“O que é misericórdia?”, e dissemos

A MISERICÓRDIA DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO
Em nossa primeira reflexão, perguntamos “O que é misericórdia?”, e dissemos que a
misericórdia é a melhor reação para a noção amplamente difundida da miséria humana. É o
melhor remédio que Deus inventou. De fato, não é fugindo dos pobres, nem livrando-se deles,
mas dar à outra pessoa aquilo que mais lhe falta, e aquilo que foi o motivo para a miséria, mal
e pecado.
Na segunda reflexão, nós iremos olhar a misericórdia de Deus no Antigo Testamento, porque
esta parte da Bíblia é associada com um Deus, que não é misericordioso.
1. Deus é, simplesmente, misericordioso
O Deus Misericordioso – Ele muito simplesmente desta forma. O Livro do Êxodo descreve o
Senhor vindo ao encontro de Moisés no Monte Sinai: “O Senhor passou diante dele,
exclamando: “Javé, Javé, Deus compassivo e misericordioso, lento para a cólera, rico em
bondade e em fidelidade,” (Êxodo 34, 6)
O primeiro traço, característica, caráter ou atributo de Deus é a misericórdia. Essas palavras
são tão importantes, que Deus falou sobre Ele mesmo. Ele proclamou, vindo ao encontro de
Moisés, apresentando a si mesmo, como se quisesse que após isso Moisés e o seu povo O
reconhecessem. Ele poderia dizer: “Javé, Javé, Deus que é justo e constante” ou “Javé, Javé,
Deus forte e terrível”. Não. A primeira palavra que Deus fala sobre si mesmo, e isto no
contexto de um povo infiel, é “Eu sou misericordioso”.
Quão diferente em comparação com esta cena são as palavras da oração dos sacerdotes que
aparecem no Livro de Macabeus: “Eis a oração: Senhor, Senhor, Deus, criador de todas as
coisas, terrível e forte, justo e misericordioso, que sois o rei único e bom,”(II Mc 1, 24). Em
verdade, existem palavras sobre a misericórddia de Deus lá, mas primeiro fala sobre o fato de
Deus ser forte e terrível. Essas palavras, no entanto, não são as palavras de Deus sobre si
mesmo, mas como as pessoas falam sobre Deus. Deus, no Antigo Testamento, quer dizer
sobre si mesmo: acima de tudo, Eu sou misericordioso.
Outros também falam sobre Deus dessa forma. Então diz Moisés:
“porque o Senhor é um Deus misericordioso, e ele não te quer abandonar nem te
extinguir, e não se esquecerá da aliança que jurou aos teus pais.” (Dt 4, 31)
Assim diz Neemias:
“Mas, mesmo assim, vossa grande misericórdia vos impediu de aniquilá-los, e não os
abandonastes porque sois um Deus clemente e compassivo.” (Ne 9, 31)
Então Sara ora;
“Bendito sejas tu, Deus misericordioso!” (Tb 3, 11)
Então o salmista exclama frequentemente:
“Mas vós, Senhor, sois um Deus bondoso e compassivo; lento para a ira, cheio de
clemência e fidelidade.” (Sl 86, 15)
“O Senhor é bom e misericordioso, lento para a cólera e cheio de clemência.” (Sl 103,
8)
Mesmo o profeta Jonas, sendo incapaz de compreender a misericórdia de Deus,
honestamente declara: “porque sabia que sois um Deus clemente e misericordioso, de
coração grande, de muita benignidade e compaixão pelos nossos males.” (Jn 4, 2)
E então o Deus do Antigo Testamento muito simplesmente é misericordioso. E mais,
ele não somente é assim, mas como ele fala através do profeta Jeremias: “Não é, porém,
Efraim, filho querido, eternamente amado por mim? Todas as vezes que falo contra ele, mais
viva se torna em mim a sua lembrança. E meu coração se comove ao pensar nele. Terei
compaixão dele - oráculo do Senhor.” (Jr 31, 20)
2. De que forma Deus é misericordioso?
Porque Deus é misericordioso e a misericórdia é a melhor reação à noção amplamente
definida da miséria humana, vamos dar uma olhada em muitos exemplos do Antigo
Testamento de como Deus reage à miséria humana.
Quando José, o filho de Jacó, se encontrava em uma prisão, Deus fez que ele conquistasse a
simpatia do chefe da prisão. (cf. Gn 39, 21)
Quando os israelitas se encontravam no Egito, em sua misericórdia Deus os tirou da
escravidão, não os deixou no deserto e os guiou à Terra Prometida (cf. Ne 9: 19-21).
Quando a praga atingiu muitas pessoas em Israel por causa dos pecados do Rei Davi, o fim da
punição foi chamado misericórdia (cf. 2 Sm 24, 25).
Quando o povo foi escravizado por causa de seus pecados, ou era dominado por seus inimigos,
Deus não os deixou, não os destruiu, mas enviou libertadores a eles, o que é particularmente
evidente no Livro dos Juízes, na história de guerras com os povos vizinhos ou no retorno do
exílio na Babilônia (cf. Jdt 7,30, Ne 9,27, 30-31, Sir 48,20).
Deus mostrou misericórdia à Sara – Tobias não morreu, assim como seus maridos anteriores.
A misericórdia é frequentemente chamada de perdão dos pecados (cf. Sl 51, 3; Sir 2, 11; Mq
7, 18-19).
O mais bonito hino que exalta a misericórdia de Deus é o Salmo 146. Cada verso termina com
as palavras “porque eterna é a sua misericórdia” (26 vezes). Existem várias traduções para a
palavra hebréia chesed. Mas a Vulgata, antiga e venerável tradução latina da Igreja, repete
após cada vez, “quoniam in aeternum misericordia eius”.
Mesmo esse pequeno grupo de exemplos mostra que Deus reage tanto à miséria individual,
quanto à da nação inteira. E mesmo se as experiências do passado foram muito difíceis, como
o drama de Sara que estava pensando em suicídio, ninguém pode perder a fé de que a
misericórdia de Deus é capaz de alcançar cada instância da miséria humana.
3. Os Limites da Misericórdia de Deus
Mas a misericórdia de Deus é ilimitada? Como podemos entender o dilúvio, a destruição de
Sodorra e Gomorra, o espancamento de crianças e mulheres em nome de Deus? Como
devemos entender essas palavras específicas, que o Senhor nosso Deus fala de si mesmo?
“Mas tu lhes dirás: Eis o que diz o Senhor: vou encher de embriaguez todos os habitantes desta
terra: os reis que ocupam o trono de Davi, os sacerdotes, os profetas e a população inteira de
Jerusalém; e vou quebrá-los, uns contra os outros, pais e filhos – oráculo do Senhor -, sem que
compaixão, piedade ou perdão me impeçam de destruí-los.” (Jr 13, 13-14)
‘’E disse, ainda, o Senhor: Não entres em casa em que haja luto, para chorar com seus
moradores, porque – oráculo do Senhor – desse povo retiro a minha paz, minha proteção e
minha misericórdia.’’ (Jr 16, 5)
Alguns princípios que precisamos conhecer com relação às dificuldades com a misericórdia de
Deus no Antigo Testamento:
a) a misericórdia de Deus não trabalha como um conta bancária. É por isso que Tobias diz: ‘’Se
vocês se voltarem para ele com todo o coração e com toda a alma, para praticar a verdade
diante dele, então ele se voltará para vocês, e nunca mais lhes esconderá a sua face.’’(Tobias
13, 6);
b) para Deus mostrar misericórdia, certas condições devem ser preenchidas: os moradores de
Nínive jejuam, Tobias e Sara oram a Deus, o povo suporta vários anos de escravidão;
c) o que parece ser uma punição, não misericórdia, uma dificuldade ou formalidade
desnecessária, para as pessoas no Antigo Testamento é remédio, que traz a cura, o poder da
Divina misericórdia. Muito frequentemente se manifesta através de jejum, oração e o
cumprimento de um determinado castigo, cujo objetivo nunca é a destruição da pessoa ou da
nação, mas sempre a conversão.
d) o requisito para as pessoas cooperarem com Deus, com o objetivo de receber misericórdia,
e o melhor caminho para tirar alguém da miséria é a expressão da grande confiança. Só então,
quando a pessoa sacrificar algo de si mesma, a fim de ser livre, a sua libertação será efetiva e
duradoura. Até mesmo o melhor dentista não pode ajudar uma pessoa, se esta não quer abrir
a boca.
e) o Antigo Testamento não é a última palavra de Deus. Entre muitos assuntos, e também
sobre a misericórdia de Deus, as pessoas falam de uma maneira imperfeita em suas páginas.
É por isso que é necessário consultar Jesus em cada dificuldade. E Ele dirá, por exemplo, que
o Senhor nosso Deus não mata e nem ordena a morte das pessoas. Deus antes permitiria a
morte do seu Filho Unigênito do que destruir aqueles que mataram seu Filho
Seria bom se nós lembrássemos a partir dessa reflexão que o Deus do Antigo Testamento é,
acima de tudo, misericordioso. A sua misericórdia não conhece situações desesperadoras. E
se Ele se atrasa com a misericórdia, ou dá a impressão que não é misericordioso, é somente
porque este é um passo importante no processo de guiar a pessoa para fora da miséria, um
passo, que deveria ajudar uma pessoa, entre outras coisas, a pensar se ela realmente quer
deixar a miséria, ou somente quer que a sua miséria não seja chamada assim.
-----Deus, Pai misericordioso,
que revelaste o Teu amor no Teu Filho Jesus Cristo,
e o derramaste sobre nós no Espírito Santo, Consolador,
confiamos-te hoje o destino do mundo e de cada homem.
Inclina-te sobre nós, pecadores,
cura a nossa debilidade,
vence o mal,
faz com que todos os habitantes da terra,
conheçam a tua misericórdia.
Para que em Ti, Deus Uno e Trino,
encontrem sempre a esperança.
Pai eterno
pela dolorosa Paixão e Ressurreição do teu Filho
tem misericórdia de nós e do mundo inteiro.
Amém!
João Paulo II, Cracóvia- Łagiewniki, 17.08.2002
Padre Wojciech Węgrzyniak