noções gerais sobre outras ciências forenses

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noções gerais sobre outras ciências forenses
Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
MEDICINA LEGAL - 2003/2004
NOÇÕES GERAIS SOBRE
OUTRAS CIÊNCIAS FORENSES
1. Toxicologia Forense
2. Genética e Biologia Forense e Criminalística
3. Psiquiatria e Psicologia Forense
4. Antropologia e Odontologia Forense
5. Perícias em caso de responsabilidade médica
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TOXICOLOGIA FORENSE
1
Rui Rangel
a) INTRODUÇÃO
Toxicologia representa a ciência cujo principal objectivo é a identificação e quantificação dos
efeitos adversos associados com a exposição a determinados agentes. Esses agentes, que
assumem a designação de tóxicos, são normalmente substâncias químicas de origem inorgânica
ou orgânica, às quais, em sentido mais lato, se podem associar certos agentes físicos ou outras
condições. A toxicologia compreende o estudo dos tóxicos e das intoxicações, de modo a
estabelecer os limites de segurança com que os meios biológicos podem interagir com os tóxicos.
Considera-se a toxicologia moderna constituída por quatro disciplinas principais: clínica, forense,
reguladora e de investigação. Em função da área de actividade adoptam-se as seguintes subdivisões: Ecotoxicologia, Toxicologia Alimentar, Toxicologia Clínica, Toxicologia Experimental,
Toxicologia Forense, Toxicologia Industrial, Toxicologia dos Medicamentos, Toxicologia
Ocupacional e Toxicologia Regulamentadora.
A definição do conceito de tóxico é muito difícil, uma vez que qualquer substância, mesmo
aquelas que fazem parte essencial dos organismos vivos, pode ser lesiva ou produzir transtornos
no equilíbrio biológico. Nesta medida, todas as substâncias seriam tóxicas, incluindo aquelas que
à partida, são habitualmente assumidas como alimentos ou medicamentos.
São vários os critérios pelos quais os tóxicos podem ser classificados. Para melhor
sistematização, em toxicologia analítica classificam-se os tóxicos de acordo com os métodos
extractivos adequados ao isolamento do analito. Assim consideram-se sete grupos de tóxicos, a
saber: gases; substâncias voláteis; substâncias orgânicas termolábeis; metais ou metalóides;
pesticidas; aniões; outras substâncias mais específicas.
A toxicologia forense insere-se no âmbito da toxicologia analítica tendo, por conseguinte, como
principal objectivo a detecção e quantificação de substâncias tóxicas. Contudo, a actividade do
toxicologista forense aplica-se a situações com questões judiciais subjacentes para as quais
importa reconhecer, identificar e quantificar o risco relativo da exposição humana a agentes
tóxicos. Como tal aproveita conhecimentos alcançados em praticamente todas as áreas da
toxicologia moderna.
Até ao século XX, a toxicologia forense limitava-se a estabelecer a origem tóxica de um
determinado crime; o “toxicologista” actuava directamente no cadáver com a mera intenção da
pesquisa e identificação do tóxico. Actualmente o campo de acção desta ciência é mais vasto,
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estendendo-se desde as perícias no vivo e no cadáver até circunstâncias de saúde pública, tais
como aspectos da investigação a nível da actividade laboral ou do meio ambiente.
No caso das pessoas vivas estes exames têm sobretudo a ver com perícias toxicológicas para
rastreio e confirmação de drogas de abuso no âmbito dos exames periciais ou médicos para
caracterização do estado de toxicodependência (Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01) e com o regime
legal da fiscalização do uso de substâncias psicoactivas nos utilizadores da via pública (DecretoLei nº 265-A/2001, de 28/09; Decreto-Lei nº 2/98, de 3/01; Decreto Reg. nº 24/98, de 30/10;
Portaria nº 1006/98, de 30/11). Neste último caso a participação do INML compreende, além dos
procedimentos para garantia de cadeia de custódia de produtos e amostras, os exames de
quantificação de álcool etílico no sangue, e o rastreio e confirmação da presença das substâncias
legalmente consideradas estupefacientes e psicotrópicas na urina e no sangue, respectivamente.
Os exames no vivo têm como objectivo a avaliação da intoxicação como circunstância
qualificadora de delito, como causa de perigosidade ou de inimputabilidade.
Em caso de morte por intoxicação que se enquadra no âmbito da morte violenta, existe
obrigatoriedade de, nesta suspeita, se proceder à autópsia médico-legal (Decreto-Lei nº 96/01, de
26/03), e consequentemente, em geral, à requisição de perícia toxicológica.
As intoxicações podem ser criminais, legais (pena de morte), acidentais (alimentares, mordedura
de animais, absorção acidental, medicamentosas) ou voluntárias (lesões auto infligidas,
toxicodependência, terapêutica).
Distinguem-se três formas de intoxicação segundo a velocidade de desencadeamento de acções
ou dos efeitos tóxicos: intoxicação aguda, sub-aguda e crónica.
Os tóxicos podem actuar sobre a célula produzindo uma destruição global da mesma por
processos de necrose, ou sobre o sistema enzimático ou partes selectivas da célula (membranas,
estruturas endocelulares ou organelos celulares). As principais reacções adversas produzidas
pelos tóxicos a nível do sistema enzimático evidenciam-se através da inibição irreversível (ex:
insecticidas organofosforados orgânicos) ou reversível (ex: carbamatos) de certos complexos
enzimáticos.
Na interpretação dos resultados analíticos devem ser considerados factores como a dose e via de
administração; produtos de “corte” consumidos (impurezas ou adulterantes); efeitos aditivos,
antagonismo ou sinergismo devido a associação com outras substâncias; estados patológicos
existentes; idiossincrasias.
A resposta do organismo a um determinado tóxico depende, para além dos factores do
“hospedeiro”, da sua concentração no orgão alvo (orgão mais acessível ou mais sensível aos
efeitos após exposição) e do seu mecanismo de acção. Há portanto que determinar a relação
entre exposição, dose e resposta. Como tal, é importante conhecer a cinética das substâncias no
organismo. Os principais fases em toxicocinética são absorção, distribuição, metabolização e
eliminação.
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Cada um destes passos pode influenciar a extensão da toxicidade produzida pelo agente tóxico,
pelo que uma avaliação do ponto de vista da toxicocinética pode ser importante na apreciação dos
dados analíticos obtidos. Em toxicologia, o processo de metabolização (ou biotransformação)
assume especial interesse, dado que os tóxicos são geralmente agentes xenobióticos, portanto
particularmente susceptíveis a sofrer alterações metabólicas no organismo, o que pode resultar na
produção de novas substâncias designadas por metabolitos. Como factores do hospedeiro que
afectam muitas das respostas a diversos tipos de agentes tóxicos podemos considerar as
determinantes genéticas, idade, género, e outros tais como dieta ou coexistência de doença
infecciosa. Estes factores podem afectar a exposição e a dose, através de alterações na
absorção, distribuição ou metabolismo. A variabilidade nas populações humanas e no indivíduo
deve ser considerada na avaliação de riscos da exposição a tóxicos e na ponderação de testes e
estudos de investigação toxicológica em organismos não humanos.
As diferentes intoxicações humanas apresentam geralmente um quadro sintomatológico
comum, que por isso associa um conjunto de sintomas tóxicos inespecíficos. Os sintomas mais
frequentes e de pior prognóstico para a recuperação do intoxicado são os seguintes: comas,
síndromas
hepatotóxicos,
nefrotóxicos,
cardiovasculares,
respiratórios
e
hematológicos,
neuropatias periféricas de origem tóxica e síndromes dermatológicos.
Em toxicologia analítica, a investigação toxicológica é o conjunto de processos analíticos que
têm por objectivo o reconhecimento, identificação e quantificação dos tóxicos para diagnóstico de
intoxicação e esclarecimento dos factos.
Em toxicologia forense executam-se perícias toxicológicas que implicam investigação
toxicológica humana no vivo ou no cadáver, baseada em procedimentos de garantia de qualidade
e de cadeia de custódia, com o objectivo do esclarecimento de questões de âmbito judicial
supostamente relacionadas com intoxicações.
Existe uma grande variedade de amostras que podem ser analisadas em toxicologia forense, tais
como órgãos colhidos na autópsia, fluídos biológicos obtidos do cadáver ou do vivo, e produtos
orgânicos e inorgânicos suspeitos (líquidos, sólidos, vegetais, etc.). Conforme a especificidade do
caso e o tipo de análise pretendida, procede-se à selecção e colheita da amostra ou das amostras
mais adequadas. A estas não pode ser adicionado qualquer preservante ou conservante, devendo
o seu acondicionamento e remessa obedecer a critérios de garantia da cadeia de custódia,
passos fundamentais à preservação da prova e correcta realização da perícia. Assim, na
conservação das amostras deve ser eliminado todo e qualquer factor de contaminação,
nomeadamente para o seu acondicionamento deve-se atender às condições de luz, humidade e
calor - fontes prováveis de reacções de oxidação ou hidrólise que podem acelerar a
decomposição dos produtos.
O exame toxicológico deve ser capaz de detectar qualquer substância química exógena
(xenobiótico) presente no material objecto da perícia. O facto de existirem um elevado número de
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substâncias tóxicas constitui uma limitação importante na realização destas perícias, pelo que a
maior parte dos laboratórios dirigem a sua investigação na procura daqueles que, segundo a
casuística da respectiva área de actividade, estão implicados na maior parte dos casos. Para a
selecção dos tóxicos a pesquisar é fundamental a informação sobre o evento (policial, clínico,
familiar) e a descrição dos achados da autópsia, uma vez que cada caso tem as suas próprias
particularidades.
As metodologias de investigação passam por uma série de fases: rastreio, confirmação,
quantificação e interpretação. Iniciam-se por um teste geral (que detecta um grande número de
substâncias, permitindo fazer uma triagem de casos negativos) e, só numa fase posterior se
recorre aos métodos de confirmação (que permitem confirmar a presença de substância suspeita,
bem como identificá-la e/ou quantificá-la).
As técnicas de análise toxicológica variam desde os clássicos métodos não instrumentais, tais
como reacções volumétricas ou colorimétricas, até outros mais sofisticados para os quais se
recorre a tecnologia apropriada, simples ou acoplada, como as técnicas espectrofotométricas (ex:
espectofotometria de absorção molecular - UV-Vis, de infra-vermelhos - IR ou de absorção
atómica - AAS), cromatográficas (ex: cromatografia gasosa – GC e cromatografia líquida - HPLC),
imunoquímicas
(ex:
Elisa,
imunoensaios
com
fluorescência
polarizada
–
FPIA
ou
radioimunoensaio - RIA), e de espectrometria de massas - MS.
O resultado destas perícias apresenta-se na forma de relatório onde devem constar, para além
duma eventual interpretação dos resultados, os seguintes dados: identificação do processo e da
entidade requisitante, método analítico utilizado e referências à técnica de isolamento utilizada,
datas de recepção de amostras e de conclusão dos exames, amostras analisadas, especialista
responsável pela execução das análises, níveis de detecção e de quantificação, estado das
amostras analisadas, e outros que possam ser considerados relevantes para elaboração de
conclusões.
Geralmente, o relatório de perícia toxicológica é enviado ao perito médico que requisitou a perícia,
sendo posteriormente remetido à entidade requisitante isoladamente ou em conjunto com o
relatório de autópsia ou de clínica médico-legal.
O “álcool” e as “drogas de abuso” são as substâncias que, na actualidade, fazem parte da
maioria das requisições de exames toxicológicos.
O consumo de bebidas alcoólicas pode ocasionar intoxicação acidental ou voluntária, ou mesmo
profissional, sendo o agente tóxico responsável o álcool etílico (ou etanol).
A intoxicação pode resultar da ingestão de bebidas alcoólicas em quantidade variável, de forma
esporádica ou habitual, podendo dar origem a intoxicações agudas no primeiro caso ou crónicas
no segundo.
As intoxicações agudas apresentam formas leves (embriaguez), que pode ter elevado interesse
médico-legal, pela sua influência na condução rodoviária, pelo seu importante efeito criminogéneo
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e por várias outras questões de ordem legal que se podem colocar como, por exemplo, questões
de responsabilidade penal. As formas graves desta intoxicação são esporádicas, podendo em
alguns casos ser causa de morte. Nestes casos, em virtude dos sintomas, é por vezes difícil o
diagnóstico diferencial com situações de traumatismo craniano.
As intoxicações crónicas têm consequências importantes, por exemplo a nível clínico originando
gastrites, dispepsia, miocardites ou cirroses, e em termos psiquiátricos levando a quadros
patológicos como delirium tremens, alucinações ou demências.
Consideram-se como “drogas de abuso” todas as substâncias químicas de origem diversa que
apresentam a característica comum de serem substâncias psicoactivas, cujo consumo ilícito se
processa de modo, mais ou menos, compulsivo. As “drogas de abuso” mais comuns inserem-se
nos seguintes grupos de substâncias: opiáceos, cocaína, canabinóides, anfetaminas e outros
produtos naturais ou de síntese laboratorial análogos a psicofármacos ou com efeito
alucinogénico. Como se verifica face aos grupos enunciados, não se trata de um grupo
homogéneo, pelo que implica uma classificação mista de modo a atender às características
químicas, mecanismo de acção ou efeitos produzidos no organismo.
No vivo, os estudos relacionados com “drogas de abuso” são feitos essencialmente para
avaliação do estado de toxicodependência e em casos de condução sobre influência destas
drogas.
Nas situações de morte associada ao consumo de drogas, esta pode surgir por sobredosagem
(overdose simples ou por associação de agentes potenciadores), ou por outras circunstâncias
associadas ao consumo, como uma reacção anafilática à droga ou aos produtos de corte,
doenças infecciosas (SIDA ou hepatite) ou outras complicações (acidentes, suicídio, homicídio,
morte súbita, pneumonia, etc.).
b) A AUTÓPSIA EM CASOS DE SUSPEITA DE INTOXICAÇÃO
A autópsia em casos de suspeita de intoxicação pode ocorrer em dois tipos de situações distintas:
1) autópsia imediata - morte recente (cadáver não inumado)
2) autópsia tardia - morte há muito tempo (cadáver inumado)
No caso de se tratar de uma autópsia imediata os procedimentos são semelhante às autópsias
realizadas por outros motivos, excepto no que diz respeito à colheita de amostras (órgãos ou
fluídos biológicos) para posterior exame toxicológico.
-
Convém, no entanto, relembrar que contrariamente à ideia generalizada de que nestes
casos é só colher e enviar amostras para exame toxicológico, este tipo de autópsia implica uma
atenção especial a todo um conjunto de elementos tão ou mais importantes quanto o resultado do
exame toxicológico. Esses elementos a ter em consideração vão desde o exame do local, à
informação respeitante às circunstâncias que rodearam a morte, ao exame do hábito externo e do
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hábito interno, ao resultado de outros exames complementares de diagnóstico que não os
toxicológicos, por forma a ser possível estabelecer um diagnóstico diferencial.
a) Exame do local em casos de suspeita de morte por intoxicação
Nos casos de suspeita de morte por intoxicação, quem procede ao exame do local deve ter
especial atenção à existência de:
-
restos de vómito
-
na vítima (corpo, roupa suja de vómito)
-
no local onde foi encontrada
-
cheiro ou odores no local (intoxicação por gases, fumos, etc.)
-
torneira do gás aberta / fechada
-
exaustão dos gases de combustão
-
presença de braseira ou qualquer outra fonte produtora de monóxido de carbono
-
janelas e portas abertas / fechadas
-
existência de dispositivos para recolher gases de combustão de motores (ex. mangueira
ligada ao cano de escape)
-
presença de outros elementos indiciadores de morte por intoxicação
-
seringas/agulhas, algodão, limão
-
tampas de garrafas
-
colheres
-
“pratas”
-
“cachimbos”
-
embalagens de medicamentos
-
frascos ou contentores de tóxicos (pesticidas, outros produtos químicos)
b) Informação em casos de suspeita de morte por intoxicação
O perito médico antes de iniciar uma autópsia com suspeita de intoxicação deve dispor de toda a
informação social colhida junto de familiares e/ou amigos ou vizinhos da vítima.
Deve haver, sempre que possível, informação sobre:
-
fármacos habituais? quais? quantidades? desde quando?
-
consumo de drogas? tipo? vias? desde quando?
-
antecedentes patológicos (doença psiquiátrica)
-
tentativas de suicídio anteriores
-
método? quando? quantas vezes?
-
ideação suicida
-
carta ou bilhete de despedida
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No caso de ter havido sobrevida com passagem e tratamento hospitalar não poderá o cadáver ser
enviado para autópsia médico-legal sem os respectivos registos clínicos onde conste claramente:
-
tóxico suspeito/respectiva pesquisa e/ou doseamento pela toxicologia clínica
-
sobrevida (data e hora de entrada e da verificação de óbito)
-
a evolução clínica
-
sintomas apresentados
-
tratamentos efectuados
-
lavagem gástrica
-
administração de antídotos
c) Aspectos relevantes no exame do hábito externo e interno em casos de suspeita de
morte por intoxicação
As substâncias tóxicas podem actuar sobre o corpo humano provocando lesões por acção local
(ex. tóxicos caústicos e tóxicos irritantes) ou por acção sistémica. No caso das lesões por acção
sistémica, esta pode manifestar-se sob a forma de acção tóxica directa ou indirecta.
Conforme se trate de lesão por acção local ou sistémica do tóxico podemos ter aspectos lesionais
macro e microscópicos completamente diferentes.
Os aspectos lesionais que podem ser objectivados durante uma autópsia por suspeita de
intoxicação, muitas vezes são inespecíficos e não permitem ao perito médico retirar conclusões
definitivas sobre o tipo de substância(s) responsávei(s) por determinada morte.
Muitas vezes os aspectos lesionais macro e microscópicos são meramente indicativos de
determinado tipo de intoxicação e carecem de confirmação toxicológica.
1) Lesões por acção local ( ex. tóxicos cáusticos)
a)
Ingestão - via mais frequentemente utilizada para intoxicação por cáusticos. O perito
em tanatologia pode encontrar:
-
lesões cáusticas na boca, esófago e estômago
-
ácido sulfúrico – negras
-
ácido nítrico – amareladas
-
perfuração gástrica
-
conteúdo estomacal na cavidade peritoneal, derramando-se o cáustico pelas
restantes vísceras abdominais
-
regurgitação
-
para árvore respiratória
-
necrose e inflamação da mucosa
-
para a boca (queimadura química muco-cutânea)
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b) Queimaduras por arremesso de cáusticos - situações potencialmente mortais, pelas
complicações que podem surgir, que também resultam da acção local de agentes
cáusticos. O exemplo mais frequente é o arremesso à vítima de ácido sulfúrico (óleo
de vitríolo – ác. sulfúrico), geralmente à face (para desfigurar) – vitriolagem. Outras
regiões corporais podem ser afectadas, nomeadamente o pescoço, o tórax e os
membros superiores.
2) Lesões por acção sistémica
Podem ser directas resultantes da acção directa do tóxico a nível dos diversos órgãos e tecidos
ou por acção indirecta resultantes da anóxia ou choque devidas à intoxicação.
Tanto as lesões directas como as indirectas são inespecíficas. Raramente o estudo
anatomopatológico macro e microscópico dá o diagnóstico de intoxicação ou identifica o tóxico.
Dentro das lesões por acção tóxica indirecta é clássico descrever-se um conjunto de achados de
autópsia inespecíficos, a saber:
- congestão visceral generalizada
- edema (cerebral, pulmonar)
- hemorragias petequiais (epicárdio, pleuras)
- sangue muito fluído e escuro
Como já foi dito anteriormente, todos estes achados não são patognomónicos de uma situação de
intoxicação. Apesar de muito inespecíficos, devem ser procurados e registados no relatório.
3) Exame do hábito externo – alguns aspectos que merecem especial atenção
3.1 – Livores
Os livores cadavéricos nas situações de intoxicação são normalmente descritos como mais
intensos, havendo nos autores clássicos referência a determinadas tonalidades dos livores que
serão indicativas deste ou daquele tóxico.
Na prática, excepto em casos de intoxicação por monóxido de carbono com elevadas
percentagens de carboxihemoglobina, em que os livores são descritos como “carminados”, todas
as outras situações são de difícil (para não dizer impossível), diagnóstico, com base
exclusivamente na cor dos livores.
3.2 - sinais recentes ou antigos de punção venosa (em toxicodependentes)
3.3 – odor exalado pelo cadáver – (ex: a amêndoas amargas em casos de intoxicação por ácido
cianídrico).
3.4 – queimaduras nos lábios e face – intoxicação por substâncias caústicas
3)
Exame do hábito interno
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Nunca será demais relembrar que na maior parte das intoxicações, o exame do hábito interno
revela achados inespecíficos, na maioria das vezes.
Estes achados são, por vezes, tão inespecíficos que podem aparecer em intoxicações por
substâncias muito diversas e podem inclusivamente ser semelhantes a aspectos encontrados
noutros tipos de mortes violentas, nomeadamente em situações de asfixia mecânica.
Recomendações práticas para a realização de autópsia em que haja suspeita de
intoxicação
Em relação à realização da autópsia em casos de suspeita de intoxicação, sempre que possível,
seria de tomar em consideração um conjunto de recomendações práticas que devem ser do
conhecimento do perito médico:
1)
evitar, se possível, outros odores na sala de autópsia
2)
começar a autópsia pela cabeça para evitar os odores emanados da cavidade abdominal
3)
retirar em bloco os órgãos do pescoço e as órgãos torácicos - facilita a técnica de colheita
dos pulmões quando se trata de uma intoxicação por gases e facilita também a abordagem
para confirmar ou não da existência de aspiração para árvore respiratória
4)
evitar lavar os órgãos
5)
evitar perder o conteúdo das vísceras ocas (estômago, intestino, bexiga)
6)
em relação ao estômago sempre que o seu conteúdo seja importante para esclarecer a
causa de morte deve-se:
-
laquear ao nível do cárdia e do piloro (dupla laqueação)
-
verter o conteúdo para recipiente apropriado para envio para análise toxicológica
-
cheirar e descrever o odor, a consistência e os constituintes do conteúdo e medir e
registar o volume do conteúdo
7) em relação ao intestino sempre que o seu conteúdo seja importante para esclarecer a causa
de morte deve-se:
-
laquear ao nível do piloro, do cego e do recto (dupla laqueação)
-
verter o conteúdo para recipiente apropriado para envio para análise toxicológica
-
cheirar e descrever o odor, a consistência e os constituintes do conteúdo nos diferentes
segmentos intestinais
8) em relação à urina sempre que o seu conteúdo seja importante para esclarecer a causa de
morte deve-se:
-
colher com seringa e agulha por punção depois de feita abertura da cavidade peritoneal
-
verter o conteúdo para recipiente apropriado para envio para análise toxicológica
9) em relação ao húmor vítreo sempre que a sua análise seja importante para esclarecer a causa
de morte deve-se:
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-
colher em estados de putrefacção avançada para doseamento do álcool etílico; em
casos de intoxicação por insulina, para doseamento da glicose
-
colher com seringa e agulha por punção que deve ser feita com cuidado para não
perfurar o globo ocular
-
a punção deverá ser feita no plano equatorial do olho, com a agulha dirigida para o
centro do globo ocular, sem penetrar profundamente.
-
verter o conteúdo para recipiente apropriado para envio para análise toxicológica
10) em relação aos restantes órgãos ou tecidos biológicos sempre que a sua análise seja
importante para esclarecer a causa de morte deve-se:
-
colher evitando lavagem prévia
-
colocar em contentores apropriados, na quantidade indicada pelo laboratório
11) em relação ao envio ao laboratório das órgãos ou dos fluídos biológicos convém realçar que:
-
devem ser seguidas escrupulosamente todas as recomendações contidas nas
requisições de exames toxicológicos
-
envio o mais rápido (para a respectiva delegação)
-
garantir a cadeia de custódia
-
sempre que seja conhecido, indicar que há risco de infecção
-
não misturar na mesma remessa amostras de processos diferentes
-
nunca misturar na mesma remessa amostras enviadas para laboratórios diferentes (ex.
exames periciais de toxicologia, biologia ou de histologia)
-
proceder sempre à rotulagem das amostras com referência aos seguintes dados :
-
entidade requisitante
-
data da colheita
-
nº processo de autópsia
-
identificação do conteúdo
-
identificação do perito
Passos fundamentais do exame toxicológico
O contributo de um exame toxicológico pode dar-se a dois níveis principais, tendo como base,
achados concretos ou opiniões. Deste modo, distinguem-se:
)
exames toxicológicos baseados em achados – consideram dados obtidos no isolamento,
identificação e doseamento de substâncias tóxicas. Neste passo, inserem-se também resultados
de confirmação da ausência de outras substâncias químicas potencialmente relacionadas com a
intoxicação e os procedimentos usados e respectiva qualidade.
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)
exames toxicológicos baseados em opiniões - podem ser, mais ou menos, fundamentados,
de acordo com a informação que é recolhida, a interpretação dada a cada caso e a emissão de
pareceres periciais.
Na requisição de exames toxicológicos, a dúvida que, frequentemente, se coloca, é discernir
acerca do real interesse em optar pela pesquisa toxicológica e, em caso afirmativo, qual o tipo de
análise a requerer.
A opção final pelo exame mais adequado deve ser conferido ao toxicologista, pois na qualidade
de perito especialista desta área, pode basear a decisão na sua preparação técnica para integrar
toda a informação relevante, e relacioná-la com o tipo e qualidade das amostras disponíveis.
Contudo, não se coloca em causa a importância do conhecimento por parte das entidades
requisitantes de alguns conceitos básicos na orientação da análise toxicológica, tais como os
sugeridos no esquema seguinte:
Provável substância implicada em caso de intoxicação
NÃO
SIM
?
Porque se pede a análise?
É conhecido, de forma verosímil, o agente tóxico?
NÃO
SIM
Existe alguma informação credível e orientadora?
Investigar com
método específico
para a substância
SIM
Pesquisar os tóxicos que
melhor se enquadram na
informação disponível
NÃO
Proceder a um
despiste sistemático
A selecção de amostras em toxicologia forense
Consoante a especificidade do caso e o tipo de análise toxicológica pretendida procede-se à
colheita das amostras mais adequadas. Desta forma, existem análises que requerem apenas um
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tipo de amostra, enquanto outras ficarão incompletas se não forem enviadas diversos tipos de
amostras. Por exemplo, as determinações de alcoolemia (etanol no sangue) ou de
carboxihemoglobina (monóxido de carbono presente na hemoglobina sanguínea) exigem apenas
um único substracto (sangue).
Contudo, e em especial para o sangue, existem condições em que não é possível obter as
amostras mais apropriadas de uma forma qualitativa e/ou quantitativa, particularmente em
situações de putrefacção avançada, exumações ou de mortes por choque traumático. Neste caso,
há que recorrer a amostras alternativas ou complementares, que apenas nos permitem inferir
acerca da concentração provável de tóxico presente no sangue.
Na determinação de álcool etílico é possível efectuar essa pesquisa em diversos outros fluídos,
tais como urina, humor vítreo, líquido sinovial, medula óssea ou saliva.
Segundo directivas europeias, qualquer suspeita de intoxicação e/ou situação cujos achados de
autópsia não revelaram causa de morte evidente, deve incluir a recolha das seguintes amostras
básicas para exame toxicológico: sangue periférico; urina; conteúdo estomacal; bile; fígado e rim.
No caso de existir suspeita específica, a recolha e envio de amostras deve ter em consideração o
grupo de tóxicos a analisar, pelo que a anterior amostragem permite, igualmente, pesquisas de
hipnótico-sedativos, substâncias psicoactivas, cardiotónicos, analgésicos e pesticidas.
A pesquisa de drogas de abuso deve englobar, além das amostras já descritas, líquido
céfaloraquidiano; encéfalo; local de picada de injectáveis e cabelos.
A inclusão de sangue cardíaco da cavidade do ventrículo esquerdo, encéfalo, tecido gordo
subcutâneo, pulmão e vestuário, deve complementar a amostragem básica quando interessa
efectuar pesquisas de substâncias lipossolúveis voláteis, tais como combustíveis e solventes.
As intoxicações alimentares implicam a suplementação do envio das amostras básicas com
amostras de conteúdo intestinal colhido, se possível, em três locais diferentes.
Já no caso de a intoxicação poder ter sido do tipo crónico, por acção entre outros, de metais
pesados, certos medicamentos ou pesticidas, devem-se adicionar à recolha de amostras normal,
cabelos, ossos, tecido adiposo e conteúdo intestinal.
Uma análise toxicológica tem, muitas vezes, por limite a qualidade ou quantidade das amostras de
que se dispõe, daí que, seja preferível o envio de amostras em excesso, apesar das dificuldades
de conservação e transporte que se possam colocar, com a vantagem de poder diversificar as
pesquisas, duplicar, garantir ou até contribuir para o sucesso analítico de uma determinada
pesquisa.
Conservação das amostras
As amostras destinadas a exame toxicológico não devem ser adicionadas de qualquer
preservante ou conservante, porque a detecção de qualquer substância, seja ela adicionada ou
não, poderá ser relevante do ponto de vista toxicológico.
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Tal como em qualquer regra existe excepção no que se refere à amostra de sangue destinada a
doseamentos de álcool, cocaína ou ácido cianídrico, à qual se adiciona fluoreto de sódio na
concentração aproximada de 1% (peso por volume).
Com esta atitude pretende-se impedir a proliferação microbiana, e assim prevenir a probabilidade
de se induzirem alterações nas taxas sanguíneas dos referidos tóxicos.
Técnicas adoptadas na pesquisa toxicológica
A sequência de procedimentos empregues na pesquisa toxicológica, desde a requisição de
autópsia ou exame clínico pelas autoridades judiciais, com o envio das amostras ao laboratório,
até à elaboração do relatório toxicológico, assenta em alguns passos fundamentais, como a seguir
se demonstram:
Rastreio
isolamento
Registo de amostras
colheita
Confirmação
AUTÓPSIA
HOSPITAL
Quantificação
requisição
AUTORIDADE JUDICIAL
Interpretação
relatório
Preparação da amostra
A preparação da amostra é um procedimento chave das análises toxicológicas, pois é nesta fase
que se procede ao isolamento do tóxico com a intenção de lhe serem aplicadas as técnicas de
análise instrumental.
Rastreio analítico
Este rastreio ou "screnning" é realizado pela utilização de métodos de sensibilidade elevada e
fraca especificidade. Os métodos, ainda, devem ser simples e pouco exigentes, em termos de
ocupação de recursos humanos e de consumos de material.
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As técnicas de rastreio para tóxicos termolábeis poderão ser: imunoensaios, cromatografia em
camada delgada e cromatografias gasosa ou líquida (quando equipadas com detectores
universais).
Identificação e Doseamento
Os resultados fornecidos pelos testes de rastreio são muito limitados, pelo que, um resultado
positivo só pode ser encarado como tal, se se confirmar através do recurso a testes de
identificação e confirmação.
Além do mais, tratando-se de provas periciais, a correcta identidade da substância detectada e a
avaliação do seu teor quantitativo são, em certos casos, essenciais para a distinção de
interferências de matriz e analíticas, que possam contribuir para a obtenção de falsos resultados
positivos.
A cromatografia gasosa ou a cromatografia líquida acoplada a detectores mais específicos tais
como, a espectrometria de massas ou detectores de varrimento na zona dos ultravioletas ou
infravermelhos, quando utilizados em condições adequadas permitem identificações com elevado
grau de confiança.
A técnica que tem vindo a ser utilizada na identificação no doseamento de substâncias
elementares, em especial, as de carácter mineral, tem sido a espectrofotometria de absorção
atómica (AAS), nas suas variantes com ou sem chama, adaptada com gerador de hidretos ou com
câmara de grafite.
Interpretação dos resultados analíticos
À medida que as metodologias analíticas evoluem, a principal questão da toxicologia forense não
é saber o que é, mas sim o que isso significa.
Não basta, portanto, identificar a nível das amostras orgânicas uma substância com relevância
toxicológica, mas para além disso, é essencial interpretar adequadamente os resultados obtidos
face às variáveis envolvidas.
Os factores que estão envolvidos numa pesquisa toxicológica são inúmeros. Por um lado, temos
os que são relativos à análise em si, tais como: estado das amostras, técnica analítica empregue,
analista operador, rendimento dos métodos, e um sem número de erros sistemáticos ou fortuitos
passíveis de ocorrer em qualquer actividade de análise química. Por outro lado, temos aqueles
factores, que sendo inerentes ao caso analisado, podem contribuir para que os resultados
analíticos entrem em contradição com as hipóteses da investigação (como exemplos, podemos ter
a via de absorção do tóxico, o tempo de sobrevida - tempo decorrido entre a ocorrência e a
morte- ou o intervalo de tempo até colheita de amostras, medidas terapêuticas, de diagnóstico ou
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de suporte administradas, sinergia de efeitos devida à associação de tóxicos, e muitas outras
dependentes da circunstâncias de cada caso.
Além destes aspectos, existem muitas outras condições em que se exige conhecimentos técnicos
e periciais no sentido de elucidar certas circunstâncias, tais como a demonstração, do reduzido
interesse analítico a atribuir à técnica de imunoensaios face à sua fraca especificidade, dos efeitos
devidos à adsorção de substâncias nas paredes dos recipientes dos contentores de amostras, da
degradação de substâncias em função do tempo e condições de conservação, da degradação
metabólica das amostras, ou da degradação térmica que possa ocorrer em análises por
cromatografia gasosa.
Por outro lado, não existem dados objectivos que permitam estabelecer analogias concretas entre
os resultados obtidos e as tabelas de níveis letais séricos ou tecidulares existentes.
Para isso, o analista introduz no processo analítico meios de controlo que assentam na validação
de métodos analíticos, uso de padrões internos ou externos certificados, recurso a normas de
boas práticas laboratoriais, implementação de programas de controlo de qualidade intra e
interlaboratoriais. Deste modo, pretende-se garantir a detecção da frequência com que ocorrem
erros sistemáticos ou fortuitos, e formas de os solucionar, de modo a manter qualidade
laboratorial.
e) PROCEDIMENTOS RELATIVOS À DETECÇÃO DA INFLUÊNCIA DE SUBSTÂNCIAS
PSICOACTIVAS NA CIRCULAÇÃO RODOVIÁRIA
Relação Clínico - Toxicologista
A legislação do Código da Estrada (Decreto-Lei nº 265-A/2001, de 28/09) na parte relativa à
fiscalização da circulação na via pública sob efeito de álcool e das substâncias legalmente
consideradas estupefacientes ou psicotrópicas pressupõe a participação, além das autoridades
fiscalizadoras, dos serviços de urgência hospitalares e do Instituto Nacional de Medicina Legal.
Aos primeiros compete executar os procedimentos de avaliação clínica e de colheita de amostras
biológicas, realizar os exames de rastreio analítico a estupefacientes e psicotrópicos e, caso
necessário, requisitar exames toxicológicos de quantificação de álcool no sangue ou de
confirmação da presença de estupefacientes e psicotrópicos através da remessa de amostras
adequadas em bolsas próprias à Delegação do INML da área respectiva.
Aos Serviços de Toxicologia Forense do INML compete equipar e distribuir as bolsas destinadas à
colheita de amostras biológicas, verificar o cumprimento dos procedimentos de cadeia de
custódia, e executar as análises toxicológicas de quantificação de álcool no sangue ou de
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confirmação da presença de estupefacientes e psicotrópicos por equipamentos e metodologias
adequadas.
Como tal a nível destas competências, os médicos dos serviços de urgência hospitalares e os
toxicologistas do INML beneficiam em adoptarem um relacionamento que se traduza em
colaboração institucional, de modo a assegurar com rigor e justiça, a execução dos procedimentos
destinados a uma aplicação universal da lei vigente. Por outro lado, enquanto cidadãos com
responsabilidades acrescidas, os médicos e paramédicos que, sem justa causa, se recusarem a
proceder às diligências previstas na lei para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool e
das substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas são punidos por
desobediência.
A realização de exames clínicos e de colheita de amostras biológicas para diagnóstico do estado
de influenciado por substâncias aplica-se, quer em indivíduos admitidos no serviço de urgência na
sequência de acidentes de viação, quer em indivíduos conduzidos ou notificados pelas
autoridades fiscalizadoras para serem avaliados no serviço de urgência no âmbito de operações
de fiscalização.
Quando se suspeita que um indivíduo possa estar influenciado pelo álcool etílico, se tiver sido
possível, antes da sua admissão hospitalar a autoridade fiscalizadora procedeu aos exames
prévios de determinação da taxa de álcool no sangue (TAS) através de aparelhos de medição no
ar expirado. Deste modo, interessa a realização de contraprova mediante análise de sangue, pelo
que compete ao serviço hospitalar a colheita de amostra de sangue, preenchimento da requisição
de exame de quantificação de TAS (modelo Anexo I à portaria nº 1006/98, de 30/11) e remessa
da respectiva bolsa contendo requisição e amostra de sangue ao INML. Na impossibilidade da
colheita de amostra de sangue, o médico deve proceder a exame clínico adequado conforme
previsto na secção III do capítulo I da portaria nº 1006/98, de 30/11.
No que se refere ao diagnóstico do estado de influenciado por substâncias legalmente
consideradas estupefacientes ou psicotrópicas, em virtude das autoridades não disporem de
métodos com vista à sua detecção, todos os indivíduos envolvidos em acidentes de viação dos
quais resultem mortos ou feridos graves, bem como os conduzidos pelas autoridades ao serviço
de urgência com esse objectivo devem ser avaliados por médico, seja por via de exame médico
de rastreio de acordo com secção I do capítulo II da portaria nº 1006/98, de 30/11, seja através de
exame analítico de rastreio na urina, por utilização de imunoensaios, efectuado a nível do serviço
de patologia clínica do hospital. Os exames analíticos de rastreio a realizar no hospital destinamse a despistar a presença de substância que integrem os seguintes grupos: metabolitos da
marijuana, opiáceos, cocaína e metabolitos e anfetaminas e derivados. Somente em caso de
algum dos exames analíticos de rastreio dar resultado positivo é que o médico responsável deve
providenciar pela remessa ao INML de amostras de urina e de sangue colhidas ao examinando,
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acompanhadas de requisição de análise toxicológica de confirmação da presença de
psicotrópicos (modelo anexo VI à portaria nº 1006/98, de 30/11).
Os conjuntos de recolha de amostras, também designados como KIT’S, dos quais fazem parte as
bolsas a enviar ao INML são fornecidos pela autoridade fiscalizadora (PSP ou GNR) devendo as
mesmas estar seladas através de selo vermelho numerado (este número não é importante para o
procedimento), que assegura a validade dos materiais de colheita nela incluídos. No interior do
conjunto encontra-se um selo azul numerado (número muito importante para identificação do
processo) destinado a ser usado para selagem da bolsa após introdução de amostras biológicas e
do triplicado de requisição de análises.
A identificação do processo de remessa de amostras ao INML não é nominal mas assente no
número do selo azul, pelo que é imprescindível que no triplicado de requisição de análises
conste o respectivo número de selo. Outros elementos como data/hora de colheita das amostras,
resultados de exames prévios, tipo de amostras enviadas, terapêuticas efectuadas, e identidade
do serviço hospitalar e do médico responsável são essenciais para evitar falhas de procedimento.
Sempre que se verificam factos em desacordo com os procedimentos previstos, o Serviço de
Toxicologia Forense elabora Autos de Ocorrência, através dos quais comunica e regista falhas
de procedimento, bem como descreve o encaminhamento dado a cada caso.
Os Serviços de Toxicologia Forense assumem o papel de entidade reguladora por garantir a
segurança dos materiais incluídos nos KIT’s, pela execução de análises rigorosas com o intuito de
confirmar a presença de psicotrópicos ou estabelecer a taxa de alcoolemia em amostras
biológicas, e pelo controlo dos procedimentos relativos à cadeia de custódia de amostras.
Sempre que ocorra violação das bolsas ou qualquer outra circunstância de não conformidade,
devem as mesmas ser remetidas ao INML para que se proceda à sua verificação, reequipamento, selagem e devolução à respectiva autoridade fiscalizadora.
Nesta, tal como em outras áreas, pressupõe-se uma estreita colaboração Hospital/Instituto
Nacional de Medicina Legal.
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GENÉTICA E BIOLOGIA FORENSE, E CRIMINALÍSTICA
2
Maria de Fátima Pinheiro
Entre as múltiplas actividades de um laboratório de Genética e Biologia Forense constam a
realização das perícias referentes aos casos de filiação, criminalística biológica e identificação
individual (genética). A resolução destes casos, ou seja, a identificação genética pressupõe
sempre o estabelecimento da individualidade biológica que cada ser humano representa e
fundamenta-se na exclusividade do seu DNA e na igualdade e invariabilidade deste em todas as
células do organismo ao longo da vida. Ou seja, o DNA é unico para cada ser humano e este fica
perfeitamente identificado através do seu estudo em qualquer vestígio biológico que lhe pertença.
Para a análise de DNA é necessário qualquer tipo de amostra ou produto que contenha material
genético. Este material encontra-se em todas as células nucleadas do organismo.
A identificação genética é, actualmente, de importância fundamental em Medicina Legal, tanto no
que concerne à investigação biológica da paternidade como à identificação em criminalística ou
de restos cadavéricos.
a) INVESTIGAÇÃO BIOLÓGICA DE PATERNIDADE
A investigação biológica da paternidade tem como objectivo, dado um trio filho, mãe e pretenso
pai, determinar se este é ou não excluído da possibilidade de ser o pai biológico.
As investigações de paternidade têm sido o tipo de exames mais frequentemente solicitados às
Delegações (Porto, Coimbra e Lisboa) do Instituto Nacional de Medicina Legal, que realizam mais
de 300 perícias, do género, por ano. Na do Porto verificou-se, um aumento considerável do
número de exames, solicitados pelos tribunais, particularmente a partir da década de 80.
O principal motivo do pedido de um tão elevado número de casos deve-se, sobretudo, à reforma
do Código Civil Português, de 1977, nomeadamente ao artigo 1864º. Este obriga a que se
proceda à averiguação oficiosa da paternidade nos casos em que o filho é registado apenas com
o nome da mãe.
Relativamente aos exames do âmbito da criminalística biológica, nos últimos anos, houve um
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acréscimo notável do estudo de vestígios biológicos em casos relacionados com crimes. Este
incremento deveu-se, fundamentalmente, ao melhor poder informativo proporcionado, uma vez
que se dispõe, actualmente, de técnicas mais sensíveis. Estas perícias consistem no estudo dos
vestígios e comparação das suas características genéticas com as da vítima e suspeito. A sua
identificação e caracterização têm grande interesse, uma vez que, habitualmente, são transferidos
fluídos orgânicos e secreções entre o criminoso e a vítima e o objectivo principal é identificar o
autor do crime.
Acresce ainda a sua importância na identificação individual (genética) a partir de restos
cadavéricos, como ossos ou tecidos mumificados.
A perícia médico-legal do âmbito da Biologia Forense, seja investigação de filiação, criminalística
biológica ou identificação, desenrola-se em duas fases: análise laboratorial e valorização
bioestatística dos resultados.
As diferentes fases têm características comuns para os distintos tipos de perícias, pois em
qualquer dos casos a prova é baseada na comparação de perfis genéticos.
Perfil genético, do ponto de vista médico-legal, pode ser definido como sendo o conjunto de
características hereditárias ou padrões fenotípicos que um indivíduo possui, para um determinado
número de marcadores genéticos, detectável em qualquer amostra biológica que lhe pertença.
Este perfil ficará definido mediante a análise laboratorial das referidas amostras.
Antes de se fazer a valorização bioestatística ter-se-á que estudar os marcadores genéticos a
usar, na população em causa, no nosso caso, na população do Norte de Portugal.
Por outro lado, uma vez concluído o estudo laboratorial, importa fazer a avaliação dos
resultados obtidos.
Assim, nos casos de investigação de paternidade, que são quase exclusivamente os casos de
filiação que nos são presentes, porquanto na casuísta do nosso serviço tem-se registado um
número baixo de casos de investigação de maternidade, as conclusões possíveis, são: exclusão
de paternidade e não exclusão de paternidade.
Em princípio, conclui-se por exclusão de paternidade, quando houver exclusão, no mínimo, por
dois marcadores genéticos e, preferentemente, se pelo menos uma das exclusões for de 1ª
ordem, referindo-se no relatório quais os sistemas que proporcionam a exclusão.
Todavia, os casos de exclusão de paternidade devem ser suficientemente ponderados antes da
elaboração do relatório final, porquanto tem-se constatado que os STRs, polimorfismos do DNA
actualmente muito usados na resolução dos casos, exibem uma taxa de mutação relativamente
elevada. Por isso, em casos excepcionais pode-se verificar exclusão por mais de um marcador
genético e na realidade não corresponder a exclusão de paternidade, mas a uma coincidência de
mutações genéticas em mais de um sistema.
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Relativamente aos casos de não exclusão, exprime-se o resultado em probabilidade de
paternidade, cujo cálculo se baseia no Teorema de Bayes.
Em face do que foi anteriormente dito, hoje é mais difícil concluir uma situação de exclusão de
paternidade do que de não exclusão.
Em relação aos casos criminais há três conclusões possíveis:
a) Os perfis de DNA do suspeito e dos vestígios (cujas características genéticas não são
idênticas às da vítima e que há indícios de que possam pertencer ao suspeito) não são
sobreponíveis;
b) Há coincidência dos referidos perfis;
c) O estudo não é conclusivo, ou porque o DNA disponível não é em quantidade suficiente e/ou
porque há problemas laboratoriais na extracção, amplificação ou tipagem do DNA.
Assim, à semelhança dos casos de investigação de paternidade, quando não houver coincidência
entre as características genéticas do suspeito e dos vestígios, devem ser referidos no relatório os
polimorfismos que proporcionam a referida exclusão.
Relativamente ao caso dos perfis serem idênticos, o perito deve fazer a valorização da prova, que
habitualmente é feita calculando a probabilidade de concordância ou o seu inverso, o “likelihood
ratio” (razão bayesiana de probabilidades).
Aspectos legais da aplicação da análise do DNA aos casos forenses. Legislação
portuguesa (investigação de paternidade)
A reforma do Código Civil Português ocorrida em 1977 contribuiu para o incremento do número de
exames de investigação de paternidade realizados. Até àquela data foram efectuados, em média,
dois exames por ano, enquanto que na década de 80, 621 , tendo vindo a aumentar
progressivamente ao longo dos anos.
Simultaneamente à entrada em vigor do “novo” Código Civil surgiram novas técnicas,
designadamente a PCR e marcadores genéticos muito mais informativos, que contribuíram para a
conclusão dos casos de uma forma mais consentânea com a realidade biológica.
O artigo do “novo” Código Civil que contribui de uma forma decisiva para o aumento considerável
do número de casos solicitados foi o 1864º.
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Artigo 1864º
(Paternidade desconhecida)
Sempre que seja lavrado registo de nascimento de menor apenas com a maternidade
estabelecida, deve o funcionário remeter ao tribunal certidão integral do registo, a fim de se
averiguar oficiosamente a identidade do pai.
Como foi atrás referido, esta norma é a responsável pelo incremento do elevado número de
perícias de investigação biológica de paternidade solicitadas.
No direito anterior supunha-se a perfilhação materna; agora não é possível a perfilhação pela
mãe, pelo que nesta norma se utiliza a expressão “... apenas com a maternidade estabelecida...”
Impõe-se agora ao tribunal que investigue a identidade do pai, quando apenas é conhecida a da
mãe.
O estabelecimento da averiguação oficiosa da paternidade apenas encontra eco nos
ordenamentos jurídicos dos países escandinavos.
“A sua justificação pode encontrar-se no desejo de satisfazer o direito à identidade e à integridade
moral, de tutelar o interesse geral da melhor socialização e amparo económico do filho; e na
consciência de que não vale grande coisa garantir a todos os filhos a igualdade de direitos se não
se fizerem os esforços possíveis no sentido de constituir as relações de filiação” (Krause, cit, por
Guilherme de Oliveira).
Para além dos pedidos efectuados pelos tribunais as perícias também podem ser solicitadas por
entidades privadas ou por particulares.
Decreto-Lei nº 96/2001, de 26 de Março
De acordo com o Decreto-Lei nº 96/01, relativo à Lei Orgânica do Instituto Nacional de Medicina
Legal, concretamente o artigo 2º, uma das atribuições dos serviços médico-legais, segundo a
alínea i) do mesmo artigo, é: “Prestar serviços a entidades públicas e privadas, bem como aos
particulares, em domínios que envolvam a aplicação de conhecimentos médico-legais”. Esta
disposição já se encontrava contemplada no Decreto-Lei nº11/98, revogado aquando da entrada
em vigor deste decreto.
Depois da publicação deste decreto, o Serviço de Genética e Biologia Forense tem sido
contactado para a realização de exames solicitados por particulares, cuja concretização tem de
ser previamente requerida pelos interessados sendo, o requerimento, apreciado antes de se
proceder à marcação da colheita de amostras ou à sua recepção.
Quando se trata de vestígios biológicos a analisar no âmbito da criminalística biológica, o exame
só será efectuado se estiverem garantidos os direitos individuais e civis, designadamente o direito
à privacidade individual ou familiar consignados na Constituição Portuguesa, na Declaração
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Universal dos Direitos Humanos (artigo 12º) e na Convenção Europeia dos Direitos Humanos
(artigo 8º).
Constituição Portuguesa
A nossa Constituição, no capítulo relativo aos direitos, liberdades e garantias pessoais, Artigo 26º,
refere-se aos direitos atrás citados.
Artigo 26º
(Outros direitos pessoais)
1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da
personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à
reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de
discriminação.
2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a utilização abusiva, ou contrária à dignidade
humana, de informações relativas às pessoas e famílias.
3. A lei garantirá a dignidade pessoal e identidade genética do ser humano, nomeadamente na
criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica.
4. A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e
termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.
Casos de filiação. Fundamento
A grande maioria dos casos de filiação presentes são as investigações de paternidade. Por isso,
abordar-se-á quase exclusivamente este tipo de perícias, todavia, os procedimentos a ter quando
se trata de uma investigação de maternidade, são idênticos aos da paternidade.
Actualmente, a grande maioria dos laboratórios utiliza, exclusivamente, polimorfismos do DNA.
O fundamento biológico da resolução dos casos de filiação assenta no facto de cada indivíduo
resultar da união de dois gâmetas, um materno (óvulo) e outro paterno (espermatozóide) que dão
origem à formação de uma célula, o zigoto, a partir da qual se desenvolvem vários biliões de
células que compõem o organismo humano. Cada um dos gâmetas possui um número haplóide
de cromossomas (n), enquanto que as outras células do organismo, as células somáticas, têm um
número diplóide de cromossomas (2n). Quando os dois gâmetas dos progenitores se unem, a
descendência herda informação genética de ambos e cada uma das suas células possui essa
informação.
Por isso, a investigação biológica da paternidade consiste na análise do património genético que
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um filho herdou da mãe e do pai. Uma vez apurada a parte genética herdada da mãe, é
necessário verificar se o resto da informação é transmitida pelo pretenso pai. Se este possui as
características hereditárias transmitidas à criança, não pode ser excluído da paternidade e o
resultado é apresentado em probabilidade de paternidade. Se, pelo contrário, o indigitado não tem
essas características, é afastado da possibilidade de paternidade.
Exames laboratoriais
Na generalidade dos casos o estudo é efectuado a partir do sangue e da zaragatoa bucal,
colhidos a todos os intervenientes.
Sob o ponto de vista médico-legal uma investigação de paternidade, pressupõe três fases:
1ª - Identificação e colheita de sangue
2ª - Caracterização dos marcadores genéticos
3ª - Elaboração do relatório
Identificação e colheita de sangue
A identificação deve ser pormenorizada, registando-se os dados pessoais dos intervenientes
numa ficha própria, como sejam, nome completo, data de nascimento, naturalidade, estado civil,
raça, números dos bilhetes de identidade ou cédulas pessoais. Devem ser tiradas fotocópias de
todos os elementos de identificação, assim como devem ser colhidas as impressões digitais do
dedo indicador direito. Também deve ser perguntado se lhes foi administrada transfusão de
sangue ou transplante de orgãos, confirmando-se este dado com a respectiva assinatura.
Como os documentos de identificação podem ser falsificados, considera-se obrigatória a presença
simultânea dos intervenientes para se efectuar a colheita, isto é, não se realizam colheitas se
todos os intervenientes não estiverem presentes, salvo indicação expressa do juiz.
Caracterização dos marcadores genéticos
Marcadores genéticos são características identificáveis, transmitidas de pais para filhos,
rigorosamente controladas por genes situados num par de cromossomas homólogos
Antes de 1985, tanto as investigações biológicas de paternidade como a análise de amostras
biológicas com interesse criminal eram resolvidas mediante o estudo de marcadores genéticos
convencionais ou tradicionais, a maioria dos quais, proteínas.
Hoje, a utilidade dos marcadores genéticos convencionais tem um interesse limitado, por serem
sistemas pouco polimórficos.
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Ácido desoxirribonucleico (DNA). Aplicação da análise do DNA à Medicina Legal
A Medicina Legal dispõe, actualmente, de uma nova tecnologia que se baseia na variabilidade dos
ácidos nucleicos das células, polimorfismos do DNA, cuja importância fundamental reside no facto
de se estudar a individualidade biológica directamente do código genético, ao contrário das
proteínas, cuja caracterização depende da sua expressão em tecidos e fluídos biológicos. É para
notar que o DNA está presente em todas as células nucleadas do organismo humano (DNA
nuclear) e que esse DNA é, basicamente, idêntico em todas as células do mesmo indivíduo. Têm
sido desenvolvidos métodos de extracção do DNA que permitem, por exemplo, separar DNA de
células espermáticas (suspeito) das células vaginais (vítima), em casos de agressão sexual, em
que o perito dispõe do exsudato vaginal da vítima ou de manchas existentes em peças de
vestuário.
O estudo do DNA constitui hoje uma tecnologia que é admitida internacionalmente como prova
pericial em tribunal, permitindo a resolução de casos de filiação complexos, como, por exemplo,
casos de investigação de paternidade em que a mãe ou o pretenso pai faleceram, quando existe a
possibilidade do estudo de familiares próximos; o estudo de restos cadavéricos e a comparação
das suas características genéticas com as do sangue, também, de familiares próximos; e ainda
casos de filiação em que se dispõe de restos fetais resultantes de aborto ou infanticídio, em que
se pretende identificar o autor do crime.
Tem sido especialmente na resolução de casos relativos à criminalística biológica que esta
tecnologia tem demonstrado revestir uma importância fundamental, uma vez que na maioria dos
casos relacionados com crimes o perito dispõe de uma quantidade exígua de DNA, apresentandose muitas vezes degradado.
A admissibilidade jurídica, a nível internacional, da utilização das técnicas de tipagem do DNA, foi,
numa primeira fase, alvo de controvérsias nos Estados Unidos, relativamente à própria
metodologia empregue, à interpretação dos resultados e aos métodos estatísticos utilizados, tais
como, o equilíbrio de Hardy-Weinberg, a homogeneidade populacional e o equilíbrio de ligamento
entre os loci.
O primeiro passo para obviar os problemas atrás referidos foi o desenvolvimento de metodologias
que não suscitassem problemas de interpretação e que permitissem uma classificação exacta dos
alelos dos diferentes polimorfismos. Em seguida, surgiram inovações relativas aos métodos
estatísticos utilizados na análise dos resultados, proporcionando conclusões mais aproximadas à
realidade biológica. Esta evolução conjunta dos métodos laboratoriais e estatísticos empregues na
resolução de perícias médico-legais permite, actualmente, a obtenção de resultados que eram
impensáveis há ainda escassos anos.
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A análise do DNA com aplicação médico-legal foi usada pela primeira vez no Reino Unido, em
1985. Nos Estados Unidos a sua utilização iniciou-se em 1986, tendo sido aplicada pela primeira
vez à resolução de casos criminais em 1987, num caso de agressão sexual.
Análise do DNA
O genoma humano é constituído por cerca de 3500 milhões de pares de bases (pb).
A análise do DNA nuclear, permitiu definir que no genoma humano existem regiões que se podem
classificar do seguinte modo:
- DNA não repetitivo (polimorfismos de sequência)
- DNA moderadamente repetitivo (regiões minisatélite)
- DNA altamente repetitivo (regiões microsatélite)
Algumas sequências não codificantes (DNA não expressivo, não codificante ou heterocromatina),
cuja função biológica ainda não está perfeitamente estabelecida, encontram-se repetidas em
"tandem", isto é, uma sequência de pares de bases (pb), seguida de outra sequência idêntica e
assim sucessivamente.
Estas regiões hipervariáveis, onde existem os loci VNTR (Variable Number of Tandem Repeats),
são chamadas minisatélites se a sequência (core) é constituída por 10-70pb que se repete entre
20 e 60 vezes. Se as referidas sequências são constituídas apenas por 2-7 nucleótidos que se
repetem, também, várias vezes, as regiões são denominadas microsatélites ou loci STR (Short
Tandem Repeats).
O DNA que forma as regiões hipervariáveis (HVR-Hipervariable Regions) do genoma, proporciona
a existência de uma grande variação entre os indivíduos de uma população. Esta variação
consiste no número de vezes que a sequência (core) se repete e é variável de indivíduo para
indivíduo. Esta parte do genoma é a que tem maior interesse médico-legal.
Polimorfismos do DNA
Antes de se proceder à tipagem tem de se efectuar a extracção do DNA.
Existem vários protocolos para se efectuar a extracção do DNA. Quando não é exigida a obtenção
de DNA de alto peso molecular, utiliza-se o Chelex 100. Trata-se de uma técnica de extracção de
DNA mais rápida, fácil de executar e eficiente. O Chelex é uma resina quelante (chelating resin)
com grande afinidade para iões metálicos polivalentes, por isso previne a degradação do DNA em
presença de iões metálicos a altas temperaturas e em condições de baixa força iónica.
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Quando é necessária a obtenção de DNA de alto peso molecular utiliza-se a extracção orgânica
com fenol-clorofórmio ou com fenol-clorofórmio-álcool isoamílico, cujo protocolo é mais complexo
e demorado.
Nos casos de violação em que são presentes os exsudatos vaginais das vítimas e/ou as peças de
vestuário que aquelas envergavam aquando da ocorrência do crime, é preferencialmente utilizado
um método diferencial de lise celular que, para além do fenol-clorofórmio-álcool isoamílico usa o
detergente (SDS) e uma proteinase (Proteinase K), cuja função consiste na libertação das células
vaginais da vítima, enquanto as cabeças dos espermatozóides se mantêm intactas em virtude do
seu revestimento proteico conter pontes dissulfito. As células seminais são posteriormente
recuperadas por centrifugação e subsequentemente lisadas na presença de ditiotreitol (DTT). O
uso desta metodologia tem demonstrado ser eficaz, pois verifica-se que mesmo nos casos em
que a quantidade de espermatozóides (observação microscópica) é escassa, consegue-se
efectuar a tipagem do DNA da fase espermática.
Polymerase Chain Reaction (PCR)
A técnica mais usada para o estudo do DNA é a PCR. Esta técnica foi descrita por Kary Mullis,
em 1985 e baseia-se na amplificação enzimática in vitro de um fragmento de DNA de interesse
(target) que é flanqueado por 2 "primers" que hibridam com as extremidades 3´ da dupla cadeia.
Ciclos repetidos, consistindo na desnaturação do DNA, "annealing" dos "primers" e sua extensão,
originam em cada ciclo a duplicação da sequência inicial, correspondendo a um crescimento
exponencial da referida sequência. Isto é, decorridos 20 ciclos, o DNA em estudo, delimitado
pelos "primers", cuja sequência de bases foi previamente seleccionada, estará amplificado cerca
de 1 milhão de vezes.
Cada um dos referidos ciclos inclui as seguintes fases:
1ª- Desnaturação da sequência de DNA que se pretende estudar (± 90ºC)
2ª- “Annealing” dos “primers” (± 60ºC)
3ª- Extensão dos “primers” (± 72ºC), graças à Taq polimerase e aos nucleótidos trifosfatados
(DNTPs – dATP, dTTP, dGTP e dCTP).
A automatização do processo, com a utilização dos termocicladores, proporcionou a simplificação
de todo o procedimento, constituindo também uma importante inovação.
O uso da técnica de PCR requer que, pelo menos, seja conhecida a sequência de DNA que
rodeia a região de interesse, para ser possível a construção dos "primers" usados na
amplificação. Conhecendo-se a referida sequência, é possível escolher os "primers" por forma a
permitirem a delimitação directa do local polimórfico.
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Actualmente, são vários os polimorfismos de DNA com interesse médico-legal, que podem ser
estudados por PCR, como polimorfismos de sequência, AMPFLPs e loci STR. No entanto,
actualmente, só são usados estes últimos.
Das vantagens desta técnica, destaca-se o facto da PCR possuir a capacidade para efectuar a
análise de uma determinada sequência numa amostra exígua de DNA, qualquer que seja a sua
quantidade e qualidade, desde que a amostra tenha, pelo menos, uma cadeia de DNA intacta,
rodeando a região a ser amplificada. Esta sensibilidade, segundo vários autores, tem permitido a
tipagem de diferentes polimorfismos de DNA de um único cabelo, de um espermatozóide e de
células somáticas individuais. Outros autores referem ter efectuado reacções de amplificação em
DNA degradado de tecidos guardados em arquivo e fixados em formol ou embebidos em parafina,
ou ainda, extraídos de peças antigas existentes em museus ou achados arqueológicos.
Por tudo o que foi anteriormente referido, poder-se-á afirmar que a técnica de PCR se tornou um
meio precioso para a análise de regiões polimórficas, em amostras de DNA humano,
particularmente em criminalística, nos quais raramente se dispõe de DNA de alto peso molecular
em quantidades apreciáveis. Trata-se de uma metodologia muito usada na resolução de casos
médico-legais, sendo também utilizada no diagnóstico clínico e noutros ramos da ciência.
Sistemas AMPFLPs e STRs estudados por PCR
Sistemas AMPFLPs (Amplified Fragment Length Polymorphisms) são os loci VNTR, cujos alelos
possuem tamanhos moleculares, aproximadamente, de 100 a 2000 pb.
Os dois grupos de sistemas, AMPFLPs e STRs, em virtude do curto tamanho dos seus alelos, são
susceptíveis de amplificação por PCR e visualização directa dos produtos de amplificação,
embora, actualmente, apenas se usem os últimos.
Loci STR estudados por PCR
Os loci microsatélite podem definir-se como pequenas sequências de DNA (com menos de 350
pb), dispersas pelo genoma, repetidas em tandem, de 2 a 7 pb de tamanho, pelo que também são
conhecidos por loci STR (Short Tandem Repeats). Calculou-se que o genoma humano contém,
aproximadamente, 500.000 STRs, dos quais 6.000 a 10.000 são tri ou tetraméricos. Um grande
número destes loci apresenta um elevado grau de polimorfismo genético, cuja base molecular
consiste na variação do número de unidades de repetição.
Estes sistemas, devido à sua abundância no genoma humano, ao seu elevado grau de
polimorfismo e à possibilidade de serem facilmente estudados mediante técnicas de PCR,
converteram-se nos marcadores de eleição em vários campos da ciência, designadamente na
identificação genética humana.
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É para notar, que o estudo dos loci STR proporciona uma maior sensibilidade, devido ao pequeno
tamanho dos produtos de amplificação permitindo, por conseguinte, uma amplificação mais eficaz
em amostras degradadas.
É possível, no caso dos STRs, proceder-se à amplificação simultânea de vários loci numa única
mistura de reacção (PCR multiplex), podendo-se fazer a análise conjunta dos produtos
amplificados. Tal facto, proporciona o aumento do poder de discriminação e a diminuição do
tempo de análise, bem como das quantidades de DNA e de reagentes a usar.
Os STRs são claramente identificáveis, permitindo a distinção de alelos que diferem apenas num
nucleótido. Tal facto torna viável a comparação dos resultados obtidos por diferentes laboratórios.
É aconselhável a estandardização das condições experimentais (composição do gel,
electroforese) e o uso de padrões alélicos consenso adequados e de sequência conhecida, assim
como a uniformidade na nomenclatura empregue na classificação dos alelos.
Em casos pontuais e excepcionais em que exista dúvidas relativamente a estes aspectos, podese proceder à sequenciação dos alelos considerados duvidosos.
Actualmente, estes problemas estão praticamente ultrapassados com o uso de kits comerciais,
porquanto estes possuem os produtos e condições perfeitamente estandardizados para o estudo
de uma grande gama de sistemas STR.
Assim, por exemplo a Perkin-Elmer está a comercializar kits, como o Profiler Plus e o SGM Plus
que permitem o estudo da amelogenina (gene homólogo do cromossoma X e Y) e de,
respectivamente, os seguintes sistemas: D3S1358, VWA, FGA, D8S1179, D21S11, D18S51,
D5S818, D13S317, D7S820 e D3S1358, VWA, D16S539, D2S1338, D8S1179, D21S11, D18S51,
D19S433, TH01, FGA.
Importa sublinhar que, após a reacção de PCR, os produtos de amplificação têm de ser
analisados, usando-se para esse fim várias metodologias sendo, todavia, a mais divulgada e a
que oferece resultados mais fiáveis a que utiliza sequenciadores automáticos, pelas razões
adiante expostas.
Uso dos sequenciadores automáticos para o estudo dos STRs
A utilização de sequenciadores automáticos é hoje praticamente imprescindível como tecnologia
associada à PCR, tanto na análise de loci STR, como no próprio estudo da sua sequência, nos
casos em que, por exemplo, se torna necessário o esclarecimento da presença de uma mutação
genética ou, ainda, na análise do DNA mitocondrial que pressupõe a sequenciação de duas
regiões hipervariáveis (HVI e HVII).
Estes permitem que a informação electroforética se vá armazenando à medida que decorre a
migração, graças à utilização de um software apropriado, sendo os alelos detectados por laser,
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pois os “primers” usados são marcados com fluorescência. Para além de que, paralelamente à
migração das amostras de DNA em estudo, migram vários padrões externos (“sizer” externo) e
padrões internos adicionados a todas as mostras a estudar (“sizers” internos). Os referidos
padrões são reconhecidos pelo software e servem para construir curvas de calibração, eliminando
as diferenças de mobilidades electroforéticas que podem existir em diferentes “lanes”. Deste
modo, é possível eliminar automaticamente as variações da mobilidade electroforética, as quais
podiam conduzir a uma tipagem errada dos alelos.
Com um sequenciador é possível a tipagem simultânea de vários sistemas, pelo que é necessária
uma quantidade inferior de DNA molde, o que constitui uma grande vantagem na resolução de
casos com interesse forense em que se dispõe de pequenos vestígios, com quantidades exíguas
de DNA.
A Perkin-Elmer possui vários modelos de sequenciadores automáticos, dos quais podemos
destacar o modelo ABI 310 e o ABI 3100 (electroforese capilar), que possuímos no nosso
laboratório que, para além das vantagens atrás expostas, possibilitam o estudo de vários
sistemas, designadamente loci STR, em que se verifique a sobreposição do tamanho dos alelos,
porque os distintos primers, para amplificação de cada sistema, são marcados com diferentes
fluorocromos, ou seja, com cores diferentes. Estes sequenciadores usam a electroforese capilar,
em vez dos geis de poliacrilamida utilizados noutros modelos, obviando a preparação e
manipulação do gel o que, muitas vezes, representava muito trabalho laboratorial, até porque nem
sempre os geis tinham a qualidade requerida para que se obtivesse bons resultados. A
electroforese capilar, entre outras vantagens, possui uma grande sensibilidade que é de grande
interesse, especialmente quando a quantidade de produto amplificado é exígua.
Por isso, de uma maneira geral, o uso dos sequenciadores apresenta muitas vantagens
relativamente aos processos manuais, designadamente o facto de obviar a necessidade da
manipulação do gel, após a electroforese, para a detecção dos produtos de PCR, ao contrário do
que ocorre quando a técnica empregue não é automática, em que é necessária a exposição
autorradiográfica do gel ou a coloração com nitrato de prata.
Outra vantagem a registar é o facto da análise dos resultados ser também automatizada, através
da utilização de software adequado, permitindo armazenar os dados em bases de dados, para
posteriores análises estatísticas.
Os sinais de fluorescência são conhecidos por serem lineares num maior grau de intensidades do
que as autorradiografias convencionais. Por isso, estes sistemas de detecção são, provavelmente,
mais úteis para a quantificação directa dos produtos de PCR. Este facto revela-se de especial
interesse quando se possui mistura de amostras provenientes de mais de um indivíduo, pois o
tamanho dos picos obtidos dá uma ideia do material celular existente de cada indivíduo, por
exemplo, nos casos de violação.
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DNA Mitocondrial e Cromossoma Y
A análise do DNA mitocondrial e do cromossoma Y, permite determinar relações familiares,
quando existe um hiato de várias gerações entre um ancestral e descendentes vivos. No entanto,
não possuem o poder de discriminação dos sistemas autossómicos, designadamente dos loci
STR autossómicos do DNA nuclear, para além de que é necessária uma maior ponderação na
elaboração das conclusões.
Num futuro próximo, com a criação de um número suficiente de bases de dados, com o
desenvolvimento de novas metodologias e, possivelmente, também de novas técnicas, bem como
com um perfeito controlo das situações excepcionais, cuja conclusão pode levantar algumas
dúvidas de interpretação, o estudo do cromossoma Y e do DNA mitocondrial pode constituir uma
peça relevante na resolução de perícias médico-legais do âmbito da Biologia Forense.
Conclusões
Investigação da paternidade
Prova positiva de paternidade
Nos casos da prova positiva de paternidade, isto é, quando não se verificar a existência de
exclusão de paternidade por nenhum dos sistemas estudados, calcula-se a probabilidade de
paternidade, com base no Teorema de Bayes. Este teorema é usado para determinar a
probabilidade final de um sucesso, deduzida a partir das probabilidades iniciais e certa informação
ou informações adicionais.
A fórmula que expressa a probabilidade (a posteriori) de paternidade contém um parâmetro para
poder ser simplificada, que é a probabilidade a priori de paternidade. Assim, se se atribuir a este
valor de probabilidade 0.5, considerando que o pretenso pai tem tanta probabilidade de ser o pai
como de não ser, surge uma fórmula simplificada:
W=
X
X +Y
Também conhecida por equação de Essen-Möller (1938), em que W é a probabilidade de
paternidade, X é a probabilidade de que o pai biológico seja o pretenso pai ou probabilidade de
que se verifique a paternidade e Y é a probabilidade de que o pai biológico seja um indivíduo
tirado ao acaso da população ou probabilidade de não paternidade.
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Para além do valor de probabilidade de paternidade, também são usados outros parâmetros,
como o índice de paternidade, que é o cociente
X
e ainda o valor EM (Essen-Möller), que é dado
Y
pela expressão: log Y/X+10.
Nas conclusões dos relatórios de investigação de paternidade em que não se verifique exclusão
de paternidade por nenhum dos sistemas estudados deve ser indicado o valor da probabilidade de
paternidade. Para que esses resultados sejam facilmente entendíveis por parte dos juristas, deve
ser anexada a Tabela de Hummel. Nessa tabela para intervalos de valores de probabilidade de
paternidade são atribuídos predicados verbais. Actualmente, usa-se a tabela de Hummel
modificada em que apenas figuram valores de probabilidade de paternidade superiores a 99%,
pois com as novas tecnologias empregues é pouco provável não se atingir este valor.
Tabela de Hummel modificada
Probabilidade de Paternidade
Predicado verbal
W ≥ 99.73%
Paternidade praticamente provada
99.73% > W ≥ 99%
Paternidade extremamente provável
Exclusão de paternidade
Quando se caracterizam laboratorialmente os diferentes polimorfismos que constituem a prova
pericial, pode ocorrer que se encontre exclusão por um sistema, várias exclusões ou nenhuma.
Todavia, nem todos os tipos de exclusão têm o mesmo valor.
Assim, classicamente, concluía-se por exclusão de paternidade, quando houvesse exclusão pelo
menos por dois sistemas, sendo uma delas de 1ª ordem (directa ou pela 1ª regra de Landsteiner).
Os casos mais frequentes de exclusão de 1ª ordem para um dado sistema ocorrem, quando o
filho possui um alelo ausente na mãe e no pretenso pai ou quando o pretenso pai é heterozigótico
e o filho não possui nenhum dos seus alelos. É para notar que apenas existe exclusão de 1ª
ordem aparente, quando houver um erro técnico ou quando existir uma mutação, contudo, a taxa
de mutação geral para a espécie humana é baixa.
Actualmente, devido ao uso de marcadores genéticos, concretamente de STRs, com taxas de
mutação relativamente elevadas, as regras, previamente usadas, para se concluir um caso por
exclusão de paternidade devem ser suficientemente ponderadas e avaliadas caso a caso, sendo
aconselhável, nalgumas situações, a sequenciação dos alelos dos sistemas que proporcionam a
exclusão.
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As exclusões de 2ª ordem (indirectas ou pela 2ª regra de Landsteiner) são aquelas em que pode
existir a possibilidade de erro, ou seja, a exclusão aparente de paternidade, quando para o
sistema em questão existem alelos silenciosos ou que se comportem como tal. O caso mais
frequente deste género de exclusões ocorre quando o pretenso pai e o filho são homozigóticos
para alelos diferentes.
Há alguns anos entendia-se que só se podia concluir com certeza os casos de exclusão de
paternidade. Hoje, dado o avanço da ciência neste campo, considera-se que um resultado positivo
de paternidade, devidamente documentado, é mais seguro do que o da exclusão de paternidade
apenas por dois marcadores genéticos.
Por outro lado, o antigo argumento usado pela defesa de que pode existir um indivíduo
geneticamente igual ao pretenso pai, tem cada vez menos valor. Pois, um resultado de
paternidade próximo de 99.99% pressupõe a utilização de um conjunto de sistemas
suficientemente alargado, pelo que na prática, não será possível encontrar um indivíduo
geneticamente igual ao pretenso pai, com excepção dos gémeos monozigóticos.
b) CRIMINALÍSTICA BIOLÓGICA
De acordo com a definição de Villanueva Cañadas (1991), “Criminalística é a ciência que estuda
os indícios deixados no local do delito, graças aos quais se pode estabelecer, nos casos mais
favoráveis, a identidade do criminoso e as circunstâncias que concorreram para o referido delito”.
O interesse médico-legal da criminalística reside no facto de se procurar vestígios anatómicos,
biológicos ou humorais que permitam estabelecer a identidade do autor do crime. Todavia, os
referidos vestígios encontrados na cena do crime são de natureza muito diversa e, por isso, para
a sua recolha deveriam participar indivíduos especializados, designadamente, polícias, médicos,
peritos em balística e impressões digitais e técnicos do laboratório onde são efectuados os
exames, ou indivíduos com informação suficiente por forma a fazerem a colheita e o
acondicionamento dos vestígios nas melhores condições.
É para notar, que o êxito do trabalho laboratorial depende da forma como os vestígios foram
recolhidos, acondicionados e enviados. É também de grande importância a selecção adequada
das amostras a estudar, pois não raras vezes é recebido material que não tem qualquer interesse
médico-legal e que o perito tem que analisar, constituindo este tipo de exames uma mera perda
de tempo.
Para a análise do DNA é necessário qualquer tipo de mancha ou produto que contenha material
genético. Este material genético ou DNA encontra-se em todas as células nucleadas do
organismo e possui características importantes para a sua aplicação em estudos de identificação,
já que o DNA é único para cada indivíduo, e é idêntico em todas as suas células. Ou seja,
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estudando qualquer vestígio biológico podemos identificar o indivíduo ao qual esse vestígio
pertence.
Os vestígios encontrados com mais frequência, com interesse médico-legal, são as manchas de
sangue e sémen.
Natureza dos vestígios biológicos
Manchas de sangue
O sangue é o tipo de amostra mais frequentemente analisada, tanto no estado liquído como em
mancha seca. O DNA é extraído dos leucócitos do sangue, uma vez que os eritrócitos são células
anucleadas. Esta extracção é efectuada mediante diferentes protocolos, sendo os mais usados os
que utilizam o fenol-clorofórmio (Smith e col., 1990) ou o Chelex (Singer-Sam e col., 1989).
Aquelas manchas podem encontrar-se em suportes porosos e absorventes existentes na cena do
crime, como sofás, tapetes, alcatifas e mesmo na roupa da vítima ou do autor do crime; ou em
suportes não porosos como, por exemplo, diferentes tipos de revestimentos de chão ou paredes
de residências, vidros ou cerâmicas.
Sémen
O sémen (suspensão de espermatozóides no líquido seminal), é a seguir ao sangue o vestígio
mais estudado, o que se deve ao facto de haver muitos casos de suspeita de agressão sexual
registados na casuística da Delegação do Porto do Instituto Nacional de Medicina Legal.
O DNA a analisar é extraído dos espermatozóides. Por isso, é conveniente efectuar, em primeiro
lugar, uma confirmação microscópica da sua existência na amostra a estudar. É, também, prática
corrente efectuar o teste ou reacção da Brentamina (determinação da actividade da fosfatase
ácida), cuja reacção positiva (presença de células seminais, mesmo na ausência de
espermatozóides) se traduz no aparecimento de uma coloração púrpura, numa mancha que se
suspeita ser de sémen, depois da aplicação do reagente. Por vezes, o resultado é duvidoso, por
se tratar de uma reacção colorimétrica e, nalguns casos, de difícil interpretação devido à cor do
próprio tecido onde a reacção é efectuada.
Depois da extracção do DNA do vestígio biológico ou dos exsudatos vaginais ou anais, procedese ao estudo da amelogenina. A amplificação do gene homólogo da amelogenina X-Y, permite
concluir que quando estão presentes células masculinas aparecem duas bandas, uma com 212
pb, específica do cromossoma X e outra com 218 pb, característica do cromossoma Y (os
tamanhos em pares de bases dependem dos primers usados).
Na grande maioria dos casos estudados, a amostra presente para exame é o exsudato vaginal da
queixosa, que é colhido aquando do exame efectuado no Serviço de Clínica Médico-Legal. No
entanto, também pode haver sémen em peças de vestuário da vítima ou do agressor ou, ainda, no
local onde ocorreu a violação, tanto em suportes porosos como não porosos.
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O facto das amostras de sémen poderem estar misturadas com outro tipo de produtos biológicos
da vítima ou de haver mistura de sémen de dois ou mais indivíduos, não constitui problema para a
resolução dos casos. Actualmente, há metodologias que permitem a separação eficiente do DNA
dos espermatozóides do DNA das células do epitélio vaginal da violada e, no caso de mistura de
sémen de mais de um indivíduo, a análise de DNA possibilita a detecção e identificação dos
indivíduos.
Outros vestígios
Os pêlos são outro tipo de vestígio biológico frequentemente analisado. Estes podem aparecer em
peças de vestuário, nas mãos da vítima, ou ainda na cena do crime e devem ser recolhidos e
acondicionados com precaução, pois podem ser provenientes de pessoas distintas.
O DNA dos pêlos está particularmente concentrado na raiz, pelo que os arrancados dão melhores
resultados, pois, na generalidade dos casos, possuem células do folículo piloso, o que permite
obter DNA em maior quantidade. Em condições ideais pode-se conseguir até 0.5 µg de DNA de
um só pêlo, sendo a quantidade normalmente conseguida de 200 ng em cabelos recentemente
arrancados e cerca de 10 ng em cabelos caídos. É para notar, que a quantidade de DNA existente
na raiz de um pêlo, varia de pessoa para pessoa e na mesma pessoa é também variável
consoante o local da sua proveniência (cabeça, barba, púbis, etc.).
Aquando da realização da extracção do DNA de pêlos deve-se ter em consideração o facto da
existência de melanina na sua composição. Esta constitui um factor inibidor da amplificação, pelo
que se deve, preferencialmente, usar apenas as raízes.
Os pêlos são maioritariamente constituídos por queratina (proteína), pequenas quantidades de
metais, ar e pigmento, a melanina. Esta é um potente inibidor da amplificação (PCR). Por isso,
quando se estuda o DNA nuclear de hastes de pêlos ou mesmo de raízes de pêlos que caíram
espontaneamente, sem tecidos do folículo piloso, os resultados, geralmente, não são conclusivos.
Acresce ainda, a possibilidade da existência de factores que possam impedir uma eficaz
extracção do DNA, como os tratamentos químicos, resistentes aos métodos de digestão
enzimática que usam ditiotreitol, proteinase K, detergentes e o aquecimento para dissolver o pêlo.
A saliva e a urina não contêm células na sua constituição, mas, por transportarem células
epiteliais, respectivamente da cavidade bucal e das vias urinárias, possuem DNA. As amostras
que tenham saliva, como filtros de cigarros fumados, garrafas ou latas de refresco e ainda selos
ou envelopes, são susceptíveis de identificar o autor do crime. As mais frequentes são as pontas
de cigarros que, não raras vezes, aparecem no local do crime.
A urina possui bactérias e outros agentes contaminantes que dificultam a obtenção de resultados.
Relativamente às fezes os resultados são ainda mais escassos, porque, na grande maioria das
vezes, não possuem material genético, susceptível de ser analisado e têm na sua composição
elementos que impedem o êxito do estudo.
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A identificação de restos cadavéricos através do estudo do material genético depende do estado
de preservação o qual, varia com o tempo decorrido desde a morte e de outros factores
ambientais, sendo os mais adversos a humidade e a temperatura. Se estes restos forem
encontrados submersos a possibilidade de se conseguir bons resultados é remota, uma vez que o
estado de degradação é muito maior.
Como na maioria dos casos não se dispõe de sangue, o material que se estuda é músculo ou
osso, mesmo que tenha decorrido bastante tempo após a morte.
Como restos postmortem também se podem estudar os dentes (polpa dentária), que representam
elementos importantes na identificação genética em casos de incêndio em que as partes do
organismos mais preservadas são as peças dentárias, em locais onde ocorreram grandes
catástrofes em que exista um grande número de mortos e ainda em casos de afogamento.
Os restos cadavéricos disponíveis, quando a morte tiver ocorrido há bastante tempo
(normalmente mais de 5 anos), são os ossos, uma vez que os tecidos moles já desapareceram e
os dentes e os cabelos, se ainda existirem, possuem quantidades exíguas e degradadas de DNA.
O material fetal é usado, na maioria dos casos, no esclarecimento de casos de investigação
biológica de maternidade em que há suspeita do feto ter sido abandonado pela mãe ou quando a
gravidez tiver resultado de violação, se tiver sido feita a interrupção da mesma (Artigo 42º do
Código Penal).
As amostras procedentes de tecidos fetais contêm quantidades apreciáveis de DNA, susceptíveis
de serem analisadas. Estas devem ser rapidamente congeladas, para evitar a sua degradação.
Não se devem adicionar conservantes, como álcool ou formol, pois estes produtos alteram de
uma forma irreversível os componentes celulares.
Colheita e armazenagem de amostras biológicas
Degradação
A degradação do DNA pode partir o DNA em fragmentos mais pequenos, sendo os principais
factores que a provocam, o tempo, a temperatura, a humidade, a luz (solar e raios UV). A
degradação pressupõe a não obtenção de resultados e nunca o aparecimento de um genótipo
distinto daquele que corresponderia à amostra.
O DNA é muito mais estável do que os marcadores genéticos convencionais, podendo-se manter
estável durante muitos anos e, por isso, em condições de ser estudado e de proporcionar bons
resultados, especialmente usando a técnica de PCR.
Algumas vezes a degradação em vez de impedir a obtenção de resultados pode ocasionar a
visualização de um único alelo em vez de dois, sendo mais frequente que desapareça o alelo de
maior dimensões. Por isso, quando se analisam vestígios com uma certa antiguidade e se obtém
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homozigotia para alguns sistemas deve-se ter cuidado na utilização desses resultados, pois
podem ser heterozigóticos.
Para se evitar a degradação deve-se promover a secagem completa do vestígio antes do seu
acondicionamento (colocar em embalagens próprias - envelopes, pequenos sacos de papel de
celofane, etc.) e armazenagem, que deve ser efectuada a baixas temperaturas.
Contaminação
Deve ser evitada qualquer tipo de contaminação que interfira na análise, devendo ser preservada
a integridade biológica da amostra. Uma das exigências a ter sempre presente pelo perito, entre
outras, é o uso de luvas descartáveis.
Pode-se definir vários tipos de contaminação:
• Contaminação química - produz resultados inconclusivos ou ausência de resultados.
• Contaminação provocada por microrganismos (bactérias e fungos) - normalmente não
interfere na interpretação dos resultados finais. Por exemplo, o sangue e o sémen encontrados
nos locais do crime, constituem um bom meio para o crescimento de bactérias e fungos, que
podem levar à degradação do DNA humano. Quando o DNA se encontra degradado e o
resultado for inconclusivo, será preferível considerá-lo como tal.
• Contaminação por outro DNA humano - Este é o tipo de contaminação mais importante, que
pode ocorrer durante ou depois da colheita das amostras.
É importante saber distinguir “mistura de amostras” e “amostra contaminada”. A primeira é uma
amostra que contém DNA de mais do que um indivíduo, em que a mistura ocorreu antes ou
durante a prática do crime. A segunda, é aquela em que o material contaminante foi depositado
durante a colheita da amostra, acondicionamento, manuseamento, armazenagem, ou análise.
Usando a técnica de PCR, provavelmente serão detectadas pequenas quantidades de amostra
contaminante e, por isso, o problema ficará ultrapassado, podendo-se inclusivamente identificála.
Devem ser tomadas todas as precauções para evitar a contaminação, se bem que a
quantidade de células contaminantes é, muitas vezes, relativamente pequena, por conseguinte,
não afectará o resultado da análise, a não ser que o vestígio a estudar tenha uma quantidade
muito exígua de DNA e o DNA contaminante esteja em muito maior quantidade. De qualquer
modo devem ser seguidas todas as normas aconselhadas.
• Contaminação por outras amostras - Este tipo de contaminação pode ocorrer depois da
secagem e armazenagem, quando o perito manuseia as amostras. Por isso, as boas normas
de conducta laboratorial e o treino são fundamentais para evitar estas situações.
Colheita de vestígios
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• Vestígios transportáveis - colheita directa dos vestígios.
• Vestígios não transportáveis - remoção do vestígio para um suporte onde seja possível
realizar a extracção do DNA. Normalmente usa-se pano branco, lavado, ligeiramente
humedecido com água pura (MQ).
Teoricamente, quando o vestígio é transportável não se põe tanto o problema da contaminação e
perda de material biológico, porquanto o vestígio é levado directamente para o laboratório sem o
sujeitar a qualquer tipo de operação.
Quando se colhem evidências deve também colher-se uma pequena quantidade de suporte,
adjacente às manchas, que irá funcionar como controlo negativo.
Preservação das amostras
Uma vez colhida a amostra deve deixar-se secar ao ar e acondicioná-la na ausência da
humidade, para que mantenha as suas características. Posteriormente, deve ser armazenada a
baixas temperatura, evitando-se as flutuações de temperatura e humidade.
Avaliação da amostra
Devem ser efectuados testes no sentido da confirmação da natureza da amostra. Se se tratar de
uma amostra biológica pode-se determinar a quantidade e qualidade do DNA extraído, para
posteriormente se definir a estratégia a seguir para o seu estudo. Alguns laboratórios, preferem
efectuar um controlo da qualidade e determinação aproximada da quantidade, nos produtos
amplificados, utilizando para tal um gel de comprovação.
Actualmente, a maioria dos laboratórios apenas efectuam técnicas de PCR, ao contrário de há
alguns anos em que se usava o estudo do DNA via RFLP, técnica que exigia entre outras
condições DNA de alto peso molecular (HMW), ou seja, fragmentos de tamanhos entre 20 000 25 000 pb e em quantidade suficiente (10ng - 50ng).
Em muitas situações isto não é possível, particularmente quando se realiza o estudo de vestígios
biológicos antigos.
A sensibilidade da PCR permite a análise de fragmentos com apenas algumas centenas de pares
de bases (pb) e em pequena quantidade (0.2ng - 0.5ng). Nos casos de violação aquele número de
fragmentos pode equivaler a escassas centenas de espermatozóides ou a uma pequena mancha
do tamanho de uma cabeça de alfinete.
É de realçar, que a colheita e preservação das amostras apresentam um papel determinante no
sucesso da análise de DNA, como já foi referido.
Bases de Dados Genéticos
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É tão importante dispor de vestígios biológicos em casos de crimes, como de células do suspeito.
Por isso, tem sido objecto de aceso debate, devido aos aspectos legais e éticos subjacentes, a
existência de bases de dados nacionais de indivíduos suspeitos ou acusados de terem praticado
crimes (furtos ou crimes mais graves) e do período de conservação desses dados. Sendo também
amplamente discutido o problema do consentimento por parte dos suspeitos, na obtenção das
amostras para comparação.
A opinião geral europeia é que apenas façam parte das referidas bases os indivíduos acusados
de terem cometido crimes graves. Quanto ao seu período de conservação, não existe
uniformidade de opiniões.
As bases de dados genéticos devem ser efectuadas em conformidade com padrões de protecção
de dados, de acordo com o estipulado na Convenção Europeia de Protecção de Dados, em
particular na Recomendação NºR (87) e na nossa Lei de Protecção de Dados Pessoais (Lei nº
67/98).
Quando são colhidas amostras biológicas a um indivíduo, tem de se partir do princípio que estas
possuem uma considerável informação genética, podendo proporcionar o estudo de genes
relacionados com determinadas doenças genéticas.
Há autores que referem que o diagnóstico dessas doenças poderá ser susceptível de ser usado,
por exemplo, por empresas que face à competitividade económica existente, pretendessem
afastar funcionários que futuramente poderiam apresentar elevadas taxas de absentismo e ainda
consideráveis custos médicos. É ainda referida a possibilidade da utilização daquelas amostras na
determinação genética da predisposição para o consumo exagerado de álcool ou para a
homossexualidade, particularidades que poderiam levar à marginalização dos indivíduos.
É de sublinhar que a parte do genoma que tem maior interesse médico-legal, como será
posteriormente abordado mais detalhadamente, é o DNA não codificante e que, por isso, não está
relacionada com os citados genes responsáveis por doenças genéticas. No entanto, recentemente
foi levantada a possibilidade da associação da doença maníaco-depressiva com o STR
HUMTH01, marcador amplamente usado nos laboratórios de Biologia Forense. A ser confirmada
esta hipótese, este sistema poderá ser retirado do trabalho laboratorial de rotina.
Podem-se considerar os seguintes tipos de bases de dados:
• Interesse Criminal
• Identificação de desaparecidos
• Populacionais anónimas (fins estatísticos)
• Passivas (armazenamento de amostras biológicas).
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Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses
As bases de dados genéticos com interesse criminal estão a ser objecto de discussão na União
Europeia (EU). Os laboratórios que levem a cabo a sua criação, devem obedecer a alguns
critérios, designadamente implementar normas de qualidade, por forma a minimizar a
possibilidade da existência de erros técnicos, bem como independência, confidencialidade e
respeito pela intimidade e privacidade.
No Reino Unido, existe legislação bastante permissiva quanto à constituição de bases de dados
genéticos e à recolha de amostras biológicas a indivíduos implicados em crimes, mesmo não
violentos. Este procedimento surgiu na sequência da análise de amplas estatísticas
demonstrativas de que a grande maioria dos indivíduos que cometeram crimes graves tinham
praticado, anteriormente, ofensas menores. Por isso, um dos objectivos da criação de bases de
dados assentou no seu poder dissuasivo, uma vez que um potencial violador reincidente sabendo
que o seu perfil genético ficava registado, aquando da primeira violação, desistiria da prática de
mais crimes.
Em relação à colheita de amostras a indivíduos suspeitos, a legislação inglesa apenas considera
“amostras íntimas” as amostras cuja colheita é susceptível de violar a integridade física de um
indivíduo, como o sangue; os exsudatos bucais (zaragatoas) e as raízes de cabelos são
consideradas “não íntimas” e, por isso, podem ser colhidas sem permissão e, se for necessário,
utilizando a força.
Relativamente às bases de dados, no Reino Unido, o Forensic Science Service (FSS)
desenvolveu e pôs em funcionamento o “National DNA Database” que analisa amostras de
indivíduos suspeitos de terem cometido crimes e amostras colhidas em cenas do crime. O
objectivo do referido laboratório é possuir 5 milhões de perfis de DNA, numa população total de 60
milhões, tendo vindo a estudar 135 000 amostras por ano. É, no entanto, de destacar que possui
um staff científico constituído por mais de uma centena de peritos e vários sequenciadores
automáticos (mais de doze), para além de instalações adequadas, que lhe permite ultrapassar,
sem problemas, auditorias externas a que são submetidos pelo serviço de acreditação do país.
Nos Estados Unidos existe uma base de dados designada CODIS (Combined DNA Index
System), na qual estão integradas: a de interesse criminal, a de desaparecidos e a de interesse
estatístico. Neste sistema participam 100 laboratórios, cada um dos quais gere os seus próprios
dados, declarando-os a uma central. Esta base de dados obedece a medidas estritas de
segurança e protecção, o que assegura a sua eficácia.
Relatório pericial em Criminalística
A resolução dos casos médico-legais do âmbito da criminalística implica, na maior parte dos
casos, o estudo de vestígios biológicos e a comparação das suas características genéticas com
as da vítima e suspeito ou suspeitos.
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Tradicionalmente, aquelas perícias realizavam-se mediante o estudo exclusivo de marcadores
genéticos convencionais. Todavia, visto que a maior parte destes marcadores são proteínas que
proporcionam, neste campo, informação reduzida por possuírem uma escassa variação (baixo
polimorfismo) e porque se degradam rapidamente, é preferível o estudo dos polimorfismos de
DNA.
A conclusão deste tipo de perícia médico-legal é muito mais complexa do que os casos de
investigação de filiação, porquanto nestes últimos o perito colhe quantidade suficiente de sangue
aos intervenientes para a realização do estudo e as amostras são preservadas nas condições
ideais (arca congeladora a -20ºC ou a temperaturas inferiores). Por outro lado, os vestígios
recebidos para a resolução de casos ligados à criminalística são de diferentes origens (manchas
de sangue, esperma, pêlos etc.), para além de que as suas quantidades são exíguas e o seu
estado de conservação é deficiente, na maior parte dos casos.
Dadas as características dos vestígios anteriormente mencionadas, o perito necessita de
desenvolver diferentes protocolos de extracção do DNA, conforme o produto a analisar e o seu
estado de conservação. Não raras vezes, tem também de lançar mão de métodos que lhe
permitam fazer a concentração e purificação das amostras de DNA, após a extracção.
Nos casos de violação em que são colhidos exsudatos vaginais, em que há mistura com o sémen
do violador, têm sido desenvolvidas técnicas no sentido de possibilitar a separação das células
espermáticas das células vaginais.
Nas perícias relativas à identificação individual, em restos cadavéricos antigos, têm sido
introduzidas técnicas de extracção e purificação complexas. Com este tipo de material têm de ser
tomadas com mais acuidade todas as precauções sugeridas aos laboratórios que fazem PCR,
para evitar a contaminação.
O relatório neste género de perícia deve ser exaustivo, referindo e descrevendo todo o material
recebido, técnicas usadas na extracção do DNA, métodos de tipagem e resultados obtidos. As
conclusões devem incluir as comparações das características genéticas dos vestígios com as
mesmas características do sangue do suspeito ou suspeitos e vítima, para além de poder incluir a
valorização da prova em termos de “likelihood ratio” (razão bayesiana de probabilidades) ou
probabilidade de concordância. A valorização da prova pressupõe que haja coincidência entre os
genótipos do vestígio e os do suspeito.
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PERÍCIAS EM PSIQUIATRIA FORENSE
3
Teresa Magalhães
A Psiquiatria Forense engloba casos no âmbito do Direito Penal mas também do Direito Civil, do
Direito do Trabalho, do Direito Militar e do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da
Administração Central, Regional e Local.
Trata-se de uma “ciência auxiliar do direito que estabelece e define os elementos
necessários ao fundamento da opinião médica que informa o juiz a respeito da aplicação
da lei aos portadores de doenças e anomalias mentais” (Pedro Polónia). Constitui uma
actividade conjugada do direito e da psiquiatria, com a contribuição da sociologia, da
criminologia/vitimologia, da antropologia, da psicologia e da medicina legal.
O relatório de psiquiatria forense, tal como os restantes relatório médico-legais deve conter
dados objectivos, bem sistematizados, numa linguagem simples, acessível a não técnicos de
saúde mental, definindo os conceitos a que recorre e apresentando conclusões bem
fundamentadas. Em casos complexos de perícias, por mutismo, negativismo ou aparente
simulação de arguidos poderá ser necessário recorrer à observação do comportamento no seu
meio e a informações de terceiros (familiares, amigos, vizinhos, etc.).
No âmbito do direito penal a perícia destina-se, na maior parte dos casos, à determinação da:
a) perigosidade: “tendência para a perpetração de actos de violência”; está relacionada com
“violência, repetição, premeditação, impulsão” (Mário Taborda). O perito deve prever o
comportamento pós-delitual para o mesmo tipo de delito ou outro. Mário Taborda considera
que o estado de perigosidade não é uma “energética cega, que emane apenas da
personalidade ou das brumas da psicose”, mas é também um factor social, significando o acto
perigoso uma tentativa de nova comunicação com o grupo, através de uma linguagem
peculiar.
b) capacidade para se auto-determinar de acordo com a sua vontade (para o contexto dos factos
de que o examinado é acusado, dependendo disso a capacidade de culpa), o que implica
integridade da tríade liberdade-inteligência-vontade; esta capacidade permite-nos determinar a
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imputabilidade. A inimputabilidade traduz a incapacidade para no momento do delito
reconhecer a ilegalidade ou ilicitude do acto cometido por existir um quadro psicopatológico; a
imputabilidade atenuada contempla situações complexas como as que respondem a
determinantes biológicas e caracteriais, difíceis de comparar em peso relativo, como acontece
com os psicopatas e outros distúrbios da personalidade.
• Neuroses: deverão ser considerados quase sempre imputáveis; nalgumas situações
limites como a neurose obsessivo-compulsiva grave, a cleptomania e a dissociação
histérica poderão justificar a figura de imputabilidade atenuada ou mesmo de
inimputabilidade, em casos específicos.
• Esquizofrenia: deverão ser considerados inimputáveis, sempre que o delito se
correlacione directamente com a actividade delirante ou alucinatória, em plena fase
produtiva da doença; há casos em que a fragmentação da personalidade e o estilo de
vida não sofreram alterações significativas, quer por benefícios terapêuticos quer pelas
características do tipo de esquizofrenia, podendo imputabilidade atenuada para certos
delitos.
• Psicoses afectivas: depressão e mania. Podem existir situações extremas de
depressão que sejam causa de imputabilidade (ex: grave depressão com ideação
suicida altruísta); em certos casos de mania (ex: gastadores e perdulários do património
familiar, quer de bens móveis quer de bens imóveis), pode justificar-se a interdição ou
inabilitação.
• Síndroma cerebral orgânica: desde imputáveis a inimputáveis, dependendo do estado
da doença e do contexto do delito. Nas demências estabelecidas a inimputabilidade é
mandatória, sendo possível admitir imputabilidade atenuada em situações prédemências de bom prognóstico. Os epilépticos também poderão ser considerados
desde imputáveis a inimputáveis, passando pela figura intermédia de imputáveis com
atenuantes (se houver delito em alteração do estado de consciência pode considerar-se
a inimputabilidade).
• Alcoolismo e outras toxicodependências: poderão ser considerados desde
imputáveis a inimputáveis. Exemplos de inimputabilidade: alteração de estado de
consciência (delirium-tremens, embriaguez patológica, demência alcoólica) e estádios
delirantes como a paranóia de ciúme alcoólica. As situações de alcoolismo cultural,
deverão
ser
consideradas
como
imputáveis, porquanto o indivíduo conhece
previamente os malefícios do álcool. Em relação aos crimes cometidos sob efeito do
álcool a imputabilidade é a regra, podendo admitir-se, eventualmente, atenuantes em
casos de não intencionalidade no abuso de álcool. No caso das toxicodependências por
drogas ilícitas, a regra geral é a de que em alteração do estado de consciência a
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inimputabilidade deverá ser considerada; mais delicadas, em termos de conclusões, são
as situações de abstinência na síndroma de privação (a imputabilidade atenuada deverá
considerada em tal circunstância pelo prejuízo parcial da tríade liberdade-inteligênciavontade). No caso específico do cocainómano a diferença entre abusadores e
dependentes pode ser fundamental para concluir pela imputabilidade ou pela
inimputabilidade atenuada, respectivamente; enquanto que nos primeiros o consumo é
esporádico e há maior controlo sobre a vontade, nos segundos a dependência revestese de um certo determinismo biológico.
• Oligofrenias: as de média e profunda gravidade, deverão ser sempre considerados
causa de inimputabilidade; no caso particular dos oligofrénicos ligeiros, por vezes com
critérios psicométricos a tocar um Q.I. global entre 65 e 69, poderão ser considerados
imputáveis com atenuantes, dependendo do contexto dos factos.
• Distúrbios da personalidade: referem-se às chamadas sociopatias e, em geral,
pressupõem imputabilidade atenuada por existirem factores biológicos e sociais que
retiram ao doente parte da sua capacidade de auto-determinação, por prejuízo da
vontade.
No âmbito do direito civil o perito é chamado a pronunciar-se, em geral, sobre:
a) consequências psiquiátricas de um traumatismo (também no âmbito do direito do
Trabalho): pela TNI (para acidentes de trabalho e doenças profissionais) os coeficientes de
desvalorização variam de 0 a 100% de incapacidade, desde o estado normal ao simples
estado de vida vegetativa. Nos casos particulares de incapacidade permanente devida a
agressões ou acidentes de viação, por exemplo, a TNI pode servir como mera orientação,
determinando-se, também, os danos extra-patrimoniais. O essencial é o estabelecimento, ou
não, de um nexo de causalidade. O perito deverá estar preparado para a possibilidade de
simulação de queixas, em todas as suas variantes, periciando com rigor e objectividade, pelo
que pode recorrer a testes, como os de nível de inteligência com cálculo de deterioração,
electroencefalograma, tomografia axial computorizada ou ressonância magnética nuclear
crâneo-encefálicas. Certos casos deverão ser reavaliados posteriormente, porquanto a
evolução de algumas afecções poderá ser favorável após tratamento adequado (ex. síndroma
pós-comocional dos traumatizados de crânio).
b) interdição: poderá ser atribuída a quem por anomalia psíquica, surdo-mudez ou cegueira,
seja incapaz de governar pessoas e bens. Corresponde a um estatuto de menoridade, sendo
indigitado um tutor para cuidar e zelar daqueles aspectos. Ouvido o conselho de família,
usualmente o tutor é alguém da família, designado pelo Tribunal. O processo pode ser
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requerido por diversas pessoas, como o conjuge ou parente sucessível, e ainda pelo Ministério
Público, podendo a interdição ser levantada logo que cesse a causa que a determinou.
c) inabilitação: forma de interdição parcial. Poderá ser atribuída a quem por anomalia psíquica,
surdo-mudez, cegueira, prodigalidade e abuso de álcool ou drogas ilícitas, não seja capaz de
reger convenientemente o seu património. Pressupõe um estado não tão grave como nos
casos de interdição, não só porque poderão corresponder a situações patológicas transitórias
mas também porque em causa está apenas a necessidade de resguardar eventuais
desmandos materiais por negócios irreais ou megalomaníacos. Para orientar esse património
o Tribunal nomeia um curador, não podendo a inabilitação ser levantada antes de 5 anos, para
os casos específicos de alcoolismo e outras toxicomanias.
d) questões testamentárias (incapacidade para testar ou anulação de testamento): consideramse incapazes para testar os interditos por anomalia psíquica (para além dos menores não
emancipados); prevê-se incapacidade acidental para quem, mesmo transitoriamente, se
encontra incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício
da sua vontade.
e) inibição do exercício do poder paternal (a requerimento do Ministério Público, parente do
menor ou pessoa responsável pela sua guarda) quando qualquer dos pais, por diversos
motivos, entre eles enfermidade, não se mostre em condições de cumprir aquele dever. Tratase de uma perícia delicada que obriga a parecer de conclusões bem fundamentadas, para as
quais concorreram, frequentemente, diversos testes de personalidade e a consulta de fontes
informativas vastas e minuciosas.
f)
internamento e tratamento compulsivos: de uma forma genérica, a recusa de tratamento e
internamento tem tutela constitucional e civil. O Ministério Público e, em casos urgentes as
autoridades administrativas e policiais, podem internar compulsivamente um indivíduo que
cause distúrbios na “ordem, tranquilidade, segurança, moral pública,” competindo à Instituição
psiquiátrica receptora o pedido de confirmação do internamento pelo Tribunal da Comarca. O
juíz pode também determinar regime fechado, através de atestado médico, subscrito por dois
clínicos de preferência com a especialidade de psiquiatria, quando um indivíduo for
considerado como carácter perigoso ou anti-social.
A simulação pode ser percebida segundo diversas vertentes:
a) pré-simulação: simulação de um quadro patológico para obtenção, por exemplo, de um
internamento em hospital psiquiátrico;
b) meta-simulação: acontece com a pessoa que após a “cura” continua a mostrar-se “doente”;
c) dissimulação: encobrimento de doença pré-existente;
d) para-simulação: situação mista em que existem, simultaneamente, doença e simulação;
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e) super-simulação: simulação de múltiplas patologias orgânicas a simulação.
Referências bibliográficas
-
Dec-Lei nº 326/86, de 29 Setembro
-
Calabuig JA. Medicina Legal y Toxicología. 5ª edición. Barcelona: Masson, S.A., 1998: 911-1102.
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ANTROPOLOGIA E ODONTOLOGIA FORENSES
Teresa Magalhães
1. ANTROPOLOGIA FORENSE
A Antropologia Forense constitui a aplicação de conhecimentos de Antropologia Física às
questões de direito, sobretudo no que concerne à identificação de cadáveres ou restos
cadavéricos ainda que, numa pequena parte (em razão da sua frequência), se aplique também a
questões relacionadas com indivíduos vivos. Trata-se aqui de uma identificação morfológica, dado
que a identificação genética, como discutido em aula anterior, é da competência da Genética e
Biologia Forense.
As
situações
mais
frequentemente
relacionadas
com
a
identificação
cadavérica
(necroidentificação) têm a ver com achados em escavações de vária ordem, com cadáveres
abandonados
e
já
em
fase
avançada
de
decomposição
ou
mutilados/desfigurados
voluntariamente pelo homicida (para impedir a identificação), com cadáveres que possam
corresponder a indivíduos procurados ou com desastres de massa1 (acidentes de aviação,
naufrágios ou catástrofes de origem natural, por exemplo, em que se verifica carbonização ou
destruição maciça do corpo).
Com
base
nestes
exemplos
compreende-se
que
a
Antropologia
Forense
se
move,
particularmente, em dois distintos ramos do direito: o penal e o civil.
Os estudos de identificação baseiam-se, sobretudo, na análise dos ossos, uma vez que estes
conservam aspectos da vida do indivíduo, que podem persistir muito para além da morte e serem
preciosos à sua identificação. É o caso de fracturas ou calos de fracturas, de sequelas de
determinadas patologias ou mesmo de malformações. Os dentes, como veremos no capítulo da
odontologia forense, são também elementos fundamentais à identificação, quer pelas informações
que nos podem dar sobre as características físicas e passado do indivíduo, quer pela sua grande
resistência.
1
situação que, resultante da mesma ocorrência, provoca um número de vítimas superior à capacidade de
resposta das instituições locais.
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Este trabalho só será bem sucedido se, para além das características gerais de identificação do
indivíduo, apuradas através de métodos reconstrutivos (ex: sexo, altura, idade aproximada), for
também possível proceder a um estudo comparativo que permita determinar características
individualizantes. Este sucesso dependerá, também, da existência de material suficiente para a
identificação (daí a importância de um correcto exame do local, tendo em vista a recolha da
totalidade do material existente).
Relativamente à situações mortais, e de uma forma genérica, podemos considerar como
objectivos da Antropologia Forense:
1 - Determinar identidade do indivíduo;
- origem dos restos (espécie - humana, animal, vegetal, outra);
- características gerais de identificação (sexo, idade, altura, raça);
- características individualizantes (sinais particulares);
2 - Determinar data da morte;
3 - Determinar causa da morte;
4 - Interpretar as circunstâncias da morte.
a) A identidade
Determinar a espécie dos restos cadavéricos ou a origem do material presente ao perito constitui
um passo fundamental pois, não raramente, tratam-se de restos de animais ou até de objectos
(ex: incêndio num espaço no qual coexistiam pessoas e animais; restos de animais mortos ou
bonecos de plástico encontrados em locais suspeitos). Em geral uma observação atenta do(s)
osso(s) permite fazer o diagnóstico, existindo contudo certas técnicas a que pode ser feito recurso
como sejam a determinação do seu peso, da sua densidade ou índice medular, ou a análise das
suas características histológicas, radiológicas ou imunológicas.
As características gerais de identificação são relativas a vários aspectos, entre os quais o
sexo, a idade, a altura e a raça.
A determinação do sexo baseia-se nas características morfológicas de certos ossos em razão do
sexo, como sejam os ossos da bacia. Em geral nos homens os ossos são mais robustos (com
maior predominância do volume epifisário relativamente ao volume da diáfise) e com mais marcas
das inserções musculares do que no caso das mulheres; nas crianças esta determinação é mais
difícil devido à falta de diferenciação de certas características sexuais. Como se compreende,
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trata-se pois de uma identificação difícil que depende da quantidade e tipo de material disponível
e que tem de ter em atenção uma série de variáveis constitucionais.
A determinação da idade obedece a diferentes regras conforme se trate de um feto, de uma
criança ou jovem, ou de um adulto.
Para os fetos usam-se a fórmulas de Balthazard e Dervieux (1921): Idade (em dias) =
comprimento do feto (em centímetros) x 5,6. No caso de apenas existirem fragmentos ou ossos
isolados, utilizam-se tabelas para calcular o comprimento do feto e, através deste, determina-se a
idade.
No caso das crianças pequenas a determinação da idade tem por base o seu estádio de
desenvolvimento. O rigor desta estimativa vai diminuindo à medida que as crianças crescem. No
caso das crianças mais velhas a idade pode ser determinada através dos dentes (decíduos e
definitivos, com base em tabelas), através das epífises de crescimento dos ossos longos (o
processo mais adequado entre os 14-20 anos e efectuado, também, através de Rx, nos indivíduos
vivos) ou dos núcleos de ossificação de outros ossos (ex: suturas cranianas), ou através do
comprimento dos ossos longos. Não podemos contudo esquecer que esta determinação
corresponde apenas a uma estimativa, não se tratando nunca de uma avaliação exacta em virtude
das variações individuais relacionadas com o grau de desenvolvimento (que varia com factores
genéticos, metabólicos, nutricionais, ambientais, etc.).
No adulto caso dos adultos recorre-se, geralmente, à análise dos dentes ou das alterações a nível
da sínfise púbica (zona de articulação anterior dos ossos da bacia) podendo, também, procederse ao estudo da fusão das suturas cranianas quando não existam dentes ou ossos da bacia.
Podem ainda ser tidas em conta alterações que tendem a surgir com a idade, como alterações
degenerativas ósteo-articulares. No entanto, também neste caso existem variações individuais
que têm que ser ponderadas.
A determinação da altura pode ser feita através da medição do esqueleto (método anatómico) ou,
caso este não exista na sua totalidade, através da medição dos ossos longos. Esta avaliação
baseia-se na relação de proporcionalidade constante entre este comprimento e a altura do
indivíduo (0,8), socorrendo-se de tabelas e, atendendo ao sexo previamente determinado (método
matemático). Existem tabelas específicas para os fetos e crianças pequenas, uma vez que neste
casos os ossos longos nunca são encontrados na sua totalidade (separação das epífises).
A determinação da raça (afinidade populacional) é muito complexa e pouco fiável, o que se fica a
dever aos cruzamentos entre os povos e às questões de variação entre as populações.
Geralmente consideram-se as variações dos traços crâneo-faciais (prognatismo facial inferior,
conformação do malar ou do palato, proporção das superfícies orbitárias e nasal, características
da abertura do nariz e do bordo nasal inferior e certos estigmas dentários).
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As características individualizantes correspondem a aspectos específicos que podem
caracterizar o indivíduo, através do método comparativo de identificação, com base em elementos
fornecidos por pessoas supostamente conhecidas da vítima (ex: fotografias, registos clínicos,
particularmente de medicina dentária, RX, história dos antecedentes patológicos ou traumáticos,
hábitos, etc). Trata-se de um estudo que, em geral, é interdisciplinar, envolvendo não só médicos
legistas como clínicos, odontologistas, antropologistas forenses e agentes de investigação
criminal.
Podem valorizar-se aspectos anatómicos próprios do sujeito, como a morfologia dos seios
frontais, por exemplo, aspectos que nos indiquem a lateralidade do mesmo (o tamanho dos ossos
longos é maior do lado dominante), sinais característicos de determinadas profissões ou hábitos
(alterações nos dentes ou pigmentação das faneras), marcas de traumatismos antigos ou
recentes (fracturas, calos ósseos, amputações, dismorfias) ou de determinadas doenças
(infecções, tumores, doenças articulares ou endócrinas ou, ainda, perturbações nutritivas). A
comparação com as características encontradas pode ser feita com base em estudos
radiográficos, comparação fotográfica (sobreposição de imagem em computador, pesquisando-se
a existência de concordância entre as linhas e curvas da face com pontos do esqueleto) ou
reconstrução da face (modelagem das partes moles sobre o crânio, ou através de desenhos).
A determinação da data da morte é muito complexa pois na sua maioria, tratam-se de casos em
avançado estado de decomposição cadavérica (dependente de uma série de factores, como já
referido em aula anterior), alguns já mesmo em fase de esqueletização. Existem, contudo, uma
série de metodologias orientadoras desta avaliação entre elas: fase de decomposição cadavérica;
estudo da fauna necrófaga encontrada no corpo (entomologia forense); estudo das modificações
da composição química do osso (relação entre matéria orgânica e inorgânica, por análise térmica
diferencial ou por análise termo-gravimétrica, mas esta também dependente do local onde os
ossos se encontravam).
A causa da morte, no caso de indivíduos esqueletizados só pode ser estudada relativamente a
situações que deixem marcas nestas estruturas, como é o caso de certos traumatismos com
fracturas ou ferimentos por armas de fogo ou, ainda, de intoxicações crónicas pelo arsénio.
A interpretação relativa às circunstâncias da morte, é em geral difícil e as conclusões escassas,
limitando-se geralmente à análise da existência, ou não, de sinais de violência e da interpretação
da vitalidade de certas lesões (diagnóstico diferencial com lesões pós-mortem provocadas por
animais ou outros elementos da natureza - tafonomia).
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2. ODONTOLOGIA FORENSE
A Odontologia Forense compreende áreas diversas de intervenção que vão desde a avaliação do
dano orofacial pós-traumático (no âmbito da clínica médico-legal do direito penal, civil ou do
trabalho), até à identificação de indivíduos mortos ou à identificação de agressores, através das
marcas de mordida.
Como já referido, os dentes são estruturas fundamentais à identificação médico-legal, em virtude
da sua resistência (à putrefacção, ao calor, aos traumatismos e à acção de certos agentes
químicos) e especificidade (cada dentadura é única).
A identificação através dos dentes permite o estudo dos aspectos assinalados para a Antropologia
Forense, através de métodos de reconstrução e comparação.
A descrição dos dentes definitivos é geralmente feita através de números. Para este efeito
existem vários sistemas, entre os quais o de Palmer, o de Haderup e o da Fédération Dentaire
Internationale. Este último designa os quadrantes por algarismos (1, 2, 3 e 4) e cada dente por
outro algarismo (exemplo: 2º incisivo superior direito - 2.1; canino inferior esquerdo – 3.3). Nos
decíduos, os quadrantes designam-se pelos algarismos 5, 6, 7 e 8. Os dentes supranumerários
designam-se pelo algarismo 9.
Entre as características individualizantes a analisar contam-se: nº de dentes, alterações
morfológicas congénitas ou adquiridas (hábitos, profissão, etc), alterações da posição ou rotação,
alterações patológicas (cáries) ou traumáticas, existência de tratamentos ortodônticos
(almágamas, coroas, pontes, próteses fixas ou amovíveis). Pode ser feito o estudo radiológico dos
dentes para posterior comparação com Rx feitos em vida.
Outra forma de identificação é através das marcas de mordida. Define-se como marca de
mordida a impressão causada unicamente pelos dentes ou em combinação com outras partes da
boca. No entanto, por vezes a marca limita-se apenas a uma pequena equimose difusa, sem se
identificarem características dentárias específicas.
A marca de mordida típica é oval ou circular, como uma equimose, que ao ser objecto de uma
análise mais cuidada pode revelar a arcada dentária e os dentes individualmente. Estas marcas,
quando identificadas na pele humana, podem representar provas físicas importantes em crimes
violentos, já que a representação das características dentárias do perpetrador da marca oferece
uma prova que entre os dois indivíduos houve contacto violento. De facto, os dentes são
frequentemente usados como armas quando uma pessoa ataca outra ou quando a vítima do
ataque se tenta defender, podendo assim ser possível a identificação do possível perpetrador. As
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marcas de mordida não são encontradas unicamente em situações relacionadas com crimes
violentos, sendo também passíveis de serem observadas nas situações de maus tratos em
crianças. Esta análise das marcas de mordida baseia-se em dois pressupostos: os dentes
humanos são únicos e existe detalhe suficiente dessa singularidade na marca de mordida.
A importância das marcas de mordida na produção de evidência depende, em grande parte, da
metodologia utilizada na sua análise, na qual os mais pormenores deverão ser tidos em
consideração. Existem três passos fundamentais na metodologia da análise das marcas de
mordida: obtenção de evidência a partir da vítima; obtenção de evidência a partir do suspeito;
comparação da evidência.
a)
Obtenção de evidência a partir da vítima
Assim que a marca de mordida seja detectada, esta deverá ser examinada por um perito para ser
determinado se as suas dimensões e configuração estão dentro dos parâmetros humanos. Se tal
for o caso, segue-se, então, a descrição exaustiva da marca, descrição esta que deverá incluir
todas as suas características: localização, tamanho, forma, orientação, cor e tipo de lesão.
Após elaborado o registo detalhado da lesão, a marca de mordida deverá ser fotografada, o que
implica técnicas especiais.
A saliva depositada sobre a pele quando se produz a marca de mordida pode e deve ser colhida
para análise
Devem, ainda, ser realizadas impressões da superfície da marca de mordida sempre que existam
edentações na pele, ou quando se pretende preservar a natureza tridimensional da marca de
mordida.
Em algumas circunstâncias, poderá ser necessário proceder à excisão do tecido lesado, no
sentido de se facilitar a preservação da evidência e auxiliar as investigações relacionadas com a
determinação de perpetrador.
b)
Obtenção de evidência a partir do suspeito
As estruturas extra-orais e intra-orais do possível perpetrador deverão ser examinadas, dando-se
especial atenção à saúde dentária geral, à oclusão e à articulação temporo-mandibular, fazendo
referência à existência de mobilidade dentária, de bolsas periodontais, de restaurações dentárias,
diastemas, fracturas, cáries, tratamentos dentários realizados em datas próximas, antes ou depois
da agressão, e função e tonicidade dos músculos da face e da mastigação.
Deverão ser realizadas fotografias de face completa e perfil, bem como fotografias intra-orais das
arcadas superior e inferior, vistas laterais e frontal dos dentes em oclusão. É importante incluir
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uma escala de referência para permitir medições. Poderá ser útil realizar uma fotografia da
abertura inter-incisal máxima, com uma escala graduada.
Culturas microbiológicas e amostras de saliva do possível perpetrador constituem uma importante
etapa da recolha de evidência. Os resultados serão, depois, sujeitos a um exame comparativo,
para que se possa chegar a uma conclusão positiva. Quando o suspeito é identificado devem
obter-se impressões de ambas as arcadas dentárias, para realizar modelos em gesso. Será a
partir destes modelos que efectuam sobreposições fotográficas transparentes, à mesma escala
das fotografias da marca de mordida original. É de notar que é obrigatório obter autorização do
possível perpetrador para efectuar as impressões.
Deverão, ainda, ser realizadas marcas de mordida experimentais, em cera, silicone, plasticina ou
em qualquer outro material que registe os bordos incisais dos dentes. Alguns autores referem a
execução de testes de mordida por intermédio dos modelos de gesso, que serão comprimidos
contra a pele de um voluntário. Os bordos incisais do modelo são, então, pressionados contra a
pele, e o padrão resultante é comparado.
c) Comparação da evidência
A análise da marca de mordida consiste na comparação da evidência da lesão com a evidência
do suspeito para se determinar se a correlação existe. Os métodos mais comuns incluem técnicas
que comparam os padrões dos dentes (forma, tamanho, posição dos dentes, individual e
colectivamente) com traços similares e características apresentadas em fotografias de tamanho
real. São produzidas sobreposições transparentes de várias formas, mais frequentemente por
computador, com o objectivo de assegurar que existe correspondência suficiente entre o tamanho
e posição dos dentes do possível perpetrador e as características identificadas na marca de
mordida. Outros métodos consistem em comparações directas dos modelos do suspeito com
fotografias da marca de mordida, comparação das marcas de mordida experimentais ou a
utilização de imagens radiográficas
Referências bibliográficas
- Calabuig JA. Medicina Legal y Toxicología. 5ª edición. Barcelona: Masson, S.A., 1998: 1131-1166.
- Pereira A: Medicina Dentária Forense, Edição AEFMDUP, Porto, 1994.
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PERÍCIAS EM CASOS DE RESPONSABILIDADE MÉDICA
5
Teresa Magalhães
Em termos de responsabilidade profissional, designadamente médica, evoluiu-se da atitude de
resignação do lesado perante um dano praticado pelos profissionais liberais, no exercício da sua
profissão, para a consciencialização dos direitos e deveres; ou seja, em termos genéricos,
evoluiu-se no sentido de se considerar que o consumidor tem direitos perante aquele que lhe
oferece o produto consumido. Este fenómeno, entre outros, explica o aumento do número de
demandas judiciais tendo por base situações de responsabilidade médica.
Os casos de responsabilidade médica podem ser do foro penal, civil ou administrativo. Estas
formas não se excluem obrigatoriamente, podendo coexistir no mesmo facto.
São condições para haver responsabilidade médica a existência de um facto (acção ou omissão),
de ilicitude (direitos absolutos, interesses legalmente protegidos), de culpa (dolo ou negligência),
de um dano (patrimonal, extra-patrimonial) e de nexo de causalidade entre o facto e o dano. A
culpa no âmbito penal avalia-se in concreto (apreciação em função do agente concreto), como
algo censurável que leva à punição; no âmbito civil avalia-se in abstracto (apreciação em função
da actuação que teria o “bom pai de família”), como um erro que leva à obrigação de ressarcir o
dano provocado.
1. A responsabilidade penal
A responsabilidade penal surge na sequência de um comportamento que provoca um dano de
que o médico é culpado e do que resulta a aplicação de uma sanção. A culpa ou culpabilidade é a
“qualidade ou conjunto de qualidades do acto que permite, a respeito dele, um juízo ético-jurídico
de reprovação ou censura”. Nestes casos, como substracto da culpa exige-se voluntariedade,
sem perder de vista a motivação dessa vontade. A culpa pode revestir a forma de dolo
(“conhecimento e vontade da realização de um ilícito típico”) ou negligência (culpa em sentido
estrito ou mera culpa). A negligência caracteriza-se pela omissão da diligência exigível ao agente
que pode resultar de leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, e que nele geram a convicção
de que o acto por si praticado não conduz a um resultado ilícito não tomando, por isso, as
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medidas necessárias para o evitar. Também pode acontecer que, por imprevidência, descuido,
imperícia ou inaptidão, o agente, apesar de poder prever e evitar o facto, não chega a ter
consciência de que ele se possa vir a verificar.
A responsabilidade penal é pessoal, tem natureza eminente pública sendo a maior parte das
situações susceptíveis de serem cometidos por médicos, de natureza semi-pública, tais como: a
inseminação artificial (art. 168º), as ofensas corporais resultantes de intervenções e tratamentos
médico-cirúrgicos (art. 150º). São de natureza pública as ofensas à integridade física graves (art.
144º e ss.), homicídios (art. 131º e 132º), atestado falso (art. 260º), recusa de tratamento médico
(art. 284º e 285º) e aborto (art.140º e ss).
O art. 150º (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos) retira as intervenções médicas do
quadro das ofensas à integridade física. Este artigo exige que para que a intervenção médica seja
considerada crime contra a integridade física, esta não tenha sido conduzida de acordo com as
“leges artis” (“regras generalizadamente reconhecidas da ciência médica”). Se do “error artis”
resultar um dano corporal, haverá que distinguir se o crime foi cometido com dolo (crimes contra a
integridade física simples, com dolo de perigo, qualificado pelo resultado, priviligiada, ou de
envenenamento) ou com negligência (neste caso o médico poderá ficar livre da pena, se da
ofensa não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 8 dias).
2. A responsabilidade civil
A responsabilidade civil acontece quando um indivíduo (responsável) tem de reparar outro pelo
dano que lhe causou. Esta obrigação de indemnização só existe se requerida tratando-se, aqui,
de um dano privado; o objectivo é a restituição dos interesses do lesado. A obrigação de
indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não
fosse a lesão. O dever de indemnização compreende não só os prejuízos causados, como os
benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. Esta restituição pode ser “in
natura” (situação natural em que o lesado se encontrava antes do evento) ou, no caso desta não
ser possível, pode ser fixada em dinheiro (indemnização pecuniária, que constitui a regra).
A responsabilidade médica pode ser contratual ou extracontratual. A obrigação médica é, regra
geral, uma obrigação de meios e não uma obrigação de resultados (nos casos de exames
laboratoriais ou imagiológicos, ou em certos casos de actividade de estomatologia ou cirurgia
estética, por exemplo, haverá uma obrigação de resultados). Nos casos em que existe obrigação
de resultados o ónus da prova é do médico, nos casos em que existe obrigação de meios é do
doente.
A responsabilidade contratual resulta da violação de um direito em sentido técnico, ou seja, da
falta de cumprimento do contrato de prestação de serviços. O contrato médico é uma convenção
estabelecida entre o médico e o doente, ou um seu representante, pelo qual o médico aceita a
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pedido do doente, ministrar-lhe os seus serviços, para os quais a sua profissão, legalmente, o
habilita. Este contrato tem características próprias: é pessoal (o médico é livremente escolhido em
razão da confiança que inspira ao doente), é bilateral (ambas as partes contraem obrigações: o
médico tem de prestar cuidados e o doente que o remunerar),
é a título oneroso (implica
honorários, não sendo contudo nulo nos casos de cuidados gratuitos), é civil (por a profissão
médica ser liberal), não obriga a um resultado (o dever do médico é cumprido desde que os
cuidados prestados estejam conforme os dados da ciência naquele momento), é contínuo
(prolonga-se por mais ou menos tempo se não houver motivos que o interrompam), é sujeito a
rescisão (pode ser anulado por qualquer uma das partes). Só é válido se o doente tiver
capacidade civil (maior idade, capacidade de se determinar de acordo com a sua vontade) e o
médico também (inscrição na Ordem dos Médicos e especialização). Neste caso, o médico que
falta culposamente ao cumprimento da obrigação, torna-se responsável pelo prejuízo que causa
ao seu doente. Na maior parte dos casos a responsabilidade do médico que exerce de forma
liberal é de natureza contratual e deriva de uma obrigação de meios, cabendo ao credor (doente)
demonstrar em juízo que a conduta do devedor (médico) não foi conforme às regras de actuação
que em abstracto, propiciariam o resultado pretendido.
A responsabilidade extracontratual resulta da violação de um dever ou vínculo jurídico geral de
um daqueles deveres de conduta impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos
absolutos (direito à vida) ou até à prática de certos actos que, embora lícitos, produzem danos a
outrem. Esta responsabilidade pressupõe a culpa (pelo menos, a título de negligência), pois só
existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei e a
nossa lei não prevê casos de responsabilidade pelo risco no que toca à responsabilidade médica.
A natureza extracontratual de certas situações tem lugar quando o contrato fica nulo por ilícito
(ex.: experimentação sem fins curativos ou falta de consentimento do doente) ou quando o dano
surge fora do quadro contratual (casos em que a relação médico/doente é imposta por uma
regulamentação legal ou administrativa, não havendo livre escolha do médico, ou nas situações
em que o doente não está capaz para dar o seu consentimento e fazer a sua escolha). Neste
caso, o médico que lesar, com dolo ou mera culpa, o seu paciente, fica obrigado a indemnizá-lo
pelos danos resultantes.
3. Responsabilidade disciplinar administrativa
A responsabilidade disciplinar administrativa diz respeito à qualidade do médico como funcionário
e a que está sujeito quando trabalha para o Estado, tendo a ver com as regras de funcionamento
dos serviços.
Em princípio, as instituições assumem a responsabilidade pelas faltas cometidas pelo seu pessoal
médico, de enfermagem e administrativo, dentro do serviço, à excepção das faltas que são da
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responsabilidade do próprio pessoal. Esta responsabilidade está condicionada à existência de
uma falta que pode ser de comissão (originada no funcionamento ou organização do serviço) ou
de omissão (originada na ausência de funcionamento do serviço). Podem distinguir-se três faltas
condicionadas a três categorias de actos: os actos médicos, os actos de prestação de cuidados e
os actos de organização e funcionamento de serviços. Apenas os actos médicos exigem a
existência de uma falta pesada (no diagnóstico, no tratamento) para responsabilizar a instituição;
relativamente aos outros basta a existência de uma falta simples (as faltas por actos de prestação
de cuidados podem ser por comissão ou por omissão e as faltas por actos de organização e
funcionamento de serviços podem ser relativas à recepção do doente, a deficiências de vigilância
geral, a deficiência de ordem técnica, à não observação dos regulamentos).
Em casos de responsabilidade civil tem aplicação a lei reguladora da responsabilidade civil
extracontratual do Estado no domínio dos actos de gestão pública. Em responsabilidade
contratual, as instituições de saúde privadas devem responder pelos actos de todo o pessoal que
utilizam no cumprimento das suas obrigações; mas se as instituições de saúde privadas forem
dirigidas por pessoas estranhas à profissão médica, não terá responsabilidade extracontratual,
porque esta responsabilidade pressupõe uma relação de comissão, ou seja, a possibilidade de
dar ordens ou instruções, que não podem existir entre um médico (como comissário) e um não
médico (como comitente). A responsabilidade penal é sempre uma falta do pessoal e nunca da
instituição.
A prova pericial: a expressão “responsabilidade médica” aplica-se, sobretudo, às situações em
que o dano é provocado por uma falta cometida pelo médico por: imperícia, imprudência,
desatenção, negligência ou inobservância dos regulamentos (por vezes podem coexistir).
Dependendo a negligência, enquanto modalidade de culpa, de um juízo de censurabilidade éticojurídico ao comportamento do agente, a determinação dessa censurabilidade é feita tendo como
padrão o “bom médico” ou mais concretamente, um “especialista médio” (a atitude que este teria
adoptado em idêntico contexto, tendo a mesma formação e a mesma experiência); na realidade, o
que se determina é se o facto foi ou não praticado de acordo com as “leges artis”.
O ónus da prova de que o agente lesante procedeu com culpa incumbe ao lesado mas, dadas as
especiais dificuldades da prova, tem sido feito recurso às chamadas presunções de facto,
impondo-se-lhe apenas que prove os factos indiciadores dessa mesma culpa. Há inversão do
ónus da prova quando se considera que está em causa uma actividade perigosa.
As dificuldades técnicas nesta matéria justificam o recurso das autoridades judiciárias e judiciais
ao contributo de peritos; assim, em qualquer situação que implique responsabilidade médica o
médico pode ser solicitado, como perito, para emitir juízos de valor sobre a conduta técnica e
científica do agente e determinar o nexo de causalidade entre o acto praticado e o dano sofrido,
dado que um tal parecer pressupõe conhecimentos especializados. A perícia médica só deve
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constituir complemento da avaliação do magistrado, numa área que este não domina, não
devendo o perito alargar a sua missão a uma apreciação jurídica que não é da sua competência.
Assim, quer a sua apreciação seja científica ou deontológica, esta deve ser limitada à missão que
lhe é conferida pelo magistrado. Dada a complexidade destes casos, poderá não ser suficiente o
parecer de um perito, havendo que associar pareceres de diversas especialidades, incluindo os
de especialistas da área em causa (pois além dos conhecimentos teóricos é necessária a
experiência concreta das situações vividas diariamente) e o do médico legista (para integração
dos diferentes pareceres, de uma forma isenta e imparcial). A Ordem dos Médicos ou o Instituto
Nacional de Medicina Legal (através do Conselho Médico-Legal) são dois órgãos que podem
orientar essas perícias de modo a que estas integrem os pareceres de diferentes especialistas.
Além dos erros técnicos, a falta de consentimento esclarecido e de uma boa relação médicodoente é uma das circunstâncias que preside a muitos dos casos de responsabilidade médica.
É desejável que, nesta matéria, se evolua para uma “socialização dos risco de acidente”, pela
qual se deverá entender que sempre que alguém sofre danos por acto de terceiro deverá ter
direito a uma indemnização, independentemente desse terceiro ter agido com culpa. Tal aspecto
impõe a cobertura desse risco, através da segurança social ou através do seguro pessoal
obrigatório contra danos.
Referências bibliográficas
-
Pina E: A Responsabilidade dos Médicos, Lidel, Lisboa, 1994
-
Calabuig JA. Medicina Legal y Toxicología. 5ª edición. Barcelona: Masson, S.A., 1998: 87-124.