivamente com seus filhos, de maneira permanente e cotidiana, exercendo sobre eles poder de gênero e geracional, em conseqüência da diferença de idade. Uma série de fatores afeta a maneira como um homem exercerá sua paternidade. Nava (1999) destaca os seguintes: 1) características individuais de sua personalidade psicológica e de sua inserção na hierarquia social, ou seja, de acordo, com sua classe social, raça, nível de escolaridade, tipo de ocupação, afiliação política e religiosa, idade etc.; 2) a forma como exerce sua masculinidade, ou seja, a forma como se relaciona com outros homens e com as mulheres; 3) a forma como se realiza e mantém a relação conjugal, que, por sua vez, depende do grau de flexibilidade e dos arranjos na divisão do trabalho doméstico e extradoméstico; dependendo também da relação de poder no interior da família e do processo de tomada de decisões, cotidianas e a curto prazo. 147 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias A forma como se materializa o compromisso afetivo, emocional, amoroso e erótico, se traduz em relações que podem ser duradouras ou não. Nava (1999) destaca a influência da rede familiar e de compadrio, que favorece a reprodução dos esquemas aprendidos na família de origem, bem como sua transgressão, buscando modelos diferentes, a partir da reflexão de sua própria experiência como filho; 4) depende também do número real e ideal de filhos, assim como da forma como a paternidade ocorreu, se foi de uma gravidez planejada, acidental, ou meramente resultado de obrigações sociais e conjugais. Esses fatores permitem mediar a análise dos depoimentos quanto à forma como os entrevistados elaboram a paternidade e exercem a paternagem. Procuro ressaltar dos depoimentos diferentes dimensões da paternidade expressada nos distintos momentos de sua trajetória na constituição da família de procriação, atendo-me sobretudo ao período da gravidez, dos primeiros anos de vida dos filhos. É preciso observar que a participação, o envolvimento do homem com seus filhos pode apresentar graus de intensidade e de significado de acordo com as diferentes fases da trajetória familiar. A relação marido-mulher ganha contornos distintos durante a gravidez e posteriormente com a chegada da criança, quando a relação pai-filho (e mãe-filho) se concretiza. A partir daí diferentes experiências irão se somando ao longo do exercício da paternagem: os primeiros dias com o bebê, a etapa escolar, a adolescência, a entrada dos filhos na faculdade e no mercado de trabalho, a relação do pai com o filho adulto e depois com os próprios netos. Nesta pesquisa, a análise estará restrita à primeira fase na constituição da paternagem, qual seja, da primeira à segunda infância, segundo critérios estabelecidos para a seleção do grupo entrevistado, que previa homens-pais, com filhos até 10 anos de idade. 148 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias O grupo de homens que entrevistei tem idade média de 38 anos. Todos com curso superior, sendo que apenas um não concluiu a faculdade. Dois deles tem especialização no exterior. Entrevistei um músico, dois produtores de vídeo, um gerente de correio (detém uma franquia), um diretor comercial e de marketing, um diretor de sistemas e processos, um juiz classista, um diretor de financiamentos, um engenheiro de produção (desempregado) e um professor universitário da rede pública. Todos vivendo maritalmente71 há pelo menos 8 anos, em média. Porém, um deles, Mauro (produtor de vídeo, 2 filhos), revelou-me ao final da entrevista que passava por uma crise conjugal, na qual a separação estava sendo fortemente cogitada, vindo a se confirmar tempos depois. Optei por manter a entrevista ainda assim, pela riqueza do depoimento e pelo fato dela expressar a dinâmica que envolve as relações familiares e os conflitos que permeiam as relações de gênero. Outro caso foi o de Luiz (diretor de sistemas, 1 filha), além de estar no segundo casamento (o primeiro durou um ano, sem filhos), viveu um período de separação da atual companheira, três anos após o nascimento da filha, vindo a reatar o casamento um ano e meio depois. Neste caso, as mudanças no relacionamento do casal decorrentes do nascimento da filha foram decisivas na crise conjugal e trazem interessantes elementos para a compreensão do impacto da paternidade na vida do homem e do casal. Ambos os casos desmontam a pressuposição de que podemos, a partir de critérios pré-definidos, controlar nosso objeto de estudo e, portanto, a realidade social. Nesse sentido, permiti-me uma transgressão nos critérios de seleção definidos a priori e mantive os dois depoimentos para análise. O modelo parsoniano de família constitui-se, pois, num recurso metodológico que, absolutamente, não dá conta da 71 Uso essa expressão para caracterizar a relação conjugal, não me limitando ao estado civil, já que alguns dos entrevistados não se casaram nem no civil, nem no religioso. 149 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias realidade social, muito mais dinâmica e complexa. Deste modo, os homens entrevistados para esta pesquisa compõem famílias conjugais, formadas pelo casal e seus filhos, sem a presença de enteados. As singularidades de cada uma das entrevistas, como no caso de Mauro e Luiz, são apenas um elemento a mais no tratamento dos dados. Todas as cônjuges têm curso superior e trabalhavam antes do nascimento dos filhos. Três delas não exerciam atividade profissional no momento da entrevista. É interessante observar que, com exceção da esposa de Carlos, que é professora universitária e cineasta, as demais exercem atividades profissionais que, em geral, apresentam significativa concentração de mulheres: duas são professoras do ensino fundamental e médio; duas são coordenadoras de creche; uma é bancária e a outra funcionária pública na área de saúde. Essas atividades, por sua característica, favorecem uma relativa flexibilidade nos horários, permitindo que elas possam conciliar o trabalho profissional com as demandas familiares. O tipo de ocupação profissional, tanto dos homens como das mulheres, contribui para determinar a intensidade e a forma de participação do casal nas atribuições domésticas e familiares. A idade média das mulheres por ocasião do nascimento do primeiro filho foi de 29 anos, seguindo a tendência, descrita pelos estudos sócio-demográficos de que as mulheres vêm adiando a gravidez e tendo menos filhos (média de filhos desse grupo é de 1,8, enquanto que a da família de origem era de 2,8), atendendo a outros interesses pessoais e profissionais. Destaco que a idade média dos homens por ocasião da primeira gravidez era de 32 anos. Dados sobre o comportamento levantados pela reprodutivo Pesquisa e sexual Nacional da sobre população Demografia masculina, e Saúde (PNDS/96), realizada pela BEMFAM (1999), mostram que 88% dos homens entrevistados com menos de 25 anos de idade não tinham 150 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias filhos; enquanto que na faixa etária de 25 a 34 anos de idade, 45% têm 1 ou 2 filhos72. Esses dados indicam que há uma tendência entre homens e mulheres de adiar a gravidez, investindo primeiro em sua própria formação escolar e profissional. Planejamento familiar e gravidez O método anticoncepcional adotado pela maioria dos casais foi preferencialmente o preservativo masculino. Esse dado chamou minha atenção, pois a camisinha masculina é um método administrado pelo homem e nestes casos o controle da reprodução cabe, de certa maneira, a ele. A camisinha é citada como a preferida e os outros métodos entram como substitutos ou mesmo como complemento. A opção pela camisinha indica dois aspectos: um, o da negociação, a mulher não podendo usar algum outro método contraceptivo, a camisinha entra como uma opção. Outro aspecto é que a camisinha é uma forma de o homem evitar a gravidez, de controle masculino da concepção. Ainda assim, os relatos deixam transparecer que há uma expectativa de que a mulher esteja cuidando para evitar uma gravidez indesejada, principalmente porque a camisinha era, em muitos casos, usada em concomitância com outros métodos contraceptivos femininos (DIU, tabelinha, diafragma). Uma gravidez não planejada é considerada assim descuido, “relaxo da mulher”, e não dele como expressa Renato. Nos relatos em que ocorreu uma gravidez não planejada, o resultado, em alguns casos, foi recorrer ao aborto, e noutros foi levá-la a termo, 72 A PNDS/96 é uma pesquisa domiciliar, por amostragem, desenhada a partir de uma subamostra da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/95) do IBGE. Envolveu o Rio de Janeiro, São Paulo, e as regiões Sul, Centro-Leste, Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Foram entrevistados 2.949 homens, com idade entre 15-59 anos, a partir de uma subamostra de 25% do total da amostra de domicílios. O trabalho de campo da pesquisa foi realizado em 1996 e os dados divulgados em novembro de 1999. 151 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias pois, nestes casos, avaliou-se que “ já era a hora” ou porque o desejo por um filho já se manifestara. — Foi uma gravidez planejada, já que ela tomava pílula? — Pode-se dizer planejada, que devia ter pílula, mas vou saber quando? Então, acho que ela parou ... — Você sabia que ela tinha parado? — Ah, sim. Não! Minto, minto, até foi uma discussão. Ela tomava pílula e ela engravidou com a pílula. Tomando pílula, aí, foi saber do médico, não sei o quê? Disse que na época, sei lá eu, que essa pílula não fazia efeito há muito tempo e continuava tomando. Talvez, ela tinha aquela coisa de ir no médico, sempre, ver. Relaxo, relaxo da mulher, sabe? De relaxo. Então, ela ficou grávida, dois, três meses, depois. Mas ótimo, tinha tudo a ver, o que eu mais queria era filho, não queria nem casar, entendeu? (Renato, gerente de correio, 2 filhas) — Foi uma gravidez planejada? — Acho que... a gente não estava assim, não falamos sobre. Mas achamos que já estava no momento. — Mas vocês estavam controlando, evitando... — É, a gente continuava na tabelinha, com certeza. (...) Camisinha de vez em quando. E ela usava... na época de casada ela usou anticoncepcional. Mas tinha, usava durante dois anos, aí parava... um ano, uma coisa assim. Faz tempo, não me recordo desse detalhe.(...) Fizemos uma tabelinha meio errada e deu um gol (risos). (Leonel, engenheiro de produção, 1 filha) A gravidez que resultou no nascimento do primeiro filho foi planejada por seis, entre os dez entrevistados. Planejamento que significa a interrupção deliberada do método contraceptivo com a intenção de engravidar. Um primeiro esboço do projeto/desejo de ser pai e ser mãe. O primeiro filho nasce, de maneira geral, dois ou três anos após o casamento. Há um investimento do casal em estabilizar a relação conjugal e a vida profissional, adiando a vinda do filho para um momento apropriado. As falas de Luciano e de Saulo expressam essa afirmação: 152 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — Foi uma gravidez planejada? — Foi, tanto a primeira como a segunda, planejadas. Nós sabíamos direitinho o que nós queríamos, sabemos até hoje, quando a gente casou tinha que comprar o apartamento, tinha que mobiliar o apartamento, quando tudo isso tivesse pronto, nós partiríamos para o filho, até pela, como a Elena, ela casou com trinta anos, a gente não podia esperar muito, também, então, foi planejada, a gente sabia que em dois anos, mais ou menos, a gente iria ter o primeiro filho e logo depois, a gente, teria o segundo, foi planejado os dois juntos, como está certo não ter o terceiro. (Luciano, diretor comercial, 2 filhas) — Dia, hora, local, ascendência, tudo. Aí foi assim tipo uma cerimônia, a gente.... decidiu uns meses antes, passou pelo ginecologista, fez exames, tudo em cima, o.k., legal.. Aí a gente fez um cálculo do período dela. Bom, está no período fértil, a gente fez um jantar, acendemos um incenso tal, fizemos uma noite super bonita, gostosa, tipo assim: é hoje, e realmente foi. (Saulo, produtor de vídeo, 1 filha) A gravidez não planejada e não desejada: a opção pelo aborto Entre os dez entrevistados três relataram-me suas experiências com o aborto antes da gravidez planejada. O assunto surgiu porque para eles tratava-se de um acontecimento pontual em suas vidas, envolta em menor ou maior conflito. Falar em gravidez significava falar também na gravidez não concretizada. O aborto, nestes casos, foi a saída para uma gravidez não planejada e, mais do que isto, não desejada. Em todas as situações os casais estavam usando algum método anticoncepcional que foi negligenciado ou ineficaz. A opção pela interrupção aparece como uma decisão conjunta, tomada antes mesmo da gravidez acontecer e relacionada a um momento da trajetória de vida, na qual outras eram as prioridades, como por exemplo a carreira profissional. A fala dos sujeitos deixa transparecer a complexidade da negociação entre os casais, que envolve não só a decisão por um método contraceptivo, como do próprio controle da reprodução, que por sua vez 153 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias condiz com aspectos subjetivos diferenciados, conforme o gênero, fundamentalmente relacionados a um determinado momento da trajetória de vida pessoal. Vejamos a fala de Saulo e em seguida a de Carlos: — Você falou que viveu várias experiências de aborto, no caso anterior à Carla, eram sempre decisões que partiam de você, da tua namorada? Como é que era essa coisa de decidir, de optar pelo aborto? — A primeira namorada, a Julia, era muito esclarecida... de dentro de casa tinha uma formação super legal e era muito responsável. A gente não permitia qualquer tipo de deslize e risco. Então com ela, fiquei quase quatro anos, três anos e meio, e nunca aconteceu absolutamente nada. A gente sempre seguiu as regras certinhas, não teve problema. Com a Patrícia, que foi outra namorada que eu fiquei bastante tempo, e as outras nesse ínterim eram rápidas tal, Eu... foi comigo que ela iniciou a vida sexual e eu acabei passando toda a experiência que tinha construído com a Julia, e a gente conseguiu ir segurando a onda durante algum tempo. Até que um dia rompeu uma camisinha, foi um negócio assim. E ela acabou engravidando, e entre a gente era muito claro, que a gente não ia ter filho, não queríamos ter filho, com isso tomávamos cuidado, e quando aconteceu eu não me lembro da gente ter titubeado, lembro assim ‘vamos tirar o filho’, nem pensamos na possibilidade desse filho. Eu estava no meio da FEI, ela estava na FAAP, quer dizer... — E com a tua mulher, vocês também viveram uma experiência de aborto. — Agora com ela... imagino talvez que a gente estivesse num momento da vida que valia a pena correr risco. Assim, se correr risco a gente vê, se for o caso até casa, ou se não, não casa, sabe. Começou a se considerar, ponderar a possibilidade de ter um filho. Super inconsciente, tá, porque para mim era bem claro, eu não quero ter filho. O discurso era esse. Na época até falava que não queria ter filho, mas hoje vejo que era não quero ter filho agora. ‘Não quero casar enquanto estiver nos vinte, não quero casar’. Acabei não casando nunca, mas naquela época era discurso panfletário. E como ela veio da área de saúde, formada em Enfermagem, estava fazendo já especialização... então a impressão que me passa é que eu dei uma relaxada, ‘bom, você cuida disso, tá? me diz se pode ou se não pode, se está no período ou se não está, tal’. E com ela não teve acidente, foi uma super valorização da tabelinha, a gente esticou as margens de segurança e entrou nas margens de risco. E com ela tinha tido papo... acho que a gente tinha tido uma transa só, no máximo, e veio esse papo de engravidar e eu falei ‘olha, eu não vou ter filho. Ponto. Eu não vou, não adianta, se for para ter filho a gente nem começa’. Aquelas coisas bem radicais. E ela não, ‘eu vou ter 154 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias filho, eu quero ter filho’. ‘Tudo bem, mas que não seja agora, comigo principalmente, e agora’. ‘Ah não, então tá’. ‘Então o seguinte, se por acaso acontecer de você engravidar, a gente tira, está bom?’ ‘Ah, tá’. Acordos feitos, legal, seguimos viagem. Deu três meses depois, estava grávida. Então no momento em que saiu essa gravidez da Carla, não houve discussão, a gente já tinha discutido. ‘Está grávida, bom, então vamos marcar hora no cara, ele vai te examinar (...) A gente começou a namorar no dia 04 de julho, e casou no dia 06 de julho, no ano seguinte. Então nesse período, houve o caso da primeira gravidez. E depois de três meses, ou quatro meses a gente fez o aborto, e depois de mais... seis meses, mais ou menos, ela engravidou de novo, então falei ‘vamos casar’. Casar não, vamos montar a nossa casa. (Saulo, produtor de vídeo, 1 filha) — Mas a decisão [de aborto] foi dos dois, foi uma coisa... como é que foi? — Nem imaginava ter filho nessa época, não fazia parte dos nossos planos. A gente nem sabia se... foi no começo da nossa relação. Tinha um ano, acho. Nenhum dos dois se sentia assim pai ou mãe. — E... depois que vocês estavam já juntos, quanto tempo depois a Vera ficou grávida do Marlon? — Ah, demorou. Demorou exatos dez anos. A gente casou em fins de 75, o Marlon nasceu em fins de 85. Ele é de outubro, a gente casou no comecinho de 76, vai. — E nesses dez anos, ela tomava pílula, como é que vocês evitavam? — No começo tomava, depois usava diafragma. Grande parte depois foi com diafragma, a anticoncepção. É engraçado porque... quando a gente cismou, bateu aquela vontade louca de ter filho, a gente ficou quase um ano tentando ter filho e Vera não engravidava. E a gente já estava achando que era punição (Carlos, professor universitário, 2 filhos). Carlos e a mulher passaram por dois abortos, um no Brasil e outro na Europa, onde moraram durante a pós-graduação e somente vieram a ter o primeiro filho dez anos depois. Ou seja, ter filhos era um projeto, mas um projeto para ser colocado em prática num certo momento da vida pessoal. O aborto se inscreve nesse contexto, aparentemente, como uma decisão racional, objetivando determinados fins. 155 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias A racionalidade da decisão, discutida, pensada, não evita uma certa ambigüidade nas negociações, revelada, por exemplo na fala de Saulo. Para ele era ponto pacífico não ter filhos naquele momento; para a primeira namorada, durante a faculdade provavelmente também, mas já com Carla, sua atual mulher, embora ela tenha aceitado fazer um aborto se surgisse uma gravidez, estava também implícito o desejo de ter um filho. O controle da reprodução foi delegado a ela, uma vez que ela trabalhava na área da saúde, e a gravidez ocorre assim mesmo, levando-os a um aborto e meses depois a uma segunda gravidez. Quanto à contracepção, não houve negociação, essa ficou restrita à atitude a ser tomada no caso de uma gravidez indesejada. É preciso dizer que o primeiro aborto foi traumático, resultando numa perfuração de útero. Ou seja, a segunda gravidez meses depois ganha um outro significado na vida de Saulo, levando-o a mudar de idéia, decidindo pelo casamento. Essa gravidez resulta num aborto espontâneo adiando a vinda da filha para três anos depois. A questão do aborto leva-me a pensar nos parâmetros das negociações que se estabelecem entre o casal sobre métodos contraceptivos e planejamento familiar. Sabe-se que, de uma maneira geral, a anticoncepção é delegada, em maior ou menor grau, à mulher. Afinal, é no corpo dela que ocorre a gravidez. Todavia, mesmo para os casais entre os quais se estabelece ao menos algum diálogo, onde a opção de ter ou não filhos num determinado momento é colocada em discussão, a decisão final pode acabar circunscrita à mulher, sem que o homem nada possa fazer. Digo isso, porque mesmo que o homem decida pela camisinha, se ela se romper e a gravidez acontecer, a decisão pela interrupção não é controlada por ele. A interrupção pode até acontecer a partir de um acordo prévio, mas é preciso que a mulher não queira aquela gravidez. Se for desejo da mulher dar seguimento à gravidez, o homem nada poderá fazer. Trata-se a meu ver de uma situação complexa, que envolve um jogo de poder desigual e, neste caso, 156 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias desigual em relação ao homem. O homem não tem o direito de decidir sobre o corpo de sua parceira, porém como equilibrar essa questão? Como pensar o lugar do homem na reprodução a partir desta perspectiva? Trata-se de uma questão para a qual não tenho resposta, mas que permite refletir sobre as diversas dimensões das relações de gênero, na qual o poder é parte constitutiva, podendo inclusive oscilar de posição. É possível apenas especular que a participação ativa dos homens no processo reprodutivo, desde a decisão de como evitar uma gravidez indesejada, até quando engravidar e quantos filhos ter, poderia favorecer a negociação também quanto às decisões a tomar com relação às demandas que a chegada de um filho impõe ao casal. A “gestação” da paternidade: a gravidez desejada A fala dos entrevistados mostra que a gravidez, mesmo que não planejada mas desejada, se configura no momento em que a paternidade começa a ser delineada. Entre magia e conflitos, a gravidez, que é concreta no corpo feminino, se constitui abstratamente no homem, embora alguns autores, entre eles Parseval (1986), relatem casos de homens, em diferentes culturas, que manifestam dores de cabeça, náusea, vômitos, aumento do stress durante a gravidez de suas mulheres, sinais conhecidos como “síndrome de couvade”. De acordo com essa autora, na Antropologia a couvade indica um ritual mágico observável em muitas culturas, que acontecem durante o período gestacional ou logo após o parto. Para a Psiquiatria as modificações corporais podem ser consideradas como uma elaboração psicopatológica da inveja da capacidade feminina, tendo um caráter defensivo em relação às angústias de tornar-se pai. 157 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias No Brasil, a pesquisa desenvolvida por Karin Von Smigay (1992), detendo-se na perspectiva psicanalítica, observa que uma nova representação da paternidade estaria surgindo com o impacto de descobertas psicanalíticas acerca da importância emocional da paternidade, além de redefinições culturais da masculinidade. Para alguns homens a gravidez estaria associada a sentimentos de medo por ter que assumir filhos e mulher, envolvendo crises e conflitos conjugais; para outros o sentimento seria de realização por se tornarem pais e chefes de família e, por fim, alguns homens tendem a negar ativamente qualquer transformação da identidade a partir da gravidez. Em geral, a literatura psicanalítica mostra que o tornar-se pai envolve um processo em direção à maturidade, permeado por ambigüidades, diante dos desejos que conflitariam com a repressão das expressões de afetividade e ternura em relação ao filho, repressão respaldada por uma cultura machista (Smigay, 1992). Minha intenção não é desconsiderar a importância que a mulher, de fato, tem nos primeiros anos de vida de um bebê, mas refletir sobre as implicações que certas idéias (muito veiculadas na mídia, na área médica, que acabam tornando-se senso comum e naturalizando a maternagem) têm para a conformação da assimetria nas relações de gênero, a partir das concepções que os homens entrevistados apresentam sobre a gravidez, por exemplo. Segundo o relato dos entrevistados, o casal estava sempre utilizando algum tipo de método contraceptivo e quase sempre métodos combinados. Nenhum deles “casou grávido”, mas para alguns a gravidez aconteceu sem planejamento. Como já viviam maritalmente, e amigos já tinham filhos, a relação se mostrava estável, e assumir a gravidez parecia algo “natural”: — Quanto tempo depois de casados vocês engravidaram? 158 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — Acho que um ano, um ano e meio. Ela engravidou sem querer, foi na tabela (...) foi meio sem querer, mas muitos amigos da gente estavam tendo filhos, veio de bom grado, foi um sem querer querendo. Agora, fatalmente, se a gente conseguisse não ter tido o primeiro filho ali, num ano e meio, por aí, não lembro quanto, a gente teria demorado bastante, a gente ia juntar uma grana, ir para Europa, dar uma curtida, viajar...(Benício, músico, 2 filhos) — Acho que... a gente não estava assim, não falamos sobre. Mas achamos que já estava no momento. A gente já estava sentindo, fizemos uma tabelinha meio errada e deu um gol! (Leonel, engenheiro de produção, 1 filha) As falas de Benício e de Leonel revelam que uma gravidez não planejada não é necessariamente indesejada, ainda que possa implicar em mudanças de projetos pessoais e profissionais. Fatores como o casamento estar indo bem, o tempo de relacionamento, amigos próximos com filhos pequenos, acabam contribuindo para que o casal assuma a gravidez. Benício reconhece que não tinha planos de ter filhos logo, queria viajar, melhorar as condições da família. No entanto, quando a gravidez ocorre, ele a assume e se envolve sensivelmente. — Você participava, ia no médico com ela? — A gente esteve muito junto, foi uma época que a gente estava muito junto, ia no ultra-som, ia no médico...Por acaso, a médica era minha tia, irmã da minha mãe, a que fez o parto da minha mãe, fez todos os partos da família. Então, a gente tinha essa boiada de médico, a gente ia na tia e tal, ultra-som íamos juntos, essas coisas, foi bem junto. Eu estava bem à disposição, por causa do meu trabalho ser, ter folgas. Até nos desejos de madrugada, eu fiz na boa, sabe como é querer chocolate, jaca, essas bobagens. E nós transamos muito na gravidez. Ela ficou grávida numa época que a gente estava sexualmente muito legal, do primeiro e na segunda gravidez também, nós transamos muito, até quando deu. E foi legal cara, eu não sabia que a mulher ficava tão bonita grávida, assim, barriga de grávida, você tem um... Até hoje, eu acho grávida um tesão, assim, coisa que eu não achava antes da gravidez dela. Então, foi uma gravidez sossegada, curti muito... (Benício, músico, 2 filhos) — A gente estava super... eu estava assim, pai bobo antes dela engravidar, né. Estava muito a fim. não sei, bateu, não sei explicar a razão, objetiva, mas o fato é que me pegou nesse 159 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias período da minha vida, me senti com uma vontade ferrenha de ser pai. — Como foi o período de gravidez? — Foi ótimo. Tânia passou bem, que eu me lembre não teve...a proximidade é muito grande, né. Eu nunca fui tão preocupado com a Tânia como eu fui... com certeza. — Você acompanhava a Tânia no pré natal? — Sempre. — Você participou do parto? — Participei dos dois. No da Tati eu tive uma participação mais efetiva, estava um pouquinho mais complicado. O Dudu ele nasceu prematuro. Parto normal, os dois. Mas o da Tati, eu lembro que estava um pouquinho mais trabalhoso. Eu lembro que no da Tati eu tive uma participação assim mínima, de segurar no braço, segurar um tubo lá de soro que tinham colocado na Tânia, mas fora isso era só estar do lado... lembro que nas contrações do Dudu várias vezes a gente ia no banheiro tomar uma ducha, eu ia com ela, coisas desse tipo. Ah, eu que cortei os dois cordões. (Carlos, professor universitário, 2 filhos) Se Benício e Carlos sentiram-se à vontade com a gravidez de suas mulheres, inclusive sexualmente, o mesmo não aconteceu com Renato. A gravidez do casal também não foi planejada, mas havia por parte dele um imenso desejo de ter filhos, maior até do que o próprio desejo do casamento. Ainda assim, Renato manifesta dificuldade para lidar com sua sexualidade durante a gravidez: — Como foi a gravidez para o casamento, a relação de vocês? — Olha, para mim foi tudo ótimo, para ela não deve ter sido muito ótimo, pelo seguinte, a partir do momento que ela estava com dois, três meses de gravidez, foi só pintar uma barriga, o sexo parou. Eu tinha problemas com isso, ela não. Mas eu tinha, punha a mão, ficava esquisito, me arrepiava aquilo... — Não era uma coisa dela, não querer transar? — Não, não. Uma coisa minha. Eu via ela com aquele negócio, falava “meu Deus, meu filhinho aqui, como vou fazer isso com ela, com meu filho.” Aquelas coisas, de cabeça de homem, que às vezes pinta um 160 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias negócio que não tem jeito e foi toda gravidez, assim, a primeira e a segunda. (Renato, gerente de correio, 2 filhas) A gravidez do primeiro filho e a expectativa com sua chegada cria um redemoinho de sentimentos e sensações, não só no homem, mas também na mulher que atinge o relacionamento do casal. Essa visão é exemplificada no depoimento de Mauro. A explicação é fundamentada em pressupostos essencialistas, que reforçam a idéia da existência de uma natureza feminina. O corpo da mulher muda com a gravidez, sua forma de ser muda em função dos hormônios. A explicação é biológica. A mulher deixa de ser a companheira exclusiva para preparar-se fisicamente para receber o bebê, esta mudança, mesmo que passageira segundo os próprios entrevistados, é entremeada por conflitos: — Como é que foi esse período da gravidez, da primeira gravidez? Como é que você lembra dessa questão? — Olha, eu lembro assim, eu lembro de um grande conflito, um conflito muito grande, de um lado eu senti uma sensação poética muito grande,” Nossa vamos ter um filho!”. Só voltando um pouco, é uma coisa que desde os 18, 20 anos, desde que eu me conheço por gente, que eu tenho atração pela idéia de ter um filho, eu sempre quis ter um filho. Então, assim, veio essa coisa, “Puxa! Estou realizando um sonho”, legal. Por outro lado, ela mudou muito do que ela era, mudou organicamente mudou, os hormônios dela mudaram, o humor dela mudou, o jeito dela me ver mudou. A gente começou a remexer muito com traumas de infância, com complexos de coisas que a gente não tinha mexido até então. Hoje em dia, eu vejo que um pouco que preparando o terreno para esse filho que ia vir. Então, é gozado, eu lembro muito da primeira gravidez, de como que a situação era de conflito, que oscilava entre a poesia, que legal, o carinho da barriga, que a gente estava escutando e não sei o quê e ao mesmo tempo muito ajuste, coisa que na segunda gravidez não aconteceu, a segunda gravidez foi mais, só bonita porque a gente já sabia o que ia acontecer, eu já sabia que ela estava alterada, os humores, que era só deixar passar que tudo voltaria.(Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos) Renato ao ver o corpo da mulher que se transformava trazendo-lhe o filho que tanto desejava (...o que eu mais queria era filho, não queria nem casar, entendeu?)sente-se bloqueado. O corpo feminino naquela 161 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias situação não era mais um corpo sexual, e por isso não devia ser profanado. Para Mauro, os conflitos foram de outra ordem. Há uma mistura de insegurança com a nova situação e de expectativa, mas há a mudança feminina e neste caso não é só física. Mauro sente-se incomodado com a situação, mas entende e atribui o conflito em parte à falta de experiência, tanto que na segunda gravidez as dificuldades foram superadas. Saulo (produtor de vídeo, 1 filha) também menciona um certo esfriamento da relação, e sua fala indica uma tentativa de compreensão em relação àquele momento: — Você acha que a gravidez afetou o seu relacionamento? — Ah, essa é uma pergunta óbvia, né...Nossa, é o equilíbrio da casa deslocado. Mudou... ao mesmo tempo que mudou...obviamente, a simples presença de uma outra pessoa altera uma série de coisas. Mas entre eu e a Carla sempre houve uma atenção muito grande nas coisas do casal. Então, durante a gravidez houve um período de esfriamento de desejo dela absurdo. Eu até brincava, vou pegar uma espiriteira para ver se esquento isso aí, porque não é possível. E... eu fiquei meio ressentido assim... nos quatro últimos meses não teve relação sexual, não havia possibilidade. Não havia lubrificação, não havia... ela não se dispunha. — Ela estava voltada para a gravidez... — Para a gravidez. Apesar de tudo isso, havia muito carinho, havia até uma masturbação, assim para... ela me atender mesmo, uma coisa assim de atenção. Eu com muita atenção a ela, ela com muita atenção a mim. Na hora que nasceu a Lara, a gente manteve essa atenção não só na cama mas no dia a dia (...) (Saulo, produtor de vídeo, 1 filha) Pré-Natal e Parto A participação do homem durante o pré-natal e mesmo durante o parto é uma tendência desde os anos oitenta, quando esse comportamento começou a ser estimulado particularmente entre casais de camadas médias, que tinham acesso a serviços de saúde privados (Salém, 1985). 162 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — Você acompanhava a Tânia no pré natal? — Sempre. — Você participou do parto? — Participei dos dois. No da Tati eu tive uma participação mais efetiva, estava um pouquinho mais complicado. O Dudu, ele nasceu prematuro. Parto normal, os dois. Mas o da Tati, eu lembro que estava um pouquinho mais trabalhoso. Eu lembro que no da Tati eu tive uma participação assim mínima, de segurar no braço, segurar um tubo lá de soro que tinham colocado na Tânia, mas fora isso era só estar do lado... ia com ela tomar... lembro que nas contrações do Dudu, várias vezes a gente ia no banheiro tomar uma ducha, eu ia com ela, coisas desse tipo. Ah, eu que cortei os dois cordões.(Carlos, professor universitário, 2 filhos) — Participei, dos dois filhos, eu participei. Do primeiro eu estava mais com medo, assim... os dois normais, mas a gente fazia um grupo de eutonia que a professora tinha um curso de parto para o marido e para mulher. É o cara ajudando ela a respirar, falando “olha vai acontecer isto, se estourar a bolsa não fique histérico, porque dá tempo de chegar na maternidade”. Então foi bom porque eu não imaginava como era, eu achava “pô, a mulher começa a ter contração, nasce em dez minuto, então, ela explicou isto, foi legal. No dia que estourou a bolsa da Luiza, foi de madrugada, assim, a Luiza foi muito tranqüila, começou a cantar...Aí eu fiquei histérico, levantei, pulei, fui, ela começou a cantar, aí eu fique tranqüilo, sabe. Ela estava contente, estava afim de ter.(...) (Benício, músico, 2 filhos) A presença na hora do parto insere o pai no processo de constituição da paternidade, de sua concretização. O homem não engravida, não carrega o bebê na barriga, mas pode ajudá-lo a nascer. A presença do pai na hora do parto não é um procedimento comum nos hospitais e maternidades. Trata-se de um procedimento adotado em hospitais conveniados ou particulares e depende muito da filosofia adotada pelo médico. Deve-se ter em mente que o fato desses homens pertencerem a um certo segmento social , facilitou esse tipo de participação. — Você participou dos partos? — Dos dois. Foram partos normais, naturais e participei dos dois. 163 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — Isso, o fato de você ter participado, isso marcou, teve algum significado? — Eu estava falando com uma amiga ontem, anteontem, não, foi ontem, porque eu estava comentando que eu ia dar uma entrevista e aí eu comecei a falar de alguns aspectos da paternidade. Uma das coisas que eu falei para ela é que eu fiquei muito com a sensação de que por ter participado dos partos, eu fiquei muito com a sensação de que eles saíram de dentro de mim, um pouco também, você entende? Tinha um pouco aquela sensação de inveja, de dizer “pó está saindo de dentro dela”, mas ficou um pouco a sensação de que eles saíram de dentro de mim, fui eu que aparei eles para eles nascerem, então, eu não conseguia cortar o cordão, eu estava muito emocionado, depois eu cortei, dei banho, eu pus no seio dela para ela amamentar. Então, tem um vínculo forte com esses momentos... (Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos) — E você participou do parto, você assistiu? — Sim, estava na sala. Ela achou que eu fosse desmaiar, eu também achei, mas eu queria ver. Só olhei, só. Pôr a mão, nada. Aí é demais. Ver aquele monte de sangue... É... um pouco trêmulo, tal...a outra dopada na mesa, e eu acompanhando a nenê para fazer os primeiros... aspiração... então foi muito gostoso. Depois botei, ela estava ainda assim dopada, segurava na mão...Dá uma coisa assim... esplendorosa. Aquele ser vivo, que nós geramos, vindo ao mundo... sabe lá o que vai passar aí, mas naquele momento indescritível. (Leonel, engenheiro de produção, desempregado, 1 filha) Se para alguns a presença na hora do parto é um sentimento indescritível, para outros não é isso o que define a participação. O pai deve estar presente, acompanhando a mulher, filmando, mas seu envolvimento não implica em cortar o cordão umbilical, dar o primeiro banho, papel que pertence aos médicos e enfermeiros: — Você só assistiu ou você teve alguma participação, embora ter sido cesária, você teve alguma participação? Pegar o bebê, botar para mamar, esse tipo de coisa? — O pai só serve para filmar e pagar a conta do hospital.. Não, porque acho que isso é coisa para profissional. No momento, eu fiquei mais com a Elena, ficava do lado dela, passando algodão, ajeitando o rosto dela, coisa assim, e quando nasceu eu vi cortando, mas logo que essas coisas não gosto de ver, tanto é que a filmagem, comecei ela depois que o nenê está limpinho. Depois 164 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias eu acompanhei, das duas, a pesagem, lavar o nenê, por aquele nitrato, soro... (Luciano, diretor comercial, 2 filhas) Para alguns homens, a gravidez e todo o ritual que o envolve, inclusive o pré-natal, é um momento feminino, do qual eles não sentem-se autorizados a participar, mesmo quando o médico sugere: — Não, porque... a Silvia, o primeiro parto foi cesárea, né. E a gente usa uma medicina que é chamada medicina antroposófica. Então você participa do parto, não sei o que... quer dizer, eu não sou muito chegado a essas coisas. É uma coisa muito legal, muito interessante, tal. Vale a pena, hoje a gente segue... não somos fiéis, mas as crianças estão numa escola antroposófica. Você participava, você vai no pré natal, quer dizer, os que eu faltei foi por extrema necessidade, assim, ou estava viajando, enfim alguma coisa assim. Mas o que eu me recordo é que eu ia em quase a todas... eu não entrava na sala de exame porque realmente não é o meu forte. Não porque não pudesse. Eu entrei algumas vezes, quando o médico chamava. (Marcos, diretor de finanças, 3 filhos) — O médico deixava você entrar na sala para os exames? — Sim, em tudo, sem problema, embora, nunca quisesse entrar. Nunca entrei, embora tivesse toda a liberdade de entrar, nunca entrei. — Por quê? — Por que eu acho que é o momento dela, a minha presença iria constrangê-la de alguma maneira. Era importante para ela que eu estivesse do lado de fora, perto dela. Mas, não, é um momento muito íntimo da mulher, não sei, eu sou contra essas coisas... — Você não assistiu o parto? — Não, de forma nenhuma. Acho que não devia, mesmo porque não gosto muito de ver sangue.(Péricles, juiz classista, 2 filhas) Participar do ritual, do pré-natal pode tornar-se uma atividade pouco prazerosa, pois em geral implica em horas no consultório médico e imprevistos: — E você, como que você viveu essa gravidez? 165 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — Eu acho que, algo que me marcou, por exemplo, eu comecei a sentir a gravidez, a estar grávido junto, a partir do momento que eu ouvi o coração do nenê, de repente, eu ia todo mês...Sempre não, eu minto, eu acho que eu fui três vezes, depois eu não agüentei mais, por que é um saco. — Por que é um saco? — Porque você ia, aí, você estava no consultório, já esperava horas e horas, porque ia chegar a sua vez, chegava uma senhora grávida, tinha que sair correndo, ele mandava esperar. Teve dia de eu ficar, teve uma visita que nós ficamos seis horas no consultório, nessa de ir, ter que sair, chegar mulher quase para dar luz, porque a situação é isso, engraçado e constrangedor ao mesmo tempo. Mas eu ia, colocava o vídeo, depois eu ficava em casa com ela vendo, nós nunca quisemos saber o sexo. Aí você ficava lá, tentando adivinhar, olha aqui, eu acho que é isso, aquilo. Então, teve essa fase de vídeo, acompanhando, ouvindo o coração. (Luciano, diretor comercial, 2 filhas) Apesar de alguma resistência masculina, os relatos mostram que o incentivo do médico na fase do pré-natal e do parto contribuem para que o pai sinta-se participando do processo gestacional e essa participação é significativa na experiência da paternagem. O estimulo do médico mobiliza o homem a de fato acompanhar a mulher. É claro que esse acompanhamento é movido também por um desejo pessoal, de estar presente. : — Na fase do pré-natal, você acompanhou a sua mulher no médico, como é que era? — Fiz questão de ir em todas as consultas, acompanhei muito de perto, li, estudei sobre o assunto (...) Olha, o médico obstetra da gente era um médico, assim, enquanto cientista, ele era muito fera e ele fazia questão, por isso a gente escolheu ele, de que os pais entendessem muito bem o que estava acontecendo. Então, era proposta dele, quem estava grávido era o casal, apesar de que organicamente a mulher estava grávida, tem os hormônios, o feto crescendo, a barriga crescendo, o corpo se deformando, tudo, mas o casal é que estava engravidando. Então, ele indicava literatura, xerox de textos, ele falava muita coisa, ele tinha uma vertente um pouco mística, não religiosa, mas mística de todo um encaminhamento dessa chegada dessa criança, de como ela deveria ser recebida, mesmo antes de nascer e tal. E nós tivemos dois filhos com este mesmo médico, que eu considero um cara super... (Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos) 166 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Observei também que há um movimento desses homens em procurar profissionais específicos, em geral, ligados à medicina alternativa, na qual se destaca a vertente antroposófica. Não raro, o médico escolhido é parente ou conhecido: — E você participava dos exames, do pré natal, você ia junto com ela... — Todos, inseparavelmente. O dia do exame já avisava na empresa, não posso. — Você participou do parto? — Fazendo força. Que a gente fez, a Carla fez o parto de cócoras, então para isso ela fez ioga, fez exercício e na hora do parto. A Carla, uma das colegas de faculdade dela, seguiu obstetriz. Aí, o momento do parto foi tudo preparado, o campo, de fazer o parto, uma dessas escadinhas, para subir na maca, onde a Carla ficou sentada e eu fiquei de pé atrás segurando a Carla. A Carla ficava sentada ali e eu de pé. Na hora que ela fazia força, ela fazia força e segurava em mim, então eu digo que eu fiz a força do parto de segurar o peso dela... — Vocês tinham ensaiado antes, tinham treinado antes? — Não. Foi... fomos sendo orientados na hora, pela Priscila e pelo Rogério. E não foi assim rápido, tem todo um trabalho, e vai contrai, contrai e na hora da expulsão inclusive ele diagnosticou que tinha o cordão, e ele ficou meio ressabiado, deu um toque para a enfermeira, para ela ficar de olho tal, mas conseguiu dar um toque no nené e saiu certinho. A Lara saiu certinha. E aí ‘é uma menina!’, Ah, foi lindo! (Saulo, produtor de vídeo, 1 filha) Sentimentos e contradições do ser “pai” A chegada do primeiro filho é marcada por uma certa magia, que desperta também sentimentos de conflito, de questionamento. Esses questionamentos revelam a pressão do ideal masculino de pai provedor, de homem bem sucedido, que deve ser capaz de sustentar os filhos. Este ideal está baseado na figura paterna da família de origem e a capacidade de ajustar-se a ele é confrontada com outros ideais. Há 167 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias também o reconhecimento de que uma outra fase de sua vida se inicia com o nascimento do filho: — Voltando a gravidez, especialmente na do primeiro filho, quais eram os seus temores? Que medos você tinha? — (...) eu tinha fantasma, “meu Deus não vou conseguir” o fantasma que vinha muito dessa história do meu pai de ele ter pré determinado que é assim, você só vai sustentar a sua família se você seguir esses passos, passos que eu não segui, quer dizer eu fui para Ciências Humanas, voltei para as artes que meu pai tinha sempre muito medo disso, “pô artista é vagabundo”. ‘É miserável, vocês vão viver na miséria, não vão conseguir, o seu casamento vai dar errado, seus filhos vão ficar na miséria’. Então, tinha essa coisa cultural de imigrante mesmo, que nessa hora voltou. (...) Então, assim, eu vinha de uma situação econômica financeiramente instável e, eu tinha muito esse receio “puxa, vou sair da produtora, vou largar uma empresa que eu fiquei oito anos, para cair num vazio, será que eu vou conseguir sustentar e tal?” E assim, na verdade, muito pouco tempo depois, eu percebi que eu podia me sustentar com facilidade, vendendo meu conhecimento, meus serviços de todos esses oito anos, que era um conhecimento que eu tinha e que eu não sabia que eu tinha, do que eu aprendi e que o mercado precisava dele. Vai fazer quatro anos que eu estou assim, como free-lancer, trabalhando absolutamente como free-lancer e tenho conseguido sustentar todo mundo.(Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos) — Como é que foi, nasceu aquele menino, a partir daí os primeiros dias do bebê novinho em casa? — (...) Fiquei junto os quatro dias no hospital, mas eu estava praticamente sem emprego, então, eu fiquei direto, e teve muita coisa emocional, tipo, instantaneamente eu entendi meu pai e minha mãe diferente do que eu entendia. É a coisa de pegar o moleque no colo, sem nunca ter pego uma criança, de repente pegar e a coisa, naturalmente, sem saber pegar, mexer, trocar, olhar. Então, foi super natural, para mim foi um espanto eu ter isto dentro de mim e não saber, e quando eu voltei para casa foi esquisito porque eu tive uma deprê de uns dez dias, eu fiquei muito ruim, fiquei muito deprimido. Não sei, de pensar, pensei no meu pai, no meu avô, a coisa da morte veio muito na minha cabeça, de eu estar ficando velho, de estar cruzando ciclos e pensar, bom, que tem coisa que não tem mais, que não vai ter mais, chances ou liberdades ou que fosse, mas teve uma caída real da minha idade, do meu ciclo, talvez isso....(Benício, músico, 2 filhos) 168 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias A mudança na vida do casal, gerada pelo nascimento do filho, provoca também conflitos para a mulher. Mauro, por exemplo, sentia-se culpado por ter que ir para o trabalho e não poder ficar em casa com o bebê, e percebe que a mulher, antes independente, se sente incomodada com o fato de estar dependendo do marido. — Você trabalhava, você saía de casa, mas você também procurava estar envolvido. Ela ficou nesse período um ano em casa, em função do filho. Você acha que isso, de uma certa forma, interferiu no fato dela estar mais voltada para criança, havia uma cobrança, como que era isso? — Acho que era um conflito pró dois, o fato de, por exemplo, se eu saía para trabalhar, eu saía culpado, eu me sentia culpado por estar saindo para trabalhar, mas tinha que trabalhar, porque alguém tinha que trazer grana, ela estava de licença. Se eu ficava em casa, eu me sentia culpado porque não estava trabalhando. Então, esse conflito super grande, o tempo inteiro. E ela foi uma pessoa que trabalhou desde muito cedo, desde os quinze anos, ela tinha essa coisa de trabalhar como prazer e como sentido de independência e de repente pela primeira vez na vida, não tinha mais sentido de independência, ela dependia efetivamente de que eu saísse para trabalhar, para trazer dinheiro para ela comer. Então, na cabeça dela ficava muito esse conflito.(Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos) Os conflitos atingem o relacionamento do casal, na medida em que se conscientizam de que a relação, antes de dedicação exclusiva de um para o outro, será alterada. Além disso, um deles estará menos disponível e, mais do que isso, terá alguém dependente de sua atenção por um longo período. O relacionamento ganha um outro status, que nem sempre é conquistado com tranqüilidade. — Olha, existia sempre a sensação de estar sendo preterido, em detrimento de outro ser, apesar de ser amado, ser super desejado e tal, eu acho que tinha sempre essa pontinha, esse fantasma, de “pó de repente ela vai se dedicar a ele”, coisas que efetivamente acontece e que tem que ser trabalhado, e coisa que no primeiro filho foi difícil para mim e para ela. Quer dizer, ela se sentia um pouco culpada de não me dar tanta atenção como ela me dava e eu me sentia também abandonado. Eu acho que acaba, se você viver isso com atenção, eu acho que acaba sendo uma terapia 169 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias quase, quer dizer, você é obrigado a se rever e dizer “pô”, né, ali dava essa sensação de abandono, “pô”, eu estou sendo abandonado, mas espera aí, que está acontecendo?” e você se situa melhor. E também, eu te digo que na segunda gravidez e no segundo filho tudo isso soou muito mais tranqüilo, porque você sabe que tem um cuidado X, mas que existe um momento onde acaba isso e volta e não volta como era, não, Sandra. A gente não volta a ser namorado ou um casal sem filho, a gente tem que voltar a se relacionar de uma maneira legal, dar atenção, a gente é obrigado a investir na qualidade, porque a quantidade diminui muito, quantidade eu estou dizendo de tempo, a quantidade de tempo que se fica junto, você consegue olhar um para cara do outro e se relacionar de verdade, você está no meio de uma transa o neném chora e tal, não é a mesma coisa. Então, eu vejo muito isso, eu vejo muito ter filho, um dos aspectos é o processo terapêutico. Mesmo se você não souber viver isso com atenção, não é fácil ter um filho.(Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos) Se antes da chegada do filho o casal mantinha um relacionamento no qual a autonomia e a individualidade de cada um podia ser preservada mediante uma negociação equânime, nesta nova fase é possível perceber que as regras do acordo conjugal são forçosamente alteradas em função das necessidades de uma terceira pessoa, sem nenhuma autonomia. Os depoimentos deixam transparecer que as mulheres são particularmente afetadas por essas alterações. As necessidades do bebê alteram a rotina do casal, mas afetam sobretudo a vida profissional das mulheres. O pai ajudando a cuidar do bebê: o desafio de dividir as tarefas O tipo de atividade profissional que o homem exerce determina, de certa maneira, uma maior ou menor disponibilidade para participar do cuidado com os filhos. Benício, por exemplo, é músico, tinha uma banda, e o fim dela justamente durante o nascimento do primeiro filho permitiu que ele pudesse estar mais presente para cuidar do bebê. Favoreceu inclusive o ritual antroposófico para o desmame da criança: 170 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — Mas você participava também depois dessa época que ela voltou a trabalhar, você tinha uma rotina com o bebê? Ele estava com um ano, um ano e pouco, como é que vocês faziam? — (...) Quer ver, isso que eu digo, o meu trabalho não é de eu estar o dia inteiro fora e tem a coisa, também, de eu chegar sempre de madrugada, eu acabo, porque estou acordado (...) muitas vezes eu cuidava e também que o antroposófico na hora de desmamar o nenê, a mamada da madrugada é trocada por um chá e quem deve dar o chá é o pai , por conta da criança não sentir o cheiro do leite da mãe, desmamar mesmo e dormir, tipo das oito às oito. Essa mamada das cinco, quatro, cinco, seis da manhã era eu que dava o chá. (Benício, músico, 2 filhos) De maneira geral, os entrevistados se mostram interessados e disponíveis para ajudar a cuidar do bebê. Porém, o fato do homem em geral não poder contar com a flexibilidade de horário de trabalho, em particular durante os primeiros meses do bebê, limita a sua participação na divisão das tarefas. A licença maternidade torna a mulher mais disponível do que o homem para a rotina estafante dos primeiros dias com o bebê: — Quem costumava levantar à noite? — No início os dois, depois só ela mesmo. Porque ela teve um período mais longo, os quarenta e cinco dias, quarenta dias da licença, depois, estava dando leite, mais seis meses pela frente. Eu como não tinha isso, voltei a minha, aí eu não acordava de madrugada para nada. (Péricles, juiz classista, 2 filhas) — Quem costumava levantar durante a noite, a Lara chorava à noite, tinha aquela rotina de mamar durante a noite? Como vocês se ajeitavam? — Na primeira fase, bem no começo, eu acabava acordando também, levantando, tal, mas a Lara mamava exclusivamente no peito. Pouco tinha para fazer. Nem precisava trocar a fralda ou outra, não era rotina. Era mais um apoio logístico da coisa. E eu tinha a história que devia acordar cedo para trabalhar. Aí a Carla, bem ou mal, podia fazer o sono junto com a Lara, então tinha meio que um acordo, que à noite se houvesse algum tipo de intervenção, a Carla daria conta. A menos que precisasse. Se ela falava ‘Saulo’, aí eu levantava. E a Lara sempre teve um sono muito bom, muito tranqüilo. Então nos primeiros dias ela acordava para mamar, era bem espaçado, mas rapidamente ela entrou assim na última 171 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias mamada às onze e depois de manhã.(Saulo, produtor de vídeo, 1 filha) A divisão das tarefas e do cuidado com os filhos pode seguir uma racionalidade determinada pela disponibilidade de cada um dos cônjuges e pela função de cada um naquele momento, no grupo familiar. A mulher de Luciano, deixou de trabalhar fora logo que se casaram, pois planejava ter filhos assim que o apartamento estivesse montado. Para Luciano era, então, natural e esperado que ele fosse poupado da rotina com a filha, pois necessitava de várias horas de sono para poder trabalhar no dia seguinte. A racionalidade de Luciano surpreende: — Quem é que levantava a noite quando tua filha chorava? — Sempre foi a Elena, eu nunca levantei. As vezes eu não acordava, as vezes eu acordava, mas fingia que estava dormindo. — Virava para o lado? — É, porque eu sempre fui de precisar dormir bem para acordar no outro dia, acordar bem para trabalhar, então, 8 horas de sono, sempre foi assim, independente da ...é uma coisa de dormir cedo. Como a Elena não trabalhava aí, virou regra geral, aqui nessa casa. A Elena ela fez cesária, a operação dela foi super boa, eu não dei moleza, não.(Luciano, diretor comercial, 2 filhas) Esta postura de Luciano se mantinha no momento da entrevista, já que Elena não voltara a trabalhar. Para ele, a divisão das tarefas segue a seguinte lógica: ele cuida do sustento da casa e ela das tarefas domésticas. Elena cuida inclusive de administrar o dinheiro, faz o imposto de renda do marido e cuida de toda a rotina com as meninas. Mas ele amplia o exercício de sua paternagem para além do provimento material, ao se atribuir outras funções como pai, como por exemplo “educar para a vida”. Por estar mais presente no mundo externo, considera que está melhor habilitado para orientar as filhas quanto às questões do mundo da rua. Luciano se atribui também a tarefa de 172 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias “corrigir” atitudes da mãe em relação às filhas e que considera equivocadas: — Olha, o meu papel é ser um gerenciador, eu acho que eu até, é meio machista ser gerenciador... — O que significa ser gerenciador? — Ah, como eu estou mais de fora, eu consigo ver coisas que a Elena no dia-a-dia não consegue ver. Por exemplo, eu acho que saber tirar a manha de uma criança é fundamental. A mãe, que está no dia-a-dia, que é o caso da Elena, não sabe mais o que é manha e o que é uma dor mesmo. Eu acho que consigo distinguir, e aí encaminhar as coisas, eu acho que isso é ser gerenciador, conseguir encaminhar as coisas, sem estar no dia-a-dia. A Elena, acho que está fazendo o trabalho mais braçal, o negócio mais do dia-a-dia. Eu consigo colocar, eu não preciso estar levando o tempo todo na escola, indo em reuniões com a professora para saber se a Carina vai bem, sabe ler, se ela sabe qual que é a letra dela, coisa dessa forma, eu não preciso estar no dia-a-dia. (...) Então, são momentos, assim, que não é a educação do dia-a-dia, é educação de vida, uma experiência de vida, e essa parte acaba puxando para o meu lado: por que tem bêbado, por que tem homem mal? Essas coisas... por que os carros se batem? Essa percepção que ela tem no dia-a-dia, essa percepção do dia-a-dia fica comigo, na minha percepção do dia-a-dia, e as questões educacionais, da escola... (Luciano, diretor comercial, 2 filhas) O papel da avó Embora os casais tendam a organizar sua rotina doméstica e a enfrentar eventuais dificuldades, a rede de parentesco e de amigos ainda é um recurso acionado pelas famílias. A avó, em particular, é uma presença constante nos relatos, sobretudo nos primeiros dias com o bebê. O papel da avó, em geral mãe da cônjuge, é dar alguma ajuda, orientação, acompanhar a filha nos primeiros dias com o recém nascido: — Como é que foram os primeiros dias com a chegada da Lara em casa, vocês tinham alguém para ajudar a Carla, a mãe dela veio, tinha empregada, como é que foi? 173 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — A gente tinha uma empregada duas vezes por semana. Naquela época não tinha fralda descartável barata como tem hoje, então tinha aquela coisa de ficar lavando fralda uma atrás da outra. E... a minha sogra vinha durante os primeiros quarenta dias, aquela coisa da quarentena, cinco horas da tarde, com uma cesta com frutas e uma sopa. Era assim, a função dela nos primeiros dias foi essa. E eu adorava, porque eu adoro sopa, então ‘oba! hoje tem a sopinha da sogra’. Todo dia chegava a sopinha da sogra, tal, que era para a Carla eu acabava com a sopa. No quadragésimo dia, a sogra chegou e falou ‘olha, hoje é o último dia da sopa, e acaba com essa história’. Todo o tempo, quem cuidou de tudo foi a Carla. Ela é especialista na história, não tinha porque alguém...(Saulo, produtor de vídeo, 1 filha) A presença da avó não dispensa a empregada, também presente para auxiliar nos afazeres da casa. No caso de Luciano, optaram por contratar uma enfermeira que pudesse orientar Elena no cuidado com a filha e paralelamente ela ia à casa da mãe, onde podia contar com sua ajuda, já que não dispunha de empregada, naquele momento e nem da presença do marido: — Quando a Carina veio para casa, tinha alguém para ajudar a Elena? Vocês tinham empregada, como é que funcionou, como vocês organizaram essa rotina? Você estava trabalhando? — Nos primeiros dias a mãe da Elena veio ajudá-la. Não tinham empregada, mas contrataram uma enfermeira para as primeiras orientações. (...) Era uma senhora que tinha muita experiência com nenê, mas não era uma enfermeira, uma pessoa com experiência em nenê. Ela ficou uma semana, quinze dias, aqui. Só para encaminhar a Elena, mas ela é que sempre deu banho, trocou fraldas, sempre foi a Elena, ela só ficava para dar apoio e fazer encaminhamento. Vinha com freqüência aqui em casa a mãe da Elena, morava próximo daqui, então, as vezes, eu saia, a Elena passava o dia todo na mãe dela, depois eu pegava as duas e vinha para casa. Mas, a mãe da Elena, quase 100%, 90% do período, ficava com a Elena, mais na casa dela do que aqui. A Elena sempre se deslocava, mas era isso...(Luciano, diretor comercial, 2 filhas) A participação da família de origem nos primeiros dias com o bebê pode apresentar também efeitos perversos. Quando o casal se encontra sozinho para lidar com as primeiras dificuldades na arte de cuidar de 174 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias uma criança, a possibilidade de troca e participação do casal pode ser maior. Essa é a opinião de Luiz, que sentiu-se excluído de qualquer participação no relacionamento com a filha, durante as três semanas que passou na casa dos sogros: — E vocês tinham empregada, nessa época? Teve alguém para ajudar a Débora? — Não, a gente saiu do hospital, foi para a casa da mãe dela e ficamos lá durante um tempo. (...) sempre foi uma coisa não muito bem...não conseguia tratar essa questão, de estar na casa dos pais dela. — Você preferia ter ido para a sua casa... — É que para ela... para a Débora foi meio... pela vida que a gente tinha, quer dizer, como eu tinha que voltar para trabalhar, trabalhava muito, chegava tarde... ela não queria ficar sozinha, e acho que é justo, então... quando saiu [do hospital] foi para a casa da mãe... — E aí você nesse período, você pôde participar assim, dar banho na Isadora, trocar fraldas, a Isadora era um bebê que chorava muito, quem acordava à noite... como foi essa fase? — Aí já começou a não ser tão tranqüilo. Quer dizer, para a gente, tem esse marco da, desse primeiro ano da Isadora, que foi, eu diria que foi muito difícil. Estava até conversando sobre o segundo, eu falei que topava desde que ela não me esquecesse completamente. Até entendo que por um lado... tem uma coisa física, hormonal, da mulher, em relação... da mãe em relação ao filho, que não dá. Ela vai ficar hiper protetora... então para mim foi uma situação... claro que era legal ter uma filha, legal um monte de coisas, mas principalmente esse primeiro ano, toda a minha imagem é de estar fora do processo. Primeiro porque a ... própria criança não te identifica como pai até, sei lá, uns meses. Então ela tem a mãe, que é uma coisa muito clara, identificada e o resto do mundo. O pai, a avó, a cadeira, porta, quer dizer, está tudo na mesma categoria. Você não se sente identificado, ao contrário da mãe. Então tem uma coisa que é... natural, biológica, sei lá. Então já tem essa certa... exclusão dessa maneira. Segundo que a atenção da mãe, estou falando sempre da Débora, mas vai lá conversar com as outras pessoas vai ver que tem sentimentos parecidos, né... a atenção da mãe fica 220% na criança, a prioridade é só essa daí, e qualquer outra coisa passa a não ter nenhuma importância. — Você acha que o fato de terem ficado esse tempo na casa dos pais dela potencializou um pouco essa exclusão? 175 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — Acho que sim. Acho que sim porque... se você está num lugar que só estou eu, pelo menos você tem que participar um pouco mais. Então, o fato de ter a minha sogra, meu sogro, com certeza reforçou... Ficamos lá e quando a gente voltou para cá, depois de bastante tempo, aí já tinha uma dinâmica da qual eu não estava participando. Por exemplo, eu nunca, raramente eu acordava quando a Isadora chorava à noite. Por causa disso, porque... entendeu, essa situação toda me deixou meio excluído, de uma maneira acabei também não... não lembro de acordar à noite, pegar a Isadora... (Luiz, diretor de sistemas, 1 filha) Uma exceção no grupo de entrevistados, Mauro conta que tirou um mês de licença paternidade por conta própria, já que era autônomo. Sócio de uma empresa produtora de vídeos, simplesmente avisou aos sócios que iria tirar licença. Conta ainda que os amigos que não tinham filhos reagiram à atitude dele. — Como é que foram os primeiros dias depois de que a teu filho nasceu? — A gente era, eu e a Renata. a gente era muito criança, assim, olhando hoje. Então, a gente tratou aquela coisinha, assim, a gente não conseguiu, por exemplo, fazer com que ele dormisse num berço separado da gente. Ele ficava no mesmo quarto e na mesma cama, nos primeiros dias. A gente tinha muito medo, sei lá, morresse dormindo, tivesse um troço, que todo mundo dizia, tinha uma médica pediatra falava “olha, todo mundo sente isso”, tudo bem, mas a gente sentia. A gente não dormia porque ficava com medo de rolar para cima dele. E também tem as histórias de terror de mães que sufocam o filho dormindo em cima . Tem tudo isso, por a mão no coração, escuta para ver se está vivo e tal. E a gente dormia muito mal e ele também. A gente não deixava ele dormir porque ficava lá porque queria que ele reagisse como ser vivo. Então, tinha essa coisa, ele acordava muito para mamar a noite deixava a gente exausto, tinha hora que, eu lembro muito de situação que a Renata., por ter acabado de ter filho e tal, estava debilitada fisicamente, ela sentava na cama e ela cochilava, ela não conseguia ficar acordada e eu segurava ele para mamar, porque ela não agüentava. Ela dizia “meu, segura porque eu tenho medo de deixar cair”. Um ano sem dormir oito horas contínuas na noite, porque a gente não tinha a simples idéia de dizer: “vamos revezar”, era uma avidez muito grande com aquele filho, os dois queriam participar muito. Se ele acordava à noite quando ele já dormia no quarto dele, se acordava à noite eu que ia buscar e ela dava de mamar, entendeu? E no fim nenhum dos dois dormia, nenhum descansava, porque eu ia buscar, daí não conseguia voltar a dormir, dali a pouco leva de volta por eu já 176 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias estar dormindo de novo, então ficava aquele clima de função a noite inteira. — E com o segundo filho foi diferente? — Foi, muito diferente, muito diferente. Com o primeiro filho depois do primeiro ano, já foi meio diferente. Porque daí a gente teve a brilhante idéia de que você dorme uma noite eu durmo outra, porque aí ele já não mamava mais no peito, ou mamava, ele mamou até um ano e dois meses, por aí (...) (Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos) A experiência do primeiro filho é quase sempre mais traumática do que no segundo. Os erros da primeira vez podem ser evitados, os fantasmas já estão exorcizados. No caso de Mauro, a experiência de dividir tudo, ou melhor, de não dividir, mas estar presente junto com a mulher, fazendo as coisas ao mesmo tempo, na mesma hora, mostrou-se infrutífera, quase levando o casal à separação. No segundo filho, o discernimento permitiu que dividissem as atividades, alternando os tempos e o envolvimento de cada um. Curiosamente, no segundo filho e já em outra situação econômica, Mauro não pôde tirar sua própria licença paternidade de 30 dias. Ainda assim, por exercer uma atividade profissional que permite uma relativa flexibilidade, Mauro procurou estar sempre presente na rotina das crianças. O relacionamento do casal e a rotina da casa A chegada de uma criança muda o status do relacionamento do casal, como vimos acima. Administrar essa mudança e seu impacto no relacionamento é um dos maiores desafios enfrentados pelo casal. Para alguns, trata-se de uma mudança esperada, exigida pela presença de um terceiro que requer cuidados. O tempo ocupado pela criança pode ser um tempo compartilhado pelo casal, como mostram Benício e Leonel: 177 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — A gravidez foi super legal, foi uma lua de mel, e agora, tinha um terceiro, tinha um bebê, que demandava uma rotina, certos cuidados. Como é que foi esse primeiro ano, isso alterou? — Eu acho que não muito porque quando o bebê é pequenininho, você ainda leva muito uma vida a dois, porque ele está lá, ele dorme, ele mama, mas ele fica lá. Eu acho que, tanto quanto ela, tirava uma parte do tempo, que antes era meu, para cuidar do nenê. Então, eu acho que o tempo que a gente tirou entre a gente, foi o tempo que a gente tirou junto para cuidar do nenê, a gente curtiu muito. (Benício, músico, 2 filhos) — E... você acha que a gravidez afetou o relacionamento de vocês? — A gravidez assim em si acho que não, até aproximou mais. Mas depois que a criança nasceu, os cuidados foram centralizados na criança. Depois que ela nasceu. Durante a gravidez propriamente dita houve uma troca de carinho muito grande, uma curtição muito forte da gestação. Mas depois que ela nasceu acho que houve uma canalização dos dois para a criança, que eu acho que é tradicional. (Leonel, engenheiro de produção, 1 filha) Por outro lado, a criança pequena mesmo demandando cuidados, não necessariamente é o centro exclusivo das atenções da família. O casal sabe que deve dar atenção ao bebê ao mesmo tempo que se permite partilhar atenção entre si, às necessidades mútuas. Saulo relata como uma aspecto positivo em seu relacionamento o fato de não terem deixado de manter uma vida de casal, mesmo depois do nascimento de Lara: — (...) Amamentou seis meses, e assim que começamos a sair de casa, a primeira vez que a gente saiu foi para ir à casa da minha sogra. Jantamos, almoçamos lá no domingo, e acabamos de jantar, saímos os dois para o cinema. Então assim, foi a primeira oportunidade que a gente teve de estar junto, eu e ela, voltamos a estar juntos. Apesar da Lara ter um mês. E... era assim, o tempo de uma mamada, duas horas, saímos e voltamos. Então essa atenção do casal não mudou com a presença da Lara, a gente mantém essa atenção viva até hoje. Mas o que mudou é que é um serzinho novo. Então a geladeira era vazia, a gente almoçava de vez em quando em casa, tal. Passou a ter uma geladeira cheia de coisas, para manter. (Saulo, produtor de vídeo, 1 filha) 178 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Rotina Doméstica e Familiar Como foi observado no início do capítulo, a presença da empregada tem uma significativa importância na forma como o casal estabelece a rotina da casa. A empregada doméstica tem a função de cuidar do serviço mais pesado da casa, em geral é ela quem cozinha e pode regularmente buscar ou levar as crianças até a escola, se esta for próxima à casa. Contudo, há uma certa divisão das atribuições entre o casal. A mulher ainda é a maior responsável por administrar a rotina da casa. O homem até pode dar algumas ordens para a empregada, mas é mais provável que ele se reporte à mulher, para que esta fale com a empregada. Os filhos são acompanhados pelo casal, o que determina quem faz o quê é a rotina profissional e a disponibilidade do trabalho. No caso daqueles que trabalham próximo à residência ou têm uma atividade profissional com horário mais flexível, a possibilidade do pai acompanhar mais de perto os filhos é maior. Há um claro desejo de estar mais presente, mais atuante do que foram os próprios pais. Essa participação pode não se concretizar se o trabalho profissional envolver viagens e horas extras. De todo modo, os homens tendem a cuidar de coisas masculinas tais como levar o carro à oficina, providenciar o conserto de algum objeto em casa. Não é uma regra, porém. Embora sejam os homens que cuidam do dinheiro, das contas, não há uma clara divisão de quem paga o quê. Ou mesmo que haja uma divisão para organizar o cotidiano doméstico, os entrevistados investem na idéia de que não há divisão, a conta conjunta é um exemplo. Um fundo comum para pagar as despesas que são comuns. Estaria aí presente, de certo modo, uma concepção de igualdade: uma vez que não há o dinheiro meu ou dinheiro seu. A repartição das contas é aleatória e são pagas conforme o dinheiro entra. Mesmo tratando-se de famílias de camadas médias, o 179 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias que pressupõe poder aquisitivo melhor do que nos segmentos populares, o salário da mulher aparece como claramente importante para manter o status familiar, especialmente se ela é assalariada e ele não. — Quem cuida das contas? — Tem uma certa divisão, eu acho que a Luiza fica com um pouquinho mais. Ela acaba levando as crianças no clube, eu acho que ela fica um pouquinho mais com as crianças, eu fico um pouquinho mais com as burocracias. As contas, praticamente, 95% eu cuido. Isso não tem jeito, eu acho que é por eu estar na rua, eu lidar com burocracia minha também. Eu me produzo, eu tenho a minha microempresa, então eu acabo tendo que estar em banco. Eu organizei para que tudo que for débito automático, ou seja, o que puder sabe; o imposto de renda vai para o contador, as contas da minha empresa vão para o contador, então, até gasto um pouco mais para tentar me livrar disso aí. — Quem paga a empregada? — É rachado, que nem, tem mês, por exemplo janeiro, janeiro é um mês que tradicionalmente o músico não ganha. Esse mês, esse ano eu até ganhei, teve um trampo legal em janeiro. Mas que eu só fui receber em fevereiro. Então, é variável, mas o dinheiro daqui a gente não reparte, entra, a gente bota na conta conjunta. Aliás, nunca passou pela minha cabeça, em pensar “quem paga a empregada?” É a gente que paga, aqui, realmente é a comunhão de bens. Tem época de crise, assim, que um cobre o outro e cobra mais que o outro. Por ela ser assalariada é mais difícil para ela entender que tem mês que eu não ganho e tem coisas que a gente não consegue fazer. Às vezes, às vezes, pesa nela essa instabilidade minha, então, às vezes, dá uns, acho que é um lado que dá uns arranca turco, no cara. Mas de modo geral, o dinheiro é coletivo. (Benício, músico, 2 filhos) — Então, tem contas que ela paga e outras você paga? — Na verdade, o que acontece é assim, ela... é gozado a gente nunca conversou sobre isso. Porque as coisas ficam funcionando assim, como as minhas entradas de dinheiro são completamente malucas, ela recebe no quinto dia útil do mês, então ela paga a empregada, ela recebe e paga a empregada e o que sobra ela deposita numa conta nossa conjunta, que é a mesma conta que ela usa para fazer as compras de casa. Então, acaba servindo para cobrir os pré-datados, na época que a gente comprava 180 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias fraldas, era nessa conta que caía, só que ela não controla, não tem nenhum controle sobre o dinheiro. — Você é quem controla? — Ela me diz “olha, depositei tanto”. (Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos) O que se pode apreender dos depoimentos é que o assunto “ dinheiro” é delicado, mexe com as fronteiras do que é individual e coletivo e quando se está “ em família” o interesse deve ser coletivo. Quando os questionei sobre quem paga o quê? a reação geral era de um certo incômodo com a pergunta e a saída foram respostas que começavam com “nunca falamos disso...”; “ é tudo misturado”, “Não, lá em casa não tem divisão assim de despesas. Orçamento único!” . Ainda assim, ao final quem cuida das contas são eles. Elas em geral pagam a empregada, a comida, coisas relacionadas ao dia a dia da casa. Nada de novo. Pesquisas como a de Cristina Bruschini (1990) e Danielle Ardaillon (1997) indicam comportamentos semelhantes. Ardaillon observou que a parte formal da questão da contas, inclusive a que se refere à aplicação financeira e declaração de imposto de renda é entregue para o cônjuge. Deve-se ressaltar que o trabalho remunerado da mulher proporciona um espaço de negociação. O dinheiro ganho com o próprio trabalho tem um efeito individualizador , garantindo relativa autonomia, porém, concordo com Ardaillon, quando diz que a divisão de tarefas pode ser utilizada muitas vezes de maneira bastante conveniente, tanto para eles como para elas. Cuidar da burocracia do dinheiro pode ser uma tarefa mais fácil para eles (da mesma forma como levar o carro para a oficina) e cuidar de delegar as tarefas para a empregada, demití-la etc.pode ser mais fácil para as mulheres (já faz parte de seu universo) e assim o ciclo que separa tarefas femininas das masculinas se mantém, agora, talvez mais do que antes, de maneira consensual. 181 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Tarefas de homem, tarefas de mulher Em função da ausência durante o dia, da rotina familiar, a noite reserva um momento de maior possibilidade de participação ao pai. Os homens que entrevistei relataram que costumam colocar as crianças para dormir, são responsáveis pela escovação dos dentes dos filhos etc. Há algumas tarefas para as quais os homens se sentem mais habilitados ou mais a vontade e em alguns casos há uma clara distinção de gênero: — (...) Minha especialidade é banho. Eu também dou bastante quando dá. Agora, tem sido mais a moça aqui, porque a gente está chegado mais tarde para o banho. Mas banho é um troço que eu faço bastante, especialmente no Marlon, porque menino tem essa coisa que tem que lavar o pinto direito e a mulher não sabe lavar o pinto do homem, porque o cara tem que arregaçar a cabecinha, senão gruda, essas coisas... — Você acha que mulher não sabe fazer isso? — Até sabe, mas como ela não tem pinto, então, pô, você sabe de quando você era pequeno, o que você passou para arregaçar a tal da cabecinha. Se você não operou de fimose, logo que você nasceu, se não fez... então, o Marlon é vagabundo para lavar pinto, bunda e cabeça. Então, essas três coisas, eu fico em cima do cara. — E com a Manuela você não se preocupa? — A Manuela não, porque, eu, assim, lavar mulher é mais difícil, lavar a xoxota é mais difícil, e ela é menos, menos malandra do que o Marlon para tomar o banho dela. O Marlon para lavar a cabeça desde sempre foi um problema tal, o cara chorava quando ia água na cabeça; agora, que ele perdeu o medo de água com quatro, cinco anos. E a Manuela sempre foi mais sossegada no banho. Então, o banho do Marlon era um banho mais rude, assim, era um banho de homem mesmo, um pouco mais truculento. Ele tem banheira, então, eles tomam banho de banheira, vai e brinca tal, mas na hora do cabelo, o pente gruda no cara... (Benício, músico, 2 filhos) Ajudar a cuidar dos filhos, acompanhar o desenvolvimento na escola, levá-los ao médico sozinho ou acompanhado da mulher, dar 182 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias banho etc. são tarefas prazerosas e que em geral esses homens gostam de fazer. Em todos os depoimentos há um forte desejo de estar mais presente na vida doméstica, diferentemente do que seus pais foram. Mas quando o assunto é a divisão das tarefas domésticas, o humor é outro. E de fato, o conflito (se é que chega a haver um conflito) ele é resolvido pela empregada. Os entrevistados podem fazer o supermercado, arrumar as camas, ajudar a por a mesa para o jantar (como os seus pais já faziam), a cozinhar, mas não se trata de uma obrigação, não é visto como parte de sua rotina diária: — Bom, fora ligar a televisão, porque as vezes, nem desligar, eu desligo. Eu vou comprar o pão, enquanto ela faz o café. Aas vezes, eu faço o café...Supermercado e feira, você não vai me ver nunca, dentro de supermercado e feira. As vezes, eu ponho a roupa na máquina de lavar; as vezes, eu penduro uma roupa no varal, coisa de por mesa da cozinha, as vezes, mesa, os pratos ...por os pratos sou eu quem faço. Coisas de eletrônica, por exemplo, de colocar uma caixa de som, isso eu faço, não coisas de chuveiro, quebrou chuveiro, torneira elétrica, isso não, mas coisas voltadas a equipamentos ou instalar um telefone, isso eu faço Arrumar a saleta, coisas assim, organizar a gaveta do computador, dos jogos, sou eu que faço, poucas coisas, na verdade. (Luciano, diretor comercial, 2 filhas) — Adoro cozinhar e cozinho, e teve uma época nossa de casado que a gente brigava para ver quem é que ia cozinhar. Cozinho toda hora, todo dia, toda... — Aí quem cozinha não arruma a bagunça depois, como é isso? Tem uma divisão? Por exemplo, você cozinha a bagunça é da Carla? — Não, é que eu tenho que assumir uma coisa que eu não concordo comigo mesmo. Eu não arrumo a cozinha. Assim, se eu fizer, eu vou fazer como um fardo pesado e ‘não quero fazer isso, que droga’. E quando eu faço, capricho para caramba. Então aquela panela que está eu limpo... então, acho... eu não sei passar uma aguinha, então não faço. Acabo não fazendo. (Saulo, produtor de vídeo, 1 filha) 183 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias O fato de não assumirem a divisão das tarefas como parte dos acordos que envolvem o relacionamento, do arranjo familiar é um obstáculo para se pensar a igualdade de gênero na vida privada. Esses homens colocam o assunto como uma questão de opção: posso escolher não arrumar as camas, não lavar a louça, não ir ao supermercado. Caberá então a alguém assumir essas tarefas ou não. E neste sentido não há uma divisão das tarefas. Os afazeres domésticos acabam sobrando para a mulher, que tanto pode ser a cônjuge, como pode ser a empregada, a diarista. A explicação para este tipo de arranjo e a resistência a uma mudança efetiva, especialmente num tempo em que muito se fala sobre “relações igualitárias” pode ser encontrada no depoimento de Mauro (curiosamente um dos pais mais participativos entre os entrevistados): — Tem uma questão que é séria, que a gente não falou até agora, que é a situação financeira. Quer dizer, a Renata ganha um X , ganha um quarto do que a gente precisa enquanto orçamento familiar, eu ganho os outros três quatro, sendo que um quarto dela é salário, é um salário fixo, que não vai ser mexido. O meu três quartos é maleável, quer dizer, existem, às vezes, situações, onde eu possa ganhar um pouco mais, tem meses bons, especialmente bons, em que eu ganho um pouco mais, tem meses especialmente ruins, onde eu ganho um pouco menos. O que eu estou querendo te dizer, que é assim, por eu ser um profissional sempre o potencial é de estar ganhando mais, e esse um pouco mais é o que toda família quer e precisa. Quer dizer, se você quer, esses quatro quartos que eu te falei, é o dinheiro que a gente precisa para manter ali, pagar contas, escola, material, roupas, não sei o que. Agora, se você quiser trocar de carro, se você quiser uma reforminha na casa, precisa desse a mais, que eu tenho em potencial, entende? Por isso, que eu tenho que ficar mais livre que ela. E outra , ela tem aquele horário dela, ela está da uma a cinco na escola, da uma a cinco e meia. Eu posso ser solicitado às quatro da manhã, eu posso ser solicitado para viajar, como eu já te disse, domingo a tarde estou indo viajar para fazer um trabalho de quatro dias que é considerado um bom trabalho, bem pago e, portanto, não posso me dar ao luxo de dizer “Não, preciso de dividir as tarefas”. Então, acaba assim, acontece uma vez, acontece outra....A mulher, eu estou falando da mulher, mas é assim, a Renata acaba tomando mais as rédeas da casa. Eu viajo quatro dias, ela não pode ficar esperando os quatro dias para eu 184 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias voltar e resolver fazer supermercado com ela, ela tem que ir lá e fazer sozinha. Então, ela fez sozinha uma semana, na outra também fez, acaba virando tarefa dela. É sacanagem! Eu só faço supermercado hoje em dia, quando, assim, “olha, não está dando, não tenho como fazer, tá ”, então, tudo bem, eu largo meu potencial de estar ganhando dinheiro. Então, ela acaba fazendo sozinha. (Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos) Mauro reconhece que o salário fixo da mulher é fundamental para o orçamento doméstico. No entanto, ele “é profissional” e por isso tem maior potencial para incrementar a renda familiar. Esse incremento não é possível com o salário fixo da mulher (ela é professora em escola privada). Dentro desta lógica ele não pode se “dar ao luxo” de recusar uma oferta de trabalho para dividir as tarefas domésticas. Essa mesma lógica orientou Luciano a não preocupar-se em levantar durante a noite para atender o bebê, já que a mulher, em licença, não estaria “trabalhando”, como ele, na manhã seguinte. Há uma divisão de tarefas que não é nem mesmo negociada, ela é determinada pela lógica de uma estrutura social mais ampla, estendida para a vida privada. Afinal, o que é ser pai? Uma pergunta simples, apenas para fechar a entrevista e sintetizar as idéias após quase duas horas de conversa sobre família, filhos, divisão de tarefas, paternidade. Aquilo que parecia simples, no entanto, não foi. Quase todos manifestaram algum tipo de interjeição, recorreram de pronto a chavões para só depois desenvolver suas próprias impressões sobre o que resume a paternidade. Ser pai é então bonito, gostoso, importante; é também perpetuação, mas uma continuidade que permite avançar, ser melhor. É chance de ser melhor do que os avós foram e do que o próprio pai foi. 185 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias O significado de paternidade está associado fundamentalmente à responsabilidade73: — O que significa ser pai? — Puta vida!, isso aí é a coisa mais linda que existe para mim que era um ambicioso em ter um filho e era uma coisa que eu queria e era certa na minha cabeça, desde que eu me conheci por gente. É maravilhoso, é muito importante, é bonito, é gostoso, não sei te explicar o que é ser pai assim, mas é tudo isso, é bom demais, é bom demais! (Renato, gerente de correio, 2 filhas) — Que é ser pai... Mãe é fácil, é padecer no paraíso! Isso a minha mãe que fala. Eu não sei não, eu vejo assim que ser pai é uma honra, na verdade. Ser pai assim. Eu me sinto, enquanto pai, um desafio... para tentar fazer dos meus filhos uma coisa com uma qualidade a mais do que eu mesmo tenho. Eu sempre penso, com a qualidade, um avançar na espécie, sair uma coisa melhor do que eu sou. Eu me acho um cara legal, e acho que o meu filho tem chance de ser melhor ainda. Coisa de aprimorar a raça, por aí. Aprimorar essa espécie humana que é muito... você assistiu ‘a estrada perdida’? (Carlos, professor universitário, 2 filhos) — Basicamente você passa a entender uma série de coisas que antes você imaginava, que você nem sabia que existia, achava que estava errado, que era besteira ou que o cara era um idiota. Você fala, bom, não é bem assim. Eu acho, na minha visão, vou falar no meu mundinho lá que é mais fácil, não sei se dá para generalizar. Mas... como você passou a ser responsável por alguma coisa, então você tem que fazer essa coisa chegar a bom termo, né (...) (Marcos, diretor de finanças, 3 filhos) A função paterna ganha significados diferentes conforme a idade da criança e suas necessidades específicas. Mauro, por exemplo, destaca que a filha, de 3 anos, necessita de muita atenção física e emocional, é mais dependente, e o papel do pai é ser acolhedor. Com o filho mais velho, de 5 anos de idade, a demanda é outra, é “dar parâmetros”. Isto representa para o pai ser o vínculo entre o filho e o mundo lá fora; é enfrentar os questionamentos do filho: — Você falou que a paternidade muda de significado. Então que significado é esse, qual a sua função agora? Teve um envolvimento de participar ali desde o nascimento, de ir ao 73 Ver Silva, 1999. 186 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias médico, aquela coisa bem física, assim. Que paternidade é essa agora, como é que você se vê como pai, daqui para frente nesse processo de mudança? — A Sabrina ainda requer cuidados de uma criança pequenina, assim, a relação com ela ainda é muito mais física, ainda é muito mais emocional, ela tira conclusões muito mais do que ela está sentido do que em torno daquilo que ela está ouvindo, então, acho que o papel de pai aí é meio acolher um pouco isso, responder as dúvidas de uma forma emocional e não chegar para ela e dizer “Sabrina é assim, assim”, ela não vai entender. Apesar de eu fazer isso também, para ela já ir se acostumando. Mas, o Tiago me parece uma coisa mais mental e muito mais, ele está aprendendo coisas, ele está trazendo o mundo para dentro de casa ele que saber, ele quer saber muito como é que eu vejo estas coisas, as coisas que ele está vendo agora, ele tem muito parâmetro, parâmetro, ele quer parâmetro o tempo inteiro. Então, acho que me parece dar parâmetros, se fosse resumir assim, muito rápido, porque antes eles eram bebezinhos, era muito mais aquela coisa física, de dependência total, quer dizer, quer fazer xixi, umas necessidades fisiológicas que você tem que estar acompanhado, no começo tem que estar acompanhando, chorou, sabe? (...) mas, pô o cara já vai lá faz xixi sozinho, as necessidades são outras, elas são mais mentais, eles estão se relacionando mais com o mundo, do que com eles mesmos. Quando eu digo o mundo, digo o mundo fora da família, então dar parâmetros, quando eu digo dar parâmetros, não é dar normas. Eu já te falei sobre isso, eu me sinto muito aprendendo, eu não tenho uma, eu não tenho um ideal pré-estabelecido que diga assim “olha, eu vou educar meus filhos assim”. Esse é um jeito, porque não? Sabe, isso não ia funcionar muito, isso já é uma característica minha, meio rebelde sobre essas coisas, mas eu prefiro me colocar numa postura aberta e maleável para ir vendo o que vem e me colocar da maneira mais saudável possível, quer dizer eu não tenho um modelo já para educação. Mas eu estou com dificuldades de dizer assim, como é que fica a paternidade, porque eu te falo o seguinte, a cada dia você resignifica a paternidade, hoje é diferente de ontem, amanhã vai ser diferente, eu não vejo a coisa como uma coisa modulada, sabe, do zero a um ano o pai significa isso, de um ao dois significa aquilo, eu não consigo ver dessa maneira, entendeu?...(Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos) Para esses homens não há formula. Mas há uma relativa clareza de que o pai deve preparar os filhos para o mundo, para ingressarem na vida social e aprenderem a caminhar com as próprias pernas. O pai seria aquele que orienta o filho até um certo ponto da trajetória. 187 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — Como pai, como é que você se define? — Eu tenho a consciência de estar criando os filhos para o mundo, não para mim, um pouco diferente do como meus pais me criaram. Eu só saí de casa quando eu me casei, eu tive todo o apoio econômico e cultural dos meus pais, até no momento que eu quis, então, eu colocava as minhas imposições, as minhas regras. Eu acho que comigo vai ser diferente, eu não me vejo sustentando os meus filhos até que eles cheguem aos 26, 28 anos, eu vejo até 16, 17, dessa maneira, eu tenho que caminhá-los até aí. Então, eu vejo que meus pais me criaram para eles mesmos, até na forma quando eu fui escolher minha profissão, houveram questões, até hoje eu não sei se fiz a coisa que eu queria fazer, e para os meus filhos, eu tenho certeza de que não vai ser assim. Eu tenho certeza de que eu estou criando meus filhos para o mundo e tê-los perto de mim, nessa fase de criança, onde eles possam decidir se vão querer fumar cigarro ou não fumar cigarro... na minha época eu tinha que fazer isso escondido...É desse tipo, protegê-los um pouco, em relação ao tráfico é o que me assusta, porque o que eu mais tenho...a questão das drogas, porque isso me tiraria o poder, a conscientização, é isso. — Tiraria poder em relação? — À criação, a poder levá-los de mãos dadas, até certo ponto, dali em diante seria sozinhos. Eu acho que eu não vou levá-los até 28 anos, como minha mãe me levou, ou...irem sozinhos, bem antes do que eu, antes do que eu porque o mundo muda muito mais rápido, então, as crianças são mais precoces. Eu fui até 28 e as crianças vão chegar a 20, 16, não sei. Então, assim, eu tenho que pelo menos prepará-los para isso. (Luciano, diretor comercial, duas filhas) — Para você, o que significa ser pai? — Ser pai... amor. Tentar direcionar uma forma de educação para os filhos, pode estar errada para uns, errada para outros, mas achar que está certa para o seu filho, né. E... tentar acompanhar o crescimento dos filhos, né.... posso dizer assim, os vínculos dos filhos com as pessoas, se é uma criança que está ficando mais afastada dos colegas de escola, por exemplo, se ela está bem... Eu como sempre fui mais tímido, meu jeito de ser é esse, então me retraí mais. Me liberava com poucas crianças, poucos colegas da escola, e tal. O relacionamento era muito pequeno. Então isso é muito importante. (Leonel, engenheiro de produção, 1 filha) Na fala de Leonel e de Luciano é possível perceber que há uma preocupação em ser diferente do que os pais foram em sua educação e de estar atento para evitar que o filho passe por determinadas 188 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias experiências que ele considera prejudicial, como, por exemplo, não conseguir se relacionar com as pessoas. É interessante observar que há uma preocupação maior com o desenvolvimento pessoal e emocional do que profissional, ao contrário das expectativas da geração anterior. Para o pai desses entrevistados, fundamental era que o filho tivesse uma carreira, uma profissão com a qual pudesse sustentar a família. Para os entrevistados é importante a presença, o envolvimento com os interesses do filhos, é menos ser provedor e mais ser amigo. Até porque a função de provedor é dividida com a cônjuge, o que lhe permite estar mais presente: — Você poderia comparar a relação sua com a Lara com a sua relação com seu pai,? — Tá. Ah... eu vejo a minha relação com o meu pai... essa relação de homem com homem. Uma relação masculina, é uma relação masculina, o provedor, o protetor, o super homem, o alicerce. Então desde pequeno, essa é a relação que ele trouxe, que ele me passou. Com a Lara, além da segurança, do alicerce...O provedor está muito dividido, eu e a Carla a gente racha tudo... mas assim, essa figura que a sustenta... e às vezes eu sinto falta de não ter tido isso como um sentimento... eu proporciono isso para a Lara. Certa vez, eu cobrei amizade do meu pai, e ele falou ‘eu não sou seu amigo, sou seu pai’, e eu não concordo com isso. Eu sou o pai da Lara, mas tão pai que quero ser tanto amigo quanto pai. Quero estar junto com ela, quero estar presente o tempo inteiro (...) (Saulo, produtor de vídeo, 1 filha) O projeto de ser pai, constituir família, é visto com encantamento, mas também como uma tarefa árdua, que impõe dedicação. Trata-se de uma experiência que envolve a renúncia de projetos pessoais ou ao menos sua readequação aos interesses do grupo familiar. O casamento é visto como um resquício tradicional, até incompatível com a vida moderna, mas ao mesmo tempo um desafio. Benício, com seu jeito espontâneo de colocar as idéias, vai tecendo essas ambigüidades: — O que para você significa ser pai? 189 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias — Não sei, essa pergunta é engraçada. É aquilo que eu falei, eu acho que ser pai, ser marido, casar, a coisa do casamento em si, eu não acho fácil, nada fácil, as pessoas detonam o casamento. Ah, de modo geral, não é moderno, é mesmo uma coisa arcaica, não tem um glamour, pô, mesmo na coisa sexual, você está com a mesma mulher, ela vai ficando velha, ela começa a ter umas manias, sabe, putz! Mas eu penso, eu acho um negócio muito legal se você tiver na sua cabeça, que você envelhecer junto com uma pessoa, criar filhos, todas essas são coisas muito maravilhosas, você ver uma pessoa mudar, tal, você tem filhos com ela, você vai criando o filho, então, mas eu acho que a minoria pára para pensar nisso aí, por isso que as pessoas só se queixam do casamento, parece que é uma coisa que mata a liberdade, eu acho o contrário, é uma puta de uma viagem, só que é uma viagem que exige exercício e disciplina, é um tipo de meditação o casamento, é trabalhoso para cassete, mas pô, tem um monte de coisa trabalhosa que dá prazer, mas não é um prazer de graça, é um prazer que você tem que lutar muito para ele vir, então, ser pai, eu acho que é um pouco isso, para mim. ...(Benício, músico, 2 filhos) Benício mostra também a ansiedade com a mudança dos valores. A forma com que foi educado —teve o privilegio de fazer parte de uma família relativamente aberta às mudanças — já não se enquadra com a forma com que deve educar seus filhos. Não há regra. E para ele a paternagem se tornou mais difícil: — Você acha que hoje é mais fácil do que no tempo do seu pai? — Acho mais difícil. Por que antes era permitido você ser um ditador qualquer, dar um monte de ordem e o cara te temia e pronto, e ainda isso era, era cômodo porque não tinha tanto lance. Hoje, tem mil lances, você sabe que mesmo um moleque de cinco anos, tem argumento suficiente que você tem que levar em conta, não adianta você dar uma chinelada no cara, não existe mais isso, quer dizer, existe, para um monte de gente, mas eu acho que como tem mais detalhes e lances, como tem mais variáveis, as crianças são mais informadas, desde cedo, nossos pais estão mais abertos para reconhecer que não estão sempre certos, então, acho que é uma atitude, é uma atividade muito mais difícil, e eu acho que dentro desse rolo todo, que eu estou falando, que é racional, de informação, tem uma coisa que dificulta, que é o afetivo, você tem que achar espaço para ele, porque tem tanta coisa racional, ideológica, educação, coisas comerciais entre pai e filho, que pô, chega uma hora que simplesmente sem querer ficar o tempo inteiro beijando o seu filho, é uma.... sabe, acho que rola até menos espaço, não sei se eu estou falando bobagem...Agora, você 190 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias tem que dividir o lado afetivo com muito mais preocupação, é, eu acho muito mais difícil. Eu vejo as pessoas menos resolvidas hoje, isso também dificulta. . As técnicas anticoncepcionais permitiram a autonomia das mulheres em relação à sexualidade, desvinculando-a da reprodução. Persiste, entretanto, o conflito básico entre, de um lado, a livre expressão da individualidade tanto na carreira profissional como na vida amorosa, tanto para os homens como para as mulheres, e de outro, a responsabilidade conjunta em relação aos filhos comuns, que exige renúncia a certos pressupostos do individualismo modernista. 191 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Considerações Finais Quando ingressei no mestrado, em 1995, os estudos de gênero, particularmente aqueles situados nas Ciências Sociais, pouco focalizavam os homens como objeto de pesquisa, ainda que eles fizessem parte das pesquisas sobre família (Salém, 19980; Bruschini, 1990; Sarti, 1996, entre outros). O tema da paternidade não ocupava o mesmo espaço e interesse que temas como maternidade, articulação trabalho/família provocavam entre os estudiosos das relações de gênero. Nos anos seguintes, vi emergir pesquisas, seminários e outros eventos voltados especialmente para o tema da masculinidade. Grupos de estudos se formaram74, programas de pós-graduação dedicaram cursos para o tema; livros e artigos de autores anglo-americanos e europeus circularam e foram debatidos em diferentes fóruns. De 1995 para cá vários artigos de pesquisadores brasileiros foram publicados em coletâneas e revistas científicas75. A partir de 1994, pós Encontro do Cairo é possível localizar uma mudança no enfoque nos estudos de gênero. Evidenciou-se que, de um lado, as mulheres saíram da invisibilidade, mas de outro lado a maioria dos problemas apontados pelas feministas, em especial com a saúde reprodutiva, não haviam sido solucionados. Um aspecto fundamental, deixado de escanteio precisava ser resgatado: a sensibilização masculina para os problemas femininos e mais do que isso a necessidade de envolver os homens em questões como a saúde reprodutiva e a vida familiar. Saber mais sobre os homens e tê-los Eu mesma passei a integrar o Grupo de Estudos sobre Sexualidade Masculina e Paternidade/GESMAP, organizado pela ECOS – Estudos e Comunicação em Sexualidade e Reprodução Humana, que reúne pesquisadores e profissionais que atuam em projetos de intervenção. 75 Ver Arilha, Ridenti-Unbehaum, Medrado (1998); Revista Estudos Feministas (IFCS/UFRJ,vol.6 n.2/98); Cadernos Pagu (11, 1998), entre outros. 74 192 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias pesquisando conjuntamente com as mulheres tornou-se uma estratégia política e teórica. Este é um ponto que nos ajuda a compreender o crescente interesse pelo tema. Outro ponto é o interesse de homens em rever sua posição e papel na sociedade contemporânea, até mesmo questionando os significados atribuídos para o masculino, para a paternidade. Daí o crescente número de homens pesquisando as relações de gênero Apesar do significativo interesse pelo assunto, não me parece que um campo de estudos sobre os homens, delimitado e semelhante ao que se denominava na década de 70 e 80 de estudos sobre as mulheres esteja se constituindo no Brasil, nos moldes dos chamados Men´s Studies, das universidades anglo-americanas. O mais provável é que com a consolidação dos estudos de gênero, processo iniciado principalmente a partir de 1985, o interesse pelos homens como objeto de estudo surge como decorrência do processo de amadurecimento e de compreensão do significado do conceito de gênero. A evidência das diferenças de sexo e de como esta diferença constrói as desigualdades de gênero e as relações de subordinação constitui a base para o surgimento de pesquisas que enfocam os homens. E da mesma forma como aconteceu com o campo de estudos sobre mulheres (já apontado por Costa; Barroso e Sarti, em 1985), em parte desses trabalhos, no Brasil, é a teoria feminista quem legitima o tema como objeto de investigação. Assim sendo, as inquietações que fomentaram meu interesse pelo tema da paternidade se constituíram ao longo de uma trajetória que foi também de constituição de um interesse específico dos estudos das relações de gênero: os homens e as masculinidades. Minha pesquisa se beneficiou deste momento, do qual pude usufruir de muitas interlocuções. 193 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Minhas inquietações iniciais — compreender como as sociedades representam o gênero e o utilizam para articular regras que conformam a divisão sexual do trabalho e que, por sua vez, definem atribuições para homens e mulheres, como no caso da paternagem e da maternagem — não foram totalmente apaziguadas durante o desenrolar da pesquisa. Muitas outras questões foram se estabelecendo e não me furtei a deixá-las explícitas no decorrer do texto. Procurei apreender a concepção de paternidade socialmente construída, expressa no discurso de homens de camadas médias; observei se os indícios de mudanças nas relações familiares, apontados pela literatura, se confirmam; e até que ponto as relações de gênero na esfera privada têm se alterado. O percurso da pesquisa envolveu um cuidadoso levantamento bibliográfico sobre paternidade, maternidade, famílias e gênero, que pudesse subsidiar-me na elaboração da proposta de pesquisa. Definidos os critérios de seleção do universo empírico e elaborado o roteiro de entrevistas foi possível obter informações preciosas para avaliar como homens, de um segmento social específico, e de uma determinada geração têm pensado a paternidade e as relações familiares e como a expressam. A pesquisa centrou-se em sujeitos, de camadas médias, residentes na Capital, segundo uma classificação que levou em conta a escolaridade, a presença de filhos, o estado conjugal. Foram 10 entrevistados, que resultou num grupo relativamente homogêneo quanto aos critérios de seleção, mas diverso quanto à forma de conceber a paternidade e na maneira de vivenciá-la, ainda que alguns aspectos comuns possam ser identificados: um desejo muito presente de ser diferente do que o próprio pai foi em relação ao envolvimento com os filhos. Estar mais presente no cotidiano família e, mais do que isso, ser mais afetivo. 194 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias Outro aspecto a ser destacado é uma maior participação na rotina doméstica, ainda que esta esteja diretamente relacionada à disponibilidade de tempo, e ao tipo de ocupação profissional. Neste sentido, não há igualdade, nem maior, nem menor, entre homens e mulheres. Há uma divisão de tarefa clara e explicita e que, supostamente, é coerente com o arranjo familiar. Estar inserido num mundo masculinamente dominante faz a diferença. E faz porque a estrutura social mais ampla favorece e reforça esta diferença. Mulheres ganham menos do que os homens, a licençamaternidade favorece que sejam elas a cuidarem durante mais tempo dos filhos e a optarem por atividades profissionais que permitam conciliar trabalho e família, não há uma política para as famílias que forneça condições para que homens e mulheres possam dedicar-se em condições iguais aos seus projetos profissionais. Mesmo quando há políticas públicas favoráveis à participação masculina no cuidado com os filhos, como na Suécia, que desde 1974 disponibiliza para os pais a licença parental, essa participação esbarra na própria organização social, que nem sempre apresenta mudanças significativas na estrutura de gênero (Näsman, 1990). Um exemplo é a dificuldade enfrentada por muitos homens pais diante da reação de seus colegas de trabalho, com filhos ou não, que não compartilham da idéia de que os homens devam dividir com suas mulheres a licença parental e a responsabilidade pelo cuidado com os filhos. Em um mercado profissional competitivo, a ausência do posto de trabalho por um certo período de tempo pode significar perda de espaço e de poder. Desde os anos 70 pais e mães contam com a licença parental e com a opção por trabalho de meio expediente, além de serviços de 195 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias creches subsidiados pelo Estado76. Segundo Elisabet Näsman (1990), estudos realizados nos anos 80 demonstraram que em 1984 o tempo dedicado aos filhos pequenos aumentou tanto entre homens quanto entre mulheres e o tempo gasto com trabalho assalariado diminuiu. Contudo, a divisão das tarefas domésticas ainda é determinada pelo gênero, a maior parte da rotina doméstica é executada pelas mulheres. Uma prova é que a maioria das mulheres passa a optar pela jornada de meio expediente após o parto. Além disso, os homens recorrem em número sensivelmente menor do que as mulheres à licença parental. Näsman cita um estudo com casais suecos, conduzido durante os dois primeiros anos da licença parental. Os dados revelaram que 29% dos homens receberam o seguro parental por aproximadamente um mês e meio, contra dez meses das mulheres. Mesmo havendo possibilidades jurídicas e sociais para os homens ampliarem seu envolvimento com os filhos e com os afazeres domésticos, há muita resistência por parte das empresas, que não vêem com bons olhos o afastamento masculino pela licença parental77. Há ainda aqueles que temem que um maior envolvimento masculino com as crianças possa conduzir ao crescimento do abuso sexual, da violência contra as crianças e da homossexualidade78. De certa maneira, esses estudos indicam que a saída das mulheres para o mercado de trabalho foi acompanhada por mudanças muito lentas em relação às demandas da vida privada. O mundo do A licença parental é de 12 meses, sendo 9 meses com uma cobertura de 90% do salário e para os 3 meses restantes um adicional de 300 dólares por mês. Pai e mãe podem dividir o tempo de licença entre si. Além disso, os pais das crianças até oito anos usufruem de uma licença remunerada para acompanhar os filhos ao médico ou quando estão doentes e nas reuniões escolares. 77 Vale lembrar a reação irônica e de escárnio de vários segmentos sociais no Brasil, em 1988, ocasião da elaboração da atual Constituição Federal, à proposta de licença-paternidade, hoje estabelecida em cinco dias úteis. 78 Sobre a construção social do processo de erotização das relações entre adultos e crianças ver: BAUMAN, Zygmut. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro : Zahar, 1998, particularmente o cap. XI – Sobre a redistribuição pós-moderna do sexo: a História da Sexualidade, de Foucault, revisitada (p. 177) 76 196 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias trabalho permaneceu inflexível diante das mudanças e das necessidades dos trabalhadores com suas famílias. O fato de, ao longo das últimas décadas, as mulheres terem alcançado vários direitos, especialmente na área do trabalho, entre os quais a licença- maternidade, a regulamentação do trabalho doméstico e a proteção do mercado de trabalho mediante incentivos específicos, não diminuiu, porém, a desigualdade entre homens e mulheres em relação às oportunidades no mercado de trabalho, à ocupação de cargos de comando e políticos e à igualdade salarial. Uma pesquisa realizada pelo Ministério da Educação (1994) mostra que em 1989 5,1% das crianças brasileiras de 0 a 3 anos freqüentavam creches e 16,9% das de 0 a 6 anos estavam matriculadas em creches ou pré-escolas. Destacando dados da Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde, realizada pela BEMFAM, Cristina Bruschini (1998) mostra que 23% das trabalhadoras cuidam elas mesmas dos filhos menores de 5 anos, 34% são ajudadas por parentes, 10% pelas filhas, 12% por empregadas domésticas, 4% pelos maridos e apenas 10,2% ficam em creches. Ainda assim as mulheres casadas, em idade entre 25 e 29 anos, com filhos, apresentavam em 1995 uma taxa de atividade de 56% (Bruschini, 1998), sugerindo que as responsabilidades familiares não têm constituído um obstáculo à inserção das mulheres no mercado de trabalho, embora o cuidado com os filhos e demais familiares ainda represente uma sobrecarga para aquelas que trabalham fora. Para as mulheres que não podem arcar com os custos de uma empregada doméstica, a solução encontrada é acionar a rede de parentesco ou de vizinhança. Em muitos casos, são as filhas mais velhas que assumem os cuidados com os irmãos menores. Apesar das desigualdades de gênero que ainda podem ser identificadas na sociedade contemporânea, mudanças vêm ocorrendo nos arranjos familiares. As mulheres não mais têm guiado suas práticas 197 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias segundo o discurso tradicional materno. E da mesma maneira também os homens não têm mais seguido as práticas de seus pais. Há um estilo de maternagem e paternagem e de relação com os filhos que prevê a satisfação de outros desejos das mulheres e dos homens. Contudo, essas mudanças parecem, de certo modo, ser mais expressivas no plano das idéias do que na prática cotidiana. As mudanças de comportamento expressas no discurso das pessoas (e a mídia tem um papel central em fomentar esse discurso) soa muitas vezes contraditório com o que observamos na prática cotidiana das relações parentais. Refletindo sobre as mudanças na paternagem na sociedade americana, Ralph Larossa (1994), considera que as mudanças no plano das idéias não necessariamente remetem a transformações de conduta. Larossa tece seu argumento a partir de duas dimensões: uma cultura da paternagem (referente às normas, valores e crenças) e uma conduta da paternagem (relativa às práticas, ao comportamento). A cultura da paternagem pode ser compreendida com o mesmo sentido que Jean-Claude Passeron (1995) define a “cultura declarativa”79. O discurso oral ou escrito de uma cultura é o que mais rapidamente evolui, mais depressa do que a própria ação. A “cultura declarativa” (discurso, idéias) tem como característica insidiosa ser “um saber absoluto da essência de qualquer cultura que distorce a descrição do que ela é em si como prática, a fim de fazer as duas [descrição e prática] coincidirem de maneira ideal.” (1995:364) Passeron nos mostra que a discursividade é uma formulação que fazemos de nós mesmos, uma definição falada (ou escrita) das relações que estabelecemos entre os valores, o homem e o próprio mundo. E por 79 Passeron (1995) apresenta três sentidos para cultura, classificação que permite definir melhor os fins e os meios de uma ação cultural, observáveis em graus diversos em qualquer cultura: cultura como estilo de vida (modelos de representação e prática); cultura como comportamento declarativo (a cultura expressada pela linguagem ou escrita) e cultura como corpus de obras valorizadas (particularmente as obras de artes). 198 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias isso a distinção entre cultura e conduta não é explicita, em geral, é presumido que a conduta dos indivíduos está em sincronia com os valores e as crenças. Larossa acredita que numa sociedade em acelerada mudança, o contrabalanço das forças pode resultar em mudanças na cultura e não necessariamente na conduta dos indivíduos. No caso da paternagem, as mudanças apontadas pela mídia e por especialistas (psicólogos, sociólogos, pedagogos etc.) estão restritas à cultura, ou seja, ao plano das idéias e crenças. O próprio discurso da mídia e dos especialistas seria responsável por inspirar no pensamento social a existência de um “novo pai”. Se houve alguma mudança, ela responde às transformações na conduta da maternagem (provocadas pelo declínio da taxa de fecundidade e pelo crescimento das mulheres no mercado de trabalho); tanto que hoje é aceitável (até esperado, como pode ser observado nos depoimentos) que a mãe invista numa carreira profissional ou tenha uma atividade remunerada. Tal fato estaria servindo como argumento para estudiosos e para a mídia suporem que os pais/homens estariam, por tabela, se envolvendo mais nas atribuições com os filhos e com a casa. A hipótese de Larossa é de que essas mudanças têm atuado mais no sentido de estabilizar a cultura da paternidade, ao invés de desestabilizá-la. A conduta da paternidade (mais tradicional) e a conduta da maternidade (mais moderna) estariam influenciando contraditoriamente a cultura da paternidade (modelo idealizado). As conseqüências da não-sincronia entre uma cultura moderna da paternidade e uma conduta menos moderna ou tradicional se traduzem, por um lado, na emergência de uma “presença técnica do pai, mas ausência funcional” (não há comprometimento e nem acessibilidade), por outro, num aumento da crise conjugal no que se refere às atribuições com os filhos e com a casa e um crescimento do 199 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias número de pais que se sentem ambivalentes quanto a sua performance. (Larossa, 1994). Pensando nos depoimentos que obtive de Benício, Carlos, Leonel, Luciano, Luiz, Marcos, Mauro, Péricles, Renato e Saulo é possível concordar apenas com parte do argumento de Larossa. De fato, mudanças efetivas nas práticas cotidianas relativas aos afazeres domésticos e aos cuidados com os filhos não ocorrem facilmente. Por outro lado, eles verbalizam interesse, indicando compreensão da importância de estarem mais presentes na vida de seus filhos e de participarem da rotina doméstica. Questionam o modelo paterno herdado de seus pais e afirmam a importância de expressarem afeto e suas próprias inseguranças. Diferentemente do que Larossa afirma, os homens que entrevistei não me pareceram ambivalentes quanto à sua performance como pai. De maneira geral, expressam muito claramente suas expectativas e seus fantasmas com relação à educação de seus filhos; vivem um intenso processo de reflexão sobre o seu lugar na família, como pai e marido, como ilustra esta passagem e com a qual finalizo minha reflexões sobre a experiência masculina da paternidade na década de 1990, certa de que não foi possível esgotar o assunto: — A educação que você dá aos seus filhos é parecida com a que recebeu do teu pai? — É parecido porque eu sou gozado com eles, como meu pai era gozado comigo. O que difere mesmo eu acho que é isto, eu estou mais presente. É uma coisa que eu vi na minha educação pô que eu entendo, mas eu gostaria que fosse mais...Mesmo que seja para fazer coisa errada, acho melhor estar por perto, sabe. Acho que também os meus pais tinham muito cuidado com a gente, eles tinham quase medo da gente, eles queriam acertar muito, sabe, caprichavam demais. Hoje eu acho que muita água já correu debaixo dos usos e costumes, e dá para gente fazer mais burrada e não se sentir tão culpado, como eles se sentiam. Eu penso, pô, educação não é acertar, educação é impossível, eu olho para essas crianças, o mundo como é, eu faço o possível, cara! Não dá, tudo é muita variável, eu não estou criado, cara, e eu tenho quase quarenta anos! O Brasil é louco, a minha profissão é louca, eu sou instável, sabe, tem um monte de valores que eu não tenho certeza deles. (Benício, músico, 2 filhos) 200 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Alice R. P.; SORJ, Bila. O trabalho invisível: estudos sobre trabalhadores a domicílio no Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1993. ALMEIDA, Angela M. de [et.al.]. Pensando a família no Brasil: da colônia à modernidade. Rio de Janeiro : Espaço e Tempo: UFRJ, 1987. ALMEIDA, Heloisa A. D. R. de. 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Da infância à adolescência: • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • idade com que ingressou na escola? a mãe trabalhava fora? foi cuidado por babás ou avós? além de ir a escola participava de outras atividades escolares? quem o levava? alguém o acompanhava nas tarefas escolares? quem? quem costumava ir às reuniões escolares? quem costumava leva-lo ao dentista e ao médico? quem era responsável pela disciplina? seu pai ou mãe contavam histórias antes de dormir? você se lembra de brincadeiras com seu pai? Quais? e na adolescência, faziam programas juntos? Quais? Você recebeu orientação para a vida sexual? De quem? foi? você e seus irmãos eram responsáveis por alguma doméstica? você se lembra do seu pai ajudando em alguma doméstica? o que vocês costumavam fazer nos fins de semana? como você descreveria seu pai? como você descreveria sua mãe? O que pensa da educação que recebeu de seus pais? até que idade morou na casa dos pais? Por quê? extra- Como tarefa tarefa 218 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias ! A família de procriação • • • • • • • • • • • como conheceu sua companheira? utilizavam algum método anticoncepcional? quem tomava a iniciativa em relação a isso? quanto tempo depois de casados sua companheira engravidou? foi uma gravidez planejada? se não, como foi a sua reação ao saber da gravidez? como foi o período da gravidez? você a acompanhou ao médico durante o pré-natal? entrava na sala de exames? acha que a gravidez afetou o relacionamento do casal? participou do parto ! A rotina com o bebê • • • • • • • • • • • • como foram os primeiros dias em casa após a chegada do bebê? Se a mulher trabalhava, teve licença maternidade? Contou com alguém para ajudá-la? Quem costumava levantar durante a noite? Quem trocava as fraldas? Dava banho? Preparava as mamadeiras? Quem o levava para tomar sol? Acompanhava a mulher ao pediatra? Até que idade da criança fez isso? Levou-o alguma vez sozinho? Sua esposa deixava o bebê sozinho com você? Se deixava, como era? o nascimento do seu filho mudou seu comportamento? O ritmo do seu trabalho? Você se lembra de ter faltado ao trabalho por causa do filho? sua esposa voltou a trabalhar? Após quanto tempo? Continuou com o mesmo ritmo de trabalho? Quem cuidava da criança? Quando era preciso levá-lo ao médico, quem o levava? ! Sobre a rotina com uma criança em idade escolar: • • • • • • com que idade seu filho ingressou na escola? Quem o leva? Em qual período ele vai? Quem vai buscá-lo na escola? Ele tem outras atividades? Quais? Quem o leva? Quem cuida da escovação de dentes da criança? Alguém orienta/ajuda nas tarefas escolares? Em que horario faz isso? • Você já foi às reuniões escolares? Por quê? 219 EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias A rotina doméstica • Seu filho cuida de alguma tarefa doméstica? • E você? • Quem costuma chamar alguém para consertos domésticos? Quem cuida das contas? Sua mulher tem carro? Quem foi comprar? Quem leva o carro para a oficina? Quem paga a empregada? Quem dá ordens para a empregadas? Quem demite a empregada? Quem compra as suas roupas? Quem compra os presentes de aniversário das crianças? E as de seu filho? Vocês tem algum animal? Quem cuida dele? Quem arruma as camas? Quem põe a mesa para as refeições? E nos fins de semana? • O que vocês fazem nos fins de semana? • Costuma sair sozinho com seu filho? O que vocês fazem? ! Algumas reflexões sobre a paternidade: • Na sua opinião, como deve ser a educação das crianças? Por que? Quem deve cuidar da disciplina? Por quê? • O que você pensa sobre os homens que solicitam a custódia dos filhos? • Qual a sua opinião sobre homens solteiros adotarem crianças? • O que você pensa sobre sua mulher trabalhar fora? O que você pensa sobre ela não trabalhar fora? • Você poderia comparar a relação dos seus filhos com você com a sua relação com seu pai? • O que significa ser pai? 220