a prisão de jesus e a representação de judas em joão
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a prisão de jesus e a representação de judas em joão
A PRISÃO DE JESUS E A REPRESENTAÇÃO DE JUDAS EM JOÃO, 18, 1-12 POSTA EM PERSPECTIVA COM O UNIVERSO DA GNOSE NO EVANGELHO DE JUDAS1 ALAIN RABATEL Université Claude Bernard-Lyon 1-Iufm ICAR, UMR CNRS 5191, Université Lumière-Lyon 2 Resumo: Alain Rabatel2 realiza uma análise enunciativa e interacional de João, 18, 1-12 e mostra que o papel central de Jesus em sua prisão, bem como a ausência da menção dos gestos e palavras pelas quais Judas designa Jesus nos [Evangelhos] Sinóticos, reclamam uma reanálise no sentido de inocentar Judas e de realizar uma aproximação menos dicotômica do problema do mal. Em seguida, esta reavaliação é comparada com a representação de Judas na gnose, notadamente no Evangelho de Judas; ela destaca a importância das diferenças formais entre esses dois universos de pensamento, principalmente a dimensão argumentativa indireta da dramatização narrativa do texto de João. Frase: A ausência dos gestos e palavras de Judas na prisão de Jesus em Jo, 18, 1-12 advogam por uma reavaliação do personagem e de uma abordagem menos dicotômica do mal. Palavras-chave: Análise enunciativa e interacional. Pontos de vista. Narração. Valor argumentativo indireto do recito. Judas e o mal. Gnose. Resumé : Alain Rabatel procède à une analyse énonciative et interactionnelle de Jean, 18, 1-12 et montre que le rôle central de Jésus dans son arrestation, ainsi que l’absence de mention des gestes et paroles par lesquelles Judas désigne Jésus dans les synoptiques, plaident en faveur d’une réanalyse à décharge de Judas et d’une approche moins dichotomique du problème du mal. Cette réévaluation est ensuite mise en perspective avec la représentation de Judas dans la gnose, notamment dans l’Évangile de Judas ; elle souligne l’importance des différences formelles entre ces deux univers de pensée, notamment la dimension argumentative indirecte de la dramatisation narrative du texte johannique. Mots clés: analyse explicative et interactionnelle. Points de vue. Narration. Indirecte réciter argumentative de valeur. Judas et le mal. Gnose. Se as representações de Judas no Novo Testamento são bem conhecidas e bastante convergentes, em geral − no senso comum, pelo menos, isso se deu às custas da subestimação 1 Tradução para o português: Débora Massmann, docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem, e Benedito Fernando Pereira, discente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem 2 Alain Rabatel é professor de ciências da linguagem na Universidade Claude Bernard, Lyon 1-Iufm, e realiza pesquisas junto ao laboratório ICAR, UMR CNRS 5191 <http://icar.univlyon2.fr/membres/arabatel>. Ele é também membro associado do CELTED, Universidade Paul Verlaine, Metz. <http://www.univ-metz.fr/recherche/labos/celted/membres/page-personnelle-Rabatel.pdf>. 1 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > das discordâncias nos Evangelhos, como observa Hans-Joseph Klauck3 −, existe em João certa originalidade no tratamento textual reservado a Judas no capítulo 18 consagrado à prisão de Jesus. A encenação enunciativa e, de modo mais amplo, o ato de relatar, apresenta um ponto de vista relativamente novo em relação ao que emana dos fragmentos que evocam o mesmo acontecimento nos três outros Evangelhos canônicos. Desse modo, após um primeiro momento que rapidamente fará surgir um certo número de diferenças em relação aos Evangelhos Sinóticos, vamos realizar, num segundo momento, uma interpretação dialógica da cenografia enunciativa e da organização composicional, acrescentando em certa medida o papel do terceiro no diálogo, de acordo com a fórmula de Mikhail Bakhtin. Interessar-nos-emos menos pela análise da estrutura, na medida em que ela trata da história, do que pela atividade que configura a narração e as questões teológicas e filosóficas que subentendem certo número de escolhas para o autor como para seu coenunciador. O conjunto da encenação enunciativa coloca Jesus no centro do processo interacional, o Cristo à frente dos acontecimentos, se não desejados por ele, pelo menos por ele assumidos, e é nisso que a dramatização desta narrativa da Paixão ultrapassa o trágico abrindose a uma escatologia da esperança – ao mesmo tempo em que o papel de Judas se encontra relativizado. Num terceiro momento, confrontaremos esta representação original de Jesus e de Judas com o universo da gnose, particularmente com o Evangelho de Judas. Se não é o caso de explicar um texto por outro que diz respeito a outra época e a outro universo teológico é, apesar de tudo, legítimo e útil que se questione sobre o abalo interpretativo aberto pelo texto de João – como seria interessante tratar, mesmo se não tivermos espaço de fazê-lo aqui, sobre a fixação do caráter acusador do personagem de Judas, nos comentários surgidos a partir dos Evangelhos. Sem entrar nesse debate, pelo menos mostraremos que a análise linguística dos discursos tem condição de trazer esclarecimentos úteis sobre os discursos constituintes4 que são os textos sagrados. Se os discursos de exortação constrõem edificações fieis privilegiando fortemente dicotomias externas (Bem vs Mal, Jesus vs Judas), as aproximações exegéticas, como a nossa aproximação linguística do Evangelho de João (sobretudo a propósito de João 18, 1-12) colocando em relevo as tensões internas que atravessam igualmente Jesus e Judas, que se inserem na perspectiva cristológica do enviado, figura da encarnação divina que representa Deus mesmo sendo diferente Dele, como aparece de modo particularmente forte na narrativa da Paixão. 1. Análise diferencial da representação de Judas nos quatro Evangelhos 1.1. Questões metodológicas Para não sobrecarregar nossos propósitos (e não ficarmos repetitivos), vamos nos limitar a cinco observações preliminares importantes de um ponto de vista teórico. a) O quadro teórico de nossas investigações enunciativas se assenta numa aproximação ducrotiana da separação locutor/enunciador e da noção de ponto de vista5. A concepção da enunciação que defendemos não se limita à atualização dos discursos sobre o eu/aqui/agora, ela concerne ao conjunto do material discursivo, tanto que a presença do enunciador pode ser lida por toda parte através de suas escolhas de referências dos objetos do discurso, 3 Hans-Joseph KLAUCK, Judas, un disciple de Jésus, Paris, Éditions du Cerf, 2006. Ver Dominique MAINGUENEAU & Frédéric COSSUTTA, « L’analyse des discours constituants », Langages n° 117, 1995, 112-125. 5 Ver Oswald DUCROT, Le dire et le dit, Paris, Éditions de Minuit, 1984 ; Alain RABATEL, Argumenter en racontant, Bruxelles, DeBoeck, 2004 ; « Une catégorie transversale, le point de vue », Le français aujourd’hui, n° 151, 2005, 57-68. 4 2 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > independentemente das escolhas da atualização dêitica ou da não-atualização6. A noção de encenação enunciativa também está longe de se limitar à descoberta de marcas pessoais… b) Remetemo-nos a publicações anteriores dedicadas ao Antigo Testamento7 para justificar a escolha de nossas análises enunciativas, narratológicas, em sincronia com as traduções da Bíblia (mesmo se elas não se privam de recorrer aos textos originais)8. Se nossos estudos enunciativos valem para a Bíblia em francês, e não para o hebraico ou o grego, em todo caso, a análise rigorosa da referência está em condição de esclarecer um certo número de dificuldades devidas, umas vezes a problemas de tradução, outras vezes a formulações obscuras nas versões originais. Em suma, a análise enunciativa pode dar explicações consistentes a um certo número de problemas que alimentaram inúmeros comentários de ordem teológica, apologética ou exegética, como se tentou mostrar respectivamente a propósito do papel das percepções em 1 Samuel 17, 4-51, sobre a alternância dos tu e dos vós no Deuteronômio, ou relativamente ao status das repetições e reformulações das palavras divinas no Êxodo9. Evidentemente, a análise enunciativa não pretende responder a tudo, nem substituir outras abordagens, mas ela oferece ensinamentos complementares que devem ser levados a sério. Os dados narratológicos, à diferença dos dados enunciativos, apresentam menos problemas de deslocamento de uma língua a outra, sobretudo se se imagina a narratividade no plano das estruturas profundas, à maneira da semiótica greimasiana, tal como ela foi magistralmente colocada em prática, por exemplo, por Louis Marin10. As dificuldades surgem com a análise interacional e enunciativa da narração, ou seja, com a problemática da formulação no discurso, indo do mais circunscrito (elocutio) ao mais amplo (dispositio e inventio). Mas isso não é tudo. Ainda que se esteja procurando elucidar a Bíblia com as análises linguísticas e semióticas11, propondo elementos de teologia narrativa12, ainda assim é fundamental saber manter-se modesto circunscrevendo tanto quanto possível as origens e as consequências de sua 6 Ver Alain RABATEL, « La part de l’énonciateur dans la construction interactionnelle des points de vue », Marges linguistiques n° 9, 2005, 115-136. http://www.marges-linguistiques.com. 7 Ver Alain RABATEL, « Points de vue et représentations du divin dans 1 Samuel 17, 4-51. Le récit de la Parole et de l’agir humain dans le combat de David contre Goliath », in Regards croisés sur le texte biblique. Etudes sur le point de vue, RRENAB (éd.), Paris, Éditions du Cerf, 2007, 15-55 ; « Répétitions et reformulations dans L’Exode : coénonciation entre Dieu, ses représentants et le narrateur », in Usages et analyses de la reformulation, Mohamed KARA (éd.), Metz, Celted, 2007, 75-96 ; « L’alternance des tu et des vous dans Le Deutéronome : deux points de vue sur le rapport des fils d’Israël à l’Alliance », Études théologiques et religieuses, 2007, t. 82, vol. 4, 567-593. 8 Agradecimentos a Yvan Bourquin, Michel Gourgues, Jean-Daniel Kaestli, Elian Cuvillier e Alain Marchadour por suas observações e encorajamentos. Os eventuais erros suscetíveis de subsistir após nossas conversas são meus. 9 Ver supra, n. 6. 10 Ver Louis MARIN Sémiotique de la Passion. Topiques et figures, Paris, Aubier, Éditions du Cerf, Delachaux et Niestlé, Desclée de Brouwer, 1971. 11 Ver igualmente Jean-Pierre DESCLÉS et Gaëll GUILBERT, « Jonas ou la volonté de dialoguer », Sémiotique et Bible n° 126, 2007, 34-63, et n° 127, 40-67. 12 Ver R. Alan CULPEPPER, « La narratologie et l’Évangile de Jean », in La communauté johannique et son histoire. La trajectoire de l’évangile de Jean aux deux premiers siècles, Jean-Daniel KAESTLI, JeanMichel POFFET et Jean ZUMSTEIN (éds.), Genève, Labor et Fides, 1990, 97-120 ; « Un exemple de commentaire fondé sur la critique narrative : Jean 5, 1-18 », Ibid. 135-151 ; Jean ZUMSTEIN, « Lecture narratologique du cycle pascal du 4e évangile », Etudes théologiques et religieuses, 2001, t. 76, vol. 1, 115 ; « Paul et la théologie de la croix », Etudes théologiques et religieuses, 2001, t. 76, vol. 4, 481-495 ; L’évangile selon saint Jean (13-21). Commentaire du Nouveau Testament. 2e série, Genève, Labor et Fides, 2007 ; Alain MARCHADOUR, Les personnages dans l’évangile de Jean. Miroir pour une christologie narrative, Paris, Éditions du Cerf, 2004 ; Yvan BOURQUIN, Marc, une théologie de la fragilité. Obscure clarté d’une narration, Genève, Labor et Fides, 2005 ; Alain RABATEL, « Points de vue et représentations du divin dans 1 Samuel 17, 4-51. Le récit de la Parole et de l’agir humain dans le combat de David contre Goliath », op. cit. 2007, 15-55. 3 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > pesquisa e conservando para si o caráter complexo da conversão dos dados narratológicos e enunciativos em elementos de uma teologia narrativa que não pretende ocupar todo o campo, muito pelo contrário! c) É evidente que um estudo aprofundado das relações entre Judas, o Cristo e o mal requerem a apreensão de todas as ocorrências nas quais os Evangelhos tratam de Judas13. Desde o advento da modernidade no século XVII, numerosos trabalhos foram consagrados, não somente às semelhanças e à harmonia dos Evangelhos, como nos séculos precedentes, mas também às diferenças de um Evangelho para com outro, insistindo principalmente na filiação entre os três Evangelhos sinóticos e sobre as especificidades do texto de João14. Não listaremos a totalidade das diferenças entre João e os três outros Evangelhos no relato da Paixão15. Vamos focar nos dois episódios cruciais, de um lado o anúncio de Jesus de sua morte, e de outro, o relato de sua prisão, uma vez que Judas tem aí um papel particularmente importante, o qual não pode ser compreendido senão em sua relação solidária com Jesus e também, em menor medida, com Pedro. Daremos mais adiante os trechos em questão, depois listaremos as diferenças mais significativas para o nosso propósito. d) Quando dizemos “João”, sua cenografia enunciativa, sua teologia, sabemos bem que o termo lamentavelmente opacifica a história complexa do texto e dos seus diferentes escritores, para além mesmo da existência de João, o evangelista, (já que a “candidatura” de João, o Zebedeu, não é autêntica e que aquela do presbítero João está desmentida). De fato, utilizaremos a expressão “João” para remeter à imagem global do enunciador do Evangelho lido em sincronia, enunciador sincrético que corresponde, seja à soma das contribuições do mesmo escritor, seja à de escritores diferentes que trazem a mesma visão religiosa, neste caso, a escola de João. Por fim, os dois excertos que evocaremos, em 13 e em 18, em seu todo, parecem remontar à mesma origem − enquanto que os capítulos 15 a 17 são interpolações mais tardias16 −, de modo que a nossa invocação do ponto de vista de “João” se refere a fragmentos relativamente homogêneos. e) Evocaremos várias vezes a noção de interdiscurso. O interdiscurso, é aqui uma diferença teórica com o intertexto, mais instável, mais evolutivo que este último, feito de locutores anônimos e de circulação de dizeres sem que estes reportem necessariamente a um autor claramente identificado. É a este interdiscurso, por mais efêmero que seja, que fazemos alusão: o interdiscurso constitui (e se constitui) das maneiras de ver, criando assim comunidades de pertencimento mais ou menos estruturadas, mais ou menos homogêneas. É, pois, em relação a ele que dizemos que João escolheu não mencionar as palavras de Judas por ocasião da prisão de Jesus: nós postulamos que João conhecia os relatos anteriores da Paixão, e que ele tenha criado algo original pelo modo como os textualiza discursivamente. Este interdiscurso é uma ficção: dizendo isto, não queremos dizer que ele não existe, mas simplesmente que é uma 13 Ver H.-J. Klauck, op. cit. Ver sobretudo Jean ZUMSTEIN, « L’évangile selon Jean », in Introduction au Nouveau Testament. Son histoire, son écriture sa théologie, Daniel MARGUERAT (éd.), 2000, 2004, Genève, Labor et Fides, 345370, principalmente 345-346, ainsi que R. Alan CULPEPPER, Anatomy of the Fourth Gospel : A Study in Literary Design. Fortress Press, Philadelphia, 1983 ; Yvan BOURQUIN, « Bibliographie de contributions récentes en analyse narrative » Etudes théologiques et religieuses 77, 2002, 79-93 e Daniel MARGUERAT (éd.), op. cit. 2000, 3e édition, 2004. 15 Ver sobretudo Pierre BENOIT et Marie-Émile BOISMARD, Synopse des quatre évangiles en français avec des parallèles des apocryphes et des Pères, Tome 1 Textes, 1965, Éditions du Cerf, Paris ; Franck KERMODE, « Jean », in Encyclopédie littéraire de la Bible, Robert ALTER et Franck KERMODE (éds.), Paris, Bayard, 2003, 539-569, principalmente 562-567. 16 Ver Johannes BEUTLER, « La recherche johannique aujourd’hui », in La communauté johannique et son histoire. La trajectoire de l’évangile de Jean aux deux premiers siècles, Jean-Daniel KAESTLI, JeanMichel POFFET et Jean ZUMSTEIN (éds.), Genève, Labor et Fides, 1990, 37-38 ; J. Zumstein 2004, op. cit. 14 4 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > construção evolutiva segundo as redes, no sentido em que Bruno Latour fala do ator-rede17, em perpétua negociação e evolução, formando um conjunto mais ou menos consolidado conforme as comunidades de valores e de discursos que os exprimem, fórmulas que são retomadas, citadas, integradas, de modo a promover uma visão de mundo homogênea e a construir gêneros particulares, e mesmo, numa fase ulterior, a influenciar outros conteúdos e outros gêneros. Segue-se que o interdiscurso bíblico é uma noção a ser trabalhada com precaução, no plano histórico, pelas razões que acabamos de dizer, mas também porque elas alteram as representações que nós fazemos dele hoje, e também as representações do passado que podem influenciar mais ou menos positivamente em nossos modos de pensar. Como observa JeanDaniel Kaestli, a abordagem típica da leitura tradicional dos Evangelhos repousa sobre o postulado de uma “harmonia evangélica, um relato que reúne em um todo coerente os dados de cada um dos Evangelhos” (correspondência privada). Uma vez postas essas observações, entramos na análise das diferenças proeminentes entre João e os sinóticos a propósito do anúncio da morte de Jesus e, depois, do relato de sua prisão. 1.2. Anúncio da morte de Jesus (1) 14, 18 Quando estavam à mesa e comiam, disse Jesus: Em verdade vos digo que um dentre vós, o que come comigo, me trairá. 19 E eles começaram a entristecer-se e a dizerlhe, um após outro: Porventura, sou eu? 20 Respondeu-lhes: É um dos doze, o que mete comigo a mão no prato. 21 Pois o Filho do Homem vai, como está escrito a seu respeito; mas ai daquele por intermédio de quem o Filho do Homem está sendo traído! Melhor lhe fora não haver nascido!18 (Evangelho segundo são Marcos 14, 18-21, Novo Testamento, Barueri-SP, Sociedade Bíblica do Brasil, 2009). (2) 26, 20 Chegada a tarde, pôs-se ele à mesa com os doze discípulos. 21 E, enquanto comiam, declarou Jesus: Em verdade vos digo que um dentre vós me trairá. 22 E eles, muitíssimo contristados, começaram um por um a perguntar-lhe: Porventura, sou eu, Senhor? 23 E ele respondeu: O que mete comigo a mão no prato, esse me trairá. 24 O Filho do Homem vai, como está escrito a seu respeito, mas ai daquele por intermédio de quem o Filho do Homem está sendo traído! Melhor lhe fora não haver nascido! 25 Então, Judas, que o traía, perguntou: Acaso, sou eu, Mestre? Respondeu-lhe Jesus: Tu o disseste19. (Evangelho segundo são Mateus, 26, 20-25, Novo Testamento, Barueri-SP, Sociedade Bíblica do Brasil, 2009). (3) 22, 21 Todavia, a mão do traidor está comigo à mesa. 22 Porque o Filho do Homem, na verdade, vai segundo o que está determinado, mas ai daquele por intermédio de quem ele está sendo traído! 23 Então, começaram a indagar entre si quem seria, dentre eles, o que 17 Ver Bruno LATOUR, Changer de société ~ Refaire de la sociologie, Paris, La Découverte, 2006, 9295 et 122-123. 18 Versão francesa: 14, 18 Pendant qu’ils étaient à table et mangeaient, Jésus dit : « En vérité je vous le déclare, l’un de vous va me livrer, un qui mange avec moi. » 19 Pris de tristesse, ils se mirent à lui dire l’un après l’autre : « Serait-ce moi ? » 20 Il leur dit : « C’est l’un des Douze, un qui mange avec moi. » 21 Car le Fils de l’homme s’en va selon ce qui est écrit de lui, mais malheureux l’homme par qui le Fils de l’homme est livré ! Il vaudrait mieux pour lui qu’il ne soit pas né, cet homme-là ! » (Evangile selon saint Marc 14, 18-21, Nouveau Testament, Paris, Éditions du Cerf, 1977, TOB, 172) 19 Versão francesa: 26, 20 Le soir venu, il était à table avec les Douze. 21 Pendant qu’ils mangeaient, il dit : « En vérité, je vous le déclare, l’un de vous va me livrer. » 22 Profondément attristés, ils se mirent chacun à lui dire : « Serait-ce moi, Seigneur ? » 23 En réponse il dit : « Il a plongé la main avec moi dans le plat, celui qui va me livrer. 24 Le Fils de l’Homme s’en va selon ce qui est écrit de lui ; mais malheureux l’homme par qui le Fils de l’homme est livré ! Il aurait mieux valu pour lui qu’il ne fût pas né, cet homme-là ! » 25 Judas, qui le livrait, prit la parole et dit : « Serait-ce moi, Rabbi ? » Il lui répond : « Tu l’as dit ! » (Evangile selon saint Matthieu, 26, 20-25, Nouveau Testament, Paris, Éditions du Cerf, 1977, TOB, 114-115) 5 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > estava para fazer isto20. (Evangelho segundo são Lucas, 22, Barueri-SP, Sociedade Bíblica do Brasil, 2009). 21-23 , Novo Testamento, (4) 13 21 Ditas estas coisas, angustiou-se Jesus em espírito e afirmou: Em verdade, em verdade vos digo que um dentre vós me trairá. 22 Então, os discípulos olharam uns para os outros, sem saber a que ele se referia. 23 Ora, ali estava aconchegado a Jesus um dos seus discípulos, aquele a quem ele amava; 24 a esse fez Simão Pedro sinal, dizendo-lhe: Pergunta a quem ele se refere. 25 Então, aquele discípulo, reclinando-se sobre o peito de Jesus, perguntou-lhe: Senhor, quem é? 26 Respondeu Jesus: É aquele a quem eu der o pedaço de pão molhado. Tomou, pois, um pedaço de pão e, tendo-o molhado, deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes. 27 E, após o bocado, imediatamente, entrou nele Satanás. Então, disse Jesus: O que pretendes fazer, faze-o depressa. 28 Nenhum, porém, dos que estavam à mesa percebeu a que fim lhe dissera isto. 29 Pois, como Judas era quem trazia a bolsa, pensaram alguns que Jesus lhe dissera: Compra o que precisamos para a festa ou lhe ordenara que desse alguma coisa aos pobres. 30 Ele, tendo recebido o bocado, saiu logo. E era noite 21. (Evangelho segundo são João, 13, 21-30, Novo Testamento, Barueri-SP, Sociedade Bíblica do Brasil, 2009). Esses relatos são construídos sobre uma estrutura da troca, com fases de abertura, reação e de fechamento da troca. Quadro das diferenças e semelhanças no relato do anúncio da morte de Jesus: Mc Mt Lc Abertura: anúncio da “traição”/da “entrega” + + + Reação 1: Designação do “traidor”/“doador” [“Mergulhou a mão comigo no prato, aquele que vai me entregar”] + + + Judas é o agente de um comportemento que o denuncia Reação 2: Jesus designa o “traidor” dando-lhe de comer. Judas agiu como instrumento involuntário do drama Fechamento 1: Jesus fala de Judas [delocutado] + + + [“infeliz o homem pelo qual o Filho do homem foi entregue”] Fechamento 2: Jesus se dirige a Judas [alocucionário] [“O que tens a fazer, faça logo”] Jo + + + Em João, Judas não é “traído” pelo gesto de comer 22, à diferença dos Evangelhos sinóticos23: é um alocucionário de Jesus. A diferença é enorme, de um ponto de vista 20 Versão francesa: 22, 21 « Mais voici : la main de celui qui me livre se sert à cette table avec moi. 22 Car le fils de l’homme s’en va selon ce qui a été fixé. Mais malheureux cet homme par qui il est livré ! » 23 Et ils se mirent à se demander les uns aux autres lequel d’entre eux allait faire cela. (Evangile selon saint Luc, 22, 21-23, Nouveau Testament, Paris, Éditions du Cerf, 1977, TOB, 270) 21 Versão francesa: 13 21 Ayant ainsi parlé, Jésus fut troublé intérieurement et il déclara solennellement : « En vérité, en vérité, je vous le dis, l’un d’entre vous va me livrer. » 22 Les disciples se regardaient les uns les autres, se demandant de qui il parlait. 23 Un des disciples, celui-là même que Jésus aimait, se trouvait à côté de lui. 24 Simon Pierre lui fit signe : « Demande de qui il parle » ; 25 le disciple se pencha alors vers Jésus et lui dit : « Seigneur, qui est-ce ? » 26 Jésus répondit : « C’est celui à qui je donnerai la bouchée que je vais tremper. » Sur ce, Jésus prit la bouchée qu’il avait trempée et il la donna à Judas Iscariote, fils de Simon. 27 C’est à ce moment, alors qu’il lui avait offert cette bouchée, que Satan entra en Judas. Jésus lui dit alors : « Ce que tu as à faire, fais-le vite. » 28 Aucun de ceux qui étaient là ne comprit pourquoi il avait dit cela. 29 Comme Judas tenait la bourse, quelques-uns pensèrent que Jésus lui avait dit d’acheter ce qui était nécessaire pour la fête, ou encore de donner quelque chose aux pauvres. 30 Quant à Judas, ayant pris la bouchée, il sortit immédiatement : il faisait nuit. (Evangile selon saint Jean, 13, 21-30, Nouveau Testament, Éditions du Cerf, Paris, 1977, TOB, 328-329) 22 NB: “quem come comigo” pode ser interpretado como classificante ou como qualificante: classificante, indica a companhia sem remeter a um gesto factual que deixaria incoerente as interrogações seguintes. Qualificante (a hipótese é mais difícil no contexto, em Marcos, mas plausível em Lucas pelo fato de os valores temporais do presente ou do passado composto em Mateus), remete ao gesto que permite 6 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > enunciativo e interacional. Nos outros Evangelhos, Judas, por sua natureza de delocutado, está como que ausente de uma comunicação (e de uma comunhão) com o Cristo e os outros apóstolos, como se a delocução fosse o sinal linguístico de uma exclusão da comunidade dos fiéis e dos apóstolos. Por outro lado, no Evangelho segundo são João, Judas é um locutor/enunciador em pé de igualdade com o Cristo e os outros apóstolos. João põe em cena, no plano enunciativo, a imagem de um Judas menos “traidor”24 do que o descrito pela tradição, menos distante em relação ao conjunto dos apóstolos ou ao Cristo. Dai o fato que, em nosso quadro, agregamos à denominação tradicional de “traidor” a de “doador”25, mais conforme ao texto: não aquele que entrega um amigo a seus inimigos (mesmo se a polissemia é interessante), mas o agente da entrega (aquele “por quem o filho do Homem é entregue”26). Essa tradução, conforme ao original, é de todo modo fundamental, tanto a interpretação dominante da traição de Judas alimentou um antisemitismo religioso com relação ao povo deicida27 que não está conforme aos textos28, também compartilhamos suas advertências: Faremos a este propósito uma proposta bem concreta: que se evite conscientemente no futuro de falar do “traidor” Judas, ou, onde parecer inevitável, que pelo menos se usem as palavras “traidor” “trair”, “traição” entre aspas, e que, na medida do possível, se explique numa nota que essas palavras não dizem a realidade histórica, mas exprimem somente uma interpretação duvidosa de autores do cristianismo primitivo (H.-J. Klauck, op. cit. 171). Essas diferenças entre João e os outros evangelistas se encontram por ocasião da prisão de Jesus, que abre a seção da Paixão do Cristo. 1.3. A prisão de Jesus (5) 14 43 E logo, falava ele ainda, quando chegou Judas, um dos doze, e com ele, vinda da parte dos principais sacerdotes, escribas e anciãos, uma turba com espadas e porretes. 44 Ora, o traidor tinha-lhes dado esta senha: Aquele a quem eu beijar, é esse; prendei-o e levai-o com segurança. 45 E, logo que chegou, aproximando-se, disse-lhe: Mestre! E o beijou. 46 Então, lhe deitaram as mãos e o prenderam29. (Evangelho segundo Marcos 14, 4346 , Novo Testamento, Barueri-SP, Sociedade Bíblica do Brasil, 2009). (6) 26, 47 Falava ele ainda, e eis que chegou Judas, um dos doze, e, com ele, grande turba com espadas e porretes, vinda da parte dos principais sacerdotes e dos anciãos do povo. 48 Ora, o traidor lhes tinha dado este sinal: Aquele a quem eu beijar, é esse; prendei-o. 49 E logo, aproximando-se de Jesus lhe disse: Salve, Mestre! E o beijou. 50 Jesus, porém, lhe disse: Amigo, para que vieste? Nisto, aproximando-se eles, deitaram as mãos em Jesus e o reconhecer Judas. Em todos os três Evangelhos, este gesto é opaco aos outros apóstolos tanto como a Judas. 23 Ver Pierre-Emmanuel DAUZAT, Judas. De l’Évangile à l’Holocauste, Paris, Bayard, 2006, 33. 24 O termo “traidor” só aparece em Lc, 6, 16 (prodotês); nos outros Evangelhos, o termo paradidômi, “entregar” tem um sentido muito amplo, que vai desde a evocação de um ato violento a um ato permitido pelos deuses (ibid. 30-31). 25 Ver L. Marin, op. cit. 164-165, 178. 26 Na Epístola aos Gálatas, diz-se que Jesus se entregou por nós (Ga, 2, 20), na Epístola aos Romanos, que Deus o entregou (Rm, 8, 32) ou que ele foi entregue (Rm 4, 25), por Deus, “que funciona como sujeito lógico do passivo teológico” (H.-J. Klauck, op. cit. 46). 27 “A presença de Judas no arsenal das armas do antisemitismo moderno mereceria, por si só, ser objeto de um livro” (H.-J. Klauck, op. cit. 15). Ver igualmente P.-E. Dauzat, op. cit. 28 Ver H.-J. Klauck, op. cit. 15, 99, 171. 29 Versão francesa: 14 43 Au même instant, comme il parlait encore, survient Judas, l’un des Douze, avec une troupe armée d’épées et de bâtons qui venait de la part des grands prêtres, des scribes et des anciens. 44 Celui qui le livrait avait convenu avec eux d’un signal : « Celui à qui je donnerai un baiser, avait-il dit, c’est lui ! Arrêtez-le et emmenez-le sous bonne garde. » 45 Sitôt arrivé, il s’avance vers lui et lui dit : « Rabbi. » Et il lui donna un baiser. 46 Les autres mirent la main sur lui et l’arrêtèrent. (Evangile selon saint Marc 14, 43-46, Nouveau Testament, Paris, Éditions du Cerf, 1977, TOB, 173-174) 7 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > prenderam30. (Evangelho segundo Mateus, 26, Sociedade Bíblica do Brasil, 2009). 47-50 , Novo Testamento, Barueri-SP, (7) 22, 47 Falava ele ainda, quando chegou uma multidão; e um dos doze, o chamado Judas, que vinha à frente deles, aproximou-se de Jesus para o beijar. 48 Jesus, porém, lhe disse: Judas, com um beijo trais o Filho do Homem? 31 (Evangelho segundo Lucas, 22, 47-48, Novo Testamento, Barueri-SP, Sociedade Bíblica do Brasil, 2009). (8) 18, 1 Tendo Jesus dito estas palavras, saiu juntamente com seus discípulos para o outro lado do ribeiro Cedron, onde havia um jardim; e aí entrou com eles. 2 E Judas, o traidor, também conhecia aquele lugar, porque Jesus ali estivera muitas vezes com seus discípulos. 3 Tendo, pois, Judas recebido as escolta e, dos principais sacerdotes e fariseus, alguns guardas, chegou a este lugar com lanternas, tochas e armas. 4 Sabendo, pois, Jesus todas as coisas que sobre ele haviam de vir, adiantou-se e perguntou-lhes: A quem buscais? 5 Responderam-lhe: A Jesus, o Nazareno. Então, Jesus lhes disse: Sou eu. Ora, Judas, o traidor, estava também com eles. 6 Quando, pois, Jesus lhes disse: Sou eu, recuaram e caíram por terra. 7Jesus, de novo, lhes perguntou: A quem buscais? Responderam: A Jesus, o Nazareno. 8 Então, lhes disse Jesus : Já vos declarei que sou eu; se é a mim, pois, que buscais, deixai ir estes; 9 para se cumprir a palavra que dissera: Não perdi nenhum dos que me deste. 10 Então, Simão Pedro puxou da espada que trazia e feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha direita; e o nome do servo era Malco. 11 Mas Jesus disse a Pedro: Mete a espada na bainha; não beberei, porventura, o cálice que o Pai me deu? 12 Assim, a escolta, o comandante e os guardas dos judeus prenderam Jesus, manietaram-no [...]32 (Evangelho segundo São João, 18, 1-12, Novo Testamento, Barueri-SP, Sociedade Bíblica do Brasil, 2009). João opta por não mencionar as palavras de Judas que indicam Jesus aos soldados que vêm prendê-lo e, em contrapartida, ele dá a Jesus um papel central na condução do processo, o que, como se verá mais em detalhe, repercute na imagem discursiva de Judas. O relato, ao não mencionar as palavras de Judas, inscreve o papel deste último na realização da profecia. Judas não é mais um “traidor” intrinsecamente mau, mas é aquele que, por sua maldade, foi escolhido 30 Versão francesa : 26, 47 Il parlait encore quand arriva Judas, l’un des douze, avec toute une troupe armée d’épées et de bâtons, envoyée par les grands prêtres et les anciens du peuple. 48 Celui qui le livrait leur avait donné un signe : « Celui à qui je donnerai un baiser, avait-il dit, c’est lui, arrêtez-le ! » 49 Aussitôt il s’avança vers Jésus et dit : « Salut, rabbi ! » Et il lui donna un baiser. 50 Jésus lui dit : « Mon ami, fais ta besogne ! ». S’avançant alors, ils mirent la main sur Jésus et l’arrêtèrent. (Evangile selon saint Matthieu, 26, 47-50, Nouveau Testament, Paris, Éditions du Cerf, 1977, TOB, 116) 31 Versão francesa : 22, 47 Il parlait encore quand survint une troupe. Celui qu’on appelait Judas, un des Douze, marchait à sa tête ; il s’approcha de Jésus pour lui donner un baiser. 48 Jésus lui dit « Judas, c’est par un baiser que tu livres le Fils de l’homme ! » (Evangile selon saint Luc, 22, 47-48, Nouveau Testament, Paris, Éditions du Cerf, 1977, TOB, 272) 32 Versão francesa : 18, 1 Ayant ainsi parlé, Jésus s’en alla, avec ses disciples, au-delà du torrent du Cédron ; il y avait là un jardin où il entra avec ses disciples. 2 Or Judas, qui le livrait, connaissait l’endroit car Jésus y avait maintes fois réuni ses disciples. 3 Il prit la tête de la milice et des gardes fournis par les grands prêtres et les Pharisiens, il gagna le jardin avec torches, lampes et armes. 4 Jésus sachant tout ce qui allait lui arriver, s’avança et leur dit : « Qui cherchez-vous ? » 5 Ils lui répondirent : « Jésus le Nazôréen ». Il leur dit : « C’est moi. » Or, parmi eux, se tenait Judas qui le livrait. 6 Dès que Jésus leur eut dit ‘‘C’est moi’’, ils eurent un mouvement de recul et tombèrent. 7 À nouveau, Jésus leur demanda : « Qui cherchez-vous ? » Ils répondirent : « Jésus le Nazôréen. » 8 Jésus leur répondit : « Je vous l’ai dit, c’est moi. Si c’est donc moi que vous cherchez, laissez aller ceux-ci. » 9 C’est ainsi que devait s’accomplir la parole que Jésus avait dite : « Je n’ai perdu aucun de ceux que tu m’as donnés. » 10 Alors Simon Pierre, qui portait un glaive, dégaina et frappa le serviteur du grand prêtre, auquel il trancha l’oreille droite ; le nom de ce serviteur était Malchus. 11 Mais Jésus dit à Pierre : « Remets ton glaive dans ton fourreau ! Comment ? je ne boirais pas la coupe que le Père m’as donnée ? ». 12 La milice avec son commandement et les gardes des Juifs saisirent donc Jésus et ils le ligotèrent. (Evangile selon Saint Jean, 18, 1-12, Nouveau Testament, Paris, Éditions du Cerf, 1977, TOB, 341) 8 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > como instrumento pelo qual acontece a Paixão do Cristo. Esta diferença é significativamente marcada, não só no relato da prisão, mas ela esteve indicada desde o anúncio desta última, já que o texto menciona em 13, 27, que é depois que Jesus lhe ofereceu de comer que se afirma “que Satã entrou em Judas”33. Tabela de diferenças e semelhanças no relato da prisão de Jesus: Mc Chegada de Judas com a tropa + Menção narrativa do sinal + Judas revela (DD) aos soldados o sinal + Indicação (DD) e Judas voltado a Jesus + Resposta (DD) de Jesus a Judas – Agressão de Pedro – Prisão de Jesus + Mt + + + + – – + Lc + + + + – – + Jo + – – – + + + Qualquer que seja a data do Evangelho de João, sua singularidade tem como base o interdiscurso dos três Evangelhos sinóticos34. A recorrência desta singularidade é, por si só, significativa. Mas é tempo agora de precisar as características destas especificidades joaninas, em 18, com a ajuda de uma análise enunciativa e interacional. 33 A fórmula está igualmente em Lc, 22, 3-4; muitos observam, porém, que se, em Lucas, a presença do diabo parece tirar a culpa de Judas, em João acontece de forma diferente, já que a cumplicidade de Judas com o diabo seria tal que ele seria um disfarce do diabo, a forma humana de Satã (P.-E. Dauzat, op. cit. 34). Mas se esse é o caso, não compreendemos bem em que esta situação culpabilizaria Judas: Orígenes já tinha observado que na mensagem de Jesus (“o que tendes que fazer, faze-o depressa”) não se sabe se a apóstrofe se refere ao diabo ou a Judas (Orígenes, Sobre o Evangelho de João, XXXII). 34 A tese de um quarto Evangelho claramente mais tardio que os três outros é daí em diante atacada em proveito de uma hipótese segundo a qual os quatro Evangelhos teriam sido escritos em comunidades eclesiásticas diferentes, entre 40 e 65 da nossa era. De fato, de acordo com Robinson, em Redading the New Testament, as datas seriam mais precisamente 45-60 para Marcos, 40-60 para Mateus, 57-60 para Lucas, 40-65 para João. Enfim, segundo essas datações (ver F. Kermode, op. cit. 540), as hipóteses de um texto original de Marcos no qual se teriam inspirado Mateus e Lucas (reduzindo algumas passagens narrativas e relatando mais as palavras de Cristo) seriam questionadas, assim como a de um texto de João mais tardio. Mas a comunidade científica está longe de ter confirmado essas hipóteses − ver a crítica de Robert M. Grant no Journal of Biblical Literature 97, 294-296 −, já que a data mais comumente aceita é o fim do 1o século, após 85 e antes de 125 (ver J. Zumstein, 2004, 361). Sobre as relações entre o Evengelho de João e os sinóticos, ver J. Zumstein, 2004, op. cit. 353-355 assim como J.-D. Kaestli, J.-M. Poffet et J. Zumstein, 1990, e principalmente os artigos de J. Beutler, A. Dettwiler (Andreas DETTWILER, « Le prologue johannique », in La communauté johannique et son histoire. La trajectoire de l’évangile de Jean aux deux premiers siècles, Jean-Daniel KAESTLI, Jean-Michel POFFET et Jean ZUMSTEIN, op. cit. 1990, 185-203), para o capítulo 1 e de J. Zumstein para o capítulo 21 do Evangelho segundo João (Jean ZUMSTEIN, « La rédaction finale de l’Évangile selon Jean (a exemplo do capítulo 21) », in La communauté johannique et son histoire. La trajectoire de l’évangile de Jean aux deux premiers siècles, Jean-Daniel KAESTLI, Jean-Michel POFFET et Jean ZUMSTEIN (éds.), op. cit. 1990, 207-230). Do mesmo modo, H.-J. Klauck continua a pensar que o Evangelho de João é mais tardio. Não temos competência para responder essa questão, mesmo se nos parece sensato adotar a opinião geral. De qualquer maneira, mesmo se considerando a hipótese de Robinson, o certo é que João (ou a imagem sincrética que resulte das diversas intervenções sobre o texto), se ele devia ser praticamente tão antigo como os Evangelhos sinóticos, não compartilha das mesmas fontes em muitas passagens. 9 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > 2. Análise enunciativa e interacional da prisão de Jesus em João, 18, 1-12 2.1. A posição central de Jesus A posição central do Cristo35 é indicada por uma função quádrupla de sujeito, no plano gramatical, de agente, no plano semântico, de ator, no plano narrativo, e de locutor dominante no plano interacional. As funções de sujeito e de agente são suficientemente evidentes e dispensam mais comentários. Por outro lado, é importante insistir nos dois últimos. No plano narrativo, é Jesus quem escolhe o lugar de sua prisão, decide não fugir e, por fim, impede Simão Pedro de se rebelar. No plano transacional é ainda ele que toma a iniciativa de se dirigir aos soldados, ao contrário do que se podia esperar, que os incita a prendê-lo, e dá instruções para que os soldados poupem a vida de seus fieis discípulos. É de se notar que o verbum dicendi seja “ele disse” (v. 4) para Jesus, e “eles responderam” para os soldados, o que os coloca em posição secundária. Esta diferença é ainda mais significativa na segunda ocorrência de “ele disse”, (v. 5) quando o texto teria podido mencionar “ele respondeu”: a escolha do verbo “dizer” testemunha a livre escolha do Cristo insistindo numa palavra menos coerciva, no plano interacional, que “ele respondeu” (que implica que o locutor se sinta obrigado a responder). Certamente, esta análise, fundada na repartição de légô (dizer) e de apokrinomai (responder), deve ser relativizada: porque a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB) fiel nisso à Synopse de Benoit e Boismard36, indica que a resposta dos guardas ao v. 7 é introduzida por “eles disseram” e a afirmação soberana de Jesus ao v. 8 por “ele respondeu”. De fato, o papel dos verba dicendi só é significativo por sua congruência com os três outros níveis em que se afirma a predominância de Jesus enquanto sujeito. 2.2. Da complexidade dos atos e das palavras, em Cristo, à omissão das palavras e à relativização dos atos em Judas Uma segunda característica destaca o papel de Jesus no processo que o conduzirá à privação da liberdade e à morte e em seu modo de fazer compreender, por um lado, a aceitação de seu destino, e por outro, o simbolismo deste acontecimento e desta aceitação: trata-se da complexidade circular das palavras e dos atos, que forneceram preciosas indicações sobre o domíno narrativo e sobre a perspectiva teológica que deriva dessas escolhas. De fato, este surpreendente diálogo não só é constituído de trocas desiguais (v. 5 a 8), mas é, sobretudo, composto de fragmentos de discursos seguidos por atos e por atos que provocam novas tomadas de fala (cf. v. 6, 9, 10, 12). A priori, não há nada de original, uma vez que os relatos mostram com frequência discursos relatados em relação direta com a trama dos acontecimentos, que eles comentam, acompanham ou provocam – mas se trata de uma característica moderna bastante rara na antiguidade. Também não há nada de muito original no modo de tratar as palavras como ações, seja através do valor ilocucionário dos atos de linguagem, seja através de seus efeitos perlocucionários. Em contrapartida, é mais raro colocar em destaque a dialética profunda entre palavras e atos, no plano da ficção de um lado, do que aquele de sua narração de outro. Como se esta complexidade testemunhasse a verdade da palavra dos evangelistas, ela mesma em simbiose com a verdade de uma palavra divina que se verificaria – aos olhos dos crentes e, pelo menos, aos olhos do leitor cooperativo – por esta estrutura circular de repetições e de garantias, a palavra garantindo a verdade das ações, e as ações garantindo de modo proléptico ou analéptico a verdade da Palavra divina, de um lado, e a verdade do testemunho do evangelista, de outro. Há, pois, uma dimensão responsiva dos relatos bíblicos37 que concerne aos atos como 35 Jo 18, 1-12 foi objeto de uma análise em Alain RABATEL, « La construction inférentielle des valeurs : pour une réception pragmatique des textes (littéraires) », Cahiers de narratologie, n° 12, 2005, 1-18. Université de Nice, http://revel.unice.fr/cnarra/auteur.html?id=29 >. Nós selecionamos algumas análises úteis a nosso propósito e os desenvolvemos. 36 P. Benoit et M.-E. Boismard, op. cit, 305. 37 Outro aspecto desta dimensão responsiva dos relatos bíblicos e de sua estrutura de apelo (em direção do narratário e, através dele, aos leitores/fieis), privilegia mais os atos do que os encadeamentos de palavras. Como se o relato destacasse, mais do que as palavras, sempre sujeitas à garantia, o critério decisivo da 10 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > resposta às palavras, e às palavras como resposta aos atos. Assim como Jesus, por suas tomadas de palavra, provoca sua prisão e confirma a verdade de um relato conforme às predições do anúncio de sua morte no capítulo 13, também as palavras que a seguem afirmam uma aceitação do drama (v. 11, 12). E, do mesmo modo, o relato do evangelista tenta se situar à altura dessa aceitação. É por isso que a ausência, no texto de João, do relato das palavras de Judas, bem conhecidas no interdiscurso, é cheia de significação em todos os sentidos. Em primeiro lugar, esta escolha narrativa significa um desejo de relativizar o papel de Judas. Este último é, assim, apresentado como um agente (entre outros) da prisão de Jesus, a qual tem muitos outros responsáveis além deste ajudante circunstancial, como lembra a menção dos grandes padres e dos Fariseus (v. 3). Temos boas razões para nos perguntarmos se “algum destes que tu me enviaste” não inclui Judas, desta vez. Certamente, o leitor poderá se surpreender com essa hipótese na medida em que Jesus, no capítulo precedente, se dirige a seu Pai distinguindo claramente “o filho da perdição” dos demais discípulos: “Quando eu estava com eles [os apóstolos], guardava-os no teu nome, que me deste, e protegi-os, e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura” (Jo, 17, 12). Porém, precisamente, parece-nos que o texto de João realiza uma reformulação e uma retomada parcialmente ricas de sentidos: a fórmula de 17, 12 está próxima daquela de 18,9, distinguindo-se, contudo, primeiramente pelo fato de que a comunidade dos apóstolos está completa no capítulo 18, enquanto que ela está explicitamente separada no capítulo 17. A segunda diferença significativa concerne ao fato de que em 17, 12, é Judas quem “se perdeu”, enquanto que em 18,9, é Jesus quem diz: “Eu não perdi nenhum destes que tu me confiaste”. O conjunto dessas diferenças ganha importância ao ser relacionado com a cenografia singular do fragmento, já que Judas não chega aqui a entregá-lo, na medida em que Jesus evita que Judas “se perca” ao se entregar antes que Judas o faça. Neste sentido, a encenação enunciativa de João, em 18, mostra um Cristo que relativiza o erro de Judas, fazendo deste último um agente subalterno de uma história escrita em outro lugar, cujas questões ultrapassariam a sua pessoa (ver L. Marin, op. cit. 165): é o que confirma a última palavra de Jesus (v. 11), evocando “o cálice que o Pai [lhe] deu”. O Cristo praticamente o perdoa das ofensas, ao impedir que o ato de Judas chegue a termo aos olhos de todos38. Em segundo lugar, em relação à prisão, as palavras não acrescentam nada. Por outro lado, de um ponto de vista interpretativo, a sua menção reforçaria a tese da maldade intrínseca do personagem. O fato de o Cristo evitar que Judas fale deixa de expor sua face negativa. Este dado teológico resulta da cenografia enunciativa e interacional. Ela deve ser creditada, sem dúvida, a Cristo, sem esquecer que esse crédito deve ser inscrito, de fato, primeiramente, a João, já que é ele o responsável pela encenação enunciativa. Isso confirma uma terceira característica da versão de João a respeito do acúmulo das perspectivas narrativas, graças à superposição do ponto de vista39 dominante do personagem de Cristo e do discreto, porém real, do evangelista. De fato, o papel de Judas é relativizado não só porque ele não pronuncia as palavras esperadas, mas também porque a narração enfatiza sobre Jesus adoando principalmente o seu ponto de vista. verdade dos sujeitos, isto é, suas ações, assim como demostramos tanto a propósito do combate de David contra Golias, como a propósito da relação do povo judeu a Deus, no Deuteronômio (ver supra, n. 6). 38 Vamos mais longe: a não retomada da menção do “filho da perdição” que “se perdeu” e, concomitantemente, a evocação de “nenhum desses que [o Senhor lhe] deu” acentua o fato de que a comunidade dos apóstolos parece ter de perdurar a despeito dos excessos de seus membros. A questão aponta aqui para Judas, mas ela diz respeito também a Pedro, que renegará seu Senhor. Certamente, as ações dos dois discípulos não devem ser colocadas no mesmo plano, contudo, devem ser aproximadas, como observa L. Marin. Voltaremos a isso em 2.4. 39 Ver Alain RABATEL, Une histoire du point de vue, Paris, Metz, Klincksieck, Celted, 1997; La construction textuelle du point de vue, Lausanne, Paris, Delachaux et Niestlé, 1998. 11 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > 2.3. O acúmulo de saberes do personagens de Jesus e do saber do narrador a serviço de uma dupla dramatização da narrativa Tal superposição dos pontos de vista se baseia no dialogismo dos enunciados, e notadamente na disjunção entre locutor (suporte dos enunciados) e enunciador (centro modal). Desse modo, o primeiro locutor/enunciador (nesse caso, o narrador) faz ouvir em seu relato o ponto de vista de Cristo, não somente ao fazê-lo falar, mas ao narrar o relato segundo seu modo de ver ou de considerar os acontecimentos (cf. supra, 2.1), inclusive quando o Cristo não pronuncia dizeres claramente identificados (cf. infra o jogo dos conectivos). Nós ilustraremos este acúmulo a propósito dos conectores ou que são particularmente polifônicos, naquilo em que eles se relacionam com as expectativas do coenunciador e retificam as interpretações num sentido mais pertinente, insistindo em um fenômeno insuficientemente conhecido ou insuficientemente levado em conta até então: neste sentido, ou pode ser renforçado por “é preciso saber que” ou “não se pode esquecer de que”. Dito de outro modo, ou coloca em destaque tanto a existência de um acontecimento não conhecido, quanto de um acontecimento que foi conhecido, mas que poderia ser esquecido. Por duas vezes, nos versículos 2 e 5, encontramos ou, com menção, a cada vez, a Judas: “Ou Judas, que o traiu”, “Ou entre eles estava Judas que o traiu”. Em ambos os casos, ou dificilmente pode ser acompanhado de “é preciso saber”, “não se pode esquecer”: todos sabem, no interdiscurso bíblico corrente nas comunidades cristãs da época40, que Judas é o personagem central da prisão de Jesus, e é difícil imaginar que alguém pudesse tê-lo esquecido. É preciso então considerar a hipótese de que o valor polifônico de ou não introduz um suspense em relação a uma história bem conhecida, mas joga com a expectativa, na medida em que o interdiscurso bíblico construído pelos Evangelhos sinóticos e também pelos Atos dos Apóstolos insiste, ao contrário, nas palavras esperadas de Judas. Sua ausência testemunha, assim, a estratégia autoral de João e das especificidades de sua narração: como se João quisesse nos fazer compreender implicitamente que, apesar das nossas expectativas, evocadas pelos dois conectores ou, ele não deseja colocar Judas como absolutamente culpado, já que o Cristo se entregou antes que ele dissesse uma palavra. Ao lado desta perspectiva autoral41, contudo, é perfeitamente possível, de um ponto de vista estritamente linguístico, fazer funcionar a perspectiva autoral. De fato, João coloca um Cristo muito consciente, testemunhando uma “profundidade de perspectiva” (Lintvelt) quase ilimitada: o Cristo « sabe[ia] tudo aquilo que [vai] lhe acontecer» (v. 4): esta ciência convida a atribuir, por uma inferência a posteriori, a relativa explicativa de v. 2, “que o entregou”, não somente para o narrador, mas também para o personagem42, que vê o que ainda não é visível aos 40 Como lembra J. Zumstein em conclusão de sua apresentação das teses em favor da dependência ou da independência literárias de João em relação aos evangelhos sinóticos, “o fato decisivo é que ele [João] elaborou seu evangelho a partir dos materiais tradicionais que circulavam em seu meio e se apoiando em sua própria concepção teológica. Conhecidos ou desconhecidos, os evangelhos sinóticos não ifluíram nem na escolha das tradições relatadas, nem na concepção teológica global (D. M. Smith)” (J. Zumstein, 2004, 355). Em todas as hipóteses, João adota uma posição original em relação ao interdiscurso religioso. 41 É por isso que não aderimos totalmente à análise de F. Mirguet que faz um paralelo entre o papel dominante de Jesus e o apagamento do narrador diante de seu personagem (Françoise MIRGUET, “O apagemento do narrador diante do personagem de Jesus nos quatro evangelhos. Ume inversão dos papeis narrativos”, Sémiotique et Bible n° 120, 2005, 27-40). Certamente, o Cristo tem um papel dominante, no plano da perspectiva, mas este domínio é compatível com a presença do narrador, ambos percebidos ao mesmo tempo. 42 Defendemos a tese de que a perspectiva do personagem não está, por definição, limitada (ver A. Rabatel, op. cit. 1997 e 1998), contrariamente à tese, corrente em narratologia, de um PDV do personagem ao volume de conhecimento limitado em focalização interna em Genette 1972, 1983, Bal 1977, Lintvelt 1981 et Vitoux 1981 (Gérard GENETTE, Figures 3, Paris, Éditions du Seuil, 1972 ; 12 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > olhos dos outros. Ou convida a reconstruir a inferência do Cristo: “eu sei, resumidamente pensa o Cristo, que Judas vai me entregar aos Romanos. Este pequeno jardim, que ele conhece bem, será, para ele, o lugar mais cômodo para a minha prisão”. De fato, se nos lebramos de que os ou devem ser interpretados em um sentido que joga menos com o suspense do que com uma expectativa, do ponto de vista do narrador, esta necessidade é ainda mais evidente para o Cristo: este último sabe tão bem que Judas vai entregá-lo que é ele mesmo que o revelou antes! Por consequência, ou não pode ser compreendido senão reconstruindo os meios interpretativos de Jesus em relação ao que ele imagina que Judas fará. E, mesmo aí, levando em conta o interdiscurso, o leitor compartilha plenamente esses movimentos de pensamento. Desse modo, as duas ocorrências de ou são imputadas a um enunciador interno ao enunciado, Jesus, mesmo que ele não tenha (ainda) dito nada. Este acúmulo existe inclusive nas outras traduções e nas versões gregas43. Esses ou que encontramos na Bíblia de Jerusalém, podem, certamente, ser omitidos ou traduzidos de formas diferentes (Osty, Bible Bayard, Synopse Benoît-Boismard)44. Mas o de grego, que aparece uma dúzia de vezes no conjunto do capítulo, e que é característico do estilo paratático de João45, no entanto, pode ser explicado pela análise do ponto de vista, já que este repousa fundamentalmente sobre a ideia de um diferencial enunciativo, e, portanto, sobre a capacidade de fazer ouvir o ponto de vista de um outro na voz do narrador46. O primeiro equivalente é dado pela presença de um outro conector diferente de ou, que também pode acumular os indícios do ponto de vista do personagem e do narrador: é o caso típico dos portanto, dos e, dos também, que pontuam a tradução de Chouraqui, e fazem ecoar o de grego. Esses conectores ligam os acontecimentos entre si de um ponto de vista lógico (cf. os portanto) e/ou desempenham um papel de marcador dramático da narração dos acontecimentos (cf. ou, e, por isso). O segundo equivalente, na ausência de conector, é dado pela referência que testemunha um ponto de vista: Nouveau discours sur le récit, Paris, Éditions du Seuil, 1983 ; Mieke BAL, Narratologie, Paris, Klincksieck, 1977 ; Jaap LINTVELT, Essai de typologie narrative, Paris, José Corti 1981 ; Pierre VITOUX, « Le jeu de la focalisation », Poétique n° 51, 1982, 359-368 ; Alain Rabatel, 1997, op. cit.), tese reafirmada pelos especialistas da Bíblia, que pressupõem no mesmo movimento, e por razões teológicas que não têm nada a ver com a linguística, a onisciência do narrador: ver Robert ALTER e Franck KERMODE (2003) (éds.) Encyclopédie littéraire de la Bible, Paris, Bayard, 2003, 563, assim como M. Sternberg (Meir STERNBERG The Poetics of Biblical Narrative: Ideological Literature and the Drama of Reading, Bloomington and Indianapolis, 1985, 99). B. Latour procede a uma crítica epistemológica da tese do ponto de vista limitado a uma perspectiva individual – na vida como nos textos – bastante pertinente, até em sua vivacidade, tanto que ele deixa de repetir as mesmas ladainhas, sobretudo quando elas são tendenciosas: O que nos faz pensar que “adotar um ponto de vista” significa “ser limitado”? ou ser especialmente “subjetivo”? […] Se pudermos ter diferentes pontos de vista sobre uma estátua, é porque a própria estátua é em três dimensões e nos permite, sim, nos permite circundá-la. Se uma coisa torna possível essa multiplicidade de pontos de vista, é porque ela é muito complexa, intrincada, bem organizada, e bela, sim, objetivamente bela. […] Não acredite em todas essas bobagens sobre o fato de ser “limitado” a sua própria perspectiva. Todas as ciências inventaram meios para se deslocar de um ponto de vista a outro, de um quadro de referências a outro. […] É o que se chama relatividade. […] Se eu quero ser um cientista e atingir a objetividade, devo ser capaz de navegar de um quadro de referência a outro, de um ponto de vista a outro. Sem tais deslocamentos, eu estaria seriamente limitado em meu estreito ponto de vista. (B. Latour, op. cit. 210-213). 43 Agradecimentos a Michel Gourgues e a Jean-Daniel Kaestli (correspondências privadas) por nos ter apontado esses aspectos. 44 Ver o site Unbound Bible para uma comparação das diferentes traduções da Bíblia em numeorosas línguas. 45 Ver J. Zumstein, op. cit. 2004, 356. 46 Ver Alain RABATEL Homo narrans. T. 2, Dialogisme et polyphonie dans le récit, Limoges, LambertLucas, 2008. 13 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > esse é o caso ainda, em Chouraqui, para a tradução do de do v. 2: “Iehouda também, aquele que o trai, conhece o lugar em que com frequência Ieshoua ia com seus adeptos”: além do também, o imperfeito da relativa incidente, e, de fato, a totalidade do v. 2, de natureza explicativa, indicam uma explicação que denota o ponto de vista do narrador: este último se contenta menos em explicar o que é bem conhecido do que em mostrar, por escolhas postas em palavras, a dimensão trágica do acontecimento. Este PDV se soma ao do personagem: a cena é, assim, vista através de sua perspectiva, na tradução de Osty, mesmo se as partes tiradas da tradução diferem da TEB, já que a tradução de Chouraqui dá igual valor tanto para a participação intensa de Judas quanto para a narração de um episódio no qual ele tem um papel importante. Da mesma forma para o ou do v. 5: ele é traduzido por Chouraqui como também, (como para o v. 2, “Iehouda também, o que o trai”); Louis Second utiliza e (“E Judas que o trai”) e Darby e… também (“E Judas também que o traia”). Não desenvolveremos por falta de espaço, mas as outras traduções não derrubam o fundamento de nossas explicações. Esta interpretação pelo acúmulo das perspectivas coloca o relato de João sob a tensão do Cristo e dramatiza o episódio, testemunhando discursivamente que existe aí uma marcha fúnebre na qual Jesus é de imediato consciente, não somente desde o anúncio de sua Paixão, mas também ao longo desta. Nesta perspectiva, o relato não faz mais que narrar o acontecimento, ele convida a interpretar a cena como uma antecipação intelectual pelo Cristo e do que lhe vai acontecer, e da maneira como os acontecimentos vão se desenrolar. É por isso que Jesus não deixa Judas fazer um sinal para que os Romanos o tomem, ele prefere ir antes da sua prisão. Deste ponto de vista, o acúmulo das perspectivas, jogando com as expectativas criadas pelo interdiscurso, aumenta notavelmente uma dramatização que tem menos a ver com a história do que com a literatura. Tal encaminhamento para o inevitável testemunha o trágico da cena, desde o momento em que os indivíduos não podem escapar a um destino previamente escrito. Mas parece-nos que esse trágico é amenizado – e que ele é tão paradoxal como poderia parecer – pela própria dramatização do relato, uma vez que ela, ao jogar com o interdiscurso, encena a imagem de um Cristo que domina do começo ao fim o processo, que o pensa antes e durante o acontecimento, e que, por isso, assume seu destino. Nesse sentido, o trágico se abre a uma forte esperança47. Por todas estas razões, o fato de deixar Judas em segundo plano e de diminuir o seu papel, condiz com as especificidades da teologia de João que se funda no papel central de Cristo e da cristologia da encarnação, anunciada desde o prólogo, relembrada no capítulo 21, e constantemente ressaltada, sobretudo na segunda parte do Evangelho, consagrada à revelação perante os seus, a partir de 13,1 até 20,31. Deste ponto de vista, não é por acaso que o capítulo 18, que abre a Paixão, seja precedido por dois discursos de despedida (13,31 a 14,31, e depois, capítulos 15 e 16) e pela oração sacerdotal (capítulo 17). A cristologia do enviado, apoiada pelos discursos do Cristo, é reforçada em 18 por seus atos (J. Zumstein, 2004, 346s e 364ss): o comportamento de Jesus diante da cruz48 é, assim, o lugar de sua elevação e também aquele pelo qual a salvação da humanidade pode ser alcançada. Não é de se surpreender que esta visada teológica passa também pela relativização do papel de Judas. 2.4. Por uma reavaliação da pessoa e da responsabilidade de Judas Todos esses elementos, tais como surgem da cenografia de João, clamam a favor de uma reavaliação primeiramente da pessoa, e em seguida, da responsabilidade de Judas. Esta reavaliação concerne primeiramente à representação de Judas em João, mas parece melhor nos perguntarmos se esta reavaliação não seria suscetível de ser generalizada. Voltaremos a isso na 47 Mesmo se, de um ponto de vista psicanalítico, sempre podemos discutir sobre o movimento que nos faz aceitar, e, às vezes, desejar, o inelutável. 48 Esta importância da cruz não está sem lembrar aquela de Paulo. Ver Zumstein 2001, art. cit. 14 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > conclusão, ao término da interrogação que esboçamos aqui e do percurso que realizamos para respondê-la… Um número impressionante de textos católicos ou protestantes fazem de Judas o modelo absoluto da traição e do mal, tais como os quatro volumes de sermões do eremita de Santo Augustin Abraham a Santa Clara (Hans Ulrich Megerle, 1644-1709) que têm como título Judas. Der Ertz-Schelm (Judas, la fieffée canaille)49. Outros afirmam ainda que entre todos os humanos, Judas é “o único ao qual se pode, e mesmo se deve, condenar à danação” (Daub); e o luterano ortodoxo Hengstenberg (1802-1869) afirma que “Judas é o único ser humano do qual temos certeza de estar danado pela eternidade” (H.-J. Klauck, op. cit. 12 e 175). Ou, como dissemos, o relato dissimula os traços negativos da pessoa de Judas. A versão de João, sem retirar a responsabilidade de Judas, a representa de um modo muito mais aberto que a tradição. Sobre esse ponto, não concordamos com Klauck quando este escreve que o Evangelho de João suaviza os traços negativos de Judas, por exemplo, ao mencionar seu suicídio50, na medida em que as influências judias do meio de João teriam favorizado o nascimento de “da imagem pavorosa de Judas que nos é apresentada no quarto evangelho” (H.J. Klauck, op. cit. 75). Certamente, Hans-Joseph Klauck tem o cuidado de destacar que as imagens negativas de Judas direcionam a uma leitura simplista e confortável do mal, em exterioridade51, mas ele não demonstra de maneira suficientemente clara em que esta leitura representa, para nós, um contra-senso ao interpretar externamente a tensão dramática do relato da Paixão, que não tem equivalente em outros evangelistas52. Ou então, tal dramatização pode certamente ser interpretada como uma dicotomia que opõe dois universos sem ligação, o do bem e o do mal, mas ela pode, e para nós, ela deve, conforme ao processo de construção narrativa, ser interpretada como uma textualização da luta entre o bem e o mal que atravessa cada um de nós. Judas é menos mal a partir do momento em que o Cristo o impede de efetivar o ato da traição e que é o próprio Cristo que provoca diretamente a sua prisão. E Judas também não é o único “malvado” da história, a partir do momento em que em 18,1-12 o evangelista apresenta juntas, no mesmo fragmento, as duas pessoas que vão “trair” Jesus: além de Judas (antes da ceia eucarística), não nos esqueçamos de Pedro (após a ceia eucarística), que é o autor de uma rebelião logo impedida por Jesus. Não temos espaço para desenvolver este ponto, que foi tratado de forma admirável por Louis Marin em sua Sémiotique de la Passion53, mas é evidente que esta similitude entre os dois apóstolos é capital. Judas é, pois, “infeliz”, como dizem os evangelhos sinóticos, não porque ele seja mal, mas porque ele é o instrumento necessário e doloroso de um afastamento das coisas do mundo para encontrar enfim a verdadeira vida, na luz divina, que é, digamos, a do conhecimento verdadeiro e também a do amor infinito. Um mal necessário para um grande bem, em suma, de um ponto de vista transcendente. Mas este modo de ver é aparentemente mais o efeito de uma retrospectiva em visão panorâmica do que o efeito de Judas no calor da ação. Tanto a tomada 49 Heidegger consagrou seu primeiro escrito a Abraham a Sancta Clara, em 1910: ver V. Farias, 1987, 3955 (Victor FARIAS, Heidegger et le nazisme, Lagrasse, Verdier, 1987) e P.-E. Dauzat, op. cit. 240. 50 O enforcamento de Judas é interpretado, como a confissão de uma culpa. Mas é possível analisá-lo como o sinal de um remorso, ao ter-se feito agente involuntário da entrega de Jesus aos romanos, ao desejar que este comparecesse perante o Sinédrio, cf. infra. 51 H.-J. Klauck não retoma diretamente por sua conta este julgamento, ele considera mesmo que este se trate de uma leitura parenética, com o objetivo de evangelizar, que prioriza, apoiando-se no evangelho de João, uma “imagem destinada a assustar: principalmente, para não se tornar como ele [Judas], sobretudo para não perder a fé, e não se tornar a presa de Satã, sendo da salvação para sempre” (H.-J. Klauck, op. cit. 100). 52 H.-J. Klauck escreve “quando ela se confronta com o fenômeno da incredulidade e da resistência à oração cristã, a visão do mundo do evangelista João tende, do ponto de vista antropológico, a ser impiedosa” (ibid. 100). Grifo nosso. 53 Ver principalmente L. Marin, op. cit, 164 a 173 e 178 a 181. 15 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > desta dimensão retrospectiva, quanto, ao contrário, a de uma visão de Judas limitado ao acontecimento, interferem sobre a natureza do mal que se presume encarnar em Judas: de fato, o mal não tem necessariamente os mesmos contornos quando relacionado à história tal como ela é vivenciada em seu curso, ignorando o futuro, ou quando relacionado a um processo global do qual o leitor conhece o fim, conhecimento esse que Judas não tem. E em todo caso, permanece a questão da relação do mal com o divino, uma vez que Judas faz parte dos Doze. 2.5. Judas e o mal A representação de Judas em João, suas diferenças para com um intertexto mais amplo, manifestam no todo a existência de um Judas mais complexo do que aquele que sua representação habitual sugere. A dramatização do relato, aumentada pela importância central de Jesus, que assume a sua Paixão, não acrescenta, porém, nada ao dicotomizar personagens positivos e personagens negativos, como se eles fossem incomensuráveis uns com os outros. Antes de fazer de Judas a imagem do mal absoluto, vale mais se perguntar sobre a parte do mal que está em cada homem, já que, como dissemos, Jesus é o autor direto de sua prisão. “O problema de Judas é um problema de cisão do Eu. O fragmento Jesus aceita o castigo do pai. O fragmento Judas é o assassino de Deus”54. Hans-Joseph Klauck, que faz esta análise, afirma ainda que “Judas, que é o lado escuro de Jesus, faz parte de modo inseparável da figura luminosa de Cristo. Mas ele representa igualmente a parte sombria da nossa própria psique” (H.-J. Klauck, op. cit. 27). Tal explicação convida a relativizar todas as hipóteses citadas para explicar a sua “traição”. Desse modo, Nicolas Grimaldi, assim como outros, entre os quais Renan, rejeita a hipótese da avareza55 assim como a do ciúme em relação a Pedro ou a João, “o discípulo preferido”. Por outro lado, Nicolas Grimaldi julga mais interessante a hipótese de uma falta de confiança, como se Judas tivesse boas razões para se questionar se Jesus era mesmo o Messias tanto anunciado ou um impostor. É bem verdade que a relação de Jesus com a antiga aliança é complexa, porque ele dá sequência à ela, realiza-a e a revoluciona, tudo ao mesmo tempo; consequentemente, Judas pode se questionar se de fato Jesus é o Salvador só do povo de Israel, chamado a retornar à fé de seus pais, ou o da humanidade inteira, chamada a ouvir uma nova Palavra56. Seria, pois, para responder as suas angústias e as suas dúvidas que Judas teria aceitado entregar Jesus aos grandes sacerdotes da Sinagoga, para que eles esclarecessem a sua verdadeira natureza. Quanto ao suicídio de Judas, não seria equivalente a um remorso que presupõe uma culpa, mas ao protesto deste que se sente responsável (mas não culpado) de ter sido o agente involuntário da entrega de Jesus aos Romanos, recusando que seu questionamento religioso se transforme em ajuste de contas político-teológico (ibid. 74-75, 79, 110-112). Mas o drama de Judas não se limita à oposição entre antiga e nova aliança: assim, segundo Nicolas Grimaldi, Judas conceberia “a entrada no reino como o fim da erraticidade, da servidão, da humilhação e da desgraça”; Jesus a conceberia não “como o término da vida e o fim de todas as expectativas, mas como o “perpétuo jorrar de uma fonte” (João 4, 14)” (ibid. 143-144). Em outras palavras, de um lado, a salvação é uma quase certeza ancorada na observação fideísta dos mandamentos, de outro, ela se encontra (se perde?) na infinitude do 54 S. TARACHOV, « Judas der geliebte Henker », in Psychoanalytische Interpretationen biblischer Texte, Yorick SPIEGEL (éd.), München, 1972, 243-256, principalmente 247. 55 A soma de trinta denários é insignificante em comparação ao que representou o perfume que Maria Madalena usou para perfumar o Cristo. Além disso, Judas, que cuidava das contas de Jesus, tinha acesso a sua bolsa e não precisava de “trai-lo” para ter acesso a um dinheiro pelo qual ele não manifesta interesse: ver Nicolas GRIMALDI, Le livre de Judas, Paris, Presses universitaires de France, 2006, 58-63. 56 Ibid. 91, 98-99. 16 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > amor. Certamente, este conflito poderia, em último caso, ser lido pelo prisma da oposição entre a antiga e a nova aliança, mas esta leitura histórica encobre uma questão de todos os tempos que perpassa todos os fieis57. Judas encarna então uma propensão trágica a fazer o mal acreditanto fazer o bem: o inferno está cheio das melhores intenções do mundo, como nos lembra a sabedoria popular… E há mais. É preciso se perguntar sobre a parte do mal que existe também entre os eleitos, inclusive em Pedro. Este questionamento aqui não se refere à parte do mal em cada homem – questão que absolutamente não escandaliza −, mas a seu lugar entre os que procedem, de um jeito ou de outro, da divindade e/ou do sagrado e que fazem parte da instituição religiosa. Tal problemática remete a questões de outra dimensão, e é em relação a elas que as imagens negativas sobre Judas fazem sentido: elas dizem muito sobre os problemas dos que (entre o clero, como entre os fieis) têm problemas com a existência do mal no coração dos escolhidos. É, pois, por razões de exortação que os pregadores colocaram um tanto de questões que tinham muito pouco a ver com a realidade dos textos, do tipo “Judas participou da Ceia?”: como se fosse impensável que Judas tivesse podido comungar, que um dos doze, em quem a igreja vê o modelo dos padres da nova aliança, tenha podido estar assim tão perto de Jesus. Hans-Joseph Klauck observa com razão que “a ‘comunhão de Judas’ é problema dos que fazem essa pergunta, e não para os textos” (H.-J. Klauck, op. cit. 66): Fabricar cabeças de Turco e evocar o diabo […]: a exortatória cristã não deveria precisar recorrer a isso, ou então ela devia admitir que nos perguntemos se ela ainda merece o nome de “cristã” (ibid. 169). Assim resituado e reavaliado, é tentando colocar em perspectiva o papel de Judas – que o consideramos como, para Nicolas Grimaldi, o autor voluntário de um gesto de consequências que ele não teria desejado, ou como o agente involuntário de um drama que ultrapassa a sua pessoa − com a corrente gnóstica, movimento certamente heterogêneo, como demostrou M. A. Williams58, mas que trataremos aqui, por comodidade, como um todo. Nosso objetivo não será tanto de fazer do Judas do Evangelho segundo são João, e do evangelho em si mesmo, testemunhas diretas de um pensamento gnóstico de cujos aspectos eles retomariam a seu modo, mas de os esclarecer à luz desta outra tradição, para ajudar a uma reconceituação mais fundamental da questão do mal, para além do personagem de Judas e, sobretudo, para além das representações doxiques das quais ele por tanto tempo foi vítima. 3. Dificuldades e limites de uma comparação da representação de Judas no Evangelho segundo são João com o pensamento gnóstico 3.1. “A” gnose, um universo complexo É difícil ter uma visão exata da gnose da qual não possuímos senão fragmentos de textos, e a qual conhecemos através do olhar crítico parcial dos católicos, principalmente de Irineu de Lion (a Dénonciation et réfutation de la Gnose au nom 57 Mas quanto mais concordemos com Grimaldi até aqui, mais temos dificuldade em ir além e fazer de Judas o protótipo de todos os que quiseram anunciar o “reino da virtude” e (portanto, do terror) promovendo o ideal político de um mundo finito (ibid. 143-144), na medida em que o alinhamento do político com o religioso (e reciprocamente) traz mais problemas do que soluções. Mas isto abre espaço para um debate que excede os limites da presente reflexão. 58 M. A. WILLIAMS, Rethinking "Gnosticism": an Argument for Dismantling a Dubious, 1996, Princeton. 17 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > menteur, entre 180 e 185), Hipólito (Rome, século III) e Epifano, bispo de Salamina no século IV59. Para os gnósticos, o mal e o mundo não podem ter sido criados por Deus, infinitamente bom, mas por um demiurgo que criou Adão60 (M. Scopello, op. cit. 76-77), assujeitando-o ao corpo, à sexualidade, ao processo desintegrador do tempo (ibid.: 78-83), em ruptura com a concepção cristã do tempo redentor. Segundo os gnósticos, a morte, enquanto abandono de um corpo radicalmente mau, é uma libertação que permete, assim, à alma, e, sobretudo àquela dos iniciados, encontrar enfim a verdade. Isso quer dizer que, “a” gnose é um universo complexo, atravessado por diversas correntes, tais como a gnose madeista, setianista, o docetismo, etc. A complexidade da constelação gnóstica cresce na proporção da acumulação das doutrinas: pois se não há fronteira nítida entre as diversas correntes religiosas, e também entre essas correntes e as escolas da filosofia antiga. Os Atos de André ilustram eloquentemente esta interpenetração, já que fazem eco a certas preocupações gnósticas relativas ao reconhecimento em si do divino, à morte como libertação, sem repetir a cosmogonia gnóstica, nem à noção de eon ou de pleroma. Além disso, eles têm pontos comuns com o platonismo (descoberta do homem interior apresentado como um parto espiritual), com o neopitagorismo (busca de uma união pessoal com Deus, desejo de divinização), com o estoicismo, acerca do tema do cuidado de si61. À acumulação das ideias se soma à complexidade da transmissão dos manuscritos: assim, os Atos de João comportam fragmentos gnósticos (capítulos 94 a 104 e 109) que rompem com outros episódios das diversas versões dos Atos62. Um último elemento vem complicar a ausência de fronteiras nítidas: trata-se das releituras que tiram de alguns textos um sentido gnóstico, a exemplo do que acontece com as Odes de Salomão63, ou ainda como as leituras gnósticas valencianas de João, principalmente em Heracleion64. No entanto, as observações precedentes não devem alimentar a tese de uma desconstrução do gnosticismo. À questão “Quando se pode dizer que existe gnosticismo?”, Jean-Marie Sevrin respondia de modo convincente: Diremos, então, que há gnosticismo onde há um sistema místico que se estruture sobre um dualismo anticósmico […] colocando a conaturalidade do sujeito salvo com o divino. Os sistemas podem ser diversos pelos materiais que eles integram; eles são parecidos pelo modo como eles os tratam e pela forma cojunta que lhes dão. Em outros termos, se se pode duvidar de que exista um gnosticismo único, tantas são as variedades das doutrinas concretas, deve-se, porém, admitir que existe desde o século II, uma concepção da salvação dualista e anticósmica apta a se nutrir de quase todos os patrimônios religiosos disponíveis. O que o gnosticismo atrai a si, é submetido a sua lógica. (Jean-Marie SEVRIN, « Jean et le 59 Ver Madeleine SCOPPELLO Les Gnostiques, Paris, Éditions du Cerf, 1991, 17-22. Se a Igreja oficial reage fortemente contra os gnósticos, é sem dúvida porque, enquanto portadores de uma verdade secreta, de um conhecimento superior dos Textos, de uma relação mística e pessoal com Deus, eles ameaçam a própria existência deste clero, por sua relação direta com os Textos sem passar pela mediação das estruturas eclesiásticas. A isso se soma também a dimensão elitista de uma revelação que está reservada ao pequeno número dos iniciados, em contradição com a dimensao universal da salvação em Cristo. Ver igualmente Hans JONAS, La religion gnostique, Paris, Flammarion, 1978, 2001. 60 Trata-se do Adão terrestre, moldado a partir do reflexo do Homem verdadeiro, o Adão do mundo superior, que é a natureza espiritual e divina do homem. 61 Ver Jean-Marc PRIEUR « Introduction » aux Actes d’André, in Écrits apocryphes chrétiens, Tome 1, François BOVON et Pierre GÉOLTRAIN (dir.), 1997, Paris, Gallimard, 877-881, notamment 880. 62 Ver Eric JUNOD e Jean-Daniel KAESTLI, « Introduction » aux Actes de Jean, in Écrits apocryphes chrétiens, Tome 1, François BOVON et Pierre GÉOLTRAIN, op. cit. 1997, 975-986, sobretudo 979-981. 63 Marie-Joseph PIERRE, « Introduction » aux Odes de Salomon, in Écrits apocryphes chrétiens, Tome 1, François BOVON e Pierre GÉOLTRAIN, op. cit. 673-679, sobretudo 675. 64 Ver Jean-Daniel KAESTLI, « L’exégèse valentinienne du quatrième évangile », in La communauté johannique et son histoire. La trajectoire de l’évangile de Jean aux deux premiers siècles, Jean-Daniel KAESTLI, Jean-Michel POFFET e Jean ZUMSTEIN (éds.), Genève, Labor et Fides, 1990, 323-350. 18 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > gnosticisme », in La communauté johannique et son histoire. La trajectoire de l’évangile de Jean aux deux premiers siècles, Jean-Daniel KAESTLI, Jean-Michel POFFET et Jean ZUMSTEIN (éds.), Genève, Labor et Fides, 1990, 251-269, 260). Assim, trata-se menos de investigar aqui esse universo complexo, do que de aproveitar a publicação recente do Evangelho de Judas para reforçar o quanto a pessoa de Judas e seu papel no relato da Paixão em João permitem retornar novamente, a suas custas, ao personagem e ao mal. Trata-se menos de uma comparação entre mundos diferentes do que da apreensão de convergências na consideração de Judas que fazem eco à análise enunciativa e interacional da prisão de Jesus, em João. 3.2. Judas no Evangelho de Judas Queremos insistir no fato de que a reavaliação do papel de Judas está em congruência com certos aspectos da doutrina gnóstica – e somente alguns aspectos, estão relativamente deslocados em relação ao corpo doutrinal. Judas, no Evangelho de Judas, é o agente que permite a Jesus retornar a seu Pai oferecendo a ele a possibilidade de se libertar da prisão de seu corpo terrestre para reencontrar o mundo divino (aquele do Deus transcendente e perfeito cujo demiurgo, criador de um mundo imperfeito, que os outros discípulos de Jesus seguem, é apenas um pálido imitador). Judas, longe de ser um traidor, é o instrumento desta libertação, em uma encenação, desejada pelo próprio Jesus, estando este último consciente do sacrifício pedido a Judas. Logo, Judas se torna o mediador pelo qual o Cristo ascende a Deus ao libertá-lo da prisão do corpo (cf. o Traité de l’interprétation sur l’âme, in M. Scopello, op. cit. 87) para permitir uma “ascensão da alma” através das esferas (cf. Première apocalypse de Jacques, ibid. 90). O Evangelho de Judas65 se apresenta como uma prestação de contas desta revelação e traz um ensinamento oculto de Cristo em “diálogos de revelação” entre o Cristo e seu discípulo Judas, três dias antes da Páscoa. O texto está na contramão das práticas e doutrinas oficiais da Igreja, e é significativo que ele não mencione nem a Paixão nem a ressurreição, conforme as doutrinas gnósticas para as quais o corpo não ressuscita (H.-J. Klauck, op. cit. 152-158). Enfim, a imagem de Judas aqui é diferente daquela que os escritos não-canônicos trazem66. 65 O codex Tchacos é um manuscrito de um apócrifo do século II. O manuscrito copta − encontrado na região de Minieh, no Médio Egito − que data sem dúvida do início do século IV de nossa era, por volta do ano 300. Ele contém principalmente o Evangelho de Judas, um apócrifo do século II. O Evangelho de Judas (Peuaggelion Nioudas) e não kata Ioudas não é o equivalente dos evangelhos segundo Mateus, Marcos… O “de” pode significar evangelho “sobre”, ou “dirigido a”: evidentemente, como observa JeanDaniel Kaestli, assim traduzido, o título causa menos reboliço, e venderia menos… 66 Os testemunhos extra-canônicos sobre Judas comportam O Pastor de Hermas, o Martírio de Policarpo, Papias, entre os Padres apostólicos, os Atos de João, os Atos de Tomás, o Evangelho dos ebionitas, O Evangelho de Pedro, o Evangelho de Nicodemo (Atos de Pilatos), o Evangelho árabe da infância, o Evangelho de Bartolomeu, para os apócrifos do Novo Testamento. Segundo H.-J. Klauck, todos esses textos são rígidos ao tratar Judas, salvo, é claro, o Evangelho de Judas, e, em diferente medida, o Evangelho de Pedro. Nossos estudos nem sempre confirmam a “rigidez do trato”: certamente que alguns textos dão, de fato, uma imagem negativa de Judas, a exemplo do Livro da ressurreição de Bartolomeu e da Vida de Jesus em árabe, que menciona que Judas, assediado pelo demônio, mordia ou se mordia (33, 1-3, in Écrits apocryphes chrétiens 1, 1997: 225-226). Mas outros textos observam que Judas é vítima da serpente, do demônio: assim, nos Atos do apóstolo Pedro e de Simão, em 8, lemos: “Tu [Satã] levou Judas, meu condiscípulo e coapóstolo, a cometer o crime de trair nosso Senhor Jesus Cristo” (Écrits apocryphes chrétiens 1, 1997: 1069); ver igualmente Atos de Tomás, em 32, 3 (Écrits apocryphes chrétiens 1, 1997: 1357-1358). O conjunto desta literatura tem forte intertextualidade com textos do Antigo Testamento ou com textos antigos provenientes de outras culturas que dão uma imagem aterradora do fim dos traidores (Cf. H.-J. Klauck, op. cit. 130-134). Eles participam, assim, de uma psicologização e 19 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > De acordo com as comunicações do colóquio de Paris organizado por iniciativa de Madeleine Scopello, em 27 e 28 de outubro de 2006, não há dúvidas de que o Evangelho de Judas foi utilizado nos círculos gnósticos na segunda metade do século II, sobretudo a gnose setianista desenvolvida em textos da Biblioteca de Nag Hammadi. Porém, o status de Judas, no Evangelho de Judas, não faz concessões. Certamente, Judas se distingue dos outros discípulos “se postando” perante a face de Jesus (Evangelho de Judas67, 32) depois dizendo: “eu sei quem tu és e de que lugar provéns. Tu provéns do eon imortal de Barbélô, e aquele que te enviou, eu não sou digno de pronunciar o nome” (ibib. 32). Contudo, segundo certo número de pesquisadores (L. Painchaud, A. Deconick, J.D. Turner), há uma contradição entre esta proposição e a descrição e explicação da visão de Judas: o mestre ri dele, evoca o “décimo terceiro demônio”: “Judas, tua estrela te desviou do caminho”. E continua. “Não, nenhum ser nascido de mortais é digno de entrar nesta casa que tu viste, porque é um lugar reservado aos santos” (Evangelho de Judas, op. cit. 43-44); “ Tu serás maldito pelas outras gerações – e reinarás sobre elas” (ibid. 46). Certamente que a continuação do texto, p. 46, está muito danificada. Jesus se dirige a Judas dizendo-lhe: “Mas tu, tu ultrapassarás a todos! Porque sacrificarás o homem que me serve de invólucro carnal” (ibid. 59). Tais colocações podem ser compreendidas positivamente, pela ótica do docetismo como a ajuda que Judas dá a Jesus para se libertar de seu corpo carnal, uma vez que o seu ser verdadeiro nada tem em comum com seu invólucro de carne do qual ele deve se separar pela Paixão (cf. parágrafo precedente). Mas Jean-Daniel Kaestli observa que, segundo a interpretação in malam partem, Jesus não aprova a ação de Judas, ele não a solicita; ele apenas a anuncia, profetiza-a: Judas fará mais do que todos os outros, ele irá mais longe do que eles no mal68. 3.3. Para além de algumas simelhanças, diferenças radicais para com “o” pensamento gnóstico Não se trata para nós de fazer do Evangelho de João um texto gnóstico, como sugere Ernst Käsemann e Luise Schottroff69. Do mesmo modo, também Helmut Koestler defende um diálogo constante entre João e a gnose70. É verdade que houve um tempo em que se tentou, levando em conta as diferenças entre João e os três evangelhos sinóticos71, relacionar João com de uma mitologização de Judas que culminará, na Idade Média, na Lenda dourada de Jacques de Voragine. Ver Klauck, op. cit. 139-149 e 159-160. Contudo, o mito de Judas está longe de se limitar ao período medieval: ver Dauzat, op. cit. 67 O Évangile de Judas, tradução e comentários de Rodolphe KASSER, Marvin MEYER, Grégor WURST. Paris, Flammarion, National Geographic Society, 2006. 68 Jean-Daniel Kaestli não escolhe entre estas duas versões, deixando a questão aberta, e chama a atenção para o fato de que o Evangelho de Judas, como numerosos textos, resiste aos que só utilizam uma chave de leitura ou que projetam prejuízos sobre os ou ideias modernas, em detrimento de uma abordagem crítica rigorosa que não exclui a simpatia (correspondência privada). 69 Ernst KÄSEMANN, Jesu lezter Wille nach Johannes 17, Tübingen, Mohr, 1967; Luise SCHOTTROFF Der Glaubende und die feindliche Welt. Beobachtungen zum gnostichen Dualismus und seiner Bedeutung für Paulus und das Johannesevangelium, Vluyn, Neukirchener Verlag, 1970. 70 Ver Helmut KOESTLER, « Les discours d’adieu de l’Évangile de Jean : leur trajectoire au premier et deuxième siècle », in La communauté johannique et son histoire. La trajectoire de l’évangile de Jean aux deux premiers siècles, Jean-Daniel KAESTLI, Jean-Michel POFFET et Jean ZUMSTEIN (éds.), Genève, Labor et Fides, 1990, 269-280. 71 Ismo DUNDERBERG, « Johannine Anomalies and the Synoptics », in New Readings in John, Johannes NISSEN et Sigfred PEDERSEN, (éds.), Sheffield, Sheffield Academy Press, 1999, 108-125. 20 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > uma corrente gnóstica, a da gnose madeista72. Todavia, parece que o ponto de vista dominante seja bem expresso por Jean-Marie Sevrin: a questão do caráter gnóstico do Evangelho de João exige, segundo este úlimo, uma resposta categoricamente negativa na medida em que “nenhum dos traços considerados habitualmente como característicos do gnosticismo parece funcionar como um impulso gnóstico” (J. M. Sevrin, op. cit. 264). Como acabamos de ver, as divergências de interpretação relativas a Judas tornam ainda mais difíceis a comparação com “um” pensamento gnóstico homogêneo e claro com um texto por si só complexo. Mas, mesmo sem retirar dele essas dificuldades, é heuristicamente interessante frisar alguns semelhanças na representação de Judas no Evangelho segundo são João com uma representação certamente simplificada da gnose, mas que compartilha a ideia de pensar Judas in bonam partem, mesmo se, como acabamos de dizer, a hipótese de uma leitura in malam partem não pode ser excluída… Nesse sentido, o Evangelho segundo são João escolhe uma cenografia que recusa dar a Judas um papel negativo como exterioridade radical em relação ao mundo humano e em relação ao mundo divino. O relato da prisão de Jesus é certamente dramatizado, duplamente até, pela superposição das perspectivas, mas sem produzir com isso uma tragédia desesperante, na medida em que o Cristo assume seu destino. Este caráter mais “brando”, mais interiorizado, é compatível com a abordagem gnóstica. E isso não é nada. Todavia, além desta semelhança, é preciso não mascarar as diferenças. Existem diferenças entre João e a corrente docetista da gnose sobre a representação de Cristo: de fato, o docetismo nega toda dimensão humana da pessoa de Cristo, e, como consequência, rejeita a ideia de que a Paixão, incompatível com sua natureza divina, se refira ao Cristo73; o Cristo toma “a forma” de um homem, e é sob esta forma que ele realiza prodígios. Mas a diferença essencial entre o texto de João e a gnose não é essa. O Evangelho segundo são João, no plano formal, é um texto narrativo – como os evangelhos sinóticos. Esta característica não está presente nos textos gnósticos, que contêm parábolas, trazem discursos sapienciais ou ensinamentos codificados, sem trama narrativa, a exemplo dos “evangelhos” de Tomás, de Judas ou das Questions de Barthélemy. Esta dimensão não é apenas puramente formal, ela inscreve com toda certeza uma visão da fé e da relação com Deus, assim como Franck Kermode parece sugerir, quando escreve que “Não se imagina um cristianismo que fosse enteiramente não narrativo, tanto quanto um judaísmo ou mesmo uma vida não narrativos” (F. Kermode, op. cit. 467). De fato, a Bíblia não é nada além de uma narração de palavras sapienciais (mesmo se elas tenham aí um papel, tanto nos Livros dos provérbios como nas epístolas): é um livro de vida, com relatos de vida: em todo caso, é o coração do Antigo Testamento, com o Pentateuco, e o coração do Novo Testamento, com os evangelhos. Esta aliança das palavras e das ações nos parece fundamental de um ponto de vista teológico: de um lado, porque a fé não seria nada sem as obras, de outro, porque a revelação – creia-se nela ou não, pouco importa – não faz verdadeiramente sentido senão na história: “é somente na história, e não ao lado ou acima dela que se realiza o acontecimento da salvação” (H.-J. Klauck, op. cit. 164-165). Sem dúvida, lemos a citação de Hans-Joseph Klauck num sentido que não é (essencialmente) o seu − a história da qual queremos falar, é primeiramente a da ficção (estória), 72 Ver F. Kermode, op. cit. 540 ; P. BORGEN, « The Gospel of John and Hellenism : Some Observations », in Exploring the Gospel of John, R. Alan CULPEPPER et Carl Clifton BLACK (éds.), Westminster John Knox Press, Louisville, Kentucky, 1996, 93-123; W. D. DAVIES, « Reflections on Aspects of the Jewish Background of the Gospel of John », ibid. 1996, 43-64. Mas esta hipótese seria contradita pela descoberta dos manuscritos do Mar Morto, em Qumrân, que revelam a existência de uma tradição judia à qual João foi sensível, no contexto helenístico que era o seu: ver H.-K. Nielsen (Helge Kjaer NIELSEN « Johannine Research », in New Readings in John, Johannes NISSEN et Sigfred PEDERSEN, (éds.), 1999, Sheffield, Sheffield Academy Press, 1999, 11-30.) et J. Zumstein, 2004, op. cit. 357s. 73 Este seria Simão de Cirene, metamorfoseado pelo Cristo para que o tomem por ele, que teria sofrido na cruz em seu lugar (M. Scopello, op. cit. 42-43). O Corão (Surata IV, 157-158) faz sua essa versão docetista, destacando que é uma imagem que morreu na cruz (P.-E. Dauzat, op. cit. 285). 21 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > antes de ser daquela dos acontecimentos históricos (história) −, Mas não o traímos na medida em que a mistura das duas histórias é central no relato da Paixão. Do ponto de vista da história – que importa aos fieis, e também aos que abordam estes textos eruditos (fieis ou não fieis) –, o fato narrativo é um fato teológico de primeira ordem: nunca se dirá exatamente o quanto o relato, com seus percursos narrativos, seus personagens, oferece ao leitor cooperativo múltiplas facetas passíveis de identificações e de empatias de todo tipo, sem tomar a forma impositiva das argumentações74. De fato, o relato se baseia em mecanismos de inferência muito menos constrangedores do que os mecanismos lógicos silogísticos, já que a soma das conclusões que o destinatário tira dele é maior do que a que está compreendida nas premissas dos silogismos. Certamente, tais inferências concernem fundamentalmente aos textos argumentativos, mas acontece que elas ganham maior valor num contexto narrativo75 em função dos mecanismos de identificação próprios à narrativa, e, principalmente, em função do papel dos pontos de vista que são, como já dissemos, “agentes duplos” do relato e da argumentação76. É por isso que esses mecanismos de inferência, reforçados pelos mecanismos de identificação, apresentam inegáveis vantagens, primeiramente ao deixar ao outro o cuidado de uma interpretação eventualmente mal-intencionada, em seguida, sobretudo, ao deixar a ele o cuidado de se apropriar da mensagem, em virtude de “um fenômeno de natureza psicológica”: Aquele que por si mesmo chegou a uma conclusão tende a sustentá-la, se posso dizer, de olhos fechados, a ponto de poder recusar qualquer evidência contrária. (João-Blaise GRIZE, Logique et langage, Gap, Paris, Ophrys, 1990, 48) O que dizer quando a inferência é trazida por personagens aos quais o leitor se identifica, interessando-se, não somente por suas palavras, mas também pelos movimentos de pensamento subjacentes as suas percepções e ao conjunto de suas ações? Essas inferências se somam àquelas que o leitor tira da organização do relato, tanto no plano estrutural como no plano da produções em discurso: independentemente de qualquer comentário explícito, os acontecimentos, através da narração que deles é feita, “falam deles mesmos”, ou seja, orientam as interpretações baseados nos valores atribuídos pelas escolhas de referência. Essa é a “lógica da narração”77 que está na base de uma teologia narrativa. Para nós, toca-se aí em uma dimensão antropológica fundamental do relato, que repousa não somente nas suas estruturas, mas também na importância de sua narração e nos efeitos argumentativos de natureza inferencial que dele decorrem. Esses últimos têm um peso interpretativo determinante na determinação das diferenças entre João e o universo da gnose, além das diferenças históricas e conceituais para com o sistema do pensamento gnóstico já colocados (cf. supra, J.-M. Sevrin, op. cit.). *** Para concluir, deve-se insistir fortemente nesse ponto: não é o caso de fazer do Evangelho segundo são João um texto gnóstico, muito menos de substituir uma leitura diabolisante de 74 Ver Patrick CHARAUDEAU, « L’argumentation n’est peut-être plus ce qu’on croit », in Le Français aujourd’hui n° 123, 1998. 75 Independentemente do papel argumentativo indireto dos relatos nos textos argumentativos, através dos exempla, as parábolas (ver A. Rabatel, 2004, op. cit.). 76 Ver Alain RABATEL « Un, deux, trois points de vue ? Pour une approche unifiante des points de vue narratifs et discursif », La Lecture Littéraire n° 4, 2000, 195-254. Paris : Klincksieck / Université de Reims. 77 Ver Alain RABATEL Homo narrans. Pour une approche énonciative et interactionnelle du récit. T. 1, La logique de la narration, Limoges, Lambert-Lucas, 2008. 22 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > Judas por uma leitura angélica78 ou “romântica”, segundo a expressão de Hans-Joseph Klauck: toda interpretação deve se apoiar somente na história e nos textos (que são uma parte da história). O que quisemos trazer à luz, a partir das especificidades do relato da Paixão em João, é principalmente a necessidade de repensar a imagem sincrética de Judas que todos fazemos, fieis ou não, tanto a partir dos escritos canônicos79 e extracanônicos, como a partir da fraqueza dos dados históricos, que favorece as leituras legendárias80. Ao término da nossa investigação, a imagem do “traidor por trinta denários”, amplamente impregnada no imaginário, fica abalada. Nosso objetivo terá sido atingido se, a partir da fina análise enunciativa e interacional da narração, tivermos incitado a reabertura do debate, conforme a sábia posição de Hans-Joseph Klauck, indo mais longe do que ele na leitura da oscilação que abre a dramatização do relato de João. As diferenças entre o Evangelho segundo são João e os evangelhos sinóticos, com relação aos respectivos lugares de Jesus e de Judas, levam a compreender num sentido positivo o que a tradição pensava unicamente num sentido negativo, em suma, a fazer de Judas, se não um heroi positivo, pelo menos um autor infeliz, mas indispensável, de um drama que abre o caminho para a salvação. Imaginado assim, Judas, sem ser um heroi positivo, assume um papel positivo e de qualquer modo necessário. Nesse sentido, a ausência das palavras de Judas na cenografia de João, tal como a interpretamos de um ponto de vista narratológico e enunciativo, fundamenta uma abordagem teológica de Judas, e, além do seu simbolismo, uma representação do mal menos saturada pelos dados psicologizantes e ontologizantes do que as análises tradicionais que se apoiam sobre as palavras do “traidor”. Já que os acontecimentos da Paixão ocorrem independentemente da menção das palavras de Judas, sem dúvida há fundamento em reconsiderar (para minimizá-lo) o papel (das palavras) de Judas nos evangelhos sinóticos. Também a imagem do vilão absoluto merece ser seriamente contestada, porque a “traição” de Judas é constantemente apresentada como a marca de uma profecia. Se levarmos em conta que, nos evangelhos sinóticos, o termo “infeliz” nunca está associado a uma condanação nem a uma maldição81, há sem dúvida aí, de diversos modos, um precioso convite a reler também os fragmentos dos evangelhos sinóticos consagrados à inculpabilidade de Judas, e não mais somente a sua culpabilidade. No plano teórico enfim, esses ensinamentos da narração funcionam a favor de uma reavaliação da produção de discursos de relatos, no nível da superfície do texto, a referenciação e as escolhas enunciativas que ela destaca sendo ao menos tão estratégica quanto as estruturas profundas da narrativa, tais como tentamos mostrar aqui, sem nos autorizar a defender mais adiante uma teologia narrativa, o que fica a cargo dos exegetas e dos teólogos. 78 Sobre as leituras positivas de « Judas l’innocent » (cf. J. Cardonnel), reatualisadas recentemente no filme de Scorcese adaptado do romance de Kazantzakis, A última tentação de Cristo, ou ainda no Evangelho segundo Pilatos, de E.-E. Schmitt, que faz de Judas o discípulo preferido, cf. A. Marchadour, op. cit. 191ss et P.-E. Dauzat, op. cit. 79 Essencialmente os quatro evangelhos e os Atos dos apóstolos de Lucas. 80 Nada se sabe sobre o fim de Judas: depois da Páscoa, ele não mais aparece. Se nos limitarmos aos dados dos evangelhos canônicos, Judas é um dos Doze, um dos discípulos preferidos de Jesus (H.-J. Klauck, op. cit. 163-164). 81 Pelo contrário, tal maldição se encontra no Livre de la résurrection de Barthélemy, em 6, 4: Alors le Salvador se voltou para o homem que o tinha traído, ou seja, a Judas Iscariotes, e lhe disse: “Ó Judas, o que ganhaste com ter-me entregado [nas mãos dos] Judeus, os cães? Nada! Eu, eu suportei todos os sofrimentos até que cumprisse [a vontade de] meu Pai e que eu tivesse rescuperado minha imagem [e meu] ser modelado que eu formei. [Quanto a] ti, [és desgraçado], duas vezes desgraçado! (Livre de la Résurrection de Barthélemy, Écrits apocryphes chrétiens 1, 1997 : 319. Mas, pelo que sabemos, uma maldição como essa é raríssima. 23 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.9, jul/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >