Capítulo 3 - NUPEA - Núcleo de Pesquisa em Ensino de Arte

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Capítulo 3 - NUPEA - Núcleo de Pesquisa em Ensino de Arte
Capítulo 3
Ensaio visual: Troca
Neste capítulo as imagens apresentadas sustentam a construção do
trabalho visual a partir das questões das relações humanas e as trocas. As
imagens dizem respeito às relações entre as pessoas, aos lugares onde
acontecem esses relacionamentos, aos objetos que possibilitam trocas, às
situações estabelecidas por artistas e vivenciadas tanto por eles quanto pelo
público.
Ao longo desta pesquisa foram surgindo vários tipos de trocas, já
elencadas na introdução, artista-pesquisadora e grupo de artistas, obra e
público, público e público, grupo de artistas e público, artista-pesquisadora e
público. Umas das trocas estabelecidas durante esse processo e que não foi
mencionada é a troca entre mim e meu orientador, que foi sendo construída a
partir do início das orientações, em momentos de leituras, discussões, os
encontros com o grupo de performers, os e-mails, as tensões vividas juntos
nesse período de estudos e experimentos, todos eles importantes para a
construção deste trabalho.
Quanto às trocas entre artista-pesquisadora e grupo de artistas,
referimo-nos ao grupo Castra Doloris. Pode-se visualizar as imagens
capturadas desse grupo neste capítulo. E no quarto capítulo encontra-se a
exposição Corpos Percursos, realizada em outubro de 2004, que registra os
encontros realizados com o grupo, o local de encontro e várias ações corporais
dos seus integrantes. A exposição gera duas trocas, uma com o grupo de
artistas, porque eles fazem a performance dentro do espaço da exposição, e do
grupo com o público, devido ao debate que acontece no final da apresentação.
Além disso, a exposição foi uma troca estabelecida por mim para o
grupo, foi a minha apreensão dos encontros e acontecimentos durante quatro
meses de observação e registros fotográficos e fílmicos. Na verdade eles me
“deram” suas imagens para serem fotografadas e eu selecionei e expus suas
fotografias. Na exposição encontramos troca entre nós (artista-pesquisadora e
grupo Castra Doloris) e entre nós e o público.
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Todas essas relações se estendem para um outro grupo, que são os
“profissionais do corpo”, as pessoas que irão propor as ações corporais na
instalação que “conclui” toda essa pesquisa e que estabelece outras trocas,
ampliando as redes de trocas.
Todas essas trocas, ações, encontros, discussões, experiências
estéticas vividas ao longo desse processo fazem parte da construção da obra
como um todo. Para a artista Lucimar Bello1,
Todas as “coisas” do meio ambiente, recursos tecnológicos;
artefatos existentes; partes do social, arte, censura,
organizações sociais; atitudes e valores pessoais – a realidade
dos indivíduos, suas aspirações, medos, inibições, necessidades
são importantes e são partes de nossas ações. (...) A qualidade
de experiências estéticas, tanto na criação de formas quanto na
recepção de formas feitas pelos outros, estão ligadas a essas
“dicas”. Elas são potenciais, que dependem de ser estudados e
entendidos quanto às suas inter-relações. Isso inclui conceitos
de realidades, simbolização, imaginação, estudos teóricos e
experimentais. O artista depende da comunidade e a
comunidade depende do artista – podemos assumir uma
variedade de divergências e transformações.(Bello, 1995, p. 85)
E poderemos ir mais adiante em nossas reflexões sobre as relações
sociais e a arte, quando a autora Dominique Chateau2 nos fala da relação
familiar, e que a situação do artista tem uma incidência sobre sua relação com
a estrutura social da família.
Com relação às práticas sociais de trocas que Mauss analisa, Dominique
Chateau aponta que:
Mauss explique qu’elles “ont un côté estheétique important dont
(il a) fait abstraction dans (son) étude”; et d’ajouter: <<mais les
danses qu’on exécute alternativement, les chants et les parades
de toutes sortes, les représentations dramatiques qu’on se
donne de camp à camp et d’associé à associé; les objets de
toute sorte qu’on fabrique, use, orne, polit recueille er transmet
avec amour, tout ce qu’on reçoit avec joie et présente avec
succès, les festins eux-mêmes auxquels tous participent; tout,
nourriture, objets et services même le “respect”, comme disent
les Tlingit, tout est cause d’émotion esthétique et non pas
seulement d’émotions de l’ordre du moral et de l’intérêt.”Cette
énumération de phénomènes qui procurent une émotion
esthétique amalgame des pratiques qui ne relèvent pas du
même concept, tels les festins. Du point de vue de Mauss, ces
deux catégories de pratiques sont unifieés par la même finalité
esthétique et son efficience dans le cadre des dispositifs sociaux
1
Lucimar Bello é Artista Plástica e Arte-educadora, pós-doutora em arte educação pelo CPS/COS/PUCSP.
2
Dominique Chateau é professora na Universidade de Paris I – Panthéon-Sorbonne.
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de l’échange. Du point de vue qui m’occupe, celui de l’art au
sens moderne-occidental du terme, le même amalgame ne tient
pas. Et cela d’autant moins que le but de l’esthétique (la
discipline) est d’opérer le discernement de l’artistique vis-à-vis du
reste, ce qui implique, notamment, de distinguer l’artistique de
l’esthétique, c’est-à-dire une forme de pratique spécifique de
l’emotion a qu’elle peut procurer ni plus ni moins que d’autres
formes de pratiques(comme le tourisme, par exemple). (Chateau,
1998, p. 73)3
Pensando na mistura das práticas artísticas com outras que não são
propriamente artísticas, estas misturas para Mauss estão unificadas pela
mesma finalidade estética e pelos mesmos fenômenos que envolvem as
questões sociais de troca. Um bom exemplo disso são as performances de
Vanessa Beecroft que criam uma emoção estetizando a moda, seus valores
econômicos e comerciais, sua questão jurídica. Ela retira todos esses
elementos que envolvem a moda e coloca as mulheres num certo espaço, o
contexto fazendo-nos lembrar da dimensão estética cultural que é a forma
relacional.
Beecroft trabalha com a idéia de corpo seriado, utiliza a roupa, o
acessório para homenagear um tipo único de corpo, uma única estética de
vestimenta utilizada por diferentes grupos sociais. Na minha imagem também
trabalho com a idéia de um corpo único, represento um corpo, mas este fala de
todos os corpos masculinos ou femininos, dependendo de quem a vê.
Outro exemplo dessa mistura de práticas são os banquetes do artista
Rirkrit Tiravanija, nascido em Buenos Aires em 1961 e atualmente vivendo em
Nova York. Ele cresceu em volta da cozinha de sua avó, uma renomada
professora de cozinha tailandesa e continental, proprietária de um restaurante
3
Tradução de Maria Stela Marques Ochiucci, 2005: Mauss explica que elas “têm um lado estético
importante do qual ele (fez) abstração no (seu) estudo’; e acrescenta: “mas as danças que se executa
alternadamente, os cantos e os desfiles de todo o tipo, as representações dramáticas que se fazem de
campo a campo e de associação a associação; os objetos de todo o tipo que se fabrica, usa, ornamenta,
lustra, junta e transmite com amor, tudo isto que se recebe com alegria e se apresenta com sucesso, os
próprios banquetes dos quais todos participam; tudo, comida, objetos e serviços e até mesmo o “respeito”,
como diz a família Tlingit, tudo é causa de emoção estética e não somente de emoções da ordem da moral
e do interesse”. Esta enumeração de fenômenos que propiciam uma emoção estética mistura práticas
propriamente artísticas (cantos, dramas, objetos, etc.) com práticas que não emanam do mesmo conceito,
tal como os banquetes. Do ponto de vista de Mauss, estas duas categorias de práticas estão unificadas pela
mesma finalidade estética e sua eficiência no quadro dos dispositivos sociais de troca. Do ponto de vista
do qual me ocupo, qual seja o da arte no sentido moderno-ocidental do termo, o mesmo amálgama não se
sustenta. Ainda menos quando o objetivo da estética (a disciplina) é de operar o discernimento do artístico
em relação ao resto, o que implica, notadamente, distinguir o artístico do estético, ou seja, uma forma de
prática específica da emoção que a estética pode proporcionar nem mais nem menos quanto outras formas
de práticas(como o turismo, por exemplo).
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e animadora de um programa de TV. Para o artista, esta vivência com a avó foi
decisiva para sua profissão. Ele afirma:
Durante os últimos dez anos de meu trabalho, fiquei conhecido
como o ‘cozinheiro’ do mundo da arte. De certa forma ou de
outra, uso a cozinha e a culinária como base para investir na
estética cultural do ocidente em relação à vida e ao saber viver.
Descobri que a comida é um meio comum que cria as condições
e as experiências de comunicação, muitas vezes desvinculada
da linguagem, porém com uma dimensão espiritual. Espero ser
possível ultrapassar as barreiras físicas e imaginárias na arte
comunitária de cozinhar e de compartilhar a comida. (Tiravanija
apud Quietude da Terra, 2000, p. 92).
Rirkrit Tiravanija preparou com os meninos do projeto Quietude da Terra,
realizado em Salvador4, uma refeição tailandesa. Os jovens ficaram
encarregados de cortar verduras, colher folhas e outros ingredientes para
preparar o alimento. Enquanto cozinhava, Tiravanija conversava com eles
sobre o conceito de dar e enfatizou as diferenças e semelhanças entre as
comidas baiana e tailandesa. O artista pretendia fazer uma troca com eles e,
enquanto preparava o alimento, conversava com as crianças a respeito do
conceito de dar:
Ele esperava fazer uma troca durante os trabalhos, ou melhor
dito, não-trabalhos, que produzia. Esperava que esses trabalhos
personificassem um espírito que nos transportasse para outro
lugar, mostrando-nos uma outra identidade de uma comunidade,
assim como uma música e os movimentos da Capoeira.
(Quietude da Terra, 2000, p.94).
Essas questões todas me remeteram a diferentes situações culturais
que encontramos no Brasil, contextos e maneiras diversas de se preparar um
alimento e o quanto esse processo traz relações de trocas, de dar e receber.
Foi pensando nesse trabalho de Tiravanija e remetendo ao meu contexto, às
minhas relações com minha família, seus valores simbólicos, a mãe que
prepara a comida mineira trazendo todos a sua casa, estabelecendo relações
familiares. A partir daí construí a idéia do pão de queijo na exposição, por ser
um alimento bastante típico no meu contexto e por proporcionar, dentro da
exposição, uma relação mais próxima entre mim, os visitantes e a obra.
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O Projeto foi detalhado no primeiro capítulo.
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A respeito desses valores simbólicos, os elementos que encontramos
nas relações inter-humanas mais simples, como o estar sentado com à família
a mesa, diz Serres:
A mesa, como o corpo, abrilhanta-se de pequenas represas,
ânforas e taças, garrafas, copos, pratos, ninguém bebe ou come
completamente o tempo que corre. São necessários estoques
intermediários. Pequenos lagos de memória, os copos. (...) O
corpo assemelha-se à mesa e o banquete ao amor. O organismo
enche-se de pequenas bolsas de memórias onde o tempo corre
ouço ou se imobiliza, esvaído, estoques intermediários como
copos e garrafas, além de bancos maiores onde pode ficar
congelado para sempre.
(2001, p. 182)
O aroma do café tostado faz os músculos e a pele, desde manhã cedo,
estremecerem de contentamento, nos lembra Serres (p.167). Pensamos em
quantas pessoas se reúnem por dia, amigos, parentes, negociantes,
estudantes, professores, donas de casa, enfim diversas pessoas, em volta do
famoso “cafezinho”, que é, então, o propositor de várias relações. Por isso
pensei também no café para exposição, para materializar esse pensamento e
essas relações.
Para Serres uma determinada cultura retém seus hábitos através do
gosto. Este tem algumas vantagens, afirma o autor. Com relação aos
banquetes, ele acredita que
A esta ação, a esta transubstanciação, de uma energia material
em olores, em espírito; isto, que concentra ou resume os dons
do mundo ou os dados, invade o corpo de cada um e circula no
corpo coletivo, como um sangue que queima, corre e pula. Ao se
decidir de fato a vida... sua relação com este dado concentrado,
resumido, que explode no corpo de todos.(Serres, 2001, p. 187.)
Várias fotos que estão neste capítulo são registros de experimentações,
vivências, trocas entre jovens e artistas que participaram do grande evento que
foi a Quietude da Terra: Vida cotidiana, Arte contemporânea e Projeto Axé.
Foram dezenove artistas participantes desse projeto: Janine Antoni,
Montien Boonma, Rirkrit Tiravanija, Cai Guo-Quiang, Che Zhen, Larry Clark,
Willie Cole, Mario Cravo Neto, Domenico de Clario, Leonardo Drew, João
Ewerton, Vik Muniz, Rivane Neuenschwander, Alberto Pita, Doris Salcedo,
Tunga, Kara Walker, Nari Ward, Mestre Didi Alapini.
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Numa dimensão menor que este projeto Quietude da Terra, no ano de
1997 foi realizado por mim um projeto nomeado como Lixo Vira Arte, que mais
tarde se tornou minha monografia de final do curso de especialização. O
projeto foi realizado numa cidade pequena, com cerca de 30 mil habitantes,
Monte Alegre de Minas. Numa escola estadual, eu estava substituindo uma
professora de arte cujos planejamentos eram basicamente em geometria.
Numa cidade totalmente desprovida de exposições de arte, circuito de arte e
poucos profissionais da área, situação que hoje está mudando.
A proposta do projeto era que cada grupo de alunos criasse seu projeto
contendo desenho, justificativa e local de apresentação. A partir da
compreensão desses projetos, os alunos deveriam realizar os trabalhos para
serem expostos desde a entrada da cidade até a última praça da avenida
principal.
Os trabalhos seriam idealizados, construídos e montados por eles
próprios. A proposta era que utilizassem para essa construção materiais que
tivessem sentido para eles, alguns tipos de sucatas, coisas que gostavam de
colecionar, materiais que estivessem no seu cotidiano.
Tomaram consciência das obras de vários artistas que eles não
conheciam, como Hélio Oiticica, Lygia Clark, Washington Santana e outros. O
resultado foi uma grande troca entre alunos e mim. Trouxe para eles imagens
que jamais haviam visto, um outro lado da arte que eles não conheciam.
Provoquei, instiguei seus pensamentos, para que eles se situassem onde
estavam, como estavam, o que pensavam e como poderiam pensar em suas
relações com diversas práticas sociais e colocar isso em um trabalho de arte.
Exemplo disso é um trabalho de um grupo de alunos que se encantou com os
Penetráveis de Hélio Oiticica, viu algumas imagens desta obra e a quem contei
sobre eu tê-la visitado, tendo tido a oportunidade de vivenciá-la. Esse grupo de
alunos utilizou garrafas de plástico de refrigerante e, com a ajuda de um dos
pais para fazer a estrutura de madeira, construiu uma “casa”, onde as pessoas
podiam entrar e fazer um trajeto que remetia a nossos trajetos dentro de casa.
Eles utilizaram sucatas para representar o interior da casa. Esse trabalho ficou
exposto na praça.
Outro trabalho que utilizou garrafas de plástico foi uma bandeira do
Brasil com mais de três metros de altura por cinco metros de comprimento. O
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grupo fez referência a uma obra de Washington Santana, toda feita de chinelas
havaianas pintadas nas cores da bandeira do Brasil, que já antecipava a
comemoração dos 500 anos do Brasil.
Já um trabalho que causou polêmica e um pouco de transtorno foi o do
grupo preocupado com as questões do trânsito. O grupo pegou no ferro velho
um carro batido, pôs no trevo de entrada da cidade e junto ao carro colocou um
boneco todo machucado. A polêmica deste trabalho foi porque as pessoas
pensavam, quando passavam pelo trevo, que era um acidente de verdade, e
assim tivemos a presença da polícia.
Os grupos faziam suas reuniões em casa e sempre que encontravam
dificuldades me chamavam. Ensinava a eles técnicas, pensávamos juntos os
materiais, as formas, os lugares e a questão da arte que não é contemplação,
arte na rua, o papel do artista, do aluno de arte e do professor. Além disso,
discutíamos questões sociais, identidade, sexualidade e suas relações com o
mundo.
Minhas propostas como professora de arte em escolas da rede pública,
particular e mesmo a experiência como professora substituta no ensino
superior sempre levantavam questões que instigavam os alunos a pensar na
sua identidade, seus valores, a sexualidade e suas relações com o mundo. Nas
aulas de arte os alunos eram provocados a refletir sobre suas crenças e
práticas para posteriormente criar sua própria obra.
Para Mauss a arte se integra em diversos aspectos da realidade social,
aspectos estes que existem independentes da arte, mas que se reencontram
num dado qualquer dessa realidade. Essa integralização da arte nos aspectos
da realidade social faz então pensar a arte como fato social total. Neste
sentido, Mauss faz a metáfora do corpo e da organicidade, ou seja, ele
considera o todo, sem fragmentação, um corpo que é preciso olhar em sua
organicidade e não em suas partes.
Mauss considera “as sociedades como um conjunto todo e não
decomposto e dissecado” (Mauss apud Chateau, 1998, p. 79.) por isso a
metáfora do corpo como uma organicidade. Conforme Chateau,
(...) l’optique maussiene, eu égard à son intérêt positif envers les
phénomènes de totalisation sociale, ainsi que je l’ai déjà note au
passage, offre une perspective interessante pour intégrer dans
l’explication du fait artistique la maniére dont l’artiste vit et pense
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lui-même son rapport à l’art: um rapport de sympathie, au sens
étymologique, um rapport de sensation, d’émotion, de passion
envers um objet dans lequel il peut désirer s’investir corps et
âme avec l’espoir d’e tirer comme d’u miroir (sous la forme, par
exemple, de l’oeuvre d’art), aussi déformant ou réfringent soit-il,
le reflet ou la trace de son investissement. Même si, à certains
égards, la pensée du sentir participe d’une illusio, il semble que
la monnaie concrète, psychologique ou morale, dont elle se paie
ne permette pas de rèduire le fait artistique au jeu du champ oul
il s’inscrit. Le champ de l’art est comme um domaine de définition
où l’investissement artistique doit nécessairement se projeter
pour accéder à l’efficience sociale. Mais, comme on le verra plus
précisément, cette projection ne saurait avoir lieu sans la
participation de l’artiste à la série d’actes et de productions à
travers lesquels son investissement prend corps. Sans cette
corporélité, cette forme, elle aussi, d’objectivité, mais qui mobilise
um subjet, le champ de l’art ne serait rien d’autre qu’une maison
hantée, peuplée de fantômes décidément incapables de saisir ou
de transformer lê réel. C’est parce qu’il fait encore partie de la
réalité, insistait Freud, que le fantasme artistique non seulement
parvient à se construire une réalité propre (l’oeuvre), mais encore
est communicable.5(Chateau, 1998, p. 79)
O artista, muitas vezes, se coloca no próprio trabalho e quer que o outro
o veja. Ele se envolve com esse fazer e com o produto, e procura ver o
envolvimento do outro com sua obra. Neste sentido podemos pensar também
em artistas que fazem de sua produção um caminho para criticar, reivindicar
ações políticas de instituições, de políticos e até mesmo da sociedade. É o que
podemos nomear como arte política, arte e política se fundem.
No Brasil podemos citar o grupo de intervenção urbana 3Nós3 que foi
formado pelos artistas Hudinilson Jr., Mario Ramiro e Rafael França, no ano de
1979. O grupo saía pelas ruas de São Paulo, lacrando portas das principais
5
Tradução de Maria Stela Marques Ochiucci, 2005: (...) a ótica de Mauss leva em conta seu interesse
positivo para com os fenômenos de totalização social, assim como oferece uma perspectiva interessante
para integrar na explicação do fato artístico a maneira pela qual o próprio artista vive e pensa sua relação
com a arte: uma relação de simpatia, no sentido etimológico, uma relação de sensação, de emoção, de
paixão para com um objeto no qual ele pode desejar investir corpo e alma com a esperança de extrair dele
como de um espelho (sob a forma, por exemplo, da obra de arte), tão deformante ou refrangente quanto
ele possa ser, o reflexo ou o traço de seu investimento. Mesmo se, em alguns aspectos, o pensamento do
sentir participa de uma illusio, parece que a moeda concreta, psicológica ou moral com a qual se paga não
permite reduzir o fato artístico ao jogo do campo onde se inscreve. O campo da arte é como um domínio
de definição onde o investimento artístico deve necessariamente se projetar para ter acesso à eficiência
social. Mas, como se verá mais precisamente, esta projeção não aconteceria sem a participação do artista
na serie de atos e de produções através das quais seu investimento toma corpo. Sem esta corporeidade,
esta forma de objetividade também, mas que mobiliza um sujeito, o campo da arte não seria nada além de
uma casa assombrada habitada por fantasmas decididamente incapazes de entender ou de transformar o
real. Isto porque o que faz ainda parte da realidade, conforme insistia Freud, é que o fantasma artístico
não somente acaba por construir uma realidade própria (a obra), mas também é comunicável.
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galerias e museus, e deixava escrito: “O que está dentro fica, o que está fora
se expande”.
Intervenções na Avenida Paulista, ensacamento de monumentos, em
busca de novos métodos, novos materiais. Os artistas queriam provocar
reações nas pessoas. Eles estavam preocupados e eram contra os sistemas
que envolviam criadores e público.
Tanto esses três artistas que compunham o grupo, como outros artistas
da época, buscavam um contato mais direto com o público. Muitos deles
distribuiam reproduções de obras em off-set e xerox, livros xerocados, mais
baratos e de circulação rápida. Houve também a criação de cartões-postais.
Para Freire (1999, p. 125) “os ideais utópicos dessa geração incluíam romper
com o mercantilismo na arte e compartilhar suas criações com um número
maior de pessoas. Tratava-se de atuar na crença da força subversiva da arte”.
Há artistas que criticam as regras das instituições dentro da própria
instituição, como é o caso do Ready-Made de Duchamp, que jogou com as
regras da instituição.
Hélio Oiticica, em 1965, faz a primeira apresentação polêmica em
público com o “Parangolé”, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, com
a participação de seus amigos passistas do moro da Mangueira. Ele tentou
entrar com todos os passistas durante a coletiva “Opinião 65” e foi impedido,
mas “a entrada proibida do “Parangolé” no museu em nada desestimula suas
proposições, pelo contrário, só irá mais lhe afirmar o potencial de
manifestações de grupo e parcerias.”(Figueiredo, 2002, p. 43).
Oiticica muitas vezes fez de sua obra um ato político, como na obra
Bólide Caixa 18 (1965-66) “Homenagem a Cara de Cavalo”, e a outra “Seja
Marginal, Seja Herói” (1968). Essas obras trazem acontecimentos do cotidiano
carioca refletidos na poética de Oiticica. Figueiredo reproduz em seu catálogo
um texto que Oiticica escreveu na coluna “Geléia Geral” do poeta Torquato
Neto no jornal A Última Hora (29/09/1971) sob o título “Exposição? Eu não!”,
fazendo uma crítica à política do mundo das artes plásticas da época. Para
muitos é difícil entender as posições extremas dele com relação às instituições.
Busco em Oiticica não seus atos políticos, suas agressões às
instituições, mas o modo como ele constrói seu trabalho, suas relações com o
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morro da Mangueira, as relações entre os participantes e destes com a obra e
com o artista. Oiticica retira do cotidiano da favela materiais como tecidos,
plásticos, cortinas de banheiro para construir os Parangolés.
Ele retoma os fragmentos de tecidos e de plásticos do interior
dos barracos para fazer as capas. Oiticica conseguiu fundir o
interior e o exterior – espaço privado/espaço público – dos
abrigos, conservando a preocupação principal, qual seja, a idéia
de abrigar. (Jacques, 2003, p. 35)
Hélio Oiticica, no texto Bases Fundamentais para uma definição do
Parangolé, de novembro de 1964, comenta sobre o Parangolé:
E aí ele formou os seus movimentos de Parangolé, admitindo a
possibilidade de se imitar os favelados do Rio de Janeiro,
quando com o mínimo de disponibilidade, criam, também, artes.
Vivenciam artes. Isso é profundamente verdadeiro. Basta que se
veja quantas vezes a favela comparece ou visita temas de
artistas ou pintores da categoria dos renomados, para se sentir
que naquela figura da geometricidade simples dos morros
cariocas já trazem em si o princípio estético universal na sua
arquitetura (1964, p. 65).
Oiticica viveu a Mangueira e nos traz referências desta vivência entre
esse grupo que foi de grande influência para ele e para sua produção. Criou
em seus ambientes espaços labirínticos, como define a autora de A estética da
Ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica, Paola
Berenstein Jacques, que faz a obra de Oiticica um fio condutor para estudos
sobre arquitetura, pela razão de o artista resgatar a estética do espaço da
favela. Jacques utilizou três figuras conceituais: fragmento, labirinto e rizoma
para dissecar o que ela denomina a estética das favelas.
A idéia de labirinto é a do estado labiríntico, relacionado não
necessariamente à forma do labirinto, mas, sobretudo, à
experiência de nele penetrar... através dos labirintos de Hélio
Oiticica é que a experiência espacial pessoal e coletiva é
primordial para construir um labirinto em que é impossível ter-se
qualquer previsão (projeto) dessa experiência sensorial e
subjetiva do espaço. (Jacques, 2003, p. 97)
Refletindo sobre noção de labirinto traçada por Jacques, podemos
encontrar alguns pontos em comum com a obra Cápsula (NBP x eu – você),
2000, de Ricardo Basbaum. Na obra dele podemos pensar no labirinto, por não
ter imagem fixa, mas idéia de visão fragmentada, por proporcionar experiências
no percurso.
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O espaço que Basbaum cria é um espaço labiríntico, porque se
relaciona, ou se organiza, não na forma de um labirinto, com entradas e uma
possível saída, mas na idéia de penetrar num determinado espaço.
Que tipo de experiência é esta? É um caminhar pelo espaço que nos dá
a sensação de que estamos perdidos, por não saber onde queremos ir, se
devemos ou não entrar nas cápsulas. Mas ao mesmo tempo nós nos
encontramos, o que, entretanto, vai depender de cada visitante, porque este
precisa tomar a decisão de entrar em uma das cápsulas para poder se
(re)encontrar, pensar num “eu” e num outro.
Por vezes pode parecer que a montagem de Basbaum seja uma
proposta pronta, não inesperada e sim organizada, sistematizada como algo
racional, mas é o contrário. Ela nos dá essa idéia de aprisionamento, mas
propõe uma experiência do percurso, porque liberta o público de participar.
Este escolhe, assim como num labirinto em que o sujeito entra ou não, sair por
cima como no mito de Cnossos, (Dédalo sai de seu labirinto voando), ou
enfrentar até o fim.
Ao entrar nessas cápsulas as pessoas vivenciam experiências espaciais
e sensoriais, porque são “cápsulas de lazer para se entrar e deitar aos pares
introduzindo assim inflexões nas condições de proximidade, de estar junto e
só” (Brett, 2002, p. 35).
Trazendo as referências das obras de Oiticica e Basbaum para meu
trabalho, é possível elencar as questões como a participação do público na
obra, a noção de labirinto para construir o espaço da instalação, gerando a
partir daí um espaço labiríntico, sensorial, inacabado e que propõe situações
relacionais no ato do percurso, ou mesmo entre obra e visitante.
Este espaço criado não tem a forma de um labirinto, mas sim a idéia de
ser labirintado, e pensar num espaço assim é pensar no fragmentário,
utilizando as palavras de Jacques (2003, p. 97): “a totalidade não faz parte do
estado labiríntico, a totalidade é de ordem da pirâmide. O verdadeiro labirinto
não tem imagem fixa, é impossível captá-la totalmente, pois está em
movimento. O labirinto é o percurso, o fio que, percorrendo-o, o tece”.
No contexto contemporâneo internacional, dentro do que foi chamado
por Bourriaud de Arte Relacional, encontramos o artista Maurizio Cattelan, que
vive e trabalha na Itália e nos Estados Unidos. Transgressor, combina escultura
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(objetos) e performance em suas mostras e brinca com os limites de tolerância.
Seu trabalho é provocador, irônico e em algumas obras encontramos senso de
humor. Trabalha entre a realidade e a ficção, simulando e subvertendo os
papéis da cultura e da sociedade, num jogo de simulações reais e instigantes,
como é o caso de uma mostra em que, no momento da abertura, não havia um
só trabalho dele na galeria. Seus amigos é que chegaram e, juntos,
arrombaram outra galeria e trouxeram as obras para sua exposição.
Outra obra polêmica de Maurizio Cattelan aconteceu em Milão na
Fondazione Nicola Trussardi em 2004. Ele instalou três crianças amarradas
pelo pescoço e penduradas em uma árvore. Diz Cattelan: “Childhood, this
strange place where traumas happen and you dream incredible dreams, is a
place I always return to”.6
Essas obras questionam o papel do artista, do espectador e a arte. São
obras que trazem o público, não mais espectador, a dialogar numa relação de
troca e negociação entre obra, contexto, artista e público. Isto é que Bourriaud
chama de formalização. Hoje, para ele, a arte se dá na relação entre obra e
público.
Para Bourriaud não é a técnica ou o suporte que é o mais importante,
por exemplo, na pintura ou na escultura, e sim o tipo de relação estabelecida
com as pessoas. É o caso de ver uma pintura e esta causar um êxtase
corporal. O encontro entre o ver a pintura e a coletiva elaboração dos sentidos.
É a mistura de sentido que Serres propõe.
Spencer Tunick é um artista norte-americano que, desde o início de sua
carreira artística, causou polêmicas entre as pessoas e principalmente aos
policiais. Tunick fotografa as pessoas nuas na rua e no início ele teve
problemas com policiais. Promove grandes eventos para que aconteçam essas
fotos e várias pessoas trabalham juntamente com ele. É necessária uma
divulgação bem elaborada e Tunick sai nas ruas para convidar as pessoas para
estarem nuas em tal local marcado e no horário combinado. Em troca ele dá
uma foto para todos os participantes.
6
A infância é um estranho lugar onde traumas acontecem e você sonha incríveis sonhos, é o lugar a que
eu sempre retorno. (tradução da autora)
http://www.postmedia.net/cattelan/5maggio.htm
Maurizio Cattelan | Hanging Kids Milano, May 5th, 2004
Piazza della Scala, 5 - 20121 Milano capturado em 22/03/05 às 20h41min.
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Tunick, no projeto “Naked World”7, rodou vários continentes, e em cada
lugar encontrou culturas diferentes e vários modos de ver o corpo humano.
Tunick, de certo modo, quebra com alguns tabus, mistura culturas,
diversidades. Em alguns locais, por exemplo na França, a nudez é uma
agressão. Outros utilizam a nudez para quebrar barreiras sociais e individuais,
como é o caso de uma pessoa que deu um depoimento sobre participar de tal
evento: “meu corpo é a minha última barreira no HIV”. Essa pessoa é portadora
do vírus e dá um depoimento muito interessante no documentário Naked
World. Outro depoimento de participantes desse projeto: “Este evento fez me
sentir livre, importante romper as barreiras da invisibilidade”.
Para ele a fotografia não é o mais importante, e sim onde e como
acontece o click: o momento da arrumação de todos os preparativos, escolher
a cidade, o local exato da cidade onde vai ser o evento e por último chamar as
pessoas. Ele faz com que as pessoas tenham um tipo de envolvimento
especial e consegue despertar uma carga emocional nos participantes.
Tunick cria paisagens ondulantes de corpos - nas palavras dele “ gosto
de pensar o corpo como água, formando ondas e ondulações”(documentário) e com isso ele confronta o corpo com o urbano, a vulnerabilidade do corpo.
Como artista, Tunick está muito mais preocupado em quebrar tabus, nas
relações inter-humanas do que numa arte ativista, ou crítica às instituições.
Outro exemplo de polêmica e diversidade de proposta é o artista
Eduardo Kac, brasileiro, mas que vive e trabalha em Chicago. Ele montou uma
exposição da série Rabbit Remix, na galeria Laura Marsiaj em 2004, aqui no
Brasil, a partir da polêmica obra "GFP Bunny" (2000), que incluiu a criação, por
meio de engenharia genética, de uma coelha com GFP, ou Green Fluorescent
Protein (Proteína Fluorescente Verde). Sob luz azul, a coelha emite luz verde.
Kac chamou atenção para o fato de que a coelha é perfeitamente saudável e
que ele assumia responsabilidade por seu bem-estar. Desde o princípio o
objetivo do artista era trazer a coelha para viver com ele e sua família em
Chicago. Reuniu várias reportagens de jornais e revistas que comentavam a
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Naked World, documentário sobre o projeto: Nude Adrift, de Spencer Tunick, o qual era viajar pelo
mundo fotografando as pessoas em cada continente. Este projeto durou um ano com o evento final em
São Paulo.
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assunto da coelhinha.8 Mostra fotos de pessoas em diferentes locais lendo a
reportagem, como, na praia, no salão de beleza, na academia.
Para Bourriaud a arte faz parte da vida e do modo de vida. A maneira
como o artista vive e pensa a arte muitas vezes influencia sua produção. Tanto
nos trabalhos realizados pelos alunos, quanto nas obras e nos processos de
construção desses artistas citados aqui, todas essas apreensões das imagens
e os produtos finais se deram devido à maneira como artistas e estudantes
estão “entendendo” a arte. Esse entendimento depende da relação deles com o
meio em que vivem e dos estímulos dados a eles, processo que se assemelha
com de muitos artistas.
As leituras e as discussões dos materiais sobre a Estética Relacional, as
analises maussianas sobre as relações de troca, as discussões de Dominique
Chateau no livro A arte como fato social total, todas essas referências trazem
uma questão para pensar esta pesquisa e também o tipo de provocações que
pretendo propor nos visitantes.
De certo modo a minha produção traz referências pessoais, da minha
relação com o outro: os pais, a infância, as filhas, o companheiro, as festas, os
encontros, os amigos de trabalho e outros. Todas essas relações, os
banquetes, as vivências inter-humanas dentro do contexto social fazem parte
da construção poética. Como podemos ver nas leituras e nas imagens, cada
vez mais a arte é relacional, participativa e necessita da participação do outro,
num ir e vir de relações de trocas entre ambos, o artista em constante link com
o mundo e a cultura em que vive.
As obras mostradas neste capítulo referem-se a essas vivências, são
imagens da cultura, do local, da vida de cada artista em questão. A minha
produção é gerada a partir daí. Começa do local escolhido para a montagem
da instalação, que neste caso é meu ateliê. Em segundo lugar, as ações
pensadas para serem desenvolvidas neste local, tendo referência meu contexto
social e cultural.
Justifica-se montar a instalação no meu ateliê por ele fazer parte do meu
contexto social e cultural e por ser o local onde eu posso estabelecer minhas
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Capturado em 21/03/05 as 22 horas: http://www.lauramarsiaj.com.br/controlPanel/materia/view/122. O
texto de Kac sobre "GFP Bunny”, entre outros, pode ser lido em português e oito idiomas em seu site:
www.ekac.org, que incluiu a criação, através de engenharia genética, de uma coelha com GFP.
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relações, sendo, ainda, um local de permanência. Provavelmente futuramente
poderá acontecer em outros locais, mas há uma necessidade de acontecer
primeiramente neste contexto da cidade e principalmente no meu ateliê.
Para Chateau, o ateliê estabelece um contato mais direto com o público,
pelos aspectos sociais e as práticas artísticas.
L’atelier concrétise un mode décentralisé d’organisation de la
pratique artistique ou, ce qui revient au même, le recentrage de
cette pratique sur l’artiste. Il instaure le magistère d’un individu
dont l’autorité pratique et théorique, fondée sur une maîtrise
reconnue de son art, tend à s’imposer absolument dans l’espace
bien délimité de son lieu d’exercice. En vertu même de cette
délimitation, qui concentre le pouvoir de l’artiste dans une
institution spécialement destineé à l’exercice de l’art, un certain
nombre d’autres fonctions sociales, dont l’art participe,
échappent plus ou moins au rayonnement de l’atelier9(Chateau,
1998, p. 81).
9
Tradução Maria Stela, 2005: “O ateliê concretiza um modo descentralizado de organização da prática artística ou, o
que dá no mesmo, a focalização desta prática sobre o artista”. O ateliê instaura o magistério de um indivíduo cuja
autoridade prática e teórica, fundada em um domínio reconhecido de sua arte, tende a se impor absolutamente no
espaço bem delimitado do seu local de exercício. Até mesmo em virtude desta delimitação, a qual concentra o poder
do artista em uma instituição especialmente destinada ao exercício da arte, certo número de outras funções sociais,
das quais a arte participa, escapa mais ou menos à influência do ateliê.”