Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa

Transcrição

Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
CINEMAS DE ESTREIA E CINEMAS DE BAIRRO EM LISBOA (1924-1932).
Tiago Baptista (Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema)
RESUMO
A multiplicação de cinemas de bairro em Lisboa gerou novas práticas de recepção e
contribuiu para a progressiva massificação do espectáculo cinematográfico, entre o final dos
anos vinte e início dos anos trinta. Este processo foi percepcionado como uma ameaça à primazia
espacial e social dos cinemas de estreia no “centro” da cidade, razão pela qual encontramos na
imprensa especializada desses mesmos anos várias descrições depreciativas dos cinemas de
bairro. Sempre de um ponto de vista comparativo com os cinemas de estreia e aproximando-se
frequentemente do subgénero jornalístico das reportagens ao bas-fonds lisboeta, estas descrições
construíram a imagem popular, indisciplinada e retrógrada dos espectadores dos cinemas mais
afastados do eixo Baixa-Chiado, que nesse processo reforçou o seu estatuto como centro cultural,
comercial e de entretenimento da cidade.
“Salões”, cinemas de estreia e o “centro” de Lisboa (1907-1924)
Quando o cinema Tivoli, situado a meio da Avenida da Liberdade, foi inaugurado em
Novembro de 1924, a comunidade cinematográfica lisboeta temeu o pior. Como poderia
vingar um cinema de estreia tão grande e tão moderno, mas situado tão longe do centro
da cidade e da vizinhança das outras salas de estreia, concentradas desde os anos dez
entre a Baixa e o Chiado? Os receios de inviabilidade económica eram tão grandes que
as três distribuidoras então existentes resolveram durante algum tempo partilhar entre si
os custos do aluguer de filmes ao Tivoli porque estavam certas do fracasso de uma sala
situada tão longe do centro1. Mas passados poucos meses de excelente programação
feita pelo próprio arquitecto do edifício, Raul Lino, o Tivoli destronava todos os outros
cinemas e era consagrado pela crítica e pelo público como a sala mais cómoda e mais
elegante de Lisboa e aquela onde passavam alguns dos melhores filmes europeus e
americanos (ali estrearam Os Nibelungos de Fritz Lang, O Último dos Homens e Aurora
de Murnau, A Sinfonia de uma Capital de Ruttmann, Nanook de Flaherty, A Quimera do
Ouro de Chaplin e muitos outros filmes de Wiene, Stiller, Sjöstrom, Dreyer, Lubitsch,
de Mille, Feyder, L’Herbier, Epstein e von Stroheim)2.
Onde e que “centro” de Lisboa era esse que o Tivoli desafiava em 1924? Era uma área
urbana relativamente pequena, delimitada entre a Baixa e o Chiado, e que vinha sendo
vivida e representada desde o século XIX como o centro comercial, cultural e de
entretenimento da cidade3. Epicentro da construção espacial e simbólica da
mundaneidade, da urbanidade e da modernidade lisboetas, ali se concentravam as
principais modistas e alfaiatarias, os cafés e pastelarias, os primeiros grandes armazéns
da cidade, os clubes nocturnos e os teatros ligeiros, de declamação e de ópera, e
também, a partir do início do século XX, os cinemas ditos “de estreia” (i.e., onde se
1
Cf. M. Félix Ribeiro, Os Mais Antigos Cinemas de Lisboa, 1896-1939, Lisboa, IPC/Cinemateca
Nacional, 1978, p.141.
2
M. Félix Ribeiro, op. cit., pp.138-146; J. Bénard da Costa, «Quesitos sobre a distribuição e exibição:
prejudicados com as respostas», 70 Anos de Filmes Castello Lopes, AAVV, Lisboa, Cinemateca
Portuguesa, 1986, pp.26-28.
3
A centralidade cultural, comercial e de entretenimento da área Baixa-Chiado foi analisada por Luis
Trindade, O estranho caso do nacionalismo português. O salazarismo entre a literatura e a política,
dissert. de Doutoramento em História Cultural Contemporânea, FCSH/UNL, 2005, pp.93-105 e,
indirectamente, por Júlia Leitão de Barros, Os «Night-Clubs» de Lisboa nos Anos 20, Lisboa, Lúcifer
Edições, 1990 e José-Augusto França, Os Anos Vinte em Portugal. Estudo de factos sócio-culturais,
Lisboa, Editorial Presença, 1992.
Ler História, 52, 2007, 29-56
1
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
viam exclusivamente filmes em primeira passagem), por isso mais caros, mas também
mais luxuosos, mais decorados e, assegurava a sua publicidade, mais bem frequentados
da cidade4. A sua concentração naquela parte da cidade acabou por fazer confundir
aquilo que era uma categoria de distribuição (“de estreia” vs. “de reposição”), com uma
categoria de localização geográfica. Com efeito, quando o Tivoli foi inaugurado todos
os outros cinemas de estreia lisboetas estavam situados naquele “centro” da cidade: o
Olímpia, o Central e o Condes, aos Restauradores (o Central na antiga capela do Palácio
Foz, paredes meias com o club Maxim’s; o Olímpia a dois passos do club Monumental);
e o Chiado Terrasse, na Rua António Maria Cardoso5 (cf. imagens 1 e 2). Para lá da sua
localização, todas estas salas tinham ainda em comum o facto de terem sido fundadas
entre 1907 e 1912 durante o primeiro surto das primeiras salas conquistadas para a
projecção continuada de cinema – os “salões” 6.
Atingindo o número de 17 em 1912 (cf. gráfico 1), os “salões” lisboetas foram
contemporâneos de salas semelhantes noutras capitais europeias e o seu aparecimento,
como o daquelas, coincidiu com uma fase de crescimento da distribuição
cinematográfica europeia motivado, em grande medida, pela transição do regime de
venda de filmes aos exibidores para o de aluguer (introduzido pela Pathé em 1907).
Como noutros países europeus, o cinema nasceu em Portugal num contexto em que os
espectáculos públicos e os locais onde os mesmos decorriam eram pouco diferenciados
e até resistentes à diferenciação7. A institucionalização do cinema implicou, para lá de
uma autonomização dos processos estéticos e narrativos da linguagem cinematográfica
e da conquista de um estatuto de espectáculo autónomo para o cinema, um processo de
especialização dos locais de projecção cinematográfica e a definição de uma tipologia
espacial e simbólica própria8. Essa tipologia definiu-se através de um processo
continuado de experimentações que começou por ter lugar em espaços antes sujeitos a
outras ocupações, de entretenimento ou não, e que por isso não só obrigavam a intensas
e periódicas remodelações como eram pouco assertivos ou reconhecíveis enquanto
cinemas na sua envolvente urbanística. Quando em 1908 o Anuário Comercial de
Lisboa listou pela primeira vez os locais onde se realizavam espectáculos
cinematográficos, agrupou-os por isso sob a designação conjunta de “pequenos teatros,
animatographos e variedades” – e isto apesar de 11 dos 15 locais indicados se autointitularem já “salões” e de tudo indicar que neles se exibia quase exclusivamente
cinema. Em 1912 surgiu também o primeiro regulamento que fazia referência às
condições de segurança nas projecções cinematográficas9. O facto de incidir apenas
sobre as cabinas de projecção (ditando o seu isolamento dos espectadores,
4
Alguns deles tinham os seus próprios jornais de actualidades, meio de aumentar o prestígio da sala e de
fidelizar os seus públicos.
5
Algumas destas salas tinham perdido a sua primazia social e comercial em meados dos anos trinta, mas
os novos cinemas de estreia que as substituíram continuaram a concentrar-se naquela zona da cidade
(como o Odéon, o São Luís, o Politeama ou o Éden).
6
Todos os dados sobre as datas de actividade, lotação e preços praticados nas salas de cinema lisboetas
foram obtidos pelo cruzamento das informações contidas no Anuário Comercial de Lisboa (consulta dos
anos 1908-1939), em A. J. Ferreira, Animatógrafos de Lisboa e Porto. Perspectiva e alguma história das
salas de cinema silencioso, 1894-1936, 2ª ed., Lisboa, (policopiado), s.d., em M. Félix Ribeiro, op. cit., e
em J. Bénard da Costa, op. cit.
7
F. Casetti e E. Mosconi, «Introduzione», Spettatori Italiani. Riti e ambienti del consumo
cinematográfico (1900-1950), F. Casetti e E. Mosconi (org.), Roma, Carocci, p.11.
8
F. Casetti e E. Mosconi, op. cit., p.9.
9
Regulamento das casas de espectáculos públicos no distrito administrativo de Lisboa (27-1-1914),
Governo Civil de Lisboa, Diário de Governo, nº27, 3-2-1914, que remete para regulamentos anteriores de
30-11-1912 e 23-6-1913.
Ler História, 52, 2007, 29-56
2
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
preferencialmente com materiais incombustíveis) confirma a inexistência, àquela data,
de uma tipologia específica de sala de cinema, embora não a de uma sala de espectáculo
dedicada progressiva e exclusivamente ao cinema.
Além da fraca consagração institucional do cinema como espectáculo, a precariedade
arquitectónica destes “salões” justificava-se ainda, nestes anos, pela brevidade,
informalidade e modicidade dos consumos cinematográficos ali oferecidos, sobretudo
quando comparados com os teatrais. Como constatava Carlos Malheiro Dias em Janeiro
de 1908, numa das primeiras descrições dos cinemas lisboetas, naquelas “salinhas
microscópicas dos cinematographos, (…) o espectador entra e sai a qualquer hora, de
chapéu na cabeça e cigarro aceso, com dispêndio que os mais pródigos não conseguem
elevar acima de um tostão. É que o cinematographo singularmente satisfaz uma das
mais vivazes preferências do homem actual: a brevidade. O cinematographo está para o
teatro como o magazine para o livro. Explorando a emoção e o riso, como no teatro, o
cinematographo conseguiu abalar os corações com tragédias que duram dez minutos e
desencadear tormentas de hilaridade com comédias que cabem no limite
vertiginosamente apressado de alguns segundos.”10
Em 1914, a categoria de “pequenos teatros, animatographos e variedades” surgiu pela
primeira vez antes da dos “Theatros” nas páginas do Anuário Comercial de Lisboa que,
a partir de 1916, passou a publicar também as plantas das principais salas e respectivos
preços. Os dois primeiros anos da Primeira Guerra Mundial trouxeram uma quebra no
número de salas, recuperado no final da década. A primeira metade dos anos vinte
registou nova quebra para os valores dos anos da guerra (10-11 salas; cf. gráfico 1). Tal
como o surto inicial de 1907-1912, estas flutuações coincidiram com as de outros países
europeus e encontram a sua explicação nas crises políticas e económicas internas e
externas11, bem como nos ritmos e nas tendências do mercado internacional de
distribuição12. A relação entre exibição e distribuição era, aliás, particularmente íntima
no caso lisboeta porque as principais salas lisboetas eram geridas pelos grandes
distribuidores da época: o Condes, por J. Castello Lopes, o Central, por Raul Lopes
Freire, o Olímpia, por Leopoldo O’Donnell e o Chiado Terrasse, por Arthur Emaúz13.
Do “salão” ao “cinema” (1925-1932)
Ao contrário do que aconteceu noutras cidades europeias ainda durante a década de dez,
a construção dos primeiros edifícios projectados propositadamente para serem salas de
cinema, com lotações acima do milhar, mais confortáveis, mais decorados, com mais
serviços e áreas de circulação e de acesso cada vez maiores, foi relativamente tardia em
10
Carlos Malheiro Dias, Em redor de um Grande Drama. Subsídios para uma História da Sociedade
Portuguesa (1908-1911), Lisboa-Rio de Janeiro, Aillaud e Bertrand-Francisco Alves, s.d., p.42. A citação
refere-se ao fragmento «O Cinematographo», datado de 31-1-1908.
11
Entre 1913 e 1924, a Europa atravessou uma grave crise económica com a descida do nível médio de
vida e a subida da inflação para níveis anormalmente altos. A economia portuguesa viveu este período de
modo ainda mais negativo que a média europeia, tendo o nível geral dos preços sido multiplicado por sete
no curto período entre 1919 e 1924. Cf. J. Silva Lopes, A economia portuguesa no século XX, Lisboa,
ICS, 2004, pp.91-104.
12
Cf. T. Baptista, «O cinema mudo em Portugal», História, a.XXIV (III série), nº47, Julho/Agosto, 2002,
pp.21-27 e K. Thompson, Exporting Entertainment. America in the World Film Market, 1907-1934,
Londres, BFI, 1985, já que, a partir dos anos dez, os ritmos do mercado de distribuição internacional
passaram a depender dos ritmos da produção americana.
13
Todos estes exibidores estavam reunidos na maior empresa de distribuição portuguesa, a Companhia
Cinematográfica de Portugal, fundada em 1912. Cf. M. F. Ribeiro, op. cit., pp.231-239.
Ler História, 52, 2007, 29-56
3
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
Lisboa14. Foram estas novas salas que reforçaram a consagração institucional do
espectáculo cinematográfico, dos seus espaços e dos seus públicos – e não foi por acaso
que, neste mesmo período, a designação “salão” foi abandonada em favor da de
“cinema”. As fachadas tornaram-se maiores e mais ornamentadas, frequentemente com
painéis luminosos, transformando os novos cinemas em verdadeiros marcos no tecido
urbano, embora arquitectonicamente seguissem ainda, pela maior parte, a tipologia
teatral. O mesmo sucede no interior onde, apesar do aumento da lotação e da
multiplicação dos espaços de circulação e de serviços, a permanência de balcões, frisas
e camarotes prolongava a tradição arquitectónica da sala de teatro pelos anos trinta fora
(não obstante correcções pontuais nas novas salas e remodelações das antigas). No
início dos anos trinta, porém, os cinemas suscitaram o interesse de alguns arquitectos e
alguns edifícios surgiram então como mais um terreno de experimentação modernista
com fachadas cegas de betão e elementos decorativos “art-déco” em ferro e vidro, como
o cinema Capitólio, obra fundadora do efémero modernismo arquitectónico português15.
Em Lisboa, o primeiro grande exemplo deste novo tipo de edifícios foi justamente o
Tivoli, traçado por um reputado arquitecto e cujas dimensões, lotação e planta em
gaveto à Avenida da Liberdade, lhe deram uma relevância urbanística inédita até ali
naquele tipo de equipamento e percepcionada como tal, já à época, pelo menos na
imprensa especializada16. A estas novas características arquitectónicas, acrescentou-se a
novidade da sua implantação em zonas mais afastadas do centro da cidade, de que
seriam mais decisivos exemplos os chamados “cinemas de bairro”, situados nas áreas de
crescimento mais periférico de Lisboa e cuja existência, juntamente com a novidade do
sonoro, transformaria profundamente a experiência do espectáculo cinematográfico e a
primazia simbólica das salas de estreia do centro no início dos anos trinta.
14
Em Paris, a construção destas salas ocorreu entre 1910-1914 (com uma lotação média de 1000-1500
lugares) e novamente entre 1919-1921 (período em que surgem salas com lotações entre 1500-2000
lugares em quase todos os bairros parisienses; cf. J.-J. Meusy, Paris-Palaces: ou le temps des cinemas,
1894-1918, Paris, CNRS Editions, 1995, pp.272-368 e R. Abel, French Cinema. The First Wave, 19151929, Princeton, Princeton University Press, 1984, pp.54-59). Em Madrid, o mesmo fenómeno verifica-se
entre 1912-1919 (3 salas com mais de 1000 lugares, 2 salas com mais de 2000) (J. Martínez, Los primeros
veintecinco años de cine en Madrid, 1896-1920, Madrid, Filmoteca Española/Consorcio Madrid 92, 1992,
pp.123-139) e nos Estados Unidos, de modo geral, entre 1908-1916 (R. Koszarski, An Evening's
Entertainment. The Age of the Silent Feature Picture, 1915-1928, Berkeley, University of California
Press, 1990, pp.20-2 e E. Bowser, The Transformation of Cinema, 1907-1915, Berkeley, University of
California Press, 1990, pp.121-136).
15
José-Augusto França, Lisboa: Urbanismo e Arquitectura, 4ª ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1997, p.87.
A referência mais imediata não só do Capitólio, mas também de alguns dos novos cinemas de bairro
como o Trianon, o Lys, o Max-Cine, o Jardim e o Paris (cf. imagem 11), parece ter sido a das salas
parisienses projectadas por E. Vergnes, Marcel Oudin e Henri Sauvage nos anos vinte, bem como aquelas
fundindo “estilo internacional” com “art-déco” projectadas na mesma cidade por Bluysen, Eberson e
Belloc no início dos anos trinta. Cf. V. Kauffmann e V. Renié, «Panorama des écrans parisiens», Paris
Grand-Écran. Splendeurs des salles obscures, 1895-1945, R. Davray-Piekolek (ed.), Paris, ParisMusées/Musée Carnavalet, 1994, pp.11-25.
16
“Planeada a sua construção em moldes genuinamente americanos e ingleses, o Tivoli, não sendo
luxuoso, porque tais luxos são sempre supérfluos, abunda em fórmulas práticas. Conforto e decência. A
sala é ampla, como amplos são os lugares, os corredores e escadarias. Para encurtar palavras diremos que
nenhuma capital do mundo desdenharia de ter um cinema como o Tivoli, conquanto os haja de maiores
dimensões, mas não mais confortáveis nem mais atraentes, pela sua impressionante sobriedade. Está-se
bem no Tivoli, e estamos certos que todos concordam com a nossa opinião”, «Tivoli», s.a., Porto
Cinematográfico, ano VI, nº5, Dezembro de 1924, p.27. Ver também os artigos da imprensa generalista
compilados por M. Félix Ribeiro in op. cit., pp.139-141.
Ler História, 52, 2007, 29-56
4
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
Correspondem a esta nova tipologia as salas inauguradas entre 1925 e 1932, período em
que o seu número duplicou (passando de 16 em 1925, para 31 em 1932). Apenas nos
anos de 1930 e 1931, os primeiros do sonoro17, abriram em Lisboa 10 novas salas de
cinema, algumas das quais antigos teatros como o São Luís e o Politeama (em 1928), o
Teatro do Ginásio e o Teatro Joaquim de Almeida (em 1931). Depois disso e até final
da década de trinta verificou-se um crescimento anual lento (cerca de 1-2 novas salas
por ano até se atingir um total entre 35 e 37 em 1939). Para lá do novo surto de salas,
outros indicadores sugerem a vitalidade do mercado como a multiplicação do número de
revistas especializadas e do número de distribuidoras18. Entre estas últimas, destaque-se
a abertura de escritórios de algumas majors americanas em Lisboa a partir de 1927,
reconhecimento claro da importância de um mercado que aquelas empresas já não
desejavam deixar na mão de representantes portugueses19.
Recorrendo a novas linguagens arquitectónicas, apostando em decorações mais
classicizantes ou em efeitos de escala, os novos (e os remodelados) cinemas de estreia
lisboetas da segunda metade dos anos vinte adaptavam-se como podiam à moda
internacional da década, os “picture palaces” (americanos, franceses e alemães), salas
com lotações na ordem dos milhares, marcos arquitectónicos e faróis culturais das suas
cidades20. Escrevendo em 1928, o (então) crítico de cinema Siegfried Kracauer dizia
que seria desrespeitoso chamar “cinemas” àqueles “palácios de distracção”, preferindo
reservar o primeiro termo para as salas dos bairros periféricos e da “Velha Berlim”21.
17
O primeiro filme sonoro (White Shadows in the South Seas/Sombras Brancas nos Mares do Sul, EUA,
1928, real. W. S. Van Dyke e R. Flaherty) estreou em Lisboa em Abril de 1930; o primeiro filme sonoro
português, A Severa (real. Leitão de Barros, sonorizado em Paris), estreou em Junho de 1931. A
construção dos estúdios da Tóbis permitiu a realização do primeiro filme sonoro inteiramente produzido
em Portugal, A Canção de Lisboa (real. Cottinelli Telmo), estreado em Lisboa em Novembro de 1933.
Entre 1930 e 1932 a maior parte dos cinemas de estreia lisboetas fez a transição para o sonoro. O cinema
silencioso persistiu, porém, nas salas de Lisboa e Porto, até pelo menos 1936.
18
Segundo os títulos compilados por J. Pelayo (Bibliografia Portuguesa de Cinema. Uma visão
cronológica e analítica, 2ª ed., Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 1998), o número de revistas de cinema
portuguesas passou de 5 em 1925 para 21 em 1931. Segundo o Anuário Comercial de Lisboa, existiam
em Lisboa 3 distribuidoras em 1925, 10 em 1931, 15 em 1934 e 19 em 1939.
19
A Paramount abriu escritórios em Lisboa em 1927, a Metro em 1928 e a RKO em 1931. Cf. M. Félix
Ribeiro, op. cit., p.233-238.
20
Um primeiro surto na construção de “palaces” americanos ocorreu na década de dez (salas com uma
lotação média entre 1000-1800 lugares), seguido de outro na década de vinte (lotação média entre 18003000 lugares). As salas americanas construídas durante os anos vinte são as mais habitualmente conotadas
com a tipologia arquitectónica do “palace”, nomeadamente aquelas com decorações neo-revivalistas, ditas
por isso “salas atmosféricas”. Sobre a história dos “palaces” americanos, ver C. Herzog, «The Movie
Palace and the Theatrical Sources of its Architectural Style», Exhibition, the film reader, I. R. Hark (ed.),
Londres/Nova Iorque, Routledge, 2002, pp.51-65; D. Naylor, American Picture Palaces: the architecture
of fantasy, Nova Iorque, Van Nostrand Reinhold Company, 1981. Sobre as suas congéneres parisienses,
referências mais imediatas das salas portuguesas, ver Paris Grand-Écran. Splendeurs des salles obscures,
1895-1945, R. Davray-Piekolek (ed.), Paris, Paris-Musées/Musée Carnavalet, 1994, e J.-J. Meusy, ParisPalaces: ou le temps des cinémas, 1894-1918, Paris, CNRS Editions, 1995.
21
S. Kracauer, «The Cult of Distraction. On Berlin’s Picture Palaces», The Mass Ornament. Weimar
Essays, Thomas Y. Levin (ed.), Cambridge e Londres, Harvard University Press, 1995, p.323. Este texto
sobre os “palácios de cinema” berlinenses é um dos melhores exemplos da metodologia desenvolvida por
este autor para a análise de uma totalidade social no momento em que a mesma começava a configurar-se
como uma cultura de massas. Olhando a sociedade de Weimar a partir das suas inúmeras “manifestações
de superfície”, Kracauer conseguia interpretar a “irrupção da modernidade na vida quotidiana – a vida
estilhaçada pela divisão do trabalho, o lazer planificado pela difusão do cinema e dos espectáculos de
massa, a percepção do mundo através da rádio, a redução das distâncias pela racionalização dos
transportes, etc. – [que] despertava nele a sensibilidade visual e a aptidão para a análise espacial
adquiridas durante os seus anos de estudo e o seu trabalho como arquitecto”, E. Traverso, Siegfried
Ler História, 52, 2007, 29-56
5
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
Enquanto tipologia arquitectónica, a referência aos palácios berlinenses (ou até
madrilenos22) não fará muito sentido no caso lisboeta, excepção feita, provavelmente, ao
Tivoli23 (cf. imagem 3). Mas tal não parece ter impedido os seus espectadores de as
percepcionarem e experimentarem enquanto tal. Sinal do estatuto simbólico alcançado
por aquelas salas, um jornalista de cinema lisboeta associava em 1930 os cinemas de
estreia, que se concentravam ainda, excepção feita ao Tivoli, no centro da cidade, a
outros indícios do desenvolvimento de uma modernidade urbana da capital, tais como o
“aparecimento dos táxis, dos anúncios luminosos e dos novos candeeiros que vieram
tornar mais praticável a vida citadina” e dava-os como equipamentos então já
indispensáveis para a vida lisboeta “com o seu conforto recompensante [sic] das fadigas
do dia, a sua aragem de civilização, onde já é possível encontrar-se uma assistência
seleccionada e ver-se cópias novas de filmes recentes, bem feitos e bem projectados”24
(cf. imagem 4). O encerramento dos cinemas de estreia durante os meses de Verão
mergulhava Lisboa, segundo ele, numa melancolia desesperante, motivo, aliás, do seu
artigo.
Uma “arte de multidão”
Foi nestes cinemas de estreia, novos e velhos, palácios ou não, mas locais onde “a
distracção era elevada à condição de cultura”25, que o cinema, com efeito, foi ganhando
o estatuto de arte e que a experiência cinematográfica foi sendo rodeada de ritos sociais
cada vez mais complexos. Peça determinante para a definição não só do estatuto
simbólico do cinema, mas também da distinção social dos seus públicos e dos diferentes
modos de vivência da experiência cinematográfica, foram os vários textos publicados
nas revistas especializadas e também, a partir do final dos anos vinte, em algumas
revistas culturais e até nas páginas dos jornais diários26. Esses textos eram sobretudo
obra de jovens cinéfilos frequentadores dos cinemas de estreia de Lisboa e Porto,
fundadores, redactores e críticos das revistas especializadas do período. De valor e
interesse muito desiguais, muitos desses textos não passam hoje de testemunhos da
juventude cinéfila de indivíduos que, na idade adulta, não voltariam a interessar-se por
cinema, nem fizeram carreira nele. Mas o cinema também interessou a autores de
renome que assinaram então alguns dos textos mais cativantes e com maior qualidade
literária daquele tempo, entre os quais se destacam as crónicas de José Gomes Ferreira
na revista Kino (que citaremos abundantemente), os textos de Roberto Nobre no
Kracauer. Itinéraire d’un intellectuel nomade, ed. rev. e aumentada, Paris, Éditions La Découverte, 2006,
p.78.
22
Com efeito, as salas lisboetas estavam muito aquém daquelas construídas durante a década de vinte na
capital espanhola, sobretudo ao longo da Gran Via, ícones da arquitectura modernista espanhola, muitas
delas ultrapassando os 2000 lugares (entre vários outros, citem-se o Real Cinema, o Pavón, o Callao, o
Palacio de la Musica, o Palacio de la Prensa, o Monumental, ou o Capitol). Cf. P. Cebollada e M. G.
Santa Eulalia, Madrid y el Cine. Panorama cinematográfico de cien años de historia, Madrid,
Comunidad de Madrid, 2000.
23
Ao contrário do que se possa pensar, a decoração neo-revivalista do Tivoli, em estilo Luis XVI, vai
directamente ao encontro do que era norma nas salas “atmosféricas” americanas e francesas. O OmniaPathé, em Paris, foi remodelado naquele mesmo estilo em 1913 (cf. J.-J. Meusy, op. cit., pp.314-316).
24
Rui Casanova (pseud. de Carlos Queirós), «A melancolia das noites de Lisboa, com os cinemas
fechados», Imagem, nº10, 12-9-1930.
25
S. Kracauer, «The Cult of Distraction. On Berlin’s Picture Palaces», ibid., p.324.
26
Por exemplo, Avelino de Almeida e Jorge Brum do Canto n’O Século (Brum do Canto assinava ali uma
secção de cinema desde 1927) e Alberto Armando Pereira n’O Primeiro de Janeiro (desde 1923).
Ler História, 52, 2007, 29-56
6
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
semanário O Diabo, ou ainda os de José Régio na Presença27. Para lá de defender o
cinema como uma arte de pleno direito, todos estes autores foram constituindo o espaço
físico do consumo cinematográfico e os seus ritos sociais num local dotado de uma forte
identidade própria e que, por sua vez, era capaz de emprestar uma identidade específica
a quem o frequentava28. Foi constitutiva desse processo uma diferenciação dos vários
públicos segundo o tipo de sala e a sua localização, fenómeno social afinal tão
construído como a legitimação do cinema como arte e da sessão cinematográfica como
espectáculo público.
Os novos cinemas eram cada vez mais construídos, descritos e vividos como espaços
arquitectónicos que estimulavam os seus espectadores a habitar temporariamente um
mundo de sofisticação e de elegância que tinha por referência tanto os próprios filmes
(estrangeiros) como os divertimentos e consumos culturais tradicionais da elite lisboeta.
O compromisso entre deixar os espectadores destes cinemas sentir-se acima da sua
situação social impedindo, no entanto, que se sentissem desconfortáveis ou deslocados,
justificou provavelmente a ausência de excessos estilísticos na decoração das salas e a
opção por uma maior funcionalidade dos cada vez mais importantes átrios, escadarias e
corredores e ainda dos bufetes, bares, salões de fumo e varandas29. Foi nestas áreas,
durante as entradas e saídas e durante os vários intervalos das sessões, que se foram
desenrolando os rituais sociais que construíram a atmosfera de glamour dos cinemas de
estreia lisboetas e que deram à “ida ao cinema” um lugar de destaque entre os consumos
culturais do seu tempo, mesmo entre aqueles mais tradicionalmente elitistas30. Sinal
disso, e à semelhança do que já sucedia para muitos desses, algumas revistas de cinema,
mas também os próprios jornais diários, passaram a fazer nas suas colunas mundanas a
crónica social da noite anterior nos cinemas de estreia, apontando quem estava e quem
não estava, quem tinha flirtado com quem, e quem lançara as melhores boutades31.
27
Sobre António Ferro, José Régio, Fidelino de Figueiredo e Roberto Nobre, ver António Pedro Pita,
«Temas e figuras do ensaísmo cinematográfico», O Cinema Sob o Olhar de Salazar, L. R. Torgal
(coord.), Mem Martins, Circulo de Leitores, 2000, pp.42-61; sobre Roberto Nobre, ver L. Trindade, O
Espírito do Diabo. Discursos e posições intelectuais no semanário O Diabo, 1934-1940, Porto, Campo
das Letras, 2004, pp.77-88; sobre José Régio, ver J.-A. França, «Manuel de Oliveira no tempo da
“Presença”», Introdução à obra de Manuel de Oliveira, J.-A. França, Alves Costa e Luis de Pina, Lisboa,
INP, 1981, pp.9-10. Para uma síntese sobre o campo do jornalismo cinematográfico português, ver T.
Baptista, «Franceses tipicamente portugueses. Roger Lion, Maurice Mariaud e Georges Pallu: da norma
ao modo de produção do cinema mudo em Portugal», Lion, Mariaud, Pallu: Franceses tipicamente
portugueses, T. Baptista (org.), Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 2003, pp.38-96.
28
F. Casetti e E. Mosconi, op. cit., p.9.
29
S. Kracauer, «The Cult of Distraction. On Berlin’s Picture Palaces», ibid., p.323; cf. «Tivoli», s.a.,
Porto Cinematográfico, ano VI, nº5, Dezembro de 1924, p.27, transcrito acima.
30
No final dos anos vinte, as duas salas mais “mundanas” da cidade eram o Tivoli e o São Luís. Sobre os
“hábitos teatrais de luxo ou festa” dos públicos destas salas, ver J.-A. França, «Ir ao Cinema em Lisboa
nos Anos 30», Ler História, nº26, 1994, pp.117-124. O autor chama a atenção para o facto de a
propriedade e a exploração daquelas duas salas ter estado “nas mãos de famílias, elas próprias e por
alianças inseridas no tecido social mais elevado de Lisboa, desde o século passado, os Lima Mayers do
Tivoli, e os Ramalho Ortigões Ramos do São Luís” que, “de certo modo garantiam o comportamento
mundano das salas.” ibid., p.121.
31
“Hoje já é um público culto que vai ao cinema. O Vasconcelos e Sá tem um trabalhão para apontar no
‘carnet mondain’ os grandes nomes que aparecem nas estreias…”, João Santos, «Cinefilismo», InvictaCine, nº112, 28-3-1931, cit. in Paulo Jorge Granja, As origens do movimento dos cine-clubes em
Portugal, 1924-1955, dissert. de Mestrado História Contemporânea, FLUC, 2006, p.31. O jornalista
Carlos de Vasconcelos e Sá era autor de crónicas mundanas em vários jornais diários da época.
Ler História, 52, 2007, 29-56
7
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
Como outros jornalistas de cinema, José Gomes Ferreira descrevia a transformação
pressentida nos ritos sociais e na própria composição social dos públicos dos cinemas de
estreia relacionando-a com o aparecimento das novas salas ou com a transformação das
mesmas: “os cinemas (…) em 1920, eram gelados, incómodos, poeirentos, construídos
para se conservarem às escuras. Depois, lentamente, as salas transformaram-se.
Esticaram-se tapetes nos corredores. Apareceram cinzeiros nas costas das cadeiras;
ergueu-se o palácio do Tivoli; surgiu o São Luís.” E os antigos espectadores,
perguntava-se Gomes Ferreira? “Nunca mais os encontrei nos salões. Por mais que os
procure nunca consigo descobrir as golas ratadas dos seus sobretudos. Ficam à porta,
com certeza. Constituem aquela classe de ‘os que não entram’, que pára junto das
cervejarias e dos cafés a ouvir os gramofones e os sextetos. Juntaram-se a essa multidão
parda dos que apenas gozam dos espectáculos gratuitos. (…) São (…) os que não têm
coragem de enfrentar o bilheteiro, os sem-cheta que apanham as migalhas de música e
de luz que os cafés atiram pelas janelas fora. Alguns ainda se atrevem a ir ao Olímpia…
Mas já não é a mesma coisa! Os cinemas já não lhes pertencem, quase exclusivamente,
como dantes!”32.
Nestas salas e para os seus novos públicos, descritos como mais endinheirados, a
projecção podia tornar-se então um aspecto muito secundário da sessão, o que
encolerizava os autores que lutavam pela apreciação do cinema enquanto arte e que por
isso censuravam a indiferença dos espectadores perante os melhores filmes e a redução
da sua cinefilia à imitação dos cortes de cabelo, maquilhagem, roupas e poses de actores
e actrizes dilectos. Como confessava um desses espectadores, “a verdade é que nós
próprios, os cinéfilos mais convictos, nem sempre vamos ao cinema só por causa do
cinema. Vamos também pelos intervalos e pela saída, porque devem lá estar aqueles
olhos que à tarde, no Chiado, nos pareceram azuis, e acerca dos quais, para
tranquilidade do nosso espírito, é indispensável adquirir uma certeza…”33. Em 1930, a
redacção da revista Imagem considerou que a cinefilia dos seus leitores tinha atingido
proporções tão exageradas que decidiu encerrar a sua secção “Cineclínica” (correio de
leitores). Os jornalistas da Imagem estavam fartos de responder a perguntas sobre a vida
amorosa, idades, medidas e estado civil das estrelas de Hollywood e de alimentar as
ilusões daqueles apenas “obcecados em entrar para o cinema” e por vezes já “à beira do
suicídio ou da neurastenia”34 (cf. imagem 5).
Reflectindo em 1928 sobre o caso berlinense, Kracauer argumentava que o sucesso dos
novos palácios de cinema daquela cidade estava intimamente ligado a um tipo particular
de público, constituído pelos empregados assalariados35. Desprovidas da consciência de
classe própria do proletariado clássico, nada era mais característico das massas
assalariadas, segundo Kracauer, do que a aspiração por tudo o que estava para além
delas, desejado não como substância mas como glamour e como distracção. Para estas
massas “espiritualmente sem abrigo”, os palácios de cinema não podiam deixar de ser
32
José Gomes Ferreira, «Crónica», Kino, nº25, 16-10-1930, republ. in José Gomes Ferreira. Uma sessão
por página, Teresa Barreto Borges e Nuno Sena (org.), Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 2000, p.51.
33
Rui Casanova (pseud. de Carlos Queirós), op. cit.
34
«Se as raparigas portuguesas quisessem ser estrelas de cinema…», s.a., Imagem, nº7, 1-8-1930;
«Editorial. Mocidade.», s.a., Imagem, nº16, 5-12-1930. Sobre a cinefilia portuguesa nos anos vinte, ver T.
Baptista, «Franceses tipicamente portugueses. Roger Lion, Maurice Mariaud e Georges Pallu: da norma
ao modo de produção do cinema mudo em Portugal», ibid. e P. J. Granja, op. cit., esp. pp.8-44, onde o
autor caracteriza as reacções elitistas a estas formas de “cinefilia popular”.
35
S. Kracauer, «Shelter for the homeless», The Salaried Masses. Duty and Distraction in Weimar
Germany, Londres e Nova Iorque, Verso, 1998, pp.88-95.
Ler História, 52, 2007, 29-56
8
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
vistos senão como “refúgios”36. A ilusão de elitismo que cada vez mais pessoas ali
podia experimentar persuadia-as de que até com rendimentos modestos era possível
manter a aparência de pertencer à burguesia, pelo que não havia razão para almejar mais
alto que a pequena classe média. O cinema era assim a indústria cultural cujos produtos
eram mais acessíveis e cujos ganhos simbólicos pareciam mais altos embora, ainda
segundo Kracauer, os átrios e os salões de fumo dos palácios de cinema apenas
elevassem as massas assalariadas o suficiente para que as mesmas desejassem manterse, fundamentalmente, no mesmo lugar subordinado de sempre. Dois anos mais tarde,
mesmo com menos salas (e incomparavelmente mais pequenas) que as berlinenses, José
Gomes Ferreira chegava a conclusões idênticas: “Como poderemos, de facto, explicar
socialmente a existência do cinematógrafo, se não o encararmos como uma arte
destinada a dar de comer à fome desvairada das multidões que vivem longe da vida, da
beleza e dos palácios maravilhosos onde moram mulheres inverosímeis? O cinema
satisfaz os apetites legítimos desses pobres sem luvas, desses desgraçados com frieiras.
Mostrou-lhes a vida. Deitou abaixo as paredes das casas; rachou os castelos de meio a
meio; revelou-lhes o mundo misterioso da gente feliz de casaca, que esgrime frases
subtis. O cinema talvez tivesse evitado a revolução social, cuja visão aterrorizou as
gentes e os chapéus de coco, durante anos. Tornou o mundo acessível aos olhos
cansados das lágrimas e das paisagens de bairros pobres.”37
As reflexões de cada vez mais jornalistas de cinema sobre o predomínio de um novo
tipo de público e de determinados ritos sociais sobre a experiência cinematográfica, bem
como a sua percepção de que a mesma era crescentemente recebida de forma alienada
pelas plateias dos cinemas de estreia, eram sintomáticas da contradição fundamental do
processo de massificação do espectáculo cinematográfico provocado pela multiplicação
sensível do número de salas e do crescimento da sua lotação média no final dos anos
vinte: graças às novas salas cada vez mais pessoas experimentavam uma ilusão de
elitismo. As primeiras estatísticas sobre a frequência das salas de cinema datam de 1931
e mostram que quase todos os meses o total de bilhetes vendidos atingia um valor
próximo de metade do total da população lisboeta38. Pela mesma altura, José Gomes
Ferreira constatava que o cinema “não é uma arte para aristocratas. É uma arte de
multidão.”39
Mas essa multidão não frequentava necessariamente os cinemas de estreia, como
começaram a notar alguns jornalistas de cinema no início dos anos trinta, mas sim, em
número crescente, os cinemas de bairro. Mesmo sendo a circulação de públicos entre
umas salas e outras mais frequente do que muitos textos da época faziam crer40 –
provando, aliás, que aquela diferenciação de públicos e ritos sociais foi efectivamente
36
S. Kracauer, «Shelter for the homeless», ibid., p.91.
José Gomes Ferreira, «Crónica», Kino, nº18, 28-8-1930, republ. in José Gomes Ferreira…,ibid., p.43,
subl. meu.
38
Cf. Anuário Estatístico de Portugal, Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria. Repartição
de Estatística, 1931ss.
39
José Gomes Ferreira, «Crónica», Kino, nº4, 22-5-1930, republ. in José Gomes Ferreira…, ibid. p.28.
40
“(…) quem visitou um mês ou dois depois da ‘primeira’ [estreia] da ‘Severa’ a sala do S. Luiz,
verificou um público estranho que não conhece os corredores, que se senta desastrosamente nos lugares e
que tem caras e trajos que nem parecem existir em Lisboa. É um público simpático e simples (…) Vai ali
pelo coração. É um público de que os cinéfilos se riem, com o qual as donzelinhas das Avenidas não se
querem misturar.”, Roberto Nobre, «Tobis or not Tobis is the question…», O Diabo, nº5, 29-7-1937, p.3,
cit. in L. Trindade, op. cit., p.83. A persistência até muito tarde de vários tipos de bilhetes para a mesma
sala, com amplitudes de valor consideráveis, confirma a convivência no mesmo espaço de diferentes
públicos.
37
Ler História, 52, 2007, 29-56
9
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
tão construída como vivida –, parece certo que uma parte cada vez mais significativa
dos espectadores frequentava os novos cinemas dos bairros mais afastados do centro da
cidade (ditos correntemente, já à época, “de bairro”, sem outra conotação que a da sua
localização geográfica) e manifestava, segundo os mesmos jornalistas, uma vivência do
espectáculo cinematográfico radicalmente diferente da dos públicos dos cinemas de
estreia.
Cinemas dos “bairros afastados”, bas-fonds lisboeta e serials
Com efeito, o segundo surto de construção de salas lisboetas entre 1925-1932 alterou
por completo o ratio entre salas de estreia e cinemas de bairro. Se dos 17 cinemas
existentes em 1912, apenas 5 estavam localizados fora do eixo Baixa-Chiado, em 1932
aquele número é já de 19 (de um total de 31). Assim, enquanto se mantém estável o
número de cinemas de estreia no centro, dispara o número de cinemas fora daquela
zona, disseminados sobretudo nas áreas de maior crescimento da cidade. Entre 1925 e
1932, a lotação combinada dos cinemas de bairro passou a superar a dos cinemas de
estreia, apesar da sua lotação média (c.500 lugares41) ser inferior à daqueles (c.600-700
lugares42) e de não possuírem, regra geral, os serviços, áreas de circulação e
ornamentações daquelas salas43. Tudo nelas se conjugava para concentrar a atenção dos
espectadores no próprio filme e para lhe proporcionar o bilhete mais barato possível
(segundo os preços publicados no Anuário Comercial de Lisboa de 1934, os lugares
mais baratos nos cinemas de bairro podiam custar metade dos preços pelos cinemas de
estreia).
Um dos primeiros jornalistas de cinema a comentar a importância das novas salas foi
José Gomes Ferreira numa crónica de Março de 1931 que se juntava a um pequeno (mas
crescente) conjunto de reportagens dedicadas especificamente aos cinemas de bairro que
vinham sendo publicadas nas principais revistas de cinema desde o ano anterior44.
Numa viagem de táxi pelos “cinemas dos bairros afastados” (“o Oriental, o Europa, o
Max Cine, o Imperial, todos”), Gomes Ferreira encontrou sempre lotações esgotadas e
sessões animadamente ruidosas. “Dentro das salas”, escreveu, “ouviam-se gritos,
assobios, sussurros. Algumas pareciam-me enormes: oitocentos lugares de carne
humana, desejos de gozar a vida e suor. Depois, perguntava aos porteiros: ‘– Então?’ –
‘Ah, meu senhor! É isto todas as noites! O fim do mundo!’ (…) Em toda a parte
encontrava a mesma paisagem, a mesma ânsia de arrombar as portas daquelas casas
donde saíam gargalhadas pelas frinchas! Só na Baixa, certos cinemas mais
aristocráticos, menos acessíveis aos pobres, estavam vazios.”45
A multiplicação de cinemas de bairro entre o final dos anos vinte e o início dos trinta já
foi usada como indicador do crescimento da cidade por aqueles mesmos anos, sobretudo
ao longo dos dois então mais importantes eixos de desenvolvimento urbanístico e
41
Excepção feita ao Palatino e ao Royal Cine, cada um com 900 lugares.
Apenas dois deles, o Tivoli e o Condes, continuavam a ultrapassar o milhar.
43
O Anuário Estatístico de Portugal (1931-1939) permite calcular lotações médias das salas lisboetas
entre os 700-750 lugares entre 1931-1935 e de 840-880 lugares entre 1936-1939.
44
José Gomes Ferreira, «Crónica», Kino, nº48, 26-3-1931, republ. in José Gomes Ferreira… ibid., p.75;
José Ribeiro dos Santos, «Radioscopia cinegráfica», Cinegrafia, nº24, 19-4-1930; Guedes de Amorim,
«O filme dos cinemas de bairro. Reportagem cinematográfica aos cinemas populares de Lisboa»,
Imagem, nº26, 14-4-1931.
45
José Gomes Ferreira, «Crónica», Kino, nº48, 26-3-1931, republ. in José Gomes Ferreira…, ibid., p.75.
42
Ler História, 52, 2007, 29-56
10
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
residencial da capital, as Avenidas Novas e a Avenida Almirante Reis46. É a partir de
1930, aliás, que a maior parte (mais de metade do total) da população de Lisboa passa a
residir fora do tradicional núcleo histórico da cidade, concentrando-se numa coroa
exterior formada pelas freguesias de Camões (hoje Coração de Jesus), S. Sebastião da
Pedreira, Anjos, Arroios, Campo Grande e Lumiar, que continuaria a crescer,
demográfica e urbanisticamente, até ao início dos fenómenos de sub-urbanização da
capital, depois de 197047. Ainda em 1930, Augusto Vieira da Silva, num estudo sobre os
bairros de Lisboa, de “limites mais ou menos flutuantes (…) como designação popular,
e geralmente sem consagração oficial”, localizava 19 dos 37 bairros por si listados
justamente nas quatro freguesias que maior crescimento demográfico então registavam
(4 em Arroios e nos Anjos, 5 em Monte Pedral – hoje Santa Engrácia –, e 6 em S.
Sebastião da Pedreira, a freguesia lisboeta que maior crescimento populacional registou
entre 1890 e 1940: 900%)48.
Foi nesta cidade nova, mas também nos bairros mais antigos, ditos “históricos” – do
Arco do Cego a Campolide, de Braço de Prata a Alfama, da Ajuda à Graça, dos Anjos à
Mouraria, do Alto do Pina a Campo de Ourique, de Alcântara à Penha de França, do
Rego ao Rato e de Marvila à Estrela –, que surgiram entre 1928 e 1930 quase uma
vintena de pequenas salas, dedicadas em grande medida à reposição de filmes que já
tinham passado, em estreia, pelos cinemas do centro. Foi aliás a recorrência desta
prática de distribuição que levou a que na designação “de bairro” se tenham acabado por
fundir uma categoria geográfica (salas de cinema fora do centro) e uma categoria de
distribuição (salas que passavam filmes em reposição, ou em “reprise”, para usar a
expressão da época) – ao ponto de ser corrente, à época, a assunção de que todos os
cinemas de bairro eram salas de reposição, que seria tão errada como a suposição de que
todos os cinemas do centro eram salas de estreia. A reposição era um modo de
sobrevivência de salas incapazes de alugar os mais caros filmes de estreia em exibição
no centro da cidade. Mas era também uma estratégia comercial activamente fomentada
pelos distribuidores que viam nestas salas, como nos cinemas da província e das
colónias, uma última forma de rentabilizar os stocks de cópias à beira da ruína depois da
sua passagem pelos cinemas de estreia de Lisboa e Porto. É certo que a primeira sessão
de cinema sonoro de Lisboa teve lugar num cinema de bairro, o Royal Cine da Graça
projectado pelo arquitecto Norte Júnior, mas a transição para o sonoro, a partir de 1930,
apenas viria reforçar a posição subalternizada dos cinemas de reposição, dos cinemas de
bairro e de todas as salas de província. Estas salas foram um duradouro último reduto da
circulação de filmes mudos, rapidamente excluídos dos cinemas de estreia, mas que se
podiam encontrar em exibição em algumas salas de Lisboa até meados dos anos trinta e
até muito mais tarde no resto do país. Talvez se encontre aqui parte da explicação para a
ideia, frequente nas páginas das revistas de cinema dos anos trinta, de que o gosto dos
públicos dos cinemas de bairro era antiquado, preferindo ainda westerns, filmes de
aventuras e serials numa altura em que os cinemas de estreia descobriam os sofisticados
melodramas urbanos americanos e europeus, sobretudo alemães e franceses.
46
J.-A. França, op. cit. (1997), p.85 e op. cit. (1992), p.406.
Vitor Matias Ferreira, «Modos e caminhos da urbanização de Lisboa: a cidade e a aglomeração de
Lisboa, 1890-1940», Ler História, nº7, 1986, pp.101-132; Teresa Rodrigues, «A maior realidade urbana
portuguesa. O município de Lisboa», Cidade e Metrópole. Centralidades e Marginalidades, M. Pinheiro,
L. V. Baptista e M. J. Vaz (orgs.), Oeiras, Celta, 2001, pp.7-16.
48
A. Vieira da Silva, Os Bairros de Lisboa, sep. de Arqueologia e História, Lisboa, 1930, p.6; Vitor
Matias Ferreira, op. cit., pp.125-127.
47
Ler História, 52, 2007, 29-56
11
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
As várias reportagens sobre os cinemas de bairro publicadas nas revistas de cinema
desta época demonstram à saciedade o fascínio irresistível que estas salas exerceram
sobre os jornalistas de cinema. Estes viam naquelas não só a possibilidade de uma
verdadeira “viagem ao passado” da história do cinema e dos seus públicos, mas também
uma porta de entrada para o que acreditavam ser (e que descreveram como sendo) a face
menos visível e menos conhecida de uma determinada parte da cidade e dos seus
habitantes – os seus sórdidos e miseráveis bairros mais pobres – que efabularam como
verdadeiro bas-fonds lisboeta.
Alguns destes jornalistas conheciam o que havia de exagerado nestas descrições que, de
certo modo, disfarçavam mal um desejo de colar Lisboa às grandes metrópoles
europeias49. Eram os mesmos jornalistas que tinham recusado acreditar na viabilidade
económica dos cinemas de bairro, afirmando que os transportes públicos faziam
compensar a deslocação ao centro para ver filmes mais recentes50. Apesar disso, a
norma nas várias reportagens sobre os cinemas de bairro dos anos trinta foi a sua
descrição, e dos seus públicos e comportamentos, num registo distanciado,
sensacionalista e “exótico”, que contribuiu para a construção (já em curso noutras áreas
da cultura portuguesa) de uma subalternização social e simbólica de uma parte da
cidade, bem como do reforço da “centralidade” de uma outra.
Estas reportagens inscrevem-se também muito claramente no sub-género jornalístico
das reportagens ao bas-fonds lisboeta, construído literariamente como um sub-mundo
duro, violento e criminoso ao qual o jornalista por vezes apenas podia aceder, ou ao
qual pensava melhor poder aceder, incógnito ou disfarçado de uma das muitas figuras
que procurava retratar. Eduardo Fernandes, jornalista de O Século desde 1903, foi um
dos fundadores do género, introduzindo naquela redacção as reportagens sobre crimes
violentos (os “retratos da faca”) e inaugurando a figura do jornalista que conhece o
mundo do crime e os seus protagonistas melhor que a própria polícia e cujas
investigações suplantavam, por isso, muitas vezes, as das próprias autoridades. Mas o
mais popular autor do género, e aquele cuja fama mais perduraria no tempo, seria
Reinaldo Ferreira, o Repórter X, autor de dezenas de reportagens do género nas quais se
fundiam frequentemente descrições reais com a mais pura invenção literária51.
Os textos que resultavam desta forma de incursão jornalística no bas-fonds citadino e o
tipo de cidade neles representada encontravam por sua vez uma filiação clara nos serials
(filmes em episódios) detectivescos e de aventuras protagonizados por justiceiros
mascarados que enfrentavam quadrilhas criminosas e sociedades secretas, que
cultivavam o disfarce e procuravam deslindar as mais mirabolantes conspirações e onde
abundavam os elementos sobrenaturais e irracionais, bem como os inevitáveis dramas
familiares, trocas de identidade e raptos de crianças. Todos estes elementos tinham
como pano de fundo, ou até mesmo como pré-condição narrativa, uma metrópole
49
O desejo de demonstrar, pelo menos cinematograficamente, a modernidade e a mundaneidade da
capital portuguesa foi abundantemente expresso pelos jornalistas de cinema lisboetas durante a polémica
causada pela estreia de Lisboa, crónica anedótica (1930, real. Leitão de Barros). Cf. T. Baptista, «Na
minha cidade não acontece nada. Lisboa no cinema (anos vinte – cinema novo)», Ler História, nº48,
2005, pp.167-184.
50
A. K. Afflalo, «De Lisboa», Invicta Cine, a. II, nº14, 1-1-1925.
51
«Reinaldo Ferreira. Jornalista e escritor», J. Ramos, Manuel Luís Vieira e Reinaldo Ferreira, o
Repórter X, AAVV, Santarém, IX Festival de Internacional de Cinema, 1979, pp.17-22; J. Lima, «Visita
guiada à galeria de heróis do "Repórter X"», introdução de Memórias Extraordinárias do Dr. Duque, o
Cartomante do Raciocínio, Lisboa, Livros do Brasil, 1997, pp.5-75.
Ler História, 52, 2007, 29-56
12
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
densamente povoada, repleta de infra-estruturas modernas, passagens secretas e
subterrâneos52. Mais do que os serials americanos, fundadores do género e também
muito populares em Portugal desde os anos dez, a grande referência europeia do género
era o serial francês, de que Louis Feuillade era o mais consagrado realizador (autor de
Les Vampires (1915) e Fantômas (1913-1914)). A técnica narrativa destes filmes era
decalcada da do folhetim, cuja publicação na imprensa costumava aliás preceder a
estreia dos primeiros episódios53. Reinaldo Ferreira foi autor de um folhetim deste
género, O Mistério da Rua Saraiva de Carvalho54, intriga de mistério que opunha o
detective Gil Goes a uma quadrilha de espiões alemães com inesperadas reviravoltas
familiares finais, muito ao estilo dos filmes de Feuillade e também dos folhetins de
Gaston Leroux, inspirador de vários serials franceses e cuja obra literária exerceu
enorme influência sobre o Repórter X55. No ano seguinte, Leitão de Barros e Luís Reis
Santos iniciariam a adaptação cinematográfica daquele folhetim sob o título O Homem
dos Olhos Tortos (o vilão Waldemar), que se não tivesse ficado inacabado após a
falência da produtora Lusitânia Film teria sido o primeiro (e único) filme português
directamente inspirado naquele género56. O folhetim publicado n’O Século e o material
rodado deixam adivinhar uma representação cinematográfica inédita da cidade de
Lisboa, à imagem das cidades imaginadas dos serials franceses e do bas-fonds literário
e jornalístico português, cenário de perseguições, raptos, chantagens, bóias-correio e
seduções hipnóticas e onde personagens mascaradas ou disfarçadas se moviam entre as
tabernas da Mouraria e os cafés do Chiado, entre os arredores ermos de Lisboa e
subterrâneos imaginários (filmados no interior do aqueduto de Lisboa), entre a zona
portuária e prédios de luxo das Avenidas Novas.
O “filme” dos cinemas de bairro
Modo ficcionado de credibilizar uma autenticidade afinal também ela ficcionada, talvez
não seja por isso de espantar que algumas reportagens sobre o bas-fonds lisboeta
tenham sido publicadas em revistas de cinema e publicitadas, para além de escritas,
como verdadeiros guiões cinematográficos. Em Outubro de 1930, o jornalista Mário
Domingues, colega de redacção de Reinaldo Ferreira n’O Século, publicou na revista
Cine-Teatro a reportagem «O filme dos bas-fonds de Lisboa que ainda está por fazer»57,
para a qual vivera oito dias disfarçado de vagabundo nos “piores bairros de Lisboa”.
Neste texto, cuja premissa era a de que “a vida do nosso tempo é essencialmente
cinegráfica”, o autor afirmava ter encontrado nos “bairros tenebrosos de crime e de
pobreza” e na “miséria de Lisboa, que Lisboa não conhece (…) assunto para um filme
estranho, confrangedor, emocionante”, “um profundo drama de degradação e fome”.
Para Mário Domingues, “tudo era essencialmente cinegráfico” no “labirinto nocturno”
52
F. de la Bretèque, «Serials et films à époques?», Dictionnaire du cinéma français des années vingt, in
1895, nº33, Paris, AFRHC, 2001, pp.352-358.
53
O que aconteceu pela primeira vez em Portugal com o serial americano The Master Key (1915),
estreado no cinema Olímpia (Lisboa) em 14-2-1916 ao mesmo tempo que o jornal A Capital o publicava
sob a forma de folhetim. Cf. A. J. Ferreira, op. cit., p.145.
54
Publicado em O Século entre 11-6-1917 e 15-12-1917, republicado como livro em 1919 (Lisboa,
Guimarães & Cia. Editores).
55
Joel Lima, op. cit.
56
O material subsistente deste filme está conservado na Cinemateca Portuguesa, onde decorre
actualmente o seu restauro.
57
Cine-Teatro, nº20, 1-10-1930. Colaborador de vários diários lisboetas, chefe de redacção de Repórter X
e director de Detective, Mário Domingues foi também um prolixo autor de romances policiais e de
aventuras.
Ler História, 52, 2007, 29-56
13
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
de bairros que visitara sob disfarce (Cascalheira, Alto do Varejão, Terramotos, Casal
Ventoso, Alto dos Sete Moinhos, Liberdade), nas docas de Alcântara e de Santos, no
Cais do Sodré e em S. Paulo. E todos aqueles locais eram, segundo ele, viveiros de
personagens e de situações indistintamente “típicas” ou “criminosas”. Tal como a
adaptação cinematográfica do folhetim de Reinaldo Ferreira citada acima, este texto
reiterava à saciedade as afinidades então percepcionadas entre o cinema, determinado
tipo de jornalismo e a imagem pública de algumas zonas da cidade.
Em Abril de 1931, Guedes de Amorim, colaborador da revista de teatro e cinema
Girassol, assinou uma reportagem intitulada «No écran do Torel. Film de seis vidas e
seis horas infortunadas»58, texto que os editores descreveram como o resultado de seis
dias ali passados “coleccionando crimes, lágrimas, atitudes e sombras, para uma
reportagem emotiva e singular”. Pouco tempo depois, o mesmo Guedes de Amorim
publicava «O filme dos cinemas de bairro. Reportagem cinematográfica aos cinemas
populares de Lisboa»59, onde propunha “arquivar retalhos e aspectos da cenografia e da
vida dos cinemas reles, dos cinemas sem monóculos e lábios pintados”. Numa só noite,
acompanhado por um fotógrafo, Guedes de Amorim visitou meia dúzia de salas situadas
na Mouraria, na Penha de França, no Alto do Pina, em Campo de Ourique, em
Alcântara e no Rossio (cf. imagens 6-10). Em todas as salas notou a pobreza dos
espectadores e o carácter de escape transitório que parecia proporcionar-lhes o tempo da
projecção. Disse ter ficado surpreendido pelo facto de, à saída da sessão do
Animatógrafo do Rossio, nem um só dos espectadores ter dado alguma esmola aos
muitos mendigos que ali a pediam. Concluía por isso que “os que saem do cinema
também são pobres, também são prisioneiros do infortúnio, que se enganaram durante
algumas horas. A legião dos mendigos, que os espera à saída, devolve-os, tão
intempestivamente, à realidade que eles, sem quererem, entram vertiginosamente no
filme da vida – no filme do seu destino.” A imagem da pobreza dos espectadores era
confirmada por Guedes de Amorim através da descrição das suas roupas, que lhe
permitia não só determinar a condição social dos espectadores, mas em muitos casos
também a sua profissão: “fatos de ganga, bonés, mulheres de xaile, engraxadores,
cortesãs, carroceiros” no Salão Lisboa da Mouraria, “costureiras e operários” no Cine
Oriente da Penha de França, “forasteiros, campónios, comerciantes pobres e cortesãs
que fazem desta rua mercado de amor” no Animatógrafo do Rossio.
Apesar disto, e à semelhança de muitos outros jornalistas que escreveram sobre os
cinemas de bairro, Guedes de Amorim notava que havia nos “cinemas pobres, mais
liberdade e mais sinceridade” e até mais alegria. Em grande medida, essa “alegria
desenfreada” era devida às dezenas de crianças cuja presença naqueles números e o
facto de ali estarem desacompanhadas tinha sido o que mais impressionara Guedes de
Amorim durante aquela noite. Encontravam-se logo desde a entrada, pedinchando
dinheiro para comprar bilhetes ou inventando os mais variados esquemas para conseguir
entrar na sala sem pagar. No interior da sala, instalados nos lugares mais baratos,
dezenas de crianças gritavam, assobiavam e aplaudiam todos os momentos da acção e a
entrada em cena de cada personagem. Se a febrilidade deste público infantil substituía o
58
Girassol, nº20, 28-4-1931.
Imagem, nº26, 24-4-1931. António Guedes de Amorim (1901-1979) talvez seja um exemplo extremo
de um autor que não voltou a interessar-se pelo cinema depois da juventude. No final da vida, sofreu uma
transformação interior que o levou à escrita de textos sobre temas religiosos e espirituais e ainda, pouco
antes de morrer, à decisão de receber o hábito e o cordão de terceiro franciscano e de seguir o exemplo de
pobreza material daquele santo.
59
Ler História, 52, 2007, 29-56
14
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
silêncio devoto do público dos cinemas de estreia, o namoro no escuro da sala de bairro
dos “pares de operários e costureiras que muito agarradinhos, copiavam as cenas mais
ternas da película que estão vendo”, substituía o dandismo e o flirt dos salões de fumo
dos cinemas do Chiado. A liberdade e a sinceridade que Guedes de Amorim notava
nestes cinemas de bairro despertavam assim respostas ambíguas da parte do jornalista.
Hesitava entre, por um lado, a censura aberta de comportamentos que revelavam um
modo de recepção dito mais popular e em desuso nos cinemas do centro ou, por outro
lado, a confissão de um certo apreço pelo que também interpretava como manifestações
mais autênticas de cinefilia, por mais que discordasse do gosto cinematográfico que as
norteava ou que apontasse também alguns sinais de consumos culturais alienantes e
desinformados, como o dos “prisioneiros do infortúnio” que naquelas salas “se
enganaram durante algumas horas”.
Muito frequentemente, os cinemas de bairro eram descritos num tom nostálgico, como o
usado por Guedes de Amorim para dizer que ao ver um western num cinema de
Alcântara se lembrava de já ter tido doze anos e de já ter aplaudido filmes iguais àquele.
A nostalgia era um dos modos mais constantes e mais insidiosos da subalternização
social e simbólica dos filmes, sociabilidades e modos de recepção dos cinemas de bairro
face aos cinemas de estreia. Tanto mais que os comportamentos descritos como próprios
dos cinemas de bairro estavam longe de estar totalmente ausentes dos cinemas de
estreia. Compreende-se por isso que o anúncio da instalação do cinema sonoro num dos
cinemas de bairro visitados por Guedes de Amorim tenha sido percepcionado como
“um balde de água fria”. A construção social da diferença entre aquelas salas e aqueles
públicos era hostil à uniformização do gosto que se imaginava o cinema sonoro pudesse
vir a impor nos cinemas de bairro e que a inauguração do Royal Cine na Graça em 1929
anunciava60. Por esse motivo, outro jornalista, autor em 1930 de uma “radioscopia
cinegráfica” dos cinemas de bairro de Lisboa em tudo semelhante ao “filme dos
cinemas de bairro” de Guedes de Amorim, hesitava sobre a actualidade da sua
reportagem face aos primeiros sinais da adesão ao sonoro pelos cinemas de bairro: “Mas
quê? São assim os cinemas que fugiram da Baixa? Foram! Foram! Vejam agora o
Royal, aquele salão que há ali na vertente da Graça e que se abalançou a ser o primeiro
a fazer ouvir as suas fitas.”61
***
Estas transformações não configuraram manifestamente os fenómenos de “massificação
do espectáculo cinematográfico” descritos em 1928 por Kracauer numa Berlim de
quatro milhões de habitantes, número aliás apenas comparável ao do total da população
portuguesa no mesmo período62. Houve, no entanto, um notório crescimento do
mercado cinematográfico lisboeta na transição para a década de trinta, cujo maior
sintoma foi, justamente, a grande proliferação de cinemas de bairro durante o mesmo
período. A atenção dada a este novo fenómeno pela imprensa especializada atesta a sua
importância aos olhos dos espectadores das salas de estreia do centro da cidade, grupo
em que se inseriam claramente os jornalistas de cinema, por mais que discordassem,
como vimos, de alguns tipos de experiência do espectáculo cinematográfico que ali
tinham lugar. O olhar sobre os cinemas de bairro e os seus públicos, fortemente
60
Uniformização que, como vimos, o próprio mercado de distribuição não autorizou senão muito
lentamente.
61
José Ribeiro dos Santos, «Radioscopia Cinegráfica», Cinegrafia, nº24, 19-4-1930, p.24.
62
S. Kracauer, «The Cult of Distraction. On Berlin’s Picture Palaces», ibid., p.325. O censo de 1930
registou para Lisboa um total de 594390 habitantes.
Ler História, 52, 2007, 29-56
15
Cinemas de estreia e cinemas de bairro em Lisboa (1924-1932)
mediado por autores que se constituíam a si mesmos como vanguarda dos públicos dos
cinemas de estreia, assentou por isso numa significativa, embora muitas vezes ambígua,
resistência ao potencial disruptor dos cinemas de bairro sobre a primazia social e
simbólica das salas de estreia do centro da cidade. Como bem notaram os autores das
reportagens sobre os cinemas de bairro, de minoria entre os consumidores de
espectáculos públicos na Lisboa no inicio dos anos vinte, os frequentadores dos cinemas
de estreia tinham passado a minoria entre os espectadores de cinema no início dos anos
trinta. Não era, pois, apenas a sua posição como elite cultural que a massificação
(percepcionada) do espectáculo cinematográfico ameaçava no inicio da década de trinta,
mas também a sua primazia como elite cinéfila. Nas descrições dos cinemas de bairro
publicadas no inicio dos anos trinta da imprensa especializada nota-se então, em
primeiro lugar, um denegrecimento sistemático dos cinemas de bairro e dos seus
públicos como “populares”, isto é, privados da distinção social que os cinemas de
estreia e os seus públicos elegantes do centro da cidade se emprestavam reciprocamente.
Todavia, tal denegrecimento não impediu que vários dos comportamentos ali registados
fossem considerados mais “autênticos” do que os dos espectadores das salas de estreia,
forma insidiosa de subalternização (nostálgica) dos públicos dos cinemas de bairro. Em
segundo lugar, e embora subsidiário do referido denegrecimento, foi também notório
um fascínio por aquelas salas e públicos (e até mesmo por aqueles bairros e
populações), muito inflamado pelo imaginário citadino veiculado pelos serials e pelo
jornalismo mais sensacionalista de bas-fonds, meio de conceder à cidade um
cosmopolitismo, ou pelo menos alguns dos atributos das grandes metrópoles europeias,
que, em rigor, a capital portuguesa estava muito longe de poder reivindicar.
Ler História, 52, 2007, 29-56
16

Documentos relacionados