UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

Transcrição

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia
Ainda se Benze em Parintins: rezas e simpatias nas práticas das mulheres
benzedeiras
Manaus – Amazonas
2011
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DEILSON DO CARMO TRINDADE
Ainda se benze em Parintins: rezas e simpatias nas práticas das mulheres
benzedeiras
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação Sociedade e
Cultura na Amazônia da Universidade
Federal do Amazonas, como parte dos
requisitos para a obtenção do título de
mestre. Linha de pesquisa de concentração
Sistemas Simbólicos e Manifestações
Socioculturais.
Orientadora: Profª. Drª. Iraildes Caldas Torres
Manaus – Amazonas
2011
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DEILSON DO CARMO TRINDADE
Ainda se benze em Parintins: rezas e simpatias nas práticas das mulheres
benzedeiras
Dissertação de mestrado apresentado ao
Programa de Pós-Graduação Sociedade e
Cultura na Amazônia da Universidade
Federal do Amazonas, como parte dos
requisitos para a obtenção do título de
mestre. Linha de pesquisa de concentração
Sistemas Simbólicos e Manifestações
Socioculturais.
Aprovado em 11 de março 2011
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Dra. Iraildes Caldas Torres – Presidente
____________________________________________________
Dr. Sérgio Ivan Gil Braga – Membro
_____________________________________________________
Dr. Ricardo Gonçalves Castro – Membro
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DEDICATÓRIA
Àqueles que hei de ver novamente um dia
Deuclides Bulcão Trindade e Edilena Trindade Fernandes
A quem jurei amor eterno
Jucimara
Aos meus curumins
Douglas Mauro e Felipe Zanelli
A minha cunhã – poranga
Amanda Rizza
A quem não cansa de rezar por mim
Dona Neide Maria
Aos meus irmãos
Ida Marina, Eliana, Lauriney, Ana Léa, Edenilson, Edilson, Eneida, Deydiana
Dedico com carinho
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AGRADECIMENTOS
Àquele que me deu o sopro da vida, o poder superior na forma em que eu concebo, que
me fez entender que dele necessito e que sou tão frágil sem a sua proteção. Obrigado
pela cura física que operastes em mim. A Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que
intercedeu a meu favor perante o Pai quando aos vossos pés me prostrei mesmo sendo o
mais miserável de todos.
Às mulheres benzedeiras de Parintins: dona Rosa, dona Nazaré e dona Zenaide. Meu
muito obrigado pelas tantas vezes que deixaram seus afazeres para me atender.
Obrigado pelo café e a água, obrigado por me deixarem observar suas benzições, por
explicarem seus procedimentos e compartilharem suas experiências de vida e de
benzição comigo.
Ao casal de professores, Helena e Luiz Cassiano, que me incentivaram e auxiliaram na
elaboração do tema e na correção do pré-projeto. Também aos professores da banca de
qualificação que se dispuseram a ler e a avaliar o projeto de pesquisa e o primeiro
capítulo desta dissertação. Contribuição formidavelmente que foi indispensável para a
conclusão da mesma.
A Fernando e Leila, que me mostraram a benzição a partir da compreensão dos que
procuram as benzedeiras. Obrigado pelo tempo que dispuseram quando precisei retornar
várias vezes em vossas casas para esclarecer as muitas dúvidas que surgiam no decorrer
da pesquisa. Obrigado pelas narrativas sobre as benzições que engrandeceram ainda
mais este trabalho.
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À Fátima Guedes, pelo bom acolhimento no “coió das utopias”, muito obrigado por ter
aberto as portas de sua casa quando lhe procurei. Peço que jamais desista do trabalho
que vem realizando junto a “Articulação Parintins Cidadã”, em favor dos que atuam no
campo da medicina popular em Parintins; especialmente as mulheres benzedeiras.
À minha sempre professora Mirtes Cohen, que me indicou o primeiro caminho da
ciência tirando-me da escuridão e iniciando o acabamento nesta tábua bruta que por
muito tempo esteve esquecida e empoeirada num canto de marcenaria. Jamais esqueci
nossas conversas sobre o rumo da história e o papel do historiador. Graças a senhora, o
germe da pesquisa se disseminou em mim.
À minha querida professora Artemis Soares, que mesmo com o pouco tempo de
convivência no mestrado, compreendeu os meus problemas e as minhas adversidades e
teve a nobreza de me indicar o novo caminho a ser seguido. Saiba que levarei comigo as
boas impressões de generosidade, inteligência e caráter.
À Yomarley, Márcia e Mauro, amigos que fiz nessa caminhada e com quem pude contar
nos momentos difíceis. Sempre lembrarei as calorosas discussões sobre teorias na hora
do cafezinho que engrandeceram ainda mais o meu conhecimento. Jamais esqueci o
incentivo que me deram para continuar. Sem vocês as tribulações seriam maiores.
O meu especial agradecimento a Iraildes Caldas Torres, o primeiro raio de luz depois da
noite triste, a providência divina que tanto solicitei; aquela que soube escutar no
momento em que eu mais precisava de alguém para me ouvir; gesto que a primeira vista
parece tão simples; no entanto; requer tempo, disposição e sensibilidade com o
próximo; virtudes cada vez mais preciosas no mundo individualizado.
À Universidade Federal do Amazonas – UFAM, que através do Programa de PósGraduação Sociedade e Cultura na Amazônia, proporcionou-me a oportunidade tão
almejada de cursar o mestrado e assim engrandecer meus conhecimentos; e a Alberta
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Amaral, pelas incontáveis vezes que atendeu as minhas solicitações de última hora na
secretaria do programa, meu muito obrigado.
Ao diretor David Xavier e ao ex-diretor Francisco Dinelly, do Centro de Estudos
Superiores de Parintins da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, que
compreenderam a necessidade que tive de me ausentar temporariamente, facilitando
assim minhas viagens semanais a Manaus. Obrigado pela compreensão e ajuda no
período em que fiz parte do quadro de docentes.
À diretora Darcília Penha, que me recebeu com carinho no Instituto Federal de
Educação Ciência e Tecnologia do Amazonas – IFAM – Campus Parintins. A Bianca
Bento e Mário Bentes, obrigado pela compreensão e apoio nas tantas vezes em que
precisei ausentar-me deste Instituto para concluir minha dissertação.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM, que financia
minhas pesquisas desde a iniciação científica, contribuindo financeiramente para a
execução de cada projeto proposto. Sem a bolsa de estudo que recebi a realização da
dissertação, as viagens e as compras de livros seriam mais difíceis.
Enfim,
a
Rooney
e
Ítalo,
coordenador
e
ex-coordenador
do
Curso
de
História/CESP/UEA, por me ampararem nas vezes em que fui incompreendido, por
facilitarem meus horários de trabalho dando flexibilidade para realizar minhas viagens.
E a todos aqueles que de alguma maneira contribuíram para que eu pudesse concluir a
dissertação. Sinceramente muito obrigado.
8
RESUMO
Este estudo assumiu o propósito de verificar em que sentido ainda ocorre a prática de
benzição na sociedade moderna, dando especial relevo ao papel desempenhado pelas
mulheres benzedeiras na cidade de Parintins, município do estado do Amazonas.
Enfatiza as práticas sociais de reza, cura e benzição, a partir da formação social da Ilha
Tupinambarana e de seus moradores, buscando perceber a visão e a interpretação de
mundo feito pelas benzedeiras. A pesquisa foi desenvolvida sob o aporte das
abordagens qualitativas com o uso da técnica da entrevista semi-estruturada. Ficou claro
o fato de que a prática social da benzição na cidade de Parintins é legitimada pelas
demonstrações de fé que facilita a aceitação do “dom da benzedeira” e a mediação com
o Divino. De modo geral, a pesquisa mostra que há uma estreita relação da prática de
benzição com os elementos da natureza, e que essa relação gerou um modo específico
de desempenho do papel de benzedeira diferente das demais benzedeiras de outros
locais do país. Há, nessas práticas, um veio genuinamente amazônico em face do efetivo
interrelacionamento com a mãe natureza dos trópicos.
Palavras – chave: benzedeira, medicina popular, religiosidade popular.
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ABSTRACT
This study assumes the purpose of verifying in which sense the practice of faith healing
still occurs in the city of Parintins, municipality of the Amazon State, Brazil. It
emphasises the social practices of praying, curing and faith healing based on the social
formation of the Tupinambarana Island and its residents, seeking to discover the vision
and interpretation of the world in the eyes of the faith healers. The research was based
on the qualitative approaches with the use of semi-structured interviews. It was very
clear that the social practice of faith healing in Parintins is legitimized by the
demonstrations of faith that facilitate the acceptance of the “gift of the faith healer” and
the mediation with the divine. In general terms, the research shows that there is a direct
relation between the practice of faith healing and the natural elements and that this
relationship generated in a specific manner a role of faith healer different from the other
faith healers in other parts of the country. There is, in these practices, a genuinely
Amazonian vein with regard to the effective interrelationship with Mother Nature of the
tropics.
Keywords: faith healer, popular medicine, popular religion.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO______________________________________________________11
CAPÍTULO I
AS ORIGENS ANCESTRAIS DE PARINTINS____________________________16
1.1 A constituição histórica da ilha Tupinambarana___________________________16
1.2 As práticas de curas indígenas_________________________________________32
1.3 A atualidade da cura popular em Parintins________________________________42
CAPÍTULO II
O COTIDIANO E O ESPAÇO DA VIDA PRIVADA_______________________57
2.1 Cotidiano e significado da cultura popular_______________________________57
2.2 A importância da mulher no campo da benzição__________________________67
2.3 Reza e cura, magia ou fé?___________________________________________74
CAPÍTULO III
AS BENZEDEIRAS DE PARINTINS____________________________________86
3.1 O sagrado e a simbologia na benzedura_________________________________86
3.2 A mística das benzedeiras associada aos mitos da floresta__________________98
3.3 Espaço e procedimentos da benzição__________________________________100
CONSIDERAÇÕES FINAIS___________________________________________117
REFERÊNCIAS_____________________________________________________120
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INTRODUÇÃO
As práticas e rituais religiosos têm sido manifestados pelos homens, desde
épocas remotas, garantindo prestígio àqueles que as utilizam. Não obstante a isto, as
transformações por que passam as sociedades têm influenciado modos e lugares de
atuação destas práticas; sem contudo extingui-las.
Nas nascentes sociedades de classes da antiguidade, a partir da extinção do
regime de propriedade coletiva dos meios de produção1, as religiões oficiais mediadoras
entre os deuses e os homens tiveram forte poder político e passaram a ser usadas como
legitimadoras da apropriação do excedente econômico e da propriedade privada, em que
os sacerdotes ao lado dos reis gozavam de grande prestígio e poder.
Nesse período ainda, é possível identificarmos nas classes populares, cultos e
oferendas relacionadas à natureza, aos animais e aos astros; herança das antigas
organizações gentílicas que se desfaziam. Aqui a figura feminina era identificada nos
cultos à mãe terra ou à deusa da fertilidade.
Os antigos sumerianos recorriam às práticas mágicas para a cura de seus males,
tidos como sobrenaturais; e Marduque, deus da Babilônia, era considerado o grande
deus curador. Thoth, deus egípcio, ao qual era atribuído a magia, curou o deus Horus de
uma picada de escorpião, enquanto que Menés e Zoser eram considerados reis
curadores.
Na Grécia antiga, Apolo, o deus inventor da arte de curar, era pai de Asclépio, o
deus da medicina, que, por sua vez, era pai de Hígia, a deusa da saúde, e de Panacéia, a
deusa da farmácia, que conhecia o remédio para todas as doenças. Da mesma forma,
Marte era o deus curador para os romanos.
No judaísmo, religião precursora de outras religiões monoteístas, o poder de
curar é atribuído ao Deus único, Javé, senhor da vida e da morte, da saúde e da doença,
1
Sobre essa discussão recomendamos a leitura do livro de Friedrich Engels “A origem da família, da
propriedade privada e do estado”, publicada pela editora Centauro em 2002.
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e aos profetas por Ele designado. Essas atribuições são estendidas ao cristianismo em
que novos personagens surgem – os santos – a quem muitas vezes são atribuídas curas
específicas; caracterizando, com isso, um santo para cada enfermidade do corpo; porém,
sob a rígida permissão e observância da Igreja.
Passada para o domínio da religião, a cura é confiscada como propriedade, os
termos magia e bruxaria ganham um sentido pejorativo e proibitivo na Idade Média. A
Igreja passa a combater, perseguir, punir e até matar quem cometia tais atos. Não
obstante a isto, as crenças sempre persistiram, pois assim como temiam a punição da
igreja, as pessoas também temiam os danos causados por feitiços que poderiam aparecer
em forma de uma doença ou de uma má colheita no campo. E mesmo com a
cristianização, os povos germânicos, celtas ou eslavos nunca esqueceram suas antigas
práticas ancestrais, recorrendo sempre a elas.
Nesse período, muitas mulheres idosas, que tinham uma deficiência física, ou
que vivessem sozinhas, eram constantemente acusadas de bruxaria, com poderes
capazes de influenciar a vida e até mesmo o clima das aldeias, e não raro, quando
denunciadas, eram levadas para serem queimadas em praça pública. Essas mulheres
eram responsabilizadas pelas epidemias e catástrofes naturais, pois na medida em que as
doenças, os abortos naturais ou o mau tempo persistiam, a culpa era atribuída a algum
de seus feitiços maléficos.
Essa culpabilização das benzedeiras constituía-se numa espécie de vigilância
sobre as mulheres, típico das religiões monoteístas que reservaram a elas um lugar de
desigualdade no campo religioso. A supremacia do masculino, mostrada como natureza
divina, legou às mulheres um caráter secundário, além de lhes conferir a culpa de muitas
mazelas sociais. Afinal, no cristianismo, Eva é derivada de um osso sobresselente de
Adão, e por uma transgressão dela, os dois foram expulsos do paraíso e o pecado entrou
no mundo.
Ainda no período medieval, conforme Franco Jr (2006), não havia a medicina
institucionalizada como conhecemos hoje, deforma que, os poucos conhecimentos sobre
as doenças, agravadas pela falta de higiene e pela crença de que a enfermidade poderia
ser vontade divina, dificultava a recuperação do indivíduo. Diante de tal situação,
acreditava-se que a doença fosse causada por um agente externo ao organismo, daí a
necessidade de amuletos e exorcismos, pois a magia que causava doença deveria ser
combatida com outra magia. Por isso, tanto um médico, como um mago ou um
sacerdote, tinham a mesma importância na cura dos males.
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No início da colonização do Brasil, as práticas de cura eram feitas por terapeutas
não oficializados, mas permitidos, devido à existência de poucos profissionais de
conhecimento instituído. As pessoas que não tinham acesso aos médicos buscavam suas
curas em conhecedores de procedimentos e técnicas herdadas, em muitos casos, dos
índios e negros.
As plantas medicinais eram usadas por todos: curandeiros, médicos, ricos,
pobres, do interior e da cidade. Assim, as benzeduras, rezas e simpatias já configuravam
como práticas populares sem a associação com a ignorância popular. Deste modo, o não
confrontamento entre saberes, fazia com que muitos acreditassem apenas nos terapeutas
populares, tornando significativas suas atuações em diversas modalidades e classes
sociais.
Foi com o predomínio da medicina oficializada pelo Estado que esses terapeutas
populares, entre eles as benzedeiras, começaram a ser desqualificados. O Estado tentava
empurrá-los para uma posição inferiorizada, mas elas não desapareceram, ao contrário,
reorganizaram seus espaços na sociedade e continuaram a sua atuação, sem nunca ter
deixado de receber aqueles que os procuravam, e assim foram confirmando a sua
existência e permanência.
Nos dias atuais, percebemos que a benzição continua a ser exercida como prática
social na cidade de Parintins, especialmente por mulheres. Um dos exemplos é a
procura constante de mães de crianças que vêem nas benzedeiras a possibilidade de
curar os males que afligem seus filhos.
Mesmo existido curadores atuando na cidade de Parintins, as mulheres são
dominantes nesse campo do conhecimento, sendo mais populares que os homens. Elas
adquiriram um “poder” que ultrapassa o campo da benzição para ser a maior autoridade
de sua família, desfigurando o modelo patriarcal apresentado por Freyre (1998). São
elas, em sua maioria, que chefiam suas famílias.
A ideia de superioridade masculina contida nas relações de gênero, baseada na
submissão e passividade das mulheres parece, neste caso, não encontrar guarida na
Amazônia (TORRES, 2005). As mulheres benzedeiras de Parintins além de exercerem
sua autoridade em seus lugares específicos de benzição, ainda estendem esse domínio
para o convívio familiar. Assim, o discurso pejorativo de passividade da mulher
amazônida, herança da cultura do patriarcado perde seu significado neste contexto.
Ao benzerem, essas mulheres entram no campo do sagrado, terreno
historicamente dominado pelos homens, e ao curarem se colocam na contramão da
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medicina. Daí sempre serem acusadas de bruxarias, feitiçarias ou charlatanismo. Mesmo
assim, elas continuam exercendo seu trabalho ativamente, desafiando os poderes dos
sacerdotes, dos homens, dos soberanos, da razão.
Este estudo nasceu de uma inquietação concebida a partir de vários episódios
presenciados na cidade de Parintins-Am. Essa cidade conhecida pelo seu festival
folclórico do boi-bumbá, também tem na festa de sua Padroeira Nossa Senhora do
Carmo, outra grande manifestação social e de fé.
A religiosidade popular é um elemento primaz na vida dos moradores da cidade.
Trata-se de manifestações simples mas com significados profundos muitas vezes
expressados na forma “Deus e Nossa Senhora quiserem”. É também muito comum
vermos pessoas se benzerem ao passar pela Igreja Matriz, como é comum ouvirmos as
expressões “a benção mãe, a benção pai”, ou seja, os filhos pedindo que seus pais os
abençoem. Vemos também pessoas que benzem a si próprias, geralmente quando saem
de casa fazendo um sinal da cruz em seu rosto. Vê-se portanto, que a benzição faz parte
do cotidiano dos moradores de Parintins.
É nesse contexto que percebemos uma estreita relação entre a população e a
benzição, e passamos então a observar que ela se dá em várias formas e de várias
maneiras. Notamos ainda, que existem na cidade pessoas especializadas neste ato,
credenciadas com base na credibilidade e confiabilidade que lhe foram atribuídas.
E assim que formos percebendo que existe espaço para essa prática na cidade de
Parintins, esta pesquisa mostra a relação entre benzedeira e benzido, que foi
compreendida a partir da história vista de baixo, propugnada por Thompson (2001),
sem, no entanto, nos perdermos na dicotomia de alto e baixo, mas dando vez e voz à
cultura tida como baixa em relação àquela da qualificada como erudita. Dessa maneira,
a experiência das benzedeiras e benzidos de Parintins compôs-se em uma outra história
de um novo contexto social local, na medida em que colocou-se no campo da pesquisa
temas até pouco tempo negligenciados pela historiografia.
A história oral de vida foi o método utilizado para conduzir esta pesquisa, a
partir da técnica da narrativa em que se seguiram as orientações de Meihy (2005), pois
consideramos que elas possuem algumas especificidades próprias. O estudo e a
descrição das benzedeiras e suas práticas na cidade de Parintins foram direcionados a
partir de Geertz (1989), que nos possibilitou visualizar a prática e o funcionamento da
benzição.
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Assim, a pesquisa foi desenvolvida sob o aporte da abordagem qualitativa com o
uso da técnica da entrevista semi-estruturada, em que foram ouvidas 03 mulheres
reconhecidas pela sociedade como benzedeiras que vivem e atuam em Parintins.
Ouvimos ainda 01 integrante dos movimentos populares que atua no campo da
medicina natural e práticas complementares em Parintins e mais 02 colaboradores que
admitem procurar as benzedeiras constantemente para solução de seus males.
O trabalho está dividido em três capítulos articulados que possibilitam uma visão
da benzição na cidade de Parintins, procurando mostrar que essa atividade ainda
encontra espaço na contemporaneidade. O primeiro capítulo traz o contexto histórico de
Parintins, assinalando o rastro dos primeiros indígenas que habitaram a região, o qual
contou com a grande contribuição de Cerqua (1980). Ainda nesse capítulo damos
destaque às práticas de cura indígena e popular. No segundo capítulo, nos detivemos a
abordar, com base em Heller (2004), o significado do cotidiano e da cultura popular
para darmos ênfase ao valor da mulher no campo da benzição, da reza e da cura. O
terceiro capítulo discute as práticas sociais das benzedeiras de Parintins, sua relação
com o sagrado, o simbolismo entendido a partir de Gomes e Pereira (2004), e a
influência da floresta nessas práticas.
Finalmente, cumpre-nos reconhecer a relevância social deste trabalho para as
mulheres benzedeiras de Parintins, especialmente os movimentos sociais de mulheres
dessa cidade, que historicamente buscam compreender o simbolismo contido na prática
da benzição. Poderá, também, se constituir num instrumento importante para a
discussão das práticas de cura na Amazônia.
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CAPÍTULO I
AS ORIGENS ANCESTRAIS DE PARINTINS
“A maioria dos povos indígenas que viviam ao
logo do rio Amazonas à chegada dos europeus
estão extintos ou destribalizados há mais de
duzentos anos. O seu conhecimento depende
essencialmente do que foi escrito pelos primeiros
exploradores, viajantes e missionários”.
Antônio Porro (História dos índios no Brasil).
1.1 A constituição histórica da ilha de Tupinambarana
Os mais antigos vestígios deixados pela ocupação humana na Amazônia,
segundo Prous (2007), datam de pelo menos onze mil anos atrás, quando povos
caçadores, pescadores e coletores ocuparam a floresta muito antes do surgimento da
agricultura, deixando muitos indícios como as “terras pretas de índios” que ainda hoje
são encontradas com facilidade. Isto nos leva a crer que a Amazônia era densamente
povoada, pois como diz Neves (2006, p.9), “é importante reconhecer que a bacia
Amazônia era densamente ocupada por diferentes povos indígenas no final do século
XV, época do inicio da colonização européia nas Américas”.
A tradição arqueológica Polícroma que envolve as fases: Marajoara e Guarita,
embora seja de grande intensidade na Amazônia, não é encontrada no local onde hoje se
encontra o Município de Parintins. Os vestígios arqueológicos dos primeiros habitantes,
segundo Neves (2006), são da Tradição Incisa Ponteada, que se divide em duas fases:
Konduri e Tapajônica. É datada de aproximadamente mil anos até o início da
colonização européia. Essa tradição é encontrada na região; no curso que vai da foz do
rio Xingu até onde se encontra a cidade de Parintins. De acordo com Prous (2007, p.
119),
17
Os vasos de „cariátides‟ apresentam uma base anelar decoradas por
incisões, sobre as quais figuras femininas nuas, cobrindo a boca ou os
olhos, sustentam um receptáculo em forma de tigela. Ao redor dela
estão aplicadas modelagens em forma de urubus reis que olham
alternadamente para dentro ou para fora. Seriam estas vasilhas ligadas
a rituais proibidos às mulheres (como os do javari da Amazônia de
Hoje)?
Outro tipo de vasilha, chamada „vaso de gargalo‟ apresenta sobre um
pedestal, um bojo globular representando o corpo de um jacaré do
qual saem duas cabeças opostas e simétricas. Acima do focinho
„brincam‟ animais modelados como papagaios, pequenos quadrúpedes
e macacos. Representações das patas do jacaré ou figuras de sapo
estão aplicadas nos flancos, e um gargalo vertical cilíndrico justifica a
variação dessa variedade.
A terceira categoria de vaso cerimonial comporta grandes cálices
sobre pedestal, geralmente decorados no interior com figuras de cobra.
Algumas vasilhas globulares representam figuras masculinas.
Não há dúvidas quanto ao fato de que a região do baixo Amazonas tenha sido
mais povoada no início do século XVI do que no final do século XVII. Ainda hoje é
comum nos depararmos com matérias arqueológicas encontradas tanto em escavações
para construções, como no preparo da terra para o plantio do roçado. Esses fatos
confirmam a ocupação de Parintins pelos povos indígenas bem antes da chegada dos
primeiros europeus. Ao se referir sobre os vestígios arqueológicos Cerqua (1980, p.1112) relata que,
1 - O território de Parintins vai da Serra ao Paurá e em ambos estes
lugares há vestígios de antigos aldeamentos indígenas. Se alguém
entrar no Remanso e subir o outeiro à esquerda, vê a terra disseminada
em cacos de cerâmica. Eu pessoalmente a 12 de junho de 1972
consegui juntar um bom números deles, tendo o cuidado de escolher
os que apresentassem algum ornato. Sinal claríssimo de antigo
aldeamento de índios do lugar. Nas demais colinas da costa do Paurá
também se encontram tais vestígios, mas em quantidade menor.
2 – A Terra Preta da Valéria, perto da Serra, apresenta igualmente
achados arqueológicos em grande quantidade. O povo de lá, por
exemplo, sabe que há pouco um turista mandou cavar ao lado do
barracão do leilão e só d‟uma fossa tirou uma saca inteira de
fragmentos de cerâmica de índios. Em seguida tem sido feitas outras
escavações sempre com resultados positivos, atraindo sempre novos
turistas. Continuamente os caboclos acham esses cacos, especialmente
na colina ao lado da Valéria. O Sr. Raimundo Farias entregou-me
algumas peças interessantes.
3 – Há tantos outros lugares que oferecem idêntico testemunho, de
entrada só vou lembrar a própria cidade de Parintins, que tem revelado
aldeamentos indígenas de tempos anteriores a chegada de Cordovil.
18
Por exemplo, cavando os alicerces da Prelazia, debaixo da camada de
terra preta, foram encontrados vários cacos antigos. A mesma coisa
aconteceu com o senhor Jorge Kawakami nas escavações do novo
armazém da Caçapava, onde foi descoberta boa quantidade dessas
peças cerâmicas, mais de um metro abaixo do atual nível do terreno.
Também as escavações dos alicerces da Catedral forneceram achados
arqueológicos antigos, especialmente machados de pedra, dos quais
guardamos um para o engastar2 no futuro altar fixo da Catedral.
Essas constatações, feitas pelo bispo da diocese de Parintins, Dom Arcângelo
Cerqua, parece não deixar dúvidas de que grandes populações indígenas ocupavam
extensas faixas de terras em Parintins, muito antes da colonização. As peças de
cerâmica encontradas eram em grande quantidade, e de fácil acesso, no município de
Parintins, mas ao longo do tempo não escaparam à depredação e ao furto.
Seriam os Aratus, Apocuiaras, Yaras, Goduis e Curiatós, as primeiras tribos que
habitaram o lugar onde hoje está localizada a cidade de Parintins e sua região. Em um
segundo momento essas tribos foram subjugadas pelos Tupinambá que vieram do litoral
brasileiro em movimento migratório. A partir de 1600 transformou-se em um
verdadeiro êxodo (CERQUA, 1980).
Para Cerqua (1980), os Tupi chegaram à nossa região, navegando pelo Rio
Madeira e pelo centro, conquistando e se apossando da ilha, “eles avassalaram” as
tribos já existentes no lugar, havendo também fusões por meios de casamentos. O
primeiro contato dos índios da região com o europeu, segundo Souza (2003), se deu
com Francisco Orellana em sua primeira viagem pela Amazônia ao se separar da
expedição de Gonçalo Pizarro. Essa tese é constatada por Saunier (1990, p.118), ao
afirmar que,
Dia 18 (junho de 1542), Orellana e seus marujos pernoitaram em
frente a uma aldeia e foram atacados pelos índios com flechas
envenenadas. Diz Carvajal, que as flechas vinham silvando pelo ar.
Isso confirma uma técnica usada pelos nossos índios Mundurucu e
Parintins, que colocavam um caroço de tucumã furado, preso a flecha,
tendo no caroço um buraco, que com o deslocamento do ar, emitia um
silvo. Aí sem dúvida, era a nossa ilha de Tupinambarana, pois logo
depois, Orellana, passava pela Serra grande.
2
Embutir, encravar, encaixar, montar, apear.
19
O aldeamento descrito pelo cronista da expedição de Francisco Orellana, Frei
Gaspar de Carvajal, foi denominada de Las Picotas (dos pelourinhos), isto porque
segundo Porro (1992), nos seus povoados havia muitas varas ostentando cabeças de
mortos. Essa, portanto, foi a primeira denominação para a região de Parintins.
Ainda nesta viagem a expedição confrontou com as Amazonas3, próximo ao
desembocar do rio Nhamundá, abaixo da Serra de Parintins. Orellana, que já sabia de
sua existência por meio de índios que o haviam alertado, ficara espantado com as
mulheres guerreiras. Collyer (1998 p.31) relata que,
A 22 de junho de 1541, quando a expedição se aproximava da foz do
Rio Nhamundá, para suprir-se de alimentos, foi atacada por uma
saraivada de flechas. Os Homens não conseguiram desembarcar. Ao
contrário, tiveram que travar renhido combate. Para espanto e surpresa
dos soldados de Orellana, entre os índios bravios destacavam-se dez
ou doze mulheres de compleição forte, altas, de longos cabelos e por
demais ágeis no manuseio do arco.
Para Porro (1995), a participação ativa das mulheres na guerra não era algo
incomum entre os indígenas americanos, e a documentação etnográfica a respeito não é
desprezível. Orellana já tinha notícias das guerreiras amazonas por meio de relatos de
Colombo que afirmava ter encontrado semelhantes mulheres nas Antilhas. Ainda assim
ficou surpreso. Para Collyer (1998) o mito das Amazonas brasileira vem atravessando a
história, merecendo estudos de cientistas e literatos.
O cônego Francisco Bernardino de Souza, em sua obra intitulada Lembranças e
Curiosidades do Valle do Amazonas publicado em 1873, conclui que seria difícil provar
ou negar a existência das amazonas. Vejamos:
Orellana commandava um navio, não foi o único a combater contra as
Amazonas, não se achava a sós; acompanhava-o a guarnição do navio,
que se não compunha exclusivamente de marinheiros rudes e soldados
ignorantes, que facilmente podessem ser illudidos, mas também de
officiaes, que é de presumir tivessem certa educação e conhecimentos.
Seriam elles outros tantos protestos, que se levantariam contra a
fabula por elle engendrada e em seu único proveito.
3
A respeito desse mito recomendamos a leitura do livro de Iraildes Caldas Torres, “As Novas
Amazônidas”, publicada pela Edua em 2005.
20
Entretanto não consta que um só se apresentasse desmascarando o
embuste, e a narração de Orellana correu mundo, sem que nenhum dos
seus companheiros a desmentisse e contradissesse.com elles chegou à
pátria, onde referio o sucesso em que deviam todos ter tomado parte, e
estes que sem duvida teriam sido interrogados, não desmentiram o
facto.
Estariam todos elles peitados? Teria havido accordo prévio entre todos
elles, de modo que nunca trahissem a promessa que mutuamente se
haviam feito?
Semelhante hypothese parece ser ainda mais difficil de verificar-se do
que a possibilidade da existência d‟essas mulheres, constituindo uma
república e vivendo na mais completa independência de homens.
(SOUZA, 1873, p.168).
Mais de cem anos depois da passagem de Orellana, os padres Manuel Pires e
Francisco Veloso, quando saíram do Maranhão em 22 de junho de 1657, a caminho do
Rio Negro, mantiveram contato com os índios da região. Segundo Leite (apud,
CERQUA, 1980, p. 21), “na viagem os dois padres tomaram contato com os índios da
ribeira do Amazonas, sobretudo Aruáque e Tupinambarana”. A partir daí a notícia que
se tem é que os contatos tornaram-se mais freqüentes por parte dos religiosos. Para
Souza (2003), a evangelização começou efetivamente na Amazônia com o missionário
Padre Antonio Vieira que idealizou e fundou na Amazônia as chamadas missões
jesuítas.
De fato, segundo Cerqua (1980), em 1658 os índios da ilha de Tupinambarana
são visitados pelo padre Francisco Gonçalves, provincial dos jesuítas, o primeiro
missionário a pisar na Ilha de Tupinambarana. Somente em 1660 é que os primeiros
padres se ocuparam efetivamente da evangelização dos índios, sendo eles os jesuítas
Manuel Souza e Manuel Pires, ficando a ação deste último estendida até os rios Negro e
Solimões. Para Souza (2003), são esses dois os fundadores de Parintins.
A partir da narrativa do Padre João Felipe Bettendorf, encontrada em Cerqua
(1980), os padres Manuel Pires e Manuel Souza, em 31 de dezembro 1660, ergueram
uma capela dedicada à Santa Cruz, o autor sugere que a localidade escolhida pelos
padres possa ser a Boca do Jatapu ou do Remanso, hoje na região de Parintins, fato
evidenciado pela quantidade de restos cerâmicos, que revelam ter sido ali um grande
aldeamento.
Ao assumir o cargo de Provincial da Companhia de Jesus, o padre João Felipe de
Bettendorf realiza uma viagem de visita aos jesuítas que foi autorizado pelo padre
Antonio Vieira. Acompanhado pelo padre Píer Luigi Consavi e pelo Irmão Domingos
21
da Costa, visita as missões de nossa região onde já havia residências de base. Cerqua
(1980 p.23) nos diz a respeito de Bettendorf que,
Em sua crônica fala expressamente de 6 aldeias, das quais uma,
Irurires, no Madeira, e 5 entre nós, São Miguel dos tupinambaranas,
Andirazes Curiatós, Maguases (Maués) e Abacaxis. A 29 de setembro
dedica uma capela em honra a S. Miguel „na aldeia dos
Tupinambaranas‟, „que ficava umas cinco jornadas do rio Tapajós, em
ponta alta sobre o rio‟.
É a nossa Parintins, cuja posição é bastante alta com relação à várzea
circunstante. Infelizmente não há lembrança com S. Miguel por orago;
afinal eram capelas improvisadas em populações ainda móveis.
Para Saunier (2003), o Padre João Felipe de Bettendorf, fundador de missões e
vilas, entre elas Tupaiu, hoje Santarém no Pará, fundou no dia 29 de setembro de 1669 a
cidade de Parintins que tem início com a capela de São Miguel. Quanto às missões de
Andirazes e Curiatós não se tem certeza de suas localizações, porém acredita Cerqua
(1980), que as mesmas devam ter sido erigidas no rio Andirá e rio Uaicurapá.
Um surto de mosquitos obrigou parte da população de Tupinambaranas a mudarse para outra localidade conhecida, hoje, segundo Souza (2003), como Freguesia do
Andirá, diminuindo a população que vivia no aldeamento às margens do rio Amazonas.
Com a chegada de padre Antônio Fonseca, parte da população da missão da Freguesia
do Andirá veio para próximo à ilha de Tupinambarana. Segundo Cerqua (1980, p.24),
Ele, para facilitar seu trabalho apostólico, operou logo mudança „não
total‟ para um lugar mais central e mais perto da Tupinambarana da
beira do amazonas. Deixando parte dos índios na aldeia dos
Andirazes, fundou uma nova aldeia dos Tupinambaranas „um pouco
mais para cima, num formoso outeiro que olhavam para um belo e
espaçoso lago, com bons ares, boa vista e bons mantimentos; e
unindo-o pela origem de seu primitivo orago, construiu igreja e grande
casa em honra a S. Inácio. O chefe era João Cumiarú, afamado na
guerra‟.
Essa localidade foi denomida Tauaquera (Taua=aldeia, Quera=aquela que já foi
antiga) e ficava entre as regiões onde hoje se localizam as comunidades rurais de São
Carlos e Marauarú. Segundo Cerqua (1980), Tauaquera se tornou o centro das missões
22
Jesuítas, atendendo os índios Curiatós, Condurises, Andirazes e Maraguares. Em sua
visão era uma aldeia pobre, mas bem governada, na qual se podem observar ainda hoje
suas ruínas. O cônego Francisco Bernardino de Souza em 1873 descreveu assim o lugar:
Na sua foz e em uma bella praia está o lugar denominado Tauaquéra,
onde os jesuítas começaram a edificação de um convento, cujas
paredes ainda ali existem, admiráveis sobretudo pela solidez da
construção.
Constatando que no círculo que abrange aquellas paredes haviam
grandes riquezas enterradas, mais de um individuo ali tem ido fazer
escavações, que nenhum resultado tem dado (SOUZA, 1873, p.263).
Cem anos depois, já na segunda metade do século XX, Cerqua (1980), ainda
chamava a atenção para as escavações que eram realizadas por pessoas que acreditavam
haver ali tesouros enterrados nas ruínas de Tupinambarana do Uaicurapá. O padre
alemão Samuel Fritz, religioso da Companhia de Jesus, fundador de missões no rio
Solimões, quando vindo de Belém a caminho do Peru, em seu diário descreveu sua
passagem por Tupinambarana em 1691, na qual hoje se acredita ser a do Uaicurapá de
acordo com seu relato (apud, PINTO, 2003, p.104),
A 17, meio dia, chegamos à foz do rio dos Tupinambaranas; às oito da
noite, à aldeia onde residia o padre Antônio Fonseca. Esta aldeia está
entre os lagos. Aqui paramos nove dias, consertando as canoas.
A 26, pela tarde, partimos dos Tupinambaranas; caminhamos sete dias
sem haver aldeia nem gente.
Os padres Manuel Pires e Manuel Souza, foram transferidos para a missão do
Tapajós. Em 1723 chega o padre Manuel dos Reis que passa a residir em São Miguel
dos Tupinambarana, onde ergue uma capela em homenagem a São Francisco Xavier.
Cerqua (1980 p.27) assinala que “o aumento da população e a limpeza do lugar reduziu
muito a praga dos mosquitos”, no entanto, as epidemias começam a aparecer, diminuído
dessa forma, uma população que em 1730 era formada por 495 índios, dos quais 284
eram batizados4. Parte da população que restou migrou para a aldeia de São José no rio
4
Há indícios de que se tratasse de uma epidemia de sarampo e bexiga (ver SOUZA, 2003).
23
Tapajós por volta de 1737, levados pelo padre José Lopes. Outros foram para a aldeia
dos Abacaxis, que de 500 pessoas que contavam em 1696, passou a ter 923 habitantes
em 1730 (CERQUA, 1980).
Tanto para Cerqua (1980) quanto para Souza (2003), mesmo com as epidemias,
o esvaziamento das aldeias de Tupinambarana se efetivou a partir da política pombalina
para a Amazônia, executada por Francisco Xavier de Mendonça Furtado que perseguiu
os Jesuítas e transformou as Missões religiosas em vilas de governo. “É pena que,
perseguindo os Jesuítas em nome de Pombal, causou a ruína de tantas missões, inclusive
a de nossa região, paralisando assim o progresso e até devolvendo novamente ao mato,
vilas prósperas e tantos índios já em via de civilização” (CERQUA, 1980, p.30).
A ascensão de Dom José ao trono português em 1750 alterou a política para as
colônias. Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, com o objetivo de
libertar Portugal da influência inglesa, põe em prática uma política de recuperação e
modernização nacional, interferindo nas instituições econômicas, políticas e sociais,
indo de encontro com a igreja que tinha forte influência em Portugal. Com a reforma
Pombalina, a Amazônia ganha uma atenção especial do governo português, recebendo
intervenção direta da metrópole, no espaço político e econômico do governo. As
principais medidas adotadas por Pombal para a Amazônia foram as seguintes:
1.
A drástica modificação ocorrida na política relativa à mão-deobra indígena, proibindo o recrutamento da mão-de-obra nativa pelas
tropas de resgates: os índios passaram a ser considerados livres e
assalariados, portanto, súditos de Sua Majestade, embora fossem
dirigidos por funcionários seculares do estado, os diretores de índios,
que passaram a atuar nos antigos aldeamentos missionários;
2.
A instituição de uma companhia de comércio que funcionou
durante mais de vinte e dois anos (1755 – 1778), com a finalidade de
introduzir escravos africanos a crédito, para dinamizar a agricultura e
incrementar o comercio na região, além de promover o povoamento
através da imigração de casais açorianos. A Companhia Geral do
Comércio do Grão-Pará introduziu mais de 14 mil escravos africanos
e incentivou a cultura do café, cacau, arroz e outras. Entretanto essa
medida pôs na ruína comissários e armadores de navios que
mantinham o tráfego com o Pará e o Maranhão, como também
pequenos negociantes estabelecidos na colônia.
3.
A redistribuição (entre militares e particulares) das propriedades
confiscadas dos Jesuítas, por doação ou venda em hasta pública.
Algumas propriedades foram transformadas em vilas.
4.
A reformulação e ampliação da incipiente máquina
administrativa local e a transformação das antigas missões em vilas e
lugares com novas denominações lusitanizadas. Criou-se o Estado do
24
Grão – Pará e Maranhão (1751) com sede em Belém, a Capitania do
São José do Rio Negro (1755) com sede em Barcelos, na antiga
Aldeia de Mariuá, e o estado do Grão – Pará e Rio negro (1772).
(SANTOS, 2002, p. 46-47).
O objetivo da política pombalina consistia em centralizar a administração
portuguesa impedindo áreas de atuação autônomas por ordens religiosas, cujos fins
eram diferentes dos propósitos da coroa. Para Pombal a integração da fronteira passava
pela integração dos índios à civilização portuguesa. Isso justifica uma série de medidas
tomadas pela administração em relação aos índios e a Amazônia. Fausto (2008, p.111),
diz que “a escravidão dos índios foi extinta em 1757; muitas aldeias na Amazônia foram
transformadas em vilas sob a administração civil; a legislação incentivou os casamentos
mistos entre brancos e índios”. E ainda complementa dizendo que a maioria das
propriedades urbanas e rurais confiscadas dos jesuítas foi arrematada em leilão por
grandes fazendeiros e comerciantes.
A expulsão dos Jesuítas das aldeias de Tupinambarana trouxe prejuízos “a
Aldeia de São Francisco Xavier, hoje Parintins, que ainda resistiu por algum tempo,
mas os poucos moradores que ficaram perderam o ânimo para o trabalho na agricultura
e sem produção a aldeia desapareceu em alguns meses”. (SOUZA, 2003, p.10).
Acrescenta Cerqua (1980, p.31), “algumas vilas nossas desapareceram assim como a do
Uaicurapá e como a da própria Tupinambarana, que foi invadida novamente pelo mato,
ficando poucos habitantes”.
O período da administração de Pombal na Amazônia resultou, pelo que
percebemos
em
uma
desaceleração
populacional
das
aldeias
indígenas
de
Tupinambarana. Foi com a chegada de José Pedro Cordovil que Tupinambarana se
reorganizou, o qual estruturou uma vila no modelo pombalino em 1796. Na verdade
Cordovil,
Foi o fundador da antiga Villa Nova da Rainha, hoje Vila Bella da
imperatriz, onde teve um importante estabelecimento agrícola, além
do que possuía nas terras que da foz do lago José – assú, dentro do
Ramos, á do Matto – grosso, no Amazonas, lhe foram concedidas em
sesmaria pela rainha D. Maria I. O lugar onde está hoje edificado o
paço da câmara municipal de Villa Bella foi o da primitiva residência
de Cordovil (SOUZA, 1873, p.185).
25
Cordovil introduziu os primeiros escravos em Tupinambarana. Bittencourt
(1924, p.77), afirma que o número de cativos no ano de 1848, era de 77, em 1859
aumentou para 192, e em 1861, subiu para 263, para então decrescer até a abolição da
escravidão na província, em 1884, com 131 escravos. Também para João Jorge de
Sousa (1989), Cordovil é o fundador da cidade de Parintins. E ainda segundo seu relato,
Em 15 de junho de 1847, na antiga matriz de N. S. do Carmo,
acontece um batizado com alforria.
Uma negra, Virginia, filha de Josefa Isabel, escrava de Filipe Gomes
de Oliveira Seixas, na hora do batismo é declarada livre da patroa, a
presença das testemunhas Joaquim da Silva Meireles e Antonio
Ferreira Franco, que assinaram o livro junto com o sacerdote
(SOUZA, 1989, p. 30).
Arthur Cézar Ferreira Reis, em As Origens de Parintins (1967), afirma que José
Pedro Cordovil foi o organizador do núcleo populacional, a partir da reunião de índios
Maués e Sapupés em 1796, e Paravianas e Uapixanas em 1798. Quando os índios
vieram vencidos do rio Branco e distribuídos por várias capitanias por medida de
punição, os Tupinambarana também estavam entre os punidos. Quanto ao lugar onde
outrora foi o paço da Câmara Municipal de Vila Bela, local onde Cordovil teria fixado
residência, atualmente funciona a Escola Estadual Araújo Filho.
Ao que parece Cordovil tinha um temperamento difícil, nervoso e violento, foi
protagonista de vários incidentes e hostilidades, isto contribuiu para levar o povoamento
à decadência com a fuga de índios, e causando um conflito com frei José das Chagas
que chegou à Tupinambarana posteriormente. Para Souza (1873, p. 185), Cordovil
tinha um,
Gênio excessivamente irascível e orgulhoso, não admittia
superioridade, pelo que teve de sustentar longa e porfiada luta com o
missionário Fr. José das Chagas, a quem por fim foi obrigado a ceder
o campo, pela impossibilidade de o sustentar, vendo-se abandonado
do público cujas sympathias e boas graças não soubera captar.
Possuio avultadas riquezas, que perdeo no jogo, vicio a que se
entregou em demasia, e não, como diz o sr. coronel Accioli, na
redução dos índios.
26
Frei José das Chagas, Prior do Convento do Carmo de Belém, chegou à Vila de
Tupinambarana em 1798, quando ocorreu a restituição do regime de missões através de
carta régia de Dom Marcos de Noronha e Brito, o Conde dos Arcos, Governador do
Grão – Pará e Rio Negro. Frei José construiu uma igreja em honra a Nossa Senhora do
Carmo, no local onde hoje está localizada a Praça Digital, antiga Praça Cristo Redentor,
que serviu para culto até 1895, quando foi transferida para uma nova igreja que ficou
dedicada a esta padroeira até o ano de 1955, quando passou a ser denominada Igreja
Matriz do Sagrado Coração de Jesus. O Motivo desta mudança deve-se a implantação
da Prelazia de Parintins que elevou a Igreja de Nossa Senhora do Carmo a condição de
Catedral, por isso, foi transferida para um novo templo construído na Avenida
Amazonas, centro da cidade. Quanto à primeira igreja, ela foi demolida em 1905 por
ordem do Superintendente, Capitão Sarmento, as outras duas, permanecem até os dias
de hoje. Frei José das Chagas foi também “o primeiro que, devassando as matas do rio
Maués – Açú, conseguiu chamar a si grande número de índios da tribo dos Maués, com
os quais aumentou a população da Vila Bela” (CERQUA, 1980, p. 34). Sobre frei José
das Chagas, Arthur Cezar Ferreira Reis (1967, p. 11), comenta que,
Virtuoso, bem um sucessor daquela brava falange de religiosos de sua
Ordem que, no Rio Negro, no Solimões, tinham evangelizado com
tanto sucesso para a coroa e para o Cristianismo de Roma, atirou-se
com alma a empresa. „Verdadeiro Las Casas e Anchieta da
Mundurucânia‟, escrevia mais tarde o cônego Bernardino de Souza,
„era o tipo do missionário católico, o amigo dedicado dos índios que
também lhe votavam essa afeição sincera, profunda e dedicada dos
filhos da Selva‟.
O Cônego André Fernandes de Souza, citado por Antônio Clementino Ribeiro
Bittencourt em Memórias do Município de Parintins (1924), faz uma breve descrição da
Vila Nova da Rainha, informa que ali se encontrava o posto de registros das
embarcações que atracavam na capitania. Ficava localizado na Serra de Parintins, local
estratégico escolhido após sua remoção de Serpa, atual Itacoatiara, por determinação da
Junta Governativa da Capitania de São José do Rio Negro em 1806. Vejamos:
27
Villa Nova da rainha está à margem austral do Amazonas, em uma
bella planície, que é missão até agora, em que está o quartel dos
commandantes do registro. O sítio não é só capaz de ser uma grande
Villa, senão uma cidade populosa pelo terreno alto e enxuto. Seus
portos, do mesmo modo, admittem a construção de um bello arsenal.
Sua população, a que se tem unido grande números de famílias
brancas, é de 1700 almas, que se occupam nos fabricos dos tabacos e
outros paltios, como cacoaes e cafezaes. A sua igreja, com a
invocação de Nossa Senhora do Carmo, com bons ornamentos,
necessita de reparos e d‟ella é missionário Frei José Alves das Chagas
(BITTENCOURT, 1924, p.16).
Em 1806, frei José das Chagas deixa Vila Nova da Rainha para trabalhar em
Canumã, onde fundou outra missão. Segundo Souza (1873, p. 83). “depois de uma vida
affanosa, toda dedicada ao serviço do próximo e à catechese dos índios, já adiantado em
annos e em estado de caducidade, falleceu na Villa de Borba, deixando n‟essa parte do
amazonas um nome, que por largos annos ali será repedido com a mais profunda
veneração e respeito”. José Pedro Cordovil, “morreu mendigo, coberto de andrajos, á
porta do hospital da caridade em Belém” (SOUZA, 1873, p.185).
A 28 de junho de 1832, a missão de Vila Nova da Rainha foi elevada à categoria
de Freguesia com a denominação de Tupinambarana. Com essa promoção eclesiástica,
passa a ser seu primeiro vigário, o Padre Antonio Augusto de Matos.
Vinte anos depois a freguesia de Tupinambarana foi elevada à categoria de Vila
e Cidade, com a denominação de Vila Bela da Imperatriz.
É nesta data que se
comemora oficialmente o aniversário da cidade. Para Bittencourt (1924, p.93), “foram
autores do projecto dessa lei os Deputados, Padre Torquato Antonio de Souza, Joaquim
José as Silva Meirelles e José Bernardo Michilles”. Afirma ainda que este último, na
Assembléia Provincial do Amazonas, fez pronunciamento na sessão de 13 de setembro
do mesmo ano com as seguintes considerações:
„havendo sido elevada à cathegoria de Villa a Freguezia de Villa Nova
da Rainha, pela lei n.º 146 da Provincia do Pará; e não tendo podido
gozar Ella do predicado que alei lhe garante por offerecer a mesma lei
a clausula de serem á custa de seus moradores edificadas casas para
Camara e Cadeia: Sendo conveniente entretanto, que aquella freguezia
apresente o melhoramento de que tanto precisa pela sua boa localidade
e mesmo por ser a primeira á entrada da Província, em cujo ponto têm
de tocar todas as embarcações vindas da Província do Pará, se offerece
28
o seguinte projecto, que faz desapparecer as dificuldades até agora
encontradas‟ (BITTENCOURT,1924, p.93).
Chamava a atenção para o fato de que pouco foi feito pela Província do Pará,
quando da elevação de Vila Nova da Rainha à categoria de Freguesia, ficando inclusive
a cargo dos moradores a construção dos prédios públicos.
Raros melhoramentos foram feitos durante o Império, pois em 1871, o chefe de
polícia, dizia que embora coberta de telha, a cadeia pública não oferecia segurança, “Em
Relatório de 16 de março de 1875, dirigido à Assembléia Legislativa Provincial, a
Presidência pede a reedificação da cadeia de Villa Bella, como as de outros logares”.
(BITTENCOURT,1924, p.198).
Somente em 1893, já na República, se deu inicio a construção, em pedra e tijolo,
do prédio de uma cadeia em Vila Bela da Imperatriz, sendo esta concluída em 1894, na
administração de Eduardo Ribeiro. Assim como a primeira igreja de Parintins; em 2004,
a cadeia que estava localizada na Avenida Amazonas, esquina com a Rua João Melo,
em frente à Catedral de Nossa Senhora do Carmo, foi demolida pela prefeitura, na
administração de Frank Garcia, sendo construído no lugar um prédio para acomodar
bares e lanchonetes.
Pela lei nº 499 de 30 de outubro de 1880, a partir de projeto do deputado Emilio
José Moreira, Vila Bela da Imperatriz foi elevada a Cidade com o atual nome de
Parintins. Segundo Bittencourt (1924, p. 97-98),
O autor justificou o projecto com as seguintes considerações:
„Attendendo ao desenvolvimento que nestes últimos annos tem tido
Villa Bella da Imperatriz, cabeça da importante Comarca de Parintins,
e considerando que essa florescente localidade tem em si elementos
para continuar a prosperar, tenho a satisfação de apresentar o seguinte
projecto‟.
Esse projecto, approvado em todas as discussões, foi sanccionado pelo
Presidente Dr. Satyro d‟Oliveira Dias.
No final do século XIX e inicio do século XX, Parintins vivia uma época de
muita prosperidade, com oportunidade de ganhos e trabalho. Para lá emigraram vários
judeus que se estabeleceram na cidade e no interior do município. A imigração de
judeus para a Amazônia se inscreve no âmbito dos conflitos sociais, políticos e
29
religiosos que vinham enfrentando com severas perseguições por parte da Espanha,
Portugal e posteriormente Marrocos desde o século XV. A notícia que se tinha da
Amazônia era de ser uma Nova Canaã. O futuro celeiro do mundo soava bem para
grande parte de um povo que naquele momento passava por necessidades e
perseguições.
Vivenciando o período áureo da borracha e não podendo concorrer com os
grandes comerciantes de Belém e Manaus, a primeira geração de judeus se estabelece
no interior do estado, onde dão início às atividades comerciais aviados por outros judeus
prósperos. Benchimol (2008), afirma que os judeus foram os primeiros regatões da
Amazônia, desafiando assim o monopólio dos comerciantes já estabelecidos na região.
Em Parintins, dominaram o comércio que era incipiente, formando algumas empresas
como o estabelecimento “Ordem e Progresso” de Moysés Cohen, no Paraná do Ramos,
a loja “Casa Sportiva” da firma Moysés S. Cohen & Cia, e “Assayag & Irmão”, com
empório de bebidas, tecidos, embarcações e regatão para o interior do estado. Por
desafiarem as oligarquias dominantes, eram mal vistos, sendo constantemente vítimas
de preconceitos. Segundo Morais (apud, BENCHIMOL, 2008, p. 86),
Veio depois o hebraico, menos atiradiço, é certo, no que dizia respeito
a rabo de saia, entanto mais sovina, mais usurário, devoto e fiel no
arrancar couro e cabelo do cristão que lhe caísse nas unhas. Além de
monopolizar o comércio em muitas localidades exemplificadas em
Gurupá e Parintins, donde somente o desalojavam as iníquas e
violentas reações coletivas, a tiro e a terçado: o israelita monopolizava
igualmente o comércio de regatões, vendendo, trocando, comprando, o
que aparecia na fímbria litorânea.
Benchimol (2008), afirma que na cidade havia um sentimento anti-semita
motivado pelo sermão do padre Paulo Raucci, o que culminou no movimento mata –
judeu. Houve então, atos de violências e perseguições no Paraná do Ramos, Massauari e
Arari, locais pertencentes à área de atuação do referido padre. Muitos judeus fugiram da
cidade refugiando-se em Amsterdam, Palmares e Belo Horizonte, locais do interior do
município.
De 1920 a 1950 a economia da Amazônia entra em crise, obrigando o povo
judeu a abandonarem o interior e migrarem para as grandes cidades como Belém e
Manaus. Assim começam a largar as vilas, povoados e pequenas cidades como Parintins
30
num movimento migratório que, segundo Benchimol (2008), constitui-se em um êxodo
para as capitais. Mas ainda encontramos evidências de sua passagem por Parintins como
o cemitério exclusivo de judeus com 65 sepulturas. Benchimol (2008, p.424-425)
assinala que,
A existência de cemitérios judeus e as sepulturas judaicas em
necrópoles comuns constituem o melhor testemunho histórico da
presença das comunidades hebraicas em toda a região amazônica.
Cada sepultura, na singeleza da lápide de mármore frio, com a
inscrição em hebraico e português, do nome, da data do nascimento e
morte do falecido e uma prece de paz a sua alma, representa o fim e o
destino de uma vida que passou pela terra e deixou muitas saudades,
recordações e lembranças de todos os seus queridos familiares.
Ainda na primeira metade do século XX tem inicio a imigração japonesa para o
estado do Amazonas. Para Kawada (1995), os japoneses trouxeram para o Brasil os
costumes da cultura e arte nipônica que hoje tem dezenas de milhares de seguidores.
Araújo (1995), em histórico da imigração japonesa no estado do Amazonas, afirma que
a colonização no estado tem seu início a partir dos contatos e iniciativa do governador
do Amazonas Efigênio Sales com a doação de Terras no município de Maués e
Parintins a partir de 1927.
Em Parintins, Sá (2010, p.38), nos diz que “a escolha do local decerto não foi
gratuita: pelos rios Amazonas e Paraná do Ramos (que lhes davam possibilidade de dois
portos) os produtos poderiam ser escoados para Manaus e ainda para Belém, as grandes
capitais próximas”. Aliado a isso, vale lembrar que as várzeas da Amazônia são férteis e
favoráveis á agricultura, principalmente as de ciclos curtos por conta das enchentes dos
rios, mas que, entretanto, também garantem retornos econômicos mais rápidos.
Devemos aos japoneses a introdução e o cultivo da juta no Brasil, que
impulsionou por muito tempo a economia do estado do Amazonas a partir de mudas
cultivadas por Ryota Oyama. Sá (2010), afirma que “em 1937, o senhor Ryota pôde
colher seis toneladas de fibra e o senhor Yoshimasa5, quatro toneladas. Tão boa era a
qualidade da fibra, que o comprador (a companhia Martins Jorge, no Pará) não
5
Yoshimasa Nakauchi segundo Araújo (1995), também realizou experiências com sementes de jutas.
Entretanto, sua plantação foi destruída pelo gado restando somente a plantação de Oyama que gerou as
sementes para a primeira safra.
31
acreditava que fosse produto do Amazonas, mas trazido da Índia”. Além do plantio da
juta, os japoneses também trouxeram novas técnicas agrícolas que possibilitaram um
melhor cultivo de outras espécies de planta como o guaraná que ainda hoje tem grande
importância econômica para a região.
Saunier (2003), afirma que a imigração japonesa no município de Parintins
iniciou em 1929 com a chegada de Tsukasa Uetsuka que tinha a finalidade de instalar
no lugar denominado Vila Batista, os Koutakusei, assim chamados os alunos formados
na Escola Superior de Colonização do Japão, fundado por Uetsuka. Foi ele também que
em 1931 fundou o Instituto Amazônia com permissão do presidente Getúlio Vargas
para a colonização no estado do Amazonas. Neste mesmo ano chegou à Vila Batista a
primeira turma de Koutakusei recém formados, no qual a partir daí a vila passa a
chamar-se Vila Amazônia, após ser comprado do senhor Francisco Barreto Baptista por
Uetsuka no ano de 1931. Assim, a imigração japonesa no estado do Amazonas antes da
Segunda Guerra Mundial se deu em duas etapas, a saber:
1.ª etapa – a partir de 1929, considerada a primeira imigração, voltada
para o município de Maués, principalmente para o plantio do guaraná.
Contou com 49 pessoas.
2.ª etapa – a partir de 1931 – a segunda imigração, com a chegada dos
primeiros koutakuseis, voltou-se para a Vila Amazônia, no município
de Parintins. Firmou-se por sete anos, com a participação direta de
249 imigrantes. (SÁ, 2010, p.30).
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o Brasil declara guerra ao Eixo,
formado pela Alemanha, Itália e Japão, como conseqüência, o projeto de colonização de
Vila Amazônia foi desativado pelo governo brasileiro, que em setembro de 1942
desapropriou a Companhia Industrial Amazonense, fundada por Uetsuka alguns anos
antes, em 1936, com o intuito de gerenciar e comercializar toda a produção japonesa,
principalmente da juta. Além disso, Vila Amazônia foi considerada espólio de guerra e
vendida em leilão em 1946 a empresa JG Araújo, da cidade de Manaus. Quanto aos
japoneses que ali residiam, foram levados forçadamente a Tomé – Açú no Pará, e lá
permaneceram até o final da guerra.
Em 26 de abril de 1955 chegaram a Parintins três missionários do PIME,
Pontifício Instituto das Missões Exterior: padre Arcângelo Cerqua, superior do PIME no
32
Amazonas, padre João Airaghi e padre Jorge Frezzini. Tinham por objetivos colherem
dados para a criação de uma nova Prelazia que seria confiada ao Instituto, a qual
compreenderia os municípios de Parintins, Maués e Barreirinha.
O PIME, fundado em Milão, em 1850, contava no final da década de 1940 com
um grande número de missionários sem área de atuação, na medida em que não
puderam sair em missão durante a II Guerra Mundial. O Cardeal brasileiro Dom
Carmelo Mota6 em visita a Milão na Itália pediu o envio de alguns deles para o Brasil.
Na Amazônia iniciaram sua missão pelo Amapá em 1948, no mesmo ano vieram
para o Amazonas e assumiram a paróquia de Nossa Senhora de Nazaré na capital,
Maués e Manicoré no interior. Ao chegar no Amazonas se ocuparam da criação de uma
Prelazia, ficando escolhido o Município de Parintins como sede, por sugestão do padre
Paulino Lamaier.
Em 24 de junho de 1955 o L‟Osservatore
Romano, publicação oficial do
Vaticano, noticiava a criação da Prelazia de Parintins. E com a Bula Pontifícia Ceu
Boni Patris Familias, (como bom pai de família), a 12 de Junho do mesmo ano, criavase a Prelazia de Parintins, abrangendo os municípios de Maués e Barreirinha, sendo a
Igreja de Nossa Senhora do Carmo elevada à categoria de Catedral. Em 14 de maio de
1964, padre Arcângelo Cerqua tomava posse canônica como o Primeiro Bispo da
Prelazia de Parintins.
Com a instalação da Prelazia de Parintins, a igreja inicia um conjunto de ações
sociais estratégicas: no campo da educação finaliza a edificação do Colégio Nossa
Senhora do Carmo, implanta da Escola Agrícola São Pedro, no rio Andirá na aldeia
Sateré – Mawé, além da construção de outras escolas e a implantação do MEB,
Movimento de Educação de Base; a implantação da Rádio e TV Alvorada de Parintins e
o Jornal Horizonte, posteriormente relançado com o nome de Novo Horizonte, na área
das comunicações; nas artes a implantação da escolinha de artes dirigida por Ir. Miguel
de Pascale7; no campo do entretenimento e lazer, a construção do Cine – Teatro da Paz
6
Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota, vigésimo quarto bispo e segundo arcebispo do maranhão.
Foi também o décimo quinto bispo de São Paulo e posteriormente seu terceiro arcebispo e primeiro
cardeal. Participou de dois conclaves: do Papa João XXIII e do Papa Paulo VI. Ajudou a fundar e foi o
primeiro presidente da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB.
7
Miguel de Pascale missionário do PIME chegou ao Brasil em 1972 para exercer funções administrativas
em Manaus. Transferido para Parintins em 1976 fundou no mesmo ano uma escolinha de artes nos fundos
da residência episcopal. De sua escolinha saíram muito artistas que mais tarde se tornaram os grandes
responsáveis pelo festival folclórico de Parintins. É dele as pinturas sacras que ornamentam a Catedral de
Nossa Senhora do Carmo na mesma cidade. O Boi-Bumbá Caprichoso o homenageou em 1997
emprestando seu nome ao projeto social denominado „Escolinha de Artes Irmão Miguel de Pasquale‟. Por
33
e a realização de um campeonato de futebol organizado pela Federação Mariana; no
trabalho, a implantação da Olaria Padre Colombo; e na saúde a construção do Hospital
Padre Colombo.
O Bispo de Parintins, Dom Arcângelo Cerqua, influenciava também nas
questões políticas locais, chegando a sugerir candidatos a prefeitos. Isto ensejou vários
descontentamentos e alguns boatos envolvendo a igreja, o PIME e o seu nome. O
quadro de informações abaixo detalha bem essa questão, a saber:
Dia 05 de julho (1968) pela Rádio Alvorada desmente-se um boato
tolo, que infelizmente estava recebendo crédito entre o povo simples:
no dia da festa os padres lançariam uma bomba para matar todo
mundo.
Falaram na rádio o Prefeito, o Delegado de Polícia Mozart de Freitas
Vieira etc. O boato partiu de políticos interessados a denegrir a
imagem da igreja (CERQUA, 1980, p. 110).
Porém, no final de 1977 circulou aquela que seria a última da série de
cartas anônimas contra o bispo e também a mais terrível.
Nela o autor ou autores acusavam Dom Arcângelo de usar barba
porque teria sido ferido no rosto por uma mulher em Macapá com
quem vivia amasiado desde sua chegada ao Brasil.
Queriam colocá-lo numa situação ridícula. Se raspasse a barba estaria
sujeitando-se aos caluniadores. Se não raspassem permanecia a
suspeita.
A indignação foi geral. A Câmara Municipal presidida por Raimundo
Muniz Rodrigues apresentou votos de solidariedade à prelazia a ao
Bispo, os vereadores cobraram da autoridade policial uma detalhada
investigação a respeito.
O Colégio Nossa Senhora do Carmo encabeçou um movimento de
desagravo a Dom Arcângelo logo apoiado pelas autoridades,
movimentos e pastorais. De todas as partes chegaram telegramas
condenando a aleivosia (SOUZA, 2003, p.177).
Podemos perceber que a Igreja em Parintins exerce uma função social bem
destacada, influencia inclusive a dinâmica da política representativa. A ideia de
evangelização associada a práticas que ocupam espaços de carências sociais da
população, fez com a igreja se transformasse em uma instituição forte, reconhecida e
aprovada por grande parte da população.
motivo de saúde Irmão Miguel deixou Parintins no primeiro semestre de 2009 para morar na casa de
repouso para missionários do PIME em Lecco na Itália. Morreu em 03 de setembro de 2010 aos 93 anos.
34
1.2 As práticas de curas indígenas
Nos primeiros contatos no século XVI, a Amazônia surpreendera os navegantes
com a imensa população de índios, muitos deles vivendo em povoados extensos
comumente chamados de províncias, pelos cronistas. As notícias de grandes aldeias nas
margens dos rios, descritas pelos viajantes dão conta da existência de sociedades
estratificadas, com produção de excedentes e comércio intertribal.
Trabalhos, como os de Neves (2006) e Prous (2007), apontam para o fato de que
a região amazônica nunca foi um grande vazio demográfico, inapropriada para o
desenvolvimento de grandes concentrações humanas. Cronistas descreveram o médio
Amazonas, no qual se inclui a ilha de Tupinambarana onde hoje se encontra o
município de Parintins, como densamente povoado8. Até o século XVI não há nenhum
registro dos cronistas sobre os Tupinambá, eles aparecem nos relatos a partir do século
XVII povoando a ilha situada entre os rios Madeira e Tapajós. Porro (1992, p. 186-187)
nos diz que,
De acordo com Acuña, a ilha de Tupinambarana era „toda povoada
pelos valentes Tupinambá, gente que das conquistas do Brasil, em
terras de Pernambuco, saíram há muitos anos, fugindo do rigor com
que os portugueses os iam subjugando [...] despovoando ao mesmo
tempo oitenta e quatro aldeias‟.
A partir do nordeste brasileiro eles teriam então atravessado as
chapadas da Amazônia meridional até chegarem, pelo menos alguns
deles, aos primeiros estabelecimentos espanhóis na Bolívia. Daí
teriam descido o madeira para se fixarem finalmente na ilha que
levaria o seu nome.
Cerqua (1980) nos informa que, com a chegada dos Tupinambá advindos no
movimento migratório dos tupi, que se iniciou a partir de 1600, a ilha de
Tupinambarana foi ocupada e as tribos que já habitavam a região foram submetidas ao
domínio Tupinambá ou exterminadas por eles. Porro (1992) considera que os
movimentos messiânicos levaram muitos Tupi do nordeste, em sucessivas levas, para a
8
Ver História dos Índios no Brasil organizado por Manuela Carneiro Cunha, publicado pela Companhia
das Letras em 1992.
35
Amazônia. Para Vainfas (1995), a saída dos índios do litoral para o interior se inscreve
na ideia da busca das Terras sem Males muito difundida pelos caraíbas. Bittencourt
(1924), afirma que os Tupinambá se fixaram na ilha antes denominada de Maracá, a
partir de seu retorno do Peru devido a perseguições por lá sofridas.
Dentre os Tupi, havia também segundo, Cerqua (1980), os Parintintin que deram
origem primeiramente ao nome da serra e posteriormente à cidade de Parintins. Pela sua
ferocidade e inimizade, esses índios acabaram sendo expulsos retirando-se para o rio
Madeira. O Cônego Francisco Bernardino de Souza (1873) afirma que,
A montanha de Parintins, diz Baena, assumiu este nome dos sylvicolas
assim denominados, que a habitaram. Altos arvoredos a enramaram
até a sua lomba, que é uma planura, onde dizem ter existido uma aldêa
dos Parintintins, fundada pelos jesuítas e que os mesmos aldeanos se
revoltaram contra os que lhe ministravam a doutrina, queimaram as
casas, esboroaram a igreja, enterraram os sinos e transfugiram para as
brenhas. Ainda dura nas circunvizinhanças a tradição oral, de que em
todas as noites de natal se ouvem os sinos soterrados. (SOUZA, 1873,
p.292).
Também Saunier (2003), diz que os índios Parintintin, inimigos dos Mundurucu,
que os chamavam de Pariring-ring, viviam na região dos rios Tapajós, Madeira e
Maués. Entretanto, segundo este autor, há relatos de sua passagem pela serra de
Parintins, e que de lá regressaram para seu lugar de origem.
De acordo com Bittencourt (1924) os índios Sapupé e Maués também residiram
no lugar onde hoje se encontra a cidade de Parintins. Uggé (1994), afirma que os Maués
são os atuais Sateré-Mawé, também conhecidos no passado como Andirá e Maraguá e
que atualmente vivem na área cultural Tapajós-Madeira. Outrora eram também
identificados como Maooz, Mabué, Jaquezes, Manguases, Mahués, Mauris, Mawé,
Maragua e Maraguazes.
Inevitavelmente, após o contato com os primeiros europeus, inicia-se um
processo de despovoamento indígena acirrado pelas guerras, mais principalmente pelas
epidemias provocadas por doenças trazidas do velho mundo que acometeram os
indígenas de forma fatal, devido a sua baixa imunidade, decorrente do longo
isolamento.
36
Os descimentos e aprisionamentos indígenas, realizados por missionários e
agentes do governo, concentravam inúmeras tribos nas missões, favorecendo dessa
maneira as epidemias e impedindo sua auto-reprodução. As missões eram lugares onde
ocorria a destribalização pela concentração de várias etnias no mesmo espaço. Era uma
espécie de “cadeia” ou prisão que crescia com chegada de novos índios, que descidos ou
resgatados, substituíam os índios já dizimados, vítimas de uma política genocida que
promoveu o despovoamento das várzeas e florestas. Muitos desses lugares deram
origem a vilas e cidades, como a Vila Bela que surgiu a partir da Missão de
Tupinambarana. As epidemias, segundo Saunier (2003, p.209), se expandiram dentro
das missões, a saber:
Na terceira década do século XVIII, as epidemias assolaram a aldeia
dos Tupinambaranas, tanto que, em 1737, os indígenas foram
obrigados a se transferir para outras povoações.
Em 1749, houve a primeira incursão de sarampo na Amazônia,
acometendo, outrossim, a aldeia dos Tupinambaranas, reduzindo-os
vultosamente.
Mesmo com a salubridade do clima de Vila Bela da Imperatriz, as
calamidades difundiram-se.
Loureiro (2007) afirma que em 1854, já no II Reinado, o médico militar Antonio
José Moreira, em relatório a Ferreira Pena, relacionava várias doenças como febres
intermitentes simples e biliosas, disenterias, catarros brônquicos. Essas doenças são
verificadas em várias localidades dentre as quais a Vila Bela. O cólera-morbo em 1855,
também faz suas vítimas nessa localidade, reaparecendo no ano seguinte. Casos de febre
amarela também são registrados ali em 1856. A varíola também vitimou em 1857, e em
1871 a febre amarela reaparece, e novamente a varíola fez suas vítimas em 1875
naquele local. No entanto, para o presidente da província, esses fatos foram inventados
para o benefício de alguns médicos. É o que afirma loureiro (2007, p.156):
Tentaram, segundo o presidente, inventar uma epidemia de febres no
rio Negro, que se auto-extinguiu, e espalharam boatos de cólera em
Parintins, quando se tratavam apenas de moléstias intestinais. Contudo
houve febre, no Juruá, e as vacinas paraenses mostraram-se ineficazes
contra a varíola.
37
Uma grande perda foi a morte, a 2 de março de 1877, no Rio de
Janeiro, do doutor Antônio José Moreira que por décadas, fora o único
médico existente na Província.
Após séculos de dominação e ocupação da Amazônia, as aldeias e tribos
descritas pelos cronistas nas margens do rio Amazonas desapareceram. Os índios foram
dizimados ou destribalizados, restando as descrições etnográficas e impressões dos
cronistas que são as informações que temos hoje. Diante das calamidades de saúde que
foram acometidas as tribos indígenas e os primeiros povoamentos, os pajés, detentores
de um saber de cura, tiveram grande importância e procura numa sociedade onde ter um
médico era uma raridade.
Essas calamidades não são as únicas justificativas, pois, vale lembrar que existia
uma confiança no poder místico de cura do pajé, herança dos antigos Caraíbas
Tupinambá que para Vainfas (1995, p.13), eram “homens considerados especiais, que
tinham o poder de conversar como os mortos, os espíritos dos ancestrais”, que faziam
pregações a respeito das terras sem males em seus rituais religiosos, que desconcertaram
os portugueses que erroneamente chamou essa manifestação de “santidade”, pois
“muitos disseram que os índios não pronunciavam as letras f, l e r porque não possuíam
fé, lei ou rei, e outros, a exemplo de Nóbrega, disseram que o gentio não possuía
nenhum conhecimento de deus, nem ídolos” (VAINFAS, 1995, p.13-14), Com o
conhecimento das santidades, mudaram de opinião.
Essa religiosidade e saber resistente ao domínio e à exterminação dos povos
indígenas ganham novos elementos, a partir da introdução de outras tendências
religiosas, fazendo surgir assim a pajelança cabocla9. Essa prática se integra em um
contexto de relações sincréticas numa relação em que pajés e curadores podem ser
também um cristão católico devoto e ao mesmo tempo podem presidir sessões
xamanísticas. De acordo com França (2002, p.94),
O Estado do Amazonas, no norte do Brasil, é muito rico no processo
de cura simbólica, especialmente devido à sua tradição indígena. A
dificuldade de recursos médicos nas cidades distantes do interior faz
com que as práticas naturais de cura simbólica sobrevivam com a
força de seus representantes, apesar do gradativo avanço dos
medicamentos industrializados e das práticas médicas científicas.
9
Ver também p. 103.
38
A religiosidade tupi ainda hoje pode ser percebida nas tribos atuais que vivem na
região de Parintins. Uggé (1994, p.11), ao se referir aos atuais índios Sateré-Mawé,
afirma “que sua expressão religiosa está constituída a partir de um sincretismo que tem
matrizes no animismo primitivo, espiritismo, afro-brasileiro e na fé cristã”. Há na
primeira o elemento da cosmovisão religiosa e ética tribal. Existem hoje vários
procedimentos de cunho espiritual, de cura ou pajelança, em comunidades não
indígenas que encontram fundamentos nos antigos pajés das tribos que outrora
habitaram a região.
Essa atividade de costume não convencional para o colonizador conseguiu
sobreviver na marginalidade, propugnada pelo cristianismo que associava tais práticas
de cura a rituais satânicos. Tomando por base a premissa satânica, o conquistador
cristão reprimia as práticas de cura. A igreja colonial de forma pejorativa tentou
desvincular essas práticas do contexto indígena, tentando privar os índios de suas
crenças. A descrição feita da figura do pajé e da pajelança, ainda que representada
muitas vezes de maneira preconceituosa, nos mostra a contribuição desse saber
tradicional junto à necessidade de suas tribos para manter o equilíbrio da etnia com a
natureza e com o aspecto espiritual, permitindo-nos perceber seus ritos. Ao descrever a
relação dos índios Parintintin com os seus pajés, Gondim (1925, p.16) diz que,
Supersticiosos como qualquer selvagem, elles acreditam que, em
certas epochas, o pagé da tribu tem o dom de curar doenças, repellir o
gênio do mal, abrandar a ira dos elementos e fazer milagres em
qualquer aventura.
E‟ assim que, quando adoece um índio menor, o pae tem o cuidado de
apresental-o ao pagé, com o fim de soprar na creança, livrando-a do
espírito maligno.
Nos momentos de ameaça de borrasca, quando estão em serviço,
recorrem também ao poder mysterioso do pagé, pedindo-lhe para
dissipar, com um sopro, as densas nuvens que fluctuam no espaço.
Mas, não é só. Ao expirar da tarde, sempre que se encontram
internados nas brenhas, advertem o Page a soprar para as bandas do
poente, acreditando que o sopro accenderá o globo do sol que
descamba, e lhes dará a luz para illuminar o caminho que se prolonga
até a maloca.
39
Podemos perceber que a crença nos antigos pajés Parintintin se assemelha em
muitos aspectos à fé dos benzidos nas benzedeiras, pois os povos tradicionais da
Amazônia herdaram hábitos e modos de interagir em seus rituais a partir da visão do
índio que conseguiu manter parte de seus costumes na sociedade amazônica que ele
ajudou a produzir. Essa certeza da cura dos males, em que primeiro se busca a via
tradicional, revela a confiança que se tem por parte dos que a procuram nas benzedeiras,
como se tinham com os antigos pajés Parintintin. O saber tradicional assim como
acontece com os Parintintin se completa na relação que existe entre a benzedeira e a
natureza e que vai além da interação com as plantas medicinais e seu uso nos rituais.
A pajelança constitui-se segundo Uggé (1994), na arte de interpretação dos fatos
reais, fenômenos e sonhos, e a comunicação com os espíritos, envolvendo
procedimentos para proteger o lugar e as pessoas. A função do pajé é bem ampla, inclui
a cura, a comunicação com os elementos da natureza e a descoberta das causas das
doenças e feitiçarias que também podem ser usadas durante as cerimônias para o
malefício de outrem.
Para os Sateré-Mawé, o feitiço é a causa e a resposta para as doenças e males
inexplicáveis, podendo ser o feiticeiro homem ou mulher que, consciente ou
inconsciente dos infortúnios que causa através dos feitiços, é o responsável por
prejuízos materiais, doenças e mortes, exigindo assim uma grande atuação do pajé para
que o feitiço possa ser desfeito. O nível de aceitação e crédito dos pajés pela
comunidade está relacionado aos resultados positivos obtidos, assim, muitos pajés
podem obter uma hegemonia na tribo. Segundo Uggé (1994, p.19-20),
O pajé é o interprete e decodificador dos fenômenos que, na vida
tribal, são relacionados com doenças físicas e morte dos indivíduos do
grupo; fenômenos naturais – fertilidade ou improdutividade da terra,
secas, enchentes, etc. É médium, pois explica sonhos, celebra rituais
propiciatórios dos espíritos bons e maus. É, portanto, o intermediário
do mundo extra-sensorial.
Nos rituais de pajelança dos Sateré-Mawé, segundo Uggé (1994), são usados
penas de araras e o maracá, composto de um pequeno bastão inserido em um fruto
denominado amuncuré, que é agitado durante as cerimônias. Yamã (2004) menciona o
uso do pariká, erva alucinógena extraída de uma planta do mesmo nome que
40
transformada em cigarro, o tawary, é usada para atingir um estado de transe e chegar ao
mundo das entidades protetoras. Esses assessórios, típicos dos tupis, e presentes nas
representações dos Sateré-Mawé comprovam uma ligação direta dessa tribo com os
povos tupi que habitaram a região. Há igualmente o chá de Marary, também chamado
de Ka‟apy, para promover o encontro com outras entidades. Para Menéndez (1992), é
provável que tenha havido uma tupinização dos Mawé, através das relações que os
tupinambá mantinham com outros grupos tribais. Para Yamã (2004), são eles,
verdadeiramente, de origem tupi.
Ao descrever a pajelança este autor faz uma distinção em três classes de pajés
que, combinando magia e conhecimento, conseguem através dos espíritos revelarem os
segredos das doenças e dos remédios. Para ele a pajelança é a forma estruturada da
prática de cura da Urutópiãg, a religião tradicional dos índios. Aqui, os pajés, pessoas
capacitadas espiritualmente, são usados pelas entidades para suas práticas e
manifestações. De acordo com os estudos desse autor, os pajés podem ser classificados
em:
Payé (pajés) – são os sacerdotes „oficiais‟ da Urutópiãg, mediadores
entre os sobrenaturais e os homens, os médicos da selva, os que
herdaram o espírito curador de Anhyã-muasawyp, a primeira mulher
que existiu no mundo, moça bondosa, conhecedora de todos os
remédios e rituais de pajelanças, que depois de morrer, seu espírito
retornou e passou a encarnar na sabedoria dos curandeiros. Ela é a
mãe espiritual de todos os pajés.
Payé’poxy (feiticeiros maus), que como o próprio nome diz são
aqueles que usam a pajelança para praticar a maldade, herdaram os
seus poderes de magia do antigo trio de peixes feiticeiros o Jejú, o seu
irmão Matrinxã e sua esposa Traíra, que formam o grupo chamado
Murikarywá, que viveram no começo do mundo – e são a origem da
feitiçaria, e os pais de todos os feiticeiros maus.
E, por último, o médico caseiro ou payé’rãna – aquelas pessoas que
tem por natureza uma identificação maior com a pajelança, mas não a
praticam espiritualmente, somente usam seus conhecimentos para a
medicina tradicional comum, fabricando remédios caseiros mediante
as ervas e „puxação‟, denominação regional de massagem na parte
cansada ou dolorida. Uma técnica de cura que consiste em recolocar o
osso deslocado no lugar.
Os payé‟rãna podem ser homens ou mulheres, e são espíritos
acessíveis ao chamado e a manifestação das entidades, seu trabalho é
igual ao do primeiro estágio de pajé, e se torna um, se assim quiser,
bastando pedir orientação dos espíritos e do curandeiro que o espírito
recomendar (YAMÃ, 2004, p. 41-42).
41
Na pajelança, ritual indígena praticado inicialmente por esses pajés, podemos
perceber a relação de religiosidade presente nos rituais de cura que, combinadas com os
conhecimentos da medicina tradicional indígena, busca solucionar as enfermidades mais
graves. Yamã (2004), fala na cura da alma e das doenças pelos espíritos, isto exige um
encontro com o divino, pois através de ritos e procedimentos, se conhece não somente a
causa, mas também a cura dos males. Há ainda casos específicos de pajelança em que a
cura só pode ser adquirida por vias mágicas, como a panemice10 (azar), e o encosto de
espíritos ruins. Ao descrever a pajelança indígena dos Sateré-Mawé em um ritual de
cura, Yamã (2004, pg. 46) narra que,
No inicio da cura, o pajé acende seu cigarro tawary, extraído do
vegetal do mesmo nome. E aspira-o fortemente inúmeras vezes
soprando a fumaça sobre o corpo do doente.
Terminada essa primeira fase da operação de cura, o pajé, auxiliado
por um ajudante que pode ser um aprendiz, começa a entoar os cantos
sagrados em exaltação ao Espírito protetor da pessoa, o ajudante, por
sua vez, agita o seu maraká, ou marãgká em Sateré, com toda força,
no ritmo da música, e dança ao redor da pessoa por muitas vezes.
Então o pajé começa a sua reza, pedindo diretamente que o espírito se
manifeste e cure o doente. Essa cura pode vir na maioria das vezes por
meio da fumaça soprada sobre o doente. É o ponto mágico da sessão.
O ritual está completo. O pajé e o seu paciente sentem bem a presença
do espírito benfeitor e seu poder é horrendo, sua presença expulsa o
demônio ou sara a doença mais difícil para a medicina caseira.
Existe ainda outro procedimento de caráter espiritual praticado pelos pajés
denominado de benzedura, no qual o ritual é voltado para afastar o mal que ronda a
pessoa, restabelecendo o bem-estar do espírito. Este mal que não é uma doença em si,
pode ser, no entanto, responsável por sucessíveis doenças adquiridas a partir da inveja
ou ódio de outrem. As pessoas que estiverem acometidas por “quebranto”, a mais
temida doença que pode ocorrer, em que as crianças são as mais propensas vítimas, só
ficarão curadas quando benzidas exclusivamente por um pajé, em um ritual de
restabelecimento espiritual. Para Yamã (2004, pg. 47),
10
Verificar também p. 105.
42
A „benzedura‟ também serve para proteger o corpo de qualquer mal
ou doença física, previne qualquer dor e anula venenos de animais,
também os afastam da pessoa „benzida‟.
Neste ritual, o pajé assim como a cura espiritual, usa o cigarro de
palha tawary, mas ao invés de entoar cantos sagrados, apenas reza, e o
faz, não para o Espírito protetor do doente, mas ao seu próprio
espírito, para que lhe guie e lhe ajude a fazer a cura certa. Sua sessão,
dependendo da forma e da serenidade, muitas vezes não é permitida
ser vista por outros, assim fica um mistério no ar que nenhum pajé faz
questão de mostrar pois é altamente confidencial.
Outra forma de cura exercida pela pajelança é aquela feita através das ervas e
técnicas que não se configura como ritual espiritual. É o que Yamã (2004, p.48),
denomina “medicina caseira”, sendo praticada apenas para os casos de enfermidades
mais simples de se tratar. Os payé‟ranas, curandeiros ou pegadores, como são
conhecidos regionalmente, sempre dispõem de um remédio por eles preparados para
males como: febres, dores no corpo, desmentiduras e dores de cabeça. Entretanto,
juntamente com os Payés e os Payé‟poxys, os payé‟ranas, são também responsáveis
pela harmonia espiritual e social dos Sateré-Mawé. Ao se referir a atuação dos
payé‟ranas na tribo perante a enfermidade que podem tratar, Yamã (2004, p.48) afirma
que,
A cura não é por meio de rituais, e sim por „consultas‟ ao curandeiro
ou pegador. Os remédios obtidos na sua própria casa não são
vendidos, mas dados, e algumas vezes trocados por alimentos, pois o
espírito fraterno em uma comunidade indígena é muito forte, na base
de favores e amizades. Nessa pajelança, quando se aplica a cura,
segue-se as beberagens, os banhos e a defumação. O tratamento obriga
a um período de resguardo, em que se evita o consumo de
determinados alimentos, banhos frios e o „sereno‟.
É na pajelança, tanto caseira quanto espiritual, que os índios Sateré-Mawé
buscam a cura e a resposta do que acontece com os homens. Yamã (2004), fala que é
nela também que ocorre a vinculação da medicina indígena com a magia da Urutópiãg.
Assim como na pajelança em que os índios encontram ajuda para o tratamento das
doenças físicas e emotivas, e ao praticarem tais atos, conservam os costumes tribais, e
mantém o respeito e confiança nas tradições em favor da sobrevivência espiritual e
animista do grupo; na relação de benzição também ocorre fato semelhante, pois na
43
interação entre benzedeira e benzido em busca da cura, a tradição, a crença e a
preservação dos costumes ainda se sustentam mesmo em face avanço da medicina
institucional.
1.3 A atualidade da cura popular em Parintins
Por muito tempo as mulheres foram submetidas ao silêncio provocado pela
invisibilidade de suas ações e do importante papel que elas exercem na história da
humanidade. Eram lembradas apenas quando se falava em família, afazeres domésticos
e a casa. O papel secundário da mulher na sociedade é legada a ela por uma matriz
patriarcalista que legitima a ordem social de submissão, impondo o domínio do homem
como natural e divino. Afinal Deus pertence ao gênero masculino e toda a criação se
deve a ele. A mulher era vista apenas como um depositário da vida; afinal, Eva foi
extraída de Adão contrariando, assim, o sentido da concepção. Ao falar da desigualdade
entre os sexos nas religiões monoteístas, Perrot (2008, p.83-840) diz que,
As grandes religiões monoteístas fizeram da diferença dos sexos e da
desigualdade de valor entre eles um de seus fundamentos. A
hierarquia do masculino e do feminino lhes parece da ordem de uma
natureza criada por Deus. Isso é verdade para os grandes livros
fundadores – a bíblia, o Corão – e, mais ainda, para as interpretações
que são trazidas a esse respeito, sujeitas a controvérsias e a revisões.
A figura da mulher passa a ter uma analogia negativa, ela precisa ser
disciplinada e estar submissa ao homem para que não perturbe a ordem divina
estabelecida. Pois foi por uma transgressão que Eva, a primeira mulher11 caiu na
armadilha da serpente, induziu Adão ao erro, e como castigo toda a humanidade foi
excluída do paraíso.
11
Lilith teria sido segundo uma tradição hebraica a primeira mulher, e foi criada da mesma forma que
Adão. Porém ela recusou-se a ser obediente a Adão e fugiu do paraíso. Deus então enviou anjos para
buscá-la, mas Lilith além de recusar-se a voltar ainda se tornou esposa do demônio. Por conta desse
episódio Deus fez Eva, uma nova mulher de uma das costelas de Adão para que ela viesse a ser submissa
a ele. A respeito do mito fundador recomendamos a leitura do artigo de Séverine Fargette. Eva, Lilith,
Pandora: O mal da sedução (História Viva, 2006).
44
Se por uma mulher todos sofreram com o castigo divino, segundo o cristianismo
por Maria, a nova Eva, houve a redenção, fazendo surgir espaços para a inserção da
mulher na Igreja. E assim “deixam escapatórias para as mulheres pecadoras: a prece, o
convento das virgens consagradas. É o prestígio crescente da Virgem Maria, antídoto de
Eva”, Perrot (2008 p.84). Mesmo com a definição da Igreja sobre a exclusividade
masculina no sacerdócio, e apregoando a submissão como virtude, a mulher encontrou
aberturas para a sua inserção dentro do poder masculino.
O conhecimento de ervas e plantas medicinais fez das mulheres medievais
entendedoras dos segredos da natureza. Este saber antes visto com afeição ganhou uma
conotação negativa no momento em que, ao curar pelas plantas, a mulher também
poderia matar através delas. Além disso, o demônio se utilizava dessas pessoas para
realizar seus males numa relação de mútua cumplicidade. “os sinais de identificação das
bruxas colocavam qualquer pessoa sobre suspeita, principalmente as mulheres ligadas a
práticas de curas populares, como as benzedeiras, parteiras e curandeiras, ou seja,
aquelas que detinham seu saber próprio que era transmitido de geração a geração”
(FARINHA, 2009, p.344). Em uma análise sobre as bruxas Perrot (2008, p. 90), elucida
que na visão do Santo Ofício,
Elas têm contato com o diabo. O diabo cuja existência foi estabelecida
e cuja teologia foi desenvolvida pelo concílio de Latrão. A feiticeira é
filha e irmã do diabo. Ela é o diabo, seu olhar mata: ela tem mauolhado. Tem pretensão ao saber. Desafia todos os poderes: o dos
sacerdotes, dos soberanos, dos homens, da razão.
A solução é uma só: extirpar o mal, destruí-las, queimá-las.
Embora a caça às bruxas tenha cessado, a normatização da condição feminina
ainda vigorou por muito tempo. Os valores da família patriarcal foram transmitidos
pelas mulheres às suas filhas que também reproduziam essa condição, pois a boa esposa
era aquela que cuidava do lar e estava submissa ao marido. O saber feminino e sua
relação com a natureza caiu no ostracismo ou ficou na marginalidade do conhecimento
científico e erudito que não raro também o assimilou.
O estado institucionalizou o conhecimento médico, sendo o único legitimador
dessa prática, cerceando outros saberes ao garantir o tratamento de saúde pela via
institucionalizada. Mesmo assim, ainda persistem no município de Parintins as práticas
45
de curas não oficiais, as quais segundo levantamento feito por Araújo (2008), podem ser
classificadas em: Parteiras12, Erveiros e erveiras13, curadores e benzedeiras14, pegadores
de ossos ou consertadores de desmintiduras15, costurar rasgaduras16, Sacacas17. Esses
profissionais atuam paralelamente ao sistema oficial da medicina institucionalizada,
contribuindo para a promoção da saúde e bem-estar dos que lhes procuram.
Esta classificação não impede que haja uma interação entre esses saberes. São
muito comuns os casos em que parteiras benzerem quebrantos18, “costuram” rasgaduras,
“consertam” desmintiduras e preparam fórmulas naturais à base de ervas. Esses
terapeutas populares são vistos e reconhecidos na sociedade pela atividade que mais
atuam.
Araújo (2008) identificou 58 terapeutas populares no município de Parintins,
dentre os quais 50 são mulheres, e destas, 20 são consideradas benzedeiras, embora
algumas delas atuem também em outras especialidades. As outras estão distribuídas em
parteiras, erveiras, pegadoras de ossos, consertadoras de desmintiduras e costureiras de
rasgaduras. Dos homens identificados, cinco também são considerados curadores e os
outros três têm atuação nas outras especialidades, menos nos trabalhos que envolvem
partos.
Em entrevista Fátima Guedes (58 anos), educadora popular que integra o
Movimento Articulação Parintins Cidadã, reafirma a grande atuação feminina neste
campo assegurando que “o número maior é de mulheres, embora haja homens também,
o que mais temos são mulheres trabalhando como cuidadoras da saúde”
(entrevista/2010). E justifica afirmando que,
Como se fosse assim, até uma marca indelével de toda mulher esse
cuidado, esse zelo pelo outro, pela terra, e se a gente retomar um
12
Mulheres que realizam partos através de uma determinação e dom divino.
Atuam no tratamento de doenças com o uso de plantas medicinais, sem a associação de rituais místicos
ou religiosos.
14
Fazem suas curas através de um sincretismo religioso, com a utilização de rezas, magias e rituais
específicos.
15
A partir de uma determinação divina conhecem o corpo humano, no qual realizam procedimentos
ortopédicos e de lesões musculares.
16
Na cultura cabocla, a carne está propensa a se romper (rasgar) devido a esforço excessivo do corpo.
Caso isso ocorra é preciso que se costure a carne rompida em um procedimento que inclui orações e o uso
agulha e linha representando a carne rompida.
17
Pessoa que tem o dom de promover a cura por meio de plantas e orações. Esse dom é reconhecido
quando essa pessoa ainda criança chora no útero materno.
18
Quebranto é uma forma de mal-estar atribuído a fatores de ordens não naturais. É uma energia negativa
transmitido à criança.
13
46
pouco da história veremos que a sociedade antiga era matriarcal.
Eram as mulheres que cuidavam da agricultura, foram as mulheres
que inventaram os primeiros instrumentos agrícolas para não ferir a
terra, até porque a terra era a grande deusa do universo, criadora dos
povos, a soberana que produz o alimento que dá a vida. Então a terra,
era cultuada como essa grande deusa. E como símbolo da
feminilidade, da fertilidade, da criatividade, as mulheres se imbuíam
de toda essa energia que a terra trazia, do qual tinha uma relação
muito intima muito próxima. (Fátima Guedes, entrevista/2010).
A expressiva atuação das mulheres nessas práticas de cura pode ser
compreendida no âmbito dos papeis sociais e da divisão de tarefas entre os gêneros. As
mulheres assumem o papel de cuidar da casa e do bem-estar da família e esta
perspectiva familista ligada ao aspecto da reprodução, pode estar associado à prática da
benzição. Conhecedoras da terra utilizam ervas e plantas, usadas com o objetivo
terapêutico e, assim, vão se tornando conhecidas em seu meio social, obtendo
legitimação como portadoras de um dom divino.
Para Gomes e Pereira (2004), a presença da mulher é marcante no mundo da
crendice e é ela, em uma maioria quase absoluta, que conhece o segredo das palavras e
dos gestos capazes de exorcizar o mal. Essa divisão de tarefas a partir dos sexos pode
ser entendida como a divisão moral do trabalho. Ou seja, a distribuição das tarefas é
feita de acordo com as qualidades morais das mulheres, as quais estão associadas às
questões familistas da comunidade, da casa, do corpo.
A consulta à benzedeira ou a procura de seus serviços ocorre em sua residência,
a qual, morando na periferia da cidade de acordo com a catalogação de Araújo (2008),
atende a pacientes das diversas camadas sociais. As benzedeiras têm um papel social
bem definido: o de trazer conforto, saúde e alívio aos males das pessoas que não
encontraram ou não procuraram na medicina oficial a solução para seus problemas.
Mesmo que o ofício da benzedeira interfira no campo da saúde institucionalizada, numa
relação nem sempre harmoniosa. Estabelece-se um paralelo entre o saber erudito
investido da armadura do conhecimento científico, e o conhecimento popular visto
como senso comum, marginal. Para Oliveira (1985, p.74),
O ofício da benzição sintetiza um dos momentos concretos e possíveis
em que aparece o confronto popular / erudito, onde a benzedeira
antagoniza o seu conhecimento ao do médico e ao dos padres. O
47
ofício da benzição é um dos momentos em que a benzedeira propõem
uma releitura da religião e da medicina.
Em nossa pesquisa, percebemos que as crianças, sobretudo as recém-nascidas,
formam a clientela principal das benzedeiras de Parintins. Estas são levadas geralmente
por suas mães para serem benzidas contra o quebranto, mau-olhado ou desmintidura.
Pois, tanto as mães, quanto as benzedeiras, acreditam que as crianças são as mais
vulneráveis às energias negativas do que os adultos, sendo, portanto, mais suscetíveis a
essas enfermidades que somente as benzedeiras podem curar. Na Amazônia, é muito
comum que o cuidado para que elas não sejam acometidas por esses incômodos iniciase desde pequeno, pois, de acordo com as observações de Galvão (1976, p.88),
As crianças, mais que os adultos, são suscetíveis ao quebranto. Este é
uma forma de mal – estar atribuída o mais das vezes a fatores de
ordem não natural. De quatro a oito dias após o nascimento da criança
deve-se manter fechadas as janelas e as portas para evitar o quebranto.
Ele pode estar no ar, entrar com o vento. Não é um sobrenatural, mas
uma espécie de miasma. Os pais não gostam que se lhes acaricie ou
„agrade‟ muito as crianças. Mesmo que se trate de compadres e
amigos.
Como já mencionado, a única maneira de curar a criança que contrai essas
enfermidades é mandando benzer. No caso do quebranto, o ritual se inicia quando a mãe
relata para a benzedeira de que maneira ela acredita que a criança contraiu o quebranto,
a partir daí, a benzedeira com um galho de vassourinha (Scoparia Dulcis – L.), começa
a rezar na criança em voz baixa, gesticulando com o galho para extirpar o mal. Após a
oração, geralmente são receitados chás de alho (Allium Sativum L.), ou folhas de hortelã
(Mentha Crispa L.), goiabeira (Psidium Guajava), chicória (Chicorium Intybus),
terminando assim a primeira parte do tratamento.
Há, as vezes, um segundo momento que ocorre na casa do paciente, em que o
benzido por indicação de quem benze, é envolvido na camisa que o pai estiver usando
no momento. O pai não pode olhar nem agradar a criança, principalmente se o mesmo
estiver com fome, para não agravar ou reincidir o quebranto. Geralmente, esses
procedimentos se repetem várias vezes até que a criança esteja totalmente livre do mal.
Há casos ainda em que o quebranto não desaparece facilmente; quando isso ocorre, um
48
novo procedimento é feito, desta vez substituindo a vassourinha pelo pião-roxo
(Jatropha Curcas L.). Também se aconselha a plantar um pé em frente da casa. Essa
narração feita a partir de nossa observação empírica se faz necessária, pois para Victoria
(2000), o ambiente, os comportamentos individuais e grupais, a linguagem não verbal, a
seqüência e a temporalidade em que ocorrem os eventos são fundamentais não apenas
como dados em si, mas como subsídios para a interpretação posterior dos mesmos.
A invocação a santos católicos para a obtenção da cura é outra característica que
encontramos na benzição, pois ela também se faz pela intercessão divina. As
benzedeiras geralmente têm um santo para cada ocorrência, além dos santos de
devoção19. Assim, em caso de feridas, se reza a São Lázaro; para curar doenças da
garganta ou engasgo, se pede a São Brás; para febre recorre-se a São Hugo; em casos de
quebranto, se invoca São Raimundo; Santa Luzia para os olhos; São Clemente na
ocorrência de dor de dente; para conseguir emprego evoca-se São José; e São Bento
para as dores de barriga e gazes.
Ao observar a prática dos curadores populares de Parintins, dentre os quais
destacamos as benzedeiras, Araújo (2008) observou a existência de vários nomes
peculiares que esses curadores populares utilizam para designar as doenças relacionadas
com os órgãos do corpo, e assim, ela procurou identificar a base lingüística destes
nomes, e a partir daí a autora organizou algumas palavras empregadas constantemente
nesse meio, buscando relacionar os termos e expressões usados pelos curadores
populares com a nomenclatura oficial. Vejamos:
COMUNICAÇÃO DOS CURADORES POPULARES
Nomenclatura popular
Nomenclatura oficial
01. Andaço
Surto
02. Arriamento
Menstruação
03. Bago
Testículo
04. Baldiação
Vômito
05. Bilora
Desmaio
06. Boga
Anus
07. Bucho pra fora
Prolapso vaginal total
19
Ver também p. 64-65.
49
08. Buchinho de pegar filho
Útero
09. Caição
Relação Sexual
10. Carne trilhada, nervo torto ou osso
Contusão
rendido
11. Chiadeira
Asma
12. Chiquara ou chicória
Cóccix
13. Choco
Estado depressivo
14. Constipação
Gripe
15. Cubrelo
Herpes zoster
16. Curuba
Escabiose
17. Curso
Diarréa
18. Cutico
Axila
19. Dessaranjo
Diarréia
20. Desistir
Ato de defecar
21. Dismancho
Diarréia
22. Dordolho
Conjuntivite
23. Dor na pente
Dor na região pélvica
24. Empatada
Diz-se da mulher menstruada
25. Encanto do Boto (Golfinho da
Gravidez indesejada para justificar
Amazônia)
adultério
26. Eré
Ânus
27. Escorrimento
Corrimento vaginal
28. Espinhela caída ou peito aberto
Artrite de articulação externo clavicular
29. Estado interessante
Gravidez
30 Estupor
Derrame Cerebral
31. Filhar
Engravidar
32. Fina
Diarréia
33. Fruximento
Mulher que perdeu a elasticidade vaginal e
apresenta prolapso vaginal
34. Gostosão
Genitália feminina
35. Goto
Glote
36. Gozo frouxo
Corrimento vaginal
37. Gragumilo
Glote
50
38. Embaraço
Mestruação
39. Hemorróida / Morródia
Hematoquezia ou melena
40. Isipla
Erisipela
41. Isquenência
Glândulas da região frontal do braço –
gânglios linfáticos
42. Lamba terra
Diarréia
43. Mãe-do-corpo
Designação para região do útero
44. Malacafento (a)
Estado Depressivo
45. Maria Preta
Furúnculo
46. Mijacão
Frieira braba
47. Moléstia
Tétano, parada cardíaca ou derrame
48. Muído
Abatimento físico
49. Nascida
Furúnculo
50. Passamento
Desmaio
51. Perseguida
Vagina
52. Pira
Micose, irritação da pele.
53. Piririca
Pele áspera, irritada.
54. Pirrique
Diarréia
55. Puçanga
Órgão Sexual feminino
56. Puxação
Massagem
57. Provôco
Vômito
58. Puxar
Massagear
59. Puxo
Contração uterina
60. Quebra-bunda
Dores nos quadris
61. Quebranto
Mal olhado
62. Ramo de ar
Derrame
51
63. Rendengue
Região Pélvica
64. Rutura
Prolapso vaginal e hérnia escrotal.
65. Secuiara
Abatimento físico do homem nos
primeiros meses de gravidez da parceira.
66. Suspensão
Interrupção brusca da menstruação.
67. Tabaca
Genitália feminina.
68. Tar de cístico
Termo que se refere a cistos ovarianos
69. Tar de ligamento
Referência à ligadura de trompas
70. Tapa cu
Remédio contra diarréia.
71. Tenúia
Depressão
72. Titinga
Pitiríase
73. Torcedura
Contusão
74. Tutiço
Parte posterior do pescoço
75. Treçol
Terçol
76. Thola
Pênis
77. Vento caído
Criança que leva susto quando é levantada
acima da cabeça causando diarréia.
78. Vento encausado
Prisão de ventre
79. Vergalho
Pênis
80. Viçar
Relação sexual.
81. Visage na barriga
Referente a miomas ou cistos volumosos.
82. Zuruó
Desequilibrado mental
Fonte: Maria de Fátima Guedes de Araújo20
20
Dados contidos em: Conhecimento estrada de mão dupla a relação entre os saberes oficial e popular na
construção da saúde, na cidade de Parintins – Am. Pós-Graduação em Estudos Latino-Americanos. Juiz
de Fora: UFJF, 2008. p.73-75.
52
Lévi-Strauss (1975, p.194), ao descrever as práticas mágicas e seus efeitos, diz
que a sua eficácia está ligada a crenças, as quais apresentam sob três aspectos
complementares: “a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; em seguida, a
crença do doente que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no poder do próprio
feiticeiro; finalmente, a confiança e as exigências da opinião coletiva”.
Para aqueles que acreditam nas benzedeiras convém legitimar a necessidade de
atuação da benzição dizendo que existem doenças para médicos, e doenças para
benzedeiras, pois muitas enfermidades só podem ser tratadas pelas orações ensinadas
por “Jesus Cristo quando andava pelo mundo” (GOMES e PEREIRA, 2004, p.102) da
qual as benzedeiras agora fazem uso, pois a cura é uma obra de Deus e elas são seu
instrumento.
Pela relação que tem com os santos e sua aproximação com o catolicismo e com
os rituais que promovem cura, as benzedeiras na maioria das vezes não são vistas com
bons olhos pelas igrejas evangélicas. Com base no princípio de que só Deus tem o poder
de curar, elas são acusadas de promover suas curas em nome do demônio para enganar o
povo e afastá-lo da salvação, além de fazer idolatria a imagens de barro (santos). Muitas
igrejas evangélicas também promovem curas em seus cultos, havendo, assim, uma
concorrência e disputa pelo poder religioso de curar, pois estas igrejas se disseminam
rapidamente nas periferias, locais onde moram e atuam as benzedeiras. Quanto à Igreja
Católica, embora não sejam oficialmente legitimadas, as benzedeiras se sentem como
parte integrante dela, e isso podem ser percebidas nas orações, na veneração aos santos
de devoção e nos dogmas do catolicismo que dão legitimidade às suas práticas.
Essa legitimação se faz importante quando se compreende que nas religiões de
cunho patriarcal, entre elas o catolicismo, a mulher foi colocada em posição de
desvantagem, ficando com funções secundárias em relação ao homem. Logo, é no
campo da religiosidade popular que elas tem se destacado, principalmente no que se
refere às práticas mágicas de cura. Contudo, se não tiverem ligação com a Igreja para
convalidar seus atos e serem aceitas, podem facilmente ser confundidas com feiticeiras
ou bruxas. Portanto, mesmo não tendo uma legitimidade oficial no catolicismo, é nos
ensinamentos e dogmas da Igreja Católica que elas se apóiam para validar suas práticas.
Farinha (2009, p.347) afirma que,
53
Pode-se perceber que a representação feminina na religião se constitui
como perpetuadora da realidade vivida cotidianamente pelas
mulheres, porém isso não se dá sem resistências uma vez que as
mulheres apresentam uma postura ativa e a cada dia conquistam mais
espaços seja por meio da religião tradicional ou através da
religiosidade popular, como acontece com as benzedeiras, pois
embora existam também benzedores, seu relacionamento com a
comunidade em que atua faz com que se construam identidades
diferenciadas.
A articulação Parintins Cidadã, movimento social que reúne as benzedeiras,
parteiras, pegadores de ossos, erveiras, além das pastorais da Igreja, associações de
bairros entre outros, tem se empenhado na conscientização, organização e luta desses
provedores populares de saúde. Fátima Guedes, integrante ativa desse movimento, diz
que “são eles os que verdadeiramente se pode chamar de saúde pública, e mesmo sendo
ainda discriminados por parte da sociedade, todos tem a consciência de que são agentes
importantes na construção da saúde em Parintins” (entrevista/2010).
Já foram realizados dois fóruns no município para discutir a questão, com várias
palestras, encontros e oficinas, realizados com a participação de médicos, enfermeiros
sanitaristas e doutores em saúde comunitária. A educadora reconhece também a
participação do vereador Israel Paulain no último fórum, o qual durante o evento
apresentou um requerimento solicitando à Câmara Municipal a criação e instalação do
Centro de Práticas Naturais e Populares de Saúde de Parintins21. Segundo a nossa
entrevistada,
Não é intenção nossa que essas pessoas sejam colocadas dentro das
unidades de saúde, pois lá, se perderá toda uma memória, toda uma
forma de cuidar, pois serão engolidas pelo sistema a troco de um
salário. O que é intenção e está dentro dos princípios do SUS é o
centro, o apoio governamental, o acompanhamento institucional, para
que se possa gerir uma saúde com qualidade. (Fátima Guedes,
entrevista/2010).
No Brasil, a medicina institucionalizada mantém sua hegemonia tentando
excluir e marginalizar outras formas de saberes que não seja o erudito. Com uma
21
Requerimento disponível em http://www.israelpaulain.com.br/categoria.php?pagina=2&cat_id=1159.
Acesso em 09/03/2010.
54
postura típica das sociedades ocidentais envolta no manto da cientificidade, ela tenta
desviar, do campo da saúde e da assistência médica, a benzição e outras formas de
saberes relegando a elas o estigma de obscuridade. Ao curar e dar respostas pelas vias
dos saberes tradicionais àqueles que lhe procuram, as benzedeiras entram em paralelo
com o saber institucional que tenta lhes sobrepujar, ou em última instância lhes
disciplinar a seu modo. Daí a preocupação de Fátima Guedes em não expor os agentes
populares de saúde, no espaço da medicina institucionalizada, para que não sofram em
razão de seu oficio e acabem se corrompendo. Pois,
É na condição de resistência a isso que a benzeção deve ser vista. Não
como um resquício de formas antiquadas de curar, algo já superado
pela ciência moderna. Mas como um ato de resistência política e
cultural feito como alguma coisa própria, através de uma cultura que
contesta e rejeita a linguagem da opressão, da dominação e da
exploração entre os homens. (OLIVEIRA, 1985, p.95).
Para a medicina erudita a enfermidade está diretamente ligada com o fator
biológico, o paciente representa um corpo doente e a relação entre ele e o médico tornase distante com o predomínio da formalidade. Ao tratar somente do corpo afetado por
uma patologia investigada cientificamente, a ciência médica deixa de atender a outras
várias perturbações que acabam por se configurar em doenças específicas de
benzedeiras.
Essa característica faz com as benzedeiras expliquem a doença de uma forma
mais ampla e compreensível em que a simbologia do ritual é aceita e entendida pelo
enfermo. E juntamente com a acessibilidade, já que no sistema oficial de saúde, os
médicos nem sempre estão acessíveis, as benzedeiras conseguem estabelecer laços de
reciprocidade e confiabilidade. Assim, as comunidades elegem suas benzedeiras que
ainda hoje continuam praticando o seu ofício de benzer, e são as intermediadoras entre o
benzido e o sagrado.
55
CAPÍTULO II
O COTIDIANO E O ESPAÇO DA VIDA PRIVADA
“A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos
a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja
seu posto na divisão do trabalho intelectual e
físico. Ninguém consegue identificar-se com sua
atividade humano-genética a ponto de poder
desligar-se inteiramente da cotidianidade”.
Agnes Heller (O cotidiano e a história).
2.1 – Cotidiano e significado da cultura popular
Historicamente os significados das representações sociais revelam-se a partir de
experiências que podem ser percebidas no cotidiano de diversas formas e nos mais
variados modos. Os processos de interação entre o homem e o meio social em que
convive, não só constrói a sua identidade, como também contribui para a formação da
identidade do grupo que pertence, demarcando seu lugar.
A noção de lugar tem uma relação intrínseca com o cotidiano na medida em que
o lugar como espaço geográfico sofre alterações a partir no processo de socialização dos
indivíduos, que o transformam, dando a ele um sentido simbólico. Trata-se das
peculiaridades de uma história que não pode ser ignorada, uma vez que os
acontecimentos são produzidos e gerados no seio do cotidiano.
Podemos dizer que no cotidiano também se faz história e nele podemos perceber
as várias relações existentes em cada sociedade com as peculiaridades e particularidades
que cada uma apresenta. Segundo Heller (2004, p.20) “A vida cotidiana não está „fora‟
da história, mas no „centro‟ do acontecer histórico: é a verdadeira „essência‟ da
substância social [...] as grandes ações não cotidianas que são contadas nos livros de
história partem da vida cotidiana e a ela retornam”.
Com a sua historicidade o cotidiano não pode ser confundido com ações
repetitivas, algo imutável e cansativo. Pelo contrário, mesmo as suas permanências
56
sofrem alterações provocadas por seus atores sociais. Afinal, a história do cotidiano é a
história da vida diária de homens e mulheres (HELLER, 1998). Assim, por menos
visíveis que seja as alterações sofridas, elas podem ser compreendidas como o resultado
dos acréscimos ou desgastes ocorridos em si mesmo.
Heller (2004, p.33), ao se referir à estrutura da vida cotidiana, afirma que “a fé e
a confiança desempenham na vida cotidiana um papel muito mais importante que nas
demais esferas da vida”. Isto não significa dizer que inexistam essas manifestações em
outros campos. Eles ocupam um espaço bem perceptível dentro do cotidiano. Fé e
confiança podem ser percebidos na relação entre benzedeiras e benzidos, pois apesar
dos avanços verificados na medicina oficial, a benzição jamais fora abandonada em sua
totalidade. Acreditando no poder da reza, muitos ainda recorrem a essa prática religiosa
dentro do nosso cotidiano.
Para situarmos o espaço da benzição no cotidiano parintinense, devemos atentar
para o fato de que os processos mágicos religiosos não se constituem em uma linha
divisória entre a benzição e a medicina oficial.
Na procissão da padroeira de Parintins, Nossa Senhora do Carmo, realizada no
dia 16 de julho de 2009, durante o cortejo, entre muitos agradecimentos por graças
alcançadas narrados, havia um que atribuía às orações dedicadas esta santa, a melhora
de saúde de um conhecido médico da cidade que se encontrava internado em um
hospital na capital do estado. Isto mostra que em alguns momentos do cotidiano da vida,
fé e ciência estreitam suas relações. Pois,
Se a nossa época está voltada para os fantásticos progressos da
pesquisa cientifica relacionada com a medicina, trata-se também de
um curto período da história da humanidade (aproximadamente
trezentos anos). Durante a maior parte dessa longa história da
humanidade, no entanto, a magia, a religião e a cura quase sempre
andavam juntas. (VALLA, 2001, p.134).
Nos locais de atendimento a saúde como os hospitais e centros de saúde em
Parintins, é comum a presença de símbolos cristãos como santos, crucifixos, oratórios,
folhetos. Além disso, a visita a enfermos por partes de muitas igrejas, que além de
levarem suas mensagens de salvação, realizam seções de cura dentro dessas unidades,
parece não incomodar os doentes e os profissionais dos estabelecimentos.
57
A presença religiosa dentro do espaço destinado a medicina oficial desconstrói a
cisão entre científico e religioso. Este último mesmo sendo negado pelo saber científico
que diz não encontrar elementos na ciência que comprovem sua eficácia, não tem
encontrado forças para bani-las dos espaços que acredita lhe pertencer.
Podemos compreender a religiosidade parintinense manifestados em diversas
formas e inseridos no cotidiano, a partir do contexto histórico cultural em que a
população se formou com a colonização lusa no Brasil. Stell (2001, p.15) reconhece que
“somos herdeiros de tradições ibéricas que ainda hoje têm forte influência sobre nosso
modo de ser e pensar, nossas crenças e esperanças, nossos hábitos e formas de
relacionamento”.
A medicina institucional apresenta a doença como fator biológico, dissociando a
enfermidade dos fatores sociais e culturais. Assim, apesar de muitos enfermos
procurarem o tratamento oficial na busca pela saúde, outras formas de sanar os males
como a benzição são procuradas para que se obtenha o êxito da cura. Na luta contra a
enfermidade não existe verdade absoluta para o doente, que mesmo compreendendo a
doença de acordo com o que diz o médico, procurará outros meios para curá-la. Esta
luta do paciente em busca da cura pode ser percebida na entrevista com dona Zenaide
(67 anos), quando nos diz que,
Eu vou lá dentro do hospital fazer como o pessoal diz: „fazer um
contrabando‟, já que os médicos não gostam que eu vá lá. Mas agora
tem hospital em que os médicos já liberam pra mim entrar lá dentro,
pra que eu possa ver as crianças que estão quase morrendo com
diarréia, pra mim rezar nelas. Eu vou, venham me buscar e eu vou.
Agora já posso ir dentro do hospital rezar na criança que está passando
mal. Quando não, saem do hospital e vem pra minha casa, pra mim
rezar neles. (Dona Zenaide, entrevista/2010).
Quintana (1999) esclarece que a doença e seus processos de cura não devem ser
vistos separados do contexto social, pois as pessoas ao buscarem explicações sobre o
que acontece com elas deixam transparecer suas compreensões de vida e de mundo. É
nessa visão de mundo que se encontra toda a rede de significado tecido por si e por seu
meio. Assim, muitos pacientes não vêem algum problema ao solicitarem que dona
Zenaide faça a benzição dentro das unidades de saúde. E ao conseguir realizar seu papel
às vezes sem permissão, de maneira clandestina, pelo “contrabando” como ela declara,
58
ou com a conivência médica, transporta o conhecimento popular para um espaço
dominado pelo saber científico.
A procura por benzedeiras também ocorre em espaços privados, geralmente na
casa da própria benzedeira, onde ela atende por horas a fio. A demanda por essas
terapeutas populares retira a privacidade delas tornando quase pública a sua casa e seus
pertences e levando-as a uma dura rotina de doação. Às vezes torna-se um trabalho
cansativo como podemos perceber na fala de dona Nazaré (88 anos),
Eu benzo aí mesmo na minha casa, aí dentro, lá no meu quarto, pois
somos só nós que moramos aqui, não tem outras pessoas. Só que
agora eu não quero mais fazer esses trabalhos não. Não quero mais, eu
já estou enjoando. Eu já estou enjoando, eu não quero. Eu não quero
porque eu não quero mesmo. Mas se vierem me procurar eu atendo
sim, mas já acho um pouco cansativo, e enjoa a gente. (Dona Nazaré,
entrevista/2010).
Ao ajudar quem necessita, dona Nazaré exerce o princípio da caridade, elo que
liga a benzedeira ao benzido. No entanto, podemos perceber que essa caridade torna-se
unilateral uma vez que somente o benzido é auxiliado e, na maioria das vezes, ele
somente retorna a benzedeira se for acometido de uma nova enfermidade. Por isso,
quando dona Nazaré diz “não quero mais, eu já estou enjoando”, podemos inferir que ao
aliviar a dor alheia, ela não encontra quem alivie sua própria dor, que em muitos casos
tem relação direta com o fator econômico.
Mesmo manifestando o desejo de abandonar a benzição, nota-se o compromisso
de dona Nazaré com os benzidos ao dizer que “se vierem me procurar eu atendo sim”.
Esse compromisso é justificado em face ao dom recebido, e em nome desse dom, a
benzedeira tem a obrigação de curar pela palavra. Negar esse compromisso é negar o
dom recebido, e não cumprir a tarefa designada por Deus a ela, Para Gomes e Pereira
(2004, p.95),
O compromisso dos rezadores decorre do conhecimento que adquirem
como indivíduos privilegiados, uma vez que o acesso à palavra do
Criador só é possível mediante a superação da vontade pessoal em
favor da atenção aos outros. Além disso, a palavra tomada de
59
empréstimo ao criador deve ser empregada para ajudar as pessoas, de
modo que a vitalidade do benzedor é associada à prática do bem.
O dom, portanto, está relacionado diretamente ás práticas de benzição, é um elo
que as ligam com Deus. A palavra dom deriva do latim donum, que significa “oferta
feita aos deuses”. No caso das benzedeiras, o seu dom é visto como algo divino que lhe
foi dado gratuitamente, uma dádiva recebida de Deus. Elas devem desenvolver esse
dom exercendo seu ofício sem cobrar nada. Em entrevista dona Rosa (74) diz, “eu não
cobro, eles que me pagam. Às vezes me dão um real, outras vezes dois reais”
(Entrevista, 2010).
Apesar da gratuidade, é comum a oferta de presentes por parte dos benzidos
como forma de agradecimento aos serviços. Segundo Santos (2007), o sentido da
gratuidade e da solidariedade é compartilhado e entendido pelos membros da
comunidade. Se uma benzedeira quebrar esta harmonia, estipulando um preço pelos
seus serviços ela corre o risco de cair em descrédito em sua comunidade, pois a relação
entre benzedeira e benzido se desgasta, quando esta deixa de cumprir o princípio cristão
de “dar de graça o que de graça recebeu”. Se agir dessa forma a benzedeira corre,
inclusive, o risco de perder o dom divino ao fazer comércio de sua missão. Para
Quintana (1999, p.86),
O dom obriga. Manda. É um compromisso assumido. Ele representa
certo privilégio ao dotar o escolhido de um poder especial, mas
também é vivenciada no seu caráter obrigatório de atribuir uma
responsabilidade à qual o escolhido não pode fugir. Desta forma, o
ofício da benzedeira, semelhante ao do médico, mais do que uma
profissão, é visto como um sacerdócio, uma missão.
A descoberta do dom que origina o conhecimento da benzição, privilégio dessas
mulheres, tem geralmente relação com algum acontecimento ocorrido na vida da
benzedeira como: revelação, necessidade, promessa e retribuição. Souza (2002), ao
estudar a benzição em Vitória da Conquista, percebeu que na maioria das vezes a
percepção do dom se dá de duas maneiras: pela visão ou revelação feita a partir do
sobrenatural, por um aprendizado no seio da família, ou ainda com o convívio com
60
quem benze. No caso de dona Nazaré o dom se deu pela revelação transcendental,
conforme ela mesma esclarece:
Eu já nasci assim, eu já nasci com esse dom mesmo. Desde então eu
comecei a trabalhar com esse dom que eu trouxe de nascença, sou
média de nascença. Eles mesmos, os espíritos que se revelaram em
mim foi quem me deu a inteligência juntamente com Deus. Eu trouxe
esse dom de nascença e por isso comecei a trabalhar. Depois, um
primo meu me deu um passe, aí pronto, melhorou, pois já trouxe esse
dom de nascença. Não tive esse negócio de aprender não, tudo o que é
de nascença não é preciso aprender, já vem com a gente. Não aprendi
com ninguém, por isso que eu to te dizendo que eu nasci com esse
dom entendeu? Dom é dom, eu já nasci assim e pronto. Foi isso,
ninguém me ensinou, foi Deus quem me deu esse dom, e por isso que
a benzição foi pra frente, pois eu trabalho com Deus. (dona Nazaré,
entrevista/2010).
Para dona Nazaré o dom e a benzição manifestada ainda na infância pelos
“espíritos que se revelaram” como ela mesma diz, foi acompanhada de outro
acontecimento: uma enfermidade que lhe acometia. Essa enfermidade é um fenômeno
comum que antecede a descoberta do dom, no seu caso, era resultado da demora em
aceitar sua missão de benzedeira, revelada desde a infância. Essa não aceitação lhe
prejudicava como ela mesma diz: “eles, os espíritos faziam me dar passamento, eles me
atacavam, sabe. Meu esposo, já depois de estando eu casada, ele cansou de chorar ao
ver que de repente eu caia no chão. Eram os espíritos que me atacavam e o meu marido
não sabia” (entrevista/2010).
Essa revelação sobrenatural também pode ser feita de outra maneira como no
caso de dona Zenaide, ao dizer que seu conhecimento foi adquirido “por sonhos,
ensinado por sonhos, às vezes era uma velhinha, às vezes era um velhinho que vinha me
acompanhar. Eu trabalhava e sempre uma mulher me acompanhava e um homem, os
dois sempre velhinhos” (entrevista/2010). Nas duas formas de revelação encontramos
um traço em comum “os conhecimentos tanto das orações como dos chás, pomadas,
ungüentos etc. são atribuídos a informações de alguma entidade sobrenatural, como
anjos ou guias principalmente” (QUINTANA 1999, p.55).
A experiência mística ganha uma conotação racional, mesmo que muitos não
entendam ou não saibam, como no caso do marido de dona Nazaré, “eram os espíritos
que me atacavam e o meu marido não sabia”. Isso acontece por haver conflitos gerados
61
a partir das várias maneiras de se perceber e aceitar o divino, pois o mesmo foge a
qualquer controle institucional e religioso. Gomes e Pereira (2004, p.116) assinalam
que,
A iniciação por revelação demonstra que o contato com a
transcendência não é monopólio de uma instituição religiosa nem é
dependente das condições sócio-econômicas do indivíduo. Esse
processo se descortina como afirmação do sujeito que aceita um
conhecimento passível de ser contestado no plano ideológico, mas não
no domínio da experiência mística.
Com dona Rosa o dom se deu pela aprendizagem, recebido no núcleo familiar.
Essa característica também descrita por Oliveira (1985), novamente vem acompanhada
por uma enfermidade, e paralelamente a vontade de ajudar o próximo. Percebemos em
dona Rosa, assim como em outras benzedeiras, a ausência de uma cerimônia de
iniciação como ocorre em muitas instituições religiosas que lidam com o divino. No
entanto, isso não atrapalha e nem tampouco desqualifica o compromisso por elas
assumido, pois o dom de benzer é uma obrigação firmada diretamente com Deus. Dona
Rosa relata o inicio do seu ofício da seguinte maneira:
Eu tinha quinze anos quando eu tive um padecer, depois disso, me deu
vontade de benzer. De benzer, de ensinar remédio, de consertar22. Meu
pai benzia e eu gostava de ver quando ele benzia, pois todos os que
procuravam meu pai ficavam bom. E eu achava que nisso tudo tinha
uma fé. Então pensei: „será que ele pode me ensinar a benzer assim
como ele?‟. Foi aí que eu pedi para ele escrever as orações pra mim.
Pra que eu pudesse aprender. Porque eu queria saber essas coisas pra
ajudar as crianças e gente grande também. Aí ele escreveu pra mim as
orações e eu comecei a estudar e a aprender, a decorar, e decorei
tudinho. (Dona Rosa, entrevista/2010).
As orações aprendidas por dona Rosa não foram reveladas pela oralidade, ela as
recebeu de maneira escrita, porque, trata-se de um segredo que não pode ser revelado.
Seu pai negava-lhe tal ensinamento por receio de que as orações perdessem o efeito,
caso fosse ensinada oralmente, mesmo a pedido de sua filha. Daí a necessidade de
22
Ver p.115.
62
escrevê-las para que não corresse o risco de as rezas falharem posteriormente, uma vez
que sendo Rosa ainda adolescente, havia a possibilidade de a mesma desistir da
benzição, anulando as orações e conseqüentemente o poder de seu pai. Esta mesma
recusa dona Rosa nos fez de inicio, afirmando que se fosse relevada suas orações
perderiam o efeito. Gomes e Pereira (2004, p.12) ao se referirem ao segredo da benzição
consideram que,
Faz-se necessária uma referência ao segredo da benzição: há uma
confiança na magia das palavras desconhecidas e muitas vezes o
benzedor se recusa a ensiná-las, já que lhes foram transmitidas sob
essa condição de não-revelação. Além disso, acredita-se que o
conhecimento da palavra sagrada pelos não iniciados pode esvaziarlhe o poder.
Percebemos que ter o dom, portanto, não é o bastante, embora este seja um
requisito necessário para se tornar uma benzedeira. É necessário haver um aprendizado
com a pessoa que reconhecidamente apresente esse carisma. Há ainda alguns casos de
doenças graves com iminência de morte da benzedeira, momento em que muitas delas
repassam seus conhecimentos para alguém que ela acredita possuir o dom divino. Essa
pessoa deve continuar o seu trabalho assumindo o seu lugar após sua morte. Braga
(2003, p.257) identificou nas benzedeiras de Campo Lago, Paraná, quatro fatores
comuns entre elas: “1) os ensinamentos passados por um antecessor que fazia curas,
garantindo a continuidade do mito; 2) o uso de símbolos católicos para a realizar
bênçãos; 3) a ligação com crenças de outras origens: afro, indígena, e espírita; 4) a
existência de um dom para realizar as curas”.
Se, para Gomes e Pereira (1992, p.73), a expressão cultura popular “sintetiza
uma série de conhecimentos heterogêneos que constituem os saberes do povo”, não
restam dúvidas que o conhecimento adquirido pelas benzedeiras se encaixa nesta
categoria. O não reconhecimento da cultura popular esbarra nessa maneira heterogênea
de como se concebe o mundo. Por isso encontra oposição na cultura erudita, vista como
o saber das classes dominante e eficaz para resolver os problemas humanos. Para
Gomes e Pereira (1992, p.73) “Essa pretendida eficácia parece estar ligada ao domínio
das universidades e das academias, que ditariam aos homens a maneira (única?) de
63
solucionarem o seu estar-no-mundo: o conhecimento legitimado pela ciência, pela
tecnologia, pela filosofia; em suma, o modelo cultural dominante”.
Embora tenhamos um modelo de cultura legitimado pelas classes dominantes
que tentam responder pelos problemas humanos de maneira oficial, o saber dos grupos
dominados forma uma categoria alternativa que também é capaz de promover respostas
satisfatórias dentro de seus espaços ou nas lacunas da cultura erudita. Para Gomes e
Pereira (1992, p.74), “a cultura popular é a manifestação de um sistema significativo, de
um conjunto de representações simbólicas geradas na ação social, dependendo dos
papéis e posições ocupados pelos membros dos grupos dominados nos espaços
permitidos pelas forças da hegemonia”. Assim, onde houver povo e contexto para a
benzição, sempre haverá uma benzedeira.
A cultura popular ao entrar em contato com outros modelos culturais tende a se
reorganizar, modificando-se dentro do seu dinamismo e interação. Para Oliveira (1985,
p.29), “o trabalho da benzedeira passa por transformações, porque a cultura da qual é
parte se recria, se renova, se atualiza”. Comumente encontramos juntamente com as
ervas e plantas receitadas na benzição a utilização de remédios industrializados, os
conhecidos remédios de farmácia além de bebidas alcoólicas como a cachaça. Essa
utilização não interfere na crença da eficácia da benzição, pelo contrário, os remédios
industrializados ganham um complemento a mais, pois sua eficácia não reside apenas
em sua fórmula, mas também na intercessão divina. Essa dinâmica que de certa maneira
moderniza a benzedeira pode ser percebida nas receitas de dona Rosa, a saber:
Raiz de chicória e japana branca23 é para o quebranto, hortelãzinho se
dá quando a criança faz cocô verde. E agora para a ezipla24 é
mangarataia pauá25, amor crescido26 e Salamargo. Tudo isso a gente
bota na ezipla e a pessoa fica boa, e fica boa mesmo. Para o cobrelo a
gente bota cachaça com vassourinha e uma pitadinha de sal. É só isso,
e para a dismintidura é só consertar mesmo. Às vezes quando a
criança fica com febre depois de consertada a gente dá a ela uma
bandinha de pílula AAS, ou então uma de Anador, e depois que a
criança tomar a pílula e começar a suar a febre vai passando. AAS27
com chazinho, com chá de capim santo ou capim cidreira. (Dona
Rosa, entrevista/2010).
23
Folha de eupatorium ssp. Da família das asteraceae.
Para Gomes e Pereira (2004 p.189), “zipa, zipela, isipela, erisipela, erisipa, erisipelão, esipa, esipelão,
izipi, erisipele, eripa, zipola”. São algumas das variedades de nomes dados para essa enfermidade.
25
Nome regional para o gengibre (zingiber officinale). Da família das zingiberaceae.
26
Planta herbácea (portulace pillosa l.) da família das portulacaceae.
27
ASS, Anador e Salamargo são marcas registradas de remédios industrializados.
24
64
A invocação e devoção a um ou a vários santos protetores como já
mencionamos, também fazem parte do cotidiano das benzedeiras de Parintins, é uma
ligação direta entre a benzedeira e a religião católica. Perceber esse fenômeno e o
significado das “trocas simbólicas”
28
é entender que a religião, ao mesmo tempo em
que se constitui em instituição estruturante, também é estruturada. No caso das
benzedeiras ela ajuda a construir e a expressar a realidade imediata da benzição,
consagrando de certa maneira as relações da benzedeira com o divino numa relação de
completitude.
No barracão de São Lázaro, uma edificação de madeira e telha de alumínio e
sem paredes laterais, construído ao lado da casa de dona Zenaide, há um pequeno altar
sempre armado com velas e flores dedicado ao santo que ali se faz representar por uma
imagem e um quadro na parede. Esse santo, segundo dona Zenaide, lhe curou de uma
enfermidade quando a mesma ainda morava na zona rural sendo esse o motivo do altar,
do barracão, e da festa que ela realiza em sua homenagem no mês de Janeiro. Steil
(2001, p.22) diz que "nos momentos de crise, os fiéis fazem seus pedidos aos santos,
prometendo-lhes algum sacrifício como contrapartida do favor recebido”. É o caso de
dona Zenaide.
Para dona Rosa a devoção que tem em São Sebastião é herança da devoção de
seus pais, mas também é uma forma de relembrar o Igarapé do Sapocoá no município de
Oriximiná, no estado do Pará, sua terra natal, de fortalecimento dos laços familiares, e
de confraternização ao mesmo tempo em que demonstra preocupação pela falta de
continuidade de sua família na devoção ao santo.
A devoção aos santos é uma herança da colonização portuguesa que serve como
fator de identidade familiar, cultural e geográfica, pois “o catolicismo que se enraíza no
Brasil está marcado por sua origem européia, mas também pelo encontro que essa
tradição teve aqui com as tradições africanas e indígenas” (STEIL, 2001, p.14). Dona
Rosa relembra com satisfação como começou a devoção a São Sebastião em sua
família. Vejamos:
28
Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Lisboa, Difel, 1989.
65
Eu festejo São Sebastião porque esse santo era lá do Pará, ele era
festejado lá, só que quando a minha mãe morreu e o meu pai morreu,
nós, os filhos, viemos pra cá e trouxemos ele. Lá o povo festeja
bonito, e nós inventemos aqui também pra festejar ele, e eu continuei
aqui no Amazonas. Meus pais festejavam lá porque naquele tempo os
santos eram mais respeitados que hoje, pois faziam muitos milagres e
não é como agora, que não tratam bem os sacros, pois jogam os santos
fora. Lá eram bem cuidados os santos. Tinha esse santo, São Sebastião
e tinha Nossa Senhora de Nazaré, muito festejados mesmo, tinha gente
daqui do Amazonas que iam festejar pra lá. (Entrevista/2010).
A devoção aos santos, exercido pelas benzedeiras de Parintins, ultrapassa a
condição de penitência. Em nossa pesquisa constatamos outra face que se manifesta nas
festas realizadas pelas benzedeiras dona Rosa a São Sebastião, e a São Lázaro, feito por
dona Zenaide, em que a relação de dor e alegria, sagrado e profano, corpo e alma, estão
intrinsecamente ligados aos atos de religiosidade popular. Neste caso, logo após a reza
das ladainhas do santo de devoção, são realizadas festas dançantes regadas a muita
comida e bebida para comemorar o dia do santo.
Compreendemos que “a devoção popular se expressa através do sacrifício e da
penitência, mas também da abundância e da fartura de mesas repletas de iguarias e de
certa liberalidade nos gastos e nos costumes” (STEIL, 2001, p.27). Se o santo faz
milagres para os que acreditam, é extremamente compreensível que ele seja venerado e
festejado abundantemente pelos seus devotos como ele merece.
A exclusividade no tratamento de enfermidades específicas nos leva a repensar o
conceito de medicina alternativa, muito utilizado quando nos referimos às práticas de
cura das benzedeiras. Assim como os médicos não curam doenças específicas da
benzição, as benzedeiras não invadem o campo da medicina oficial quando o caso não
for de sua competência. É o que explica dona Nazaré,
Os males que eu curo os médicos não podem curar sabe por quê?
Porque os médicos trabalham com outros procedimentos, são a partir
do estudo que tiveram que eles curam os seus doentes. O meu
conhecimento não foi adquirido com o estudo, pois o meu
conhecimento vem do dom que tenho de nascença mesmo e pronto.
Os médicos são os médicos. O dom da gente é um e o conhecimento
dos médicos são outros. (entrevista/2010).
66
A crença na benzedeira se assemelha em muitos aspectos a crença nos antigos
pajés, pois os povos tradicionais da Amazônia herdaram hábitos e modos de interagir a
partir da visão do índio que conseguiu manter parte de seus costumes na sociedade
amazônica que ele ajudou a produzir. Assim, percebemos essa influencia quando mães
como Leila Figueiredo (31 anos) nos diz que quando sua filha adoece “a gente traz
primeiro nas benzedeiras, se a gente vê que o cocô da criança tá verde [...], a gente já
imagina que seja quebranto. Então a gente vem primeiro nas benzedeiras, e se a criança
não ficar boa a gente corre pro hospital, mas geralmente ela fica” (entrevista/2010).
Muita das doenças ditas específicas de benzedeira como o cobreiro que para
Gomes e Pereira (2004, p.177) “é uma dermatose cientificamente denominada herpes
zoster”, a ezipla, uma manifestação cutânea caracterizada pela “tumefação local com a
pele lisa e brilhante, tomando a seguir uma coloração vermelha violácea” (Idem, p.189),
dor de dente, dor de cabeça e azia, tem uma duração limitada, ou seja, seus sintomas
aparecem e desaparecem periodicamente.
Em nenhum momento a duração limitada desqualifica a comprovação da
eficácia da benzição, prova disso, é o grande número de pessoas que procuram
tratamento na benzedura. As pessoas benzidas confirmam sua eficácia ainda que o
tratamento coincida com o tempo de desaparecimento da doença, e voltam à benzedeira
quando as doenças são recorrentes. Os benzidos deixam transparecer a confiança na
benzedeira, mesmo em situações de alívio momentâneo. Para Souza (2002, p.109),
A interpretação mágico-religiosa da doença, seja ela de ordem
fisiológica ou psíquica, acaba por gerar uma relação de confiança
entre o doente e o terapeuta, nesse caso específico representado pela
benzedeira, ambos pertencentes a um mesmo grupo social, portanto
conhecedores dos mesmos problemas econômicos, sociais e culturais
que pode produzir melhoras, mesmo que momentâneas, geradas por
uma liberação de afetos.
Benzedeira, benzição e benzidos, constituem-se num fenômeno bastante
representativo no cotidiano da sociedade parintinense, resistente às transformações
advindas com a modernidade. A continuação dessa prática é legitimada pela sociedade
que acredita na benzição apesar dos avanços da medicina moderna. Some-se a isto, o
fato de a benzição recorrer aos elementos religiosos cristãos como as orações. E mesmo
67
se houver pouco interesse dos jovens no repasse desse conhecimento, sempre haverá
uma benzedeira, pois o povo a elegerá quando assim se fizer necessário.
2.2 – A importância da mulher no campo da benzição
As benzedeiras, de modo geral, ao atuarem no campo do sagrado delimitam o
espaço feminino dentro da sociedade historicamente construída pelo modo de vida
patriarcal. Neste modelo de sociedade, ser boa mãe e esposa submissa restringe
significativamente o papel da mulher, negando a ela novas possibilidades. As
instituições sociais continuam a reforçar o discurso do predomínio masculino que se
desdobra na esfera pública, onde o homem tem o direito “natural” de assumir funções
de destaque, chefia e comando. Enquanto à mulher é legado o lugar na esfera privada
onde ela desempenha os papéis inerentes ao bem-estar da família e dos serviços
domésticos. Para Torres (2002, p.53),
Historicamente, homens e mulheres vêm ocupando diferentes posições
na sociedade e tradicionalmente lhes têm sido atribuídos diferentes
papéis que, uma vez internalizados, são tidos como „naturais‟.
Esses atributos e funções são definidos com base na distinção entre os
sexos. Assim, a identificação do homem e da mulher também são
processos construídos socialmente, daí a constatação de saffioti de que
„a identidade social da mulher, assim como a do homem, é construída
através da atribuição de distintos papeis, que a sociedade espera ver
cumprido pelas diferentes categorias de sexo‟.
A atuação das benzedeiras tem mostrado outro caminho na sociedade
contemporânea. Elas são os sujeitos centrais nas famílias, não são os homens. As
benzedeiras promovem uma mudança social nas relações sociais a partir das práticas de
benzição que exercem, divergindo do modelo patriarcal por deterem o “poder” da cura
no espaço em que atuam. Na prática da benzição homens e mulheres, indistintamente, se
submetem à autoridade da mulher benzedeira.
No campo da benzição onde existe um número maior de mulheres que benzem
em relação aos homens, o poder da benzedeira é legitimado pela comunidade, e isso nos
leva a observar o deslocamento de papeis na sociedade patriarcal. A autoridade exercida
68
pela mulher no campo da benzição faz com que, em muitos casos, os maridos das
benzedeiras exerçam funções auxiliares durante o procedimento da bênção
reconhecendo, assim, o papel primordial da mulher benzedeira. Esse é o caso de dona
Rosa que sempre conta com a ajuda de seu marido João quando vai benzer. “Ele busca
uma vassourinha ali, ou um óleo pra mim consertar. Ele sempre vai buscar a andiroba,
ou uma outra coisa que eu precise, ele me ajuda”. (entrevista/2010).
Esse poder exercido na benzição é transportado para a vida cotidiana. No caso
de dona Rosa é ela quem exerce a chefia da casa, e mesmo fazendo algumas atividades
domésticas é seu marido o principal responsável pelas tarefas do lar. Dona Zenaide do
mesmo modo governa a sua família, enquanto que dona Nazaré que é viúva também
tem a liderança em sua casa e muitos dos afazeres domésticos como o preparo das
refeições é feito por seu genro. Essa realidade é confirmada por Perrot (2001, p. 189),
segundo a qual “os trabalhos domésticos não são apanágio exclusivo das mulheres, e os
homens podem ajudar; por exemplo, a preparação de certos alimentos fica a cargo
deles”. Constatamos em nossa pesquisa que o fato de as benzedeiras estarem sempre
ocupadas com a benzição, levou as a um afastamento natural dos afazeres domésticos.
Ao promoverem a cura pelas orações, as benzedeiras entram no campo religioso
de tradição patriarcal, para quem a presença feminina incomoda e causa instabilidade.
Isso ocorre devido ao fato de que em várias épocas e sociedades as mulheres sempre
foram culpabilizadas pela existência do mal, de terem intercursos com o demônio e com
o pecado, pois “a imagem de diabolização da mulher no ocidente cristão é algo bem
antigo” (TORRES, 2005, p.55), servindo como justificativa para a desestabilização da
ordem social. Por muito tempo elas ficaram fora de rituais e procedimentos religiosos,
por conta dessa desmoralização de cunho patriarcal que as preteriram ao afirmar que,
As mulheres são seres que se deixam ludibriar pelo demônio –
representado pela serpente – com grande facilidade. Na literatura pagã
matricêntrica, a serpente é símbolo máximo da sabedoria, pois, além
de representar a fertilidade é capaz também de se transformar em
demônio para manipular seres fracos, através da volúpia, da
concupiscência e da permissividade. (TORRES, 2005, p.76).
É por isso que há a necessidade de as benzedeiras justificarem sua inserção no
espaço religioso apropriando-se do discurso dominante de submissão, delegando a cura
69
a Deus. “Deus me deu esse dom pra curar, porque se Deus não me desse esse dom, eu
não fazia esse trabalho” (dona Nazaré, entrevista/2010).
Ao devotar obediência à divindade de feições masculinas, delegando a Deus
todo o crédito da cura, pois as benzedeiras afirmam que “é ele, Deus, que cura e não a
gente” (Dona Rosa, entrevista/2010), elas sustentam seu ofício e se inserem no campo
religioso, “apropriando-se do sagrado como atributo feminino na medida em que a
função (benzedeira) identifica o gênero” (GOMES e PEREIRA, 2004, p.134). É assim
que essas mulheres assumem proeminência sobre os homens sem que haja uma
desestabilização social do gênero masculino. Na prática, fazem da benzição quase uma
exclusividade feminina. Em Parintins, mesmo praticando procedimentos semelhantes e
sanando as mesmas enfermidades, os homens são chamados de curadores e não
benzedores, como se observou. Segundo Gomes e Pereira (2004, p.133), “as
benzedeiras abrem fissuras nessa ordem social”, ganhando o respeito e a credibilidade
de homens e mulheres que as procuram.
O ato de benzer foge do controle do Estado e do saber erudito. Interfere
fortemente na realidade local mudando o modo de vida da população. Mas, essa
situação não é tão simples assim, pois agindo à revelia de qualquer controle
institucional, explicando e interferindo de maneira simples nas realidades em que
atuam, as benzedeiras são constantemente discriminadas, tendo como agravante o fato
de serem mulheres. Daí serem acusadas de charlatanismo e feitiçaria. Deve-se conhecer
que das mulheres que exercem atividades que fogem do controle do Estado e da Igreja
não é recente, elas sempre estiveram sob o controle político religioso que, além de
negarem sua legitimidade, tentam desqualificá-las, puni-las e eliminá-las. A esse
respeito, Oliveira (1985, p.18), afirma que,
Se voltarmos os olhos na história, veremos que numa época um pouco
longínqua, situada entre os séculos XVI e XVIII, a igreja entrava no
campo da saúde curando pessoas, através de assistências de caridade e
de rituais de exorcismo. No entanto, pessoas que se acreditavam com
poderes sobrenaturais para fazer curas, adivinhações do passado,
presente ou futuro, e por serem consideradas inferiores – do ponto de
vista econômico e social – e ainda por romperem com as normas, a
ordem e os valores que a igreja defendia, faziam desafios a ela.
Então, qualquer intriga, fuxico ou futrica ligado a sua vida, ao seu
trabalho ou às relações sociais que as vinculavam, qualquer pequeno
ato considerado um deslize moral, que não conseguiam explicar, por
exemplo, era decifrado rapidamente como estando associado à posse
70
de bruxaria, de feitiçaria e de magia, sem mesmo que elas pudessem
se defender.
Ainda hoje ser confundida com uma feiticeira ou macumbeira causa um malestar entre as benzedeiras. Dona Rosa, por exemplo, se incomoda em ser chamada de
macumbeira, confusão esta feita por muitas pessoas por conta da festa de São Sebastião,
santo bastante festejado nos terreiros de Parintins, inclusive por ela, como já
mencionamos, em um barracão no terreno ao lado de sua casa. A herança histórica de
perseguição principalmente às mulheres com poderes mágicos de cura, que levou a
Europa a caça as bruxas, associando tais práticas aos desvios da fé, relacionando seus
poderes com o mal e ao demônio, ainda pode ser percebido na fala de dona Rosa. Ao
fazer a distinção de seu trabalho de benzição com os de feitiçaria, dona Rosa nos diz
que,
Eu não gosto de feitiço e não gosto que ninguém me peça. Pois no
meu caso, eu faço o bem, mas o mal não. Deus me livre, eu não gosto
de fazer isso. E se alguém vier me pedir pra fazer um feitiço eu vou
dizer que não. Porque eu não vou fazer feitiço, eu não vou ganhar
dinheiro por causa disso. Agora, todas as benzição que eu faço eu não
cobro nada, a pessoa tem consciência aí elas me dão dois reais, um
real, assim, só assim. Eu não sou como esses macumbeiros, que são de
vinte reais que cobram. Aliás, vinte não, são de cem reais, de oitenta
reais, de duzentos reais. Não é assim não que deve ser. E eles, os que
procuram os macumbeiros pagam o que é cobrado. (Dona Rosa,
entrevista/2010).
Percebe-se que há uma clara separação feita por dona Rosa entre a benzição e a
feitiçaria. A benzição é uma prática gratuita, uma dádiva de Deus que deve ser
partilhada, ficando explicito o compromisso de ajudar o próximo sem esperar
recompensas. A retribuição financeira do benzido advém de sua consciência espontânea,
diferente dos macumbeiros que dona Rosa relaciona-os com o mal porque cobram por
seus serviços, descaracterizando o comprometimento de ajudar o próximo, não tendo
dessa maneira para ela uma ligação com Deus.
A imagem que comumente se faz de uma pessoa que benze é “Geralmente a de
uma mulher, casada, mãe de alguns filhos, pobre, que conhece rezas, ervas, massagens,
cataplasmas, chás e simpatias, que tenha um quê de mistério, que lide com magia”,
71
Oliveira (1985, p.25). Essa preocupação em não ser reconhecida como benzedeira pode
ser constatada na fala de dona Nazaré quando inquerida se já usou seu dom para fazer o
mal a outrem. Vejamos:
Nunca, graças a Deus que não. E se vierem me pedirem eu não faço.
Pois os espíritos que me deram esse dom não admitem que eu faça
essas coisas não. Eles, os meus espíritos não são desses que fazem o
mal não. Não são espíritos assim da maldade. Não faço e nem to
arrependida de não ter feito, não faço não. Eles, os espíritos, não
admitem. Deve-se fazer o bem né, se for pra fazer o mal não dá.
Porque nós todos somos seres humanos. Não pode, eu não, nem que
me pagassem pra fazer eu não faria isso não. (dona Nazaré,
entrevista/2010).
O compromisso assumido em fazer o bem como forma de reconhecimento do
dom recebido faz com que essas mulheres associem a benzição com a ação concreta do
divino, materializado na bondade de Deus com as pessoas, principalmente com as
crianças. Por isso quando dona Nazaré (entrevista, 2010) nos afirmar que “deve-se
fazer o bem né, se for pra fazer o mal não dá”, ela nos mostra que a benzedeira para não
ser confundida deve honrar o dom recebido e conseqüentemente assumir o
compromisso de praticar o bem, legitimando o seu ofício.
Oliveira, (1985, p.61-62) diz que “a validade da medicina popular está ligada à
eficácia das práticas junto à população e as estratégias de manipulação pelos próprios
profissionais de cura sobre o seu trabalho”. Por isso, “é muito comum estes
profissionais não gostarem do rótulo de curandeiros, macumbeiros”. Assim, “ao
persistirem estes rótulos, eles buscam, contrariamente, meios de resgatar o outro lado da
sua identidade. Aqui os adjetivos de bons, honestos, verdadeiros, eleitos, escolhidos [...]
são utilizados com muita freqüência”. Tanto dona Rosa quanto dona Nazaré e dona
Zenaide, fazem questão de serem reconhecidas como benzedeiras e merecedoras desses
adjetivos.
A mediação entre o benzido e o sagrado desempenhado pelas benzedeiras nos
remete a um discurso que encontra sustentação em dois princípios que interagem entre
si, para dar manutenção ao exercício da benzição. As benzedeiras utilizam-se do
discurso comum caracterizado pela retórica do sagrado em que a ligação direta com os
72
símbolos e ritos cristãos, servem para legitimar e familiarizar suas práticas do
cristianismo.
Associado a este discurso eivado de elementos religiosos, há outro discurso
ligado ao cotidiano, mais particularizado a benzedeiras e benzidos, que serve para
firmar a confiança e reciprocidade. Trata-se das preocupações que ter com a casa, a
família, os filhos, a saúde. Essas singulares preocupações aparentemente menos
expressivas para o conjunto da benzição fazem com que as benzedeiras tenham um
prestígio maior que os curadores na medida em que, segundo Quintana (1999, p.27) “a
doença não pode ser vista como um processo isolado do seu contexto social”. Assim, é
estabelecido um ambiente de reciprocidade do benzido com a benzedeira à medida que
ambos se identificam com as mesmas aflições.
Outro fator importante diretamente ligado a benzedeira diz respeito à relação
direta entre a bondade e o sacrifício feminino. Esses atributos são essenciais para
fortalecer as características da benzedeira perante o benzido. Mesmo tendo sido
desoneradas de várias atividades domésticas por conta da benzição, elas ainda se
ocupam com algumas questões familiares que, de certa maneira, tendem a ser uma
tarefa a mais. Ajudar um parente doente, se dedicar ao outro, além do tempo destinado a
benzição, constrói na benzedeira a imagem de uma vida inteira de doação, criando
assim a representação da mulher bondosa e despojada. Ao se referirem sobre os seus
afazeres em relação aos familiares que tem problemas de saúde, dona Rosa Gomes e
dona Zenaide, fazem o seguinte balanço:
A minha irmã não faz as coisas pra ela porque ela quebrou a perna.
Por isso ela não anda, então ela não pode fazer mais nada. Sou eu
quem ajuda ela. Ela tá doente, tá com vinte anos doente e esse tempo
todo eu ajudo ela. Eu varro, eu faço a comida dela, eu limpo a casa pra
ela, eu faço tudo aí por ela. Eu ajudo a minha irmã porque eu tenho
vontade de ajudar ela mesmo. E também porque não tem quem faça
pra ela e por isso eu faço. São só duas irmãs e um irmão. Mas sou eu
quem mora mais perto dela, e por isso eu tenho que ajudar. Pois eu
moro perto pertinho dela. O outro irmão mora mais longe e eu moro
aqui quase junto dela, eu nunca deixei de ajudar ela. (dona Rosa,
entrevista/2010).
Olha eu me levanto da cama quatro horas da manhã. Quatro horas eu
já estou de pé. Quando são seis horas a minha mesa já está arrumada,
o meu café já está em cima da mesa. Hoje, por exemplo, foi um
73
sacrifício pra mim, porque eu não tinha gás para trabalhar. Mas
mesmo assim, o mingauzinho do doente29 já está pronto. Tudo eu já
procurei ajeitar em casa. Na minha casa o que eu preciso fazer eu
faço, mas não pense que é fácil. (dona Zenaide, entrevista/2010).
Cuidar de uma pessoa doente ou que precise de algum tipo de ajuda não é um
atributo exclusivo das benzedeiras. Mas ao se portarem desta maneira, elas criam nas
pessoas que as procuram uma imagem de alguém muito bondosa, que se sacrifica pelos
outros. Assim, benzição e sacrifício parecem ser atributos ligados ao ofício da
benzedeira, pois Cristo e os santos, evocados nas orações para os diversos males
também se sacrificaram. Para Quintana (1999, p.84) “o fiel por meio do sacrifício, passa
a ser credor frente à divindade, a qual começa a ser vista como portadora de uma dívida
para com ele”. Assim, o sacrifício da mulher benzedeira aparece como uma espécie de
oferenda e obediência ao sagrado, mantendo uma relação de reciprocidade através do
sofrimento.
As mulheres benzedeiras de Parintins ao se relacionarem com sua clientela que
na maioria das vezes são mães em busca da saúde dos filhos, tornam-se agentes de
transformação social, pois mostram através de suas práticas de cura que não estão à
margem da sociedade. Pelo contrário, ao oferecerem uma nova alternativa de
interpretação do mundo elas intervêm no meio em que atuam, contribuindo para a
afirmação da mulher em uma sociedade que ainda é marcada pela predominância
masculina. Daí a importância de seu papel na sociedade parintinense, pois ao se
manifestarem socialmente as benzedeiras modificam as normas e diminuem as
contradições de gênero.
No discurso das benzedeiras e em suas histórias de vida percebemos uma nova
maneira de interpretação da realidade social, movida pela mediação com o divino
contido na prática da benzição.
Essas práticas sofrem fortemente a influencia do
cristianismo que reorganiza as ideias das benzedeiras, sua forma de pensar o mundo
com base nas relações sociais que se estabelece com o sagrado.
29
O “doente” que dona Zenaide se refere é seu marido que após um derrame vive deitado em uma rede e
não consegue andar e nem falar. Ele depende exclusivamente de sua ajuda para fazer suas necessidades
higiênicas e de alimentação. Daí a preocupação de dona Zenaide em deixar a “mesa arrumada” bem cedo
para que sobre mais tempo de cuidar dele, iniciando sua ajuda com “o mingauzinho” dado ao marido.
74
2.3 – Reza e cura, magia ou fé?
Além do reconhecimento a existência do dom da benzição, do carisma e do
aprendizado para se tornar uma benzedeira, faz-se necessário também que haja a
legitimação da comunidade onde ela atua para que possa exercer seu ofício. Assim, é o
povo quem vai definitivamente eleger suas próprias benzedeiras de acordo com suas
necessidades. A legalidade é dada as benzedeiras por aqueles que procuram por seus
serviços, que acreditam que elas sejam detentoras de um poder e conhecimento muitas
vezes inexplicável, mas com a eficácia necessária para deter o mal que lhes afligem. Em
entrevista Leila Figueiredo nos mostra essa relação espontânea de confiança dela na
benzedeira ao afirmar que,
Eu acredito, eu não sei te dizer o porquê, mas quando a minha
filha estava doente eu sempre a levava na benzedeira. Se ela
estava doente que eu via que ela não melhorava, eu logo
pensava em levar na benzedeira e corria pra lá. Ela benzia, e a
minha filha melhorava e pronto. Quando eu chegava lá na
benzedeira que ela benzia, pra mim, a minha filha, já ia ficando
boa. Eu acho que é a fé também né. (Leila Figueiredo,
entrevista/2010).
Para Souza (2002, p.102) “o processo de formação e consolidação da benzedeira
não acontece da noite para o dia, não se dá nem mesmo na descoberta do dom. Esse é
um processo, incluindo a legitimação profissional, que leva anos ou até mesmo décadas,
para que se complete totalmente”. Essas características podem ser percebidas na fala de
dona Nazaré ao relatar que,
Quando eu comecei a benzer, a pegar a minha primeira dismintidura,
eu estava com... Vixi Maria, espera aí que eu estou me lembrando. Eu
estava com onze anos quando comecei a pegar a primeira
dismintidura. Aí depois disso, com o tempo, a benzição foi pegando.
Pois foi dom de nascença né. Mas eu somente comecei a trabalhar
depois que eu me casei. Foi aí que comecei a fazer benzições
juntamente com os meus espíritos. Eu nasci assim, mas somente
75
depois que eu vim aqui pra Parintins30 que comecei a trabalhar, a e
fazer benzições, pois eu não podia mesmo parar. (Dona Nazaré,
entrevista/2010).
Mesmo que o dom tenha se manifestado em um tempo quase esquecido por dona
Nazaré indicado na expressão “vixi Maria”, o seu reconhecimento e identificação não se
deram de imediato, pois ao dizer “Aí depois disso, com o tempo, a benzição foi
pegando”, nos remete ao processo de formação da benzedeira que começa
primeiramente com a atuação e prestígio dentro da família. Ela própria nos informa
como ocorreu esse estágio de aprendizado: “foi numa tia minha que iniciei, eu puxei a
desmintidura duma tia minha, aí pronto, isso foi o começo. Foi a primeira vez, depois eu
levei em frente a benzição, pronto” (dona Nazaré, entrevista/2010).
A partir das experiências em casa, a comunidade começa a descobrir os atributos
da benzedeira, primeiro os vizinhos, depois a rua e bairro, é assim que a sua atividade
deixa de ser oculta e se torna conhecida. É o que diz dona Nazaré: “foram descobrindo
devagar, o povo foi sabendo que eu benzia, aí foi o começo” (dona Nazaré, entrevista
2010). Para que ocorra a legitimação social do ofício da benzição se faz ainda
necessário a identificação de três elementos indispensáveis e indissociáveis, a saber:
O primeiro é a crença da benzedeira na eficácia de seus métodos
[oração, simpatias e remédios] para propiciar a cura de determinados
males a aliviar o „espírito‟; o segundo é a crença e a experiência dos
doentes pelas curas efetivadas, mostrando que acreditam nas
capacidades curativas das benzedeiras; e por fim, o terceiro elemento,
que com base nos dois anteriores, a benzedeira apresenta ao grupo a
prova da eficácia de seus mecanismos – mecanismos, estes, integrados
ao domínio do sobrenatural, do sagrado. (SOUZA, 2002, p. 104).
Para dona Zenaide a eficácia de suas práticas de benzição se justifica pela crença
em Deus, pois ela acredita que recebeu instruções de cura em sonhos. A revelação feita
por um espírito também está presente na fala de dona Nazaré, ao dizer “um espírito
invocava em mim” (entrevista/2010). Neste caso, a confiança nas orações e
procedimentos para a cura e alívio dos enfermos encontra guarida na manifestação do
30
Dona Nazaré nasceu no lugar Aduacá no município de Nhamundá e entre quinze e dezesseis anos veio
para a cidade de Parintins em busca de trabalho após o falecimento de sua mãe.
76
sagrado às benzedeiras. E essa manifestação não pode ser confundida com ato de
bruxaria, pois para Maluf (1993, p.121), a diferença entre a bruxa e a benzedeira
atravessa a questão maniqueísta vejamos:
A bruxa é o poder nefasto, a causa dos infortúnios e mal-estares; a
benzedeira é o poder benéfico, capaz de curar e proteger. Representa o
oposto daquilo que é a bruxa. Enquanto esta [...] possui características
anti-sociais, desordenadora das normas e dos modelos de
comportamento, a benzedeira, ao contrário, é definida socialmente
pelos laços de solidariedade que estabelece com os outros membros da
comunidade.
De uma maneira geral as pessoas que recorrem às benzedeiras para sanarem seus
problemas já sabem que o mal que lhe atormenta só encontra a cura ou alívio na
benzição. Mandar benzer para que se tenha a solução dos males é acreditar na eficácia
do seu trabalho. Leila Figueiredo, ao descrever alguns sintomas de doenças que podem
ser curadas somente por uma benzedeira diz que: “quando a criança chora muito com
dor na barriga e o cocô sai verde, é porque pegou mau-olhado”, e ainda, “quando
alguém chega cansado em casa e olha para o bebê dá quebranto” (entrevista/2010).
As enfermidades que não são identificadas pela medicina tradicional justificam a
necessidade de se saber quais são as doenças de médicos e quais são as de benzedeira,
ou seja, qual é o lugar de cada um. “médico é médico e eu sou eu” (dona Nazaré,
entrevista/2010). Assim, médicos e benzedeiras têm atuações e conhecimentos distintos
nos procedimentos de cura.
Para Lévi-Strauss (1975, p.194) “não há, pois, razão de duvidar da eficácia de
certas práticas mágicas. Mas, vê-se, ao mesmo tempo, que a eficácia da magia implica
na crença da magia”. Assim, a legitimação das benzedeiras depende da confiança na
cura que as mesmas realizam, e quanto mais difícil ou impossível for a cura, mais
prestígio elas ganham. Por esse motivo é muito comum elas relatarem histórias de curas
espetaculares aos que lhe procuram como forma de dar garantia de sua benzição,
fazendo com que o benzido tenha confiança nela e conseqüentemente em suas práticas.
Esse fato é comprovado no relato que dona Zenaide faz questão de fazer, a saber:
77
Eu não estava na minha casa, eu morava num centro31 do interior onde
trabalhava em roçado. Quando completou oito dias que eu estava lá,
resolvi vir para a comunidade. Assim que cheguei na comunidade,
vieram me chamar para ir em uma casa onde havia um doente. Isso era
de manhã bem cedo. Quando eu cheguei na casa que me chamaram,
havia uma criança que estava com oito dias com uma espinha na
garganta. Pois no dia em que eu viajei pro centro, pra frente de
trabalho, nesse dia a criança engoliu a espinha, e agora estava
completando oito dias. A espinha já estava inchando a garganta da
criança. Aí eu me apavorei e disse pra mãe do menino que o trouxesse
pro medico em Parintins. Pois nós morávamos na Barreira do
Andirá32. Foi aí que ela me disse: „será que não vão matar o meu
filho?‟, e eu disse a ela: „não‟. Ela então ela me respondeu: „e agora
que o meu marido saiu o que eu faço?‟. Disse então: „apronta tudo
direitinho que na hora que ele chegar do trabalho à tarde tu baixa pra
levar o menino, eu vou trabalhar na benzição o dia inteiro com o teu
filho. Se Deus me abençoar e eu vencer essa parada contigo, tu não
vais pra Parintins‟. Às duas horas da tarde ela disse assim pra mim:
„poxa Zenaide, pior que está inchando ainda mais a garganta do meu
filho‟. Aí eu falei com essas palavras para ela: „Maria Lucia eu ainda
tenho um cartucho pra bater, mas eu me apavoro por você não
aceitar‟. Ela disse: „o qual é?‟. Então eu respondi: „uma banha que
existe duma cobra‟. Ela perguntou: „que cobra é?‟. Eu falei: „banha de
sucurijú33‟. Foi então que ela disse: „eu tenho‟. Eu lhe perguntei: „tu
aceita o último trabalho que eu vou fazer?‟. E ela respondeu assim:
„seja o que for eu quero salvar o meu filho!‟. Eu disse: „então vai
buscar a banha, faça um chá e trás aqui pra mim. Trás também erva da
terra, e capim santo remédio‟. Ela fez o chá, levou pra mim, e eu
pinguei sete gotinhas da banha no chá e mexi. Depois disse: „dá pra
ele tomar!‟. Ela deu pra ele tomar e depois disso eu falei: „vai buscar
uma toalhinha que eu vou fazer por fora o tratamento, pois o menino
já engoliu a banha‟. Ai ela veio com a toalha e novamente a banha
para que eu friccionasse toda a gargantinha dele e o peitinho dele.
Depois peguei a toalha e trancei no pescoçinho dele, que já estava
mais inchado, e ele, o menino, nem estava com medo que meus
procedimentos dessem errado. Aí eu disse a ela: „antes de viajarem pra
cidade eu venho me despedir de vocês‟. Quando foi umas quatro e
meia, ou umas cinco horas da tarde, eu fui para me despedir como
tinha dito. Quando eu ia passando num quintal aonde tinha umas
mangueiras, eu ouvi aquela voz de menino: „ei! ei! ei!‟. Aí eu
respondi: „ei!‟. E ele me disse: „eu já estou bom, eu estou batendo
bola‟. E eu parei e disse: „espera, tu é aquele menino que estava com a
espinha na garganta e que eu deixei com a toalha no pescoço?‟. Ele
respondeu: „sim, mas já estou curado, a espinha não está mais, eu já
comi banana, eu já comi tudo que mamãe me deu‟. Aí eu fui para a
casa da mãe do menino. Quando eu entrei na casa, a mãe dele me
abraçou e disse: „graças a Deus, agora as minhas contas é com você,
meu marido vai justar a hora que ele chegar‟. Eu não sabia qual eram
as contas que ele ia justar. Aí ela disse: „meu filho comeu bastante
31
O centro em que dona Zenaide se refere é o nome dado a um local afastado da comunidade rural
destinado ao roçado. Assim as pessoas que vão para o centro passam dias nesses locais trabalhando na
lavoura e longe de casa.
32
Comunidade rural pertencente ao município de barreirinha.
33
Também conhecida como sucuri e anaconda, nome científico: Eunectes murinus.
78
comida, ele comeu quase uma palma de banana e comeu dois pedaços
de costela de tambaqui grande, meu filho esta bem!‟. Quando deu sete
horas da noite, um cara bateu na minha porta. Era o pai da criança.
Mandei que entrasse e ele foi logo dizendo: „olhe, eu vim agradecer a
Deus e a senhora pelo que fizeram com o meu filho, mas agora e eu
estou enrascando‟. Eu perguntei a ele: „qual é o enrasque?‟. Ele me
disse: „eu estou sem dinheiro‟. Ele pensava que eu ia cobrar alguma
coisa. Então ele disse assim pra mim: „quanto custa o seu trabalho?‟.
Eu respondi: „nada, o que eu queria fazer pedi a Deus e fiz‟. Ele disse:
„não senhora, eu tenho que pagar!‟. Naquele tempo duzentos cruzeiros
era muito dinheiro. Ele continuou a insistir: „eu lhe dando duzentos
cruzeiros, e lhe dando dois quilos de queijo, a senhora aceita?‟. Então
eu disse a ele: „se você quiser mesmo, pode dar, mas eu não estou
fazendo essa cobrança‟. Ele fez os dois quilos de queijos e trouxe pra
mim. Esse foi o maior valor que eu recebi pela benzição, dois quilos
de queijo e duzentos cruzeiros. (Dona Zenaide, entrevista/2010).
Percebemos na narrativa, fatores relacionados à eficácia da benzição como a
confiança da mãe na benzedeira para salvar a vida de seu filho, hesitando em levá-lo ao
médico mesmo com o aconselhamento da benzedeira: “disse pra mãe do menino que o
trouxesse pro medico em Parintins”. Essa hesitação é justificada pelo medo do
desconhecido, neste caso a medicina oficial. O questionamento “será que não vão matar
o meu filho?”, revela o não reconhecimento da medicina institucional como a única e
legitima detentora do saber, pois para muitas pessoas, o médico é só mais uma
alternativa na busca da cura.
Muitas vezes os médicos são evitados em face dos procedimentos adquiridos na
universidade que é de difícil compreensão para as classes populares. Além disso, existe
uma desqualificação por parte dos médicos das doenças tidas por eles como
provenientes da ignorância popular como o quebranto, a rasgadura ou a ezipla. Nesses
casos “os médicos adotam uma atitude autoritária, acompanhada de representações
negativas que visam a justificá-los”. (LOYOLA, 1984, p. 23).
Muitas mães afirmam serem „ralhadas‟ pelos médicos por terem levado seus
filhos primeiro nas benzedeiras, demorando assim para buscarem ajuda médica
institucional. Essa incompreensão da medicina oficial da representação da doença feita
pelas classes populares agiliza ainda mais o distanciamento entre eles, fazendo com que
o médico seja visto com desconfiança e o último recurso a ser buscado dentre as opções
que se tem. Não é incomum que muitas pessoas dessacralizem a medicina oficial, pois,
79
Recorrem também a diferentes especialistas populares e que considera
a medicina cientifica como uma dentre outras ofertas médicas, mas
não necessariamente a melhor ou a mais legítima. Vivendo à margem
do universo cultural dos médicos, essa clientela não é levada, via de
regra, a reconhecer a especificidade da medicina científica; de fato,
tudo no comportamento dos doentes das classes populares, tanto a
linguagem empregada para descrever suas doenças quando a atitude
em relação aos médicos – consideradas muitas vezes não como um
detentor do saber legítimo mas como um simples provedor de
medicamentos. (LOYOLA, 1984, p.23).
A relação de mediação que a benzedeira tem com o divino para justificar seus
procedimentos, “eu vou trabalhar o dia inteiro com o teu filho. Se Deus me abençoar e
eu vencer essa parada contigo, tu não vai pra Parintins”, faz com que aumente a
confiança na benzedeira. Segundo Quintana (1999, p.50) “a benzedura pode ser
caracterizada como uma atividade principalmente terapêutica, a qual se realiza através
de uma relação dual – cliente e benzedor. Nessa relação, a benzedeira ou o benzedor
exerce um papel de intermediação com o sagrado pelo qual se tenta obter a cura”. A
crença na experiência da benzedeira leva quem a procura a se submeter a todos os
procedimentos necessários, “seja o que for eu quero salvar o meu filho!”, dando total
legitimidade a sua prática.
A confiança na cura da enfermidade é comprovada pela dívida que se cria do
benzido para com a benzedeira, que sente a necessidade de recompensar o bom
resultado obtido “agora as minhas contas é com você”. Entretanto, o compromisso da
gratuidade que legitima o dom recebido como já foi dito, faz com que a benzedeira nada
cobre pelos procedimentos que realiza, “quanto custa o seu trabalho? eu respondi: nada,
o que eu queria fazer pedi a Deus e fiz”. Mesmo recusando o pagamento pelo serviço, o
procedimento da benzedeira se encerra com a aceitação do “agrado”, entendido mais
como forma de retribuição do que pagamento “se você mesmo quiser, pode dar, mas eu
não estou fazendo essa cobrança”. Portanto, retribuir de forma material os serviços da
benzedeira é reconhecer a eficácia de seus procedimentos e legitimar a prática da
benzição.
Rotular a atuação das benzedeiras e hostilizar seus métodos é preconceituoso, é
uma forma de não reconhecimento do saber tradicional. Repudiar ou ter uma visão
fragmentada do fenômeno da benzição é ignorar as diferenças e legitimar as
desigualdades sociais. Se voltarmos nossos olhos somente para a medicina oficial,
estaremos contribuindo para o monopólio do saber erudito, representado pelos médicos
80
que invalidam aquilo que não conseguem explicar. Todavia as benzedeiras continuam
atuando nas periferias de Parintins apesar das opiniões contrárias. Elas têm o
reconhecimento social do seu ofício, tem seu lugar na sociedade distinto do lugar dos
médicos.
Na benzição, o uso de jaculatórias, isto é, “orações curtas, simplificadas,
reduzidas, fervorosas e suplicantes” (OLIVEIRA, 1985, p.59), se misturam com orações
e ritos do catolicismo oficial. É comum no ato de benzer fazer o sinal da cruz e rezar
orações como o Pai Nosso, a Ave-Maria e o Credo no final de cada jaculatória. Existe
uma jaculatória específica para cada enfermidade. Para curar quebranto, ezipla ou
espinha na garganta a benzedeira já sabe qual utilizar. As jaculatórias na maioria das
vezes são recitadas pela benzedeira em voz baixa, incompreensível para o benzido, “ela
faz uma oração que não dá pra entender, só a vejo mexendo a boca” (Leila Figueiredo,
entrevista/2010).
Gomes e Pereira (2004), em pesquisa realizada com benzedeiras em Minas
Gerais afirmam que muitas benzedeiras não revelaram suas orações, mantendo o
segredo da benzição com medo que a mesma seja invalidada caso a oração seja relevada
a alguém que não seja um iniciado. Outras hesitam em falar no primeiro momento
quando perguntadas, concordando posteriormente em dizê-las, e há aquelas que falam
espontaneamente sem o medo. Em nossas entrevistas, tivemos diferentes reações das
benzedeiras diante da possibilidade de falarem suas orações. Enquanto dona Zenaide as
pronunciou sem hesitação, dona Rosa hesitou de início, mas concordou em falar
posteriormente e dona Nazaré não as revelou. Apresentamos a seguir algumas
jaculatórias com suas especificidades, coletadas no processo desta pesquisa, a saber:
JACULATÓRIAS
Para benzer quebranto
Glorioso São Raimundo
Parceiro de Nossa senhora
Com sua oração tão forte
Se tem capim de murchar
Se tem água de secar
Se tem pedra de lascar
Se tem quebranto
81
Mal – olhado
Dor de cabeça
Nessa criança (ou outra pessoa)
Com o poder de Deus
E dos anjos acabará.
Para benzer espinha na garganta
Em nome de Nosso senhor Jesus Cristo
Enviai vosso espírito de luz
Sobre o corpo dessa criatura
Que está com uma espinha na garganta
Homem bom e mulher mau
Casa velha e esteira rôta
São Braz disse: tirai e arrancai
Essa espinha que está na tua garganta
Se vires pela tua boca
Subindo ou descendo
Eu to pedindo
Nessas palavras de Deus
Sobe espinha ou então desce
Com três palavras de Deus
E três da Virgem Maria.
Para benzer ezipla
Corte ezipla
Com o poder de Deus
E da Virgem Maria
Corta rosa branca
Corta rosa preta
Corta rosa vermelha
Corta rosa esponjosa
Corta e recorta
Com o poder de Deus
E da Virgem Maria
Curai o Pai, o Filho e o Espírito santo.
82
Para benzer dores em geral
Pedro e Jesus andando
Pelo caminho enxergaram um fogo
Divino mestre que fogo é aquele?
Fogo duma dor que se encontra
Sobre o corpo (desta mulher ou deste homem)
Com que se tira a dor?
Com que se afasta a dor?
Com que se expulsa a dor?
Com três palavras de Deus
E três da Virgem Maria.
Senhor Jesus
Eu confio em vós
És o Salvador
Salve o corpo desta pessoa
Que ta com dor
Arranca a dor
Expulsa a dor
Com três palavras de Deus
E três da Virgem Maria
Nossa senhora do Desterro
Desterrai essa doença
E para essa dor brava
Nossa Senhora do Bom Remédio
Traga um bom remédio
Que eu possa gastar com a dor
Deste (homem ou desta mulher).
Para cessar a chuva
Barbarazinha pequenina
Do vestido se cansou
Encontrou com Jesus Cristo
Jesus Cristo perguntou:
Barbara aonde tu vai?
Vou anunciar ao Senhor
Botai essa tempestade
83
Que ta no céu bem armada
Lá pro monte maninho
Aonde não corre nem pão
Nem no braço do menino.
Para desfazer desavenças
Amansa-te leão bravo
Finca teu dente no chão
Que eu estou armado
Com a espada de Salomão
Eu (pessoa envolvida)
Estou em perigo
Eu quero paz
Paz, paz, paz.
Para proteção e defesa
Peguei o meu cavalo
Segui o meu caminho
Cheguei na porta
Na porta de Jesus Cristo
Pá quem bate?
Jesus Cristo
Quem tiver arma para ti
Ficarão em folha
Escorre água pelo cano
Assim como escorreu
O leite da Virgem
Maria Santíssima
Na boca de Jesus Cristo.
Para por fim a desentendimentos
(diz-se o nome com quem se desentendeu)
São Amâncio que te amanse
Que tu não coma
Não beba
Não durma
Enquanto (nome com quem se desentendeu)
Não vier falar com. (nome da pessoa que pediu
a benção)
84
Para encontrar coisas perdidas ou
roubadas
Havia Santo Antonio de Lisboa
Que foi ornado em França
Visitado em Roma
Pelo hábito que vestiste
Pela missa nova que disseste
Em casa de Santa Paula
Levanta os peixinhos do mar
Com vossa divina pregação
Antonio Santo Divino
Assim como livrou vossos país
Com vossa santa assistência
Eu quero que ache (diz-se o nome do objeto)
De (fala-se o nome do dono).
Fonte: pesquisa de campo/2010.
Diante de problemas existentes na saúde pública do Brasil, grande parte da
população não tem acesso a tratamentos médicos de qualidade. As benzedeiras surgem
para compensar parte desta deficiência, pois sendo herdeiras de um conhecimento
associado ao sagrado que é o poder curativo, elas tendem a influenciar a ordem social na
medida em que curam e amenizam enfermidades com suas benzições. Elas constroem
um patrimônio simbólico a partir da convicção de cura com a palavra empregada que é
validada pelo meio social. A eficácia da benzição tem significado na medida em que
benzidos e benzedeiras tem fé nos procedimentos realizados. A benzição ainda é um
fenômeno muito forte com espaço e clientela definida na sociedade brasileira, como em
Parintins, onde as benzedeiras são bem procuradas.
85
CAPÍTULO III
AS BENZEDEIRAS DE PARINTINS
“Todas as pessoas que lidam com doenças e curas
da população, ao prestarem seus serviços de
saúde, reproduzem o seu modo de viver. Recriam
um modo de oferecer respostas às aflições e
sofrimentos”.
Elda Rizzo de Oliveira (O que é medicina
popular).
3.1 – O sagrado e a simbologia na benzedura.
Na benzição não há separação entre corpo e espírito, havendo dessa forma uma
ligação direta entre o homem e o sagrado. Para cada enfermidade sempre haverá uma
jaculatória específica, em que o sagrado atuará combatendo os males que afligem o
corpo e a alma. Para Pereira e Gomes (2002, p.143) “as benzedeiras e os benzedores são
os detentores da capacidade especial para manipular as forças do sagrado. O domínio
dessas forças não se dá sem alguma forma de iniciação e sem a aceitação social”. Na
busca pela saúde por intermédio das benzedeiras homens e mulheres encontram o alívio
e cura para as suas dores, acreditando assim, no poder sacramentado da benzição. A
religiosidade é percebida a partir da dinâmica do sagrado contido na relação religiosa
que envolve a benzedura através do chamado de Deus para o ofício da benzição. É o
que diz uma de nossas entrevistadas:
Eu acho que é um chamado de Deus, porque eu benzo com o nome de
Deus. A gente benze com o nome de Deus. Tudo o que a gente faz na
benzição é com o nome de Deus. E eu aceitei ser uma benzedeira
porque a benzição chama o nome de Deus, tudo quanto é oração que
eu faço, eu falo o nome de Deus. Eu sei que ele mesmo me escolheu
porque eu acertei a benzer tudo né. Pois os meus irmãos nenhum deles
benze, senão só eu mesma. (dona Rosa, entrevista/2010).
86
Reconhecer o dom da benzedeira é legitimar o ofício dado a ela por Deus do
qual não deve se esquivar. É a significação sagrada da medicina popular que envolve o
conhecimento de plantas e ervas na cura dos males, pois conforme Quintana (1999,
p.55) “tanto as rezas como os chás somente adquirem um sentido, e, portanto, se tronam
eficazes, quando inseridos no contexto do ritual. Fora dele, perde todo o seu poder, pois
deixam de ser significantes e, então não vão poder operar mudanças no discurso do
paciente”. E mesmo que esse ofício exija algum sacrifício, para as benzedeiras a prática
da benzição é interpretada como uma dádiva, que tem suas obrigações. Daí a
conformidade com o sacrifício e a gratuidade na benzição, como já foi falado, pois “o
dom para a benzedura não torna a benzedeira „acima ou à margem‟ das outras pessoas,
mas lhe impõe uma sagrada missão: a de praticar a benzição a quem procura e
necessita” (SOUZA, 2002, p.100).
A missão das benzedeiras também é confirmada por aqueles que procuram a
benzição como Leila Figueiredo, ao nos dizer que: “a partir do momento que a
benzedeira começa a rezar, ela já assumiu também a sua missão” (entrevista/2010), isto
confirma o caráter sagrado e o compromisso firmado, do qual a benzedeira não deve
fugir. Para Quintana (1999, p.81) “o poder, a força não estão, pois, na benzedeira, nem
numa outra pessoa determinada, nem numa habilidade aprendida; trata-se de algo de
que ela poderá usufruir enquanto cumprir certos requisitos”.
A sacralização da benzição pode ser entendida pelo dom recebido que estabelece
laço com o divino já mencionado, associando a disponibilidade e dedicação que a
benzedeira deve ter com os que procuram, e esta disponibilidade é aceita quando dona
Zenaide deixa claro que: “a minha profissão é trabalhar em casa no atendimento aos
necessitados” (entrevista/2010). Para Quintana (1999, p.81) “ao assumir a benzedeira a
obrigação de ajudar os necessitados através da benzedura, a entidade que lhe outorgou o
dom fica, por sua vez, obrigada a ajudá-la no desempenho de suas tarefas”. Assim, a
benzedeira tem na sua prática o auxílio do divino que é reconhecido pela comunidade
que vê nela uma pessoa especial.
A benzição é mais uma característica da religiosidade popular, pois a cura é a
ação do divino invocada pela benzedeira através da palavra (oração), sendo esta
religiosidade partilhada por muitas pessoas que acreditam no fenômeno que a primeira
vista parece pertencer as classes subalternizadas que não tiveram acesso a educação e
87
saúde, ainda que nesta seja mais recorrente. Isto é pouco verdadeiro na medida em que
dona Zenaide afirma ser procurada por todas as classes, “mas o rico já tem procurado
também a benzição, essas pessoas que tem condições já tem me procurado”
(entrevista/2010). É o que confirma também dona Rosa, outra de nossa entrevistada:
Até rico já veio aqui comigo. Veio um homem das bandas de lá
(apontando para o centro da cidade), um homem grande que
veio numa moto grande, com a mulher e com duas filhas gêmeas
aqui comigo, lá da frente, lá do centro da cidade e ele veio aqui
comigo. Ele pediu para eu benzer e eu benzi. Estavam todas as
duas crianças de quebranto, eram gêmeas e eu as benzi como ele
pediu. (dona Rosa, entrevista/2010).
Minayo (1994), ao discutir a representação da cura popular, também afirma que
a busca da cura, através de meios sobrenaturais, não é privilégio de nenhuma classe
social no Brasil. Ela permeia todos os estratos de nossa sociedade, embora cada estrato
tenha sua forma peculiar de dar significado às suas experiências e práticas. Por isso que
em Parintins é comum as benzedeiras relatarem a procura de seus serviços por classes
mais abastadas.
Então crer no divino não é exclusividade das classes populares da sociedade que
parecem buscar na divindade suprir suas privações que na maioria das vezes está
relacionado com a omissão do Estado, Para Pereira e Gomes (2002, p.145) “o sagrado
da cultura popular – tantas vezes menosprezado como superstição – é procurado, no
entanto, como recurso de cura quando parecem esgotadas as possibilidades de
tratamentos advindos da medicina científica”.
Acreditar nas benzedeiras independe de comprovação da veracidade e eficácia
da benzição, tudo é uma questão de confiança e fé, pois, para Leila Figueiredo “sem a fé
não vai ter valor o que tá acontecendo ali” e complementa “se ele [quem precisa] não
tiver fé ele não vem à benzedeira né” (entrevista/2010). Assim, “as benzições são a
prova da luta do homem contra suas próprias limitações” (GOMES e PEREIRA, 2004,
p.19), pois os benzidos acreditam que as benzedeiras são herdeiras de um conhecimento
dado pelo sagrado para desfazer a desarmonia causada pela doença ou mal que se
instalou no corpo do benzido.
88
A certeza da cura dos males em que em muitos casos se busca primeiro a via
tradicional, nos revela a confiança que se tem por parte dos que procuram as
benzedeiras e vêem nelas a expressão do sagrado que é reforçado pelos em espaços
criados por elas, as benzedeiras, e consagrados aos santos de sua devoção, onde
geralmente realizam seus trabalhos de cura, “eu benzo aqui no barracão de São Lázaro,
aqui ele me ajuda. Nesse barracão aqui eu trabalho um pouco com ele” (dona Zenaide,
entrevista/2010). Assim, “a casa é o lugar mais expressivos dos espaços fechados: a
consagração transforma quartos, salas e quintais em altares onde os rituais são
realizados” (PEREIRA e GOMES, 2002, p.151).
As explicações e tratamentos realizados pelas benzedeiras estão impregnados de
simbolismo e sua complexidade vai além de crendices ou superstições, revelando um
ritual rico em procedimentos que são seguidos tanto pela benzedeira quanto pelo
benzido. Para Gomes e Pereira (2004, p.60), “há toda uma simbologia presente nas
fórmulas ou no processo ritual”. Como na benzição do quebranto descrito por Leila
Figueiredo que sempre buscou ajuda na benzedeira. Ou na benzição da espinha na
garganta quando é colocada uma espinha de peixe no cabelo da benzedeira e três
debaixo de um prato que é rodado para a direita, ao mesmo tempo em que a benzedeira
reza na garganta do engasgado para que a espinha saia. Ao explicarem essas benzições,
Leila Figueiredo e dona Rosa elaboram o seguinte quadro:
Eu benzo assim, se ta com a espinha na garganta, eu meto outra
espinha no cabelo e mais três debaixo do prato. Aí eu rezo, eu rezo
minha oração na cabeça e na garganta de quem engoliu a espinha pra
ela descer. Eu rezo aqui na cabeça, e rezo também na garganta pra
descer a espinha. A gente também roda o prato, vai benzendo e de vez
em quando rodamos o prato. Três vezes o prato é rodado. Metermos a
espinha no cabelo e ficamos rodando o prato. A gente benze a cabeça
e aqui na estrela34 da garganta pra descer a espinha, e ela desce em
nome de Jesus. E se não descer eu benzo e repito de novo. (dona Rosa,
entrevista/2010).
No quebranto, funciona assim: se a criança não ficar boa no primeiro
dia que é benzida. Ou seja, no primeiro dia se foi benzida e a criança
não ficou boa, ela volta no segundo dia, e se novamente não ficar boa,
a benzição vai até o terceiro dia, aí a criança fica boa realmente. Eu
tinha muita fé pois quando a minha filha estava pequena eu ficava
34
Para dona Rosa o corpo humano é comparado a uma estrela de cinco pontas: a cabeça, os braços e as
pernas formam essas pontas.
89
desesperada por que não sabia como tratar, então eu corria pra
benzedeira benzer. (Leila Figueiredo/entrevista 2010).
Rosa Gomes, ao nos falar como Jesus deixou na terra a oração para tirar espinha
de peixe da garganta, deixa transparecer em seu relato traços da tradição cristã como a
caridade, o milagre, a recompensa pelas benevolências, o papel da mulher. A nossa
entrevistada chama a atenção para o fato do compromisso que a benzedeira tem com o
seu oficio, acreditando que o ofício é uma dádiva recebida diretamente de Deus e a ela
confiada. Em seu relato ela nos diz o seguinte:
Naquele tempo andavam na terra Jesus e Pedro. Jesus andava na terra
e ele convidou Pedro: „Pedro, vamos lá em baixo, na terra?‟ E Pedro
respondeu: „vamos‟. Saíram, quando chegou numa casa, Jesus disse:
„Pedro já é noite, vamos pedir agasalho aqui nesta casa, aqui na casa
deste rico?‟. Aí Jesus pediu agasalho e o dono da casa disse: „Olha nós
não podemos, nós não podemos dar agasalho porque tem muitas ervas
lá na sala‟. Então Jesus disse: „vamos embora Pedro‟. Lá mais em
frente, numa outra casa ele disse assim: „vamos naquela casa de
pobre?‟. Chegando lá ele pediu licença. Aí a mulher que estava na
casa disse assim: „nós não temos almoço, nós só temos essas batatas‟.
As batatas estavam cozidas e eles comeram, comeram da batata Jesus
e Pedro. Aí chegou o dono da casa com peixe e comeram também.
Jesus benzeu a casa durante a noite. Quando amanheceu o dia era uma
casa linda, linda, mais muito linda mesmo. Aí os outros ficaram com
inveja. Principalmente aquele que Jesus pediu hospedagem lá na
primeira casa, ele ficou com inveja e disse: „como que era uma cabana
velha e agora é uma casa linda?‟ Aí foram embora dali, Jesus e Pedro
foram embora. Neste instante a mulher do homem rico engole uma
espinha, aquele que era mulher do dono da primeira casa. Então o
marido dela foi embora à procura de Jesus e Pedro. Ele e seus
empregados pegaram os cavalos e se mandaram atrás de Jesus e Pedro
que já iam muito longe mesmo, já estavam assim muito longe. Aí não
demoraram eles chegaram lá com Jesus e Pedro, e o homem disse: „Ei,
meu senhor, espera aí meu senhor, minha esposa engoliu uma
90
espinha‟. Aí Jesus disse assim: „Vamos voltar Pedro‟, o homem tinha
dito que a esposa dele tinha engolido uma espinha muito grande, e
estava muito enrascada35. Aí todos voltaram de cavalo. Chegando lá,
Jesus disse benzendo: „Casa velha esteira rôta, homem bom mulher
ruim, espinha por onde tu entraste por aí tu tens que sair‟. Depois
Jesus disse a mulher: „pode fazer força‟. E a espinha foi embora. Por
que eles, Jesus e Pedro, foram lá na primeira casa e os donos não
deram hospedagem, o homem queria dar, mais a mulher do dono da
casa não queria que Jesus e Pedro ficassem lá. Assim que é a benzição
da espinha. (dona Rosa, entrevista/2009).
A volta circular dada no prato para o lado direito com a espinha de peixe no seu
interior nos remete à simbologia do círculo. Para Gomes e Pereira (2004, p.61), “o
círculo é a representação, por excelência, da ausência de divisão ou distinção: é a
totalidade indivisa”. É a circularidade, a volta ao ponto de partida, o retorno da espinha
que está na garganta do benzido. “espinha por onde tu entraste por aí tu tens que sair”.
O número três está sempre presente nos ritos de benzição, o número é
encontrado nas orações como de dona Zenaide, “expulsa a dor com três palavras de
Deus e três da virgem Maria36”. Observe-se que o número três está presente em todos os
procedimentos da benzedeira, tal como podemos perceber na fala de Leila Figueiredo “a
benzição vai até o terceiro dia”, e nos procedimentos, “eu meto outra espinha no cabelo
e mais três debaixo do prato”. O três é um número cabalístico-sagrado, pois a bíblia está
repleta de acontecimentos que expressam esse número: os sonhos interpretados por José
no Egito falavam de três dias representados por três cachos de uvas e três pães; Daniel
orava três vezes ao dia; Jonas ficou três dias no ventre do grande peixe; Pedro negou
Cristo por três vezes; Jesus ressuscitou no terceiro dia após três anos de pregação; o
apocalipse fala de três espíritos imundos saindo da boca de três personagens: o dragão, a
besta e o falso profeta; Lúcifer levou consigo a terça parte dos anjos.
O número três também representa o complemento: A Santíssima Trindade é
composta do Pai, Filho e Espírito Santo, assim como para os que acreditam, o homem é
corpo, alma e espírito. A teologia reconhece que o número três é o símbolo de perfeição
assim como o número sete e o número doze. Indica as coisas perfeitas do universo
35
36
Alguém que se encontra em perigo ou apuros e precisando de ajuda.
Rever p.82.
91
regido pelas forças do criador. A respeito desta simbologia numérica, Bethencourt
(2004, p.136), nos diz que,
Se o espaço e o tempo estabelecem as condições de realização dos
ritos mágicos, a simbologia do número estrutura e consagra grande
parte dos ritos manuais e dos ritos orais.
Em primeiro lugar aparece-nos o número três, que simboliza a
superação da rivalidade latente contida no número dois, exprime a
síntese, a ordem espiritual em Deus, no cosmo e no homem. O Deus
trinitário cristão, que surge como o referente mais próximo das
práticas recenseadas, simboliza justamente a perfeição da unidade
divina.
Em todas as benzições é feito o sinal da cruz geralmente na cabeça e no corpo.
Quando o benzido tem outra enfermidade como nos casos de ezipla e cobreiro, a cruz é
gesticulada com um galho de vassourinha para expulsar a enfermidade. A benzição
varia de acordo com a benzedeira, mas no contexto geral, seguem o mesmo trajeto
dividido em três momentos: “A) O diálogo; B) A benção; C) As prescrições”
(QUINTANA, 1999, p.56). Na costura da rasgadura podemos perceber que o ponto
dado no pano que imita a carne rasgada é dado em forma de cruz. Dona Zenaide que ao
benzer também faz o sinal da cruz diz o seguinte: “eu benzo rezando na cabeça das
pessoas, tirando a enfermidade, pedindo a Deus pra tirar aquela dor daquele benzido. E
se for na mente, se for no coração, eu expulso tudinho com as palavras de Deus”
(entrevista/2010). Dona Rosa ao narrar a benzição do quebranto revela: “eu faço uma
cruz assim. Uma cruz que a gente faz na cabeça da criança, na cabeça da criança e reza
a oração do quebranto” (entrevista/2010).
A cruz foi instrumento usado no suplício de Cristo, pois “crucificaram Jesus com
outros dois homens, um de cada lado e Jesus no meio” (João, 19:18),
é para o
cristianismo a indicação do caminho para a salvação que exige sacrifícios, “se alguém
quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e me siga” (Lucas,
9:23). As benzedeiras unidas a Cristo pelo sacrifício realizam o sinal da cruz no
benzido, e em algumas ocasiões em si próprias. Para Souza (2002, p.113), “na
mentalidade popular a cruz está revestida de toda uma simbologia ligada principalmente
à luta do bem contra o mal, pois se acredita que ela tem poderes de afugentar os seres
diabólicos”. Compreendemos, portanto, o gesto de expulsão da doença quando a
92
benzedeira gesticula a cruz com o ramo de vassourinha na enfermidade. Gomes e
Pereira (2004, p.63), lembram que,
O simbolismo da cruz – que se vê em inscrições do século XV a.C. –
foi amplamente enriquecido no cristianismo, quando a história do rabi
da Galiléia culminou com a morte do Deus na cruz. Símbolo
quartenário divinizado, a cruz é o sofrimento e a redenção,
representando a vitória da morte sobre a vida. A perseguição tornou-se
o sinal do cristão, que se protege contra o mal contra o mal cruzando a
testa, a boca e o peito.
O saber tradicional se completa com a simbologia existente na relação entre a
benzedeira, os objetos e rituais da benzição. Além disso, percebemos o simbolismo em
alguns procedimentos como de dona Rosa quando assegura que conhece a eficácia de
suas orações contra temporais e tempestades chegando a afirmar que quando é de seu
interesse que esses fenômenos da natureza não aconteçam, invoca em suas orações o seu
desejo, retardando ou mudando o tempo, se assemelhando dessa forma com a pajelança
indígena. Temos aí uma semelhança das benzedeiras com o papel dos antigos pajés da
região que, além de benzerem, realizavam outras atividades místicas. Como é o caso de
dona Nazaré que reza o responso, um procedimento caracterizado pela oração para
recuperar coisas perdidas ou saber de algo oculto na qual se obtém a resposta através de
sonhos.
O uso de plantas é um componente constante na benzição, como, por exemplo,
“corta rosa branca; corta rosa preta; corta rosa vermelha, corta rosa esponjosa37”. As
plantas estão também presentes nos procedimentos que levam o emprego de ramos na
intermediação da cura. Segundo Gomes e Pereira (2004), as plantas têm o poder de
energizar o homem ajudando na restauração de seu equilíbrio. Elas podem também ser
depositárias das energias negativas recebida do benzido comprovando assim a
enfermidade. “A cura do quebranto é assim, a benzedeira pega um pezinho de
vassourinha, vassourinha é uma plantinha que nasce aí no quintal. E começa a benzer a
criança, se aquele pezinho murchar, é porque ela estava com quebranto” (Leila
Figueiredo, entrevista/2010).
37
Rever p.81.
93
As plantas também estão presentes na preparação de chás, banhos e ungüentos:
“eu passo chás, chá de cidreira, chá de folha de capim cheiroso. Quando é para doença
mais grave eu passo chá de arruda e dou com copaíba, é assim” (dona Nazaré,
entrevista/2010). “As plantas por si só têm a capacidade de afugentar os males que
rodeiam os homens, os animais [em especial os domésticos] e as próprias plantas, como:
alho, arruda, pinhão roxo, entre outros” (SOUZA, 2002, p.115). O uso de vegetais como
amuletos de proteção do corpo também é comum entre as benzedeiras de Parintins,
como diz uma das mulheres ouvidas nesta pesquisa: “a gente também benze com alho,
benze a criança, a pessoa, a gente faz assim: bate o alho e fica benzendo a pessoa” (dona
Nazaré, entrevista/2010). No cotidiano amazônico é comum o emprego de ervas
medicinal pelas classes populares. Araújo identificou na região uma grande variedade
de plantas medicinais e sua utilização pelos povos tradicionais. Como veremos a seguir:
ERVAS MEDICINAIS UTILIZADAS NA REGIÃO
Nome popular
Nome científico
Propriedades terapêuticas
Abacate
Perseapersea
Diurético, Combate infecções
hepáticas e renais
Abutua
Chondodedronplatyllum
Afecções renais, inflamações da
bexiga, diurético.
Alecrim
Rosmarinusofficinalis
Esgotamento físico, mental e
pressão arterial.
Alfavaca cravo
Ocimumgratissimum
Bronquites, tosse, antiespasmódico e
antidepressivo.
Alfavaca
Ocimumbasilicum
cheirosa
Alfazema
Digestivo, hepático, gripes,
resfriados
Lvandulaangustifolia
Estimulante, antiespasmódico e
hipnagogo
Algodoeiro-roxo
Gossypium arboreum
Hemorragia pós-parto e
antiinflamatório
Alho
Alium sativim
Pressão alta, resfriado, gazes.
Amor crescido
Portulaca pillosa L.
Melena e fortalecimento do cabelo
Portulacaceae
94
Amor do campo
Meibonia triflora
Antiinflamatório, anti-séptico,
infecção intestinal.
Andiroba
Carapa guaianesis Aubl.
Antiinflamatório
Arruda
Ruta graveolens e
Combate sarnas, piolho e regras
Rutahortenses
suprimidas.
Rollinia silvatica (St. Hill)
Combate escabiose e piolho
Araticum
Mart
Breu branco
Protium heptaphyllum
Defumação e massagem
Boldo
Pneumus boldus.
Derrame, fígado e estomago.
Camomila
Matricariachamomila
Antiflatulento, antiespasmódico,
cefaléias.
Canarana
Costusspicatus
Diurético, depurativo, inflamações
renais.
Castanha da
Bertholletia
Fortalecimento da Imunidade
Cymbopogumcitratus
Aromático, disgetivo, carminativo e
Amazônia
Capim cheiroso
calmante suave
Catinga de
Aeolantus suaveolens
mulata
Catuaba
Antiepilético, anticonvulsiva,
estimulante helmíntica
Erythroxyloncatuaba
Tônico, estimulante, afrodisíaco e
impotência.
Cipó-pucá
Cissus Sycioides
Diabetes, hipotensor, hidropsia
Cipo-tuira
Calycobolus ferrugineus
Antiinflamatório das vias urinárias
Copaíba
Copaifera multijuga
Antiinflamatório e cicatrizante
Carapanauba
Aspidosperna carapanauba
Anticoncepcional e funções
digestivas.
Caa-peba
Piper marginatum
Espasmos
Crajiru
Arrabidaea chica
Doenças gerais da pele e anemia
Cumaru
Dipteryx odorata
Dor de ouvido e reumátismo
Erva cidreira
Lippiaalba
Analgésica e espasmolítica
Erva doce
Pimpinella anisium
Afecções brônquicas e estomáquicas
Eucalipto
Eucalyptus citriadora
Vias respiratórias, gripes e
resfriados
95
Erva de jabotí
Peperonia pellucida L.
Funções digestivas e diabéticas
Piperaceae
Escada-do-jabuti Bauhinia rutilans
Artrite e reumatismo
Envirataia
Xilopia Anonaceae
Contra reumatismo
Goiabeira
Psisium guajava
Diarréia
Mangarataia
Zingiber zingiber
Cólicas e estomáquico
Guaraná
Paullinia cupana
Esgotamento nervoso
Hortelã
Menta piperita
Atonia digestiva e espasmos gastrointestinais
Ipê roxo
Tabebuiaavelhanedae
Antiinflamatório e anticancerígeno
Jambú
Spilanthes oleracea
Bócio, depurativo, gengivite
Jatobá
Hymenasastilbocarpa
Bronquite, debilidades e vias
urinárias
Jucá
Caesalpinia férrea mart.
Restauração de lesão pulmonar
Jurubeba
Solanum paniculatum
Problemas digestivos e renais
Laranjeira
Citrusaurantium
Gastralgias, dispepsias e
flatulências, calmante leve
Língua de vaca
Chaptalianotaus
Pele, herpes, lavagem de feridas
Lacre
Vismia cayennensis Choisy
Boca, garganta e pano branco
Malvarisco
Plectrantusambornicus
Expectorante
Manjerona
Glechonspathula
Estomáquico e expectorante
Maracujá
Passifloraalata
Calmante, histerias, neuroses e
insônia
Mamão
Carica papaya
Intestino preso
Marupá
Simarouba amara Aubl.
Diarréia, dor de estômago
Mururé
Brosimum
Artrite
Mangerioba
Cássia occidentalis
Malária
Mastruz
Chenopodium ambrosioides
Contra afecções das vias
respiratórias.
Mata pasto
Cássia sericea Swrtz.
Contra prisão de ventre, calmante e
micose.
Melão de São
Caetano
Momordica charantia
Antiinflamatório e vermífugo.
96
Manjericão
Ocimum basilicum.
Banhos e combate o resfriado
Pata de vaca
Bauhinia
Anti-diabético, cálculos renais e
forficata/Bauhiniamonandoa
diurético
Paracari ou
Pentaclethra filamentosa
Mordida de cobra.
pracaxi
Benth
Pau ferro
Cesalpineaferrea
Depurativo, anti-diabético e
adstringente
Pau rosa
Aniba rosaeodora Ducke
Germicida
Pedra ume kaa
Myrciashaerocarpa
Adstringente e anti-diabético
Pega pinto
Boerhavia hirsuta Willd
Uretrite, blenorragia entre outras.
Pimenta do
Piper nigrum
Estimulante forte, cãibras de
reino
estômago.
Pitanga
Eugeniauniflora
Adstringente, febre, ansiedade
Pião branco
Jathophas curcas
Infecções gerais e antiinflamatórias
Pião roxo
Jathophas gossipiifolia
Banhos, benzeções
Preciosa
Aniba canelilla L.
Tranqüilizantes.
Quebra pedra
Phyllantus niruri
Afecções das vias renais, urinárias e
biliares
Quina da mata
Quassia amara
Problemas digestivos
Sabugueiro
Sambucus australis
Diaforético, diurético e depurativo
Sara tudo
Byrsonima Malpighiaceae
Gastrite e inflamações
Sucupira
Bowdichea virgilloides
Tônico, depurativo e antidiabético
Sacaca
Cróton cajucara Benth.
Problemas digestivos e micoses
Sapucainha
Carptroche brasiliensis Endl.
Hanseníase
Salva de marajó
Hyptis crenata Pohl ex Benth
Problemas digestivos e calmante
Sucuúba
Himatanthus sucuuba
Inibidora do câncer
Taperebá
Spondias mombin
Herpes e viroses
Unha de gato
Uncaria tomentosa
Fortalecimento da imunidade
Umbaúba
Cecropiahololeuca
Hipertensão e ativador das funções
cardíacas.
Urtiga
Urticaurens
Anti-Hemorrágico, depurativa e
antiinflamatória
Urucum
Bixa oreleana
Digestivo, cardite, endocardite e
97
pericardite
Vassourinha
Scoparia dulcis
Hemorróidas
Virola
Virola surinamensis Warb.
Doenças gerais da pele.
Fonte: Maria de Fátima Guedes de Araújo.
Várias plantas têm uso específico na benzição, pois de acordo com as
benzedeiras existe uma planta a ser usada em cada procedimento, ajudando desta
maneira na construção do simbolismo e na caracterização da benção. Percebermos nas
casas das benzedeiras uma variedade de plantas usadas na benzição, as quais são
cultivadas no jardim da residência, em latas que enfeitam as paredes da casa ou no
quintal, próximo a cozinha. Conservar estas plantas por perto se faz necessário, pois as
plantas são instrumento de neutralização do mal (GOMES e PEREIRA, 2004). Os
vários procedimentos em que exigem o uso de uma planta específica podem ser notados
na explicação de dona Rosa ao dizer que,
Pra benzer quebranto é assim, é vassourinha, pra benzer ezipla é a
folha de pião roxo, ou então a faca pra cortar ela assim, a gente benze
cortando. Pra cobrelo é a mesma coisa, vassourinha, que também é
usada na criança que tá muito doente de quebranto, com o cocô muito
verdinho. A gente benze com a palha da beira da casa, mas somente
com a beira da casa da gente. Só se Benze se for com a palha da beira
da casa da gente. (dona Rosa, entrevista/2010).
Nesta descrição notamos um componente novo fruto da dinâmica da benzição
que incorporou elementos regionais e do cotidiano das populações tradicionais da
Amazônia, “A gente benze com a palha da beira da casa”, a palha que dona Rosa se
referiu em sua fala é palha de curuá38, muito usada ainda hoje para fazer a cobertura das
casas em Parintins. Nesse tipo de benzição é retirada uma folha de palha que cobre o
canto direito da casa da benzedeira, “a beira da casa da gente”, com o qual se benze a
criança com sinal da cruz e fazendo as orações específicas. Ao término da benzição a
folha da palha de curuá que foi utilizada, é lançada pela benzedeira em direção ao pôrdo-sol. Alem das folhas, as cascas de árvores também estão presentes no preparo de
38
É o nome popular de origem indígena de uma palmeira da família das arecácias e suas folhas são
bastante utilizadas pelas populações tradicionais.
98
banhos prescritos pelas benzedeiras de acordo com cada necessidade. É o que nos
mostra o quadro a seguir:
TIPOS DE BANHOS E SUAS PRESCRIÇÕES
Banho de casca de Taperebá
Convém para lavar a genitália feminina
para que não perca sua elasticidade.
Banho de casca de manaiara
Tomado para sarar coceiras e irritações
cutâneas.
Banho de casca de carapanaúba
Serve
para
banhar
pessoas
feridas
ajudando na cicatrização.
Banho de casca de murapuama
Banho dado para ajudar crianças a
andarem mais depressa.
Banho de casca de jutaí
Combate
as
viroses
ajudando
na
recuperação.
Banho de casca de catamary
Serve para tirar o aborrecimento de quem
o toma.
Banho de casca de uixí
Convém para lavar e perfumar a genitália
feminina.
Banho de casca de castanheira
Tomado por pessoas que apresentem o
mal-estar provocado pela gripe.
Banho de folha de chama – cheirosa
Para que a criança seja bem querida por
todos os amigos e familiares.
Banho de folha de mão – aberta
Feito para atrair a sorte nos negócios e
conseguir dinheiro.
Banho de folha de sacaca
Banho preparado para espantar os maus
espíritos e desfazer a malinesa do boto39.
Banho de folha de pião – roxo
Preparado para proteger o corpo de toda
maldade exterior.
Banho de folha de cachorrinha
Esse banho é dado em quem deseja ter seu
amor por perto.
Banho de folha de Jaca
39
Ver também p.102.
Dado em crianças que sofrem de insônia
99
para que possam dormir bem.
Banho de folha caída
Banho feito com folhas que caem das
árvores para amansar a criança.
Banho de folha de manjericão
Banho recomendado para comerciantes
fazerem bons negócios.
Banho de folha de cuia-mansa
Preparado para banhar crianças que tem o
hábito de chorar demasiadamente.
Banho de folha de juquirí
Serve para sossegar crianças que tem um
comportamento agitado.
Banho de folha de mucuracaá
O banho espanta e protege o corpo contra
todo tipo de mal.
Banho de folha – chama
Tomado para atrair todo tipo de sorte e
trazer felicidade.
Banho de folha de cipó-alho
Protege o corpo da criança contra a inveja
e o mau-olhado.
Banho de cragirú
Banho dado em mulheres de parto para a
cicatrização.
Banho de araticum
Dado em pessoas para neutralizar feitiços
e judiação.
Banho de folha de limão
Esse banho serve para aliviar e prevenir
gripes e resfriados.
Banho de farinha de mandioca
Feito para acalmar crianças bravas ou de
comportamento manhoso.
Fonte: pesquisa de campo/2010.
Embora a farinha de mandioca não seja um vegetal em si, mas subproduto dele,
ela se enquadra no contexto devido a importância que tem a farinha que é consumida
diariamente. A farinha é extraída da raiz da maniva, a mandioca, planta muito cultivada
na Amazônia para alimento básico da população. Há, então, na Amazônia esse outro
elemento do cotidiano incorporado à benzição. E para os que acreditam, esses
mecanismos utilizados pelas benzedeiras em suas práticas têm sua eficácia, pois, “só
com o entendimento do fenômeno da benzedura, é que podemos perceber que esse tipo
de prática não é apenas composto de crendices e simpatias” (SOUZA, 2002, p.116).
100
Outro elemento regional, a rede de dormir, comum nos lares amazônicos,
também aparece na narração de dona Rosa ao falar sobre uma das visitas que Jesus e
São Pedro fizeram a terra. “Vamos embora lá pra terra Pedro? E Pedro respondeu
vamos. Aí eles desataram as suas redes e botaram nas costas o equipamento e foram
embora [...]. Em outra noite Jesus atou sua rede lá no lugar aonde Pedro dormiu, e Pedro
atou a sua rede no lugar aonde Jesus dormia”. (entrevista/2010). Percebemos que a
compreensão que se têm do céu, é uma concepção amazônica, pois tanto Jesus como
Pedro desatam suas redes que estavam estendidas no paraíso, colocam nas costas e
viajam para a terra.
As práticas de benzição são revestidas de uma simbologia entrelaçada ao sentido
das coisas da vida, do cotidiano vivido, dentro de um sistema coerente de significados.
As benzedeiras tornam-se guardiães da palavra e do saber mágico, elaborado ao longo
do tempo, a partir da transmissão e conhecimento de suas práticas. A cura e alívio dos
males proporcionado pela benzição só se realiza quando, benzedeira e benzido, estão
dispostos a seguir os critérios e normas de uma linguagem e ritual bem específico. É
assim que se caracteriza a benzição, com seu simbolismo e referência ao sagrado,
atuando no combate aos males que afligem os seres humanos.
3.2 – A mística das benzedeiras associada aos mitos da floresta
Em Parintins, vários aspectos do universo das benzedeiras que dizem respeito a
crença e a magia estão intrinsecamente ligados a floresta. Não se trata aqui de uma
discussão sobre o determinismo ecológico, mas de uma estreita ligação que existe entre
elas e a natureza no campo do sagrado, fazendo com que se diferenciem em parte, das
benzedeiras de outras regiões do Brasil.
Crer em elementos mágicos relacionados com a floresta que influenciam
diretamente na vida e no dom das benzedeiras, não pode ser interpretado como atraso
cultural, pois “mesmo nas nossas grandes metrópoles, as crenças em magia persistem
face aos conceitos científicos mais modernos” (WAGLEY, 1988, p.218).
101
Ao afirmarem que foram olhadas por bichos da floresta40, judiadas por botos ou
em suas práticas de cura benzerem a mãe-do-corpo ou passarem a enfermidade para
uma árvore, as benzedeiras revelam um contexto amazônico.
A descoberta do dom como já falamos, pode ser demonstrada de várias
maneiras, com semelhanças em todas as regiões do Brasil, no entanto em Parintins se
manifesta de maneira espontânea a relação das benzedeiras com a floresta. No caso de
dona Rosa, por exemplo, a sua enfermidade que de modo geral antecede o dom, foi obra
de um boto, no qual somente foi possível curar com a ajuda de uma benzedeira.
Vejamos:
Uma vez eu peguei uma olhada de boto lá no estado do Pará. Era meio
dia quando fui tomar banho e os botos me olharam. Olharam-me,
ficaram me olhando, e depois foram embora. Depois disso, eu fiquei
doente, não me penteava, andava assim na rua, assim como se
estivesse de porre. Mas eu não sabia o que era. Quando eu fui numa
benzedeira, ela me benzeu e disse: „olha foi um boto que te olhou, mas
no mandado de outra pessoa, duma macumbeira, duma feiticeira.
Mandaram o boto te olhar. E se o boto olhasse mesmo bem de frente,
tu já tinhas morrido. Mas ele te olhou de lado‟. Ai ela me disse: „eu
vou tirar de você a olhada do boto. Você traga para mim três tubos de
linha vermelha, três agulhas e três metros de fita vermelha e outras
três de preta, traz que eu vou jogar no rio‟. Ai olha, é o que eu sempre
falo, quem cura mesmo é fé da gente. Quando é que uma pessoa vai
acreditar numa coisa dessa né? Mas quem acredita como eu, tenho
certeza que acredita mesmo. Por isso que eu levei o que ela havia me
pedido, ela benzeu tudo aquilo e mandou que fosse atirado no rio.
Com isso, ela tirou a doença também e jogou no rio. A agulha, a linha,
tudo ela mandou que jogasse lá. Foi até meu pai quem jogou. (dona
Rosa, entrevista/2010).
O contato com a benzição em virtude da olhada do boto, fez com que dona Rosa
criasse uma admiração pelas benzedeiras: “naquele tempo quando eu via uma pessoa
benzendo, ou que soubesse benzer, eu achava aquilo tão importante, é tão bonito quem
sabe benzer, era tão bonito ver essa gente que sabia benzer, benzer os outros que
estavam doentes” (dona Rosa, entrevista/2010). E mesmo que tenha recebido as orações
por escrito de seu pai, o interesse pelos doentes e pela benzição nasceu da própria
40
Dona Rosa nos contou que quando jovem no caminho de sua casa para a roça foi olhada por um
jacurarú, espécie de lagarto que se assemelha a um camaleão, porém, maior e de cor avermelhada. Ao
olhar para ela, o animal lhe retirou sua sombra, o que causou uma enfermidade grave. Ela somente ficou
curada quando seus pais a levaram a um sacaca, pessoa cura por meio de plantas e orações (ver p.44), que
em um ritual específico lhe devolveu a sombra.
102
experiência que teve quando a mesma se encontrava enferma e foi tratada por uma
benzedeira.
O compromisso das benzedeiras em fazer o bem, que na concepção das mesmas
as diferenciam das macumbeiras, também pode ser diferenciado em suas práticas de
cura. Ao invés de porções mágicas ou encantarias como fazem as bruxas, elas utilizam
utensílios e objetos que culturalmente pertencem ao universo feminino e que são
utilizados no dia-a-dia. Além de fazer uma analogia com o trabalho da mulher. Dona
Nazaré, por exemplo, nos mostra essa diferenciação da seguinte forma: “a gente reza,
tem que rezar, aí vai costurando na barriga da pessoa onde tiver a rasgadura, rezo a reza
e vai costurando com as orações, é com agulha, entende agulha nova e com linha que a
gente vai rezando e costurando” (dona Nazaré, entrevista/2010). E para retirar o encanto
do boto, a benzedeira que curou dona Rosa utilizou agulha, linha e fita. A esse respeito
Sônia Maluf (1993, p.123), considera que,
Os objetos que usam nas benzeduras (tesouras, linha e agulha, pilão,
brasas, copo com água etc.) fazem parte do universo do trabalho
feminino e do espaço em que as mulheres passam a maior parte do
tempo, sempre acompanhadas de rezas, onde predominam as
invocações e os pedidos dirigidos a Nossa Senhora.
Botos e outros animais que podem fazer o mal a uma pessoa fazem parte do
imaginário dos povos tradicionais da Amazônia. Maués (1994), fala em encantados,
seres invisíveis a olho nu, e que não são representados de nenhuma forma. Entretanto,
podem se manifestar de diferentes maneiras, como os encantados do fundo que se
revelam em forma de peixes, cobras, botos, dentre outros. Para esse autor, a crença nos
encantados é a fundamentação da pajelança cabocla, muito popular principalmente na
Amazônia rural e praticado por populações não indígenas. Assim como no caso de dona
Rosa que foi atendida por uma benzedeira, para Maués e Villacorta (2004, p.29), “a
mulher que é molestada pelo boto deve ser atendida por um pajé, caso contrário ela
pode ser levada a morte”. O pajé assim como a benzedeira é capaz de curar, e indicar
procedimentos que julgam indispensáveis para libertar a mulher da ação do boto.
103
A afinidade de cura da benzedeira com a pajelança cabocla pode ser entendida
primeiramente pelo fato dos atores da pajelança cabocla não se identificarem como
pajés, considerando-se curadores ou xamãs. A pajelança cabocla se distingue da
pajelança indígena, pois mesmo tendo se originado na religiosidade tupi, “hoje se
integra em um novo sistema de relações sociais, incorporou crenças e práticas católicas,
kardecistas e africanas” (MAUÉS, 1994, p.75). O crédito da pajelança cabocla “reside
na figura do encantado. Apesar de algumas variações nas crenças de região para região
da Amazônia” (MAUÉS e VILLACORTA, 2004, p.17), conseqüentemente, podemos
entender como uma variante da pajelança cabocla a atuação de algumas benzedeiras.
Combater o encantamento do boto, não é algo incomum na benzição em Parintins, como
podemos perceber na fala de Fernando Nascimento (31anos):
Uma vez eu fui para uma praia aqui no uaycurapá, uma praia muito
famosa que dá no verão. Eu vi um boto incorporado41 numa moça. Eu
assisti a cena. A moça queria ta entrando todo tempo dentro d'água.
Ela ficou perturbada, ela ficou descontrolada e a gente tentava agarrar
ela, mas ela estava com muita força. Ela falava diferente, entendeu,
ela falava diferente, e ela só queria ir pra dentro d'água, e ainda dizia:
'ele vai me levar, ele vai me levar'. Mas ela não falava quem, nem
citava nome, ela só dizia: 'ele vai me levar, ele vai me levar'. E a gente
segurando. Aí chegou uma senhora que naquele momento a gente não
sabia se era benzedeira, e falou: „ela deve estar encantada pelo boto,
ela deve ta menstruada ou coisa assim pro boto ta mexendo com ela'.
Porque no rio, no caso a mulher não pode andar menstruada, porque
chama o boto que encanta, chama a atenção do boto. E eu acho que
era isso que ela tava, entendeu. Aí depois, essa senhora veio, eu não a
conhecia até então como benzedeira, ela orou na cabeça da moça que
estava encantada, pronto, aquilo foi passando, aliviou. Aí a benzedeira
pediu pra gente tirar a moça encantada dalí daquele local
imediatamente, porque senão o boto ia mexer com ela de novo. Foi
quando nós viemos embora pra cidade. Quando a gente chegou na
cidade a moça ficou normal. (Entrevista/2010).
A atuação da mulher benzedeira foi fundamental, para que o boto deixasse a
moça em paz. Motta-Maués (1994, p.116) nos diz que “entre os chamados „bichos do
fundo‟ ou „encantados‟ estão as oiaras e o boto, considerados os mais danosos para a
mulher menstruada, sendo que o boto pode prejudicá-la mesmo em qualquer ocasião.
Na menstruação, porém, ela atrai (sem saber) esses encantados”. Para Fernando, a
41
O significado de incorporada narrado por Fernando Nascimento tem o mesmo sentido de “malinesa”
descrito por Maués (1994, p.76), onde os encantados podem provocar doenças e outros males.
104
responsabilidade do encantamento se deve exclusivamente ao fato de a moça ter ficado
no rio, estando menstruada, “porque muitas delas não avisam e viajam menstruadas,
entendeu. Aí a mulher menstruada navega na frente da canoa, o boto a vê, e logo dá dor
de cabeça, a minha sogra conta que a dor de cabeça no caso já é o boto malinando”
(Fernando Nascimento, entrevista/2010).
Segundo Galvão (1976, p.68), “o boto tem atração pelas mulheres menstruadas.
Durante esse período as mulheres devem evitar viagens em canoas ou aproximar-se dos
rios ou dos igarapés”, no caso da moça “ela tava menstruada e ela não falou pra gente,
entendeu. E ela ficou tomando banho, gritando dentro d‟água, e aí eu acho que
encantou, os mais velhos falam que é encantaria né” (Fernando Nascimento,
entrevista/2010).
Para Motta-Maués (1994, p.114) “a partir da menarca dá-se o afastamento
compulsório da mulher dos domínios ditos masculinos (mar, porto, rios)”, pois elas
estão sujeitas aos encantados e o território do homem fica ameaçado por uma força que
ele não sabe conter. Assim, ao estar menstruada, a moça colocou em risco não somente
a sua vida, mas a de todos, e obrigou o homem a abandonar seu território “foi quando
nós viemos pra cidade”. Essa situação é influenciada pela relação direta que as
populações tradicionais da Amazônia têm com o rio e com a mata. Trata-se de locais
onde habitam os encantados que podem perturbar a vida dos caboclos, sendo necessária
neste caso, a intervenção de uma benzedeira para afastar os encantados e neutralizar
seus efeitos maléficos. Segundo nosso informante,
A gente mora em uma região de rio e de mata lá no uaycurapá. E eu
entendo o caso do boto como encantaria, e tem os bichos do mato que
às vezes encantam as pessoas também. A minha tia benze contra isso.
Ela tem a reza de tirar a encantaria, ou de afastar o boto entendeu. A
olhada do boto por exemplo. Pois dizem que o boto encanta né. Pra
isso aí ela faz a reza pro boto se afastar, ou quando ele tiver
incorporado em alguém, que nós chamamos de incorporado, ela
também reza. Ou mesmo quando alguém é mau-olhada pelo boto, a
pessoa pode até não enxerga o boto, mesmo assim pode ficar mauolhada. Outro exemplo é quando alguém vai pescar e judia de um
boto, e quando esse alguém chegar na sua casa de noite, ele não vai
conseguir dormir. Só conseguirá dormir depois que a benzedeira fizer
a reza. Que aí sim, alivia, entendeu. Eu já vi muitos exemplos disso,
entendeu. Minha tia reza, eu já a vi rezando, ela é benzedeira. Ela tem
a reza dela pra afastar o boto, mas ela não reza por alto entendeu, é só
entre si. Vou dar um exemplo: ela pega um galho de uma planta,
depois pede os assessórios, aí ela faz aquela reza, faz o chamado
105
fumacê, e aquilo ela reza só com ela. Você só vê a feição dela, ela
muda até a feição quando ela faz esse tipo de serviço. Você não
pergunta nada, ela só te pergunta se você está bem. Aí passa um
banho, um tipo de banho, e você vai pra casa fazer aquilo e pronto,
alivia, entendeu. (Fernando Nascimento, entrevista/2010).
Outro elemento comum na pajelança cabocla que também encontramos nas
benzedeiras de Parintins, diz respeito à panema, termo que para Galvão (1976, p.81),
“passou ao linguajar popular da Amazônia com o significado de „má sorte‟, „desgraça‟,
infelicidade‟. Incapacidade de ação, cujas causas podem ser reconhecidas, evitadas, e
para quais existem processos apropriados”. A panema é uma espécie de inabilidade em
relação a várias atividades do cotidiano, inclusive as produtivas, que não significa
exatamente uma forma de feitiço, embora em alguns casos ela possa ter sido causada
por feitiçaria. A atuação da benzedeira desfaz a panema, no caso de dona Nazaré, cujo
marido, quando vivo, era caçador e pescador fazia-se necessária a eliminação de toda a
panema, porque desse seu trabalho vinha o sustento da casa na época em que moraram
na zona rural. É ela mesma que nos informa como fazia para tirar a panema do esposo, a
saber:
Quando eu tava morando no interior [zona rural], eu puxava o braço
do meu esposo com o banho que eu fazia. Era assim: eu lavava e
puxava o braço dele pra endireitar a sua pontaria e com isso tirar a
panemice dele. Eu fazia o banho para lavar o braço do meu esposo.
Assim, eu tirava aquela panemice que dizem. Eu fazia o banho e
lavava o braço dele. Quando não, ele tomava o banho de todo o corpo,
tomava o banho e com isso melhorava a pontaria, graças a Deus.
(dona Nazaré, entrevista/2010).
Embora haja uma facilidade em contrair a panema, ela pode ser prevenida, e até
identificada. Galvão (1976), fala das maneiras de prevenção como: banhos e
defumações, podendo até mesmo serem utilizadas técnicas simples para eliminar esse
mal que inconscientemente porta a mulher menstruada, mas que pode também estar
contido na inveja de amigos ou na feitiçaria. Dentre os fatores de prevenção da panema
constam proibições às mulheres grávidas de se alimentarem de carne de caça; de
menstruadas, tocarem objetos e utensílios de caça e pesca; atirar ossos ou espinhas de
peixe no quintal que podem ser alcançados por animais domésticos. A crença na
106
panema e no conhecimento das benzedeiras para prevenir e neutralizar seus efeitos, está
contida no imaginário dos povos tradicionais da Amazônia, fazendo parte de seu
cotidiano de efetiva relação com a natureza. Um dos nossos informantes relata um caso
de panemice da seguinte maneira:
O meu sogro é um pescador de lá do uaycurapá. Eu já tive esse
exemplo de panemice no seguinte caso: eu já fui pescar com ele, eu
numa canoa e ele noutra, e eu não pegava nada, e aonde eu não pegava
o meu sogro ia e pegava o peixe. E eu ficava bestinha de ver. Eu acho
que seja isso. Muita gente, no caso, as pessoas que rezam, citando a
minha tia que é benzedeira, ela sempre diz: „isso aí é panemice‟. Ela
tem o banho pra isso, ela faz um negócio dum banho e tem também o
negócio da reza, entendeu. Não sei se é isso que o meu sogro tem,
porque eu me comparo a um panema pescando ao lado dele. Porque
ele pega o peixe e eu não pego, entendeu. Eu fico bestinha de ver. Às
vezes ele até me chama de panema: 'por que tu é panema!', „tu queres
um banho? Eu te ensino!‟, mas só que não é ele quem ensina é a nossa
tia que sabe fazer e ensina. (Fernando Nascimento, entrevista/2010).
E, acrescenta:
Rapaz eu já vi a minha tia benzedeira passando banhos, banhos e
defumações. Ela faz assim: tem a planta né, tem a erva que ela indica
e você tem que fazer o banho em casa. Mas isso, vamos supor, só
pode ser entre si. Eu já a vi explicando o banho da seguinte maneira:
você pega a folha de tal planta você esmigalha na água, você toma o
banho, joga num sei o quê pra cima. Só sei que eu já a vi indicando
assim. (Fernando Nascimento, entrevista/2010).
A proximidade com a floresta fez surgir uma característica nas benzedeiras de
Parintins, pois além de intermediarem o contato com a divindade no processo de cura do
quebranto, cobreiro, desmintiduras e outras enfermidades de ordem psicossocial, essas
mulheres ainda possuem conhecimentos capazes de reter os malefícios causados por
seres sobrenaturais que habitam as matas e os rios. A concepção de que as mulheres
benzedeiras têm “poderes” para afastar, deter ou reverter as forças sobrenaturais que se
assemelham aos encantados descritos por Maués (1994), ganha uma especial
singularidade devido ao respeito e confiança que a comunidade deposita nelas, ao
contrário da pajelança cabocla em que a atuação masculina é predominante e a
107
participação da mulher é cerceada e marginalizada. Segundo Maués e Villacorta (2004,
p. 34-35)
No âmbito da pajelança, temos um domínio essencialmente
masculino. Assim, o papel atribuído à mulher, nesse contexto, é de
ajudante de pajé ou paciente deste, tendo assim quase sempre uma
atuação passiva. Por outro lado, quando a mulher surge com um papel
mais ativo, na pajelança, ela é freqüentemente apontada como
feiticeira.
Ao tratar a rasgadura, dona Nazaré estabelece o contado com a natureza, posto
que é indispensável no procedimento da costura da rasgadura o auxílio do apuizeiro, um
cipó muito comum na Amazônia que tem raízes aéreas e se hospeda em outras arvores
para sobreviver. O leite de apuí, extraído de suas raízes, é usado pelas benzedeiras para
cicatrizar feridas, assim como a sua folha fervida juntamente com as de puru-puçanga e
erva-de-passarinho são usadas no tratamento de fraturas. O proveito desse cipó na
costura da rasgadura é mostrado por dona Nazaré que narra a esse procedimento da
seguinte maneira:
É no pano que se faz a costura da carne rasgada. E é assim: eu pega o
pano, tiro uma medida do tamanho da rasgadura da pessoa e meço no
pano, de acordo com o tamanho da rasgadura. Depois eu costuro
[simbolicamente] a rasgadura no pano. Vou rezando e vou costurando.
Depois disso, eu faço um furo no apuizeiro com uma faca e meto nele
aquela medida de pano que costurei. Meto no apuizeiro o pano.
Quando o apuizeiro fechar o pano no furo eu que fiz, pronto, a pessoa
estará sarada. Com as orações o apuizeiro fecha o pano, e com isso
sara a rasgadura. (dona Nazaré, entrevista/2010).
E, continua:
O pano que for costurado é cortado do tamanho que é a rasgadura e
mete lá no apuizeiro e pronto, deixa lá. A rasgadura somente irá sarar
quando o apuizeiro fechar o pano. Quando isso acontecer, a rasgadura
não terá mais por onde sair. Lá aonde [simbolicamente] foi costurado
não abre mais. Só se for noutro lugar. Por exemplo: se a pessoa tem
uma rasgadura aqui na barriga, a gente costura nesse lugar também no
108
pano, e depois mete esse pano no apuizeiro. E lá aonde a pessoa foi
costurada, que o apuizeiro fechou com nossas orações, lá não rasga
mais. Pode até rasgar noutra lugar, mas lá não, entendeu? (dona
Nazaré, entrevista/2010).
Por se tratar de um cipó que envolve com suas raízes e sufoca até a morte a
árvore hospedeira, o pano deixado no apuizeiro pela benzedeira depois de ela ter
costurado o paciente, também será envolvido pela planta até desaparecer, representando
a rasgadura que também cessará. Assim, é na planta que se define o tempo de
cicatrização, pois “quando o apuizeiro fechar o pano no furo que fiz, pronto, a pessoa
estará sarada”. Neste caso, a cura da rasgadura depende do tempo que o cipó levará para
envolver o pano deixado pela benzedeira. É assim que benzedeira e benzido, natureza e
benzição, se juntam de uma maneira mística para a cicatrização da rasgadura.
Há na mitologia amazônica uma sociodiversidade de seres sobrenaturais que
agem como defensores da natureza, punindo quem agride as matas, os rios e os
igarapés. Dentre eles há a mãe do mato e mãe do rio. Conforme Maués (1994, p.76),
Isto, aliás, é um elemento importante na ideologia regional, desde que
esses seres funcionam também como uma espécie de defensores
míticos da floresta, dos rios, dos campos e dos lagos. Tudo tem sua
„mãe‟ (um „encantado‟): abusos são castigados pela „mãe do rio‟,
quando este é poluído, pela „mãe do mato‟, quando a floresta é
devastada, e assim sucessivamente.
Nota-se a figura feminina, mesmo marginalizada, nunca deixou de continuar no
campo do sagrado, as deusas mães ligadas à natureza nunca deixaram de existir. As
mães do mato e mães do rio mostram que a figura feminina ainda tem notoriedade em
vários campos, incluído o da religiosidade com as mesmas características de proteção e
fecundidade. Para Terrin (1996, p.204),
A promoção da mulher e do feminino passa hoje pelo aspecto ecológico
e vice-versa, a ecologia se serve do feminino. Neste sentido, não
podemos considerar a deusa mãe como um fantasma do inconsciente,
mas, como demonstra toda a historia das religiões, a deusa tem uma
personalidade e um nome próprio, embora estando sempre ligada
estreitamente a terra.
109
Assim, a mãe do mato e mãe do rio, revestidas do discurso ecológico fazem
parte da cultura amazônica, sendo elas benevolentes e fecundas com aqueles que a
respeitam, e rigorosas na punição àqueles que tentam agredir a natureza. Elas estão
presentes no dia-a-dia dos povos tradicionais da Amazônia, através do compromisso
que eles têm na preservação da mata, rios e lagos. A permanência e ação delas nesses
lugares são valorizadas por eles, pois, nos locais onde não existem mais as mães do
mato e dos rios há poluição e devastação. A ação antrópica, ou seja, a interferência do
homem extinguiu ou diminuiu a presença de peixes e caças, essenciais para a
sobrevivência das populações locais. Pois, se a mãe do mato ou a mãe do rio sair do seu
lugar, ali fica instaurada a desordem. Para Fernando Nascimento, a presença da mãe do
mato e da mãe do rio é muito importante, pois,
Ela protege, meu sogro conta e minha sogra também conta, que gente
que é da família ela protege. Pois vamos supor assim, no caso nós que
somos do bem, que não agredimos a natureza, porque a gente só entra
lá no mato e nos rios pra pescar, pra tirar o do consumo, e não para
judiarmos dos peixes, e nem judiarmos dos animais. Esses assim ela
protege. Agora, tem muita gente que entra nos rios e no mato com a
intenção de judiar, gente assim que eu não sei te citar. Essas pessoas já
reclamaram que viram a mãe do rio ou a mãe do mato. Meu sogro diz
que também já viu a mãe do rio. Mas ele me disse que ela nunca
mexeu com ele, pois ele é do bem, mas ele disse que já viu.
(Entrevista/2010).
E complementou:
Eu cito como exemplo lá no uaycurapá no nosso terreno, ou melhor,
no terreno do meu sogro, da família da minha esposa. Lá é um
igarapé, como chamamos aqui no amazonas, e lá tem a mãe do lago, a
mãe do rio, e muita gente já viu. Tenho vários exemplos de amigos
meus que foram da cidade pra lá, e ela judiou desses meus colegas. Eu
tenho dois colegas meus que foram pra lá e viram. Eu, que já estou
vivendo com a minha esposa e sua família faz oito anos, eu graças a
Deus nunca vi nada lá. Mas meus colegas que foram lá, já passaram
pela situação de ver a mãe do rio, chegando inclusive ao ponto de
serem agredidos por ela, entendeu. A mãe do rio agrediu todos eles.
Por isso, meu sogro conta e a minha sogra também conta que lá no
uaycurapá tem sim a mãe do rio. (Entrevista/2010).
110
A mãe como mantenedora do equilíbrio, também tem a mesma simbologia no
contexto de cura das benzedeiras. Assim como existe a mãe do mato e mãe do rio, para
as benzedeiras existe a mãe do corpo, espécie de órgão localizado somente no ventre
feminino, por detrás do umbigo. A mãe do corpo precisa estar bem localizada, fixa e
harmonizada nessa região, caso contrário, a desordem é instalada no corpo da mulher e
como conseqüência ela adoecerá. Assim, será preciso a intervenção da benzedeira para
reconduzir a mãe do corpo ao seu lugar para que a mulher retome a saúde. A mãe do
corpo não é um espírito, mas a harmonia do próprio corpo, e é sentida pelas
benzedeiras, através da pulsação da corrente sanguínea. Se a mãe do corpo está bem
colocada, a benzedeira sente a corrente sanguínea pulsar normalmente. Para que
entendamos melhor a mãe do corpo, dona Nazaré e dona Rosa nos dizem que,
A mãe do corpo é aqui, ela mora aqui no umbigo da gente. É tipo
umas palpitações, mas na gente ela pode subir e sai do umbigo. A mãe
do corpo mesmo da gente, é a mãe do corpo mesmo. Por isso, se ela
subir ela dá tontura, ela dá fraqueza, a pessoa não pode comer, não
pode beber, é assim que ela faz. Eu puxo e coloco a mãe do corpo, e
torno a voltar ela para o lugar dela e pronto, aí depois passa o malestar. (dona Nazaré, entrevista/2010).
A mãe do corpo a gente puxa, puxa de cima pra baixo até o umbigo.
Porque quando a pessoa ta doente por causa da mãe do corpo, é
porque ela subiu e saiu do lugar. Então a gente tem que puxar até ficar
em baixo, aí no umbigo, que é o lugar dela. Pois quando ela sobe pra
cá pra banda do estomago a gente tem que puxar ela de volta, pois ela
tem que ficar aqui no umbigo onde é o lugar dela. (dona Rosa,
entrevista/2010).
A proximidade das benzedeiras com a natureza influenciou os procedimentos da
benzição em Parintins. Assim, surgiu uma característica que as distinguem de muitas
outras benzedeiras na maneira de benzer e dar significado ao ato da benzição. Esta
característica também é compartilhada pelas pessoas que as procuram e conhecem a
linguagem da benzição local. Benzições contra quebranto, mau-olhado e ezipla, fazem
parte do ofício das benzedeiras de várias regiões do país. Mas, benzer contra a malinesa
111
do boto ou para tirar a panema de uma pessoa, remete a uma prática Amazônica que tem
uma grande influencia na atuação das benzedeiras de Parintins.
3.3 – Espaço e procedimentos da benzição.
Nos discursos das benzedeiras podemos perceber que a construção de sua
identidade ocorre em meio a um processo de conflitos e embates dentro do sistema
social e simbólico. Isso fica claro quando elas demonstram ter necessidade de serem
identificadas como benzedeiras, e não como feiticeiras ou macumbeiras.
O significado identitário de seu oficio tem estreita relação com a missão dado
por Deus a elas. Ao indicar a forma como elas querem ser conhecidas, deixam
transparecer essa questão: “eu acho que é isso, uma missão que eu vou levar até morrer”
(dona Rosa, entrevista/2010). Para outra benzedeira ouvida em nossa pesquisa, “não
adianta fazer o bem pra uns e o mal pra outros” (dona Nazaré, entrevista/2010). O mal
referido diz respeito aos feitiços e encantarias, campo onde a benzedeira atua somente
para desfazê-lo. Porque a sua missão consiste só em fazer o bem. Dona Rosa recorda
que: “quando eu era criança tinha muita febre porque tiravam a minha sombra, e
somente nas sessões [cobrada] do curador é que botavam a minha sombra de volta”
(dona Rosa, entrevista/2010). Ainda que o curador atue fazendo o bem, as benzedeiras
rejeitam a comparação com essas pessoas que cobram de seus clientes em cada sessão
de cura, não existindo dessa maneira o compromisso da gratuidade que é a principal
evidência de vínculo com o divino, mesmo quando elas fazem o bem.
A credibilidade dada às benzedeiras de Parintins está associada a vários fatores e
não se sustenta somente em face da precariedade no atendimento médico oficial
existente. Ela se sustenta na rede simbólica de cura, pois as doenças têm origem natural
e sobrenatural. Há uma dupla justificativa que garante o espaço das benzedeiras: 1) a
falta ou precariedade do atendimento médico; 2) a aceitação involuntária da instituição
religiosa. A igreja não persegue as benzedeiras em Parintins, inclusive, todas elas são
católicas e fazem uso de orações e invocam nomes de santos em seus procedimentos e
vão a igreja com regularidade.
A identidade também se completa pelo empréstimo da palavra do outro, neste
caso a Igreja, a partir dos valores sociais existentes no lugar. Ou seja, elas freqüentam e,
se possível, se ocupam também de atividades paroquiais ou de cunho religioso, pois “a
112
benzedeira, enquanto uma cientista popular, fala em nome de uma religião. Ela não
pode ser entendida sem que sua religião seja considerada” (OLIVEIRA, 1985, p.26).
Dona Rosa, por exemplo, é católica devota e todo final de ano organiza uma
Pastorinha42 de nome As filhas de Davi, e em janeiro organiza a festa de São Sebastião,
como já mencionamos. Ela participou do Apostolado de Oração e foi catequista por
muito tempo, e só deixou essas atividades por motivo da idade avançada. Dona Zenaide
também pertence ao apostolado de oração e também organiza a festa de São Lázaro,
como já mencionamos. Nas duas festas é rezado terço, novenas e ladainhas do manual
católico. Dona Nazaré também freqüenta a igreja e é católica praticante.
Como observamos, no campo da saúde não existe uma rivalidade direta com a
medicina oficial por parte das benzedeiras, que sabem que sua atuação se realiza em
uma área específica, distinta, e desconhecida dos médicos, e, portanto, sem conflitos.
Dona Rosa deixa claro: “médicos não sabem, eles não sabem disso, o médico é médico,
ele só passa remédio” (dona Rosa, entrevista/2010). Para as benzedeiras, a cura se faz
por procedimentos que visam estabelecer a ordem do corpo e do espírito, pois “se a
doença é caracterizada pela desordem, falta de significação; a cura, por sua vez, vai
procurar uma reordenação, uma ressignificação” (QUINTANA, 1999, p.46). Assim,
quebranto, mau-olhado ou ezipla, entre outras, são doenças tratadas pelas benzedeiras
que não fazem parte do conhecimento da medicina oficial.
Os procedimentos de cura das benzedeiras têm por base a idéia da doença como
um mal que entrou no corpo e precisa ser estripado, “a pessoa doente não é mais dona
de um corpo inteiro, sadio, mas um corpo fragmentado que se encontra em estado de
desarmonia” (PEREIRA e GOMES, 2002, p.142). Além disso, os postos de saúdes e
hospitais lotados, acrescido da formalidade no atendimento médico, fazem com que
muitas pessoas se sintam mais a vontade com uma benzedeira do que com um médico.
“Se uma pessoa, no caso, as benzedeiras, te trata bem no seu local de atendimento, a
gente não se sente constrangida” (Leila Figueiredo, entrevista/2010). No espaço das
benzedeiras o benzido encontra a explicação simplificada para a desordem do corpo,
além de amparo e chance de cura e restabelecimento da ordem.
As benzedeiras têm a concepção de que a cura dos males não reside em si, pois
em última instância, elas dependem da vontade divina para quem é feito o pedido de
42
Para Pascoal (1975, p.15) “as „pastorinhas‟ são próprias do dia de „Natal‟, e são conjuntos formados
por crianças ou moças que as representam, vestidas devidamente, as quais depois da missa do galo,
cantam belas canções nas ruas ou em uma casa de família junto ao presépio de Deus Infante”.
113
intervenção no ato da benzição. Toda a cura, da mais simples a mais extraordinária, para
as benzedeiras, se deve à intervenção das forças do sagrado. Portanto, Deus e seus
santos têm papel fundamental nos procedimentos de cura de cada benzição que varia de
acordo com o tipo de enfermidade. Por isso, existem doenças cujo diagnóstico é
detectado somente pelas benzedeiras, como nos mostra dona Zenaide,
Eu estou esperando um senhor que vem buscar um remédio que eu fiz
pra mulher dele. Essa mulher antes de vir aqui comigo já tinha ido ao
médico que não tinha dado jeito nenhum. Pois não tinham descoberto
a doença dela. E eu descobri, era a chamada mãe do corpo, que é uma
palpitação, um aceleramento no coração. E fui eu quem descobriu.
Depois rezei e puxei a mãe do corpo. Quando foi ontem o marido dela
veio trazer o material pra fazer o remédio pra terminar o tratamento.
(dona Zenaide, entrevista/2010).
No tratamento e cura das enfermidades realizadas pelas benzedeiras,
constatamos nesta pesquisa diferentes tipos de benzição que revelam os vários
procedimentos e sentidos da benção. É preciso que não tenhamos uma visão
despedaçada do fenômeno, pois “compreender a benzição é penetrar na sua essência, é
buscar o significado da sua prática social, entendendo de que modo esse lado da cultura
popular, tão fragmentado, hostilizado, rejeitado e marginalizado, é recriado com força e
autonomia” (OLIVEIRA, 1985, p.70). Por esse motivo, torna-se mister compreender
seu sentido contido nos procedimentos adotados pela benzedeira. A seguir,
apresentaremos um quadro das enfermidades, necessidades e procedimentos
circunscritos às praticas sociais da benzição.
ENFERMIDADES, NECESSIDADES E PROCEDIMENTOS
Quebranto
É uma enfermidade que atinge somente crianças em que o uso
de vegetais como folhas e ramos, seja traço comum, mesmo que
o procedimento varie de acordo com a benzedeira. Geralmente a
criança é benzida e fica no colo da mãe durante a benzição, em
outros casos ela é tomada nos braços da benzedeira para que o
ato tenha total efeito. É comum entre as benzedeiras fazerem o
114
sinal da cruz na cabeça e tronco da criança com o vegetal
sussurrando em voz baixa a jaculatória específica, e ao final de
cada cruz gesticulada fazerem menção com o ramo como se
estivesse expulsando a doença. Terminado esse procedimento
que é repetido por três vezes o ramo é atirado em direção ao
oeste para que a enfermidade seja levada com o pôr do sol, se o
ramo secar fica confirmando que a criança estava com o
quebranto. Ao final da benzição é receitado um chazinho
geralmente de guia de goiabeira, raiz da chicória ou folha de
japana branca, que deve ser preparado na casa do benzido. Caso
não surja na benzição do quebranto um efeito imediato, o
procedimento é repetido por mais três vezes em três dias
alternados. Esse procedimento também ocorre quanto o
quebranto é bem forte
Desmintidura ou
Acredita-se que a desmintidura seja um osso geralmente da costa
conserto
ou do pescoço da criança ou do adulto, que é afastado do lugar
durante um esforço físico, um tombo ou um mau-jeito e precisa
ser consertado. Nas crianças a desmintidura causa febre e malestar como o vômito e a diarréia. Os procedimentos para a
desmintidura, ou seja, recolocar o osso deslocado no seu devido
lugar varia de acordo com a benzedeira, mas na maioria das
vezes acontece com a imposição das mãos da benzedeira no
corpo desmentido onde a mesma procura através de massagem
reconduzir o osso afastado ao seu lugar. Em outro procedimento
a benzedeira no momento da massagem em que procura o osso
afastado, recita uma oração específica para que sua busca logre
êxito. Há também casos de benzedeiras que somente oram no
local desmintido e fazem o sinal da cruz por três vezes. O alívio
deve ser imediato caso contrário o procedimento continua até
que se tenha um resultado satisfatório, entretanto é necessário
um pouco de força física quando se trata das massagens,
principalmente em adultos. Daí porque muitas benzedeiras
quando já estão com uma idade avançada se recusarem “pegar
115
desmintidura” em adultos, exercendo tal ofício somente nas
crianças.
Cobreiro e fogo
A benzição dessas enfermidades assemelha-se ao do quebranto
selvagem
em alguns aspectos, pois o mesmo também se realiza com a
utilização de um raminho geralmente a vassourinha, embora
também seja usado o pião-roxo. A oração é feita com a
enfermidade exposta, que é tocada pelo ramo no momento da
benzição, o que faz com que em alguns casos a benzição seja
realizada em um local mais reservado, para que o benzido se
sinta mais a vontade. Também nesse tipo de benzição o ramo é
atirado para a direção do por do sol sendo que nestes casos a
benzedeira adverte que o ramo jogado deve permanecer no local
onde foi arremessado até se decompor, pois caso alguém o toque
com as mãos ou pise nele, toda a enfermidade que foi tirada do
benzido e depositado no ramo, será transferido para essa pessoa
que a partir desse instante passará a ser o novo depositário da
doença. Terminada a benzição é feito uma prescrição de
remédios que misturam ervas medicinais com remédios
industrializados que deve ser colocado na enfermidade para
acelerar a cicatrização.
Mãe do corpo
O procedimento entre as benzedeiras para que a mãe do corpo
retorne ao seu lugar na região abdominal tem um ponto em
comum, é a massagem que todas fazem na barriga em direção ao
umbigo, e geralmente feita com óleo de andiroba ou ungüentos
preparados por elas mesmas. Entretanto, existe uma divergência
entre as benzedeiras, pois enquanto para algumas basta somente
a puxação para que a mãe do corpo volte para o seu lugar
interrompendo seus sintomas, para outras, a puxação feita é
acompanhada de uma oração específica. Entretanto, os sintomas
são os mesmos para todas as benzedeiras: palpitações
descompassadas que podem ser percebida coma imposição do
polegar direito no umbigo, ou ainda materializada em um nódulo
no ventre que se desfaz quando a mãe do corpo retorna ao seu
116
lugar.
Por fim a
Na presença da pessoa que deseja fazer a reconciliação, a
desentendimentos
benzedeira fala o nome da outra parte envolvida e em seguida
recita a oração característica, ao final da oração a benzedeira diz
o nome da pessoa que deseja reconciliar e em seguida bate por
três vezes o pé no chão chamando o nome da outra parte
envolvida.
Costurar
A rasgadura é o rompimento da carne devido a um esforço físico
rasgadura
exagerado. A carne rasgada pode encher-se de gazes ou ainda
criar uma íngua que nos dois casos provocam muita dor. Assim,
o papel da benzedeira é costurar a carne que se rompeu e para
isso ela utiliza um pedaço de pano, agulha e linha. O pano é
colocado no corpo do cliente no local da rasgadura, e em
seguida a benzedeira inicia uma oração ao mesmo tempo em que
vai costurando em forma de cruz com a agulha e linha. Nesse
procedimento é perceptível o esforço da benzedeira em apertar
bem a costura para que não se rompa. Ao final da benzição a
benzedeira faz ou recomenda alguns emplastos ou ungüentos
que é colocado no local da carne rasgada para ajudar na
cicatrização simbólica. Quanto ao material que foi usado, a
agulha, a linha e o pano são geralmente guardados, sendo que
para o último, encontramos um tipo de benzição em que ele é
injetado em um cipó para finalizar a benzição.
Espinha na
A benzição em regra é feita na garganta do engasgado, onde são
garganta
feitos vários sinais da cruz e orações específicas. Em alguns
momentos é feito um pedido para que o engasgado engula uma
colher de sopa de óleo de soja e em seguida vomite a espinha ou
engula de uma vez. No entanto, encontramos uma benzição
específica que utiliza três espinhas de peixe um prato no
momento da oração. Entretanto as orações utilizadas são as
mesmas nos dois casos, com pequenas variações que não
mudam o sentido.
Para tirar a
A benzedeira esmigalha a folha de sacaca em água para o
117
panema
preparo de uma infusão que é passado no corpo da pessoa
panema, gesticulando como se estivesse expulsando alguma
coisa, repetindo várias vezes, principalmente nos braços como se
fosse uma massagem, ou diluído em água no preparo de banhos,
que é tomado em casa e onde o corpo deve ser molhado com a
água que é jogada a partir da cabeça.
Olhada de boto
Nesse procedimento são utilizados três metros de fita vermelha,
três de fita preta, três tubos de linha vermelha e três agulhas.
Todos esses materiais são benzidos na frente da pessoa que foi
olhada de boto, e em seguida cada agulha é enfiada pela
benzedeira em um tubo de linha ao mesmo tempo em que é
sussurrada uma oração. Posteriormente cada tubo de linha
contendo a agulha é amarrado em três voltas com uma fita preta
e outra vermelha, durante esse processo a benzedeira também
sussurra uma oração. Em seguida cada tubo de linha ainda com a
agulha espetada e amarrada com as fitas é entregue a pessoa que
foi olhada pelo boto ou seu responsável caso ela esteja
incapacitada, para que seja jogado no rio onde houve o encante
para que o mesmo seja desfeito.
Para cessar a chuva Quando a chuva se anuncia a benzedeira fica de frente para as
nuvens escuras e reza uma oração gesticulando com o braço
direito no sentido de fazer as nuvens se dissiparem. Esse
procedimento é feito três vezes seguido, caso não surja o efeito
desejado é repedido quantas vezes forem preciso para que não
chova.
Encontrar coisas
A pessoa que teve um objeto ou animal que sumiu ou foi
perdidas ou
roubado, procura a benzedeira e relata o ocorrido, a benzedeira
roubadas
então se compromete que no outro dia irá relevar onde está o
objeto ou o animal sumido, e se foi roubado também revelará
quem fez o roubo. À noite, antes de dormir, a benzedeira reza a
oração específica, e em seguida ela dorme e sonha com o objeto
ou animal sumido. De manhã, a partir do sonho que teve, ela
revela ao interessado o paradeiro do objeto ou animal sumido e
118
em caso de roubo quem o praticou.
Ezipla
A pessoa com ezipla de regra fica sentada e mostra para a
benzedeira o local afetado, a benzedeira então inicia uma oração
e com uma faca apontando para o local afetado faz menção de
cortar o ferimento. A alusão ao corte é repetida por três vezes e
feito em forma de cruz. Ao final do procedimento ela prescreve
um tratamento a base de ungüentos e emplastos que deve ser
colocado na da ezipla, na maioria das vezes por uma semana.
Fonte: pesquisa de campo/2010.
Não podemos sistematizar o saber das benzedeiras, suas rezas, simpatias e
procedimento, como uma receita a ser seguida, existe uma série de elementos que fazem
parte do simbolismo da benzição no qual podemos citar ligação com o divino expresso
na religiosidade, a solidariedade contida no compromisso de fazer o bem, o
conhecimento adquirido, a relação com a natureza e as diversas formas de experiências
vivenciadas pelas benzedeiras que ocasionaram as práticas necessárias para que elas
interfiram de maneira direta em muitas enfermidades e outros problemas que acometem
parte da população parintinense que as procuram por acredita na eficácia da benzição.
Assim, a atuação das benzedeiras que são tão necessárias para curar ou aliviar a dor de
quem as buscam, também assegura de maneira espontânea a existência desse fenômeno
na cidade de Parintins.
119
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos apresentar no decorrer deste trabalho uma mostra do universo da
benzição em Parintins, município do Amazonas, a partir de histórias contadas pelas
mulheres que protagonizam a prática da benzição nessa cidade. Reunimos vários
elementos da prática de benzição baseado na orientação de Geertz (1989), como as
jaculatórias que nos remetem ao universo das experiências e práticas das benzedeiras.
Isto exigiu um olhar nos moldes de leituras em Lévi-Strauss (1975), que consiste em
descrever abundantemente os elementos ritualísticos da benzição.
Refletir e analisar a prática social da benzição que ainda ocorre na cidade de
Parintins, revelou-se num trabalho delicado e cujas leituras de Quintana (1999), Souza
(2002), Oliveira (1985) e Gomes e Pereira (2004), nos possibilitaram enxergar
semelhanças e contradições existentes nessa prática, pois mesmo que benzedeiras
existam em todo o Brasil, em Parintins benzer olhado de boto, mãe do corpo ou a
panema, fazem o diferencial nessas mulheres no campo da benzição.
Trabalhar com fontes orais nos permitiu ter acesso a uma nova reflexão a
respeito da história das mulheres benzedeiras de Parintins dentro da perspectiva da
História Oral, seguindo as propostas de Meyhi (2005). Já na História Social encontrei
suporte teórico nas concepções de Thompson (2001), que nos permitiu uma melhor
reflexão sobre o modo de vida, as expressões humanas e a cultura.
Verificar as práticas sociais de cura na cidade de Parintins a partir do olhar das
benzedeiras assume inigualável importância para a academia e, especialmente para os
movimentos de mulheres de Parintins, que buscam as manifestações de religiosidade
popular que ocorrem nas localidades do interior da Amazônia, em especial envolvendo
as mulheres.
Ainda se benze em Parintins e as benzedeiras desempenham um importante
papel social na cura de males específicos. Principalmente entre as classes populares que
reconhecem e divulgam sua atuação, uma vez que elas não fazem propaganda em jornal,
rádio, televisão ou panfleto. Deste modo, essas classes, ao difundirem a benzição,
consolidam o papel de atuação, permanência e reconhecimento das benzedeiras, pois
120
não é incomum em Parintins elas serem procuradas em diversos casos antes dos
médicos.
O reconhecimento da população dos procedimentos da benzição faz parte da
legitimação do papel da benzedeira, que juntamente com o aparecimento do dom de
benzer e do aprendizado, institui as condições necessárias para o prosseguimento do
ofício. Cabe ressaltar que essa legitimação pode ser materializada no agrado que sempre
é ofertado a benzedeira ao final de cada benzição, e que não deve ser confundido com o
pagamento da benzição, uma vez que cada benzedeira tem a consciência do seu papel de
doação e gratuidade instituído pelo dom recebido.
O espaço onde atuam as benzedeiras de Parintins encontra-se consolidado e
definido, pois não verificamos conflito graves com outros segmentos da sociedade. Esse
fenômeno não deve ser interpretado como um enfraquecimento de classe que não
oferece resistência social. Pelo contrario, deve ser visto como uma demarcação nascida
da necessidade de tratar as doenças que não fazem parte do campo de atuação dos
médicos. O que nos leva a reavaliar o termo medicina alternativa. Pois no caso das
benzedeiras as pessoas que procuram a benzição já sabem de antemão que para certas
enfermidades a cura reside na especialidade de cada benção.
Verificamos também que a medicina institucionalizada não interfere de maneira
aparente nos procedimentos de benzição, isso levou as benzedeiras de Parintins a
também se inserirem nos locais onde atuam os médicos. Assim, temos o conhecimento
popular transpondo os espaços destinados a medicina científica, na medida em as
benzedeiras tem o livre acesso para realizar seus procedimentos em hospitais e postos
de saúde da cidade. Esse entrelaçamento do saber científico com os procedimentos da
benzição ainda foi percebido quando constatamos que muitas pessoas não se importam
em procurarem as benzedeiras e os médicos ao mesmo tempo com o objetivo de
curarem seus males.
No campo da benzição percebemos que as mulheres delimitam um espaço
feminino dentro do território da religiosidade que, por muito tempo, foi palco exclusivo
dos homens. As benzedeiras ouvidas nesta pesquisa exercem chefia e poder em suas
casas, estendendo para o lar o domínio exercido na benzição justificado pelo dom e
missão recebidos de Deus.
Também constatamos no universo da benzição uma ligação intrínseca com a
floresta que influencia diretamente na vida e no dom das benzedeiras de Parintins. Essa
ligação se assemelha à pajelança cabocla sendo que, no caso da benzição em Parintins,
121
as mulheres benzedeiras não tem papéis secundários. Pelo contrário, elas tem uma forte
presença na atuação dessa prática, sem serem discriminadas como feiticeiras.
Chegamos até aqui após o longo caminho marcado com perdas familiares que
abriram feridas na alma que jamais cicatrizarão. Agora posso refletir sobre o doce sabor
da satisfação que sinto em concluir esta dissertação. Talvez concluir não seja a palavra
exata, pois esta pesquisa não significa o fim, mas o início de uma nova etapa de vida, a
prova da superação, que teve início no dia em que venci a luta contra a própria morte
depois de várias internações hospitalares.
A aproximação com o Poder Superior me levou a uma reflexão introspectiva
sobre os vários sentidos da experiência humana, contribuindo dessa maneira para uma
melhor compreensão da complexidade existente dentro da simplicidade de cada
benzido, benzição e benzedeira, pois, chegar até aqui, não foi fácil, em vários momentos
nos perdíamos dentro de nossas próprias inquietações, incertezas e inexperiência.
Assim ficou pronto, entretanto, temos a consciência de que o nosso olhar é tão
somente mais um caminho escolhido dentre as várias probabilidades de enxergar a
benzição como manifestação da religiosidade e cultura popular. Sabemos que não se
esgota aqui as possibilidades de pesquisa. Entretanto, esperamos que a mesma tenha
contribuído para as discussões que tratam de questões amazônicas, principalmente
àquelas que se referem à cidade de Parintins.
122
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