Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro - Entrevista

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Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro - Entrevista
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Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
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CARTA DOS EDITORES
Manutenção da pesquisa com diminuição de investimentos
Neste primeiro semestre de 2015, também o primeiro de um novo mandato de uma
presidente reeleita democraticamente, foram apresentadas para a população brasileira
situações imaginadas e outras não desejadas.
Entre as imaginadas estão o reconhecimento de que o país atravessa uma crise e que o
Estado faria algo para tentar amenizá-la; entre as não desejadas estão os cortes de
investimentos públicos anunciados pelo Governo Federal em várias áreas, especialmente na
de educação.
Ao mesmo tempo, acompanha-se um processo pelo qual as dificuldades para a
progressão na carreira docente de nível superior estão aumentando e as exigências de
pesquisa, produção e publicações se ampliaram. Até a participação dos professores em cargos
administrativos – que existem em número muito inferior à quantidade de docentes – tem peso
maior, em alguns casos, nos processos de evolução na carreira, do que atribuições
eminentemente de ensino.
Essa situação nos leva a uma reflexão.
Como administrar as duas situações? Como continuar com a prática docente e
publicações de qualidade em um cenário de maior cobrança e de declínio de investimentos?
Ainda não é possível vislumbrarmos uma resposta em curtíssimo prazo. No entanto, a
disposição de todos que participam do processo de seleção, edição e publicação da revista
Cambiassu é a de continuidade do trabalho com a melhor qualidade possível, na expectativa
de participarmos do processo de produção e difusão do conhecimento com ampliação do
acesso a produtores e leitores.
Assim foi feito em mais esta edição.
Boa leitura e até a próxima.
Carlos Agostinho A. de M. Couto
Larissa Leda F. Rocha
Editores
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
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SUMÁRIO
Artigos
SOBRE OBJETIVIDADE, POSICIONAMENTO POLÍTICO E FINANCIAMENTO
PÚBLICO NO JORNALISMO LUDOVICENSE
Carlos Agostinho Almeida de Macedo COUTO...................................................................... 06
ENTRE FOTOGRAFIAS E QUADRINHOS: desestabilizações de sentido e tensões nos
contratos de leitura na obra o fotógrafo
Eliza Bachega CASADEI;
Monique NASCIMENTO........................................................................................................ 19
A CRISE DA ÁGUA NA NARRATIVA HIPERMÍDIA DO JORNAL O ESTADO DE
SÃO PAULO
Juliana COLUSSI;
Katarini MIGUEL ................................................................................................................... 33
LIVESTREAMING AS JORNADAS DE JUNHO: sobre o gesto de filmar ou a memória
digital
Juracy OLIVEIRA;
Sergiano SILVA ....................................................................................................................... 46
TELEVISÃO DIGITAL E WEB:uma proposta multiplataforma e transmídia para
conteúdos de mídia-educação
Mariana Pícaro CERIGATTO ................................................................................................. 58
AS RÁDIOS FM DE SÃO LUÍS NO CENÁRIO DA DESMATERIALIZAÇÃO DA
MÚSICA
Paulo PELLEGRINI ............................................................................................................... 77
RUPAUL’S DRAG RACE E SEU FANDOM: um nicho em expansão
Rafael Ribeiro de Castro MORAES ....................................................................................... 94
Ensaio
REPRESENTAÇÃO DA MEMÓRIA E COLABORAÇÃO: a plataforma digital como
suporte de preservação da memória cultural
Juliana CAMPOS LOBO ...................................................................................................... 105
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Relatos de Pesquisa
CORPO NU: uma análise do ensaio fotográfico de nudez masculina como arte
Aline Cristina Azoubel OLIVEIRA;
Thaís Fernanda dos Santos TORRES;
Tâmara dos Santos CANTANHÊDE;
Mary Aurea de Almeida Costa EVERTON............................................................................ 115
A EROTIZAÇÃO DOS CORPOS NO FORRÓ ELETRÔNICO:um estudo da recepção
juvenil em Caxias-MA
Fábio Soares da COSTA;
Janete de Páscoa RODRIGUES ........................................................................................... 126
Resenhas
UMA CULTURA POLÍTICA DE PROTESTO RESSURGIDA
Felipe Canova GONÇALVES..................................................................................................142
SOBRE O FIM DA TELEVISÃO?
Patrícia AZAMBUJA ............................................................................................................ 146
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ARTIGO
Sobre objetividade, posicionamento político e financiamento
público no jornalismo ludovicense
Carlos Agostinho Almeida de Macedo COUTO1
RESUMO
Apresentam-se as categorias objetividade, posicionamento político e financiamento público
no jornalismo para fundamentar a análise de dois periódicos editados em São Luís/MA de
diferentes perfis políticos e editoriais e em diferentes momentos da vida
política/governamental do estado do Maranhão, tendo como base a abordagem da violência.
PALAVRAS-CHAVE: Objetividade, política, financiamento, jornalismo
ABSTRACT: The objectivity, political positioning and public funding in journalism are
presented categories to support the analysis of two journals edited in São Luis/MA of different
political profiles and editorials and at different times of political/government of the state of
Maranhão, based the approach to violence.
KEY WORDS: Objectivity, politics, finance, journalism
1. Introdução
As formas e usos do processo de transmissão jornalística de informações variam desde
o seu surgimento, evidenciado na experiência romântica, propagandista e pouco rentável dos
veículos de antes do século XIX, passando pelo seu desenvolvimento como “indústria” da
informação arquitetada pelo investimento privado em grandes conglomerados, na notícia
como produto, nos veículos de baixo custo (para o consumidor), na prática narrativa curta e
pretensamente objetiva baseada no lead e na pirâmide invertida, e no apoio da publicidade, a
partir daquele século.
1 Jornalista e professor, tem mestrado e doutorado em Políticas Públicas e é vinculado ao Departamento de Comunicação
Social da Universidade Federal do Maranhão. E-mail: [email protected]
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Permitem-se também interpretações de variações a partir da disseminação em larga
escala das tecnologias de informação digitalizada e da estruturação do pensamento virtual em
redes com, por exemplo, a possibilidade de existirem mais veiculadores potencializados pela
quase inexistente regulação estatal e do mercado nos ambientes de rede no sentido da
possibilidade de expressão de opiniões. Surgem o jornalismo em base de dados, as estruturas
ditas democráticas de produção, onde cada pessoa pode ser consumidor, produtor e veiculador
de informações, superficialmente chamadas de notícias.
Como demonstra a história, nenhuma das variações no processo determinou a imediata
substituição da forma antecedente, mas adequações técnicas, de forma, de conteúdo e de
expectativa de cobertura moldaram o jornalismo contemporâneo, influenciado por várias
experiências e épocas.
Abordaremos aqui uma exposição conceitual sobre o jornalismo, também sobre a
compreensão gramsciana2, – com privilégio neste momento para o uso dos meios de
comunicação – e uma análise, comparativa, desses conceitos com as práticas consideradas
jornalísticas de periódicos editados em São Luís, capital do Maranhão, em período de recentes
mudanças no cenário político e, por conseguinte, no financiamento estatal dos veículos locais.
A pretensão é, a partir de comparações conceituais e práticas das formas e usos do
jornalismo local a partir da nova experiência política que determinou a mudança de mando no
governo estadual depois de muitos anos de controle por um mesmo grupo político. O tema
especifico para a análise das posturas informativas será a violência, algo recorrente na
sociedade brasileira e muito disseminado pelos meios de comunicação. Serão avaliados dois
periódicos de perfis diferentes. Um ligado ao grupo político anteriormente hegemônico (o
jornal O Estado do Maranhão) e outro mais ligado às oposições e que atuou em defesa do
novo grupo galgado ao poder (o Jornal Pequeno). As avaliações não obedecerão, entretanto, a
critérios quantitativos, mas serão feitas comparações a partir do conteúdo veiculado.
2. Objetividade, postura política e financiamento publicitário
Os três conceitos, aqui tomados como categorias de análise e reflexão – objetividade,
postura política e financiamento publicitário – acompanham o jornalismo desde o final do
século XIX, quando da transição da fase romântica e propagandística para a empresarial e
2 Baseada no pensamento do autor italiano Antonio Gramsci
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publicitária. A questão do posicionamento político é anterior, pois o jornalismo original era
eminentemente político, exemplificado, em poucas palavras, pelos jornais republicanos,
abolicionistas, monarquistas, partidários de causas, enfim, que fundaram o periodismo. Mas
aqui será indicada a ideia de posicionamento político de veículos ditos objetivos e pós-século
XIX.
Tratada como objetivo por muitos e com reservas por outros muitos também, a
objetividade jornalística é vista, na média acadêmica, como utopia ou mito.
Numa obra clássica sobre o jornalismo para estudantes e novos interessados, Clóvis
Rossi afirma que:
...a imprensa, de acordo com o mito da objetividade, deveria se colocar numa
posição neutra e publicar tudo o que ocorresse, deixando ao leitor a tarefa de tirar
suas próprias conclusões.
Se fosse possível praticar a objetividade e a neutralidade, a batalha pelas mentes
e corações dos leitores ficaria circunscrita à página de editoriais, ou seja, à
página que veicula a opinião dos proprietários de uma determinada publicação.
(ROSSI, 1994, p.8)
Ele afirma que não é viável exigir que os jornalistas deixem de lado, como
“profissionais assépticos” (ROSSI, 194, p. 10), condicionantes sociais, formação cultural e,
mesmo, suas opiniões e convicções quando exercem seu trabalho. Apesar disso, o experiente
jornalista afirma que:
De qualquer forma, a objetividade continua sendo um dos principais parâmetros
na linha editorial dos principais veículos de comunicação do Brasil. E, nessa
busca do impossível, introduziu-se a lei de ouvir os dois lados, partindo-se do
pressuposto de que, frequentemente há dois lados opostos em uma mesma
história(ROSSI, 194, p. 10).
Percebamos que o posicionamento do autor refere-se às influências – pessoais,
ambientais, profissionais... – que cercam o jornalismo e os jornalistas. Ele não se refere à
postura política do veículo.
Como dito acima, o posicionamento político evidente foi, pelo menos no discurso,
desprivilegiado no chamado jornalismo industrial, de larga escala, com muitas informações
sobre vários assuntos, com textos editoriais e analíticos menores e com apoio no lead e na
ideia de pirâmide invertida. Seria temerário, e até ingênuo, afirmar-se que não havia
envolvimento político (e de políticos) dos e com os veículos. Mas a tônica era a do reforço da
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concepção de notícia como produto e do jornalismo como negócio, que pretendia dar lucro
aos proprietários mais do que influenciar eleitores e consumidores em relação a bandeiras ou
causas.
Com o passar do tempo, os próprios veículos ditos liberais passam a reivindicar a
defesa editorial de posturas e legendas políticas, o que se pode ver claramente nos editoriais
de jornais norte-americanos em períodos eleitorais. Como veículos impressos, que não
dependem da autorização do Estado de uma concessão (como no caso do rádio e da TV),
esses jornais reivindicam o direito de terem seu posicionamento e até de apoiar candidatos,
embora, no mais das vezes, mantenham o discurso de objetividade, pelo menos a possível, na
hora da produção de notícias.
A forma de financiamento dos veículos também deriva da transição do jornalismo
original para o de alto investimento privado. Enquanto aquele era romântico, praticamente
sem resultados financeiros relevantes, por ser motivado (e, por que não, financiado) por
ideias, temas e ideologias, este galgou receitas com a ampliação da circulação e das vendas e
com a adoção da publicidade como uma das principais fontes de receita, junto a outras
estratégias, como promoções, assinaturas, entre outras.
Não menos importante são hoje – para todos os veículos comerciais, mas sobretudo
para aqueles situados em regiões menos desenvolvidas economicamente – as verbas ditas
publicitárias oficiais, administradas pelo Estado (em qualquer das suas esferas ou poderes)
para a divulgação de feitos, programas e projetos, resultados, convocações etc. Classificamos
de ditas publicitárias porque o conceito original de publicidade, como a intenção de tornar
algo público, é pouco aplicável aos interesses estatais ou governamentais no uso de verbas
para financiamento de órgãos de comunicação. Lugar próprio para a disseminação ideológica,
as ações dos governos definem-se, quase na totalidade das vezes, como propagandísticas
(disseminação visando ao convencimento) e não simplesmente publicitárias.
Resume essas explanações o conceito apresentado por José Marques de Melo, a partir
do pensamento de Otto Groth, de jornalismo como
um processo social que se articula a partir da relação (periódica/oportuna) entre
organizações formais (editoras/emissoras) e coletividades (públicos receptores),
através de canais de difusão (jornal/revista/rádio/televisão/cinema) que
asseguram a transmissão de informações (atuais) em função de interesse e
expectativas (universos culturais ou ideológicos). (MELO, 1994, P. 14)
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Como contraponto, necessário se faz expormos a concepção gramsciana, mais
acadêmica e analítica, pois aprofunda os conceitos sob a ótica da análise político-social, com
suas influências basilares (econômicas) e superestruturais (ideológicas).
Como já citado em escritos anteriores, convém esclarecer que esta análise se refere
àquilo que Gramsci conceituou como pequena política, em contraposição à grande política,
pelo fato de ater-se a questões localizadas regionalmente e não às relações entre Estados
(criação, destruição, defesa...). “A pequena política compreende as questões parciais e
cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de
lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política”
(GRAMSCI, 2000, p. 21), embora o sentido não seja pejorativo e não diminua os esforços
pela compreensão da contemporaneidade regional.
Antonio Gramsci explica a necessidade de se particularizar (delimitar) a área de estudo
(no caso a da comunicação social) porque “seria mastodôntico um tal estudo, se feito em
escala nacional: por isto, poderia ser feita para uma cidade ou série de cidades, uma série de
estudos” (2004, p. 78), afirmando ainda que, mesmo particularizados, esses estudos poderiam
render trabalhos importantes. Dessa forma, compreende-se que a análise do local, se
consideradas as extremas proximidades no âmbito comunicacional (controle, práticas,
financiamento...) entre as regiões brasileiras tende a aproximar-se de realidade, mesmo que
não possa ser generalizada.
Também cara a este trabalho é a concepção gramsciana de imprensa, que é vista como
a mais dinâmica parte da estrutura ideológica na qual se incluem as bibliotecas, as escolas, os
clubes, a arquitetura etc.
Há uma clara referência na sua obra que identifica a relação jornalistas/meios
de comunicação, no sentido de que a ação daqueles (jornalistas) deve ser compreendida como
a desses (os meios) na atualidade, ou seja, os termos jornal e jornalista aparecem como a
expressão do que consideramos mídia ou meios de comunicação de massa, no tocante à ação.
Gramsci chama isso de jornalismo integral: “que não somente pretende satisfazer todas as
necessidades (de uma certa categoria) de seu público, mas pretende também criar e
desenvolver estas necessidades e, consequentemente, em certo sentido, gerar seu público e
ampliar progressivamente sua área” (2004, p. 197).
Também parte de Gramsci a distinção entre jornal de informação ou “sem partido”
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explícito e jornal de opinião, que representa oficialmente um partido político ou ideia. O
primeiro destinado às massas populares e o segundo dedicado necessariamente a um público
restrito (GRAMSCI, 2004, p. 199). Nessa análise, Gramsci esclarece que os jornais vistos
como sem partido explicitamente, ao mesmo tempo em que não são os órgãos oficiais de
determinado posicionamento político, podem atuar em favor desse posicionamento, quando
não apresentam dados contra a sua doutrina e moral e defendem as suas ideias.
As concepções acima já nortearam, inclusive, outras produções nossas.
3. Veículos maranhenses e os conceitos elencados tendo como base a divulgação da
violência
Temos assistido nos últimos anos ao crescimento da violência, principalmente nos
maiores centros urbanos. Isso é de reconhecimento amplo e o Brasil é um dos países que
lideram os índices de violência. Isso tem determinado um sem número de avaliações e
sugestões para a resolução do problema. Uma delas é a impressão de que a penalização, como
se adultos fossem, de adolescentes a partir dos 16 anos resolveria a questão.
Há também a exploração midiática sobre o tema. E há a exploração midiática regional
sobre o tema. Assiste-se à exposição dos números e casos de violência a toda hora e em todo
lugar. Existem jornais especializados e vários programas de TV nos quais a violência – de
qualquer sorte – é a estrela.
Conceitualmente, e de forma elementar, o jornalismo é uma forma de disseminação de
informações para a comunidade a partir de pessoas e veículos que recebem uma procuração
tácita dos consumidores para que sejam seus olhos e ouvidos a distância, já que não podem
estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Os leitores acreditam que o que é publicado seja
verdade, pois delegam aos jornalistas (e aos veículos) o papel de seus representantes.
Ocorre que os veículos de comunicação, adotando-se ainda a concepção de Antonio
Gramsci, são utilizados como aparelhos privados de hegemonia para a obtenção (ou tentativa
de obtenção) da própria hegemonia por meio do consenso e não da coerção. Nesse aspecto, a
utilização de veículos maranhenses com essa intenção se torna evidente na análise de
periódicos locais.
Os veículos elencados - jornal O Estado do Maranhão e Jornal Pequeno – são de
reconhecida importância no cenário social, comunicacional e político do Maranhão, com
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maior expressão na capital, São Luís, onde são editados.
O Estado do Maranhão, pertencente à família do ex-presidente José Sarney, foi
fundado em 1973, após a aquisição do Jornal do Dia. O antigo jornal que apresentava posturas
contrárias ao governo, inclusive com criticas à ditadura militar, muda então de proprietários,
de nome e de orientação editorial, passando a ser um defensor da orientação política vigente e
preponderante até a eleição para governador de 2014, quando a oposição chega ao poder.
O Jornal Pequeno surgiu em 1951, pelas mãos do jornalista José de Ribamar Bogéa, e
pretendia ser um jornal apartidário, diferente dos demais que circulavam na época. Destacouse posteriormente pelo combate político à família Sarney e, ordinariamente, aproximava-se do
pensamento de oposição também até a eleição para governador de 2014, quando a oposição
chega ao poder.
Entre eles há diferenças facilmente perceptíveis (o tamanho do corpo funcional, os
recursos técnicos/gráficos, o número de páginas, a qualidade da impressão, a tiragem e a
circulação de o Estado do Maranhão são bem maiores/melhores do que os do concorrente),
mas proximidades também observáveis (ambos atuam na área do jornalismo sobre clara
influência de posições que aqui podemos considerar partidárias ou de grupos de partidos,
embora não necessariamente sejam posições contrárias ideologicamente).
Vale salientar que, além da proximidade política, a relação de O Estado do Maranhão
com o grupo político dominante até 2014 era também muito forte na área comercial, ao
contrário do Jornal Pequeno.
Segundo a coluna de Lauro Jardim, de Veja, dos R$ 15 milhões investidos com
publicidade institucional em jornais nos quatro anos de mandato de Roseana, R$
10 milhões, o equivalente a dois terços do total, teriam sido destinados ao O
Estado do Maranhão. O Jornal Pequeno, de oposição aos governos Sarney,
recebeu no total R$ 610 mil, enquanto O Imparcial ficou com pouco mais de R$
1
milhão.
(Em
<http://www.portalimprensa.com.br/noticias/brasil/71993/roseana+sarney+repas
sou+quase+r+34+milhoes+de+publicidade+oficial+para+veiculos+da+familia>
acessado em maio de 2015)
Ressalte-se também que o atual governo já criticou a forma como eram tratadas
as relações do Estado com os veículos de comunicação até 2014, como expõe o secretário de
Comunicação do Estado, Robson Paz, em entrevista ao jornal O Imparcial.
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Robson o que será de fato essa "comunicação democrática" que o governo
Flávio Dino planeja implantar? Antes de tudo, trata-se de uma comunicação
cidadã em que a população tenha, de fato, pluralidade de veículos, de vozes e,
consequentemente, garantido o direito de acesso irrestrito às informações. É
necessário superar o modelo atual de comunicação monopolista em que poucas
famílias com forte atuação política são proprietárias da absoluta maioria das
emissoras de TV, rádio, jornais e portais de internet no Estado. Há, portanto, um
cenário de latifúndio midiático que priva a população de informações essenciais
na medida em que cabe a este pequeno grupo de privilegiados decidir o que deve
ou não ser de conhecimento da população.
O secretário disse ainda que:
/Flávio Dino ainda diz em fornecer apoio a rádios comunitárias, jornais
regionais e blogs noticiosos. Qual é a estratégia aqui discutida na
Comunicação?
É preciso pensar a comunicação pública fora da lógica meramente publicitária.
Esse é um modelo esgotado e que a própria população reprovou ao eleger Flávio
Dino governador do Estado. Veja bem, por décadas a população foi
bombardeada com publicidade e propaganda à exaustão. Na maioria das vezes, a
propaganda confrontou a realidade. Precisamos associar à publicidade,
informação e ações de comunicação cidadã. Buscar novas formas de
comunicação
direta
com
efetiva
participação
popular.
(Em
<http://www.oimparcial.com.br/app/noticia/politica/2014/12/28/interna_politica,
164553/comunicacao-democratica-robson-paz-fala-sobre-os-planos-dogovernador-eleito-flavio-dino-para-o-setor.shtml> acessado em maio de 2015)
O próprio governador Flávio Dino manifestou-se sobre as relações comunicacionais
do seu governo em entrevista à TV Brasil:
O governador do Maranhão, Flávio Dino, disse que pretende, durante os
próximos quatro anos, implantar políticas de inclusão digital com o aumento do
acesso à banda larga e o fortalecimento de pequenos veículos de comunicação,
por meio de verbas de publicidade.
Nós vamos prestigiar todos os veículos. Aqueles, naturalmente, que tem uma
dimensão mais empresarial e comercial, mas também garantir uma política
pública inclusiva, por exemplo, no que se refere aos jornais regionais e rádios
comunitárias, para que eles possam cumprir ainda mais seu papel de disseminar a
informação e garantir a liberdade de expressão, destacou Dino que tomou posse
no dia 1º de janeiro depois de vencer as eleições do ano passado em primeiro
turno
com
64%
dos
votos
válidos.
(Em
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2015-01/maranhao-querampliar-acesso-banda-larga-e-fortalecer-pequenos> acessado em maio de 2015)
No sentido de relacionar as informações acima expostas, foram feitas comparações
entre as capas de algumas edições dos jornais O Estado do Maranhão e Jornal Pequeno para
apontarem-se as possíveis, quase prováveis, relações entre as aproximações políticas dos
veículos e o seu conteúdo quando ao lado da oposição e quando ao lado do governo. Não
cabe aqui, nem é interesse do trabalho, uma análise sobre o conteúdo político do ponto de
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vista ideológico de cada um dos grupos, muito menos a exposição de juízos de valor sobre
cada um deles.
As edições de O Estado do Maranhão dos dias 4, 5, 6 e 7 de janeiro de 2014, período
que foi marcado por atentados contra ônibus coletivos na cidade de São Luís, posteriormente
comprovado que a mando de criminosos, apresentam ênfase na violência e na exposição da
posição do Estado: “Bandidos incendeiam ônibus e atacam delegacia na capital”; “Polícia
intensificará ações até prender autores de ataques”; “Polícia prende 11 suspeitos de ataques a
ônibus em São Luís”; e “Morte de menina causa dor e revolta, bandidos são presos” são as
manchetes.
Nessa época os Sarney estavam no poder.
As edições do Jornal Pequeno nos mesmos dias destacam a violência e seus efeitos e
dão pouca ênfase sobre ações da polícia. “Noite de terror com ataque a delegacia, ônibus
incendiados e PM assassinado a tiros”; “Sobe para 5 número de feridos em ataques a ônibus
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em São Luís”; “Bandidos atacam a delegacia do 8º DP; suspeitos são presos”; e “Morre
menina incendiada, avó sofre infarte e mãe está hospitalizada” são as manchetes.
Nos dias 25 e 26 de maio de 2015, período pós-eleitoral e no qual o governo já não era
dirigido pelos Sarney, mas pela oposição, repercutiu na cidade uma ação violenta na praia de
Panaquatira (região metropolitana), com várias mortes, incluindo a de um policial. O estado
do Maranhão publicou como manchetes principais: “Barbárie em Panaquatira” e “População
com medo”.
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O Jornal Pequeno deu como manchetes principais no mesmo período: “Quatro pessoas
são mortas durante ataque a um sítio em Panaquatira” e “Advogados de Lobão querem
processar sócio da Diamond”. Destaque-se que o jornal trata do enterro das vítimas do caso
ocorrido em Panaquatira, mas em manchete secundária.
Nos dias 30 e 31 de maio deste ano, O Estado do Maranhão repercutiu a morte de um
mecânico por um vigia (que não era policial), que participava de uma operação a bordo do
carro da polícia na cidade de Vitória do Mearim e continua a tratar do problema em
Panaquatira, com ênfase na insegurança: “A sangue-frio” e “Praia do Medo” são as
manchetes.
O Jornal Pequeno não relata o assassinato ocorrido em Vitória do Mearim e apresenta
uma explicação para a violência na praia: “STF concede liminar contra sequestro de recursos
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para pagamento de precatórios” e “Rede de parentes e amigos dá apoio a ´piratas de
Panaquatira'” são as manchetes.
4. Considerações à guisa de conclusão
Evidenciam-se precoces conclusões definitivas sobre as categorias objetividade,
posicionamento político e financiamento público ao jornalismo por conta da novidade do
processo político recém-instaurado e porque os dados de financiamento do novo governo
ainda não estão bem esclarecidos, até por conta de ainda não ter vencido o primeiro ano
(calendário/fiscal/expositivo), que possibilitará a obtenção de dados concretos.
Impressões sobre o posicionamento dos veículos avaliados, entretanto, são evidentes e
podem ser destacadas.
A objetividade parece acompanhar a relação política de cada veículo em momentos de
graves fatos na área de segurança e em que a população procurava por informações, pois a
ênfase na relação ataque/defesa ao grupo ao qual se está vinculado parece ser privilegiada em
detrimento da informação objetiva; no período em que O Estado do Maranhão teve no poder o
grupo político ao qual é relacionado, e no qual recebeu a maior parte da publicidade
governamental, privilegiou a defesa das ações governamentais; e o Jornal Pequeno – do qual
não se pode afirmar ainda que obteve vantagens financeiras depois que o grupo político que
apoia chegou ao poder – demonstrou clara posição crítica no período em que defendia a
oposição, amenizada sobremaneira após a mudança no mando político.
Demandam-se, portanto, novos acompanhamentos, análises e exposições sobre os
veículos estudados e sobre as categorias elencadas a partir do tema escolhido.
REFERÊNCIAS
Agência Brasil, Maranhão quer ampliar acesso a banda larga e fortalecer pequenos.
Disponível em:
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2015-01/maranhao-quer-ampliar-acessobanda-larga-e-fortalecer-pequenos> acessado em maio de 2015.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
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GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, edição de C. N. Coutinho, com a colaboração de
L. S. Henriques e M. A. Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 6 vols, 1999-2002.
________________. Cadernos do cárcere. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
1999. 6V
________________. Cadernos do cárcere. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
2004. 6V
________________. Cadernos do cárcere. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
2000. 6v.
Jornal O Imparcial, Comunicacao Democratica: Robson Paz fala sobre os planos do
governador eleito Flavio Dino para o setor. Disponível em:
<http://www.oimparcial.com.br/app/noticia/politica/2014/12/28/interna_politica,164553/com
unicacao-democratica-robson-paz-fala-sobre-os-planos-do-governador-eleito-flavio-dinopara-o-setor.shtml> acessado em maio de 2015.
MARQUES DE MELO, José. A opinião no jornalsmo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1994.
Portal Imprensa, Roseana Sarney repassou quase 34 milhões de publicidade oficial para
veículos da família. Disponível em:
<http://www.portalimprensa.com.br/noticias/brasil/71993/roseana+sarney+repassou+quase+r
+34+milhoes+de+publicidade+oficial+para+veiculos+da+familia> acessado em maio de
2015)
ROSSI, Clóvis. O que é jornalismo. São Paulo: Brasiliense, 1994.
KUNCZIK, Michael. Conceitos de Jornalismo. Sã Paulo: Edusp, 1997.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
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ARTIGO
ENTRE FOTOGRAFIAS E QUADRINHOS:
desestabilizações de sentido e tensões nos contratos de leitura
na obra o fotógrafo
Eliza Bachega CASADEI3
Monique NASCIMENTO4
RESUMO: Na obra O Fotógrafo é possível observar como as histórias em quadrinhos podem
servir de ferramenta para uma narrativa jornalística renovada. Neste artigo, nós iremos
analisar as intersecções entre o quadrinho e a fotografia em O Fotógrafo, a partir da ótica do
reengendramento do contrato de leitura estabelecido. A mistura entre as imagens fotográficas
e os desenhos dos quadrinhos na obra desestabiliza os contratos de leitura das duas práticas,
abrindo um campo de novas associações significativas e efeitos de referencialidade. O
universo onírico é misturado ao universo referencial, o que reforça a sensação de irrealidade
da guerra e dos grandes crimes humanitários.
PALAVRAS-CHAVE: Fotojornalismo. Quadrinhos. Trauma. Contratos de Leitura.
ABSTRACT: In the book "The Photographer" it is possible to observe how Comics may
serve as a tool for the conception of a renewed journalistic narrative. In this article, we will
analyze the intersections between the comics and the imagetic assets in "The Photographer",
from the perspective of regendering the established reading contract. The mixture between
the images and drawings in the book destabilizes reading contracts concerning the two
practices, opening a new field of significant associations and referentiality effects. The
oneiric universe is then mixed with the reference universe, which reinforces the feeling of
unreality emerging from war and from those major humanitarian crimes.
KEYWORDS: Photojournalism. Comics. Psychological Trauma. Reading contracts
1. Introdução
Didi-Huberman nos lembra que algumas obras são capazes de “fazer empalidecer de
angústia todo pesquisador positivista que se preze”. São obras que apelam a uma “espécie de
coerção à desrazão, em que os fatos não podem mais se distinguir das ficções, em que os fatos
são fictícios por essência, e as ficções, eficazes” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 209). Em
3 Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e
professora de fotojornalismo da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (FAAC-UNESP). Mestre em Ciências da Comunicação e bacharel em jornalismo pela ECA-USP.
4 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da FAAC-UNESP, email:
[email protected].
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termos mais precisos, trata-se de obras que desestabilizam os contratos tradicionais de leitura
com o seu público e, assim, desequilibram sentidos consolidados ao apelarem para novas
possibilidades de associações de significados e engendramentos narrativos. A obra O
Fotógrafo, de Didier Lefèvre, Emmanuel Guibert e Frédéric Lemercier é uma das publicações
ligadas a essa ordem de questões.
Com a missão de acompanhar uma equipe humanitária da ONG Médicos Sem
Fronteiras no Afeganistão, o fotojornalista Didier Lefèvre viajou ao lado de médicos e
enfermeiras, sendo guiado por uma caravana de mujahidin, os combatentes afegãos. No
caminho, a equipe passou por caminhos como trilhas nas montanhas da região, onde o ar é
rarefeito, e por planaltos onde as caravanas eram metralhadas pelas forças soviéticas, fazendo
o trajeto quase todo a pé e carregando os medicamentos e equipamentos no lombo de burros
de cavalos. Por três meses, Didier documentou suas atividades, as da equipe de médicos e
fotografou o cotidiano do povo afegão durante o conflito. Na época, seis fotos, de quatro mil,
foram publicadas.
Treze anos depois, o fotojornalista contou a história a seu amigo e quadrinista
Emmanuel Guibert, que decidiu produzir a graphic novel sobre a jornada, utilizando as
antigas fotografias de Lefèvre. Assim nasceu O Fotógrafo, uma obra em quadrinhos, mas que
incorpora as fotografias de Lefèvre e seu relato jornalístico.
Esta utilização da linguagem dos quadrinhos na produção de material jornalístico já
acontece, mas de forma pontual e muito ligada ao trabalho autoral. Nomes como Joe Sacco e
Guy Delisle se tornaram referência nesse tipo de produção, por exemplo, mas O Fotógrafo vai
além e incorpora a fotografia à sua linguagem, mostrando as possibilidades das histórias em
quadrinhos.
O livro foi dividido em três volumes, sendo o primeiro publicado na França em 2003.
Logo após foi lançado o segundo volume, em 2004 e o terceiro, em 2006. Este último foi
premiado no tradicional Festival d’Angoulême, na França, um dos maiores e mais
prestigiados festivais de quadrinhos do mundo. Além disso, foi traduzido para 10 línguas:
alemão, inglês, italiano, holandês, norueguês, dinamarquês, espanhol, coreano, croata e
português. O primeiro volume foi lançado no Brasil em 2006.
No presente artigo, nós iremos analisar as intersecções entre o quadrinho e a fotografia
em O Fotógrafo, a partir da ótica do reengendramento do contrato de leitura que ele
estabelece. A mistura entre as imagens fotográficas e os desenhos dos quadrinhos na obra
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desestabiliza os contratos de leitura das duas práticas, abrindo um campo de novas
associações significativas e efeitos de referencialidade. Isso diferencia a obra O Fotógrafo das
demais que pertencem ao gênero do jornalismo em quadrinhos.
2. O Jornalismo e os Quadrinhos
Para iniciarmos as nossas reflexões, é necessário discutir, primeiramente, o gênero do
jornalismo em quadrinhos, a qual O Fotógrafo pertence.
A relação entre as histórias em quadrinhos e jornalismo sempre foi muito próxima. Os
quadrinhos nasceram nas páginas dos jornais, mas além do gênero que Ramos (2007, p. 23)
aponta como charge (definida como “um texto de humor que aborda algum fato ou tema
ligado ao noticiário”), os quadrinhos habitualmente publicados nos jornais não possuem
vínculo com a linguagem jornalística. Essa relação se modificou com o aparecimento do que
chamamos de “jornalismo em quadrinhos”.
De acordo com Souza Júnior (2009) o jornalismo em quadrinhos surge principalmente
por causa da obra do, já citado, quadrinista e repórter Joe Sacco, Palestina. Sacco viajou à
Jerusalém, Cisjordânia e à Faixa de Gaza para contar a situação dos palestinos após a
ocupação israelense. Souza Júnior analisa que a obra, conceitualmente, pode ser considerada
uma reportagem convencional, por seu potencial informativo. Entretanto, o que transforma
Palestina em algo incomum é justamente o meio escolhido.
O desconhecimento teórico sobre a linguagem dos quadrinhos permite que, em
análises descontextualizadas, o tipo de reportagem realizada por Sacco seja caracterizada
como um novo gênero jornalístico. Há de fato uma reconfiguração de uma das muitas práticas
jornalísticas em função de uma nova mídia. Entretanto, os quadrinhos são uma plataforma que
permitem abarcar manifestações de qualquer natureza, inclusive gêneros do jornalismo, como
a reportagem, adaptando-os à linguagem das HQ’s e utilizando sua linguagem e
potencialidades.
Para compreender o processo que permitiu essa aproximação dos quadrinhos com
histórias de não-ficção e todo o cenário que antecedeu Joe Sacco, é preciso compreender o
movimento do quadrinho underground norte-americano. Durante a década de 1950, foi
implantado o Comic Code (Código de Ética dos Quadrinhos), que criava restrições ao
conteúdo publicado nas revistas de quadrinhos. Essa medida foi fruto das teorias do psiquiatra
Frederic Werthan em seu livro A Sedução do Inocente (Seduction of the Innocent, de 1953),
que tentavam associar as HQ’s à violência e ao crime. O conteúdo das revistas tinha que ser
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aprovado de acordo com o Código para ganhar o selo de aprovação. Diante disso, muitas
editoras autocensuravam para passar pela avaliação, junto a isso a oposição de pais e
professores aos quadrinhos fizeram com as vendas caíssem vertiginosamente e a produção das
HQ’s fosse seriamente prejudicada e o mercado ficasse estagnado. O ponto de virada veio
cerca de uma década depois, em 1968, com a publicação da revista Zap Comix, do quadrinista
Robert Crumb.
Em um contexto de contracultura, Crumb trouxe o que os jovens buscavam e que
contrariava todos os princípios do Código de ética dos Quadrinhos: sexo, consumo de drogas,
violência, desobediência à lei e à ordem, o que motivou outros quadrinistas a seguir seus
passos. Mas não apenas as temáticas representaram uma ruptura com o que havia sido feito
até aquele momento, a forma e a narrativa também tiveram mudanças significativas. Na
forma, o preto e branco toma espaço, possibilitando um aspecto de estilos mais amplo do que
se via nos quadrinhos tradicionais, fazendo do estilo um fator essencial para a identidade das
histórias. Na narrativa, iniciam-se abordagens mais realistas e experimentais, muito
vinculadas à sátira, ao humor e à crítica social. Além disso, há o surgimento, com Crumb, da
vertente autobiográfica, onde o autor é protagonista (SOUZA JÚNIOR, 2009).
Depois do movimento underground, o que já era malvisto antes por educadores, pais,
líderes religiosos, só agravou a visão negativa sobre os quadrinhos. O responsável por trazer
mais credibilidade às HQ’s foi Will Eisner, em 1978, com a publicação de Um Contrato com
Deus, a primeira graphic novel. “A questão principal é que o autor introduziu nos quadrinhos
a possibilidade de tratar assuntos ‘sérios’, conseguindo respeitabilidade por tratar temas de
cunho social e construir narrativas edificantes” (SOUZA JÚNIOR, 2009, p. 11).
Mas de acordo com García (2012), a verdadeira explosão das graphic novels veio na
década de 1980, com obras como Maus, de Art Spiegelman, Watchmen, de Alan Moore e
Dave Gibbons, e O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller e Klaus Janson. Entre essas três,
Maus é a única que conta uma história real, seguindo os caminhos abertos pelo movimento
underground. Apesar de ter sido publicada em capítulos inseridos na revista Raw, Maus foi
concebido como uma obra fechada, característica básica de uma graphic novel, e é a única
obra em quadrinhos a receber um Prêmio Pulitzer, em 1992. Uma característica de Maus que
podemos encontrar na obra de Sacco e no jornalismo em quadrinhos de modo geral é a
introdução do autor na reportagem. Art Spiegelman se retrata indo até a casa do pai,
conduzindo a entrevista que viraria a história em si. Sacco seguiu esses passos, assim como
Guibert faz com Lefèvre em O Fotógrafo.
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Esse novo status atingido pelas histórias em quadrinhos, possibilitado por Crumb,
Eisner e Spiegelman, entre diversos outros quadrinistas, formou um cenário favorável para o
surgimento do jornalismo em quadrinhos e sua aceitação como um produto de qualidade.
Segundo García (2012), Rocco Versaci observou que o jornalismo em quadrinhos
possui “uma sinceridade superior à dos meios convencionais, já que a marginalidade do meio
lhe permite transmitir verdades silenciadas ou manipuladas por interesses econômicos na
imprensa geral” (GARCÍA, 2012, p. 275). García ainda aponta que é como se as grandes
reportagens fossem feitas para si mesmo, não para instituições ou veículos jornalísticos, tendo
liberdade para aplicar os princípios subjetivistas do new journalism a suas páginas, “em
especial a colocação em primeiro plano da perspectiva individual como consciência
organizadora” (MERINO, 2003 apud García, 2012, p. 275).
Assim como as obras citadas acima, O Fotógrafo também está imerso nesse contexto
em que as narrativas jornalísticas e os quadrinhos se misturam para a formação de um novo
gênero. Além das particularidades inerentes do jornalismo em quadrinhos, contudo, O
Fotógrafo tem algumas particularidades que merecem uma maior atenção. A principal delas é
a de que O Fotógrafo apresenta a fotografia em meio ao relato – o que engendra algumas
consequências radicais, conforme exploraremos a seguir.
Ao misturar os quadrinhos e as fotografias, O Fotógrafo desestabiliza os contratos de
leitura tradicionais dessas práticas construindo novos campos de associações de sentido.
3. Os contratos de leitura da fotografia e dos quadrinhos
Para discutirmos os modos como os contratos de leitura dos quadrinhos e das
fotografias se sobrepõe na obra O Fotógrafo, é necessário discutirmos, primeiramente, os
contratos de leitura de cada uma dessas mídias individualmente. Nesse sentido, iremos
discutir os pressupostos envolvidos nos quadrinhos, em um primeiro momento, e nas
fotografias, em seguida, para podermos avaliar posteriormente as suas intersecções.
No que diz respeito aos quadrinhos, é possível dizer que sua linguagem e seu consumo
já estão consolidados enquanto dispositivo midiático. Apesar dos diálogos com outras mídias
serem úteis no estudo das HQ’s, é necessário compreender os quadrinhos como uma mídia
independente e válida, como uma linguagem autônoma, e não como uma forma de literatura
ou gênero literário. Ramos (2009) evidencia que definir quadrinhos como literatura “nada
mais é do que uma forma de procurar rótulos socialmente aceitos ou academicamente
prestigiados (caso da literatura, inclusive a infantil)” sendo esta rotulação um “argumento para
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justificar os quadrinhos, historicamente vistos de maneira pejorativa, inclusive no meio
universitário” (RAMOS, 2009, p.17).
Quadrinhos são quadrinhos. E como tais, gozam de uma linguagem autônoma,
que usa mecanismos próprios para representar os elementos narrativos. Há
muitos pontos comuns com a literatura, evidentemente. Assim como há também
com o cinema, o teatro e tantas outras linguagens (RAMOS, 2009, p.17).
Cirne (1972), apesar de evidenciar as aproximações entre cinema e quadrinhos, ainda
mais do que cinema e literatura, afirma que:
A verdade é que não se pode ler uma estória em quadrinhos como se lê um
romance, uma obra plástica, uma gravação musical, uma peça de teatro, ou
mesmo uma fotonovela ou um filme. (...) Embora haja um denominador comum
para a leitura que se preocupa com manifestações e discursos artísticos, existem
leituras particulares para cada prática estética (CIRNE, 1972, p.15).
Portanto, o primeiro passo para entender as histórias em quadrinhos é encará-las
enquanto mídia autônoma. Outro passo importante para a compreensão das HQ’s é dissociar o
suporte do conteúdo. McCloud argumenta que para chegar a uma definição dos quadrinhos,
deve-se separar a forma do conteúdo. Assim ele afirma que “a forma artística conhecida como
quadrinhos é um recipiente que pode conter diversas ideias e imagens” (MCCLOUD, 1995,
p.6). Encarar os quadrinhos dessa forma dissocia-o de qualquer ideia pré-concebida de que
quadrinhos “são só para crianças” ou que “são apenas uma forma de entretenimento.
Eisner (1989) também contraria essa ideia ao observar que quando começou “a
desvendar os componentes complexos, detendo-me em elementos até então considerados
instintivos e tentando explicar os parâmetros dessa forma artística, descobri que estava
envolvido mais com uma ‘arte de comunicação’ do que com uma simples aplicação de arte”
(EISNER, 1989, p. 6). Dessa forma, Eisner evidencia a complexidade dos quadrinhos
enquanto produto comunicacional que sobrepõe o significado artístico ou de entretenimento
desta mídia.
Nesses termos, é possível dizer que os quadrinhos suportam um contrato de leitura
específico, em grande parte mediado pelo uso do desenho e de suas formas específicas de
correlações com “imagens enquadradas” como dispositivo privilegiado. Assim, embora os
quadrinhos possam ser suportes para narrativas ficcionais ou referenciais, essa mídia sempre
supõe, em seu contrato de leitura, a liberdade da mão de um autor que irá compor um desenho
e engedrar esses desenhos em arranjos específicos.
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Tal constatação, no entanto, tem algumas consequências radicais. Por estar calcado no
desenho, é possível dizer que, no contrato de leitura dos quadrinhos, há uma primazia do
significado por sobre o referente, de forma que o sentido da narrativa é mais importante do
que a verossimilhança com o fato retratado. Em um quadrinho, os leitores não se importam
que o quadrinista possa ter utilizado sua criatividade artística para compor cenários,
personagens e ações, mesmo que ele esteja contando uma história baseada em fatos reais.
Em outros termos, nos quadrinhos, há “um discurso que ‘informa’ do real, mas não
pretende representá-lo nem abonar-se nele” (CHARTIER, 2010, p. 24).
Ora, há uma relação oposta que é estabelecida no contrato de leitura da fotografia.
Esta, por excelência, inaugura um campo de primazia do referente por sobre o significado, de
forma que se afirma justamente por seu caráter indiciário.
Em seu trabalho sobre o ato fotográfico, Phillipe Dubois pontua que os efeitos de
realidade engendrados pelas fotografias estão postos não no caráter mimético que elas
estabelecem com o referente retratado, e sim, com o ato mecânico de sua inscrição. Em outros
termos, pelo fato de que a fotografia deve ser descrita por seu caráter indiciário (requisito para
a própria formação da imagem fotográfica) e não por sua circunstância icônica – que, a rigor,
não é necessária nem determinante para a feitura da fotografia. Para o autor, o fato de que a
fotografia é percebida como uma espécie de prova (ou seja, que é capaz de atestar a existência
de algo) advém do processo mecânico de produção da imagem fotográfica.
Portanto, se sempre há o imaginário de que as pessoas podem mentir, distorcer ou
distender o real quando desenham algo para contar uma história, dificilmente tem-se essa
sensação quando se olha uma fotografia (embora saibamos que isso é mesmo uma ilusão).
Para Dubois, a fotografia deve ser entendida como “índice” da realidade. O índice diz
respeito às formas de representação que tem uma relação de contiguidade física com o objeto
que elas representam. Isso significa que a fotografia aparenta-se com a categoria de ‘signos’,
na qual a fumaça é indício de fogo, a cicatriz é indício de um ferimento, a ruína é um traço do
que existiu, etc. Todos esses sinais têm em comum o fato de serem afetados por seu objeto e
de manter com ele uma relação de conexão física. Nisso diferenciam-se radicalmente dos
ícones, que se definem apenas pela relação de semelhança, e dos símbolos, que definem seu
objeto por uma convenção. A fotografia, para Dubois, estabelece essa mesma relação com o
objeto que ela representa.
Por isso, “a foto é percebida como uma espécie de prova, ao mesmo necessária e
suficiente, que atesta indubitavelmente a existência daquilo que mostra” (VAN
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CAUWENBERGE, 2008, p. 25). Assim, de início, a fotografia era tida como “a imitação
mais perfeita da realidade” (DUBOIS; VAN CAUWENBERGE, 2008, p. 27) e essa
concepção era reforçada, principalmente, devido à natureza técnica da fotografia, seu
procedimento mecânico que fazia uma imagem aparecer de maneira automática, pelas leis da
ótica e da química, sem a intervenção direta do autor. Nesse ponto, muitos artistas e críticos
da época encaravam a foto como uma memória documental do real e a arte, em contrapartida,
como criação imaginária somente, deixando à fotografia apenas o papel de registro
documental, de conservar um traço do passado ou de servir de ferramenta para a ciência em
sua busca para entender a realidade do mundo, “uma separação radical entre a arte, criação
imaginária que abriga sua própria finalidade, e a técnica fotográfica, instrumento fiel de
reprodução do real” (DUBOIS; VAN CAUWENBERGE, 2008 p. 30).
A condição de índice da imagem fotográfica implica que a relação que os signos
indiciais mantém com seu objeto referencial seja sempre marcada por “um princípio
quádruplo, de conexão física, de singularidade, de designação e de atestação” (VAN
CAUWENBERGE, 2008, p.51).
A consequência da conexão física entre uma foto e seu referente é que a imagem
indicial remete sempre apenas a um único referente determinado, aquele que a causou, do
qual ela resulta física e quimicamente. Esta foto, então, adquire um poder de designação. A
partir desse princípio a foto também é levada a trabalhar como um testemunho, comprovando
a existência (mas não o sentido) de uma realidade.
Por essas qualidades de imagem indicial, o que se destaca é finalmente a
dimensão essencialmente pragmática em oposição à semântica. As fotografias
propriamente ditas quase não tem significação nelas mesmas: seu sentido lhes é
exterior, é essencialmente determinado por sua relação efetiva com seu objeto e
com sua situação de enunciação (CAUWENBERGE, 2008, p. 52).
A consciência desse processo traz implicações importantes para o contrato de leitura
que é estabelecido pela fotografia. Para Dubois, a foto é, em primeiro lugar, índice, ou seja,
atesta que o objeto esteve ali. Só “depois” ela “pode” tornar-se parecida (ícone) e adquirir
sentido (símbolo). Barthes (2006, p.115) coloca essa questão em termos bem simples. Para
ele, a fotografia diz simplesmente “isso foi”. “A fotografia não diz forçosamente o que foi.
Ela pode mentir sobre o sentido da coisa, sendo tendenciosa por natureza, mas nunca sobre
sua existência”.
A partir dessas considerações, é possível entender que os contratos de leitura
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pressupostos na fotografia e nas histórias em quadrinhos são bem diferentes entre si.
Enquanto o “isso foi” é central para a articulação dos contratos de leitura da fotografia, ele é
absolutamente dispensável para os desenhos que compõem um quadrinho.
Embora as duas mídias possam se estruturar em torno de uma promessa de verdade
para o leitor, quando estão tratando de narrativas referenciais, esse voto se estruturam de
maneiras diferentes em cada uma delas: nos quadrinhos, a promessa se articula no testemunho
do quadrinista, que promete contar uma história verdadeira mesmo que a partir de um jogo
ficcional com o desenho; para a fotografia, ela se articula no ato mecânico das inscrições da
imagem, mesmo que se estruture a partir de um jogo ficcional com a verossimilhança e o
significado.
Ora, se isso é válido de uma maneira geral, na obra O Fotógrafo, tais fronteiras são
transpostas. A particularidade dessa obra é, justamente, embaralhar tais contratos de leitura,
criando novos campos de intersecção de sentidos, conforme analisaremos a seguir.
4. Novos campos de associação de sentidos
Para Didi-Huberman (2013, p. 221), o problema da maior parte das abordagens
metodológicas da imagem estática está no fato de que elas a definem como um mecanismo
pensado “para funcionar sem restos”. Isso significa entender a imagem como um algo
perfeitamente legível e integralmente decifrável, como se o olho fosse um órgão puro e sem
pulsão. Obras como O Fotógrafo, contudo, significam justamente ao transpor as barreiras dos
contratos de leitura consolidados, gerando novas associações de sentidos. É sob essa ótica que
analisaremos a obra.
Para Paim (2013) há três formas de conexão entre fotografia e narrativa em
quadrinhos: a temática, a estilística e a técnica. A primeira é aquela em que a fotografia é
tema principal ou coadjuvante na obra. A segunda se refere àquelas obras que se apropriam de
elementos da técnica fotográfica como base e a partir dela criam uma técnica narrativa
correspondente. A terceira é aquela que percebe a fotografia como recurso técnico, integrando
as estratégias narrativas, inseridas em meio ao texto.
No caso de O Fotógrafo, a fotografia aparece em duas categorias. Fica clara que a
narrativa se desenvolve em torno das fotografias, em forma e também conteúdo. A começar
pelo nome dos livros e pela presença de reflexões do autor sobre a técnica fotográfica e sobre
o ato de fotografar. Mas a foto é principalmente inserida misturando-se aos quadrinhos,
linguagem “que já tem o hibridismo como elemento intrínseco da sua composição e que vem
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ganhando cada vez mais complexidade com a absorção de novas técnicas e linguagens, bem
como com o desenvolvimento das suas próprias características” (PAIM, 2013, p.371).
O autor aponta que ao inserir uma foto em uma linha narrativa, ela adquire
propriedades particulares. Um desses traços adquiridos é uma característica essencial dos
quadrinhos, o entre-quadros. Para McCloud (1995) o entre-quadros é a “sarjeta” entre um
requadro e outro.
Apesar da denominação grosseira, a sarjeta é responsável por grande parte da
magia e mistério que existem na essência dos quadrinhos. É aqui no limbo da
sarjeta que a imaginação humana capta duas imagens distintas e as transforma
em uma única ideia (MCCLOUD, 1995, p.66).
Por serem compostos de imagens estáticas, os requadros acabam por fragmentar o
tempo e o espaço, oferecendo, a princípio momentos dissociados. Mas o espaço vago da
sarjeta permite que a imaginação do leitor una os requadros e os transforme em uma narrativa
unificada, se tornando colaborador voluntário e consciente da história. A essa imaginação
McCloud chama de conclusão. Para ele esse é um “agente de mudança, tempo e movimento”
nos quadrinhos (MCCLOUD, 1995, p. 65).
Paim (2013) observa que o que está fora do requadro passa a ter importância e ajuda a
designar o que está dentro, fazendo com que uma parte do todo passe a significar o corpo
inteiro:
Estamos falando da noção de que o que acontece entre dois quadros é um
componente mais vital para a história do que esses dois quadros por si. Afinal é
no espaço entre dois momentos congelados que o leitor constrói uma conexão
narrativa. É o espaço da imaginação do leitor, que pode ser exigida de forma
mais ampla ou mais breve conforme variar a distância dos momentos
representados nesses dois quadros (PAIM, 2013, p. 374).
É o entre-quadros que forma o continuum de uma história em quadrinhos. Portanto
quando uma foto é adicionada no contexto de uma narrativa sequencial, ela passa a ser regida
por essa característica dos quadrinhos. O exemplo mais conhecido disso é da fotonovela, e no
nosso caso do próprio O Fotógrafo, que transforma fotografias em requadros, ocupando
bandas (cada linha de quadros da página) ou páginas inteiras.
Ao misturar quadrinhos e fotografia, a partir dos mecanismos que descrevemos, O
Fotógrafo faz uma operação de desestabilização desses sentidos consolidados nos contratos
de leitura de cada uma das práticas. Para discutir isso, precisamos retomar algumas
características do contrato de leitura da fotografia, em geral, e do fotojornalismo em
particular.
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Ora, conforme já colocamos anteriormente, grande parte do contrato de leitura da
fotografia (que articula seus efeitos de referencialidade) deve-se ao ato mecânico da sua
inscrição. No quadrinho, ao contrário, está articulado no testemunho do quadrinista, que
utiliza a ficção do desenho para dizer algo da realidade. Ora, ao misturar essas duas esferas, O
Fotógrafo faz com o leitor um jogo duplo: ao mesmo tempo em que o ato mecânico da
fotografia confere credibilidade ao quadrinho, engendrando ao desenho as ilusões de
referencialidade próprias da fotografia, o quadrinho põe sempre em suspeita o testemunho da
fotografia, construindo um dizer que é colocado sob a ótica da dúvida.
Os efeitos de referencialidade de O Fotógrafo, nesses termos, são bastante complexos
em suas intersecções entre o fotojornalismo e os quadrinhos. Eles se estruturam justamente
em torno desse narrador suspeito, dessa testemunha que mistura o universo onírico com o
universo referencial, o que acaba por reforçar a própria sensação de irrealidade e da falta de
sentido da guerra e dos grandes crimes humanitários.
A fotografia foi uma testemunha privilegiada das calamidades ocorridas em outros
países. Como expõe Sontag:
(...) quando se trata de recordar, a fotografia fere mais fundo”. A memória
congela o quadro; sua unidade básica é a imagem isolada. Numa era
sobrecarregada de informação, a fotografia oferece um modo rápido de
apreender algo e uma forma compacta de memorizá-la. A foto é como uma
citação ou uma máxima ou provérbio” (SONTAG, 2003, p.23).
Guran (1992) explica esse fenômeno, pois considera a linguagem fotográfica
notavelmente sensorial, mesmo existindo em seu processo certa racionalidade em seu
processo de construção e leitura. Por isso, mais do que o texto, a fotografia é rápida em levar
ao leitor uma ideia ou sentimento referente à informação que foi apresentada.
Ao contrário do relato escrito que se dirige a um número maior ou menor de leitores,
dependendo de sua complexidade de pensamento e de vocabulário, “uma foto só tem uma
língua e se destina potencialmente a todos” (SONTAG, 2003, p. 21), traço que lhe confere,
até certo ponto, um caráter de universalidade. Santos (2009) aponta que o fotojornalismo
exerce uma função bastante específica ao permitir ao leitor:
(...) ver, através das imagens, situações e circunstancias que efetivamente
tomaram lugar na dimensão factual – funcionando como uma espécie de
experiência de mundo emprestada. Pode-se dizer, pois, que a fotografia se
configura enquanto um correlato visual da notícia, isto é, servindo para
apresentar ou descrever visualmente os acontecimentos aos quais se refere.
(SANTOS, 2009, p. 1)
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Sontag (2003) aponta que a fotografia adquiriu um imediatismo e uma autoridade
maiores do que qualquer relato verbal para transmitir os horrores da guerra. Castro (2007)
complementa essa concepção com outra característica adquirida pela foto ao dizer que,
A fotografia, porém, além de documentar as guerras e espelhar seus horrores nas
páginas dos jornais e revistas, é utilizada como instrumento de crítica social,
despertando a consciência dos leitores e suscitando mudanças nas condições de
vida das camadas marginalizadas da sociedade, consolidando o fotojornalismo
como instrumento da crítica social (CASTRO, 2007, p.38).
Isso posto, contudo, cabe a pergunta: como representar o irrepresentável do trauma, da
guerra e da dor? Apesar de todo o catálogo de misérias que o fotojornalismo mostrou ao longo
do tempo, há algo da esfera do trauma que não pode ser transposto para a imagem
fotojornalística.
O Fotógrafo é uma obra singular na medida em que tenta dar conta desse
irrepresentável justamente a partir do embaralhamento dos contratos de leitura da fotografia e
dos quadrinhos. Uma vez que o trauma diz respeito justamente aquilo que não pode ser
representado, o irrepresentável da guerra é posto justamente a partir da exploração dos
sentidos desviantes, da transposição das fronteiras entre os dispositivos midiáticos para a
construção de sentidos outros. O irrepresentável da guerra é representando na obra a partir de
suas características formais, da mistura de um universo supostamente inventado com um
universo em que há uma ilusão de um suposto real. O irrepresentável, em outros termos, se
materializa a partir de desestabilizações no contrato de leitura e nos efeitos de referencialidade
da obra.
5. Considerações finais
Para Didi-Huberman, se a imagem, sem dúvida, é formada por empréstimos da
cultura, ela também é formada por “interrupções praticadas na ordem do discurso” e, portanto,
“de legibilidades transpostas, mas também de um trabalho de abertura – e, portanto, de
efração, de sintomização – praticado na ordem do legível e para além dele” (DIDIHUBERMAN, 2013, p. 28). Obras como O Fotógrafo trabalham com essa qualidade ao
embaralhar as fronteiras entre os registros que se pretendem mais realistas e aqueles ligados
abertamente às esferas do ficcional. Obras como essa, recusam-se a sínteses interpretativas
totalizantes, na medida em que sua principal característica é, justamente, fazer com que
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significados contraditórios possam estar em relação.
Para Didi-Huberman (2013, p. 335), “estando entendido que toda figura pictórica
supõe ‘figuração’, assim como todo enunciado poético supõe enunciação”, “acontece que a
relação da figura com a sua própria figuração nunca é simples: essa relação, esse trabalho, é
um emaranhado de paradoxos”, de modo que “de fato, a imagem sabe representar a coisa e
seu contrário”. Em outros termos, “trata-se de experimentar uma rasgadura constitutiva e
central: ali onde a evidência, ao se estilhaçar, se esvazia e se obscurece” (DIDIHUBERMAN, 2013, p. 16).
O Fotógrafo possui justamente essa qualidade ao problematizar a narrativa referencial
do fotojornalismo, misturando-a com a linguagem dos quadrinhos para tematizar o trauma. Se
o próprio trauma está calcado no embaralhamento dos sentidos e nas conexões entre o
referencial e o ilusório, a mistura entre os quadrinhos e o fotojornalismo engendra uma
maneira formal de trabalhar com esses aspectos, distorcendo contratos de leitura consolidados
para retratar o ininteligível do trauma e o irrepresentável da dor.
REFERÊNCIAS
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da imagem fotográfica jornalística. Revista Cambiassu. São Luís: Maranhão. Jan/dez, 2007
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ARTIGO
A crise da água na narrativa hipermídia do jornal o Estado
de São Paulo
Juliana COLUSSI5
Katarini MIGUEL6
RESUMO: Buscamos analisar o especial hipermídia Passado e Futuro do Cantareira,
publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, em abril de 2014, na tentativa de contextualizar a
pior seca da história de São Paulo. Nossa proposta é identificar os elementos utilizados na
composição da narrativa e verificar o nível de interatividade que oferece ao usuário,
destacando também as possibilidades jornalísticas, e a utilização de diferentes técnicas e
linguagens: textual, infográficos, simuladores, mapas, ilustrações, audiovisual, entrevistas
com personagens e especialistas.
PALAVRAS-CHAVE: Narrativa hipermídia; Interatividade; Ciberjornalismo; O Estado de
S.Paulo.
ABSTRACT: The study aimed to analyze the narrative hypermedia entitled Past and Future
Cantareira, published in april 2014, on the website of the newspaper O Estado de S. Paulo, in
an attempt to contextualize the worst drought in the history of São Paulo.Our proposal is to
identify the elements used in the narrative composition and check the level of interactivity that
offers the user, also highlighting the possibilities of hypermedia journalistic reportage.
KEY-WORDS: Narrative hypermedia; Interactivity; Cyberjornalism; O Estado de S.Paulo.
1. Apresentação
As novas práticas de comunicação instituídas na cibercultura, que surgem a partir do
desenvolvimento tecnológico, da internet e da web, alteram a indústria do entretenimento e os
meios de comunicação (LÉVY, 1998; LEMOS, 2003). Nesse contexto, os produtos culturais
se adaptam à demanda das audiências segmentadas.
As emissoras de rádio, por exemplo, tiveram que se adaptar ao novo cenário, passando
5
Jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade Complutense de Madri, onde é pesquisadora do Internet Media
Lab. E-mail: [email protected].
6
Jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade Metodista de S.Paulo. Professora adjunta do curso de jornalismo da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected].
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
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a disponibilizar seus programas online em formato podcast. Os chamados cibermeios 7 e os
meios tradicionais desenvolvem trabalhos conjuntos para oferecer conteúdos móveis que
exploram diferentes níveis de interatividade (JENKINS, 2009).
Dessa forma, os produtores de conteúdo tiveram que se adaptar às novidades técnicas
e tecnológicas da web, considerando a demanda do público por produtos midiáticos mais
dinâmicos e interativos. Tanto é assim que os meios tradicionais têm investido em projetos
que inclui a produção de aplicativos informativos para dispositivos móveis (FIDALGO;
CANAVILHAS, 2009; CEBRIÁN; FLORES, 2012; CANAVILHAS, 2013).
Com o objetivo de produzir conteúdos mais dinâmicos e interativos, o ciberjornalismo
aposta pelo uso da narrativa hipermídia, passando a explorar outros elementos além do link.
Apesar do foco desse tipo de narrativa estar na interação do usuário com o conteúdo, Murray
(2003) alerta que em nenhuma das formas de narrativas digitais a participação é efetivamente
ativa, a ponto de interferir no andamento ou final de uma história.
Inserido neste contexto, este artigo se dedica a analisar os elementos hipermídia
utilizados no especial Passado e Futuro do Cantareira, publicado pelo o Estado de S.Paulo8,
e identificar os recursos que compõem a narrativa do especial, assim como as possibilidades
interativas que a publicação oferece à audiência.
Com relação à metodologia aplicada à análise apresentada neste artigo, além da
revisão bibliográfica que sustenta a parte teórica sobre narrativas interativas no
ciberjornalismo, utiliza-se como técnica de pesquisa a análise de conteúdo web (HERRING,
2010), por oferecer um nível de profundidade adequado para analisar conteúdos de
comunicação na internet. No caso específico do estudo, a análise de conteúdo web inclui duas
categorias de análise: elementos da narrativa e níveis de interatividade. Ambas as categorias
estão relacionadas diretamente com o objetivo principal deste trabalho.
Quanto à categoria dos elementos da narrativa, pretende-se identificar a composição
da linguagem textual, o número de links, os recursos audiovisuais, as fotos e ilustrações, os
infográficos, etc. Já na segunda categoria, o objetivo é analisar os níveis de interatividade
7
Neste artigo, optamos pelo uso do termo cibermeio como sinônimo de meios de comunicação online. Também preferimos
utilizar o termo ciberjornalismo (DÍAZ NOCI, SALAVERRÍA, 2003) a jornalismo online ou jornalismo digital para designar a
prática jornalística na internet.
8
O especial está disponível no seguinte endereço eletrônico: http://infograficos.estadao.com.br/especiais/passado-futurocantareira/
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
35
(seletiva, comunicativa, criativa e plena), partindo das referências de Cebrián (2005) e Rost
(2006).
2. Construindo uma narrativa jornalística não-linear
O uso de narrativas interativas no ciberjornalismo está intrinsicamente relacionado às
práticas da cibercultura. As trocas de mensagens instantâneas através do celular, o uso de sites
de redes sociais e o hábito de leitura de notícias em dispositivos móveis, por exemplo, acabam
influenciando nos processos de produção jornalística.
Nesse sentido, é relevante considerar que entre o autor e o produto (cultural) – neste
caso, o especial do Estado – e também na experiência da audiência se encontra o software. Ou
seja, existe uma espécie de mediação por parte das interfaces tecnológicas. Em El lenguaje de
los nuevos medios de comunicación, Manovich (2005) apresenta cinco princípios básicos dos
novos meios de comunicação: 1) representação numérica; 2) modularidade; 3) automatização;
4) variabilidade e 5) transcodificação, que a seguir relacionamos com a comunicação digital.
A representação numérica corresponde ao fato de que todos os objetos criados com o
computador são compostos de códigos digitais. A imagem publicada num blog jornalístico
(COLUSSI RIBEIRO, 2013), por exemplo, pode ser representada por uma equação
matemática. Se aplicarmos os algoritmos adequados, podemos melhorar o contraste, o brilho e
outras variáveis da fotografia. Seguindo a mesma lógica, encontraremos diversos exemplos no
jornalismo contemporâneo.
Com relação à modularidade, Manovich explica que os elementos dos novos meios de
comunicação, como as imagens, sons e formas, são representados por coleções de amostras
discretas (pixels, polígonos, caracteres ou scripts), além de apresentar sempre a mesma
estrutura modular. Como exemplo de modularidade se encontra a web que, no seu conjunto, é
completamente modular. Consta de inúmeros sites, cada um composto por elementos
midiáticos individuais, aos que sempre é possível acessar de forma separada.
A representação numérica e a modularidade permitem a automatização – terceiro
princípio – de muitos processos de criação, manipulação e acesso dos novos meios de
comunicação. Para citar um exemplo, em várias séries de televisão, vemos bandos de pássaros
ou uma multidão de pessoas que são criados automaticamente com programas de vida
artificial.
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36
Quanto à variabilidade, o autor sustenta que os elementos dos novos meios de
comunicação são mutáveis e podem existir em distintas versões. São armazenados em banco
de dados, a partir do qual é possível gerar uma variedade de objetos relativos à resolução, ao
conteúdo e à forma. O conteúdo pode ser separado da interface, assim como existe a
possibilidade de guardar versões de diversos tamanhos. “A lógica dos novos meios
corresponde à lógica de distribuição pós-industrial: a produção é feita a pedido do usuário e
justo a tempo, opção possível graças às redes de computadores em todas as fases de produção
e distribuição” (MANOVICH, 2005, p. 83). Em função desse princípio, tornou-se possível,
por exemplo, acessar a edição de um jornal em formato PDF.
Já a transcodificação – traduzir a outro formato – é a principal consequência da
informatização dos meios, que agora estão sujeitos às convenções estabelecidas pela
organização de dados a partir do código binário. É como se os meios de comunicação
contassem com duas camadas: a “camada cultural” e a “camada informática”. Os novos meios
são produzidos, distribuídos e arquivados através de um computador. Consequentemente, uma
camada influi na outra mutuamente. Como exemplo, uma reportagem hipermídia é composta
da parte humana, que corresponde à capacidade intelectual de quem a elabora, e a linguagem
informática, que permite que a mensagem seja publicada no site de um meio de comunicação,
com links e demais elementos sonoros e visuais. Nesse cenário, a interatividade e a
hipermídia surgem como estruturas fundamentais das novas mídias.
O uso de elementos hipermídia no jornalismo digital oferece à audiência a
possibilidade de escolher que caminho seguir naquele conteúdo, o que torna a narrativa
interativa, dinâmica e não-linear. O conceito de hipermídia é uma extensão da noção do
hipertexto ao incluir informação visual, sonora, animação e outras formas de informação
(LANDOW, 1997). É a junção de multimídias com hipertextos. Já Gosciola (2003) apresenta
uma definição mais abrangente de hipermídia, como sendo:
o conjunto de meios que permite acesso simultâneo a textos, imagens e sons de
modo interativo e não-linear, possibilitando fazer links entre elementos da mídia,
controlar a própria navegação e, até, extrair textos, imagens e sons cuja
sequencia constituirá uma versão pessoal desenvolvida pelo usuário
(GOSCIOLA, Vicente, 2003, p. 34).
Torna-se um consenso entre os pesquisadores da área de ciberjornalismo que explorar
a narrativa hipermídia é a chave para produzir conteúdos mais dinâmicos e interativos
(PALÁCIOS, 1999; DÍAZ, 2001; EDO, 2002; SALAVERRÍA, 2005; LARRONDO, 2008).
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37
Nesse sentido, pensar em construir uma narrativa não-linear é o ponto de partida de um
conteúdo hipermídia.
A não-linearidade em conteúdos hipermídia corresponde ao “acesso direto a qualquer
conteúdo ou parte da obra, sem que o usuário perca a continuidade da fruição”, durante o ato
de ler-ver-ouvir-usar uma obra hipermídia (GOSCIOLA, 2003, p. 99). O percurso do usuário
pela obra hipermidiática é não-linear porque não desenvolve uma leitura/utilização simultânea
dos vários conteúdos. Gosciola (2003) ressalta a existência de dois tipos de discurso: o
armazenado pelo produtor e o decorrido pelo usuário. Ou seja, o autor realiza uma obra
hipermídia com diversas opções de condução narrativa ao usuário. Nesse processo, roteirista e
produtor são conscientes de que a escolha do caminho narrativo é de responsabilidade do
usuário.
Não obstante, o grande desafio do roteirista de uma obra hipermidiática é planejar um
fluxo comunicacional no qual tenta manter um controle do deslocamento do usuário sobre as
unidades narrativas, considerando que ele pode buscar ou se deixar levar para os destinos
narrativos que o desenrolar dos conteúdos lhe oferece. Normalmente o usuário não toma
conhecimento de todos os conteúdos e nem percorre todos os links inseridos na obra.
3. Estrutura da obra jornalística hipermídia
De acordo com Gosciola, para pensar na estrutura de obra hipermídia, é essencial
considerar os seus elementos específicos: 1) o link como unidade primordial da hipermídia; 2)
o conteúdo como abstrato da hipermídia; 3) interatividade; 4) interface como a porta que leva
à evolução da hipermídia. Dessa forma, entende-se que a hipermídia vai além do multimídia,
uma vez que enfatiza a interatividade e o acesso não-linear promovido pelos links entre os
conteúdos.
O hipertexto e a hipermídia são os elementos que permitem o usuário escolher que
caminho deseja seguir no conteúdo, o que torna a narrativa mais interativa e não-linear. Rost
(2006) defende que a principal diferença entre os meios tradicionais e as novas mídias é seu
maior potencial interativo, tanto no que se refere às opções de seleção como às possibilidades
de expressão e comunicação.
Ao realizar um estudo exaustivo sobre a interatividade em cibermeios, Rost (2006, p.
195) propõe uma definição de interatividade aplicável aos novos meios e ao ciberjornalismo.
Para o autor, trata-se da “capacidade gradual e variável que um meio de comunicação tem
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
38
para dar ao usuário/leitor um maior poder tanto na seleção de conteúdos (interatividade
seletiva) como nas possibilidades de expressão e comunicação (interatividade comunicativa)”.
Entre os diferentes níveis de interatividade que o usuário pode ter ao acessar o
conteúdo de um meio de comunicação online, Cebrián (2005) aponta quatro níveis:
1. Interatividade seletiva: limita a capacidade de inter-relação do usuário à seleção de
uma opção entre as diversas possíveis. O hipertexto é o exemplo mais apropriado
neste nível.
2. Interatividade dirigida pelo usuário: corresponde ao fato de que o internauta controla o
próprio trajeto feito pela informação proporcionada pelo sistema. Esse nível de
interatividade existe, por exemplo, quando o usuário tem a possibilidade de utilizar o
buscador para a pesquisa de notícias antigas.
3. Interatividade criativa: ocorre quando o usuário pode enviar colaborações, como fotos,
vídeos ou comentários.
4. Interatividade plena do usuário: o sistema permanece aberto à capacidade participativa
do internauta. Este nível de interatividade acontece principalmente em obras que o
usuário pode participar da construção do produto, como é o caso dos documentários e
de projetos de arte transmídia. Os sistemas imersivos também se encaixam nesta
categoria.
Convém uma ressalva com relação aos sistemas imersivos, dos quais formam parte os
games. Nesse caso, a interatividade é feita com partes do corpo, como demonstram Busarello,
Bieging e Ulbricht (2012). Um game sem essa característica não promove a interatividade
plena do usuário.
Ao abordar os elementos que compõem o processo de roteirização hipermidiática,
Gosciola (2003) ressalta que se trata de um tema complexo, já que uma obra interativa e nãolinear trabalha com aspectos da linguagem e da tecnologia advindos de áreas distintas do
conhecimento. Nesse sentido, o autor defende que o roteiro de uma obra hipermidiática
[...] elabora a associação direta entre os recursos técnicos específicos para a
navegabilidade não-linear em ambientes hipermidiáticos definidos pelos links e os
diversos conteúdos apresentados através dos respectivos meios – ou seja, os
conteúdos em forma de texto, gráfico, áudio e vídeo – , planejados por um trabalho
de roteirização e organizados por um sistema de autoração (GOSCIOLA, Vicente,
2003, p. 145).
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Com esse aporte teórico levantado, pretendemos, na sequência, entender como essa
conjuntura hipermidiática pode se materializar na publicação do jornal Estadão sobre a crise
da água na região metropolitana de São Paulo.
4. ‘O passado e o futuro do Cantareira’
O especial Passado e Futuro do Cantareira, produzido pelo jornal O Estado de
S.Paulo em abril de 2015, contou com 15 profissionais, entre eles, três jornalistas, três web
designers e quatro profissionais de infografia, além de responsáveis pelas ilustrações 3D,
imagens e vídeos, evidenciando o trabalho em equipe de diferentes áreas relacionadas. O
produto jornalístico aborda, com uma espécie de infográfico abrangente e interativo, a
situação do sistema hídrico Cantareira, manancial que abastece a região metropolitana de São
Paulo. O nível reduzido dos mananciais, devido à exploração desenfreada e ao período
extenso de estiagem, levou à utilização da reserva técnica utilizada do sistema e ao volume
morto9, desencadeando a crise do abastecimento de água na capital e em outras cidades do
Estado nos anos de 2014 e 2015.
O especial foi dividido em oito módulos ou blocos, identificados pela titulação e pela
composição gráfica. Sendo a primeira parte textual, nomeada de O passado e o futuro, com
uma contextualização sobre a situação do sistema hídrico Cantareira. A segunda, um
simulador que apresenta, a partir de cenários pré-selecionados, o volume disponível para
captação de água. Na sequência, um mapa intitulado O Sistema – O caminho da água,
seguido por gráficos com a situação do sistema e com números da economia de água gerada
pela população. O módulo Sistema – volume morto apresenta uma ilustração rotativa que
mostra a rede de água em situação normal e as consequências com a exploração dos volumes
mortos. Na sexta parte novamente está um conteúdo textual, Medidas Adotadas, que explica
as soluções paliativas tomadas pela Sabesp: redução da pressão de água, programa de bônus,
transferência de sistema, bombardeio de nuvens e a multa da água. Ainda estão os blocos
Especialista, com declarações da secretária-geral da ONG ambiental WWF Brasil sobre o
possível colapso do reservatório, e Depoimentos com vídeo da TV Estadão de pessoas
entrevistadas sobre a crise de água. E por fim, mais um quadro ilustrativo rotativo, Dicas para
economizar, que traz orientações para o cidadão comum colaborar no racionamento da água.
9
Volume morto é a reserva técnica do rio, a ser explorado em águas profundas. Como nunca foi utilizado não existem
informações seguras sobre a qualidade e a quantidade da água dessa reserva.
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5. Composição da narrativa e da interatividade
A narrativa, estruturada em módulos, conta com textos, infográficos, mapas,
simulador, ilustrações rotativas, vídeo, com o propósito de explicar de forma jornalística e
hipermidiática, a crise do sistema hídrico. A chamada do produto ressalta a importância do
assunto: “no mês em que a crise do maior manancial paulista completa 1 ano, O Estado traz
cronologia completa da pior seca da história e uma ferramenta inédita que permite simular
como ficará o sistema em 2015”.
O texto é o recurso mais utilizado, com forte presença da infografia em uma proposta
de renovação da narrativa jornalística. Na parte textual, o bloco O passado e o futuro retoma
cronologicamente a conduta da Sabesp sobre a falta de água e reforça dados levantados pelo
próprio jornal e informações divulgadas anteriormente, sem fontes de informações citadas
diretamente e sem a presença de links para outros conteúdos. Em outro bloco de texto,
Medidas adotadas, que explica cada ação realizada pela Sabesp para minimizar a crise como a
redução da pressão, o programa de bônus e a multa da água, também notamos um compilado
de dados, sem fontes diretas, inclusive com dados bastante específicos sobre quantidade de
água economizada, valores investidos que se pressupõe, pela construção, que foram
conseguidos pelo jornal em ocasiões anteriores. A fonte de informação aparece explicitamente
no módulo Especialista, em que a secretária-geral da organização ambientalista WWF tem
suas declarações reproduzidas direta e indiretamente. Assim, observamos um conteúdo textual
já divulgado, que foi retomado e organizado para a presente narrativa, em uma proposta mais
sintética que recupera os assuntos e apresenta um panorama para o leitor. Porém, em nenhum
caso há hiperlinks ou propostas de interação (além da possibilidade do internauta ir clicando
para avançar os textos horizontalmente). As ilustrações e textos predominam e não foram
utilizadas fotos.
Nas ilustrações, que denominamos aqui de rotativas, justamente porque é possível
clicar e avançar nas imagens (no caso, explicando sobre o volume morto e dicas para
economizar água) estão textos bastante sucintos, com linguagem direta, que se limitam a
explicar a imagem (figura 1), e orientar sobre a economia de água em ações cotidianas como
ao tomar banho, escovar os dentes, lavar a louça. Os dados e números ali apresentados
tampouco trazem fontes de informação e levantam dúvidas sobre as técnicas jornalísticas
utilizadas para produção desse bloco informativo. É possível baixar em formato PDF, um
mapa estático do abastecimento de água na grande São Paulo – possibilitando o arquivamento
do conteúdo e a leitura atemporal, conforme apontou Manovich. Por enquanto, a narrativa é
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41
bastante linear e pouco dinâmica, apesar do formato não tradicional.
Figura1. O Sistema (Passado e Futuro do Cantareira)
O dinamismo e participação mais direta acontecem no simulador (figura 2), produzido
a partir de informações da Agência Nacional de Águas, que permite que o internauta visualize
como ficará o sistema de acordo com as opções de entrada de água: média atual, mínima
histórica, média histórica ou máxima histórica. É possível, em cada um dos cenários, ir
avançando nos meses e verificando o quanto de água teria disponível para abastecimento, ao
mesmo tempo em que aparecem na linha cronológica do infográfico, que abrange de janeiro
de 1982 a janeiro de 2015, destaques sobre fatos importantes relacionados ao abastecimento e
à crise, tendo como base as matérias veiculadas pelo próprio jornal. À medida que se avança
nos pontos e nos anos colocados no infográfico surgem informações como “Reportagem do
Estado alerta para a seca”, “Alckmim anuncia falta de água”, “Sabesp inicia retirada do
volume morto”, “Ana libera segunda cota do volume morto”, “Sistema perde metade da
capacidade em um ano”. Trata-se de uma participação fechada nas opções previamente
colocadas e novamente temos um trabalho de retomada de conteúdos já conhecidos, mas
codificados em uma nova dinâmica.
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42
Figura 2. Simulador (Passado e Futuro do Cantareira)
Complementam as informações infográficos estáticos, um mapa sobre o caminho da
água nas represas que compõem o Cantareira, além de gráficos (figura abaixo) com números
do abastecimento e da economia de água gerada pela população, revelando aqui um
investimento importante no jornalismo de dados, ao organizar e combinar os números
jornalisticamente.
Figura 3. O sistema (Passado e Futuro do Cantareira)
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43
O único vídeo presente, com pouco mais de três minutos, mostra cidadãos, não
identificados em créditos, respondendo a pergunta colocada “Vai acabar a água?”. Ao lado,
algumas das declarações são reproduzidas textualmente e devidamente creditadas. Existe aqui
o interesse em mostrar as opiniões diferentes de pessoas comuns sobre um assunto que as
afeta diretamente.
Considerando que a navegabilidade não-linear em ambientes hipermidiáticos existe
graças à inserção de links e dos demais conteúdos em forma de texto, gráfico, áudio e vídeo
(LANDOW, 1997; GOSCIOLA, 2003), no caso específico do especial analisado, a ausência
de links nos blocos de texto prejudica a construção de uma narrativa que possa oferecer um
trajeto não-linear e mais dinâmico.
Com relação aos níveis de interatividade (CEBRIÁN, 2005), a que mais fica
evidenciada nesse especial é a seletiva, que oferece uma participação restrita às opções
possíveis, ou seja, permitindo acessar vídeos, avançar no conteúdo ilustrativo, escolher os
cenários para interagir com o simulador. A ausência de hiperlinks para outros espaços limita
ainda mais a interatividade e deixa o conteúdo bastante linear e convencional, apesar do
investimento em infográficos, ilustrações e outras linguagens midiáticas não compatíveis com
o jornal impresso. Há no topo do site os ícones para compartilhar o conteúdo nas redes sociais
Facebook, Google + e Twitter, mas faltam espaços no próprio especial para comentários e
envio de qualquer tipo de material por parte do usuário, o que pode acontecer de forma
indireta nas redes sociais digitais, por exemplo.
6. Considerações finais
A plataforma construída como um infográfico interativo apresenta uma narrativa
hipermídia que propicia uma navegabilidade não-linear reduzida, já que permite ao usuário
escolher entre as opções colocadas: acessar vídeo, ilustração, clicar em ícones para ter mais
informações (caso do simulador). Mas a ausência de links nos blocos de texto, apesar de
poder ter como propósito não dispersar o internauta para outros espaços, mantendo-o na
narrativa, acaba por tornar a experiência mais fechada e menos flexível.
Avaliamos ainda que a proposta da interatividade plena ou criativa não se efetiva em
nenhuma das instâncias do especial, não há espaço para participar e interagir de forma mais
livre, enviando conteúdos ou postando comentários, por exemplo.
A forma como o conteúdo foi trabalhado, numa compilação de dados já publicados
pelo jornal e sistematizados na narrativa, fatos transformados em gráficos e números,
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simuladores instantâneos, aponta para um trabalho de curadoria, que aposta em textos mais
sintéticos, próprios da internet. No entanto, a predominância do texto corrido, sem links e sem
possibilidades interativas, ainda evidencia o formato tradicional do jornalismo. O quesito
conteúdo jornalístico merece ser analisado profundamente em outra ocasião, mas convém
reprovar as poucas fontes de informação e os textos em itens, que centralizam a
responsabilidade do cidadão sem contextualizar politicamente a crise para o leitor.
De fato, estamos diante de um assunto urgente e de ampla preocupação, que ganhou
as páginas dos jornais e os espaços da internet e que merece ser pautado com diferentes
linguagens e alcances. O Estado, reconhecendo esse contexto, apresenta uma ferramenta de
natureza jornalística que busca organizar os dados e tratar o assunto de forma renovada no que
diz respeito à narrativa, ainda que com limitações.
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Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
46
ARTIGO
LIVESTREAMING AS JORNADAS DE JUNHO:
sobre o gesto de filmar ou a memória digital
Juracy OLIVEIRA10
Sergiano SILVA11
RESUMO: As Jornadas de Junho que eclodiram no Brasil em 2013 tornaram evidentes a
fusão da rede com a rua, canalizada por um midiativismo cujas frentes são exatamente as
novas tecnologias. No sentido de construírem narrativas que se contrapusessem às da mídia
corporativa, o uso do livestreaming foi essencial pela possibilidade de transmitir a própria
experiência da insurgência, dentro do gesto fílmico de fazer e contar a história em tempo real,
ou melhor, pós-história, pois se a primeira – com sua lógica de arquivo – transforma
documentos em monumentos, esta última desenrola-se diante das telas, em fluxo contínuo –
com uma memória digital que existe apenas no momento da transmissão.
PALAVRAS-CHAVE: Jornadas de Junho. Livestreaming. Memória digital.
ABSTRACT: The Jornadas de Junho which erupted in Brazil, 2013, made evident the fusion
between networks and streets, it was canalized for a mediativism that has the new
technologies as main front. Aiming at constructing narratives which contrasted with those of
mass media, the use of livestreaming was essential because it represented the possibility of
broadcasting the experience of rioting itself, within the filmic gesture of both making and
telling real-time history, or else, post-history, since the former – with its archival logic –
transforms documents into monuments, the latter is developed in front of the continuous flux
of screens – with a digital memory which only exists during the moment of transmission.
KEYWORDS: Jornadas de Junho. Livestreaming. Digital memory.
1. Introdução
Que ‘as coisas continuem assim’ – eis a catástrofe.
Walter Benjamin – Passagens
Ainda que as ruínas continuassem a se acumular sob os nossos pés e o anjo
benjaminiano observasse a barbárie de nossa época, finada decretamos a História, como se
10
Graduada em Letras Português/Inglês pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestranda em Comunicação Social pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected].
11
Graduado em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e doutorando pela mesma instituição. E-mail: [email protected].
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
47
não mais nos pertencesse. Empurrados irremediavelmente para um futuro, nos resta apenas
voltar o olhar para o passado e agir sobre o presente. Mas ainda há possibilidade de redenção?
As revoltas ocorridas nos últimos anos dão o sinal de que a História continua a dar voz ao
Tempo e ainda chama: o próximo!
Da Primavera Árabe à Europa e dos Estados Unidos à América Latina, ao longo dos
últimos tempos mobilizações sociais alastraram-se ao redor do globo. E junto com essa era de
revoltas presenciamos o “renascer” da história, como propõe Alain Badiou (2012, p. 5), “em
oposição a pura e simples repetição do pior”. Ou talvez tenha apenas chegado a hora de
voltarmos a “sonhar perigosamente” (ŽIŽEK, 2012, p. 1), com tudo que isso implica.
É nesse contexto que o Brasil viu eclodir em junho de 2013 protestos em centenas de
cidades e que contaram com quase dois milhões de participantes12. E apesar das
especificidades locais, o caso brasileiro insere-se no histórico dessas insurgências mundiais,
visto que apresentam características comuns, a saber: o uso da horizontalidade da Internet
tanto para fins de organização quanto para o debate político; a extensiva documentação e
transmissão em tempo real dos eventos por meio das novas tecnologias; a ocupação
sistemática dos espaços públicos; a ausência de lideranças e partidos políticos; a diversidade
de pautas trazidas pelos manifestantes etc.
Longe de ser apenas um raio em céu azul, tal catarse política deu vazão ao
descontentamento generalizado que havia tomado conta da sociedade – tendo em vista que a
gestão neoliberal das cidades aprofundou por décadas o desenvolvimento excludente que
levou à precarização dos serviços públicos, à desigualdades sociais profundas e à violência
urbana. Assim, a agenda das manifestações foi ampla o suficiente para abranger desde a
redução da tarifa do transporte público (ou mesmo a tarifa zero) até a crítica aos excessivos
gastos com os megaeventos e à corrupção.
Mas o que nos interessa mais especificamente nas Jornadas de Junho são as suas
potencialidades comunicativas, marcadas pela fusão da rede com as ruas. E dentro desse
imbricamento o ciberativismo exerce uma função basilar ao ressignificar as plataformas da
chamada Web 2.0 para fins políticos e construir narrativas que se contrapõem àquelas da
mídia massiva e para tanto, uma das tecnologias mais usadas por essa mídia independente é o
12
Resultados das manifestações de junho. Disponível em: <http://g1.globo.com/brasil/linha-tempo-manifestacoes2013/platb/>. Acesso em: 30 dez. 2014.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
48
livestreaming13, que permite talvez uma nova experiência de tempo e espaço ao transmitir os
acontecimentos em tempo real. Assim, o que se propõe aqui é analisar o próprio gesto de
filmar tais acontecimentos no seu teor histórico e estético bem como discutir acerca dessa
memória digital implicada no ato da transmissão – que ultrapassa em muito os limites dos
arquivos que classicamente documentam a história.
2. Somos a rede social
Junto com o advento das tecnologias digitais e da Web nos anos 1990, surgiu o que se
convencionou chamar de ciberativismo, ou seja, uma nova espécie de ativismo que “tem nas
novas tecnologias de comunicação uma aliada valiosa para o fortalecimento das organizações,
tanto local quanto globalmente, para a coordenação de campanhas e protestos, para a difusão
de informações, denúncias e petições” (DI FELICE, 2013, p. 54). E assim, esse
novo ativismo integrou na Internet seu olho, suas imagens, seu ouvido, suas
sonoridades, sua boca, suas falas, sua pele, seus contactos, sua memória e suas
conexões, até construir uma teia comunitária tornando o corpo apto a viver no
ciberespaço (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 139).
Dessa forma, mais do que apenas incorporar a Internet aos seus processos
comunicativos, o ativismo online transforma-se substancialmente pela própria materialidade
dos meios que utiliza. E sendo o meio também a mensagem (MCLUHAN, 1994, p.7), a
horizontalidade das novas tecnologias atualiza as ideias de participação e espaço democrático
e mesmo as estratégias políticas empregadas – posto que a própria ação social desses
movimentos se transforma –; visto que, como afirma Manuel Castells (2012, p.15), “as
características dos processos comunicacionais entre indivíduos engajados nos movimentos
sociais determinam as próprias características organizacionais do movimento social”, quanto
mais interativa e customizável é a comunicação, menos hierárquica e mais participativa é a
mobilização. Portanto, as atuais insurgências da era digital são mesmo oriundas de uma nova
espécie de movimento social.
Nessa topologia de rede distribuída na qual a informação navega horizontal e
dialogicamente, cada nó tem igual importância. Cada cidadão é um ator na rede. E pela
própria ruptura dos outrora fixos papéis de emissor e receptor, este último pode agora criar os
seus próprios canais de comunicação. Dessa forma, Leonardo Sakamoto (2013, p. 95) observa
13
Ou mesmo “mídia de fluxo” é uma forma de distribuição de conteúdo multimídia via Internet cujo
processamento de dados dá-se por pacotes e a reprodução dos mesmos acontece concomitantemente com o
seu recebimento, portanto, não gerando um arquivo.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
49
que a Web torna-se um lugar de construção política na qual vozes dissonantes ganham escala
justamente por não serem mediadas pelos veículos tradicionais de comunicação. E
complementa que
essas tecnologias de comunicação não são apenas ferramentas de descrição da
realidade, mas sim de construção e reconstrução da realidade. Quando alguém
atua através de uma dessas redes, não está simplesmente reportando, mas
também inventando, articulando, mudando. Isto, aos poucos, altera também a
maneira de se fazer política e as formas de participação social.
É justamente essa possibilidade de auto-comunicação gerada pela Internet que permite a
fusão de mídia com o ativismo: o midiativismo ou midialivrismo. Uma mídia livre, que
fugindo ao modus operandi dos veículos massivos, almeja uma comunicação em rede (por
meio das interfaces digitais) e tem como objetivo alargar o espaço público midiático ao
disputar com a mídia corporativa a construção de narrativas. Em suma,
o midialivrista é o hacker das narrativas, um tipo de sujeito que produz,
continuamente, narrativas sobre acontecimentos sociais que destoam das visões
editadas pelos jornais, canais de TV e emissoras de rádio de grandes
conglomerados de comunicação. Em muitos momentos, esses hackers captam a
dimensão hype de uma notícia para lhe dar um outro valor, um outro significado,
uma outra percepção, que funcionam como ruídos do sentido originário da
mensagem atribuído pelos meios de comunicação de massa. Essa narrativa
hackeada, ao ser submetida ao compartilhamento do muitos-muitos, gera um
ruído cujo principal valor é de dispor uma visão múltipla, conflitiva, subjetiva e
perspectiva sobre o acontecimento passado e sobre os desdobramentos futuros de
um fato (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 23).
Essa guerra das narrativas que acontece nas redes sociais, nos blogs e noutras interfaces
de comunicação distribuída destaca o midiativista como aquele que tanto subverte quanto
contrapõe as verdades da grande mídia, o que tem se ampliado diante da transformação na
capacidade interativa da rede com a ascensão da Web 2.0 – claro que não devemos desprezar
também o seu aspecto comercial, que Castells (2009, p. 421) considera a própria
mercantilização da liberdade através do cerceamento da livre comunicação por redes privadas
em troca da renúncia à privacidade. Apesar disso, o agenciamento entre indivíduos,
tecnologias e territórios tornado possível por essa segunda geração da Web é cooptado pelo
ciberativismo em prol da ação social e política.
É essa sinergia, ou associação, entre diversos actantes (LATOUR, 2005) – indivíduos,
coletivos, smartphones, redes sociais etc. – que tornou aquele junho de 2013 possível. É dessa
interação que vem a surgir toda aquela mobilização e engajamento. E apesar da ausência de
lideranças nas manifestações, podemos dizer que de certa maneira os midialivristas, com seus
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
50
aparatos técnicos, protagonizaram os protestos nas suas coberturas ao vivo, no calor das
barricadas, ao darem voz aos anseios daquela geração que estava nas ruas e ao tornarem a
revolta, e a própria história, compartilhada.
Figura 14
3. No próprio olho da história
Embora os midiativistas já se espraiassem há muito nas redes digitais, foram as
Jornadas de Junho que lhe deram uma definitiva visibilidade no contexto nacional; a partir daí
que a Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), dentre os inúmeros
coletivos e indivíduos que cobriam as manifestações ao vivo, passa a ter destaque por sua
atuação não só nas Web, mas também na mídia convencional. Ao transmitirem
colaborativamente as manifestações em todo o Brasil via livestreaming, Ivana Bentes (2013,
p. 15) observa que eles produziram uma experiência catártica de “estar na rua”, obtendo picos
de até 25 mil visualizações. Seguindo a própria lógica da Internet de agilidade, imediatismo e
liberdade, a autora complementa que
a Mídia Ninja fez emergir e deu visibilidade ao “pós-telespectador” de uma
“pós-TV” nas redes, com manifestantes virtuais que participam ativamente dos
protestos/emissões discutindo, criticando, estimulando, observando e intervindo
ativamente nas transmissões em tempo real e se tornando uma referência por
potencializar a emergência de “ninjas” e midialivristas em todo o Brasil.
Tal cobertura colaborativa, nesse sentido, tem uma “forma-movimento” (MALINI;
ANTOUN, 2013, p. 246) em si mesma; primeiramente porque o gesto de filmar já constitui a
priori numa resistência – pois são construídas narrativas engajadas que se contrapõem aos
outros meios de comunicação corporativos – e segundo, porque “espalham a palavra” da
mídia livre tendo em vista a formação de mais midiativistas.
Então, essa nova linguagem de mídia, cuja produção de conteúdo é descentralizada,
14
A cobertura NINJA nas manifestações de junho de 2013. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=5yjvo9RJ50U>. Acesso em: 28 dez. 2014.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
51
conta com uma multidão de conectados que transmitem sua própria experiência de
insurgência em fluxo. Ou seja,
não somente os movimentos e as ações têm, na quase totalidade dos casos
origens nas redes, em grupos do Facebook ou em redes sociais digitais, mas, ao
sair nas ruas continuam inevitavelmente conectados, e passam a decidir suas
estratégias e seus movimentos nas manifestações por meio da interação contínua
com as redes informativas e por meio da troca de informações instantânea. Tudo
é filmado, gravado, fotografado e imediatamente colocado em rede para o
mundo. Não somente se deslocam conectados, mas a manifestação acontece de
fato, somente se é filmada, fotografada e postada na rede, tornando-se
novamente digital, isto é, informação compartilhada e distribuída (DI FELICE,
2013, p. 65).
E não mais separando os espaços físicos dos informacionais, entramos na era da
“imediação”, ou seja, multiplicamos nossas mídias na mesma medida em que apagamos todos
os traços de sua mediação (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 5). Dessa forma,
a qualidade da ação conectada digitaliza as ruas e as cidades para ganhar uma
indefinível localidade e se reproduzir aquém dos espaços urbanos e político. Os
conflitos são informativos, as passeatas são hoje games interativos que promovem a
interação entre informações, espaços urbanos e ações, jogos de trocas entre corpos e
circuitos informativos. Expressões do surgimento de um novo tipo de carne
informatizada, que experimenta a sua múltipla dimensão, a informativa digital e a
sangrenta material, ferida e machucada. Ambas são reais e nenhuma é separada da
outra, mas cada uma ganha a sua veracidade no seu agenciamento em diálogo
informatizado com a outra (DI FELICE, 2013, p. 65).
É nesse paradigma de imediação, acrescido ao atual contexto de tecnologias móveis,
que cabe falar de uma tecnologia como o streaming, visto que essa transmissão em tempo real
dos protestos produz uma outra relação com o presente, uma “experiência no fluxo e em
fluxo, que inventa tempo e espaço, poética do descontrole e do acontecimento” (BENTES,
2013, p. 15).
Essas novas espacialidades e temporalidades que foram introduzidos na nossa
cotidianidade através das tecnologias portáteis e da conexão móvel são o que Castells (2011)
denominou como espaço de fluxos e tempo atemporal. Enquanto o primeiro remete à
“organização material da interação social simultânea à distância pela comunicação em rede,
com o suporte tecnológico das telecomunicações, dos sistemas de comunicação interativos e
das tecnologias de transporte rápido” (CASTELLS et al., 2007, p. 171), ou seja, o espaço de
fluxos não se relaciona com um lugar específico, mas constrói-se ao redor das redes no fluxo
comunicacional; o último, o tempo atemporal, refere-se ao “desequenciamento da ação social
pela compressão do tempo ou pela ordenação aleatória dos momentos sequenciais” (Idem, p.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
52
171), ou melhor, a simultaneidade do tempo em aldeia global substitui a unicidade e o
sequenciamento de outrora.
E dentro desse espaço de fluxos que é a rede, o tempo agora expandindo e atemporal é
vivenciado de outra maneira nos lives dos protestos. Tais imagens não apenas fazem e
registram a história ao mesmo tempo mas são dotadas de uma circularidade inerente à própria
Web, o que faz com que elas gerem interação, feedback, conversação entre os nós em loop
infinito. Trata-se mesmo de uma guerra pela própria atualização das narrativas do presente
3.1. Transmitindo a história em baixa resolução
Os gestos têm por função revelar, em toda sua fenomenologia, a maneira como
existimos no mundo. E como tal, ele modifica-se ao sabor das próprias mudanças que o
presente nos reserva. Novos tempos demandam, então, novos gestos. E aqui é o gesto de
filmar e fazer história ao mesmo tempo via streaming que nos interessa.
Na efervescência dos acontecimentos de junho, vários foram os coletivos e os
indivíduos que se dispuseram a transmitir os protestos em tempo real por mídia de fluxo, mas,
grosso modo, tais coberturas midialivristas eram similares, pois faziam uso: de câmera
subjetiva e inserida na multidão; do fluxo contínuo das imagens em plano-sequência e da
narração em off do repórter-manifestante sobre os acontecimentos – além de comentários
relativos à própria transmissão ou aos equipamentos e de conversas com os manifestantes para
colher depoimentos.
O gesto fílmico contido nessas transmissões denota a própria essência do narrar: contar
a história. Conta-se o presente no espaço-tempo expandido das redes. O devir do mundo é
mostrado em emissão quase direta, com ruídos imagéticos e sonoros, e talvez o ato valha
mesmo mais do que a sua informatividade. Mas o tal gesto de filmar consiste basicamente
nisso; como diz Vilém Flusser (1994, p. 120), ele “conta um acontecer”. E nesse sentido, tais
imagens são pura experiência da insurgência em fluxo. E nessas revoltas compartilhadas até a
história adquire um outro status, ela é escrita coletivamente, inclusive por aqueles que a
visualizam por uma tela de distância.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
53
Figura 15
Claro que a impossibilidade de edição dá uma tônica ainda mais extática ao gesto de
filmar-transmitir ao mesmo tempo. A fenomenologia dessa imagem é tomada na sua instância
de acontecimento, num processo corpo a corpo com a multidão que se manifesta, ela é pura
enunciação. É instantâneo da história.
Urge narrar à rede tudo o que acontece, em especial o confronto entre manifestantes e
policiais; e a própria narrativa é construída em cima dessa expectativa de embate, que quase
nunca falha. Triste espera, portanto, pois ninguém na multidão está a salvo das bombas de
gás, dos tiros de borracha etc.
Figura 16
Justamente nesses momentos de tensão é que as imagens mais revelam as limitações
técnicas de sua produção pelos aparatos móveis, criando mesmo uma estética do streaming
pautada, sobretudo, no ruído. Grosso modo, as imagens resultantes dessa transmissão são
borradas, pixelizadas, instáveis e sem foco. Mas tais resíduos são também informativos na
15
Live gravado Mídia NINJA. Disponível em: <http://us.twitcasting.tv/midianinja/movie/14855435>. Acesso em: 01 jan.
2015.
16
Prisão do Repórter da Mídia Ninja. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=aDO6tr6kgAk>. Acesso em: 02
jan. 2015.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
54
medida em que são a própria expressão da urgência de estar ali. A imagem, então, é também o
próprio ato da sua captura e das condições em que foi realizada.
Nesse sentido, tais imagens são inadequadas, por não conseguirem abarcar todo o real
pretendido, mas são necessárias e verdadeiras mesmo em baixa definição; elas valem menos
pelo seu valor documental do que pelo próprio testemunho, pela experiência ali vivida, visto
que “ao relegarmo-las imediatamente para a esfera do documento – o que é mais fácil e mais
usual –, separamo-las da sua fenomenologia, da sua especificidade, da sua própria substância”
(DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 52-53).
Por outro lado, podemos também perceber tais imagens em toda sua ambiência,
mesclando objetividade e subjetividade, emissor e receptor, pois como indica Bruno Torturra
(2014), via livestreaming a audiência tem a oportunidade de “ver o mundo através dos olhos
do outro”.
Ainda no século passado, Flusser (1994, p. 122), nos seus exercícios de “futurização”,
disse que “não se exclui que no futuro a história, existencialmente significativa, se desenrolará
diante dos olhos dos espectadores sobre paredes e telas [...] e não no espaço do tempo. Isso
seria realmente uma pós-história”. Mas não é exatamente isso que temos visto? A própria
possibilidade de filmar a história e exibi-la nas telas digitais no tempo atemporal da
tecnologia streaming. Uma pós-história, de fato.
4. Anarquivos das revoltas
Pensar o livestreaming num viés de feitura da história esbarra na problemática dos
arquivos que classicamente a documentam, posto que a lógica arquívica é pautada em cima da
reserva do saber coletivo cujas prerrogativas são as de seleção, organização e conservação de
seus documentos. E nessa cultura de memória na qual a história, como postula Michel
Foucault (1972, p. 14), é aquilo que “transforma os documentos em monumentos”, uma mídia
de fluxo trabalha justamente no sentido de dessacraliza-la: primeiro, ao ser construída por
muitos; segundo, ao nem mesmo ser arquivo.
Embora tal metáfora seja largamente usada, a Internet não consiste num arquivo; seus
bancos de dados multimídia são justamente o que impedem que ela entre nesse paradigma
documental, pois cada imagem, áudio e vídeo existe no ciberespaço apenas num dado
momento – pela atualização e reescrita constante que sofrem – e congelá-los arquivicamente
seria parar a circularidade que lhes é inerente. E numa era na qual temos a opção de
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armazenar todos os tipos de informação em nossos periféricos, Wolfgang Ernst (2013, p. 138)
desvela um fenômeno paradoxal: o “ciberespaço não tem memória”.
Em substituição ao grandes arquivos e bibliotecas babélicas, esses não-arquivos digitais
geram uma memória cibernética, fluida e eletromagnética, capaz de registar o real de maneira
instantânea. E
embora o arquivo tradicional costumasse ser uma memória estática, a noção de
arquivo na comunicação via Internet tende a mover o arquivo na direção de uma
economia de circulação: permanente transformação e atualização. O chamado
ciberespaço não diz respeito primeiramente a memória como um registo cultural
mas a uma forma perfomativa de memória como comunicação. (Idem, p. 99)
Nesse sentido, a Web não institui-se nem ao menos num lieux de mémoire, posto que na
configuração rizomática do ciberespaço não há mais lugar para arquivos permanentes – vide a
computação em nuvem – mas somente um armazenamento temporário cuja reprodução é
imediata. Tal memória dinâmica é a lógica mesma do livestreaming:
com arquivos digitais, a princípio, não há mais atraso entre a memória e o
presente mas, ao invés, a opção técnica de feedback imediato, tornando todos os
dados do presente em entradas de arquivo e vice versa. A economia do tempo
torna-se um pequeno circuito. Mídia streaming e armazenamento tornam-se
crescentemente entrelaçados [...] Com a supremacia da seleção sobre o
armazenamento, do endereçamento sobre a classificação, não há mais memória
no sentido enfático; a terminologia arquívica – ou mesmo o próprio arquivo –
torna-se literalmente metafórico, uma função do processo de transferência
(ibidem, p. 98).
Portanto, tais anarquivos são senão memórias fluidas de acesso aleatório. E nesse
sentido, “os velhos oponentes “passado” e “presente”, “arquivo” e “evento imediato” tornamse submersos na mudança no tempo, que é a essência temporal das operações eletrônicas da
mídia digital” (ibidem, p. 99). Sendo a própria mídia de fluxo expressão dessa memória
passageira, em cache, que existe apenas no momento da transmissão.
Em suma, a cultura de memória que permeia o Ocidente é pautada no arquivo, no
documento e no armazenamento, ou seja, toda uma longeva hierarquia que entra em conflito
direto com os pressupostos da memória arquívica desmonumentalizada do ciberespaço. Por
que, então, não ampliar o conceito de arquivo para pensá-lo também em termos de nãoarmazenamento e constante atualização? O desejo em voga aqui é por “uma cultura de mídia
que lida com a multimídia do anarquivo virtual numa maneira além do desejo conservador de
reduzi-lo à sua ordem classificatória novamente” (ibidem, p. 140).
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5. Considerações finais
Tendo agora a capacidade de narrar a história, por conta mesmo da ampliação dos
canais comunicativos, resta universalizar essa possibilidade. Pois essa narrativa pertence a
todos e, como consequência, ela “traz a autonomia para o modelo da mídia online, porque faz
da vida e da história as condutoras do tempo real, ao ‘não paralisar o tempo, mas apropriar-se
dele e reterritorializá-lo com a narrativa coordenadora da ação coletiva” (MALINI;
ANTOUN, 2013, p. 188).
E nesse sentido, como vimos, até mesmo a função mnemônica do arquivo como porta
da experiência histórica perde seu espaço. A pós-história feita via livestreaming deixa de ser
apenas uma questão do passado e começa a lidar com o seu presente, com a sua promessa, a
“responsabilidade para o amanhã” (DERRIDA, 2001, p. 50).
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Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
58
ARTIGO
Televisão digital e web: Uma proposta multiplataforma e
transmídia para conteúdos de mídia-educação
Mariana Pícaro CERIGATTO17
RESUMO: O presente artigo apresenta um recorte da dissertação de mestrado em Televisão
Digital na Unesp/Bauru, o qual traz à tona o desenvolvimento de conteúdos dentro de uma
perspectiva transmídia. O objetivo foi a elaboração de um curso de educação às mídias
voltado para a formação de professores e à apropriação da linguagem do audiovisual. Assim, a
autora apresenta no artigo um planejamento de protótipo combinando o ambiente virtual de
aprendizagem à televisão digital. Conclui-se que estas duas plataformas de comunicação
podem ser combinadas, de forma que uma complemente a outra numa visão integradora,
considerando transmídia o fenômeno do transporte da informação para as múltiplas
plataformas de comunicação.
PALAVRAS-CHAVE: TV Digital. Transmídia. Mídia-educação. plataformas virtuais de
aprendizagem.
ABSTRACT: This paper presents part of the of a dissertation on Digital Television in
Unesp/Bauru, which brings up the development of content within a transmedia perspective.
The goal was the development of a media for an education course focused on training for
teachers and the appropriation of the audiovisual language. Thus, the author presents in the
article a prototype planning combining the virtual learning environment with the Digital TV.
It follows that these two communication platforms can be combined, so that a complement to
another in an integrative view, considering transmedia the information transport phenomenon
for multiple communication platforms.
KEYWORDS: Digital TV. Transmedia. Media education. virtual learning platforms.
1. Introdução
O presente trabalho, recorte da dissertação de mestrado em Televisão Digital
concluído pela Unesp/Bauru, apresenta a elaboração de um curso dentro da sistemática TLearning, voltado para atividades de leitura e escrita da linguagem audiovisual, tendo
referências vindas da área interdisciplinar media literacy. A simulação de um aplicativo foi
17
Graduada em jornalismo pela Universidade Sagrado Coração (USC), mestre em Televisão Digital pela
Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Bauru e doutoranda pela Unesp, campus de Marília. E-mail:
[email protected]
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
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pensada dentro do ambiente e dos recursos da televisão digital, sob os limites da
interatividade local. Ao mesmo tempo, o curso é combinado com os recursos do Moodle,
dentro da plataforma web, reforçando o caráter transmídia do projeto.
Especificamente, buscou-se ainda, através deste protótipo, a aprendizagem para a
apropriação da linguagem cinematográfica e audiovisual. O curso proposto é direcionado à
formação inicial/continuada de professores da rede básica de ensino, especificamente os
professores que ministram a disciplina de língua portuguesa, já que os Parâmetros
Curriculares Nacionais apontam a necessidade de se trabalhar com a linguagem não-verbal
em sala de aula. Promovendo a apropriação de recursos da linguagem audiovisual, os
professores podem conhecer os elementos que sustentam esta linguagem para, assim, tirarem
proveito educacional de filmes, séries etc. Além disso,
a análise levantou
limites e
dificuldades da televisão digital junto a seu papel de difusora educacional.
O desenvolvimento deste projeto partiu, inicialmente, da preocupação curricular em
provocar a integração de mídias às práticas pedagógicas, e também da necessidade de
explorar a multiplataforma e o conceito de transmídia, visto que a combinação entre várias
plataformas, e a integração entre elas, é uma tendência da sociedade contemporânea.
Como estamos tratando de uma proposta de mídia-educação, há algumas
problemáticas a serem pontuadas. Apesar de nos esbarrarmos com propostas curriculares
favoráveis ao uso da mídia em sala de aula, ainda faltam materiais pedagógicos e
metodologias de trabalho apropriadas para atividades dessa natureza.
O audiovisual, que é a “linguagem-alvo” desse trabalho, ainda está em desvantagem
no contexto escolar, do ponto de vista do aprendizado. A escola ensina a expressividade
textual se aproximando mais de uma postura passiva que inibe a criatividade dos alunos. A
importância da imagem é utilizada de maneira muito tímida, como mero recurso ilustrativo e,
devidamente legendada, para que não haja qualquer abertura quanto ao seu significado
(CITELLI, 2004).
Assim, a pesquisa se preocupou em elaborar uma proposta transmídia entre web e
televisão digital para apoiar atividades de mídia-educação, delineando-se a partir da leitura
crítica e apropriação da linguagem audiovisual.

Fundamentação teórica
2.1 Media literacy: formando leitores e produtores de mídia
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
60
Como já é praticamente consenso, a escola não pode ignorar o conteúdo veiculado
pelos meios de comunicação. Seu papel é formar leitores e consumidores mais críticos. Além
disso, deve ser papel da escola produzir conteúdos, dando oportunidades para que os alunos
façam uso das tecnologias e se apropriem das linguagens da televisão, do rádio, da
publicidade, do cinema, do jornalismo.
A formulação de materiais pedagógicos, apoiando-se em técnicas pedagógicas
específicas, deve considerar a multiplicidade de meios e gêneros, assim como suas
particularidades. Com o jornalismo pode-se trabalhar, por exemplo, critérios de seleção de
notícias, a linguagem, os motivos que levaram uma matéria a ganhar mais destaque do que
outra, a análise das fontes ouvidas etc. Com a publicidade, pode-se indagar qual o valor
simbólico de determinado anúncio e quais são os elementos da linguagem selecionados para
construir determinada propaganda.
Quando nos referimos a estes tipos de atividades, estamos falando de mídia-educação,
ou então leitura crítica dos meios de comunicação, educomunicação, educação para a mídia e
media literacy. Estes são alguns dos termos usados para caracterizar uma área interdisciplinar
do conhecimento que se preocupa em desenvolver formas de ensinar e aprender aspectos
relevantes da inserção dos meios de comunicação na sociedade. Assim, a “literacia em mídia”
é o resultado esperado dessas ações pedagógicas, que envolvem, necessariamente, a
compreensão crítica e a participação ativa.
Especificamente na Inglaterra, o Communications Act de 2003 (a lei geral das
comunicações) estabeleceu como uma das tarefas do Ofcom, órgão regulador de mídia neste
país, promover a media literacy. De lá para cá, uma série de medidas estão sendo postas em
prática, entre elas o fomento de programas de educação para a mídia em espaços de educação
formal e não-formal. Experiências Ainda neste páis, desde o final dos anos de 1980, o
currículo oficial faz referência aos estudos sobre a mídia (ZANCHETTA JÚNIOR, 2009).
Com tradição nos estudos culturais, as aulas que incluem a media literacy procuram estimular
o aluno a desconstruir as mensagens midiáticas e assim entender os processos de
representação e, consequentemente, de manipulação de informação dos meios de
comunicação, dentro de um ponto de vista que preocupa-se não em promover nem em
“inocular”, mas sim em preparar as pessoas para usar as mídias com mais proveito, tanto
como consumidoras, quanto como cidadãs (BUCKINGHAM, 2003).
É preciso entender que existe conteúdo educativo em qualquer texto midiático, que
pode e deve ser explorado em sala de aula. De acordo com Hall e Whannel (1964), até o
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61
seriado de TV mais simples usa as técnicas de composição artística da linguagem audiovisual:
roteirista e diretor precisam compor personagens e desenrolar da ação, selecionar aspectos da
vida que irão alimentar a trama, explorar alguns desses aspectos e comprimir outros, conferir
uma textura humana ao enredo. O modo como esses filmes ou programas estabelecem
relações com a realidade é que deve ser estudado. Na prática, essas relações se dão através do
formato e do estilo.
Após situar-se a este importante pilar de pesquisa, que é a media literacy, que
fundamenta as ações deste projeto, vamos partir para explanar sobre televisão digital, que é
uma das plataformas escolhidas para elaboração do curso proposto.
2.2 TV Digital: ela é tudo isso que foi prometido?
Com a chegada dos primeiros sinais da televisão digital (TVD), várias reflexões
surgem para os pesquisadores de comunicação e toda a sociedade: quais serão as
consequências da passagem da TV convencional para a digital e a integração com as outras
mídias na educação? E a produção? E a regulamentação? Como a escola poderá tirar proveito
da interatividade e flexibilidade da TVD?
Com a digitalização do sinal, a promessa do governo brasileiro é de promover a
inclusão social através de cursos a distância na TV, já que este veículo ainda é bastante
penetrante nos lares brasileiros.
Mas a grande aposta da TVD é que ela se torne interativa. Vários autores apontam que
a televisão digital interativa (TVDi) poderá facilitar a aprendizagem, pois será de fácil
manuseio e, pelo fato de já estar inserida no cotidiano das maiorias, seu uso pode ser mais
aceitável.
Essa forte disseminação da TV na sociedade, somada às novas funções que ela
comporta, tem sido um fator favorável à população, pois se ampliam as formas de levar e
receber informação. O importante é salientar o papel e o potencial da TV como de difusora de
serviços de utilidade pública e não somente como canal de entretenimento.
Contudo, apesar da “glorificação” da TV Digital por parte das emissoras e do governo,
há mais especulações do que fatos concretos no sistema digital brasileiro (CAMARA, 2009).
Em relação à educação, há de se notar que, apesar de anos de experiência no uso de
radiodifusão educativa, ainda há poucos estudos pedagógicos inspiradores para ajudar a
entender como os alunos podem aprender através da TV, especialmente a TVD.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
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Primeiramente, se falando do aspecto tecnológico, o primeiro grande obstáculo para
que se consolide a TVD interativa, tão importante para fazer valer aplicativos interativos em
educação, é a falta de definição do canal de retorno, ou seja, um canal que leve a transmissão
das informações do usuário para a emissora. Para que isso aconteça, é necessário o
estabelecimento de um meio para que esta transmissão ocorra, o que pode acarretar aumento
do custo dessa tecnologia. Essa é uma grande barreira a ser vencida para que se alcance a
interatividade na TV Digital, que poderia beneficiar, sobretudo, as classes de baixa renda.
Outras limitações referem-se à alta qualidade da imagem e à diversidade de canais. A tão
anunciada melhoria de qualidade de imagem da TV Digital é a “propaganda” mais
disseminada. Entretanto, para que a tão aclamada qualidade de imagem seja alcançada, o
sistema exige além da transmissão digital. São necessários aparelho televisor e o conversor.
“Dessa forma, o consumidor teria que comprar um aparelho de transição do analógico para o
digital e os televisores de Plasma e LCD para garantir a prometida imagem. Sem esses
aparelhos, que ainda estão a preços altos no mercado, a qualidade da imagem se encontra
limitada” (CAMARA, 2009). A televisão digital sofre o risco, ainda, de ser tida e vista apenas
como uma atualização tecnológica, que agora proporciona alta definição de imagem.
Também é importante ressaltar o mais novo ambiente que se forma para o usuário, que
se esbarra em telas com dificuldade de leitura e pouca legibilidade. Sem falar do formato,
organização, denominação e atribuição das teclas do controle remoto que acompanha a TVDi
(BECKER, 2006 apud RODOLPHO, 2009).
Assim, com este novo cenário, o termo usabilidade entra em cena e assume papel
fundamental para que o personagem principal da situação, o usuário, aceite esta nova
tecnologia. (RODOLPHO, 2009). O conceito de usabilidade é discutido por Jakob Nielsen,
notório pesquisador sobre o assunto na atualidade, que define o termo “como característica de
um sistema com componentes múltiplos, que normalmente implica atributos tais como: ser
fácil de usar e de aprender a ser usado; ser fácil de ser recordado, mesmo depois de um tempo
sem estar em contato com ele; conter baixa taxa de erros e despertar uma satisfação subjetiva”
(NIELSEN, 2007 apud ROSSETO, 2010, p. 48).
Será preciso muita criatividade para atender às demandas de uma televisão digital
realmente interativa. Becker, Fornari, Filho e Montez (2006) apud Rosseto (2010) listam
diferenças da televisão em relação ao computador, em termos de possibilidades interativas,
sendo elas: tela de menor resolução com área sujeita a distorções, o fato de não possibilitar ter
barra de rolagem, a distância bem maior exigida para que um telespectador assista à TV, além
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63
do perfil do consumidor de produtos televisivos, que é mais heterogêneo que o público da
internet.
E ao falar em usabilidade, não podemos desvincular deste assunto um importante
equipamento integrante ao sistema de TVDi: o controle remoto. Este, se comparado com os
dispositivos de entrada de um computador, tem um uso muito mais restrito.
Ainda dentro desta perspectiva, é preciso destacar que públicos que tiveram pouco
contato com a cultura digital são os que merecem atenção redobrada quando a questão é
usabilidade dos serviços interativos. Esse ponto está diretamente ligado com a necessidade de
fomento à alfabetização digital da população como um todo, paralelamente à inserção da TV
Digital (ROSSETO, 2010). A preparação dos cidadãos para manusear a tecnologia e tirar
proveito dos novos serviços se faz necessária, já que, uma parcela de usuários são pessoas que
cresceram em uma cultura impressa. Outra parcela possui poucos anos de escolaridade, tem
problemas para compreender e interpretar textos, o chamado analfabetismo funcional. Sem
falar da fatia ainda existente da população que ainda se encontra em situação de exclusão
digital. Enfim, não basta disponibilizar uma nova televisão diante uma parcela significativa de
pessoas que não domina as ferramentas básicas da nova tecnologia, não tem afinidade com os
termos, não conhece as possibilidades de uso e criação através da interatividade etc..
Conforme defendem Rothberg e Siqueira (2010), o acesso e a regulação da televisão digital
requerem políticas de educação para a mídia.
2.3 Aprendizado via TV: T-Learning
Ao aprendizado “via” TV, podemos dar o nome de T-Learning, concepção que se
baseia na convergência de tecnologias. Segundo Bates (2003), T-Learning é o tipo de
educação a distância baseado em televisão interativa. O foco é na TV Digital e como ela pode
apoiar o processo de aprendizado denominado E-Learning. Assim, o T-Learning contempla a
convergência entre elementos como televisão digital, computador, E-Learning e rede.
Essa modalidade possibilita aos usuários, na ocasião, aos telespectadores, o acesso a
diversos materiais didáticos (em forma de filmes, imagens, hipertexto, etc). O acesso pode
ocorrer em vários ambientes, promovendo a portabilidade: em casa, na escola, no local de
trabalho, uma praça, ônibus etc.
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T-Learning também pode ser descrito como a convergência de crossmedia com o
Ensino a Distância (EaD ou e-learning), sendo que podemos definir crossmedia como o uso
de mais de uma mídia (AARRENIEMI-JOKIPELTO, 2006, apud AMÉRICO, 2010).
A partir destas definições, pode-se dizer T-Learning é a convergência de duas
tecnologias: televisão e ciências da computação, mais especificamente a internet (AMÉRICO,
2010).
Vale ainda ressaltar que no sistema de educação a distância que tem a TVDi como
foco, é preciso pensar em como atrair o público-alvo, desenvolvendo nele o interesse para
explorar o conteúdo interativo. Portanto, a navegação pelo programa
deve ser clara,
acessível; o usuário deve conseguir “navegar” pelos links disponíveis para voltar, avançar ou
obter mais informações.
Por fim, vale salientar que este ambiente requer planejamento e depende do trabalho
do profissional que chamamos de design instrucional, que tem por objetivos planejar e
desenvolver, por meio de métodos, técnicas e atividades de ensino, projetos educacionais
apoiados por tecnologias. Cabe ao design instrucional pensar em como preparar e publicar
conteúdos textuais, imagéticos, de áudio e audiovisuais, sem falar das atividades e tarefas do
ambiente (ROSSETO, 2010).
2.4 Transmídia: o intercâmbio entre plataformas
Nas últimas décadas, podemos observar vários exemplos de transmídia dentro da
indústria cinematográfica, dos games etc. Vemos constantemente a informação e o
entretenimento transportados para as múltiplas plataformas de comunicação que se
multiplicam a cada dia. Uma revista impressa pode ser lida no site, enviada em formato PDF
para o e-mail de um colega ou até mesmo visualizada em celular.
Este movimento tem sido bastante explorado pela indústria publicitária, que vê no
crossmedia uma estratégia de cativar uma maior fatia de consumidores, fazendo com que eles
interajam de formas diferentes com o mesmo produto, através de diferentes mídias, levando a
novas experiências.
Em “Cultura da Convergência”, o teórico Henry Jenkins criou o termo “narrativa
transmídia”. A narrativa transmídia define-se como o formato de contar uma história de
entretenimento/ficcional em diferentes mídias. “Uma história transmídia desenrola-se através
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
65
de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e
valiosa para o todo” (JENKINS, 2009, p.138).
Na mesma linha de pensamento, Martín-Barbero (2009) nos leva a crer que os gêneros
que os meios produzem estão sendo reinventados à luz de sua interface da televisão com a
internet, numa interação transversal e contaminação que desestabilizam os discursos próprios
de cada meio, criando as “formas mestiças de comunicação”.
Podemos relacionar formas mestiças de comunicação também com o movimento
crossmedia (também conhecida como cross media ou cross-media), que se refere à
distribuição de serviços, produtos e experiências por meio das diversas mídias e plataformas
de comunicação existentes no mundo digital ou analógico. Nada mais é do que a possibilidade
de uma mesma campanha, empresa ou produto utilizar simultaneamente diferentes tipos de
mídia: impressa, TV, rádio ou internet. Envolve a transposição de mídias e interação entre
elas, atingindo um maior público.
Com o advento da TV Digital, são várias as possibilidades e tentativas de transportar
conteúdos da internet para este meio, ainda mais quando o assunto é educação. Vários autores
apostam em recursos da TVDi para enriquecer processos de leitura, do cinema e de outras
narrativas. Sobre isso, Regis, Timponi e Altieri (2011) alegam que:
Para além dos processos tradicionais de ensino sem atrativos, os recursos
multimídia não medem esforços para uma tentativa de um aprendizado mais
lúdico, porém com maior retenção do conteúdo, numa aposta híbrida de leitura,
que envolve processamentos multitarefa do usuário, além de uma cognição
“ampliada” que dê conta dos diversos sentidos requeridos a todo momento. (p.
14)
É fato que, com o impulso das novas TICs, cresce a demanda por adaptação e
intercâmbio de conteúdos entre diferentes plataformas, com o objetivo de expandir uma
narrativa, um produto publicitário e assim alcançar um maior público, inserido em classes
sociais e faixas etárias diferentes. Com o movimento transmídia e crossmedia, sem dúvida
nenhuma, ampliam-se as possibilidades de interação, sendo que o conteúdo é mostrado em
diferentes facetas.
No entanto, a transposição de conteúdos web para a TV Digital não se restringe apenas
a uma questão tecnológica e não deve ser vista como uma mera “troca de lugar”, como se a
TVDi tivesse as mesmas condições da web. Conforme nos aponta Liang (2009), existem
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
66
particularidades na TVD que ainda são questões em aberto e precisam de muita pesquisa para
ganhar usabilidade avançada e aplicabilidade.
2.5 Interface entre web e TV Digital: proposta de diálogo
Este tópico retoma um dos objetivos centrais do trabalho apresentado neste artigo: a
elaboração de uma proposta transmídia entre web e televisão digital interativa (TVDi), que
vise apoiar atividades de mídia-educação, que versem, sobretudo, sobre a linguagem
audiovisual e cinematográfica.
Considerando os estudos sobre a televisão digital, o sistema SBTV, o T-Learning e o
mapeamento das dificuldades para a implantação de uma televisão realmente interativa,
pensou-se em como o ambiente virtual de aprendizagem (AVA) Moodle, poderia ser
combinado com outra plataforma, no caso, a televisão digital, em atividades de formação de
professores.
Apesar de particularidades e características próprias, é possível combinar mais de uma
plataforma em um curso a distância, como o Moodle e a televisão digital? Para Kearsley e
Moore (2007), é preciso analisar as mensagens educacionais a fim de determinar melhor a
combinação de mídia e tecnologias necessárias para obter um aprendizado com qualidade.
Assim, a seleção de uma tecnologia ou combinação de tecnologias deve ser determinada pelo
conteúdo a ser ensinado, quem deve ser ensinado e onde o ensino ocorrerá.
A internet, sem dúvida, contribuiu para novas formas de se comunicar e, por
conseguinte, para novas ferramentas, bastante úteis a essa modalidade de ensino. O Moodle,
por exemplo, é o AVA indicado pelo MEC/Seed para utilização nos cursos a distância, através
dos projetos UAB e e-Tec Brasil. Este AVA tem ferramentas e princípios pedagógicos
apoiados na concepção construtivista de aprendizagem (ALVES, 2011).
Embora com tais tecnologias, a EaD mediada pela web ainda encontra desafios
significativos. Os polos municipais nem sempre são de fácil acesso aos alunos, sendo que este
aspecto é agravado quando se considera que muitos desses alunos ainda não possuem
computadores para a execução das atividades e esclarecimento de dúvidas (SILVA; NUNES,
2010). Além disso, nem sempre há disponível uma eficiente conexão com a internet.
Deste modo, há de se pensar em outros meios de comunicação que facilitem o diálogo
entre o aluno e sua instituição de ensino. Dentre estes meios, a TV é apontada como
tecnologia acessível e largamente difundida entre a população. Como indica Becker et al.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
67
(2005), na maioria dos casos, a televisão é a única fonte de informação e de cidadania do
brasileiro. A TVDi surge, assim, como uma boa alternativa a ser incorporada à educação.
“Através dela fluem tanto dados, como voz e vídeos, e ainda possui o grande diferencial de
permitir a interatividade” (SILVA; NUNES, 2010, p.2).
Assim, é possível utilizar os recursos da TVDi para fornecer aos alunos lições, vídeos,
exercícios, entre outros materiais didáticos, além de poder disponibilizar ferramentas
síncronas e assíncronas para comunicação e para apoio ao processo de ensino/aprendizagem.
Essa integração entre diferentes plataformas se encaixa perfeitamente em uma proposta
transmídia, que ao invés de tentar transpor conteúdos, tenta combinar conteúdos, tirando
proveito do potencial de cada mídia e tecnologia, que dialogam entre si. Dessa maneira, o
aluno também tem contato com variadas tecnologias e mais opções de acesso e aprendizagem.
Assim, “uma alternativa para os cursos que se baseiam em AVAs é trabalhar a integração
destes ambientes à TV Digital, disponibilizando seus conteúdos através da televisão” (SILVA;
NUNES, 2010, p.2).
É sobre essa forma diferente de educar, convergente e sob a ótica transmídia, que
baseamos a possibilidade dos suportes multimídia poderem contribuir para diversos tipos de
aprendizagem. A combinação entre várias mídias pode ser vista como algo muito positivo,
visto que observamos uma presença muito forte do rádio, da televisão, do computador, do
celular e outros suportes multimídia no cotidiano de crianças, adolescentes e adultos (REGIS;
TIMPONI; ALTIERI, 2011).
O próximo tópico, “Metodologia”, volta a atenção para apresentar a formulação
metodológica que deu bases para o desenvolvimento do protótipo em questão desta pesquisa.

Desenvolvimento da aplicação interativa
Foi utilizado o próprio Power Point para simular a criação de uma aplicação interativa
para a TV Digital, em formato de protótipo, ou seja, um tipo de experimento com
demonstração das funcionalidades contidas nas aplicações antes que as mesmas possam
efetivamente ser colocadas em produção.
O curso combinado ficou intitulado “Educação para a linguagem audiovisual”, voltado
para o público-alvo da pesquisa: docentes em língua portuguesa em formação inicial (ou
continuada).
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
68
Para viabilizar o curso, foi proposta a criação de duas bases: um ambiente virtual de
aprendizagem mediado pela televisão digital e um portal de interação pela internet, que pode
ser o Moodle, permitindo assim o diálogo entre os alunos, o professor e tutores.
Essas atividades seriam tanto coletivas em sala de aula, podendo servir de apoio para
atividades a distância.
Importante ressaltar que o ambiente virtual de aprendizagem para TVDi trabalharia
nos limites da interatividade local, uma vez que só seria possível acessar os dados e
informações que já estariam programados no set-top-box. Embora essa possibilidade seja
limitada, tal opção justifica-se por ainda não haver no Brasil o desenvolvimento esperado do
canal de retorno para a TVD, recurso que permitiria uma interação mais “avançada”.
Aliado a isso, há a proposta do diálogo com um ambiente virtual de aprendizagem
mediado pela internet, mais especificamente pelo AVA Moodle. Através deste ambiente, os
alunos poderiam interagir através de fóruns, wikis, responder a enquetes, enviar materiais à
emissora/central de produção de conteúdos etc.
A metodologia para o desenvolvimento das atividades que compõe o conteúdo do
aplicativo teve como referência fundamentos da área de estudo da media literacy, através de
seis técnicas pedagógicas específicas, baseadas em Buckingham (2003): análise textual,
estudo do contexto, análise de conteúdo, estudo de caso, tradução (de um livro para um filme,
por exemplo) e simulação-produção. Para fundamentar o estudo da linguagem audiovisual e
cinematográfica, foram usados autores como Eisenstein (1990) e Dancyger (2003). As
atividades desenvolvidas no protótipo seguem princípios da aprendizagem colaborativa e
construtivista, vistas em Freire (2001a e 2001b).
3.1 Detalhamento do protótipo para TVDi
Para o curso “Educação para a linguagem audiovisual”, foi proposta a divisão do
conteúdo em cinco módulos sequenciais: “Introdução à mídia-educação”; “Planos e ângulos”;
“Sonoplastia”; “Gêneros e audiência”; “Experiência audiovisual”, além de tópicos
complementares “Vídeos-discussão” e “Biblioteca”. Seguem alguns exemplos de módulos e
suas respectivas interfaces.
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69
Figura 1: Interface de introdução
Fonte: do autor
A primeira tela do curso apresentaria a divisão por módulos. Para acesso ao conteúdo
de cada um deles, o cursista caminha pela tela, com as setas do controle remoto. Ao passar
sobre cada item, há um pequeno texto explicativo, que descreve o conteúdo a ser encontrado.
Em “Introdução à mídia-educação”, o conteúdo seria um vídeo pedagógico trazendo
conceitos e entrevistas com especialistas sobre a área. Em seguida, o conteúdo pediria aos
alunos a responderem uma enquete pelo Moodle sobre a vídeo-aula que assistiram. Os
resultados dessa enquete poderiam ser repercutidos pela própria televisão digital, que
apresentaria um especialista comentando as respostas, que poderiam ser mostradas com o
apoio de infográficos. Exemplo:
Figura 2: Tela “Introdução à mídia-educação”
Fonte: do autor
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
70
No módulo “Planos e ângulos”, o professor poderia tirar proveito da qualidade de
imagem da TVD para explorar o estudo da linguagem audiovisual e das sessões de vídeo. Os
alunos poderiam interagir com a televisão podendo assistir a uma mesma cena a partir de
diversos ângulos de câmera. Isso poderia explicar os movimentos de zoom, “plongée”
(ângulo em que o espectador vê a cena de cima para baixo) e “contre-plongée” (ângulo que o
espectador vê a cena de baixo para cima). Poderiam ainda ser trabalhados os planos: geral,
médio, entre outros. Por exemplo:
Figura 3: Exemplo de interface módulo “Planos e Ângulos”
Fonte: do autor
No Moodle, os alunos poderiam analisar vídeos de trailers de cinema, ou outros tipos,
e postar em fóruns uma análise sobre os ângulos e planos que aprenderam.
Em “Experiência audiovisual”, os alunos seriam estimulados a produzirem seus
próprios vídeos conforme o conteúdo visto até aqui. No ambiente de TVDi, poderia se
projetar uma reportagem mostrando como acontecem produções de cinema: elaboração do
roteiro, funções desempenhadas etc. A partir daí, os cursistas elaborariam seus roteiros de
pequenos curtas audiovisuais, definindo elementos da linguagem, gênero, audiência a ser
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71
atingida etc. Após as produções concluídas, os cursistas enviariam via Moodle seus arquivos
de produções, já editados, para que um vídeo mediado pelo canal universitário da TVDi
pudesse ser elaborado posteriormente, logo após receber as produções. Um especialista
poderia analisar cada vídeo produzido e na plataforma Moodle a análise poderia ser feita
através do fórum de maneira coletiva.
Figura 4: Exemplo de interface do módulo “Experiência audiovisual”
Fonte: do autor
“Vídeos-discussão”: Item integrante ao curso em que fosse aberto um canal de
comunicação entre os cursistas e especialistas que produzem o curso em TVDi. Na ocasião, os
estudantes de licenciatura enviariam dúvidas, sugestões e críticas, que seriam respondidas no
ambiente da televisão digital. Um ponto fundamental é que o vídeo de respostas fosse gravado
sempre em um período posterior ao início dos estudos da turma, para que os cursistas tenham
condições de enviar suas dúvidas e reflexões. Esses vídeos ficariam à disposição
continuamente, para serem baixados sob demanda a qualquer momento pelo cursista.
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Figura 5: Interface de “Vídeos-discussão”
Fonte: do autor
“Biblioteca”: Item integrante ao curso, que poderia ser acessado pela televisão a
qualquer momento pelos cursistas. Este módulo reuniria todos os arquivos de áudio, texto,
vídeo e imagem, além de tutoriais, para serem acessados instantaneamente ou baixados. A
biblioteca seria abastecida tanto pelos idealizadores do curso quanto pelos próprios cursistas,
que poderiam submeter materiais extras.
Figura 6: Itens da “Biblioteca”
Fonte: do autor
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73

Considerações finais
Entre documentos legais que dão base para o trabalho com os meios de comunicação,
encontramos a Proposta Curricular Nacional (PCN) de Língua Portuguesa do Ensino
Fundamental. Nela, enfatiza-se a necessidade de a escola perceber a centralidade dos meios de
comunicação e suas influências: “A presença crescente dos meios de comunicação na vida
cotidiana coloca, para a sociedade em geral e para a escola em particular, a tarefa de educar
crianças e jovens para a recepção dos meios” (PCN, 1998, p. 89). O desenvolvimento deste
projeto partiu, inicialmente, desta preocupação curricular em provocar essa integração de
mídias às práticas pedagógicas.
Com a experiência transmídia, chegou-se a conclusão de que estas duas plataformas
podem ou devem ser combinadas numa estratégia de educação transmídia, no sentido de que
um curso ou conteúdo educacional pode permear diversas plataformas, de forma que uma
complemente a outra numa visão integradora. Assim, o conteúdo, ao percorrer por mais de
uma plataforma, recebe de cada mídia uma contribuição especial. A consideração é de que
este diálogo seria viável e potencializaria o aprendizado da linguagem audiovisual.
A alta qualidade de imagem e som, possibilidade de escolher ângulos diferentes de
uma mesma cena ou imagem, o fato de poder rever os conteúdos, assistir a vídeos etc.
combinados com fóruns, enquetes e wikis da plataforma Moodle: todos estes recursos
integrados e que dialogam entre si poderiam promover uma aprendizagem mais completa e
multimídia. As dificuldades que limitam a televisão digital quanto à interatividade são
percebidas principalmente pela falta de definição de um canal de retorno. Além disso, a
interface, design e linguagem são outros aspectos que deverão ser melhor desenvolvidos.
Com o desenvolvimento de um protótipo, o estudo reforçou o potencial da
TV digital interativa para a educação e para os educadores. Seu uso pode aumentar as
oportunidades de aprendizagem em casa, especialmente como alternativa à utilização de
computador com acesso à Internet. A TVDi tem papel na superação da exclusão digital e se
mostra como ferramenta importante para educação, devido a sua popularidade, fácil aceitação
em sociedade. Contudo, há a necessidade de produção de conteúdo educativo específico para
esta tecnologia, assim como mecanismos eficientes para armazenar e recuperar, criar e
disponibilizar recursos tecnológicos, montados sobre uma base de educação e renda mínima,
familiar, para que a inclusão social se concretize (MATOS; JULIÃO; SANTOS, 2007).
De acordo com Castro (2008, p.36), na universidade, “a formação de educadores deve
articular pesquisadores em áreas transdisciplinares para EaD voltadas a diferentes plataformas
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digitais, principalmente à TV Digital”. Isso depende de uma mudança curricular, que passe a
incluir o uso de diferentes tecnologias digitais e a focar o desenvolvimento de novas
habilidades que contemplem as TIC e a convergência digital. Ao desenvolver planos globais
de educação para EaD, assim como para projetos educacionais que incluam as TIC, governos,
sociedade civil, universidades e outras entidades devem levar em consideração a tendência da
integração entre as mídias. Dentro de uma proposta transmídia, deve-se incentivar a produção
de conteúdos digitais que incorporem diferentes plataformas, de uma maneira que elas
dialoguem entre si.
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ARTIGO
AS RÁDIOS FM DE SÃO LUÍS NO CENÁRIODA DESMATERIALIZAÇÃO
DA MÚSICA
Paulo PELLEGRINI 18
Resumo: A migração da música dos formatos físicos como LP e CD para arquivos digitais
caracteriza sua desmaterialização. Este fenômeno tem exercido impacto não somente nas
estratégias dos artistas e na forma como o ouvinte lida com essa arte, mas também na rotina
dos meios de comunicação, especialmente o rádio. Este artigo traça observações sobre a
relação entre o rádio e a música desmaterializada. Busca-se apontar aspectos tangentes às
mudanças, adaptações e impactos sofridos pelo rádio nesse cenário. Estabelece-se como
objetos as rádios Mirante FM, Difusora FM e Universidade FM, de São Luís (MA). Abordase a relação entre rádio e música sob uma perspectiva histórica, no Brasil e no Maranhão.
Palavras-chave: Desmaterialização, Música, História, Rádios FM de São Luís, Impactos
Abstract: The migration of the music from the physical formats such as LP and CD to digital
files characterizes its dematerialization. This phenomenon has exercised impact not only at
the strategies of the artists and at the way the listener deals with this art, but also at the
routine of the mass media, specially the radio. This article traces observations about the
relation between radio and dematerialized music. It intends to point tangent aspects to the
changes, adaptations and impacts suffered by the radio. It stablishes as objects the station
radios Mirante FM, Difusora FM and Universidade FM, from São Luís (MA). It boards the
relation between radio and music under a historical perspective, in Brazil and in Maranhão.
Keywords: Dematerialization, Music, History, FM Radios from São Luís, Impacts
1. Introdução
A progressiva migração das músicas dos formatos físicos como LP e CD para arquivos
de computador tem alterado não só a forma como o ouvinte lida com essa arte, como também
as estratégias de produção e divulgação por parte dos artistas.
18
Jornalista graduado pela Universidade Federal do Maranhão, mestre em Cultura e Sociedade, professor do Curso de
Comunicação Social da Faculdade Estácio de São Luís. Link para Plataforma Lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4299539J1. E-mail: [email protected]
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Mas há uma terceira ponta desse processo que também teve de se adaptar ao fenômeno
da desmaterialização da música: os meios de comunicação, especialmente o rádio.
Este artigo pretende traçar observações sobre a relação entre rádio e música
desmaterializada, apontando aspectos tangentes às mudanças, adaptações e impactos sofridos
por este veículo nesse cenário. Para tanto, foram escolhidas como objeto de análise três
emissoras FM de São Luís (MA): as rádios Difusora, Mirante e Universidade.
O objetivo desta reflexão é conhecer como essas emissoras têm lidado com a cada vez
maior diminuição de produções musicais nos formatos físicos e saber como a música tem
chegado às rádios, uma vez que intermediários como representantes de gravadoras deixaram
de exercer a atividade.
A metodologia empregada consistiu em pesquisa de campo e observação direta nas
três emissoras escolhidas como objeto, entrevistas individuais com os profissionais que lidam
diretamente com a aquisição de músicas em cada uma das rádios pesquisadas e revisão
bibliográfica sobre temas como desmaterialização da música, a relação constituída
historicamente entre rádio e música e a trajetória da música no rádio maranhense.
2. A desmaterialização da música
A desmaterialização da música é um fenômeno atrelado ao ambiente da cultura digital.
Trata-se da migração do conteúdo de suportes físicos tradicionais (discos e fitas) para aparatos
tecnológicos que lidam com informação digital (computadores, celulares, smartphones,
tablets, notebooks, netbooks, tocadores de mp3/mp4).
Este fenômeno tem início com a própria materialização da música, ou seja, os
processos de gravação e prensagem que marcaram a consolidação da indústria fonográfica ao
longo do século XX. Na civilização ocidental, a escrita musical pode ser considerada a
primeira etapa deste processo, cabendo às partituras e ao piano, como instrumento reprodutor,
a possibilidade da disseminação em maior escala, antes do advento das gravações (DIAS,
2008, p. 37).
A invenção do fonógrafo, por Thomas Edison, em 1878, abriu caminho para que a
audição musical se tornasse uma experiência mais independente. Em 1888, o alemão Emile
Berliner aperfeiçoou o conceito do fonógrafo ao desenvolver um novo aparelho toca-discos
com ranhuras, o gramofone. O desenvolvimento do fonógrafo e do gramofone permitiu ao
apreciador musical, pela primeira vez, a possibilidade de ouvir música materializada.
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O negócio fonográfico já era, nos primeiros anos do século XX, consideravelmente
rentável. O tenor italiano Enrico Caruso fez sua primeira gravação com qualidade em 1901 e
teve seu primeiro milhão de discos vendidos em 1904. Só com venda de discos, ganhou dois
milhões de dólares até o ano de sua morte, 1921 (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 182).
A indústria fonográfica rapidamente consolidou-se como “braço” musical da indústria
cultural, na medida em que estabeleceu a música enquanto mercadoria, cuja “capacidade de
sensibilizar as pessoas pode levar a reações do mais largo espectro: da angústia ao
divertimento, do questionamento à passividade, da liberdade à clausura” (DIAS, 2008:35).
Através da indústria do disco, a música deixou de ser obra de arte de única execução, em
espaços limitados e excludentes, para entrar na casa das pessoas pelos aparelhos reprodutores
como tocadores de discos e fitas, pelo rádio e pela televisão.
Mais do que isso, a capacidade da indústria musical de alcance em nível planetário, fez
com que música, música gravada e música gravada pela indústria fonográfica praticamente
se tornassem sinônimos.
Entre o fonógrafo e o CD-player, diversas tecnologias nortearam os rumos da indústria
fonográfica, constituindo-se não só em parâmetros técnicos deste modelo, mas também como
condicionantes do mercado, ao estabelecerem os formatos de produção e consumo.
Na década de 1920, aconteceu a primeira inovação após a invenção do fonógrafo e do
gramofone, o advento das gravações elétricas, em substituição aos gravadores mecânicos,
novidade saudada por Eduardo Vicente como “a base tecnológica para todos os grandes
desenvolvimentos tecnológicos, tanto no que se refere à mudança na velocidade de rotação
dos discos, quanto à criação da estereofonia e dos recursos do high fidelity [alta fidelidade]”
(VICENTE apud DIAS, 2008, p. 39).
A adoção do microssulco19, a partir de 1948, contribuiu para a melhora na qualidade
da gravação e também para que o tempo de duração do disco subisse de quatro para trinta
minutos. As gravações passaram a ter dois formatos que se tornariam consagrados: o de 33
rotações por minuto (rpm), instituído pela CBS; e o de 45 rpm, criado pela RCA. É a fase do
surgimento dos discos de vinil, em substituição aos antigos discos de goma-lasca de 78 rpm.
Diante do novo tempo possível de gravação, os produtos musicais também sofreriam
modificações no seu formato. Para aproveitar o maior espaço disponível, as músicas passaram
a ter tempo de duração padrão, em torno de três minutos. Esta tendência se imporia na década
19
Ranhuras ultrafinas, em forma de V, onde é registrada no disco a gravação de uma trilha sonora.
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80
de 1950, quando se inicia a internacionalização da indústria fonográfica, através da instalação
de filiais em diversos países.
O aumento da capacidade de armazenamento de músicas no vinil para até quarenta
minutos (divididos em dois lados de vinte minutos) e o investimento em capas atrativas, com
grandes fotos e imagens coloridas, despojadas e psicodélicas, ajudaram a consolidar o
conceito de long-play (LP). Esse formato contribuiu para a disseminação da ideia de que o
artista é mais importante que o disco, pois é a imagem dele que se sobressai na capa,
juntamente com seu nome, enquanto as músicas propriamente ditas estão sob a embalagem, e
só podem ser conhecidas quando o produto é desembalado.
Nos anos 1980, o compact-disc (CD) transformou o panorama fonográfico, pois, por
possuir formato diferente do LP, gerou a necessidade no ouvinte da compra de um novo tipo
de aparelho reprodutor, o CD-player. Enquanto foram vendidos seis milhões de unidades de
CD em todo o mundo em 1983, o número subiria para 1,9 bilhão em 1995 (DIAS, 2008, p.
111). O CD popularizou-se devido a diversos fatores. O maior deles foi o investimento da
indústria, que passou gradativamente a retirar os LPs do mercado e oferecer os mesmos
produtos musicais em CD, forçando os apreciadores musicais a migrarem para o novo
modelo. O CD também se popularizou por cumprir a promessa de maior capacidade e clareza
sonora. O som sem chiados passou a ideia de que os vinis eram coisa do passado.
No entanto, a indústria fonográfica passaria a sofrer o impacto de uma revolução
silenciosa, a conversão gradativa das músicas materializadas em disco ou fitas para arquivos
digitais. É o que se convencionou chamar de desmaterialização da música.
A digitalização é o vetor tecnológico que possibilita este fenômeno. No entanto,
música desmaterializada e música digitalizada não são necessariamente sinônimos. Apesar de
toda música desmaterializada se processar no ambiente digital, a música encontrada em
tecnologias físicas como CD e DVD, por exemplo, também é digital, mas é materializada.
Além disso, a desmaterialização da música pode não se referir somente aos casos de
conversão de faixas de tecnologias físicas para o computador, mas também aos casos de
músicas gravadas e disponibilizadas somente nas redes, sem terem passado pelos suportes
físicos, quando, pode-se dizer, a música já nasce desmaterializada.
Tecnicamente, a música se desmaterializa quando o suporte físico em que ela está
inserida, seja CD, LP, DVD ou fita K7, é conectado ao computador e submetido à cópia. As
mídias analógicas como LP e fita K7 são gravadas pelo computador em tempo real, através de
programas como Samplitude, Cubase, ProTool, Sound Forge, Nuendo ou Vegas. A operação é
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81
semelhante à que ocorre com os gravadores tradicionais. Os programas simulam uma tela em
que o comando Rec (gravar) pode ser acionado enquanto a música é executada pelo aparelho
físico (toca-discos ou toca-fitas). No caso do CD e do DVD, por já operarem em linguagem
digital, os sotfwares podem extrair as faixas desejadas em segundos, sem a necessidade da
audição.
Dentre os formatos de áudio surgidos no processo de desmaterialização da música, os
mais comuns são o Windows media audio (wma), o wave form audio format (wav) e o MPEG
½ audio layer 3 (mp3). Há ainda a extensão FLAC (Free lossless audio codec, ou
codificador/decodificador livre de áudio sem perdas). A diferença entre eles está no nível de
compressão utilizado. Destes, o mp3 apresenta o maior nível de compressão e o FLAC o
menor. O nível de compressão é inversamente proporcional à qualidade do áudio. Quanto
maior a compressão, menor a qualidade.
O mp3, desenvolvido em 1987, sofre perda na qualidade de áudio em comparação com
o CD físico, com a extensão digital wave e, principalmente, com as extensões FLAC porque
seu processo de compressão descarta as freqüências de áudio que o ouvido humano não
consegue perceber. “O princípio do funcionamento básico do mp3 é buscar num sinal de
áudio normal, como arquivo wave, todos os sinais redundantes e irrelevantes que não
sensibilizam nossa audição, ou seja, ele considera apenas a faixa de áudio que o ouvido
humano consegue identificar” (LACERDA, 2001, p. 4).
Apesar disso, o mp3 é o formato mais popular de música desmaterializada. Isso ocorre
porque, ao apresentar menores taxas de compressão, tal formato proporciona diminuição no
tamanho do arquivo (facilitando o armazenamento), otimiza seu tráfego pelas redes e opera
em alta velocidade de carregamento e descarregamento.
3. O rádio e a música
A hegemonia da indústria fonográfica durante o século XX, como sistema
possibilitador da produção musical em larga escala e para grandes públicos massificados, tem
relação direta com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa em nível global.
Pelo rádio, pela televisão, pelo cinema e pela publicidade, a música gravada chegou a todos os
cantos, tornando o mercado a grande referência para os rumos da produção, e o consumo
(compra e usufruto) passou a ser aceito como “categoria última para se medir a relevância dos
produtos culturais” (ORTIZ apud DIAS, 2008, p. 56).
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
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Pode-se dizer que a indústria do disco não teria a mesma força sem os meios de
comunicação, na medida em que estes correspondem ao mecanismo historicamente mais
comum de disseminação da música gravada. O rádio, especialmente, tornou-se o lugar
privilegiado dessa música, outorgando-se para si a prerrogativa dos lançamentos e da
qualificação do nível de aceitação de determinada faixa ou artista. Adorno já lembrava que “o
reconhecimento só é socialmente efetivo quando lançado pela autoridade de uma agência
poderosa (...) se alguma música é tocada sempre de novo no rádio, o ouvinte começa a pensar
que ela já é sucesso” (ADORNO, 1986, p. 135).
Mas a inserção de músicas nas estações de rádio não foi algo que ocorreu desde o
início. As inúmeras invenções que propiciaram o surgimento do rádio, a partir da década de
1890 (o descobrimento das ondas hertzianas e do funcionamento da antena, o telégrafo sem
fio, a válvula amplificadora, entre outros) preocupavam-se mais com o aspecto técnico dessa
então nova tecnologia, privilegiando a transmissão de sons básicos como a voz humana. A
história registra poucas experiências de transmissão musical neste período, como o solo de
violino de Reginald Fessenden, em 1906, e o concerto de Enrico Caruso em 1910.
Foi David Sarnoff quem vislumbrou a música no rádio, ainda em 1916, quando era
apenas um jovem técnico empregado na Marconi Company, ao sugerir a fabricação de
aparelhos receptores para se ouvir música em casa, as “caixas radiomusicais” (TAVARES,
1997, p. 39). A proposta foi recusada naquele momento, mas Sarnoff acabaria ganhando
notoriedade nas décadas seguintes pelo seu pioneirismo na forma de gerenciar o rádio e no
lançamento da televisão.
Na década de 1920, coube a Frank Conrad, técnico da empresa Westinghouse, a
iniciativa de transmitir programas com notícias lidas dos jornais e músicas tocadas
diretamente dos discos. “Aos poucos, as transmissões de Frank Conrad foram ganhando um
público de radioamadores que escrevia para solicitar suas músicas favoritas” (TAVARES,
1997, p. 39).
No Brasil, a música faz parte do rádio desde a primeira transmissão realizada no país,
durante a Exposição do Centenário da Independência, no Rio de Janeiro, no dia 7 de setembro
de 1922. A ópera “O Guarani”, de Carlos Gomes, foi transmitida por uma estação montada no
alto do Corcovado. Esta estação foi mantida pelos Correios e Telégrafos e, até o surgimento
da Rádio Sociedade, em 1923, irradiava regularmente uma programação que continha, entre
outras atrações, números musicais e de declamação de poesias.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
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Diversas rádios-clubes foram criadas no Brasil ao longo da década de 1920, de caráter
elitista – eram emissoras mantidas por aficionados de classes mais abastadas, que pagavam
mensalidades e elaboravam a programação que eles mesmos ouviam – e destinavam à música
parte considerável do espaço. “No início dos anos 30, com vinte e nove emissoras
radiofônicas instaladas e funcionando no país, a programação baseava-se em música, óperas e
textos instrutivos” (TAVARES, 1997, p. 55)
A autorização da exploração publicitária a partir de 1932 mudou o caráter do rádio
nacional, tornando-o progressivamente mais popular e um mecanismo de lazer e diversão. Ao
passo em que podiam arrecadar recursos financeiros com a veiculação de publicidade, as
emissoras investiram em equipamentos, na formação de quadros de funcionários e, mais
notável para o público, na contratação de músicos e cantores.
Um marcante programa de música popular foi o Programa Casé, de Adhemar Casé,
veiculado primeiramente pela Rádio Philips, e depois pelas rádios Sociedade, Transmissora
(que se tornaria Globo), Ipanema, Mayrink Veiga e Tupi, entre 1932 e 1951. Além de ter dado
espaço e lançado inúmeros artistas, o programa apostava em uma linguagem diferente para os
padrões iniciais, com as músicas sendo tocadas sem interrupção e a veiculação de anúncios
musicados, hoje conhecidos como jingles. “Até então, entre uma atração e outra, enquanto o
músico afinava seu instrumento, um silêncio constrangedor permanecia no ar. Casé implantou
a ideia de que ‘o show não pode parar’” (JUNG, 2004, p. 28).
O rádio brasileiro, ao longo das décadas de 1930, 1940 e 1950, tornou ídolos nomes
como Carmen Miranda, Aurora Miranda, Francisco Alves, Carlos Galhardo, Nelson
Gonçalves, Orlando Silva, Ivon Cury, Francisco Carlos, Bidu Reis, Emilinha Borba, Marlene,
Luiz Gonzaga, Carmélia Alves, Manezinho Araújo, Ademilde Fonseca, Anita Otero, Luiz
Vieira, Humberto Teixeira, João Petra de Barros, Isaura Garcia, Sílvio Caldas, Jorge Veiga,
Hebe Camargo, Nora Ney, Blackout, Augusto Calheiros, Odete Amaral, Zé Fidélis, Aracy de
Almeida, Ciro Monteiro, Paraguassu, Elizeth Cardoso, Tonico e Tinoco, Alvarenga e
Ranchinho e muitos outros.
O surgimento da frequência modulada (FM) exerceu impacto sobre a relação entre
música e rádio. O rádio FM é uma invenção do norte-americano Edwin Howard Armstrong,
em 1933. Esta modulação era considerada tecnicamente inviável até que Armstrong
encontrasse a faixa correta de espectro para sua utilização, com fidelidade sonora espetacular
e menor consumo de potência de transmissão e estática. O pesquisador Lawrence Lessig
descreve a primeira experiência de Armstrong de transmissão em FM, em 1935. “Armstrong
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sintonizou seu rádio em uma gama de estações AM, até que o dial parou em uma transmissão
que ele havia preparado (...). O rádio ficou totalmente silencioso, como se tivesse sido
desligado. Então, com uma clareza que ninguém naquela sala jamais havia ouvido em um
aparelho elétrico, produziu o som da voz de um locutor” (LESSIG, 2005, p. 26)
A invenção de Armstrong revolucionaria o rádio, mas, justamente por isso, encontrou
resistência para sua implantação. A nova tecnologia poderia levar as rádios AM à falência e,
sob pressão da RCA (presidida pelo também outrora pioneiro David Sarnoff...), o governo
norte-americano limitou ao máximo a adoção do FM, com redução de potência e proibição de
transmissão de programas de uma parte a outra do país. A RCA foi mais além: incorporou o
FM como padrão para a televisão, declarou inválidas as patentes de Armstrong e se recusou a
pagar-lhe royalties pela invenção. Após ter sido apresentado a um acordo que mal cobriria as
despesas com advogados, Edwin Howard Armstrong cometeu suicídio em 31 de janeiro de
1954.
A melhor qualidade do rádio FM é propícia para a execução de músicas. “As
emissoras AM estão mais vocacionadas ao ‘rádio que fala’, isto é, ao jornalismo e à prestação
de serviços, enquanto o FM se destina mais à música” (MARANINI, 2001, p. 65). A partir de
1970, as rádios FM tomaram fôlego no Brasil, inaugurando nova forma de se fazer rádio, com
estilo mais jovial, adoção de promoções e, principalmente, a busca da audiência pela música,
privilegiando os lançamentos nacionais e internacionais.
A chegada da FM ao Brasil coincidiu com um momento em que a indústria
fonográfica nacional atravessava um período paradoxal: por um lado, pujança econômica,
com crescimento médio de 15% ao ano durante a década de 1970 (MORELLI, 2009, p. 61),
acompanhando o crescimento acelerado do mercado de bens de consumo da classe média; por
outro, a falta de liberdade imposta pelo AI-5, que impediu que tal pujança ocorresse em prol
da música brasileira e criou condições para que a indústria do disco investisse muito mais em
lançamentos estrangeiros.
Em um primeiro momento, portanto, o FM nacional não revelou artistas brasileiros na
mesma proporção em que as rádios das décadas anteriores o fizeram. O cenário só se
modificou com o surgimento dos festivais promovidos por emissoras de TV, a inserção da
música nacional nas trilhas sonoras das novelas e o trabalho das gravadoras em divulgar os
artistas com quem começaram a ter contratos. O rádio passou a receber material promocional
diretamente das grandes companhias fonográficas. Rita Morelli aponta para uma inversão da
relação entre artista, gravadoras e público. “Ao invés de surgirem com um trabalho que
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despertasse a atenção do público e que consequentemente interessasse às companhias, parece
que os novos artistas da MPB interessavam antes a essas companhias e elas é que faziam a
apresentação do trabalho desses artistas ao público” (MORELLI, 2009, p. 76).
O rádio FM, juntamente com a televisão, ajudou a popularizar no Brasil dos anos
1970, 1980 e 1990 artistas como Roberto Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Moraes
Moreira, Gal Costa, Maria Bethânia, Baby Consuelo, Alceu Valença, Guilherme Arantes,
Fagner, Belchior, Zé Ramalho, Chico Buarque, João Bosco, Lulu Santos, Legião Urbana,
Engenheiros do Hawai, Titãs, Capital Inicial, Blitz, Skank, Jota Quest, Raimundos, Luiz
Caldas, Chiclete Com Banana, Banda Eva, Só Pra Contrariar, É o Tchan, Chitãozinho e
Xororó, Leandro e Leonardo, Zezé di Camargo e Luciano, Sandy e Júnior e outros tantos.
A relação entre a música e o rádio, tradicionalmente estabelecida, obedece a esquemas
que gravitam em torno da legislação e das rotinas desenvolvidas. Do ponto de vista legal, o
rádio, enquanto mecanismo de execução pública de música, submete-se à Lei do Direito
Autoral (Lei 9.610, de 1998), tendo que efetuar pagamento para a entidade arrecadadora e
enviar-lhe mensalmente a planilha com a programação musical executada. Quanto às rotinas,
as emissoras estruturaram-se em departamentos, entre os quais o de Programação Musical,
responsável por elaborar as tabelas que preveem que músicas devem ser executadas, um
trabalho que pode gozar de liberdade, mas também pode sucumbir a pressão das gravadoras
(às vezes disfarçada de mimos, como brindes e ingressos, outras vezes mais acintosa, como
pagamento de suborno) para que determinado artista toque mais vezes.
4. A música no rádio do Maranhão
A profusão de rádios-clube no início da década de 1920 incluiu o Maranhão, que
acabou se tornando um dos primeiros estados do país a inaugurar uma emissora de rádio. A
iniciativa se deu por conta de Joaquim Moreira Alves dos Santos, conhecido como Nhozinho
Santos, e Francisco Aguiar, que, em 1924, fundaram a Rádio Sociedade Maranhense. Antes do
Maranhão, apenas Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Ceará possuíam suas emissoras.
As emissoras que se seguiram (Timbira, fundada com o nome Difusora em 1941;
Ribamar, fundada em 1947; e Difusora, inaugurada em 195520) notabilizaram-se em seus
primórdios pela concorrência em torno do radiojornalismo e da cobertura esportiva, mas
20
Antes destas, ainda houve uma segunda emissora, a Rádio Clube do Maranhão, fundada por J. Travassos em 1940, que
fechou no mesmo ano e operava em caráter clandestino e experimental.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
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também realizavam programas de auditório ao vivo, responsáveis pela divulgação da música
de inúmeros nomes, entre eles Antônio Vieira e Lopes Bogéa.
Dos programas de auditório da Rádio Timbira, surgiu o grupo Vera Cruz, comandado
por Ruy Pisk e Maninho. Nos anos 1950, o elenco de cantores da emissora que pertence ao
Governo do Estado do Maranhão incluía nomes como Ernani Cavalcanti, Sérgio Miranda,
José Ribeiro, Newton Oliveira e Moacir Neves.
Ao fundar a Rádio Difusora, em 1955, Raimundo Bacelar contratou quase toda a
equipe da Rádio Timbira. Logo no início, a emissora tinha um convênio com a Rádio Record,
de São Paulo, na promoção do concurso de calouros “A Voz do Ouro ABC”. Coube à Rádio
Difusora trazer ao Maranhão uma tendência que se verificava em todo o país, a dos programas
de disc-jóqueis. Assim, o cearense Almir Silva comandou o “Bom Dia Maranhão” e os
“Turbilhão de Melodias”, que chegavam a alcançar 90% de audiência (FERREIRA;
GARCÊS, 2013, p. 35). Outros programas musicais de destaque na Difusora foram o “Quem
manda é você”, de José Branco, e “São Luís Hit Parade”, de Rayol Filho, durante os quais
ocorreram as inserções da antológica “Guerra dos Mundos”, no dia 30 de outubro de 1971,
quando a emissora fantasiou a invasão da Terra por marcianos para comemorar seu 16º
aniversário.
Embora privilegiasse os programas de variedades, policiais e esportivos, a Rádio
Gurupi – quinta emissora a ser fundada em São Luís, em 1962 – tinha uma das programações
musicais mais elogiadas, o que lhe valeu a cognominação de “Gurupi, a Musicalíssima”
(REGO, 2004, p. 47). Já na Rádio Educadora, fundada em 1966, a música se fazia presente
em programas como “Desfile de Sucesso”, “A Canção da Lembrança”, “Balanço do
Nordeste” e “O Sertão da Minha Terra”, posteriormente chamado de “Programa do Galinho”,
que está no ar até os dias atuais.
Na área da cultura popular, a radialista Helena Leite trocou a Educadora pela Timbira
em 1972 para comandar o “Canta Sertão”. Foi ela quem lançou no rádio a obra de Humberto
de Maracanã, em 1973. A comunicadora também se destacava por gravar os ensaios de
bumba-meu-boi para mostrar no ar, tarefa que também foi desempenhada nos anos 1980 e
1990 por Roza Santos e Jurandir Serra na Rádio Universidade. Desde 2011, Helena está de
volta à Educadora, onde apresenta o “Canta Maranhão”. Antes, passou 12 anos na Rádio
Capital (atual nome da Rádio Ribamar), quando comandou o “Show da Capital”.
O Rádio AM do Maranhão ainda apresenta programas marcantes como o “Clube da
Saudade”, de José Santos, pela Mirante AM, emissora fundada em 1988.
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Já a primeira emissora FM do Maranhão foi a Rádio Difusora, inaugurada em 1979. O
cronograma da fundação das emissoras seguintes apresenta: Mirante (1981), Cidade (1983),
Universidade (1986), Esperança (1990), São Luís (1991), Mais (2000), 92,3 (2010) e Senado
(2014). A Rádio São Luís FM sofreu três arrendamentos – em 1994, para a Antena Um (de
São Paulo), em 1997 para SomZoom Sat (do Ceará), e em 2001 para a Jovem Pan (SP). A
Rádio Mais FM foi arrendada à SomZoom Sat de 2001 a 2003. Em 2015, a Rádio Cidade
arrendou sua programação para a Igreja Pentecostal Deus É Amor.
Todas as emissoras FM citadas têm programação marcadamente musical, respeitando
o estilo adotado por cada uma, e construíram essa programação com aquisição de LPs e CDs
que vinham basicamente por três fontes: representantes de gravadoras, compras ou permutas
em lojas de discos e doações de ouvintes, voluntários ou dos próprios artistas. Em São Luís,
frequentavam regularmente as rádios os senhores Wellington (BMG), Maria Lúcia
(EMI/Trama) e Regina (Universal), como representantes dessas gravadoras.
Inúmeros programas fizeram ou ainda fazem história no universo das FMs do
Maranhão, dos quais se podem citar: “Mix 94”, com Renê Dumont, e “Clube do Rei”, com
Florisvaldo Sousa, ambos na Difusora FM; “Som das Praias”, com João Marcus, e “Acorde e
Recorde”, com Glaydson Botelho, na Mirante; “Momentos de Amor”, com Stênio Kawazaki,
e “As Mais Mais da Cidade”, com Silvana Lobato, na Rádio Cidade; “Santo de Casa”, com
Gisa Franco, e “Chorinhos e Chorões”, com Ricarte Almeida Santos, na Universidade; e “Na
Balada”, com Flávio Pastel, na Jovem Pan.
5. As rádios FM de São Luís e a desmaterialização da música
O rádio FM maranhense da década de 1980 seguia o padrão do FM no restante do
país: intrínseca relação com os lançamentos da indústria fonográfica e adoção de tecnologias
contemporâneas a essa período, ou seja, toca-discos, toca-fitas e cartucheiras para execução
de músicas e outros materiais gravados. Os locutores não podiam deixar o estúdio, sob o risco
de a música acabar e a emissora ficar “em silêncio”. Mesmo com a adoção dos CDs, nos
primeiros anos da década de 1990, a atenção tinha que se manter redobrada.
A automação veio com a adoção de um microcomputador no estúdio, que permitiu que
as músicas pudessem ser programadas em sequência, juntamente com as vinhetas e demais
arquivos, facilitando assim o trabalho do locutor. Mas, para isso, era preciso que a música dos
discos fosse extraída para o computador, configurando o processo de desmaterialização.
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De forma geral, o acervo musical das Rádios Mirante FM, Difusora FM e
Universidade FM começou a migrar para o computador a partir de 1997. As emissoras
possuíam discoteca com centenas de LPs e CDs, que passaram a ser menos utilizados. Por
volta de 2002, a Rádio São Luís FM, temendo deteriorização por falta de uso, ofereceu todo o
seu acervo de LPs para a Rádio Universidade, que não aceitou, justamente por não ter espaço
para armazenar, já que também possuía sua própria coleção.
O primeiro sinal de que a desmaterialização tinha vindo para ficar foi percebido
quando os representantes das gravadoras anunciaram às rádios que não trabalhavam mais para
a indústria fonográfica. Depois de ter apresentado faturamento, no Brasil, de 930 milhões de
dólares em 1995, quase três vezes maior do que em 1989 (DIAS, 2008, p. 110), o mercado de
discos passou a entrar em declínio a partir de 1999. “Com o desenvolvimento da rede mundial
de computadores, as gravações musicais se transformaram em dados e arquivos e passaram a
circular amplamente na Internet. A expansão desse processo coincide com a queda de vendas
e do faturamento da indústria fonográfica” (DIAS, 2008, p. 183).
“Naquele momento, imediatamente mudamos nossa estratégia. Adquirimos HD’s para
armazenar músicas. Tínhamos contato com grandes rádios do país, como Jovem Pan e Band,
para conseguir esse material”, conta Nilo Gomes, radialista que exerceu as funções de
programador musical e locutor da Rádio Difusora FM e hoje terceiriza seu estúdio para as
produções da emissora. Na Rádio Mirante FM, o impacto foi semelhante. Nessas duas rádios,
o trabalho com música tornou-se totalmente digital: da aquisição para o acervo à execução no
ar. “Quando o artista ainda traz música em CD, às vezes é mais rápido baixar essa mesma
música da Internet do que passar do CD para o computador” (GOMES, 2015). A única
emissora que se mantém até hoje revezando execuções musicais entre computador e CD é a
Rádio Universidade. O principal motivo é a falta de estrutura de pessoal para processar toda a
desmaterialização do acervo, segundo a programadora musical da emissora Cristina Lima de
Almeida (ALMEIDA, 2015).
Apesar de o início da década de 2010 mostrar estabilidade do mercado fonográfico em 2011, os números registraram crescimento na comercialização tanto de CDs como de
DVDs em 0,76% em relação a 2010 (ABPD, 2012) – as emissoras já não têm como voltar a
usar suportes físicos de forma predominante. “A questão é que nem se encontra mais CDplayer para comprar, está cada vez mais difícil tocar música em CD pelo rádio” (ALMEIDA,
2015).
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A principal fonte de música das três emissoras pesquisadas passou a ser a Internet. A
primeira implicação dessa mudança é a admissão de que tal modelo é tão vital que nem
mesmo a questão da legislação dos direitos autorais é plenamente respeitada. Apenas a
Mirante FM possui conta no ITunes (site que vende músicas de forma oficial), evitando ao
máximo cometer download21 diretamente de páginas não-oficiais. Mas essa facilidade trouxe
um segundo impacto, como lembra o produtor e locutor da Mirante, Nynrod Weber. “A
digitalização enxugou a equipe. Uma pessoa só dá conta de todo o processo: baixar, cadastrar,
deixar apto a executar. A demanda agora não é de pessoas, e sim de conhecimento” (WEBER,
2015). Esta realidade é compartilhada pela Rádio Difusora, que também mantém uma equipe
menor para dar conta dessas tarefas.
Por outro lado, a desmaterialização da música nas rádios tem significado maior
liberdade das emissoras na composição de suas tabelas de programação. As gravadoras
fizeram, ao longo de décadas, investimentos para que seus contratados tocassem no rádio, que
foram diminuindo conforme a música passou a chegar às emissoras pela Internet. Essa
situação é celebrada com otimismo por Nilo Gomes. “A desmaterialização democratizou a
relação entre rádio e artista. Antes, as gravadoras nos ofertavam apenas o que queriam que
fosse tocado, na forma de single. Hoje, podemos escolher o que quisermos na Internet”
(GOMES, 2015).
Na Rádio Mirante, a visão é mais reflexiva. “A Internet facilitou a vida para os artistas,
que se lançam na Internet, mas isso complicou para as rádios, pelo fato de a música ir direto
para o consumidor” (WEBER, 2015), o que contribui para a necessidade da revisão do papel
do rádio FM na divulgação da música e formação de opinião e gosto do público, afinal a
música está à disposição das pessoas antes de chegar às rádios.
Nesse sentido, a Mirante e a Universidade têm colocado no ar programas específicos
para atender o que Nynrod Weber chama de “demanda de Internet”, as músicas que são
lançadas na grande rede e que ganham notoriedade entre os fãs. A Difusora, por sua vez,
aposta nessa demanda em toda a programação, já que a base de sua playlist22 são os pedidos
de ouvintes. “É uma via de mão dupla. Da mesma forma que os ouvintes nos indicam o que
baixar, porque começam a pedir e a gente tem que atender, também rastreamos sites de
música para identificar o que está acontecendo. Geralmente, o ouvinte está à frente da rádio.
Nosso desafio é alcança-lo” (GOMES, 2015).
21
22
Descarregamento de arquivos
Lista de músicas selecionadas previamente para posterior execução no ar
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90
Por não ser uma emissora comercial e, por isso, ter tido historicamente relação menos
imbricada com as gravadoras, a Rádio Universidade vê na desmaterialização uma “porta
sempre aberta” (ALMEIDA, 2015), mas que, justamente por conta da infinitude da rede,
trouxe algumas desvantagens. “Hoje, temos muita dificuldade de encontrar a música que
interessa ao nosso público. Os grandes artistas de nossa programação estão desaparecendo e
seus substitutos estão espalhados na Internet numa proporção que é impossível acompanhar.
Pelo menos na época das gravadoras, os representantes traziam as novidades dentro do nosso
estilo, faziam esse trabalho para a gente”, conta Cristina Lima de Almeida, que ressalta que a
Rádio Universidade ainda realiza compras regulares de CD nas poucas lojas que restam, no
intuito de não se atrasar nos lançamentos – a Universidade foi a única rádio pesquisada que
revelou ainda comprar CDs.
O sistema de segurança do acervo desmaterializado é uma preocupação constante das
emissoras. “Um único comando pode apagar todas as músicas do sistema digital e a rádio
simplesmente ficar sem música para tocar. Nesse sentido, materializar a música novamente é
uma estratégia de segurança” (ALMEIDA, 2015). A Rádio Universidade copia para CD-R e
DVD-R todas as músicas que são extraídas de CD ou baixadas para a programação,
constituindo uma espécie de back-up (cópia reserva) físico. A Mirante deixa essa tarefa a
cargo do departamento de Tecnologia e Informática, que mantém tudo em back-up, mas de
forma totalmente digital. Tanto a Mirante como a Difusora exportam diretamente do software
utilizado no ar para o ECAD os dados sobre autoria das músicas. Já a Universidade gera
planilhas em PDF, pois seu software de programação não é compatível com o utilizado no ar.
Em acordo sobre o fato de o rádio FM ainda estar atravessando um período de
adaptação aos impactos da desmaterialização da música, as emissoras pesquisadas admitem
um cenário de incerteza em relação ao futuro da frequência modulada que privilegia a música
como seu principal material de trabalho.
Nilo Gomes acredita que, aos poucos, a informação deve tomar o lugar da música nas
rádios FM. “Acredito que o rádio dará mais espaço para a informação do que para a música,
mesmo a rádio FM. O FM foi criado como opção de entretenimento musical ao grande
número de informações que circulavam no AM. Mas isso porque não havia velocidade de
informação nos outros veículos. Hoje, a informação está em todos os lugares. O rádio FM
precisa se reinventar” (GOMES, 2015).
Nynrod Weber e Cristina Lima de Almeida possuem concepção mais otimista quanto
ao futuro da música do rádio FM. Para a programadora da Rádio Universidade, o ato de ouvir
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música no rádio é uma experiência insubstituível, especialmente em comparação com
computadores e celulares. “O rádio tem qualidade de som, dá para ouvir em ambientes
abertos, com todos os graves, médios e agudos. As mídias digitais tiram o peso da música.
Hoje em dia parece que é preciso ter um estúdio em casa para se ouvir música em todos os
detalhes, porque pelo celular não é a mesma coisa. Pelo menos o rádio ainda cumpre esse
papel” (ALMEIDA, 2015). Weber ressalta a relação sentimental das pessoas com a música.
“A música ainda toca as pessoas, mais que a informação. Possivelmente, o rádio FM vai se
focar em cada vez mais nichos: rock and roll, público GLS, músicos alternativos. A rádio
pode deixar de ser um prédio, toda uma estrutura, mas nunca vai acabar, enquanto houver
interesse por música” (WEBER, 2015).
6. Conclusão
Ainda são escassos os estudos tanto sobre os impactos da desmaterialização da música
quanto sobre as rádios FM de São Luís (MA), de forma geral. Este trabalho consistiu em uma
contribuição nessa seara, no intuito de propiciar mais reflexão sobre essas questões.
A pesquisa identificou que, assim que foi percebida a diminuição da chegada de
músicas em CD por meio das gravadoras, as emissoras não tardaram a adotar a Internet como
alternativa principal para suprir essa necessidade. No entanto, as observações de campo e as
entrevistas revelaram também que as rádios FM pesquisadas, mesmo se atualizando
tecnologicamente em tempo hábil, admitem fragilidade diante da velocidade dos lançamentos
e do conhecimento dos ouvintes.
O enxugamento das equipes de programação foi uma das consequências da adoção da
música desmaterializada, bem como o desenvolvimento do hábito de descarregamento de
arquivos gratuitos por sites não-oficiais, com exceção da Rádio Mirante FM. As emissoras
celebram o que consideram maior liberdade de acesso à música pela Internet, em
contraposição às sugestões das gravadoras, mas, pelo menos no caso da Rádio Universidade
FM, o excesso de material disponível nem sempre satisfaz as necessidades de programação. A
criação de cópias de segurança dos arquivos musicais é uma preocupação constante das três
rádios escolhidas como objeto desta pesquisa, mas a Universidade é a única que materializa as
músicas novamente em suportes físicos, como CD-R e DVD-R.
Por fim, a pesquisa demonstrou que, apesar de estarem adaptadas à desmaterialização
da música, as emissoras analisadas admitem viver um cenário de incerteza em relação ao
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
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futuro do rádio FM, especialmente pelo fato de que, com a disponibilidade de músicas na
Internet, o veículo tem sido cada vez menos um intermediário entre a gravação musical e a
audiência, que muitas vezes conhece os trabalhos dos artistas antes mesmo de as rádios os
terem em seu acervo.
REFERÊNCIAS
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Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
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ARTIGO
RUPAUL’S DRAG RACE E SEU FANDOM: um nicho em expansão
Rafael Ribeiro de Castro MORAES23
Resumo: Esta pesquisa tem como objeto de estudo o reality show Rupaul’s Drag Race,
produzido pela produtora “World Of Wonders” e exibido pela emissora de TV norte
americana “LogoTV”. O objetivo da pesquisa é analisar o programa como disseminador da
cultura drag através de sua repercussão no âmbito da internet através do surgimento de
fandons que reverberam seu conteúdo. A pesquisa terá como foco de análise dois fandons: o
“Rupauls Drag Race” da rede social Reddit e o grupo do Facebook, “Interior Illusions
Lounge”. Apresentando dois fóruns de internet que abordam o programa de televisão como
objeto de pesquisa, a cultura de convergência ao lado da cultura participativa (Jenkins, 2008)
são o foco desse estudo, que tem como perspectiva metodológica as técnicas de análise de
conteúdo (BARDIM, 1977) e netnografia (AMARAL, 2001, p.5).
Palavras-chave: Drag Queen; Reality Show; Fandom;
Abstract: This research aims to study the reality show Rupaul's Drag Race, produced by the
production company "World Of Wonders" and aired by North American TV station "LogoTV".
The research objective is to analyze the program as a disseminator of drag culture through it’s
impact within the Internet through the emergence of fandons reverberating it’s content. The
research will focus on the analysis of two fandons: The "Rupaul’s Drag Race", from the
Reddit social networt and the facebook group, "Interior Illusions Lounge". Featuring two
internet forums that approach the television program as a research object, the convergence
culture alongside the participatory culture (Jenkins, 2008) are the focus of this study, whose
methodological perspective the techniques of content analysis (BARDIM, 1977) and
netnography (Amaral, 2001, p.5).
1. Introdução
Os reality shows difundiram-se no começo dos anos dois mil por todo o mundo,
inclusive no Brasil, onde atraiu uma grande atenção do telespectador e ajudou emissoras a
bater recordes de audiência e arrecadação com publicidade. Apesar de não ser o gênero de
programa comumente mais consumido, os reality shows conquistaram seu espaço na televisão
mundial, ganhando adeptos das versões norte americanas de grandes franquias pelo no Brasil
23
Rafael Ribeiro de Castro Moraes, Graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense – UFF.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
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e no mundo principalmente através da internet. Incluídos no processo de convergência
midiática, esses programas são produzidos para televisão – alguns com votação popular – e
acabam também sendo consumidos através do compartilhamento informal de downloads. Essa
prática, na maioria das vezes ilegal, é responsável pela popularização de diversos produtos
estrangeiros e se torna cada vez mais comum entre internautas.
As serem compartilhados, esses conteúdos passam a ser discutidos, rebatidos,
exaltados e também ressignificados em forma de novos conteúdos. Tal procedimento, que se
desenrola em redes sociais, blogs ou fóruns, se estabelece no processo chamado cultura de fã
(JENKINS, 2008), que pode ser observado pela criação de “memes24”, campanhas para algum
candidato especial, trending topics25 no twitter, fanpages no facebook, além de muitas outras
possibilidades de apropriação e consumo desse produto cultural. Dessa forma, observa-se que
a televisão não é mais a única forma de se consumir produtos televisivos.
Jenkins (2008) assegura que o processo de convergência deve ser compreendido como
referência “ao fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, à cooperação entre
múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de
comunicação” (JENKINS, 2008, p.27). Contudo, o pesquisador explica que, apesar de
parecer, “a convergência não ocorre por meio dos aparelhos, por mais sofisticados que
venham a ser. A convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e em
suas interações sociais com outros.” (JENKINS, p.30), se estabelecendo como um fenômeno
não exclusivamente midiático, mas também cultural.
A pesquisa proposta se insere nesta prática, no âmbito contemplativo da “convergência
midiática e a consequente convergência e desdobramentos de seus fluxos de circulação e
consumo” (JACKS et al, 2011, p.3). Como objeto empírico deste fenômeno midiático, tendo
como objeto de estudo o reality show Rupaul’s Drag Race, exibido pela emissora a cabo
LogoTV. No Brasil, os direitos de exibição do programa pertencem ao conglomerado de mídia
Viacom, tendo sido exibido pelo canal pago VH1 até sua quarta temporada. Atualmente,
Rupaul’s Drag Race está disponível na plataforma online Netflix, onde se tornou um dos
conteúdos mais populares entre seus assinantes.
O enfoque, contudo, não se baseia no reality show em si, seu conteúdo ou processo de
produção, mas sim como se dissemina o seu consumo entre os fãs que o programa conquistou
24
Fenômeno em que uma pessoa, um vídeo, uma imagem, uma frase, uma ideia, uma música, uma hashtag, um blog
etc., alcança muita popularidade na internet.
25
Treding Topics ou TT's são uma lista em tempo real das palavras mais postadas no Twitter em todo o mundo.
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96
no Brasil pelo meio da internet. O propósito desta pesquisa é examinar a ocorrência do
conteúdo produzido sobre o programa em fan pages e fóruns voltados para esse tema e
mapeá-los de forma a entender a existência de um poderoso mercado de nicho voltado para a
cultura drag no Brasil.
2. Sobre Rupaul’s Drag Race e o valor da pesquisa
Rupaul’s Drag Race é um reality show de competição produzido pela produtora World
Of Wonders e exibido pela LogoTV desde fevereiro de 2009. Apresentado pela drag queen
Rupaul26, que desempenha também papel de mentor e fonte de inspiração para o conteúdo do
programa, o reality show busca a próxima drag queen “superstar”. O nome Drag Race é um
trocadilho entre os termos Drag Queen27 e Drag Race28 Atualmente possui duas temporadas
lançadas e mais uma em produção.
No programa, um grupo de drag queens (geralmente formado por quatorze
competidoras) são submetidas a um mini desafio e um desafio principal. Neles, elas
precisarão provar os mais diferentes talentos, como costura, maquiagem e atuação. Além
disso, cada episódio conta com um desfile temático na passarela principal, quando as
competidoras são julgadas pelo desempenho por um júri formado por Rupaul, seus amigos
Santino Rice e Michelle Visage e jurados convidados a cada episódio. No final, as duas drags
que se saíram pior nos desafios são submetidas à dublagem de uma música previamente
escolhida, quando deverão “dublar por suas vidas”, sendo uma delas eliminada.
Ao final de cada episódio, é exibido na sequencia o Rupaul’s Drag Race: Untucked,
programa realizado nos bastidores de cada programa no momento em que as participantes
esperam ser julgadas. Lá elas conversam entre si sobre a convivência no reality, desempenho
de cada uma nas provas, além da equipe preparar surpresas, como depoimentos de familiares
ou namorados das participantes.
No final, uma das drag queen vence o programa e é nomeada “the next drag
superstar”, ganhando um prêmio em dinheiro, mas principalmente, a exposição que o
programa proporciona. Contudo apesar da recompensa financeira ser tentadora, “a verdadeira
meta é dar-se a conhecer ao público, é expor-se para vender seus produtos (CD’s, livros,
26
RuPaul Andre Charles, nascido em 17 de novembro de 1960, mais conhecido como RuPaul. É uma drag queen, ator,
modelo, cantor Americano que se tornou conhecido na década de 90, quando passou a aparecer em uma série de
programas de variedade, filmes e álbuns musicais.
27
Drag Queen é como são chamados homens que se vestem de mulher com o intuito de expressão artística..
28
Drag Race é como se denomina o tipo de corrida automobilística com carros estilo dragster (veículos leves com motores
potentes).
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
97
fotos) e para ser chamado para novos trabalhos” (BOURDOUKAN, 2002). Nesse sentido,
Rupaul aproveita seu espaço como ninguém, usando o programa para promover a si mesmo e
também seus trabalhos musicais, livros, linhas de sapato e o que mais estiver produzindo.
LogoTV, emissora que transmite o programa, é um canal pequeno dentro do enorme
leque de variedades oferecido pela televisão à cabo norte americana. Ele, que tem como
público alvo a comunidade LGBT, conseguiu, ao transmitir o reality show, superar seus
próprios recordes. A segunda temporada, exibida em 2010, conseguiu ser o programa a ter
mais visualizações via stream29, acumulando 9,8 milhões ao final da temporada. Na quinta
edição, em 2013, a estreia atingiu 1,3 milhões de espectadores, aumentando em 136% as
atividades relacionadas ao show em redes sociais, se tornando a première mais assistida do
canal até então.30
Apesar de pequeno, comparado ao alcance explosivos que reality shows de
competição segmentada alcançaram imediatamente em suas estreias, como - Project
Runway31 e America’s Next Top Model32 - Rupaul’s Drag Race vem, temporada após
temporada, não só crescendo em sua audiência televisiva, mas causando também cada vez
mais repercussão. Indo ao ar num canal segmentado, o programa conseguiu êxito ao despertar
o interesse do público que mirou, mesmo que pequeno. É a chamada segmentação de
conteúdo, elucidada por Anderson (2006):
O estilhaçamento da tendência dominante em zilhões de fragmentos culturais
multifacetados é algo que revoluciona em toda a sua extensão os meios de
comunicação e a indústria do entretenimento. Depois de décadas de refinamento
da capacidade de criar, selecionar e promover grandes sucessos, os hits já não
são suficientes. O público está mudando para algo diferente, a proliferação
caótica e emaranhada de... bem, ainda não temos um termo adequado para esses
não-hits. Decerto, não são fracassos, pois, para começar, a maioria não buscava a
dominação mundial. (Anderson, 2006, p.7)
Em uma declaração para a imprensa, a vice presidente de programação da LogoTV
disse que “Rupaul’s Drag Race continua a ser um perene favorito dos fãs que aos poucos vem
29
PR Newswire. Disponível em: http://www.prnewswire.com/news-releases/logos-season-finale-of-rupauls-drag-raceburns-ratings-rubber-clocking-in-as-networks-highest-rated-and-most-watched-telecast-ever-92315264.html
30
The WOW Report. Disponível em: http://worldofwonder.net/season-5-rupauls-drag-race-highest-rated-premiere-inlogos-network-history/
31
Reality show de competição norte americano. Disputado entre estilistas, é apresentado pela top model alemã Heidi Klum
e foi exibido originalmente pelo canal a cabo Bravo entre 2004 e 2008. Atualmente está no ar na emissora paga Lifetime.
32
Reality show de competição norte americano. Disputado entre modelos, é apresentado pela top model Tyra Banks e foi
exibido originalmente de 2003 a 2006 pela emissora de TV a cabo UPN. Atualmente está no ar pelo canal pago The CW.
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98
se tornando um fenômeno da cultura pop, ampliando o número de espectadores.”33. Esse
fenômeno de crescimento, mais do que mensurado por números de audiência televisiva, via
stream ou até mesmo pelo monitoramento de compartilhamentos de torrents piratas, pode ser
observado por uma crescente comunidade de conhecimento, alimentada por pessoas com
interesse genuíno pelo universo.
Seria a LogoTV a única fonte de alimentação desse feito? Segundo Anderson (2006),
“a única grande área em crescimento acelerado é a Internet, mas nesse caso trata-se de um
oceano sem categoria própria, com milhões de destinos, cada um desafiando, à sua maneira, a
lógica convencional da mídia e do marketing" (ANDERSON, 2006, p.5).
Parte desse sucesso se deve ao fato de que as poucas pessoas que possuem interesse
em Rupaul’s Drag Race conseguiram se conectar através da internet. Juntos, destrincham o
universo do show, criando uma relação mais profunda com ele. Jenkins (2006) diz que “a era
da convergência das mídias permite modos de audiência comunitários, em vez de
individualistas” (JENKINS, 2008, p.55) e é sobre isso que se trata o constante aumento do
êxito do programa. Juntos, um pequeno grupo de pessoas conseguem ser mais fortes e até
mesmo serem capazes de atrair o interesse de mais outras.
O apetite dessa audiência é tamanha que garante que as ex-participantes do programa
ganhe status de celebridades cultuadas no meio, gerando materiais próprios (como vlogs,
álbuns de música e web shows), a criação de spin-offs34 e, no Brasil, de adaptações baratas do
programa.
Como se pode notar, a convergência de mídias trouxe uma nova realidade para o fazer
televisivo e seu consumo. Com novas formas de se assistir um conteúdo e fazê-lo circular, a
intenção dessa pesquisa é se arraigar-se nessa nova realidade e procurar abarcar a cultura de fã
e sua forma de se relacionar com as mídias, tendo como recorte o reality show Rupaul's Drag
Race.
3. Metodologia da Pesquisa
Tendo sido concretizada em ambiente online, a pesquisa foi atingida utilizando a
técnica de análise de conteúdo indicada por Bardim (1977), para espacializar e organizar o
conteúdo compartilhado pelos fãs do programa em grupos criados para essa finalidade. Tendo
33
Huffington Post. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/2014/02/17/rupauls-drag-race-seasonseven_n_4803146.html
34
Um novo produto de mídia derivado de uma ou mais obras já existentes.
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99
ainda um segundo método como dispositivo da pesquisa, a netnografia, que se distingue como
o estudo dos elos cultivados através de processos sociais contidos no espaço virtual, é a forma
mais indicada de se observar e estudar o conteúdo gerado em redes sociais, fóruns, blogs, sites
e assim “preservar os detalhes ricos da observação em campo etnográfico usando o meio
eletrônico para 'seguir os atores'." (BRAGA apud AMARAL; NATAL e VIANA, 2008, p.34).
Como ambiente da pesquisa netnográfica, foram analisados o Interior Illusions
Lounge (https://www.facebook.com/groups/InteriorIllusionsLounge/?fref=ts), um grupo no
Facebook formado com o intuito de reunir os fãs brasileiros e o fórum Rupaul’s Drag Race
(http://www.reddit.com/r/rupaulsdragrace/), frequentado por interessados no programa
oriundos de todo o mundo.
Os espaços foram acompanhados durante outubro, período considerado de baixa
temporada, uma vez que o reality é veiculado no primeiro semestre do ano. Contudo,
atividades entre os meses de fevereiro e maio de 2014 (referente ao período em que a sexta
temporada esteve sendo veiculada) foram analisadas de modo retroativo.
4. Circulação de informação no fandom de Rupaul’s Drag Race
Os dados gerados durante a exibição da sexta temporada de Rupaul’s Drag Race nos
dois ambientes foram analisados nos tópicos fixos para comentários de cada episódio. Com
treze episódios veiculados, o grupo Interior Illusions Lounge, que atualmente conta com
exatos 1.200 membros, tinha produzido 12.162 comentários. Com uma média de 943
comentários por episódio, o número é mais que o dobro da repercussão que a temporada
conseguiu no fórum do Reditt35 de Rupaul’s Drag Race. Com 10.873 membros, o fórum
produziu 5.939 postagens, uma média de 457 postagens por episódio.
A comunidade de
fãs brasileiros reunida no grupo Interior Illusions Lounge revelou ser mais produtivo que o
internacional durante a veiculação do programa.
Além de possuir maior interação, o grupo também colaborou entre si para descobrir
quais as drag queens que iam longe na competição e quais seriam eliminadas em cada
episódio. Através de análise de chamadas e VT’s do programa que mostravam o visual de
cada participante na passarela, os membros montaram e atualizaram semanalmente uma
35
Rede social com uma comunidade de fóruns onde os usuários podem votar no conteúdo postado. É comum que quem
acessa o Reddit interaja enviando links para conteúdo externo à comunidade, promovendo votações sobre quais histórias e
discussões são mais importantes.
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100
tabela, a batizando de “Tabela de Looks”. A prática do spoiling36, que “trata-se
fundamentalmente, de conhecimento coletivo, impossível de reunir em uma única criatura”
(LEVI, 1998, p.214-215), é uma prática incentivada no grupo, mas fica refém do material que
é liberado pela WOW Productions e LogoTV.
O fórum do Reddit, apesar de não possuir o mesmo engajamento, é beneficiado pela
superioridade numérica e também pelos membros serem oriundos de diferentes lugares do
mundo. A variedade de pessoas com diferentes conhecimentos possibilitam uma troca de
informações mais rica.
A nova cultura de conhecimento surge ao mesmo tempo em que nossos vínculos
com antigas formas de comunidade social estão se rompendo, nosso
arraigamento à geografia física está diminuindo, nossos laços com a família
estendida, ou mesmo com a família nuclear, estão se desintegrando, e nossas
alianças com estados nações estão sendo redefinidas. (JENKINS, p.56-57)
Lá, os spoilers começam em forma de especulação antes mesmo da veiculação das
temporadas. Membros com supostas ligações dentro da produção do show surgem com
informações sobre possíveis participantes, temas de episódios, jurados convidados, entre
outras curiosidades. Com o conhecimento de que as gravações da sétima temporada
aconteceriam em julho, membros começaram a monitorar as atividades de drag queens em
redes sociais e, se baseando naquelas que não tinham atividade online alguma, elegendo as
mais propensas a estarem confinadas na gravação do reality show.
Em agosto, um post do membro “chalkycandy”, que organizou as informações trazidas
por diferentes membros, gerou 971 comentários. Nele, especificava-se quem compartilhou os
dados. Tal postagem repercutiu nas dezenas de fan pages do programa, tendo ido parar
também no grupo Interior Illusions Lounge. Outros membros apareceram com possíveis
informações, tendo essas percorrido o mesmo caminho que as especulações anteriores. A
prática do spoiler, segundo Jenkins:
É a maneira mais democrática de produzir e avaliar o conhecimento. O spoiling
delega poder, no sentido literal de que ajuda os participantes a entenderem como
podem empregar os novos tipos de poder que estão surgindo da participação
dentro de comunidades de conhecimento. (JENKINS, p.59)
Com tantos esforços aplicados diretamente à caçada de elementos que o programa
poderá vir a apresentar a cada nota temporada, é possível concluir que os fãs de Rupaul’s
36
Significa estragar em inglês. “Spoilers dão desfechos antes das histórias começarem, e, podem, assim, diminuir o suspense
e prejudicar a fruição; de fato, como o termo sugere, os leitores se distanciam deles para evitar descobrir prematuramente
resoluções.” (LEAVITT e CHRISTENFELD, 2011, p.1).
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Drag Race são um público sedento por conteúdo. A WOW Productions e a LogoTV, além da
própria Rupaul, das ex-participantes e também outros empreendedores perceberam essa
demanda.
5. Um nicho em plena expansão
No mesmo ano da estreia da temporada inaugural de Rupaul’s Drag Race, um spin off
foi encomendado aos mesmo produtores. Em 2010 estreou o primeiro produto derivado do
reality, o Rupaul’s Drag U. Exibido por três temporadas no segundo semestre da programação
da LogoTV, o também reality show de competição contava com as ex-participantes do
programa original. Nele, as participantes ensinavam mulheres comuns a despertarem suas
divas interiores com a arte drag, tendo o resultado final julgado por Rupaul.
O programa acabou em 2012, dando sequência, logo em seguida, à uma edição
especial de Rupaul’s Drag Race. Intitulada de “All Stars”, a competição contava com as
figuras mais notáveis das quatro primeiras temporadas, que retornavam ao programa em busca
da cobiçada coroa.
Em 2013, Alyssa Edwards, uma das drag queens que ganhou mais notoriedade após
ser eliminada do show, revelou que a produtora World Of Wonders demonstrou interesse em
produzir um spin off em torno de sua figura. O projeto, também reality show, se focará no
estúdio de dança de Alyssa (aka Justin Johnson) no Texas e se chamará Beyond Belief37.
Enquanto o programa não estreia, a produtora mantém a imagem da drag queen em evidência
através de um web show chamado Alyssa Edwards’ Secret, uma série de sucesso que registra
entre quarenta e quase duzentos mil visualizações a cada vídeo novo.
No Brasil, pequenos empreendedores já perceberam o nicho formado ao redor da
reinvenção por Rupaul da cultura Drag Queen. A primeira investida brasileira aconteceu no
final de 2012, na TV Diário, de Fortaleza. Nela, foi desenvolvido pela travesti Lena Oxa um
quadro dentro do programa Ênio Carlos. Batizado de Glitter – Em Busca de Um Sonho38, dez
competidoras (drag queens, travestis e um gogo boy) competiam toda semana em provas
diversas, tendo a cada semana uma eliminada. No final, a vencedora teria direito de realizar o
seu sonho.
37
Huffington Post. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/2014/02/05/alyssa-edwards-beyondbelief_n_4732218.html
38
Folha de São Paulo. Disponível em: http://blogay.blogfolha.uol.com.br/2012/10/19/glitter-em-busca-de-um-sonho-e-oprimeiro-reality-gay-do-brasil/
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O quadro rivalizou na internet imediatamente. A qualidade trash da produção e o
carisma das participantes garantiu a visibilidade, com a ajuda de blogs com público LGBT
como Papel Pop39 e Katylene40. Memes e bordões foram criados no decorrer dos episódios,
sendo o vídeo do embate entre Rochelly Santrelly e Sangalo41 o ápice da popularidade do
quadro, com mais de duzentas mil visualizações, tendo diversas versões que chegam a superar
em até três vezes visualizações mais o número do original. O quadro ganhou uma segunda
temporada no primeiro semestre desse ano.
O segundo foi o reality show Bibas. Veiculado esse ano pela filiada da Band no estado
do Pará, sendo criado como um quadro dentro do programa Paranoia na TV, o elenco foi
formado por gays, travestis, drag queens e transexuais. Com uma abordagem parecida com
Glitte – Em busca de um sonho, ela competiam pelo prêmio final: uma moto rosa.. Segundo
os produtores do programa, “os 15 mil fãs no Facebook viraram 213 mil — e vieram de todo
o país”42.
O terceiro e mais recente caso foi a criação do Academia de Drags. Comparado
imediatamente a Rupaul’s Drag Race, o web show gravado pela produtora ASC estreou em
outubro. “Seria melhor se não parecesse um primo tão pobre de um reality bem estabelecido.
A comparação é inevitável”43, concluiu o jornalista Fernando Oliveira, que expressou com
exatidão as mesmas impressões que os membros do grupo Interior Illusions Lounge tiveram
sobre o programa. Apesar de ser apresentado pela drag Silvetty Montilla, famosa por
participações em programas de televisão, e contar com o estilista Alexandre Herchcovitch, o
programa não consegue entrar um produto bem acabado, possuindo pouca qualidade técnica.
Os problemas não impediram que Academia de Drags repercutisse pela internet. Em
um mês, o primeiro programa44 conseguiu 160 mil visualizações no Youtube, com 3.199
avaliações positivas contra 145 negativas. A estreia do programa garantiu também um maior
fluxo de postagens no grupo Interior Illusions Lounge comparado ao mês anterior.
Os promoters e casas de festas já perceberam a demanda por festas com a temática de
drag queen. No Rio de Janeiro, uma tímida e revigorada cena drag já chama atenção da
mídia:
39
Disponível em: http://www.papelpop.com/
Disponível em: http://diversao.terra.com.br/gente/blog-da-katylene/blog
41
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x35Fyk51Saw
42
Jornal Extra. Disponível em: http://extra.globo.com/tv-e-lazer/reality-show-bibas-reune-16-homossexuais-tem-umapitadinha-de-atrito-tipo-bbb-diz-apresentador-12176608.html
43
Portal R7. Disponível em: http://entretenimento.r7.com/blogs/mundo-da-tv/critica/bem-intencionado-academia-dedrags-e-versao-tecnicamente-pobre-de-rupauls-drag-race-20141013/
44
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=54fzppX_V2g
40
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O comportamento dos jovens cariocas faz parte de um movimento global de
inclusão e aceitação das drag queens em meios que antes elas não participavam.
No reality show da norte-americana Ru Paul,RuPaul’s Drag Race, 14 drags
disputam US$ 100 mil e um “suprimento gigantesco de maquiagem”. A austríaca
Conchita Wurst virou sensação com seu visual mulher fatal barbada e venceu o
Festival Eurovisão da Canção em 2014. No Brasil, Deena Love virou trending topic
no Twitter depois de sua aparição na estreia do programa The Voice. No horário nobre,
o ator Ailton Graça interpreta Xana Summer na novela Império. 45
Em São Paulo, aconteceu em maio desse ano, pela primeira vez, a performance de
uma drag queen que participou de Rupaul’s Drag Race. Jujubee, que ficou em terceiro lugar
na segunda temporada, se apresentou na boate Cine Joia. Trazida pela festa Recalque, o
evento46 da festa no Facebook teve mil e quatrocentas pessoas confirmadas. O sucesso foi
tamanho que as cidades de Porto Alegre e Recife também aderiram à tendência e organizaram
festas com a presença das ex-participantes do reality. Ao todo, cinco drags que passaram pelo
programa foram trazidas, três já foram anunciadas ainda para esse ano e mais uma para
janeiro de 2015.
6. Conclusão
Discriminada, a cultura drag ganhou uma nova vida com o advento de Rupaul’s Drag
Race. Lançando um olhar divertido e desmistificando este universo, o programa arrebatou
milhares de fãs devotos. Eles são um importante ingrediente para o sucesso crescente e
expansão não só dos programas veiculados pela LogoTV, mas também da cultura drag.
Construindo a sua própria cultura e identidade através da interação social
(Recuero, 2009) e da apropriação e remediação (Bolter e Gruisin, 200) de meio
de comunicação de massa, os fandoms são exemplos concretos da inteligência
coletiva estudada por Lévy (1998)” (Monteiro, 2010, p. 2)
O fã é um componente vital para a cultura participativa. Eles fazem parte da cultura de
massa, do mainstream, conquistando um papel central para os grandes conglomerados de
mídia, uma vez que, juntos, conseguem mostrar a força de um produto, por menor que ele
possa ser considerado, gerando muito dinheiro a partir de seu interesse em consumir
determinado universo e possibilitando sua expansão e o surgimento de mais produções
voltadas para o seu público.
45
46
Revista Época. Disponível em: http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/10/uma-nova-geracao-de-bdrag-queensb.html
Disponível em: https://www.facebook.com/events/274522929379396/
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REFERÊNCIAS
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pesquisa
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Disponível em http://pages.ucsd.edu/~nchristenfeld/Publications_files/Spoilers.pdf Acesso em
07/11/2014.
LEVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do espaço. São Paulo: Edições
Loyola, 1998.
MONTEIRO, CAMILA. Fandom: Cultura participativa em busca de um ídolo.
http://www.usp.br/anagrama/Monteiro_Fandom.pdf Acesso em 01/11/2014.
RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009.
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ENSAIO
REPRESENTAÇÃO DA MEMÓRIA
E COLABORAÇÃO: a plataforma digital como suporte de
preservação da memória cultural
Juliana CAMPOS LOBO47
RESUMO: Pretende-se uma reflexão sobre a preservação e arquivamento da memória
cultural, com a utilização das plataformas digitais online, a partir de exemplos como o caso do
museu virtual e colaborativo Museu da Pessoa, e o Portal Porta-Curtas, que exibe e cataloga
curta-metragens nacionais brasileiros. Recebe destaque a representação da memória cultural
no contexto das plataformas digitais, a partir dos novos recursos tecnológicos, que sugerem a
transposição de limites tradicionais ligados à experiência e à rememoração. Considera-se
ainda o processo colaborativo online, que surge a partir da mudança de postura do usuário,
diante dessas plataformas.
PALAVRAS-CHAVE: Memória cultural. Plataforma digital. Colaboração. Preservação
ABSTRACT: The aim of this paper is to reflect on the preservation and archiving of cultural
memory, with the use of online digital platforms, from examples such as the case of virtual
and collaborative museum Pessoa Museum, and the Portal Porta Curtas, which displays and
catalogs Brazilian nationals short films. It is highlighted the representation of cultural
memory in the context of digital platforms, from the new technological resources that suggest
the implementation of traditional boundaries linked to the experience and recollection. It is
still considered the online collaborative process that arises from the change in posture of the
user, on these platforms.
KEYWORDS: Cultural memory. Digital platform. Colaboration. Preservation.
1. Introdução
Eu nunca entendi quando o passado começa ou onde ele termina, mas se
cidades mapeiam o passado com estátuas feitas de bronze imobilizadas para
sempre numa posição digna, por mais que eu tente fazer o passado ficar imóvel
e se comportar com educação, ele se movimenta e fala comigo todo dia. [Em
Nadando de Volta para Casa, de Deborah Levy].
De algum modo, ainda vivemos em tempos de mudanças. O uso da internet e das
ferramentas que a acompanham, especialmente aquelas relacionadas às tecnologias da
47
Aluna do Doutorado em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais e mestre em Comunicação Multimédia pela
Universidade de Aveiro. É bolsista de doutorado pela CAPES. Possui bacharelado em Comunicação Social/Jornalismo pela
Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: [email protected]
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
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informação e comunicação (TIC), em vários setores da sociedade, é um fenômeno crescente e,
porque não ousar afirmar, irreversível. Viver em uma sociedade que se transforma muito
rápido e onde, continuamente, o trânsito de informação assume um papel central, instiga
também a desenvolver outras habilidades para lidar com tanto pluralismo.
É por este motivo que muitos relacionam estas mudanças ao surgimento da internet –
que se tornou um tecido vital, como “um meio para tudo que interage com o conjunto da
sociedade [...], apesar de ser tão recente em sua forma societária” (CASTELLS, 2010, p. 255)
– e ao advento das redes sociais, as quais podem ser abordadas por diferentes perspectivas.
Ao adentrarmos neste assunto, as justificativas para se creditar que a internet e as
redes sociais são “responsáveis” pelas mudanças mais significativas na organização social
contemporânea correspondem, fundamentalmente, a duas situações: ao desenvolvimento
excepcional das comunicações, que possibilitou a conexão entre pessoas onde havia
isolamento; e à valorização da relação entre pessoas e entre pessoas e as coisas. Estas duas
razões explicam, em particular, a importância que a internet e as redes sociais assumiram
tanto no nível do conhecimento, quanto no nível da prática (LEMIEUX, 2000).
No entanto, para Jenkins (2010), tais mudanças podem ser apropriadamente explicadas
pela
convergência,
conceito
que
consegue
“definir
transformações
tecnológicas,
mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de quem está falando e do que imaginam
estar falando” (p. 29). Nesse ínterim, a convergência abarca:
o fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, a cooperação
entre múltiplos mercados midiáticos e o comportamento migratório dos públicos
dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das
experiências de entretenimento que desejam (IBID, p. 29).
É nesse contexto que são abordados os exemplos do Museu da Pessoa e do Portal
Porta Curtas, enquanto plataformas digitais colaborativas, que têm a memória cultural depoimentos, imagens, vídeos, filmes, curtas - preservada através de recursos tecnológicos
que são representativos do que Jenkins nomeia como Era da Convergência.
5. Revisão bibliográfica
a. A colaboração no ciberespaço
Foi com os recursos disponibilizados pela Web 1.0 que se conheceu as primeiras
mudanças tecnológicas, sociais e culturais, quando, através de um simples clique, era possível
mudar de um site para outro e acessar uma variedade significativa de conteúdos disponíveis.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
107
Anos depois, com o surgimento da intitulada Web 2.0, de simples usuários passamos a ser
produtores de informação e conteúdos, colaboradores, já que anteriormente, por exemplo, a
divulgação pública de informação não permitia o alcance direto do cidadão comum.
Logo, essencialmente alicerçada pela democratização no uso da rede, onde é possível
não apenas acessar conteúdos, mas também transformá-lo, reorganizá-lo, classificá-lo e
compartilhá-lo, possibilitando a emergência de um tipo de inteligência proveniente da
interação entre os agentes em comunicação - a inteligência coletiva48 (LÉVY, 2007) -, a Web
2.0 apresenta como principal característica a colaboração.
Nesse contexto, a dinamicidade, interatividade e flexibilidade dos conteúdos e
publicações propiciaram o desaparecimento da estaticidade que possuíam e possibilitaram um
espaço para as suas edições, feitas pelos próprios usuários e não somente por profissionais da
área. Assim, diante de tantas vantagens, torna-se imprescindível um olhar atento sobre as
potencialidades que a web oferece, especialmente por colocar o antigo usuário num lugar
privilegiado, onde lhe é dada a possibilidade de se tornar um prosumer49 (produtorconsumidor) de conteúdo para a rede.
b. A representação da memória cultural na plataforma digital
Os processos de comunicação possuem uma relação com a realidade concreta e com a
experiência, a qual, segundo Rodrigues (1999), está vinculada a um conjunto de saberes
fundados no hábito. Por esse motivo, a experiência é dependente “dos mecanismos da
memória, da capacidade de rememoração que os humanos possuem, da capacidade de
rememorar, no presente, o passado e de prever o futuro, a partir da rememoração presente do
passado” (RODRIGUES, 1999, p. 5-6). Por isso, a memória é constituinte de um agente
social, que vive e age neste mundo histórico e cultural.
O sociólogo francês Maurice Halbwachs (1990) foi um dos primeiros teóricos a tratar
da memória, afirmando que a memória individual existe a partir de uma memória coletiva 50 termo criado por ele -, já que as lembranças são constituídas no interior de um grupo, ou seja,
a partir das relações e da interação social. Em adição, a origem de várias ideias, reflexões,
48
Estudos recentes intitulam essa mesma propriedade de “ecologia cognitiva” (SANTAELLA & LEMOS, 2010, p. 25).
Termo criado por Alvin Toffler (2012). É um neologismo originário da língua inglesa e que corresponde à união das
palavras producer (produtor) + consumer (consumidor) ou professional (profissional) + consumer (consumidor).
50
Faz referência à Sociologia tradicional de Émile Durkheim.
49
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108
sentimentos e paixões que nos são atribuídas, são, sobretudo, inspiradas pelo grupo social do
qual fazemos parte e pela língua que nos une.
Contudo, ainda que a concepção de Halbwachs tenha estabelecido um “território
conceitual” para a memória, o reaproveitamento dos seus estudos pelas Ciências Humanas e
Sociais trouxe uma separação de entendimento no que tange à memória individual (ou
neurobiológica) e à memória coletiva (ou social e histórica). A quantidade de conceituações
corresponde à distinção dos objetos científicos. Porém, atendo-se à consideração de
Halbwachs (1990), em que a memória individual existe a partir de uma memória coletiva, o
elo entre as reminiscências do sujeito e as do grupo social, no qual esse mesmo sujeito está
incluído, pode fazer referência à língua e ao laço cultural que os congrega, o que,
consequentemente, gera a interação social. Logo, o laço cultural e a interação social
colaboram para a constituição de uma memória individual e coletiva, que juntas concretizam a
memória cultural.
E por que memória cultural? Primeiramente, porque o homem, enquanto ser cultural51,
não age isoladamente e, por isso, a sua memória cultural “está diretamente ligada ao
patrimônio de um povo, pois gera, a partir da sua cultura, tomada em manifestações naturais,
materiais, um ponto de referência de sua identidade e as fontes da sua inspiração”
(CARNEIRO, 2006, p. 20). Em outras palavras, são os elementos formadores da identidade
cultural de um grupo, constituídos ao longo de sua história. Refere-se, portanto, ao seu acervo
cultural, contribuindo para seu modo de fazer, ser, sentir e se expressar, pois é um fator de
identificação do indivíduo em relação a si mesmo e ao grupo.
É importante ressaltar que as duas plataformas aqui analisadas possuem, enquanto
característica comum, recursos tecnológicos relacionados à memória cultural, destacando que
esta já pode ser analisada no contexto de mediação tecnológica. Ou seja, a memória cultural já
pode ser registrada em novos espaços de interação social e a partir de novos instrumentos de
preservação, tendo em vista que o conceito de memória está estritamente ligado às
transformações tecnológicas e sociais que a Sociedade em Rede vive, inclusive no que tange à
natureza plástica que adquiriu com as novas experiências de rememoração e de representação
pelos usuários através das plataformas digitais.
51
O homem cria e utiliza símbolos para associar significados a todas as coisas. É por meio desses símbolos que se pode
transmitir a cultura de geração em geração, em uma ação contínua de criação, transformação, aperfeiçoamento e
recriação.
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109
6. Método
Para subsidiar a proposta deste ensaio, o método utilizado foi a avaliação analítica de
uma postagem do Museu da Pessoa, disponibilizada no canal do Museu no YouTube, e outra
do Portal Porta Curtas, na seção dos curtas mais vistos e comentados. As postagens foram
escolhidas pelos critérios de quantidade de visualizações, compartilhamento, comentários e
marcações como favoritos.
Vale destacar que na avaliação analítica tem lugar a descrição de como se efetiva o
processo colaborativo do conteúdo por parte do usuário, ressaltando as etapas em que ele
ocorre, a comunicação de cada plataforma com o prosumer e a forma como é feita a
exposição desse conteúdo.
7. Procedimento
a. Memória cultural e colaboração: estudo analítico das plataformas Museu da Pessoa e
do Portal Porta Curtas
No contexto das plataformas digitais, é possível observar novas características
estruturais e novos processos construtivos que parecem marcar, com mais nitidez, os recursos
tecnológicos dos últimos anos. Tais recursos são delineados pela inserção das tecnologias da
informação e da comunicação na produção, no consumo e na circulação da informação, e pelo
estreitamento da noção de espaço e tempo em que se move a sociedade contemporânea.
Hoje, novas sensibilidades, novos conceitos estéticos e novas formas de experenciar o
mundo são transportadas para a tela, através dessa diversidade, cada vez maior, de recursos
tecnológicos que contribuem para o desenvolvimento da plataforma digital do nosso tempo,
como possível ferramenta de armazenamento de uma dada memória cultural. Portanto, as
plataformas digitais surgem como um meio habitado na web, utilizadas, sobretudo, para o
lançamento de conteúdo.
Ao levantar algumas tendências gerais, ressalva-se o processo colaborativo, mediado
pelo ciberespaço nas plataformas digitais, como uma das características decisivas na definição
dessas mudanças mais recentes. No entanto, esse processo de colaboração sugere aspectos que
estão diretamente relacionados ao fluxo de comunicação, como a necessidade de partilhar, de
estabelecer um contato em que se pretenda um resultado comum.
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110
Nesse sentido, ao considerar o outro, o prosumer, como um elemento relevante neste
processo, as trocas e negociações tornam-se inevitáveis, assim como a percepção em torno da
relação, que pode inferir outro tipo de complexidade. No entanto, a cultura digital e as
recentes mudanças tecnológicas oferecem às plataformas digitais um espaço de convergência,
já que possibilita outro mecanismo na troca de ideias, na construção do conhecimento e no
relacionamento social.
A partir disso, alcança-se o que Howe (2008) conceituou como colaboração ou
crowdsourcing. Para ele, o termo representa, a atribuição de uma função que é desempenhada
por profissionais e que pode ser desenvolvida por um grupo indeterminado e amplo de
indivíduos, como um apelo à colaboração. Assim como no processo comunicacional, com a
introdução de novos suportes midiáticos, a colaboração no ciberespaço, que se concretiza por
meio das plataformas, “conforma novos espaços culturais, sendo capaz de alterar as interações
sociais e a estrutura social em geral” (SANTAELLA, 2005, p. 11).
Nesse sentido, e retomando a representação de uma dada memória cultural, observa-se
em alguns casos a plataforma digital como ferramenta de armazenamento e preservação dessa
memória, através do processo de colaboração digital. No entanto, isso se torna possível
especialmente pela recontextualização em que a memória é processada e da sua natureza
plástica em efetuar novas conexões que garantem outras linguagens de preservação. Para
ilustrar, apresentamos a seguir os exemplos do Museu da Pessoa, em São Paulo-Brasil, e do
Portal Porta Curtas.
4.1.1 Museu da Pessoa
A iniciativa do que hoje se conhece por Museu da Pessoa nasceu de uma experiência
realizada em dezembro de 1991, no Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo, durante
a exposição Memória e Migração, que apresentava a trajetória de imigrantes judeus para o
Brasil e tratava, por meio de inúmeras atividades, as memórias dos imigrantes em São Paulo.
Dentro da exposição, disponibilizou-se um estúdio para que toda pessoa interessada viesse
contar sua história. A experiência confirmou tanto a demanda pelo espaço em compartilhar a
própria história, quanto a riqueza que cada história de vida revelava, concretizando a estrutura
que o museu dispõe atualmente.
Considerado um museu virtual e colaborativo de histórias de vida, o Museu da Pessoa
propõe ao visitante que se torne parte do acervo ao registrar sua história de vida, ou que
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111
assuma a função de curador, na medida em que pode montar e publicar suas próprias coleções
de histórias, imagens e vídeos. Atualmente, o acervo do museu contabiliza mais de 16 mil
depoimentos em áudio, vídeo e textos, além de 60 mil fotos e documentos digitalizados.
Para se ter uma dimensão preliminar da forma como se dá a produção e circulação do
conteúdo audiovisual do museu, que em média possui de 7 a 25 visualizações, escolheu-se o
depoimento audiovisual mais visualizado e comentado disponibilizado no canal do Museu da
Pessoa no YouTube. O vídeo postado em 16 de outubro de 2012 corresponde à história de
vida do Pastor Dione dos Santos, que possui 3.585 visualizações, 7 comentários, 11 “gostos”
e 2 “não gostos”. Dione dos Santos é um sujeito social anônimo, que é ex-presidiário e hoje
trabalha com a evangelização em presídios. A intenção de fazer um vídeo sobre sua história
de vida partiu de sua vontade, deixando a cargo da equipe de filmagem do Museu da Pessoa
fazer o trabalho de capturação da imagem e edição do vídeo.
No entanto, a colaboração no envio de vídeo não perpassa apenas pela intenção de
gravá-lo com o auxílio da equipe. O usuário colaborador que quiser ter sua história de vida
registrada na plataforma do museu tem a opção de efetuar um cadastro, com a inserção de
dados pessoais, uma descrição sobre o depoimento, fotos, título e tags. O vídeo fica
disponível no canal do YouTube do Museu e pode ser favoritado, comentado e compartilhado.
Porém, o fluxo de partilha ainda é significativamente pontual.
Esse dado sobre o fluxo de partilha foi também verificado a partir dos conteúdos
disponibilizados nos perfis de outras redes sociais virtuais - Facebook, Twitter, Instagram e
Google+ -, que o Museu da Pessoa possui, mas que também não evidencia nenhum link,
nesta data, para o depoimento do pastor. Nesse sentido, a maioria dos conteúdos
disponibilizado nas demais plataformas corresponde a outras informações referentes ao
museu, mas não estritamente ligadas aos depoimentos audiovisuais. Quanto aos comentários
postados na página do depoimento no YouTube, os usuários apenas parabenizam o pastor pela
sua trajetória religiosa e por compartilhar a sua história de vida
4.1.2 Portal Porta Curtas
Desenvolvido em agosto de 2002, o Porta Curtas é uma plataforma que objetiva não
apenas catalogar os melhores curtas-metragens brasileiros para a internet, mas também formar
um painel representativo da produção nacional de curtas no que concerne as décadas, técnicas,
tendências e elencos. O portal, que conta com o patrocínio da Petrobras, é pioneiro na internet
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112
nacional brasileira, pois todos os curtas disponíveis são exibidos em sua forma original, sem
cortes, e os direitos autorais dos idealizadores são sempre respeitados.
Dentre os portais que exibem produtos audiovisuais já existentes no Brasil, a
característica mais marcante do Porta Curtas é que o foco principal reside na promoção dos
curtas também através de outros sites, garantindo uma difusão mais ampla. Segundo as
informações disponibilizadas no portal, “webmasters, editores e blogueiros podem escolher
filmes que sejam adições interessantes ao conteúdo de seus sites e receber um link que
permite que o curta seja exibido a partir deles. A disponibilização de links para outros sites é
um serviço automático e gratuito para todos” (PORTA CURTAS, 2014). Assim, é sugerido
que a circulação do conteúdo audiovisual não fique restrita somente ao portal.
Quanto à produção de conteúdos, esta se estrutura de duas formas: a partir da
catalogação de curtas feita pela própria equipe do Porta Curtas e pela colaboração dos
prosumers. A colaboração se efetiva através de um contato de e-mail pelo portal ou pelo envio
de uma ficha técnica completa ou de um DVD para o endereço da curadoria do Portal Porta
Curtas. O trabalho é avaliado por uma comissão editorial do portal, a partir de critérios
qualitativos e técnicos (incluindo adaptação para ser exibido via internet).
Assim, tomando por base o mesmo critério de análise do Museu da Pessoa, o curta
mais visualizado e comentado é O jaqueirão do Zeca, que possui 56.008 visualizações e 30
comentários. O vídeo foi postado em 2004, no mesmo ano em que estreou em festivais no Rio
de Janeiro - RJ, e trata da escolha do repertório do cantor e compositor brasileiro Zeca
Pagodinho, com a organização de uma grande roda de samba em que sambistas emblemáticos
são personagens indispensáveis ao curta.
Os 30 comentários relacionados ao vídeo giram em torno da popularidade do cantor,
de congratulações pela iniciativa do vídeo e apenas um usuário pergunta como faz para
adquirir o curta. Não há qualquer compartilhamento do vídeo, pois, para fazê-lo, apesar de ser
gratuito, como informado pela plataforma, é preciso solicitar ao portal o link de acesso do
produto. Nos outros perfis das redes sociais, particularmente no Facebook e Twitter, são feitas
chamadas para os vídeos do portal. Porém, como a postagem do curta O jaqueirão do Zeca é
mais antiga, não há nenhuma referência sobre ele nessas plataformas. Desde 2012, o portal
também dispõe de um blog, em que são abordados o cotidiano da equipe, os novos projetos,
festivais e os novos curtas disponibilizados.
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113
8. Considerações finais
A abordagem em torno da representação da memória cultural, a partir das plataformas
digitais, está hoje relacionada a transformações sociais e tecnológicas que atingem o conceito
de presença, copresença e de contemporaneidade, onde “tudo está ligado 52”. Em uma
dimensão temporal, a noção de memória se altera, tanto pela sua natureza plástica quanto
pelos suportes e plataformas que permitem reavivar e reproduzir a experiência. De certa
forma, o próprio suporte já sugere outra forma de interação, que pode estar ancorado na
particularidade de cada acesso, na retomada de “velhos” conteúdos e na transformação em
atuais novamente.
A partir das considerações aqui estruturadas, percebe-se que algumas colaborações
tocam-se com a leveza e a efemeridade. Algumas ainda envolvem contribuições regulares,
outras já sugerem colaborações mais estáveis, já que a cultura da internet é muito mais do que
a transferência de conteúdos: torna-se continuamente mais social e comunal (PREECE &
SHNEIDERMAN, 2009). Por isso, o incentivo para que as pessoas colaborem vem
especialmente por meio de ações visíveis, além da troca de capital social.
Essa percepção está ligada ao crescente envolvimento do prosumer, enquanto produtor
e consumidor ativo dos conteúdos disponibilizados em plataformas digitais, nomeadamente
aquelas direcionadas à memória cultural. Tanto o Museu da Pessoa, quanto o Portal Porta
Curtas possuem um número expressivo de envio de conteúdo, mas não se identifica ainda
uma replicação significativa desse material em outras plataformas. Por fim, admite-se que as
relações entre os prosumers ainda são flexíveis e instáveis, e que há uma adaptação e
customização em constante progresso por parte dos usuários nessas plataformas.
REFERÊNCIAS
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what it means for business, science and everyday life. New York: Plume, 2003.
CARNEIRO, Henrique Figueiredo. Banalização do patrimônio cultural e consequencias
perversas para a vida na cidade. In: MARTINS, C. (org.). Patrimônio Cultural: da
memória ao sentido do lugar. São Paulo: Roca, 2006.
52
Expressão que faz referência à obra de Albert-Lásló Barábasi: Linked. How Everything is connected to
Everything Else and What it means for Business, Science and Everyday Life (2003).
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114
CASTELLS, Manuel. The rise of network society. Oxford and Malden, Mass: Blackwell,
2001.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
HOWE, Jeff. Crowdsourcing - Why the Power of the Crowd is Driving the Future of
Business. Crown Business. ISBN 0307396207, 2008.
JENKINS, Henry. Cultura da convergência: a colisão entre os velhos e novos meios de
Comunicação. Tradução Susana Alexandria. 2ª ed. São Paulo: Aleph, 2008.
LEMIEUX, Vincent. À quoi sert les réseaux sociaux?. Québec: Les Éditions de l’IQRC,
2000.
LEVY, Deborah. Nadando de volta para casa. Trad. Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 2014.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. 6ª ed. São Paulo: Editora 34, 2007.
MUSEU DA PESSOA (2014). Disponível em: http://www.museudapessoa.net/pt/home
Acesso em: 17/11/2014.
PORTAL PORTA CURTAS (2014). Disponível em: http://portacurtas.org.br/filmes/ Acesso
em: 16/11/2014.
PREECE, Jennifer; SHNEIDERMAN, Ben. The Reader-to-Leader Framework: Motivating
Technology-Mediated Social Participation. In: AIS Transactions on Human-Computer
Interaction, v. 1, issue 1, 2009, pp. 13-32.
RODRIGUES, Adriano Duarte. Experiência, Modernindade e Campo dos Media. 1999.
Disponível
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Biblioteca
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de
Ciências
da
Comunicação
http://www.bocc.ubi.pt/_esp/autor.php?codautor=2 Acesso em: 10 de outubro de 2014.
SANTAELLA, Lucia. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo:
Paulus, 2005.
SANTAELLA, Lucia; LEMOS, Renata. Redes Sociais Digitais: a cognição conectiva do
Twitter. São Paulo: Paulus, 2010.
TOFFLER, Alvin. A terceira onda. São Paulo: Editora Record, 2012.
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115
RELATO DE PESQUISA
CORPO NU: uma análise do ensaio fotográfico de nudez
masculina como arte
Aline Cristina Azoubel OLIVEIRA53
Thaís Fernanda dos Santos TORRES54
Tâmara dos Santos CANTANHÊDE55
Mary Aurea de Almeida Costa EVERTON56
RESUMO: O corpo porta um fascínio e magia presentes nas representações de artistas
clássicos e contemporâneos. Embora a representação do homem nu não seja um tema novo no
universo das artes, ela foi pouco desenvolvida na fotografia artística. O Projeto, “Corpo Nu:
ensaio fotográfico como arte” foi pensado para firmar caminhos de futuras produções que
abordem a fotografia do nu masculino pela ótica da arte, e como produção, fomentar a análise
contemplativa e a leitura poética presente nas estigmatizadas fotografias de nu.
ABSTRACT: The body carries a fascination and magic present in representations of classic
and contemporary artists. Although the representation of the naked man is not a new theme in
the universe of the arts, she was undeveloped in artistic photography. The Project, “Nu Body:
photo essay as art” was thought to establish paths that address future production
photography of the male nude from the perspective of art, and as production, encourage
contemplative and poetic analysis in reading this stigmatized photographs naked.
PALAVRAS-CHAVE: Fotografia artística; corpo masculino; nudez; ensaio fotográfico.
KEYWORDS: Artistic Photography; male body; nudity; photo essay.
53
Estudante do 5º. Período do Curso de Comunicação Social Habilitação Jornalismo, email:[email protected],
telefone:(98) 8166-9693
54
Estudante do 6º. Período do Curso de Comunicação Social Habilitação Jornalismo,
email:[email protected], (98) 8105-2534 ou (98) 8708-5404
55
Estudante do 7º. Período do Curso de Comunicação Social Habilitação Jornalismo, email
[email protected], telefones: (98) 8871-6717 ou (98) 8153-8858
56
Orientadora do artigo e ensaio fotográfico. Técnica do Laboratório de Fotografia do Departamento de Comunicação Social
– UFMA. Professora do Curso de Pós-Graduação lato sensu em assessoria de comunicação: política, setor público e
organizações, Faculdade São Luís (2012), Professora do Curso Comunicação Social Habilitação Publicidade e Propaganda e
Administração e Marketing, Coordenadora Adjunta do curso de Comunicação Social da Habilitações Jornalismo e
Publicidade e Propaganda – Faculdade São Luis (2002-2008), Professora Substituta do Curso de Comunicação Social - UFMA
das Habilitações Jornalismo, Rádio e Tv e Relações Públicas (2005- 2008); Professora dos Cursos de Comunicação Social
Habilitação Publicidade e Propaganda, Marketing e Propaganda, Marketing Estratégico, Design de Moda – UniCeuma
(2002-2011); Pós-Graduada em Didática Universitária FAMA (2004), 4 Graduada em Comunicação Social Habilitação
Publicidade e Propaganda UniCeuma (2001), Fotógrafa profissional (1994), email:[email protected], telefone:
(98) 9115-4042
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1. introdução
A maneira como o corpo humano desnudo é percebido e compreendido pela sociedade
passou por inúmeras transformações ao longo do tempo. Contudo desde a Antiguidade
Clássica a nudez é um tema presente nas artes, tanto que logo após o surgimento da fotografia
houveram tentativas de fotografar o nu, e em uma das primeiras imagens, de Hippolyte
Bayarde57 (1801-1887), não se nota qualquer relação com erotismo ou pornografia, mas com
a forma humana.
Com o passar do tempo a fotografia registrada no século XX de corpo nu, tanto
masculino como feminino, foi ganhando destaque devido à imagem ser mais realista se
comparada com a pintura e a escultura daquela época. Porém, a sociedade condenou os
modelos de nu como depravados e imorais. Tal associação se deu principalmente pelo
surgimento dos pin- up, cartões eróticos lançados na virada do século XX que fizeram muito
sucesso durante duas décadas.
Assim, o mercado pornográfico, muito lucrativo, rendeu-se à fotografia fazendo com
que o nu artístico fosse visto com desconfiança e descrédito. Desse modo, é necessário
diferenciá-lo dos outros tipos de nus.
2. Sobre os conceitos e as interpretações
O corpo humano pode ser percebido como uma obra de arte. Seus músculos, simetria,
formas, contornos e detalhes são exemplos de uma notável composição artística que expressa
toda beleza com sua perfeição ou imperfeição. Não há nada mais natural e único que o corpo
humano despido. Todavia, a nudez artística ainda é pouco compreendida e aceita, mas ficar nu
é inevitável ao homem.
O corpo humano é a fonte de quase todas as inspirações. A nudez é sempre
inquietante, instigadora e bela. Por isso o artista, seja na pintura, escultura, na dança ou
fotografia, encontra no corpo nu uma profunda ligação com a pureza do ser (DE PAULA,
2011).
Como uma tendência natural, a nudez em todo tempo foi e continuará a ser um meio
pelo qual o homem busca uma conexão com o seu próprio ser, com a criação e com a
sociedade. Segundo Rodrigues (1975) o corpo possui a marca da vida social, manifestada na
57
Foi um pioneiro da fotografia e obteve o registro fotográfico do seu próprio corpo desnudo por meio do processo em
positivo sobre papel.
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preocupação de toda sociedade em fazer produzir nele certas transformações que escolhe de
um repertório cujos limites não se pode definir. A análise dos contornos e formas presente nos
registros em preto e branco permite concluir que o corpo se assemelha a uma massa de
modelagem na qual a sociedade imprime suas próprias características, isso é, maneiras de
projetar a fisionomia do seu próprio espírito.
Mas antes da contemplação, existe uma longa discussão acerca dos limites da arte, do
erotismo e da pornografia nos registros artísticos, pois muitas produções tendem ao apelo de
cunho sexual, se tomarmos como ponto de partida a exploração e atual banalização dos
corpos, principalmente o feminino - exposto a maior parte do tempo pelo olhar de homens nos
mais diversos tipos de artes.
Para compreender o que não se considera como fotografia artística de nu, recorremos
ao seguinte conceito de pornografia: “expressões escritas ou visuais que apresentam, sob a
forma realista, o comportamento genital ou sexual com a intenção deliberada de violar tabus
morais e sociais” (Gregori, 2004: 236).
Longe dessa noção, “Corpo nu: ensaio fotográfico como arte” inverteu o gênero por
trás da objetiva. O masculino posa para o feminino, e corpo humano em sua essência é
capturado por mulheres que buscam transmitir por meio da arte a expressão máxima da
beleza, do movimento do corpo e não apenas dos atributos físicos do modelo.
O ensaio foi desenvolvido em estúdio, onde as poses e a iluminação podem ser
manipuladas, propiciando um resultado facilitado pelo controle dos elementos fundamentais
na composição.
A beleza dos registros em preto e branco capturam as texturas com mais detalhes e
neutralizam a variada exposição de cores - capaz de produzir sentidos e reações mais próprias
das fotografias de nu erótico e pornográfico. Assim, a essência do ensaio analisado encontrase na frase de Willian Blake , definida como na frase: “a arte jamais poderia existir sem expor
a beleza da nudez”58 (Borges, 2013), sem contemplar artisticamente os contornos e formas
que o nu masculino é capaz de expressar.
58
BORGES, Rejane O corpo humano causa fascínio e é exaltado como algo naturalmente belo. Como instinto, a nudez
sempre foi e será o meio pelo qual o homem busca uma conexão com o seu próprio ser e com a criação. Disponível em:
<http://obviousmag.org/archives/2011/01/qual_o_limite_que_as_separa_a_arte_da_pornografia.html>
Acesso em 13 jan. 2013
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118
3. Métodos e técnicas utilizados
Leitura de periódicos, livros e análise de imagens fotográficas de corpos nus serviram
de inspiração e auxiliaram a equipe para a concepção do ensaio. Uma das revistas mais
exploradas para o estudo foi a Fotografe Melhor dos anos de 2011 a 2013, em virtude do seu
alto conceito no meio fotográfico e também por possuir um vasto acervo sobre o tema.
Durante a pesquisa alguns pontos eram recorrentes nas discussões do grupo e foram
adotados como regras para a boa realização do trabalho, por exemplo: uma iluminação de
penumbra, importante para não evidenciar todas as partes do corpo e principalmente a
genitália; baixa profundidade de campo, para guiar o olhar e direcionar uma leitura ao ponto
de interesse; regra dos três terços na composição, para criar um equilíbrio e o desequilíbrio do
corpo desnudo por meio das intersecções e dos pontos de destaque na imagem; ISO (Institute
for
Standeardization
Organization) alto de 400, para permitir fotografar com pouca
iluminação, abertura de diafragmas pequenos e tempo de exposição entre 1/30s (segundo) a
1/125s, o que permitiu uma maior profundidade de campo e maior possibilidade de paralisar
movimentos sem deixar trepidados; planos e enquadramentos fechados para destacar as
linhas, as formas e a textura da pele, levando o leitor a uma interpretação mais artística e real
do corpo nu. Nessa direção, seguem as especificações técnicas de cada registro fotográfico
como APÊNDICE A:
a) Foto 1: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon
Corporation; Representação de cores – sRGB (standard Red, Green e Blue).; Flash
usado – sem flash; Comprimento focal – 22mm (milímetro); Abertura diafragma –
F/3,8; Tempo de exposição – 1/50s; Modo de medição – Padrão;
b) Foto 2: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon
Corporation; Representação de cores – sRGB; Flash usado – sem flash; Comprimento
focal – 25mm; Abertura diafragma – F/5,6; Tempo de exposição – 1/80s; Modo de
medição – Padrão;
c) Foto 3: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon
Corporation; Representação de cores – sRGB; Flash usado – sem flash; Comprimento
focal – 26mm; Abertura diafragma – F/4; Tempo de exposição – 1/50s; Modo de
medição – Padrão;
d) Foto 4: modelo de câmera – Nikon D3000; Marca do agrupamento – Nikon
Corporation; Representação de cores – Não calibrada; Flash usado – sem flash;
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
119
Comprimento focal – 42mm; Abertura diafragma – F/5,3; Tempo de exposição – 1/30s;
Modo de medição – Padrão;
e) Foto 5: modelo de câmera – Nikon D3000; Marca do agrupamento – Nikon
Corporation; Representação de cores – Não calibrada; Flash usado – sem flash;
Comprimento focal – 24mm; Abertura diafragma – F/4; Tempo de exposição – 1/30s;
Modo de medição – Padrão;
f) Foto 6: modelo de câmera – Nikon D3000 Marca do agrupamento – Nikon
Corporation; Representação de cores – Não calibrada; Flash usado – sem flash;
Comprimento focal – 55mm; Abertura diafragma – F/5,6; Tempo de exposição – 1/30s;
Modo de medição – Padrão;
g) Foto 7: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon
Corporation; Representação de cores – Não calibrada; Flash usado – sem flash;
Comprimento focal – 22mm; Abertura diafragma – F/3,8; Tempo de exposição – 1/50s;
Modo de medição – Padrão;
h) Foto 8: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon
Corporation; Representação de cores – sRGB; Flash usado – sem flash; Comprimento
focal – 35mm; Abertura diafragma – F/34,5; Tempo de exposição – 1/50s; Modo de
medição – Padrão;
i) Foto 9: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon
Corporation; Representação de cores – sRGB; Flash usado – sem flash; Comprimento
focal – 58mm; Abertura diafragma – F/10; Tempo de exposição – 1/30s; Modo de
medição – Padrão;
j) Foto 10: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon
Corporation; Representação de cores – sRGB; Flash usado – sem flash; Comprimento
focal – 90mm; Abertura diafragma – F/5,6; Tempo de exposição – 1/80s; Modo de
medição – Padrão;
k) Foto 11: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon
Corporation; Representação de cores – sRGB; Flash usado – sem flash; Comprimento
focal – 80mm; Abertura diafragma – F/5,3; Tempo de exposição – 1/125s; Modo de
medição – Padrão;
l) Foto 12: modelo de câmera – Nikon D3000; Marca do agrupamento – Nikon
Corporation; Representação de cores – sRGB; Flash usado – sem flash; Comprimento
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
120
focal – 55mm; Abertura diafragma – F/5,6; Tempo de exposição – 1/30s; Modo de
medição – Padrão.
4. Descrição do processo
O ensaio foi elaborado mediante um prévio conhecimento na área técnica da fotografia
somado ao longo e demorado processo de pesquisa que conduziu a criação de imagens em
uma configuração teatral de um corpo humano masculino desnudo.
A escolha do ator e bailarino Luciano Barros Teixeira, vinte e três anos, que faz parte da
Companhia Teatral Miramundo Produções Culturais e do Grupo Teatral Improviso, ocorreu
devido à facilidade de exploração de uma narrativa corporal expressiva carregada por uma
composição satisfatória e um objetivo artístico autêntico.
A personalidade extrovertida e comunicativa do modelo tornou a sessão mais íntima;
diante de suas habilidades dramáticas e da sua flexibilidade que, permitiram poses mais
técnicas e acrobáticas; além da percepção artística das fotógrafas, por meio da qual
o
resultado não seja a realização de imagens chocantes ou de desejo sexual.
Cada aluna/fotógrafa usou seu próprio equipamento, uma utilizou a câmera Nikon
D3000 com lente 18-55mm f/3.5-5.6G59 VR II (Vibration Reduction) AF-S (Build in Auto
Focus Motor) DX e as outras utilizaram câmeras Nikon D7000 com lente 18-105mm f/3.55.6G ED VR AF-S DX60 . O estúdio foi montado no Laboratório de Fotografia do
Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, São
Luís - MA61 . Equipado com duas fontes artificiais de luz básica contínua, sendo um, refletor
profissional leds CN-160 lâmpadas - com fluxo luminoso de 660LM, temperatura de cor
3200/5400K (Kelvin) e filtro difusor em acrílico; e um par de lâmpadas fluorescentes fixadas
no teto do estúdio com temperatura de cor 4000/5000K com intensidade de luz média.
A fim de promover efeitos interessantes de penumbra que causasse um ar de mistério e
devaneio, experimentaram-se possibilidades alcançadas por meio de um posicionamento das
iluminações, uma fixa no teto e outra móvel (que ora vinha de baixo para cima, dando uma
leitura de luz dramática, ou de cima para baixo, que propagou um brilho etéreo e misterioso; e
ora mais distante ou mais perto e posicionada em um dos lados do fotografado que levou a
acentuar com mais ou menos luzes apenas uma das áreas retratadas).
59
Lentes controladas eletronicamente, não apresentam anéis no tambor.
60
São lentes exclusivamente desenhadas para câmeras digitais SLR da Nikon, levando em consideração seu fator de corte.
MARANHÃO
61
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
121
Os contrastes experimentados na iluminação foram desenvolvidos com o objetivo de
criar as altas-luzes ou as áreas totalmente escuras que proporcionaram a forma como a luz
caia sobre o corpo desnudo. Criou-se um aspecto autêntico e natural nas imagens ao se
esculpir o corpo nu por meio da luz em que são destacadas algumas áreas e escondidas outras,
com a intenção de despertar o ponto de interesse em que o leitor buscará olhar ou analisará
primeiro na fotografia.
Pela possibilidade de capturar vários tons em uma única escala de cinza, o corpo
desnudo entrou em harmonia com o contraste entre o claro e o escuro, ficando mais acentuado
com a penumbra devido o uso de duas fontes de luz e pelo fundo infinito de tecido preto
razoavelmente grosso somado ao tom da pele do modelo. Essa ausência de cor levou a equipe
a dar mais atenção às texturas do corpo, bem como dos acessórios cênicos utilizados durante o
ensaio. Assim, essas áreas de sombras e iluminação acentuada ou difusa devem direcionar o
olhar do leitor para profundidade do interesse visual das fotografias.
Registrar foco total ou desfoque total do corpo despido foi necessário para atrair a
atenção para uma área especifica da imagem que servirá como conexão com o observador. Tal
recurso de alta e baixa profundidade de campo foi resultado de: aberturas de diafragma,
variadas entre 5.6f a 3.8f; posicionamento das fotógrafas em relação ao modelo e pelas lentes
zoom que variam de grande angular a teleobjetiva. Assim, a técnica fotográfica possibilitará
ao leitor percorrer a imagem e descobrir que o corpo nu está em harmonia com a luz, com o
fundo e com os acessórios.
O processo de pós-produção das fotografias sofreu poucas manipulações no software
Adobe Photoshop CS2(Creative Suite), mas importantes para uma reprodução adequada da
tonalidade de cinza desejada.
4.1
Fotografias
Durante a observação do conjunto de fotografias é possível verificar a existência de
dois grupos de imagens que determinam a própria natureza da significação: o corpo nu
completo e com poses artísticas e a nudez masculina em detalhes.
A composição e a perspectiva dos grupos reafirmam as diferentes formas artísticas que
um corpo despido pode ser fotografado de forma artística com impacto visual sem provocar,
necessariamente, o desejo sexual. O ensaio não é resultado de uma composição perfeita, mas a
combinação de elementos.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
122
4.1.1 Nu completo em poses artísticas
Na primeira modalidade, a caracterização pressupõe a utilização do Plano Geral (PG) e
o Plano Conjunto (PC) que servem para limitar o cenário composto por um fundo infinito
preto e a nudez por inteiro, ou parcial, com alta profundidade de campo de acordo com
APÊNDICE A:
A foto 1 tem o enquadramento central na horizontal, proporcionando a captura do
corpo inteiro, da pose e valorizando ainda mais a expressão do modelo. A iluminação também
foi muito importante para ajudar na leitura da imagem; posicionada acima da cabeça do
modelo e pelas costas, ajudou a esconder as partes intimas, valorizando as formas e
transformando uma pose considerada muitas vezes sensual em leve e primorosa.
O emprego do plano aberto foi escolhido na foto 2 para evidenciar o desenho
composto pelas formas do corpo em pose fetal e de bruços, bem como cabelo disposto sobre o
fundo infinito; transmitindo a ideia de pureza e remetendo a lembrança do nascimento do
bebê em seus primeiros momentos de vida.
Já na foto 3, o enquadramento na diagonal contribuiu para a super valorização das
linhas corporais do modelo que se sobrepõem à textura do cenário e formam uma composição
harmônica.
A pose do modelo, a direção da iluminação (posicionada em cima) e a inclinação da
câmera destacaram ainda mais as penumbras e o efeito de mistério presentes na foto 4.
Pose e as linhas do fundo infinito formam uma composição única na foto 5. A
iluminação mais trabalhada na parte superior da imagem contribui para que a harmonia fique
ainda mais diferenciada, valorizando muito bem a pose do modelo e fazendo que o leitor guie
o olhar pelas linhas e formas do corpo.
Na foto 6 com a inclinação da cabeça, uma iluminação na parte posterior do corpo
somada a utilização do acessório levou-se a uma interpretação sombria da imagem.
Já na foto 7 a iluminação mais direcionada no lado direito, proporciona uma maior
valorização do desenho formado entre os braços e pernas do modelo.
A composição da foto 8 permite visualizar como a iluminação vinda de baixo para
cima modifica as formas; é possível visualizar o aumento das sombras produzidas pelo
próprio corpo e uma valorização de áreas mais aparentes.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
123
4.1.2 Nudez masculina em detalhes
Na segunda modalidade, o plano de tomada recorrido foi o Plano Detalhe (PD) com a
função de registrar minúcias do objeto fotografado. Neste caso, foi evidenciado a textura, o
enquadramento assimétrico - deixando a imagem desequilibrada - e a baixa profundidade de
campo de acordo com APÊNDICE A:
Na foto 9 o enquadramento horizontal, a angulação inclinada e o foco no primeiro
plano, ajudam a guiar o olhar pela perna do modelo até o acessório posicionado sobre o fundo
infinito, desfocado.
Já n foto 10 o enquadramento com uma iluminação dura levou a valorizar linhas e
formas, mesmo com o segundo plano desfocado.
O enquadramento e o corte subtraindo parte do rosto e ombro do modelo, presentes na
foto 11, guia o olhar para que siga os contornos que compõem a figura; o desfoque no
segundo plano conteve a interpretação possivelmente sensual da pose, e garantiu que se
proporcionasse uma leitura artística da imagem.
A foto 12 é composta por um conjunto de texturas corporais que puderam ser
registradas e valorizadas com um plano fechado e uma iluminação direta vindo da parte
superior que gerou um jogo de sombra e luz importante para contornar as linhas.
5. Considerações
O ensaio teve como premissa os múltiplos olhares advindos da fotografia artística de
nu masculino. A arte, e nesse caso em específico a arte fotográfica, foi produzida e é
interpretada baseada nos filtros correspondentes a bagagem cultural de cada leitor. Essa
multiplicidade de concepções acerca da nudez masculina, somada ao vasto e diversificado
acervo teórico e empírico utilizado, possibilitou a elaboração de um ensaio fotográfico
autêntico.
O poder do discurso não-verbal presente nas imagens, desvenda e incita o mergulho ao
universo de contemplação do corpo humano, evidenciado por enquadramentos que variam de
um plano geral ao close-up. Muitas vezes sutis, os detalhes, ajudam para que a análise seja
feita de forma simples e primorosa. Cada destaque foi pensado e modificado de forma a
compor minuciosamente a imagem. O projeto “Corpo nu: ensaio fotográfico como arte”
elaborou um trabalho de nudez com um ângulo diferente. Capaz de despertar a apreciação do
corpo humano como uma conexão natural do seu próprio ser com a arte.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
124
As fotos foram dispostas em uma ordem que possibilitasse a harmonia e continuidade de
poses, sempre valorizando os ideais preconcebidos de ensaio fotográfico artístico de nu, isso
é, distante da concepção erótica e/ou pornográfica.
APÊNDICE A- Ensaio fotográfico de nu artístico no laboratório de fotografia UFMA
Foto1
Crédito de imagem
Aline Azoubel
Foto 2
Crédito de imagem
Thaís Torres
Foto 5
Crédito de imagem
Tâmara Cantanhêde
Foto 6
Crédito de imagem
Tâmara Cantanhêde
Foto 9
Crédito de imagem
Thaís Torres
Foto 10
Crédito de imagem
Thaís Torres
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
Foto 3
Crédito de imagem
Aline Azoubel
Foto 4
Crédito de imagem
Tâmara Cantanhêde
Foto 7
Crédito de imagem
Aline Azoubel
Foto 8
Crédito de imagem
Aline Azoubel
Foto 11
Crédito de imagem
Thaís Torres
Foto 12
Crédito de imagem
Tâmara Cantanhêde
125
REFERÊNCIAS
BAETENS, Pascal. Nu artítico: fotografia a arte e o talento. Rio de Janeiro: AltaBook
Editora, 2010.
DE PAULA, Ariano. O primeiro congresso de fotografia de nu e sensual da América
Latina. Disponível em: <http://www.lightroom.com.br/index.php/tag/nu-photo-conference>.
Acesso em: 11 fev.2013.
GREGORI, Maria Filomena, “Prazer e Perigo: notas sobre feminismo, sex-shops e s/m”,
in: Piscitelli, Adriana; Gregori, Maria Filomena; Carrara, Sérgio (orgs.), Sexualidade e
Saberes: Convenções e Fronteiras, Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2004.
GUIMARÃES, Júlio Castãnon. A camara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984.
RAZZERA, Gustavo. O olho do fotógrafo: composição e design para fotografias digitais
incríveis. Porto Alegre: Bookman, 2012.
REJANE, Borges O corpo humano causa fascínio e é exaltado como algo naturalmente
belo. Como instinto, a nudez sempre foi e será o meio pelo qual o homem busca uma
conexão com o seu próprio ser e com a criação. Disponível em:
<http://obviousmag.org/archives/2011/01/qual_o_limite_que_as_separa_a_arte_da_pornograf
ia.html>. Acesso em: 13 jan. 2013.
REVISTA FOTOGRAFE MELHOR, São Paulo: Editora Europa, n. 177, Julho de 2011.
___________ São Paulo: Editora Europa, n. 180, Setembro de 2011.
___________ São Paulo: Editora Europa, n. 190, Julho de 2012.
___________ São Paulo: Editora Europa, n. 191, Julho de 2012.
___________ São Paulo: Editora Europa, n. 192, Setembro de 2012.
___________ São Paulo: Editora Europa, n. 199, Abril de 2013.
___________ São Paulo: Editora Europa, n. 203, Agosto de 2013.
RODRIGUES, José Carlos. O tabu do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: Achiamé, 1975.
SCHAFRANSKI, Carlos; Figueiredo, Sandra. Fotografia digital na prática. Segredos
incríveis para dar a suas fotos uma aparência profissional. São Paulo: Person Education
do Brasil, 2007.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
126
RELATO DE PESQUISA
A EROTIZAÇÃO DOS CORPOS NO FORRÓ
ELETRÔNICO: um estudo da recepção juvenil em Caxias-MA
Fábio Soares da COSTA62
Janete de Páscoa RODRIGUES63
RESUMO: Esta pesquisa lançou um olhar sobre a relação entre a oferta de sentidos
midiáticos do forró eletrônico sobre o corpo feminino e o processo encoding/decoding
(HALL, 1997) a partir de narrativas juvenis de alunos de uma escola pública estadual do
ensino médio da cidade de Caxias-Ma. Metodologicamente foi utilizada a análise de conteúdo
categorial (BARDIN, 2011), para analisar os conteúdos das letras do forró eletrônico das
bandas “Limão com Mel”, “Furacão do Forró” e “Garota Safada”, bem como identificar os
sentidos de construção do corpo feminino e suas negociações presentes na recepção juvenil,
que apresentou decodificação negociadora, uma mulher plural e um corpo erotizado.
PALAVRAS-CHAVE: Corpo. Erotismo. Jovens. Mulher.
ABSTRACT: This research glanced about the relationship between the supply of the
electronic media senses “forró” on the female body and the process encoding/decoding
(HALL, 1997) from juvenile narratives of students in a public school high school in the city of
Caxias-Ma. Methodologically was used analysis content categorical (BARDIN, 2011), to
analyze the contents of the letters of the electronic “forró” bands “Limão com Mel”,
“Furacão do Forró” and “Garota Safada”, and to identify the construction of meaning of
female body and its negotiations present in juvenile reception, which had negotiated
decoding, a plural wife and an erotic body.
KEYWORDS: Body. Eroticism. Young. Woman.
1. Apresentação
No forró eletrônico, as letras das músicas falam sobre mulheres, relações amorosas e
sexuais, descrevem corpos e condutas para a existência feminina, constroem representações
que são aceitas e utilizadas em suas práticas sociais. Essas músicas, consumidas por meio do
rádio, TV, internet e, principalmente nos shows, ofertam representações do cotidiano
62
Mestre em Comunicação pelo PPGCOM da UFPI. Especialista em Supervisão Escolar pela UFRJ e Educador Físico
licenciado pela UFPI. Docente da Faculdade do Médio Parnaíba – FAMEP. E-mail: [email protected]
63
Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Docente do PPGCOM Mestrado em Comunicação da Universidade Federal do Piauí – UFPI. E-mail: [email protected]
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
127
feminino gerando identificação com a cultura do forró eletrônico (TROTTA, 2009a). Assim,
acreditamos que essas músicas oferecem sentidos de identidades às mulheres que as ouvem,
que se adequam às representações oferecidas por essas músicas, se autorepresentando. No
entanto, tais representações são absorvidas subjetivamente por cada pessoa a quem se dirige
de maneira particular.
Teresa de Laurentis (1994, p. 212) aponta questões fundamentais para se entender
esses processos de significações de gênero, que, segundo ela, é uma representação: “[...] o
sistema sexo-gênero é tanto uma construção sociocultural quanto um aparato semiótico, um
sistema de representação que atribui significado a indivíduos dentro da sociedade”.
Os sentidos produzidos pelos sujeitos receptores sofrem forte influência dos meiosinstituições, que estão em contínuas negociações a despeito dos deslocamentos culturais que
podem ser produzidos em cada contexto de usuário de mídia. O processo de construção de
sentidos é algo que necessita de investigação exaustiva, e o interesse nesta pesquisa reside em
dois momentos específicos, interconectados pelas relações culturais: (1) o momento de
produção midiática das bandas de forró eletrônico, interpelado a partir das estruturas de
sentido, repertórios culturais e estéticos de estudiosos do tema. A ideia de estruturas de
significado é recuperada a partir de Stuart Hall (2000; 2006; 2009) com a proposição de seu
modelo codificação/decodificação, no qual essas estruturas, de certa forma, simbolizam as
referências identitárias e os repertórios culturais/estéticos dos envolvidos; (2) o momento da
recepção dos deslocamentos culturais produzidos pelo forró eletrônico no concernente aos
sentidos de representações simbólicas femininas no contexto das relações entre os
gêneros/sexos, levando em conta tanto o panorama agonístico do pós-moderno quanto à
perspectiva das interculturalidades na contemporaneidade.
Para Hall (2006), os deslocamentos culturais acontecem segundo alterações espaçotemporais, e, no Nordeste, as dinâmicas de trabalho e lazer acontecem a partir de ritmos
frenéticos e descentrados, representados no imaginário social do forró, por exemplo. Essa
condição ocorre não apenas como a supressão do antigo pelo novo, mas a partir de profunda
problematização do presente e da perspectiva “pluralista que aceita a fragmentação e as
combinações múltiplas entre tradições, modernidade, pós-modernidade, a qual é indispensável
para considerar a conjuntura latino-americana.” (GARCÍA CANCLINI, 2006, p. 352).
Frente ao exposto, esta investigação problematiza as relações de ancoragem,
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
128
imbricamento e complementaridade de um triângulo discursivo que envolve a cultura do forró
eletrônico, as representações simbólicas da mulher e do seu corpo e a audiência juvenil, assim
questionando:
Que sentidos são enunciados por meio das letras das músicas, dos vestuários usados
pelo(a)s vocalistas e dançarino(a)s, pela movimentação e gestualidade realizadas pelos atores
das bandas investigadas que se relacionam ao corpo da mulher?
A partir deste questionamento é que passamos a entender que a análise do forró
eletrônico sob a ótica dos estudos culturais e suas subjetividades implica reconhecer que, no
campo cultural, a mídia é cada vez mais responsável pela emergência de formas de vida
muitas vezes incompreendidas por setores da sociedade mais conservadores, todavia, nos
ajudam a entender a proximidade entre o processo de criação de sentidos de gênero e
nordestinidade ligados à cultura da mídia.
Neste contexto, o objetivo geral deste estudo é investigar o processo de construção de
sentidos midiáticos entre jovens estudantes do ensino médio de uma escola pública estadual
da cidade de Caxias-MA, consumidores de forró eletrônico, a partir das representações
simbólicas da mulher e do seu corpo, quando esses jovens interagem com as mensagens
sugeridas via bandas de forró eletrônico midiatizadas. Os objetivos específicos são os de
analisar os conteúdos apresentados nas letras do forró eletrônico midiatizado referente à oferta
de sentidos constituidores sobre o ser feminino e o seu corpo, assim como identificar sentidos
de feminilidade relacionados ao corpo da mulher, figurino, dança, gestualidade e demais
narrativas textuais e imagéticas presentes nos produtos midiáticos (dvd) de bandas de forró
contemporâneo, bem como seus reflexos na recepção
Esta pesquisa observou os olhares voltados às representações simbólicas da mulher, ou
seja, como a mulher e seu corpo são apresentados nesses dispositivos midiáticos, e que
sentidos sobre o corpo feminino e da mulher são preponderantes nas enunciações desses
produtos midiáticos. E assim, numa perspectiva macro, conclusiva, mas aberta, porosa,
temporal e delimitada nesse tempo, a produção subjetiva dos jovens pesquisados apontou para
a construção de representações das mulheres e dos seus corpos de um modo plural, mas,
sobretudo, erotizados e referenciais de beleza. Quanto às mulheres, estas foram apresentadas
como negociadoras de diversos sentidos apropriados da cultura do forró e das trocas
simbólicas das comunidades de significação em que estão inseridas.
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
129
2. Procedimentos metodológicos
A pesquisa é de natureza qualitativa, pois o interesse nos processos suplanta o
interesse nos resultados ou produtos, onde o investigador assume papel primordial. A fonte de
dados é o ambiente natural, e a análise desses dados tem forte carga indutiva, conforme
Triviños (1987). É uma pesquisa do tipo descritiva, pois “Os dados recolhidos sempre serão
em forma de palavras e/ou imagens. Os resultados escritos contêm unidades retiradas das
falas dos atores, dos diários de observação, de documentos, etc.” (TEIXEIRA, 2012, p. 123).
Empregamos o método descritivo no tratamento dos resultados da pesquisa de campo
no referente à análise dos dvd, bem como das falas dos receptores acerca do tema da pesquisa,
coletadas durante a realização de grupos focais (GF). Ainda, utilizamos a análise de conteúdo
categorial (AC), preconizada por Laurence Bardin (2011), tanto na análise dos produtos
midiáticos quanto da recepção juvenil, pois consideramos que esta opção metodológica
ancora-se no rigor técnico, apresenta o método de forma compreensível e organizada,
apontando um caminho que potencializa a observação da produção da subjetividade humana,
ofertando-nos sentido, significância e segurança para o alcance dos objetivos pretendidos pela
pesquisa.
Dessa forma, encontramos apoio e fundamento em Bardin (2011, p. 37, grifos da
autora) quando fala do campo de pesquisa que se relaciona a estes procedimentos
metodológicos:
A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análises das comunicações.
Não se trata de um instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com maior
rigor, será um instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e
adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações.
A pesquisa pressupõe a passagem por duas fases:
1) Análise dos produtos midiatizados das bandas de forró eletrônico: dvd “Limão com
Mel – Turnê Faz um coração”, dvd “Garota Safada – Uma nova história” e dvd “Furacão do
Forró – Ao vivo em São Luís-Ma”; e
2) Análise dos grupos focais (GF) com estudantes do ensino médio da rede pública de
ensino da cidade Caxias-MA.
A seleção dos participantes foi intencional conforme tratam Kirsten e Rabahy (2006),
em que utilizamos o juízo particular de recrutamento de estudantes jovens que gostam de
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
130
dançar, ouvir as músicas, ir aos shows e que adquirem produtos midiatizados das bandas
estudadas, ou seja, que possuam certo grau de representatividade subjetiva sobre o tema.
Como a pesquisa é qualitativa, selecionamos como sujeitos do estudo 44 alunos do ensino
médio da rede pública estadual da cidade de Caxias, estado do Maranhão. Os participantes são
de ambos os sexos, jovens com idade entre 18 e 25 anos, moradores de Caxias-MA e
estudantes do Centro de Ensino Inácio Passarinho.
O entendimento etário de jovem é aqui apropriado das contribuições de Andrade e
Silva (2009) quando esclarecem que a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) em
coadunação com o Conselho Nacional de Juventude (Conjuve), criados no ano de 2005,
definiram como jovens aqueles com idade entre 15 e 29 anos. Tal faixa é adotada na proposta
de Estatuto da Juventude, em discussão na Câmara dos Deputados, com os subgrupos de 15 a
17 (jovem-adolescente), de 18 a 24 anos (jovem jovem) e de 25 a 29 anos (jovem-adulto).
Os GF foram realizados nos dias 13, 16 e 17 de dezembro de 2014, com alunos do
primeiro, segundo e terceiro anos do ensino médio do Centro de Ensino Inácio Passarinho, na
cidade Caxias/MA. Sua realização foi precedida por esclarecimentos, pela assinatura do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE e pelo preenchimento de um
questionário com informações que possibilitaram organizar um perfil dos receptores de cada
GF e de todo o grupo de alunos pesquisados.
O conjunto de alunos pesquisados, 44 possuem, em média, 19,4 anos, sendo 18 anos a
menor idade considerada e 25 a maior. Desses alunos, 25 são do sexo masculino e 19 do
feminino. A renda familiar média dos pesquisados é de um salário mínimo e meio. São
majoritariamente católicos, 84%; e solteiros, 93%. 100% dos participantes gostam de forró e
de forró eletrônico.
Giroux (1995, p. 98) traz uma síntese das preocupações dos estudos culturais: “[...] o
estudo da produção, da recepção e do uso situado de variados textos, e da forma como eles
estruturam as relações sociais, os valores e as noções de comunidade, o futuro e as diversas
definições do eu”. Numa continuidade desse raciocínio, Giroux (1995) relaciona sons e
imagens (dispositivos midiáticos) nesse processo, assim como ressalta que os textos culturais
extrapolam as fronteiras dos estados nacionais. Assim, hoje, nosso público-alvo da pesquisa
(alunos do ensino médio) experienciam mais a convivência com a TV e recursos eletrônicos
midiáticos, inclusive na escola, do que com a própria escola, o que nos impõe considerar o
Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015
131
poder constituidor e subjetivador da mídia no mundo atual e no recorte por nós realizado para
o estudo.
Quanto a outras práticas sociais, identificamos que 55% dos alunos pesquisados
trabalham durante o dia, todavia apenas 27% consomem forró durante o trabalho ou nos
intervalos desse. Mas, como estudantes, 55% deles consomem forró nos intervalos das aulas,
sobretudo com o uso de celulares e smartphones.
Como estratégia de garantia do anonimato dos alunos pesquisados, os GF tiveram seus
integrantes identificados por pseudônimos constituídos por uma letra do alfabeto, precedida
pelo prenome ALUNO ou ALUNA, identificando os gêneros masculino e feminino, e seguida
pelo número do GF a que ele pertence, por exemplos: ALUNO A – GF 1; ALUNA E – GF 4.
3. Os estudos culturais e o modelo encoding/decoding
Ao extrairmos do pensamento nossas inquietações sobre o questionamento: o que é
Comunicação?, passamos a refletir sobre abordagens comunicacionais que nos incumbem a
necessidade de percorrer um caminho histórico-conceitual, mesmo que superficial, sobre os
entendimentos a respeito do processo comunicacional, com defesa a partir dos estudos
culturais e desemboco nos estudos de recepção/consumo.
Filiamo-nos a Eagleton (2005) e Thompson (2002) na crença de que não existem seres
ou indivíduos não culturais, pois estes são produtores de cultura. A identificação com um ser
cultural é apenas admitir que a condição humana é sempre encarnada em alguma modalidade
cultural específica. Essa defesa é alicerçada no percurso histórico contemporâneo e apresenta
uma coerência factual, a exemplo, observamos que as situações de miséria e exploração em
diferentes partes do planeta apresentam distintas formas culturais.
A defesa por um enlace cultural com o aporte teórico-metodológico da pesquisa de
recepção notadamente é por conta de que o engendramento cultural se relaciona com as
representações de mundo, de sociedade, do eu, que a mídia e outras maquinarias produzem e
colocam em circulação. Dessa forma, as visões de sociedade e os valores adquiridos no ver e
no conhecer promovem evidência da problematização dos artefatos de comunicação e
informação na vida contemporânea, com efeitos na política cultural que ultrapassam e/ou
produzem as barreiras de classe, gênero sexual, modo de vida, etnia e tantas outras.
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Ao privilegiar esse entendimento de cultura, pensamos também perceber a
interdisciplinaridade existente entre essa e os estudos comunicacionais, pois o ser humano é
produtor de cultura e a produz por processos comunicacionais, como apresentamos no escopo
de nossa investigação. Daí, percebemos a transversalidade existente entre os aportes culturais
e os comunicacionais, que se integram constantemente, numa semiose produtora de sentidos.
Stuart Hall inaugurou, em 1973, o encoding/decoding model como ponto de partida
para a mudança do foco do texto para o leitor. Nesse modelo, a codificação dá-se no processo
de produção e a decodificação no consumo/recepção, onde percebemos o uso de estratégias de
leitura/recepção por parte dos leitores, que podem ser: a) dominante: o sentido da mensagem é
decodificado segundo os objetivos da produção; b) oposicional: o receptor entende a proposta
dominante, mas interpreta de maneira alternativa, com outra visão de mundo; e c) negociada:
o sentido da mensagem entra em negociação, sendo um misto de lógicas contraditórias, com
valores dominantes e de refutação (ESCOSTEGUY; JACKS, 2005; MAIGRET, 2010).
Hall (1997) trata a cultura de maneira centralizada, um componente de todos os
aspectos da vida social contemporânea. Seu fundamento está nas práticas de significação que
passam por uma perspectiva interpretativa, organizacional e reguladora da conduta humana,
tendo alcances interdisciplinares na organização social. A centralidade da cultura
desencadeada por Stuart Hall está na sua relação com as tendências globalizantes e a vida
doméstica, local, devendo ser esta tratada de forma protagonizada.
Esse entendimento consegue deslocar a relação direta de comunicação da produção de
cultura para a de mediações culturais, que dão conta de novas formas de vida social, consegue
ressignificar a figura do ser passivo frente aos meios massivos para a impassividade, para a
pluralidade das audiências, que sacramenta a recepção como o locus da produção de sentidos,
negociados a partir de um panorama cultural do emissor e do receptor.
4. O forró eletrônico e a mulher
O forró, antes conhecido apenas como baião, tocado por batuques e maracatus
africanos, somente na década de 40 do século XX, por iniciativa de Luiz Gonzaga, foi
inserido no mercado fonográfico, alastrando-se por grandes centros como Rio de Janeiro e
São Paulo. Consagrou-se com a denominação de forró tradicional, desde então, serve de
referência para todos os outros estilos de forró contemporâneos. É música urbana, mas de
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origem rural, e funciona como ponte conectando culturas e gostos estéticos distintos,
contribuindo sobremaneira na consolidação de uma visão de identidade nordestina, através
das expressões, gestos, dança, do sotaque regionalista e das roupas, introduzidas por Luiz
Gonzaga no contexto identitário do nordestino (SILVA, 2003).
Contudo, passando pelo forró tradicional (pé-de-serra) e forró universitário, na década
de 90 do século XX iniciou-se a popularização do forró eletrônico, que trouxe sentidos
identitários diferentes dos demais estilos de forró. Segundo Cunha (2011), o forró, produto
cultural, emerge associado fortemente a uma ideia de nordestinidade, todavia, no forró
eletrônico é possível suspeitar que exista uma relação de distanciamento com esse sentido.
Enquanto o forró tradicional representou um elemento a ser somado a outras manifestações
regionais do restante do país, o forró eletrônico pautou-se na afirmação de uma única
nordestinidade. Tampouco ele poderia deixar de articular elementos diversos que ajudariam a
forjar uma nação forrozeira como algo simultaneamente além e aquém do Nordeste e de
modos de ser a ele correlatos. Dentro de um contexto de identidade cultural e de sentidos de
identidade, o forró eletrônico está inserido naquilo que Hall (2000) entende por novos tempos,
na contemporaneidade, onde as subjetividades têm se tornado importantes alvos de estudo e
preferências.
Segundo Silva (2003), o forró eletrônico, também chamado de forró pós-moderno,
inseriu em seu corpus um elemento semiótico importante: a exposição de mulheres atraentes,
de corpos esculturais, anatomicamente ressaltados e quase sempre à mostra. Daí, possamos
entender porque, para Trotta (2009), as características eróticas observadas nas letras do forró
eletrônico reforçam as características tradicionais de nossa sociedade, onde o poder do
homem sobre a mulher é um fato social, real, atual e relativamente dominante, sobretudo nos
discursos masculinos.
Todavia, apesar de observarmos que, nessas letras, a sujeição exclusiva ao poder
patriarcal é presente e se configura como a base para o comportamento submisso da mulher,
também observamos o reverso, o inverso, o controverso, que são as letras que trazem um
empoderamento feminino, de valorização do seu corpo, sua moral, sua individualidade e
apego à sua vida privada, que pode desenvolver-se com um outro parceiro, ou atém mesmo
sem eles – homens. (música um -“Poderosa, linda e perigosa” – banda “Furacão do Forró”)
No contexto da mídia, a imagem do corpo feminino passa por um processo de
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mercantilização. Evidenciamos cada vez mais um corpo descoberto na busca do atingimento
de objetivos capitalistas. E essa evidência dá-se, sobretudo, por processos midiáticos,
orientados por lógicas de mercado, onde empresas produzem mercadorias, informação,
entretenimento e publicidade, que, integrados, formam suas bases de interesses. E assim é a
indústria cultural do forró eletrônico.
Observamos que o corpo feminino está mais desprovido de subjetividade, alvo apenas
da lógica capitalista, que o coloca na infeliz condição de bem de consumo. Paralelamente, a
aparição crescente dessa problemática de mercantilização do corpo feminino através dos
apelos midiáticos faz emergir a discussão sobre a necessidade de se reverter essa situação, que
reflete a ideia de que o corpo da mulher, ao mesmo tempo que é seu, não lhe pertence
(GOELLNER, 2001).
Como nosso objeto de análise é a imagem feminina, trazemos algumas oportunas
contribuições de Judith Bluter (2000) sobre a diferença dos sexos, defendendo que a categoria
do sexo é, desde o início, normativa: ela é aquilo que Michael Foucault chamou de ideal
regulatório. Segundo a autora, é nesse ponto que, ao perceber que o sexo é materializado
como prática regulatória que gerencia, produz e transforma os corpos, a autora também nota
que existem sinais de que a materialização não é nunca totalmente completa, e que os corpos
não se conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua materialização é
imposta. Assim, essa instabilidade transforma-se em possibilidades de rematerialização,
abertas por esse processo, que marca um domínio no qual a força da lei regulatória pode se
voltar contra ela mesma para gerar rearticulações que colocam em questão a força
hegemônica daquela mesma lei regulatória.
5. O corpo erótico como categoria de análise
A análise de conteúdo a partir das letras das músicas apresentadas nos dvd foi
realizada com 64 músicas, 22 da banda “Garota Safada”, 22 da banda “Furacão do Forró” e
20 da banda “Limão com Mel”, onde foram identificados 161 sentidos ofertados nessas letras.
Esses sentidos foram agrupados a partir de duas variáveis: quantidade e similaridade, ou seja,
observamos os sentidos que mais são ofertados em cada dvd, bem como na união de todos
eles. Também reunimos os sentidos por suas similaridades formando categorias de análise, as
quais destacamos para nossa discussão a de corpo erótico.
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Os sentidos de sexo, erotismo, sensualidade feminina, sedução, desejo, excitação
masculina e de mulher safada foram associados numa mesma categoria de análise, pois estão
diretamente relacionados às representações simbólicas da mulher e do seu corpo. Essa
categoria é a que mais se coaduna com a análise realizada a partir da observação visual dos
shows, pois representa os sentidos de maior conexão simbólica entre as letras das músicas e as
coreografias realizadas pelas dançarinas em solo ou com seus pares. Apesar de a frequência
desses sentidos ser menor do que a dos de romance e empoderamento masculino, quando
analisadas em conexão com essas, potencializam o seu poder simbólico frente ao conjunto
discursivo dos produtos midiáticos analisados. Esses sentidos aparecem em 23 das 64 músicas
analisadas, pertencendo, assim, a 15% de todos os sentidos ofertados nas músicas.
Sentidos como os de erotismo, sensualidade feminina, sedução, desejo, excitação
masculina e de mulher safada são todos percebidos na letra da música “Não Pare” da banda
“Garota Safada”.
Na semiose formada pelo conjunto de músicas que traduzem essa categoria de análise,
é perceptível que a mulher ocupa um lugar secundário, com explícitas evidências de
subordinação, o que para nós é o resultado da universalidade do gênero como estrutura de
dominação masculina. Essas músicas reforçam desigualdades e o aparente empoderamento
sobre seu corpo, fazendo dele o que bem entende, não chega a ser suficientemente simbólico
para desarticular a relação assimétrica entre homens e mulheres, para trazer-lhe a liberdade
devida, para ser insurgente ao homem, para tirar o acento da distinção tradicional de papéis
entre homem e mulher. Os novos comportamentos femininos, sua modernização e
emancipação social perdem força com a cultura do forró eletrônico, na medida em que a
estigmatização do papel da mulher como safada, mas aceitável e reproduzida nas músicas.
Assim, Lima e Freire (2010, p. 10) esclarecem. O forró eletrônico:
Apropria-se de características e estereótipos femininos pertencentes à cultura
nordestina e dá a eles uma nova roupagem, com o aproveitamento de signos antigos
e criação de novos, que explicitam conduta e representação, não publicando a fala
feminina, ou seja, em como a mulher se vê e se percebe nesse cenário, cuja temática
é geralmente ela, com forte apelo erótico.
6. Percepções juvenis sobre um corpo erótico
Foi percebendo o protagonismo juvenil no campo cultural que nos filiamos à
perspectiva de estudar o consumo cultural de jovens, explorando suas representações de
gente, de gênero e de si em meio ao próprio consumo do forró eletrônico. Estudo esse que se
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junta a tantas outras pesquisas de natureza social que acompanham o perfil demográfico,
institucional, de mercado de trabalho, de sociabilização e de consumo, com jovens, que vem
aumentando nas últimas duas décadas, conforme verificamos em relatório publicado em 2009
que aponta a situação social brasileira até o ano de 2007. (CASTRO; RIBEIRO, 2009)
O estudo pensa em jovens não naturalizados, pensa em condições objetivas de
sociabilidade juvenil fragmentadas, em constante negociação com o mundo moderno, cheio
de novidades, obstáculos, êxtase, depressões e incertezas. É do que trata Bauman (1999), a
glocalização comunicativa, que hibridiza esse jovem que ouvimos e estudamos aqui, portanto,
seu endereço social é transitório, influenciado, é claro, pelo meio social, por sua cultura de
origem, sua cor, raça, sexo/gênero, pelo que vê e escuta.
O sentido de erotismo pode ser identificado entre os jovens nas falas de ALUNO A –
GF 1, ALUNO A – GF 2, ALUNO C – GF 5 e ALUNO B – GF 5, que apresentam valores de
erotismo e sensualidade relacionados ao seu consumo de forró e de como veem as dançarinas
das bandas.
O vídeo da Garota Safada fala mais da forma como a mulher dança, da sensualidade
dela, ensinando as mulheres dançar com sensualidade. [...] Ah! Aí eu dou valor,
rapaz! Quando começa a mexer a bunda, aquelas coisas ali é linda demais. Oxe!
Uma bunda daquele tamanho ali, é claro, professor, quem é que não se anima? Qual
o homem que não vai gostar? Rapaz, eu sinto prazer e a pessoa fica alegre, é isso.
(ALUNO A – GF 1)
Eu concordo com o ALUNO A–GF1, mas eu gosto de letras que fala de
imoralidade, porque eu acho mais espontâneo, tem mais a ver com meu estilo.
(ALUNO A–GF 2)
Eu não gosto quando a roupa das dançarinas é longa, porque num chama atenção.
Tem que chamar a atenção, tem que mostrar a barriga. (ALUNO C – GF 5)
É uma belezura. O formato das bichas oh! Das pernona, das bunda. O corpo dela é
massa. Cheinhas [...] Só de minissaia, calcinha fio dental (ALUNO B – GF 5)
Contudo, percebemos sentidos em circulação que se opõem à valorização erótica e
sensual das narrativas acima. É o exemplo das alunas ALUNA E – GF 2 e ALUNA J – GF 2.
Para as alunas,
A mulher é desmoralizada. Em algumas letras, porque, professor (...), em muitas
músicas, assim que usam, assim, o nome da mulher, assim, de forma pejorativa [...]
muitas músicas que chamam a mulher de puta, de num sei o quê, aí, também, tá
desmoralizando a mulher, algumas. [...] Outras tratam a mulher normal. (ALUNA E
– GF 2)
Na dança, eu não gosto das coisas de sacanagem. Tem uma música do “Washington
Brasileiro” que eu fui aqui, que é obrigado, a mulher subir em cima do homem e o
homem fica (a aluna faz gestos sexuais). Eu num acho isso bom, não. (ALUNA J –
GF 2)
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Assim como Hall (1997) apresenta, no modelo encoding/decoding, a mudança do foco
do texto/imagem para o leitor, percebendo nesse a possibilidade de leitura/recepção
oposicional, onde o receptor entende a proposta dominante, mas interpreta de maneira
alternativa, com outra visão de mundo, observamos também esse contexto nas narrativas
juvenis desta pesquisa. ALUNA I – GF 4, que se opõe a esse modelo industrial cultural de
corpo feminino quando diz:
Já eu vou falar o contrário. Pra mim, isso daí num importa, esse negócio de malhar,
pra mim é o corpo normal, pra mim, o que eu tenho mais assim é os seios: pequenos,
cintura fina, num importa se a bunda é grande ou não, pra mim tanto faz. As pernas
nem muito grossa, depende da cintura, normal, sem malhar, sem nada.
Também com este posicionamento, ALUNA E – GF 1 contraria: “Eu não gosto do
exagero. Em nem todas as dançarinas tudo é 100% natural. Sempre tem um exagero aqui e
acolá. A questão do silicone (...) É que elas vão além do limite”. ALUNA F – GF 1 reforça:
“Elas se tornam mais feias quando exageram tanto em silicone, acho que ficam mais feias.
Porque é muita coisa, seio muito grande, bumbum muito grande....”. E ALUNA H – GF 2
conclui: “É, o corpo de algumas são, mas de outras não, é muito malhado. Tem umas que
exageram demais e aí fica muito grande, sei lá, diferente”.
Assim, verificamos nesta recepção a valorização de uma enunciação oposicional,
compreendendo que a heterogeneidade é necessária para o entendimento da subjetividade
humana e, principalmente, para, sem reificá-lo, amplificar o lugar do leitor ativo que recebe,
interpreta e põe em circulação mensagens nem sempre pretendidas pela mídia.
E, recuperando, mais uma vez, o encoding/decoding model, percebemos que as
estratégias de leitura/recepção por parte dos leitores podem ser negociadas. Nelas, o sentido
da mensagem entra em negociação, sendo um misto de lógicas contraditórias, com valores
dominantes e de refutação. (ESCOSTEGUY; JACKS, 2005; MAIGRET, 2010).
7. Considerações finais
O forró eletrônico, enquanto cultura regional, mostrou-se uma mediação simbólica rica
e de contribuição decisiva para entendermos as subjetividades humanas, os processos de
globalização e os seus efeitos em uma cidade do interior do Maranhão, onde as juventudes
estudadas passam por um processo de intensa ressignificação, apesar de todas as forças
conservadoras, medievais e patriarcais que tentam mantê-las como estão. Por isso, a escolha
dos estudos culturais para alicerçar nossas pretensões. Pretensões essas de tensionar preceitos
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da perspectiva elitista da cultura e incluir uma epistemologia que reconecta teoria e prática
com características fundamentais dos estudos culturais, sem deixar de lado o pensamento
crítico. Trata-se do exercício de realizar análises culturais de uma outra maneira, com a
refutação de pressupostos tradicionais e a criação de categorias laxas.
E em se tratando de categorias, como estratégia de análise dos dados, tanto da
produção, quanto da recepção, identificamos, nos dvd das bandas Limão com Mel, Furacão do
Forró e Garota Safada, a categoria de erotismo, que também foi localizada nas narrativas dos
jovens estudados
Diante desses resultados, da produção e da recepção, concluímos que a cultura do
forró eletrônico possui uma discursividade múltipla, onde sentidos oriundos da indústria
cultural do forró são tensionados com os sentidos da cultura popular, da tradição agropastoril
do baião de 1940, com a oferta tecnológica para ouvir, ver e produzir o próprio forró, com
forças emergentes de emancipação feminina e com as ressignificações identitiárias que cada
jovem consumidor possui. Cada jovem aluno ouve, assiste e interpreta o forró de uma maneira
distinta. Alguma homogeneização ainda é percebida, sobretudo, no padrão dicotômico de
comportamentos próprios do homem e os comportamentos próprios da mulher. Contudo, nada
que se compara às negociações de sentidos observadas no estudo, que nos revelaram jovens
consumidores conscientes de seus interesses de audiência.
Definitivamente, pensamos que entender a relação entre as juventudes e o forró
eletrônico midiatizado, primeiramente, deve colocar em destaque a emergência dos jovens
como atores sociais, tecnológicos, sensíveis e criadores de sentido. Notamos, nesse tempo de
pesquisa com os jovens caxienses, que esses assumem as relações sociais como experiência
fortemente afetuosas, principalmente, pela valorização estética, e pela corporeidade
relacionada à cultura do forró eletrônico, que funcionam, muitas vezes, como sua fala, a
maneira que têm de expressar suas preferências.
Escolhemos a análise de dvd como elo entre nosso estudo e a proposta da linha de
pesquisa, mídia e produção de subjetividades, porque entendemos que existe um processo
hegemônico que envolve diversas tecnologias da informação que organizam um sistema
cultural dominante. Contudo, também, levamos em consideração que o leitor participativo
pode acatar, negar ou negociar esses sentidos dominantes, ora subordinando-se, ora
insurgindo-se contra esse regramento simbólico naturalizado. Por isso, analisar produção e
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recepção numa mesma pesquisa.
Este estudo não tem a pretensão de colocar-se como pesquisa finalizada. Dessa forma,
nossas conclusões devem ser objeto de reflexão, complementaridade e maior exploração por
parte de mais pesquisadores da cultura e comunicação, pois são posicionamentos abertos a
discussão e relativização espaço-temporal.
Acerca da imagem da mulher e do seu corpo no forró eletrônico midiatizado,
concluímos que os jovens participantes do estudo veem essa mulher como um agente
simbólico, constituinte de um complexo cultural que agencia uma multiplicidade de sentidos
que servem a diversos fins.
Primeiramente, sentidos aparentes nas narrativas apontam para a convergência entre a
oferta dos dvd e a defesa dos jovens: a do binarismo sexual. Para os jovens, fica claro que a
mulher é heterossexual, pois seu papel social, seja de mulher da casa, seja de dançarina
promíscua, somente abarca relacionamentos amorosos com sujeitos do sexo oposto. Essa
condição é estruturante para uma outra conclusão firmada, a de que existe uma dicotomia
feminina consolidada no imaginário dos jovens pesquisados. A de que existe uma mulher
direita, para o casamento (vestida de roupas longas, compenetrada e doméstica) e outra
“safada”, para o sexo (dançarina, que rebola, desnuda e que gosta de se mostrar). Imaginário
preponderantemente enunciado pelos alunos, que gerou pontos de discussão e oposição de
algumas alunas, que enunciaram tê-la como uma profissional como outra qualquer. Todavia,
quando indagada sobre dançarinos, apresentaram, em sua maioria, representações patriarcais
semelhantes às dos alunos.
Tácita, também, é a condição da mulher, dançarina de forró eletrônico, como elemento
catalisador de audiência televisiva e dos shows de forró. A maioria dos jovens estudados,
tanto do sexo masculino como feminino, concordam que a mulher é parte de uma estratégia
mercadológica para vender cd, dvd e atrair público para os shows, majoritariamente ocorridos
no Nordeste do Brasil e fonte maior de renda das bandas de forró. Para essas juventudes, a
mulher no forró eletrônico é linda. Seus atributos corporais de “pernona”, “bundona” e
“peitão”, “mulher gostosa”, que leva a um imaginário erótico e de sensualidade para os
garotos e de “um dia eu gostaria ser ela” para as garotas fazem dessa mulher um ícone
referencial de beleza feminina. Algumas poucas negociações dessa representação simbólica
sexual e de estética a ser atingida pelas jovens surgiram, representando a oposição em relação
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às estratégias de consumo da indústria cultural do forró eletrônico, todavia, em maioria, a
mulher no forró eletrônico é um ícone referencial de beleza, tanto para alunos, quanto para
alunas.
A imagem da mulher no forró eletrônico midiatizado é plural, mas a dos seus corpos é
erotizada. E os jovens também entendem isso, pois seus modos de ser e estar também são
plurais. Essa mulher, por vezes, violentada simbolicamente pela indústria cultural, é
reconhecida como ícone e beleza, estratégia de consumo mercadológico, profissional, esposa
para uns e amante erótica para outros, apaixonante bailarina e independente financeiramente,
empoderada do seu corpo, que agora diverte-se igual aos homens e é traidora conjugal,
sobretudo por vingança. É uma mulher que já não perdoa tanto, mas ainda sonha com seu
príncipe. É uma mulher negociadora, de sentidos e de posições sociais, de lugares de ser, estar
e de se ressignificar.
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RESENHA
UMA CULTURA POLÍTICA DE PROTESTO RESSURGIDA
Felipe Canova GONÇALVES64
Resenha do Documentário
“Ressurgentes – Um filme de ação direta”
O longa-metragem “Ressurgentes – Um filme de ação direta”65, da cineasta e
professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Dácia Ibiapina,
acompanha a trajetória de uma geração de militantes de movimentos sociais autônomos no
Distrito Federal, entre os anos de 2005 e 2013. Com uma narrativa que coloca habilmente o
espectador no cotidiano das ações desses movimentos, alternando gravações próprias com a
recuperação do arquivo fílmico de vários realizadores audiovisuais e do Centro de Mídia
Independente (CMI), o documentário sistematiza a memória recente de mobilizações
populares na capital do país como o “Fora Arruda e Máfia”, que se tornou um elemento
central para a queda do ex-governador José Roberto Arruda; “Santuário não se move”, contra
a implantação do bairro Noroeste em um território indígena encravado no Plano Piloto; a
“Marcha das Vadias”, uma das principais expressões da luta feminista contemporânea; e as
ações do Movimento Passe Livre por um transporte público gratuito e de qualidade.
Ao centrar seu foco nas ações diretas, o filme traz à tona novas formas de fazer
política (re)criadas por estes movimentos, que contrapõem formas tradicionais de mobilização
social, por exemplo, as adotadas pelo movimento estudantil universitário ou aquelas
enraizadas na lógica de atuação dos partidos políticos. Em outras palavras, durante o
documentário assistimos ao ressurgir de uma cultura política de protesto nas ações dos jovens
militantes.
64
Mestre e doutorando em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), na linha de Políticas de Comunicação e
Cultura. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Email:
[email protected].
65
Documentário de 75 minutos, exibido na Mostra de Cinema de Tiradentes e na Mostra do Filme Livre, de abrangência
nacional. Também teve veiculação na televisão por assinatura, no Canal Brasil. O trailer e os teasers do filme estão
disponíveis em <http://ressurgentes.com.br/>.
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143
Entre estas novas formas de ação política apresentadas pelo documentário, emerge de
forma evidente a importância da ocupação como núcleo de ação dos movimentos autônomos.
Seja na mobilização em defesa de um território indígena, na tomada de um espaço
institucional, como a Câmara Legislativa distrital, ou nas lutas travadas na rodoviária, ponto
central do Plano Piloto, é assumida a necessidade de territorializar conflitos comumente
invisibilizados e, por conseguinte, possibilitar estratégias que visem à resistência ou à
superação de seus impasses. Além disso, como afirma um dos protagonistas do documentário,
a ocupação reúne em um polo único quem “quer uma válvula de escape, quem quer um jeito
de se expressar, de participar”.
A multiplicidade de pautas dos novos movimentos sociais é tratada no filme de forma
encadeada e complementar. Um exemplo é a associação entre a corrupção governamental e a
especulação imobiliária – recorrente no Distrito Federal – rapidamente percebida com a
ligação entre os dois primeiros segmentos do documentário: enquanto os ocupantes da
Câmara Legislativa clamavam pela queda do governo Arruda, os funcionários deste governo
envolviam-se em negociatas para a construção do bairro Noroeste, que implicariam na
remoção dos indígenas ali estabelecidos sem garantia de direitos. Tal conexão das lutas
acompanhadas pelo filme também tem o mérito de historicizar as ações do Movimento Passe
Livre em Brasília e seus desdobramentos, em um processo que culmina nas mobilizações de
junho de 2013, ponto final da obra.
O documentário reflete também, além das transformações na ação política
incentivadas pelos movimentos retratados, sobre a própria ação de filmar. A enorme
quantidade de câmeras e celulares dos manifestantes assume um caráter político, de
prolongamento dos corpos em ação, tornando-se uma arma ou um escudo a depender do
contexto de cada mobilização. As imagens de cineastas dos movimentos ou ligados a estes em
momentos decisivos das mobilizações, selecionadas por uma pesquisa criteriosa e
posteriormente montadas com um ritmo perspicaz, revela sem filtros as táticas de
enfrentamento dos militantes, a brutalidade policial – como nos ataques dos PMs aos
cinegrafistas ou nas investidas da cavalaria sobre ativistas indefesos –, o descontentamento
popular com o transporte, as reações dos indígenas à perda de seu território e, especialmente,
os diálogos travados no calor da luta – a maior parte deles com nítida ironia dos manifestantes
aos representantes do poder.
Embora as imagens de ações diretas e mobilizações ocupem a maior parte da obra, a
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cineasta dá espaço para a reflexão dos militantes em entrevistas, que revelam contradições e
diferentes perspectivas sobre sua ação política. Do ativista que considera sua geração invicta
nas lutas que levou a cabo à jovem que pondera sobre a impossibilidade de barrar o aumento
da tarifa de ônibus após meses de mobilização, surgem reflexões mais amplas sobre o
conformismo dos jovens que não se envolvem nas mobilizações populares, a necessidade de
desmontar o poder de Estado – não de tomá-lo –, a permanência dos conflitos mediados pelo
capital nas relações sociais e a luta por direitos.
Ainda quanto ao uso de entrevistas nesse tipo de obra cinematográfica, em que a ação
direta é o cerne da narrativa, cabe aqui a comparação com duas produções realizadas sobre as
“Jornadas de Junho” de 2013: “Junho” de João Wainer, em produção da TV Folha, e “20
Centavos” de Tiago Tambelli. Enquanto o primeiro prioriza especialistas externos – em sua
maior parte colunistas do próprio veículo – para decifrar os confusos dias de mobilizações
nacionais diárias, o segundo opta pela ausência de entrevistas, salvo raros depoimentos
colhidos no meio das manifestações. Dácia Ibiapina, por sua vez, cria um movimento de açãoreflexão ao possibilitar o distanciamento dos militantes da ação direta, o que permite a eles
problematizar as causas pelas quais lutam, bem como seus impasses enquanto movimento
social e os desafios colocados pelas próprias ações.
Como limites da obra, podemos destacar a ausência de duas questões chaves: a
articulação dos movimentos sociais autônomos com outros movimentos e partidos políticos
não é trabalhada no documentário, como também não se destaca a organização enquanto pilar
de sua ação política. A ausência do tratamento da articulação entre várias expressões políticas
torna-se visível logo no começo do filme, no segmento que mostra a luta pela queda do
governo Arruda. Ali é percebida uma aglutinação de partidos e sindicatos de esquerda, em
forte unidade na diversidade daquela ocupação, na qual o papel dos militantes autônomos é
igual ao de lideranças vinculadas à chamada (muitas vezes pejorativamente) “esquerda
institucional”. Essa articulação poderia ser discutida nas entrevistas, porém não aparece.
Contraditoriamente, os próprios movimentos autônomos apontam para a necessidade de
articulação com outros movimentos na Carta de Princípios do Movimento Passe Livre, por
exemplo66.
O segundo limite está claro desde o título da obra, na opção de recorte proposto pela
66
“Deve-se participar de espaços que possibilitem a articulação com outros movimentos, sempre analisando o que é
possível fazer de acordo com a conjuntura local”. Disponível em: <http://saopaulo.mpl.org.br/apresentacao/carta-deprincipios/>. Acesso em 10 de abril de 2015.
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cineasta: a ausência de um olhar mais detalhado sobre o processo organizativo desses
movimentos. Apenas na “Marcha das Vadias” é documentada a preparação da mobilização.
Se exposto, poderia ter como efeito a refutação de ideias banalizadas após junho de 2013,
como a que afirma que as lutas dos novos movimentos sociais têm caráter espontâneo, ou
mesmo a sobrevalorização da internet em seu papel mobilizador, que diminui, em alguma
medida, a importância do trabalho de base cotidiano, da formação política e do impacto de
uma capacidade de resistência e luta persistente, aberta à participação de novos sujeitos
políticos. Vale ressaltar que ambos os filmes sobre as “Jornadas de Junho” acima
mencionados padecem desses mesmos limites, o que não tira o mérito dessas obras, nem o de
“Ressurgentes”.
Em síntese, o documentário de Dácia Ibiapina nos oferece a possibilidade de vivenciar
o cotidiano de movimentos sociais contemporâneos que repensam integralmente a prática
política da mobilização social, por meio de ideias como horizontalidade, autogestão e poder
popular. Ao provocar nossa memória com seu mosaico sobre as lutas sociais dos últimos anos
no DF, a cineasta nos leva a refletir sobre nosso papel enquanto sujeitos políticos nos dias de
hoje, para além de polarizações muitas vezes superficiais e da nossa condição frequente de
espectadores da disputa pela hegemonia política, social e cultural.
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RESENHA
Sobre o fim da televisão?
Patrícia AZAMBUJA67
RESENHA
CARLÓN, Mario e FECHINE, Yvana (org.). O fim da televisão. Universidade
Federal de Pernambuco: Editora UFPE. 2014.
O título sugestivo do livro organizado pelo pesquisador argentino Mario Carlón e
pela professora do Departamento de Comunicação Social da UFPE, Yvana Fechine, parece,
mais uma vez, retomar o profético campo das previsões sobre o futuro dos meios de
comunicação. A bola da vez não poderia ser outra, a televisão.
Para os autores, a coletânea retoma o tema com o objetivo original e oportuno de
difundir através da língua portuguesa algumas ideias de estudiosos representantes do que
chamaram de “pensamento latino-americano sobre o meio” (p.7). De forma a enriquecer as
discussões, esse cenário internacional de debate nos apresenta alguns dos principais
contrapontos e/ou visões convergentes que envolvem a corrente anglo-saxã que prenuncia,
desde 1981, com o ensaio A Terceira Onda de Alvin Toffler, o declínio dos meios massivos
de comunicação.
O livro foi concebido como uma espécie de “mesa redonda” entre os participantes,
um encontro que presencialmente nunca ocorreu, até porque os autores nunca estiveram todos
ao mesmo tempo em um mesmo evento. Mesmo assim, o debate aconteceu de outros modos e
ganhou corpo como coletivo de pensamentos. Nesse debate, observa-se - assim como ocorre
de modo mais geral no cenário internacional - ao menos duas correntes de pensamento a partir
das quais esse momento de transição da televisão vem sendo interpretado: uma delas sustenta
67 Doutora em Psicologia Social pela UERJ, mestre em Artes Visuais pela UNESP e graduada em Comunicação Social pela
UFMA, atualmente, é professora Adjunta da Universidade Federal do Maranhão com experiência na área de comunicação,
com ênfase nos seguintes temas: artes visuais, interfaces gráficas e narrativas hipermidiáticas. Também é coordenadora do
projeto de pesquisa “Comunicação Expandida: entre mudanças de comportamento e a possibilidade de novas produções” e
Bolsista de Produtividade - financiamento FAPEMA
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a ideia que a televisão não está nem morta e nem morrendo, a outra, que a TV como
conhecíamos já tem seus dias contados (p.8).
As principias referências utilizadas são: El fin de los medios masivos. El comienzo de
un debate (CARLÓN, Mario e SCOLARI, Carlos Alberto), reeditado em 2014 pela editora
argentina La Crujía, com o título El fin de los medios masivos. El debate continúa; e
TVMORFOSIS, la televisión abierta hacia la sociedad de redes (OROZCO, Guillermo), livro
publicado no México, em 2012.
Já nos primeiros artigos percebe-se esta como uma discussão pouco consensual. Para
Mario Carlón, no artigo Repensando os debates anglo-saxões e latino-americanos sobre o
“fim da televisão”, a grande parte dos pesquisados partem de diferentes perspectivas teóricas
(Estudos Culturais, perspectiva Mcluhaniana ou Semiótica dos Meios da América Latina), por
isso, propõe um panorama esquemático nitidamente polarizado, no sentido de organizar um
quadro útil para o cenário geral (p.13). Em meio a opiniões que sugerem que a televisão da
década de 60/70 está morrendo e/ou mudando de fase (da escassez às infinitas opções), o
autor destaca o debate na América Latina, impulsionado por Eliseo Verón (2009), que situa
três eixos centrais: “o fim da programação, a crise da televisão como meio e o novo papel do
espectador” (p.15). De certo que algumas dessas mudanças já vinham sendo sinalizadas pela
ampliação do uso do videocassete, do controle remoto e da pré-programação, distanciando o
tempo da oferta do tempo de consumo (p.16). Por outro lado, essa flexibilização do tempo de
acesso já anunciava questões na forma e na recepção: da escassez na oferta e na quantidade de
aparelhos receptores à explosão, principalmente nos EUA, em caminho contrário: “em nossa
sociedade, as pessoas têm gostos diferentes e realizam (por causa do seu pertencimento
identitário a diferentes grupos sociais) sempre que podem, escolhas diferentes (esse fenômeno
está explodindo nas moradias na medida em que as telas se multiplicam e cada um pode
escolher o que ver” (p.17).
Mario Carlón pondera em torno das aparentes distinções entre o que seria um novo
ciclo para o mesmo objeto, e a finalização de uma era. Neste fato instaura-se a dificuldade do
debate, consequência dos diferentes conceitos e interpretações dos processos históricos
utilizados como referência no entendimento do contexto televisivo. Para o pesquisador,
“encontramos no final de um período mais que uma nova fase” (p.17).
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Em sentido geral, os textos que seguem organizados nesta coletânea articulam suas
ideias (nem sempre consensuais) levando em consideração um ponto comum: certos tipos de
televisão perduram, e o que inquieta é o entendimento sobre os caminhos a serem seguidos.
Carlón avalia na fase pós-TV (com principal sintoma tem a descentralização do canal emissor
no fenômeno que chama televisão expandida), que por mais enfraquecida que esteja sua
vigência como programadora da vida social (experiência espectatorial única a partir da
transmissão ao vivo), parte de suas características mais conservadoras muito possivelmente
sobreviverá a qualquer nova fase, ou qualquer novo suporte.
Carlos Scolari - This is the end: as intermináveis discussões sobre o fim da televisão
-, que considera a televisão “a experiência comunicacional mais marcante do século XX”
(p.39), sustenta a necessidade de articulação entre suporte e prática social, e a aparente crise
do modelo broadcasting não tem poder de decretar o seu fim como linguagem e dispositivo.
No sentido de escapar das armadilhas do prefixo pós-, sugere o conceito hipertelevisão para
definir uma “configuração específica da rede sociotécnica em torno do meio televisivo […]
Os programas da hipertelevisão adaptam-se a um ecossistema midiático no qual as redes e
interações ocupam um lugar privilegiado e adotam algumas das características relevantes das
‘novas mídias’” (p.45). Entre elas: multiplicação de programas narrativos, fragmentação da
tela, aceleração da história, narrativas em tempo real (ou gravado e distribuído sob demanda),
histórias não-sequenciais e expansão narrativa. Para Scolari, essas características exigem que
o telespectador disponha de “todas as suas competências narrativas, perceptivas e cognitivas
para interpretar um produto textual cada vez mais atomizado, multitela, transmídia, carregado
de personagens que conduzem uma complexa trama de programas narrativos” (p.50).
Com o foco na recepção, Arlindo Machado e Marta Lucía Vélez discorrem sobre o
Fim da televisão e focam em dois caminhos aparentemente contraditórios, duas modalidades
de espectadores: os espectadores passivos e os interatores. Os autores seguem analisando
perspectivas da cultura da convergência, discutida por Henry Jenkins (2008), no sentido de
identificar várias experiências nesse campo: transmedia storytelling é “uma narrativa que se
passa em vários meios diferentes ao mesmo tempo, sem que um meio repita o outro” (p.61).
Para Machado e Vélez, a televisão na era da internet é feita para ser discutida, dissecada,
debatida, prevista e criticada. No entanto, às vezes, “parece que a televisão apenas mimetiza o
design da internet, mas não a sua linguagem, o seu modo de operação” (p.75). Programas
como Lost, por exemplo, prometeram mudanças profundas na forma de produzir e consumir
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televisão. “Resta saber se os outros programas vão segui-lo e, preferencialmente, superá-lo.
Resta saber, enfim, até quando a televisão tal como a conhecemos vai continuar e em que
momento as pressões por mudanças serão tão fortes que a questão se restringirá a mudar ou
morrer” (p.75).
Por outra ótica, Toby Miller, em O agora e futuro da televisão, o uso da internet
como um potente dispositivo de marketing para a televisão impulsiona a ideia deste meio
como cenário confiável para os anunciantes financiadores dos conteúdos produzidos, visto
que a fragmentação da audiência aproxima o anunciante do seu nicho específico. O que já
demonstra a dificuldade em encontrar soluções únicas para a grande questão postulada de
início. Miller sai em defesa da televisão como dispositivo. “Em 2008, havia 1,1 bilhão de
aparelhos de televisão em todo mundo, dos quais 43% recebiam sinal aberto e 38% sinal por
cabo ("World", de 2009). A televisão é mais diversificada, difusa, popular, poderosa e
inovadora do que nunca. Nossos brilhantes e novos televisores de tela plana serão destronados
se a nova geração Sony, Samsung, LG, Toshiba, Sharp e Panasonic com streaming de filmes
e widgets do Yahoo!/Intel para se conectar à internet com informações sobre o clima e as
finanças, ou reprodutores Blue-Ray com acesso à internet decolarem” (p.83).
Todas essas descrições sobre o futuro da televisão, de alguma forma, passam pelo
que Guilhermo Orozco elabora em Televisão: causa e efeito em si mesma. Para o pesquisador
mexicano, buscamos identificar não o futuro, mas os “futuros”, pois são muitas questões
interconectadas, não apenas porque a TV está interligada a elas, “mas porque ela mesma é
‘muitas coisas ao mesmo tempo’ […] A TV é uma instituição social, pública ou privada, e
uma indústria cultural, bem como um dispositivo de geração e distribuição de imagens,
informação e publicidade, o que a faz um instrumento de mercado altamente cobiçado” (p.9697). Orozco propõe pela perspectiva dos Estudos Culturais compreender a televisão a partir
dos seus aspectos socioculturais, partindo de uma questão técnica, a de que as telas se
multiplicam para fora das casas, institui-se daí um novo sujeito espectador, o que significa
“uma mudança substancial em nossas maneiras de ‘estar e ser’ na vida cotidiana e,
especialmente, em nossos modos de ver e acreditar na realidade por meio da sua
representação na tela” (p.98). É a partir dessa dimensão que o autor identifica mudanças
substanciais, de “um novo ‘contrato’ social, nesse caso, um contrato televisivo frente às
diferentes telas do presente e no futuro” (p.99). Para Orozco, o fenômeno televisivo estruturase em um espaço de negociação entre tela e público, o que estabelece um tipo de
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reconhecimento mútuo entre a expressão audiovisual (sua gramática) e as situações de uso
desta. “E seria uma mudança nessa dimensão que poderia significar não propriamente um
‘fim da TV’, mas o início de outro contrato televisivo paralelo e, especialmente, o surgimento
de outros tipos de reconhecimento e comportamento do público televisivo em cenários
digitais” (p.101).
De qualquer forma a televisão se estabeleceu como “o epicentro do audiovisual”
(p.102), e muito se discutiu em relação às formas de experimentação do real, da sua
descentralização como tela dominante, novos formatos que surgem etc., e juntando a essa
efervescência, Orozco destaca “as narrativas transmídias (SCOLARI, 2003) e as criações
fanfiction dos espectadores (JENKINS, 2008)”, a partir das quais o conteúdo produzido para
TV procura expandir-se, como experiências capazes de atingir múltiplas telas, formatos e
condições de recepção. Assim, vivencia-se hoje uma situação “bipolar. Coexistem antigas e
novas audiências, velhos e novos contratos televisivos, assim como formas novas e antigas de
assumir os novos reconhecimentos mútuos entre a TV e o público” (p.107). O autor destaca
que, inevitavelmente, tendências opostas coexistirão e que a TV, de uma forma ou de outra,
segue mais viva que nunca, apesar dos muitos desafios encontrados.
A partir dos tópicos já elaborados pelos demais autores, Yvana Fechine, em Elogio à
programação: repensando a televisão que não desapareceu, discute, fundamentalmente, uma
linha que torne possível descrever menos os conteúdos que circulam e mais a “vivência
cotidiana com a televisão como fenômeno cultural” (p.116). Assim, a pesquisadora procura
compreender as experiências de fruição experimentadas em relação às sensibilidades e hábitos
relacionados às rotinas com a televisão. “Como se dá tal processo que resulta, então, na
construção de um hábito? Basicamente, pela descoberta de um gosto pelo gozo da fruição ou
o ‘gosto da fruição’: fruição na qual se renova o gosto do sujeito pelo objeto; gosto que se
produz justamente no e pelo reiterado contato de um com o outro” (p.120). Nesse sentido,
Fechine retoma a discussão sobre a grade de programação - como esse arranjo contínuo de
conteúdos que se repetem ao longo dos dias da semana - e destaca um evidente conforto para
essa cotidianidade regular. “Silverstone (1996) já havia chamado a atenção para esse
importante papel da TV na construção desse sentimento de ‘sentir-se em casa’ […] descreve o
lar como produto de nosso compromisso prático e emocional com um determinado espaço”
(p.123). Portanto, sendo a TV um desses vínculos articuladores das práticas cotidianas e
domésticas, aparece também como componente estruturador de familiaridades, hábitos,
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conforto e, fundamentalmente, o que a autora destacou como “uma experiência comum de ver
TV” (p.124). Esse efeito de comunicação direta, presente também na transmissão ao vivo da
televisão, transforma o meio em um poderoso instrumento de integração social, numa “escala
mais individual, esse efeito de encontro corresponde ao sentimento de ‘ver junto’ e, como
consequência, um ‘estar com’ e um ‘sentir-se junto’ que se manifesta, sobretudo, nas
coberturas ao vivo de eventos especiais” (p.125).
Essa estrutura, que sustenta a possibilidade do espectador dos fluxos midiáticos
sentir-se parte de um mesmo corpo social, através da simultaneidade entre produção e
recepção, transforma a televisão, a partir da multiplicação da telas, “mais que nunca em lugar
de interação” (127). A autora cita como exemplo a transmissão dos jogos da copa do mundo,
como esse momento de sentir-se junto tão somente pela experiência de compartilhar
simultaneamente conteúdos televisionados. Uma experiência que ganha nova dimensão pelo
uso crescente de redes sociais digitais, o que por outro lado apenas potencializa “o que sempre
foi uma das propriedades fundamentais da lógica da grade direta de programação: o
compartilhamento de conteúdo” (p.128). Para Yvana Fechine, portanto, as novas práticas
difundidas a partir da digitalização e da convergência entre mídias não são ameaças, pelo
contrário, reforçam o consumo através da grade de programação, pois ampliam o sentimento
de “estar conectado” e a possibilidade de intervenção dos telespectadores nos programas ao
vivo. “A aposta da centralidade da grade na nossa experiência com a TV é também o que
orienta o desenvolvimento dos chamados conteúdos de ‘segunda tela’ sincronizados com a
programação. Concebidos, sobretudo, para tablets e smartphones (considerados, neste caso,
como tela auxiliares a da TV), eles funcionam como conteúdos complementares aos
programas ofertados na grade (informações adicionais, por exemplo)” (p.129).
Enfim, as conclusões possíveis ao final da leitura dos diversos artigos na coletânea,
certamente, não terão uma única configuração. Isso porque, sob o viés dos diferentes ângulos
histórico/ conceituais, os pesquisadores não decretam um fim, mesmo quando o assunto diz
respeito à mais antiga conformação televisiva: a grade de programação. Em linhas gerais,
cada um a sua maneira considera inviável para este momento instituir verdades absolutas ou
definitivas (p.7). E se há algum acordo entre as partes que envolvem esse mosaico de opiniões
detém-se à importância de analisar mudanças históricas, tecnológicas, formas de produção e
consumo, e assim buscar compreender novos comportamentos para dignosticar possíveis
novas estratégias frente às múltiplas possibilidades descritas.
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