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Volume 1
Uma História das
Copas do Mundo
Futebol e Sociedade
Airton de Farias
Ilustrações
Daniel Brandão
Copyright ©2014 by Armazém da Cultura
Editora
Albanisa Lúcia Dummar Pontes
Secretária Administrativa
Telma Regina Beserra de Moura
Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica
Francisco Oliveira
Rudsonn Duarte
Suzana Paz
Foto de capa
Alessandro Puccinelli
Assessora de Comunicação
Mariana Dummar Pontes
Revisão
Carlos Augusto Ribeiro Neto
Paulo Bentancur
Revisão final
Vessillo Monte
(Proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por qualquer meio ou sistema, sem prévio consentimento da editora.)
Texto estabelecido conforme o novo acordo ortográfico da língua portuguesa
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Farias, Airton de
Uma história das Copas do Mundo : futebol e
sociedade, volume 1 / Airton de Farias ;
ilustrações Daniel Brandão. -- Fortaleza :
Armazém da Cultura, 2014.
ISBN: 978-85-63171-92-4
1. Copa do Mundo (Futebol) 2. Copa do Mundo
(Futebol) - História 3. Política - História
I. Farias, Airton de. II. Título.
14-03734 CDD-796.334668
Índices para catálogo sistemático:
1. Copa do Mundo : Futebol : História
796.334668
Todos os direitos desta edição reservados ao Armazém da Cultura
Rua Jorge da Rocha, 154 – Aldeota
Fortaleza – Ceará – Brasil
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IMPRESSO NO BRASIL 2014
FOI FEITO DEPÓSITO LEGAL
Volume 1
Uma História das
Copas do Mundo
Futebol e Sociedade
Airton de Farias
Ilustrações
Daniel Brandão
Fortaleza - Ce
2014
Bem aventurados os que não entendem
nem aspiram a entender de futebol, pois deles é o reino da
tranquilidade.
Carlos Drummond de Andrade, in Sermão da Planície
Para Marília, moça de livros, sonhos e lutas
SUMÁRIO
Apresentação........................................................................................ 14
Prefácio.................................................................................................. 16
Capítulo 1 - As Origens do Futebol ............................................ 22
Além da bola .................................................................................... 24
A difícil padronização..................................................................... 25
Religião leiga..................................................................................... 31
Pelo mundo ...................................................................................... 33
Bola e guerra .................................................................................... 39
Capítulo 2 - Primórdios do Futebol no Brasil ....................... 44
O “Pai do Futebol”........................................................................... 46
Na capital........................................................................................... 51
Um evento “social e civilizado”...................................................... 54
A popularização do futebol ........................................................... 57
Semiprofissionalismo ..................................................................... 63
Racismo ............................................................................................ 67
Cariocas versus Paulistas ............................................................... 72
Seleção Brasileira ............................................................................ 75
Capítulo 3- A Copa do Mundo no Uruguai, em 1930................... 86
A criação da Copa .......................................................................... 88
Os preparativos ............................................................................... 92
E no Brasil ........................................................................................ 97
A bola rola ........................................................................................ 100
As finais ............................................................................................ 107
Capítulo 4 - A Copa do Mundo da Itália, 1934......................... 112
Futebol e fascismo .......................................................................... 114
O Brasil de Vargas e futebol .......................................................... 119
Em campo......................................................................................... 126
O triunfo da força............................................................................ 130
Capítulo 5 - A Copa do Mundo na França , em 1938 .................. 136
Futebol e nazismo ........................................................................... 138
Preparativos ..................................................................................... 143
Brasil: enfim, uma seleção forte ........................................................ 148
Bola em gramados franceses .......................................................... 152
A força italiana novamente, .......................................................... 157
Capítulo 6 - A década sem copa .................................................... 162
A II Guerra Mundial ...................................................................... 164
A bola (quase) para ......................................................................... 165
O Brasil e as rivalidades sul-americanas ..................................... 174
O futebol no Brasil nos anos 40..................................................... 178
Capítulo 7 - A Copa do Mundo no Brasil, em 1950 ................ 184
Agora é Brasil .................................................................................. 186
Eliminatórias ................................................................................... 189
O otimismo brasileiro .................................................................... 193
Sob o sol dos trópicos ..................................................................... 195
Quadrangular final ......................................................................... 199
Maracanaço ...................................................................................... 200
Capítulo 8 - A Copa do Mundo na Suiça, em 1954 .................. 210
Os magiares mágicos ..................................................................... 212
Uma copa neutra ............................................................................ 217
Um novo Brasil ............................................................................... 219
Fórmula confusa ............................................................................. 221
A batalha de Berna ......................................................................... 225
O milagre de Berna ........................................................................ 228
Capítulo 9 - A Copa do Mundo na Suécia, em 1958 ............... 236
Stalinismo e futebol ........................................................................ 238
A geração de ouro do Brasil .......................................................... 244
Eliminatórias para a Suécia ........................................................... 250
Brasil contra a União Soviética ..................................................... 252
Rumo ao título ................................................................................. 256
O mundo é do Brasil ...................................................................... 261
Capítulo 10- A Copa do Mundo no Chile, em1962 ................ 268
Mitos chilenos? ................................................................................ 270
Favorito para o bi ............................................................................ 273
Um país em crise ............................................................................. 274
Disputando uma vaga para o Chile ............................................. 277
Ao largo dos Andes ........................................................................ 278
A copa de Garrincha ...................................................................... 279
Polêmicas ......................................................................................... 284
O mundo é novamente dos brasileiros ........................................ 288
Capítulo 11 - A Copa do Mundo na Inglaterra, em 1966 .... 292
Golos .................................................................................................. 294
A copa dos inventores .................................................................... 298
Desorganização ............................................................................... 301
Na terra da rainha ........................................................................... 304
A zebra é vermelha ......................................................................... 308
O choque das “surpresas” .............................................................. 313
A taça fica com os donos da festa ................................................. 317
Capítulo 12 - A Copa do Mundo no México, em 1970............. 322
Sob a tutela da ditadura ................................................................. 324
As “feras do Saldanha” ................................................................... 327
A guerra do futebol ........................................................................ 336
Na terra asteca ................................................................................. 340
Catenaccio ........................................................................................ 342
Desafio peruano .............................................................................. 346
A Jules Rimet é do Brasil ............................................................... 348
Tri a serviço da ditadura ................................................................ 353
Capítulo 13- A Copa do Mundo na Alemanha Ocidental, em 1974 ..358
Carrossel mágico ............................................................................. 360
O preço da vitória ........................................................................... 363
A sombra de 70 ............................................................................... 369
Eliminatória para 74 ....................................................................... 373
Germânia ......................................................................................... 377
Retranca verde-amarela ................................................................. 383
O carrossel frustra o tetra .............................................................. 387
A Alemanha para a Holanda ........................................................ 390
Capítulo 14- A Copa do Mundo na Argentina, em 1978...396
Copa do país da guerra suja .......................................................... 398
Eliminatórias ................................................................................... 404
Auge da militarização ..................................................................... 407
Tensão ............................................................................................... 410
Perdidos ............................................................................................ 415
Copa suja? ........................................................................................ 418
Albiceleste campeã ......................................................................... 424
Capítulo 15 - A Copa do Mundo na Espanha, em1982 ........... 430
Rebeldes da bola .............................................................................. 432
O Corinthians tem uma democracia ........................................... 435
Sócrates, Zico e Cia. ....................................................................... 440
Uma outra Espanha ........................................................................ 444
Azurra ............................................................................................... 447
Arranjo, goleada, inovação de campo ......................................... 450
O Brasil encanta .............................................................................. 457
Muito além do campo .................................................................... 459
Uma tragédia em Sarriá ................................................................. 461
A Itália também é tri ...................................................................... 468
Capítulo 16 - A Copa do mundo no México, em 1986.............. 476
“De que Planeta vieste?” ................................................................ 478
Onde será a copa?............................................................................ 480
Eliminatórias ................................................................................... 483
De novo Telê .................................................................................... 486
Copa quente ..................................................................................... 490
Demais .............................................................................................. 492
Sonhando de novo .......................................................................... 497
Dramas e surpresas ......................................................................... 499
Au revoir, Brèsil ............................................................................... 501
Dios, guerra e honra ....................................................................... 505
Argentina é bicampeã .................................................................... 510
Apresentação
Juca Kfouri
Jornalista e formado em Ciências Sociais pela USP
Airton e Daniel acabam de formar uma das mais perfeitas tabelinhas da
história do futebol mundial.
Airton de Farias e Daniel Brandão, o primeiro craque da pesquisa e do
texto, o segundo um ilustrador de primeira.
Farias e Brandão, dê você o nome que quiser à dupla, nos dão o prazer
de ler e ver uma goleada como nunca antes, ao menos no Brasil, havia sido
produzida tendo as Copas do Mundo como tema.
Uma História que vai além das quatro linhas do gramado, sem descuidar, ao contrário, da fantasia que as coisas da bola aprontam dentro
dela.
A contextualização política do mundo pré-Copa (quase escrevi pré
-histórico, como se fosse impossível pensá-lo sem futebol...) e de 1930,
ano da primeira Copa, até hoje, quando chegamos a 20a, insere o esporte
mais popular do planeta na vida e na política como ele merece.
Chute certeiro no preconceito dos que o viam como alienante e na
exata medida de sua importância cultural e política, até como fator de resistência democrática.
Ora, não serei eu a enumerar aqui os exemplos, para não tomar o seu
tempo e, principalmente, o prazer da leitura ricamente ilustrada.
Ressalte-se, ainda, apenas como conclusão deste rápido pré-jogo, a
abordagem da década perdida, a década sem Copa, a de 1940, para jus-
ta inconformidade dos hermanos argentinos que tinham tudo para se
consagrar bicampeões mundiais em 1942/46, com o que se igualariam
aos italianos que, antes da Segunda Grande Guerra, em 1934/38, alcançaram a façanha. Depois dela, como se sabe, duas seguidas, só, nós, os
brasileiros, em 1958/62.
Mas isso é História e aqui você a encontrará muito mais bem contada por dois goleadores.
Sim, porque esta Uma História das Copas do Mundo - Futebol e sociedade é daquelas que o apresentador gostaria de ter escrito.
Certamente não há em língua portuguesa nada igual, porque, repitase, é muito mais que uma história futebolística das Copas, mas uma apaixonante história política e social desde os primórdios do esporte.
Nas mais de mil páginas em dois volumes há mais citações que os gols
de Pelé, todas de boas fontes e que não atrapalham a fluidez da leitura, ao
contrário, a respaldam e conferem absoluta credibilidade.
Em resumo, o que você tem nas mãos é uma obra portentosa. Nem
mais nem menos.
PREFÁCIO
Algumas pessoas acreditam que futebol é questão de vida ou
morte. Fico muito decepcionado com essa atitude. Posso garantir
que futebol é muito, muito mais importante.
Bill Shankly, técnico do Liverpool, da Inglaterra entre 1959-74
Serei bem claro: este é um livro de síntese, com certo caráter didático, para
aqueles que desejam dar os primeiros passos na tentativa de compreender melhor o futebol além dos gramados. Não é uma obra de estatísticas futebolísticas (embora as use também, eventualmente), nem uma obra rigorosamente
factual e cronológica (nos capítulos, como o leitor perceberá, há muitas “idas e
vindas” no bailar contraditório e instável dos anos). Também não visa realizar
uma “hagiografia de boleiros”, ainda que fale bastante da trajetória dos jogadores, pois, como de se esperar numa obra deste tipo, os atletas são considerados
atores sociais, alvos de grande atenção dentro do processo histórico. Igualmente, não tenho a intenção de focar nestas linhas causos pitorescos ou folclóricos
e, muitos menos, detalhar todas as escalações, treinadores, lugares e horários
das partidas das copas e o exato tempo de jogo em que aconteceram os cartões
e os gols. Você está alertado, caso deseje prosseguir (se é um leitor igual a mim,
que deixa para ler por último o prefácio, esse primeiro parágrafo é totalmente
dispensável e sua frustração, caro leitor, é deveras compreensível...).
E do que trata este livro, afinal?
Sou um aficionado por futebol e, como professor há 20 anos, um apai-
xonado por História, igualmente. Dito isso, fica fácil perceber o objetivo
principal da obra: entender a História (ou uma parte da História) da humanidade, entre o final do século XIX e o começo do século XXI, através
da modalidade esportiva mais popular do planeta. Essa abordagem, creia,
é algo fascinante. É incrível a quantidade de episódios históricos e conflitos, simbólicos ou não, que podem ser percebidos nas partidas de clubes e
seleções, afora indicativos, características, contradições e pormenores das
sociedades. Não é temerário afirmar que a História do mundo, nos últimos cento e tantos anos, passou pelos estádios de futebol.
É uma obra, portanto, ousada (audaciosa) e, por isso mesmo, aberta a
críticas. A primeira dessas, de caráter mais historiográfico, talvez se refira à pretensão do autor de querer tratar de “toda” a História do futebol (e
do mundo!) em cerca de 1000 páginas. Aceito o reparo dos colegas historiadores. A História do futebol vai além, mas muito além destas páginas.
Certamente por “abarcar” mais temas, peco em não aprofundá-los devidamente (embora, digo de coração, minha intenção fosse fazê-lo e busquei
atingí-lo dentro do possível). Sem esquecer que vários outros temas ficaram
à margem. O profissional da História sabe que, num livro, não é por acaso a
escolha de um tema e o “esquecimento” de outros estudiosos. O Historiador,
ao fazer uma pesquisa, traz, consigo, suas perspectivas ideológicas, culturais,
etárias, étnicas, de gênero, etc. O pesquisador escolhe a pesquisa – mas a
pesquisa também “escolhe” o pesquisador. Assim, saiba, amigo leitor, a História do futebol vai igualmente bastante além dos temas e abordagens aqui
realizados. Este livro é apenas um leve aquecimento para quem deseja, de
fato, entrar em campo...
Há ainda o problema das interpretações. A obra não é só minha (por
isso, inclusive, uso o chamado “plural da modéstia”). Procurei me apoiar
no que havia de mais recente na produção acadêmica (teses, dissertações,
monografias, artigos, etc.), tudo devidamente citado para aqueles que desejem aprofundar a leitura e os estudos. São produções dos cursos de História, Sociologia, Educação Física, Comunicação Social e áreas afins de
todo o Brasil. Igualmente fiz uma leitura das obras “clássicas”, produzidas
por memorialistas, jornalistas, biógrafos, etc. Documentos e fontes, especialmente jornais, estão discriminados ao longo dos capítulos. No final do
livro há uma gigantesca lista de referências. Sei que algumas vezes tantas
citações congelam a leitura, principalmente numa obra que alimenta pretensões didáticas e gerais. Mas, por honestidade intelectual e respeito ao
leitor e aos colegas pesquisadores, não poderia deixar de fazer isso. Espero
compreensão.
Assim, novamente, alerto o leitor, mormente aquele que não tem maiores intimidades com as lides historiográficas, que este livro traz uma interpretação, não “a” interpretação. Há muito que a História abandonou a
obsessão em encontrar “a verdade”. A História (e suas interpretações) é
fruto dos embates atuais e dos desejos futuros, e das contradições entre os
vários grupos sociais. Não espere “neutralidade” nestas páginas. Não sou o
“portador” da verdade. Nem o quero ser. Possivelmente, muito do que está
dito aqui seja passível de contestação ou provoque acalorados debates. Isso
é bom. É assim que as ciências humanas avançam. A crítica e o debate são
da essência mesma da História.
Mas por qual razão um leitor se interessaria por uma obra que gasta
páginas e páginas falando do extracampo e não sobre seu craque favorito
ou da conquista memorável? Os livros sobre futebol encerram contradições. Muitos torcedores estão satisfeitos em compreender as táticas de seus
times e os assuntos mais comuns das colunas esportivas dos jornais ou dos
programas de rádio e televisão. Por outro lado (por muito tempo), o mundo acadêmico tratou com certo desdém o “esporte das multidões”. Quando não era visto como “ópio” do povo, ignorava-se quase por completo o
“espetáculo” da bola em si. O torcedor e o acadêmico pareciam seres de
dimensões antagônicas.
Entretanto, cada vez mais estudiosos deixam de ver no futebol uma
prática “alienante”. É óbvio, como veremos a seguir, que, sim, distintos regimes políticos, fossem ditatoriais ou democráticos, buscaram utilizar a
modalidade na intenção de angariar apoios internos ou exibir prestígio
internacional. Mais recentemente, dentro de um intenso processo de mercantilização, o adepto do futebol passou a ser visto apenas como um “consumidor” e o jogo como um lucrativo negócio. Essas perspectivas, entretanto, como normal dentro do dinamismo e diversidade das sociedades,
não são absolutas. Se ditadores “usaram” o futebol, este igualmente ser-
viu como estratégias de resistência e de questionamentos aos dominados.
Não poucos jogadores tiveram destacados papéis políticos em seus países,
questionando e expondo estruturas sociais autoritárias e viciadas. Clubes
expressavam os anseios de povos por liberdades. Em estádios, multidões
entoaram “gritos de guerra” contra governantes ou os vaiaram enfaticamente. Protestos iniciaram-se exatamente quando competições esportivas
aconteciam... “Alienante”, como assim? Cada vez fica mais claro para os
pesquisadores da área de humanas que as sociedades e suas peculiaridades
e contradições passam (também) pelos estádios de futebol, mundo afora.
Assim, questões de nossa época podem ser pensadas a partir das partidas de futebol, particularmente nas copas do mundo. A criação do próprio
Mundial, por Jules Rimet, não pode ser desvinculada dos crescentes sentimentos e tensões nacionalistas que varriam o mundo, especialmente a Europa, nas primeiras décadas do século XX – e que contribuiriam para a eclosão
de duas Guerras Mundiais. A seleção italiana, bicampeã em 1934 e 1938,
fazia a saudação dos adeptos de Mussolini, como se fosse a materialização de
um fascismo de chuteiras. Em nosso País, o futebol foi e é forte componente
na formação da identidade nacional – não por acaso, ainda hoje é popular
a expressão “Pátria de Chuteiras” e falamos, geralmente, do Brasil jogando,
e não da seleção brasileira de futebol, como se a nação fosse a onzena verde
e amarela. Tal componente não escapou aos interesses variados de diversos
atores sociais e políticos e por vezes teve de lidar com problemas que ainda
hoje incomodam a sociedade brasileira, a exemplo do racismo. O goleiro
da Seleção de 50, Barbosa, que o diga. E a Alemanha que, de certo modo,
se reergueu do Nazismo e da II Guerra ao conquistar o título de 1954? Não
se pode desconsiderar a conquista da Taça Jules Rimet para a autoestima de
um povo arrasado como aquele. Um raciocínio parecido pode ser feito para
a Argentina, que após sofrer uma dolorosa derrota na Guerra das Malvinas,
em 1982, acabou sendo campeã do Mundo, em 1986, superando os rivais
ingleses, o que levaria à “divinização” de Diego Maradona.
Em suma, este livro fala de Histórias – Histórias de vários povos/sociedades e futebol, buscando evidenciar as intercessões, influências e tensões
que apresentam, particularmente nas Copas do Mundo e que, não raro,
passam despercebidas por grande parte dos torcedores e analistas. E mes-
mo que isso não lhe desperte a atenção, posso dizer que o livro trata de futebol e ao mesmo tempo, de alguma coisa de história política. Ou, inversamente, aborda um pouco (não tão pouco) de história política e de futebol.
Reúne duas paixões do autor. Sim, podemos aprender história através do
futebol. E, sim, aquele jogo decisivo do campeonato tem muito a informar
sobre nossas sociedades.
Os dois volumes da obra somam 23 capítulos, cada um tratando das
respectivas Copas em sequência e contando ainda com um tema transversal
principal. Assim, na Copa de 1958, abordo o futebol na antiga União Soviética/Stalinismo; na Copa de 1966, falo do futebol em Portugal/Salazarismo;
na Copa de 1970, trato da Ditadura Civil-Militar/Tricampeonato mundial
brasileiro; e assim por diante. Há quatro capítulos que não tratam de Copas
(pelo menos, não diretamente). O primeiro, quando abordo as origens do
futebol; o segundo, que trata da chegada do futebol ao Brasil; o sexto, que
tem como objetivo os anos 1940, a “década sem Copa”, devido à II Guerra;
e o último, que foca nos acontecimentos que antecederam o Mundial brasileiro de 2014. Embora tenha tentado desenvolver uma linha cronológica
tradicional, isso por vezes não foi cumprido rigorosamente, falando-se de“temas e épocas soltas” onde melhor se encaixassem, dentro do desenrolar
das Copas e jogos das seleções. Também recorro muitas vezes a boxes ao
longo das páginas, o que, a meu ver, enriquece o livro, pois trata de questões
importantes que não teriam como serem abordadas no texto-base.
Por fim, não poderia deixar de falar acerca das ilustrações do livro,
feitas pelo talentoso quadrinista Daniel Brandão. Os desenhos de Brandão
trouxeram a arte para dentro das páginas, tornando a leitura bem mais
agradável. O leitor mais minucioso poderá perceber como os painéis do
desenhista são um resumo de cada capítulo. E são desenhos maravilhosos,
de grande perfeição e beleza. Diria, usando o jargão do mundo da bola,
que Daniel, com muita categoria e astúcia, e fazendo tabelinhas geniais
com este autor, entrosou ainda mais o livro para o deleite do leitor.
Espero que o livro atenda as suas expectativas e que o motive a analisar
o futebol – e as sociedades – com outras perspectivas.
O autor
Capítulo I
As Origens
do Futebol
22
23
Além da Bola
Um fator fundamental para entender como o futebol se difundiu pelo
mundo, tornando-se uma das maiores paixões da humanidade, é até
simples: sua vinculação à expansão do capitalismo no final do século
XIX e começo do século XX.
Embora tenhamos informações de muitos outros povos desde a antiguidade “correndo atrás” de uma bola, o futebol, tal como o conhecemos
hoje, surgiu na Inglaterra. Foi ao longo do século XIX que os ingleses passaram a criar regras para padronizar as velhas práticas dos jogos com bolas
(redondas ou ovais), cujas origens remontavam à Idade Média e que então
eram bastante populares, apesar de violentas. Especificamente, o período entre 1810 e 1840 registrou a apropriação desses jogos populares pelos
alunos internos das public schools e a sua transformação em práticas competitivas melhor organizadas e menos truculentas. Verdade que, a princípio, houve uma resistência à incorporação dos jogos, pela sua origem – as
escolas inglesas e universidades eram frequentadas, afora a nobreza, pela
classe média e burguesia em ascensão, para quem aquilo tudo era “indigno de um gentleman”. Apesar das restrições, por iniciativa espontânea dos
alunos, teve-se ao longo dos anos a transformação do “jogo das multidões”
em esporte escolar (PRONI, 1998: 148).
Vale lembrar que nas escolas e universidades inglesas havia já toda
uma prática de jogos e competições físicas, a exemplo do arco e flecha
e da esgrima. Tais práticas eram vistas como maneiras de controlar os
impulsos da juventude, preparando as futuras lideranças do vasto império colonial britânico, propagando valores como disciplina, companheirismo, honra, boa conduta, honestidade e cavalheirismo, dentre
outros (AQUINO, 2002; MELO, 2000).
Igualmente havia a intenção de, afora exercitar o físico, preparar
aquela elite para a defesa militar da Inglaterra, algo fundamental para
um império que em não raras vezes dominara e explorara outros povos
pela força das armas e que angariara não poucos inimigos. Assim, jogar
o que chamamos hoje de futebol e rúgbi, no começo do século XIX, era
antes de tudo um sinal de virilidade e arrojo. Reclamar de um “chute na
24
canela” não era o comportamento a ser esperado de quem estava sendo
preparado para comandar e enfrentar desafios e guerras. Houve, em
escolas, casos de jovens mortos durante “partidas” que poderiam durar
duas horas e meia (AGOSTINO, 2002: 21).
Com a busca da padronização do futebol, os ingleses “começaram a
transformar o que era jogo em esporte, submetido tanto a regras universais e bem definidas quanto a uma estrutura organizacional responsável
por zelar pelo seu cumprimento e administrar as competições entre as
equipes” (FRANZINI, 2009: 107). Essa intenção de estabelecer regras fixas
para o jogo não deve ser vista como mera obra do acaso – ocorria o mesmo em vários domínios da vida inglesa à época. Ao longo do século XIX
surgiram várias leis, normas, decretos regulando questões penais, civis,
comerciais, etc., para os súditos do Império Britânico. Embora já existisse,
em outras épocas e sociedades, a fixação de normas deve ser associadas à
consolidação do capitalismo e à busca da burguesia por maior regulamentação e controle da sociedade e das contradições e tensões sociais. Não é
de estranhar, portanto, o estabelecimento de regras para o futebol naquele
momento, como já ocorrera com outras modalidades esportivas, a exemplo da corrida de cavalos em 1750, golfe, em 1751; ciclismo, em 1868, entre
outras (FRANCO JÚNIOR, 2007: 26; MURRAY, 2000: 21).
A Difícil Padronização
A padronização, porém, não foi algo fácil. Havia muita coisa a ser regulada
– a começar pela própria bola. Na Rugby School, por exemplo, os jogadores,
além de usar os pés, passavam a bola de mão em mão, até chegar à meta
adversária. Em outras escolas, a maioria, por sinal, a exemplo de Eton, a
bola deveria ser controlada apenas com os pés – o uso das mãos só era
permitido na cobrança de laterais ou ação dos goleiros (criados em 1871),
os únicos jogadores habilitados a usar pés e mãos. Igualmente existiam
controvérsias quanto às dimensões dos campos, o número de jogadores
por times, o tempo de jogo, etc. (AQUINO, 2002: 18; FRANCO JÚNIOR,
2007: 32; MURRAY, 2000: 19).
25
Em consequência das duas formas distintas de controlar a bola, surgiram o rugby e o association football. Em 1846, os rapazes da Rugby School
estabeleceram as regras da modalidade do mesmo nome e que, depois, em
1871, seriam ratificadas com a criação da Rugby Football Union. Lembra
Bill Murray que não foram exatamente os internatos ingleses que inventaram o association football, mas, sim, os old boys (ex-alunos) que, após
iniciarem sua vida profissional, e ansiosos de continuar praticando os esportes favoritos da época de faculdade, deram impulso à elaboração dos
primeiros regulamentos nacionais (MURRAY, 2000: 21). Assim, em 1863,
em sucessivas reuniões de ex-alunos e alunos de diversos internatos, numa
taverna londrina chamada de Freemason, foram estabelecidas as mesmas
regras para a modalidade, todos concordando ainda em aceitar as decisões
de uma entidade dirigente maior, a Football Association (FA, que corresponde atualmente à Federação Inglesa de Futebol)1.
Assim, o que entendemos como futebol hoje surgiu quando as regras
foram estabelecidas e ficou clara a “demarcação entre aqueles que jogavam
e aqueles que assistiam ao jogo, superando os tradicionais embates durante
os jogos de rua, nos quais qualquer um podia entrar a qualquer momento”
(AGOSTINO, 2002: 21). É o caso, por exemplo, da fixação do número de jogadores por equipe, que acabou se impondo onde o futebol “à moda inglesa”
fosse praticado. Acredita-se que a decisão da composição dos times com 11
jogadores tenha sido casual ou devido ao fato de as turmas de Cambridge terem dez alunos e um inspetor de classe/bedel ou porque foram 11 os representantes das equipes que fixaram as regras a serem seguidas pelos praticantes do
futebol em 1863 (AQUINO, 2002: 18; AGOSTINO, 2002: 21).
Daí em diante as regras foram sendo aperfeiçoadas, estabelecendo padrões a serem seguidos. Das reuniões da Freemanson Tavern de 1863, foram
codificas 14 regras do association football, as quais acabaram a seguir publicadas em livros e cartilhas, e distribuídas pelo País de modo a se tornarem
públicas. Apesar disso, ainda existiam controvérsias e dúvidas sobre o que
podia ou não ser feito em campo, especialmente quanto à dose de violência a ser aceita. Alguns praticantes queriam manter a violência em nome da
“virilidade”, essencial ao futebol em sua visão, pois, retirá-la reduziria a modalidade a uma “prática apropriada para franceses” (MURRAY, 2002: 22).
26
Não foi coincidência que no ano de 1868 surgia o árbitro, figura cuja função
era determinar em campo o que era ou não permitido para os jogadores
(FRANZINI, 2009). “O juiz, no entanto, atuava fora das quatro linhas [para
ter uma melhor visão das jogadas] e comunicava suas decisões aos gritos. A
partir de 1875, porém, os juízes passaram a apitar as pelejas usando um apito
e, depois de 1881, começaram a atuar dentro das quatro linhas” (AQUINO,
2002: 180). Em 1891, surgiriam os auxiliares do juiz principal, os chamados
“bandeirinhas”. Muitas mudanças ainda iriam ocorrer nos anos seguintes2.
O juiz assumiu funções absolutas dentro do jogo, a exemplo de controlar o tempo de duração das partidas (um poder nada desprezível),
equilibrar as tensões que o jogo acarreta (um dos aspectos centrais de
sua emoção) e manter sob controle a violência entre os jogadores. Tantos poderes eram impensáveis nos primórdios do futebol, quando não se
imaginava a necessidade de alguém regular o que acontecia em campo,
visto que os próprios jogadores ou capitães controlavam as faltas de suas
equipes (AGOSTINO, 2002: 22).
A Football Association (FA), de Londres, tornou-se em poucos anos a
única autoridade do futebol na Inglaterra e cada vez mais adeptos e associações locais se filiavam a ela. O association football espalha-se por outras
ilhas britânicas. Em 1882, A FA as associações de Gales, Irlanda e Escócia
instituíram a International Football Association Board (IFAB – mais conhecida apenas por Intenaticional Board, “Conselho Internacional”). O órgão
daí em diante passou a ter o monopólio sobre as alterações nas regras do
futebol, para o que é preciso a unanimidade de seus membros. “Fundada e
constituída por britânicos, nela o espírito jurídico era (e, em certa medida,
permanece sendo) o do direito consuetudinário inglês. É isso que explica
sua relutância em aceitar [hoje] certas modernidades (sobretudo, recursos
eletrônicos) no futebol” (FRANCO JÚNIOR, 2007: 37).
Em 1871, para melhor divulgar o football e demonstrar claramente
para o público as regras do esporte, a Football Association (FA), de Londres, criou uma competição entre os principais clubes ingleses, a Challenge Cup (Copa Desafio), dando origem à Copa da Inglaterra, uma das
mais antigas e populares competições de futebol do mundo e ainda hoje
disputada, cuja final é assistida desde 1914 pelo ocupante do trono, que
27
entrega a taça ao vencedor. Essa competição estimulou muito o interesse
pelo jogo, atraindo multidões. No ano de 1872, aconteceu o primeiro jogo
internacional de que se tem conhecimento, em Glasgow, entre Inglaterra e
Escócia, que empataram sem gols (AGOSTINO, 2002: 23; FRANCO JÚNIOR, 2007: 34; MURRAY, 2000: 26).
O futebol, tal como o conhecemos,
surgiu no século XIX. Verdade que
vários povos em épocas distintas tinham variantes de atividades com bolas que se assemelhavam com o atual
“esporte das multidões”. Isso levou
vários estudiosos a apontar origens
remotas para o futebol. Podem até ser
interessantes essas abordagens, mas
devem ser vistas com certa ressalva
dentro de uma produção historiográfica mais rigorosa. Apesar dos pontos
em comum, não se deve traçar uma
linha de continuidade ou de “evolucionismo” entre aquelas atividades ou
se afirmar categoricamente que eram
já futebol, sobretudo, porque apresentavam diferenças enormes e sentidos distintos para o que é entendido
como futebol em nossa época. Eram
na verdade, exercícios militares, rituais sagrados ou ainda mera diversão
das massas sem estatuto esportivo
(nesse caso, fortemente desprezada
pelos setores dominantes), não tinham regras fixas e estritas e quando
existia algo nesse sentido, ocorriam
variações entre regiões. Eram práticas
condizentes com as especificidades
culturais e históricas de cada época
e povo, sendo, portanto, questionável
dizer que seriam exatamente antecessores do futebol.
Na China, por volta do século III a.C.,
jogava-se o tsu-chu, um exercício militar tão popular que até a nobreza o
apreciava. Uma bola de couro, recheada de pelos grossos e vegetais, era
chutada pelos soldados, levando-a
a ultrapassar duas estacas paralelas
cravadas no chão. Como era uma atividade militar, o jogador tinha que literalmente lutar para chegar ao “gol”.
Conta-se que o tsu-chu teria suas
origens na macabra diversão dos soldados chineses em chutar as cabeças
dos adversários entre varas de bambu, após vencer as batalhas...
No Japão havia o kemari há aproximadamente 2000 a.C., sendo uma
exibição de domínio de uma bola de
couro de veado preenchida com grãos
de cevada. O praticante deveria manter a bola no ar o maior tempo possível, usando os pés ou qualquer outra
parte do corpo, desde que não fossem
as mãos. Atividade, também de início
militar, se tornou depois prática de lazer para os nobres – e mesmo até associada ao xintoísmo, religião predominante no país. Era jogado em torno
de uma cerejeira, árvore com muitos
28
simbolismos para os japoneses.
Na Grécia antiga havia o epyskiros
(século VIII A.C.), bastante popular,
consistindo num esporte disputado
com os pés e mãos por duas equipes
cujo número de jogadores poderia
variar entre nove e 15 praticantes,
conforme a dimensão do campo retangular. A bola era feita de bexiga de
boi recheada com serragem ou com
ar e areia. A intenção era passar a bola
nas metas do fundo de cada lado do
campo.
Os romanos, possivelmente por influência do epyskiros grego, tinham um
exercício militar chamado harpastum
(século II A.C.), jogado com uma bexiga de boi cheia de ar e disputado
num campo retangular. Sua intenção
era desenvolver as capacidades atlética (exercício físico pelo próprio ato
de jogar) e tática (senso de posicionamento) dos soldados. Usando mãos e
pés, os legionários deveriam chegar à
linha de fundo adversária para marcar pontos. Conta-se que Júlio Cesar
era um grande jogador de haspastum.
Com o tempo, o jogo ultrapassou a
origem militar e tornou-se bastante
popular entre os romanos. Embora
falte comprovação documental, afirma-se que com a expansão territorial
romana, o harpastum teria chegado
às ilhas da Grã-Bretanha, sendo a
base para a invenção de vários jogos
com bola. Vale notar, porém, que
historiadores ingleses questionam
tal hipótese, alegando que já existiam
nas ilhas britânicas jogos nativos com
bola antes da chegada das legiões romanas.
Na América Pré-Colombiana, os
maias jogavam o pok-tai-pok com
uma bola de borracha maciça. Era
praticado com mãos e pés e seu objetivo consistia em arremessar a bola,
sem deixá-la cair ao solo, num furo
circular no meio de seis placas quadradas de pedras existentes na linha
de fundo do campo retangular. O
líder da equipe perdedora era geralmente decapitado. Na verdade, era
um ritual religioso com sacrifícios
humanos, retratando o antagonismo
entre a luz e as trevas, a vitória e a derrota do sol.
Em Florença, no século XVI, bem
de acordo com o espírito do Renascimento Cultural e da influência da
Antiguidade, o harpastum romano
teria possibilitado o nascimento do
calcio, palavra ainda hoje usada pelos
italianos para denominar o futebol.
Segundo a tradição, o primeiro jogo
de calcio teria sido disputado em 1529
– com 27 jogadores em cada equipe. A
partida teria sido uma forma de dois
grupos políticos “resolverem suas
pendências”. Era uma atividade extremamente violenta, resultando em
braços, pernas e dentes quebrados.
Depois, foram impostas regras, como
a arbitragem de 10 juízes e a proibição
de empurrões e pontapés. Era permitido usar pés e mãos para conduzir a
bola, na intenção de fazê-la ultrapassar a linha existente nas extremidades
do campo e assim, marcar o caccia ou
29
gol. Conta-se que Nicolau Maquiavel
e papas, a exemplo de Urbano VIII,
eram praticantes do jogo. O jogo espalhou-se rapidamente pela península itálica e ainda hoje é uma festa
anual em várias cidades.
Na Inglaterra medieval existia um
jogo de bola muito popular. A disputa envolvia uma bola de couro e
times enormes, com centenas de jogadores, que deveriam passar a esfera
pelos portões norte e sul das cidades,
os quais, assim, funcionavam como
metas. Seria uma festividade popular
para comemorar a expulsão dos normandos da Inglaterra, acontecida em
1047. O jogo acontecia no carnaval,
sempre na shrove tuesday (terça-feira
gorda). Havia verdadeiras batalhas
campais, nas quais empregavam-se
socos, pontapés e pauladas para conter a progressão do adversário ou
para avançar, o que causava muitos
ferimentos e até mortes – a bola era
simbolicamente a cabeça de um comandante do exército invasor. Era tão
violento que o rei Eduardo I proibiu
sua realização em 1297, o que, porém, não impediu a continuação do
jogo. No século XIV, a prática voltou
a ser proibida pela monarquia inglesa
e pela Igreja Católica. Sem efeito. O
jogo era de agrado da massa, que talvez daquela forma extravasasse toda
sua frustração social e a opressão da
qual era vítima. Afora a violência,
as autoridades britânicas buscavam
proibir o jogo com a pelota na intenção de estimular outras práticas mais
úteis à preparação militar e à defesa
da Inglaterra, como esgrima, equitação e arco e flecha.
Na França ocorria algo parecido –
enquanto a nobreza jogava péla (jogo
apontado como antecessor do tênis),
os populares praticavam o choule ou
soule, corpo a corpo em que equipes
sem número fixo de participantes
buscavam ultrapassar, usando pés e
mãos, uma bola por entre dois bastões
paralelos fincados nas extremidades
de um campo. A disputa se estendia
por seis ou sete horas. A violência e o
barulho da disputa levaram-no a ser
proibido pelo rei Henrique II, no século XVI (vide WISNIK, 2008: 76 e
seguintes).
No caso inglês, no século XIX, com a
introdução nas escolas e universidades
de um jogo de bola aparentado com
aquele praticado há tempos (e chamado desde o século XIV de football), a
violência passou a ser reduzida. Não
obstante continuava a ser uma prática
agressiva, entre os estudantes e, mais
ainda, entre as massas, que continuavam a jogá-lo, apesar das proibições
legais. Eis a descrição de um jogo entre
populares na Inglaterra do século XIX:
“começa religiosamente junto de uma
capela, onde os jogadores escutaram a
missa. Os jogadores são divididos em
dois campos. A equipe de uma paróquia comporta tranquilamente 200
jogadores. Um notável pega a bola disforme, cheia de feno, levanta-a acima
da cabeça [...], joga-a para cima e os
jogadores imediatamente se precipitam
30
sobre ela, disputam-na, arrancam-na
do outro. [...] O combate desenrola-se
através de campos e pântanos. Ele é disputado por jovens que não têm medo
de golpes. A honra da paróquia está
em jogo, os espectadores excitam seus
campeões com gritos e cantos de clãs”
(apud FRANCO JÚNIOR, 2007: 18).
Apenas com a fixação de regras e limites que a violência do jogo seria di-
minuída ainda mais, fazendo, assim,
surgir o esporte football association.
Ou seja, rigorosamente, é na Inglaterra do século XIX que devemos
buscar as origens e características
do que concebemos hoje por futebol
(FRANCO JÚNIOR, 2007; AQUINO, 2002; LEITÃO, 2002; GIULIANOTTI, 2002; UNZELTE, 2002).
* Referências dos textos em boxs estão das páginas 532 a 537
Religião Leiga
Em pouco, rugby e o association football se difundiram pela Inglaterra,
atraindo adeptos, simpatizantes e levando à fundação de clubes, embora o
primeiro se centrasse mais entre os setores abastados, enquanto o segundo
saiu do ambiente escolar e se disseminou rapidamente entre a cada vez
mais numerosa classe operária britânica, mergulhada nas contradições sociais advindas com o processo da Revolução Industrial e intensa urbanização (FERREIRA, 2005)1. “Em seu berço, nasceu na época do crescimento
da classe operária, em plena Revolução Industrial, e era um esporte que
levava para locais públicos toda a revolta e as insatisfações do operariado
explorado. Tamanha era a violência que até a primeira década do século
XIX era proibido pelo Estado inglês. Foi exatamente para controlar as classes mais baixas e a violência do jogo que se impôs regras ao futebol, que se
tornou uma importante – e interessante para as elites – válvula de escape
dos explorados” (MAGALHÃES, 2010: 14).
O historiador inglês Eric Hobsbawm diz que o futebol virou uma espécie de “religião leiga” para os ingleses de origem operária, constituindo-se
um dos elementos marcantes da construção da identidade proletária no
período (HOBSBAWN, 1987: 262). Não raro, os clubes surgiam no inte-
31
rior das fábricas, com o auxilio de patrocínio dos patrões ou por iniciativa
dos próprios trabalhadores.
Um fator importante para a interação entre proletariado e football foi
a gradativa ampliação dos horários de lazer dos trabalhadores (surgindo
o que chamamos de final de semana), conquista do operariado obtida ao
longo da segunda metade do século XIX. A folga após o meio-dia de sábado (o denominado “sábado inglês”) permitia os jogos entre times, não
raro compostos por operários das diversas fábricas espalhadas pelo país,
a exemplo do Manchester United (ligado à ferrovia) e Arsenal (indústria
de armas), reservando-se o domingo para a ida à igreja, conforme as convicções cristãs/protestantes. Ainda hoje a realização de jogos no sábado à
tarde é uma tradição existente no campeonato inglês de futebol. Muitos
operários também iam assistir às partidas, atraídos pelos times de suas fábricas, comunidades e até mesmos por aspectos religiosos. Várias equipes
de futebol surgiram em torno de igrejas, a exemplo do Aston Villa, fundado por jovens metodistas.
Na Escócia, há o Rangers, criado em 1872 por protestantes e unionistas
(ou seja, defensores da unidade com a Inglaterra, que invadiu a Irlanda no
século XVII), com cores branca, azul e vermelha (as mesmas da Inglaterra), e o Celtic, surgido em 1887 por iniciativa de católicos e defensores da
independência irlandesa, de uniforme verde e branco, e tendo como emblema o trevo (símbolos do país). Clubes apareceram também em torno
dos pubs, famosos bares ingleses. “Quaisquer que sejam as origens, os clubes de maior sucesso eram constituídos por jogadores da classe operária
(MURRAY, 2002: 28).
Com a massificação e “proletarização”, o futebol acabou levado à profissionalização, entenda-se, à remuneração dos jogadores com salários. Conforme afirma Eric Hobsbawm, a questão do profissionalismo tornou-se,
na década de 1880, a questão central no esporte britânico (HOBSBAWM,
RANGER, 1984: 297). A princípio desenvolvido como um esporte amador
e modelador do caráter pelas classes médias e elites das escolas, o futebol
se tornou um espetáculo para um público predominantemente masculino.
Ou seja, virou um evento capaz de atrair milhares de pessoas dispostas a
pagar para presenciá-lo. Assim, equipes criaram formas de remuneração
32
para que seus jogadores pudessem dedicar mais tempo aos treinamentos
e melhorar o desempenho. Os dirigentes da Football Association, porém,
se opuseram tenazmente a qualquer forma de pagamento a jogadores. As
elites consideravam que o pagamento era uma afronta às tradições do esporte amador, embora os jogadores operários, precisando de dinheiro, não
pensassem assim. As equipes do norte inglês, em que a maioria dos jogadores vinha das classes trabalhadoras, ameaçaram retirar-se do campeonato e criar uma liga independente. Estava em jogo não só a preservação
dos “princípios éticos” do futebol, mas o próprio controle da modalidade
pelos lords ingleses.
Chegou-se a um acordo em 1885, com uma solução salomônica. O
profissionalismo foi aceito entre os atletas, mas os dirigentes permaneceriam amadores. Ou seja, os atletas/pobres apenas jogariam, deixando
a administração e controle do futebol (portanto, ficando submissos),
em “nome dos princípios morais”, para os setores abastados e homens
de negócios, uma situação que, a grosso modo, se mantém até hoje...
Durante alguns anos, as equipes inglesas ficaram dividas entre as que
adotavam o profissionalismo e as que preservavam o amadorismo. Em
1888, os dirigentes dos times profissionais, sobretudo das cidades industriais do norte e do centro do país, decidiram criar a primeira liga
profissional de futebol, na intenção de organizar melhor as competições, atrair mais público e aumentar as arrecadações. Demonstrando
a inevitabilidade do profissionalismo, por volta de 1892, as equipes do
sul aderiram também ao profissionalismo, sendo estabelecidas divisões
inferiores na Liga (PRONI, 1998: 151).
Pelo Mundo
Da Inglaterra, o futebol ganharia o mundo, numa estreita associação com
o capitalismo/imperialismo e com o que se convencionou chamar de belle
époque – o domínio econômico, político, cultural, etc; europeu sobre o globo. No final do século XIX, o capitalismo britânico se difundira pelo planeta, com destaque para os investimentos financeiros e comerciais, dissemi-
33
nação de ferrovias, desenvolvimento de infraestrutura e serviços urbanos,
etc. A presença de comunidades inglesas ligadas a tais empreendimentos
– fossem soldados, trabalhadores, os marinheiros, homens de negócios de
sua majestade – “por todos os lugares” difundia a paixão pela bola.
“O imperialismo inglês [...] exportava não apenas uma série de produtos industriais e de serviços, mas também fenômenos sociais e culturais
que os acompanhavam, mesmo sem premeditação, e cuja origem inglesa
[e europeia de modo geral] por si só atraía, conferindo-lhes ares de modernidade. Dentre eles, o futebol” (FRANCO JÚNIOR, 2007: 40). Conforme as crenças da belle époque, a busca da modernidade, da civilidade,
do progresso, da beleza e distinção social estavam em acessar/copiar/reproduzir as práticas e comportamentos do Velho Mundo. Não por acaso,
era para a Europa que partes dos filhos das classes dominantes brasileiras
e da América Latina iam, em geral, estudar. Ali, tais jovens entraram em
contato com os jogos e competições físicas das escolas e, ao regressarem
para suas respectivas pátrias, traziam as práticas esportivas, difundido-as.
O exemplo mais famoso do que se fala é o do paulista Charles Miller, que
ao regressar dos estudos na Inglaterra, em 1894, trouxe bolas, chuteiras e
livros de regras, sendo considerado por isso o “pai do futebol brasileiro”,
conforme veremos no próximo capítulo.
Não por acaso, na América Latina, vários times adotaram nomes ingleses. Na Argentina (Banfield, Boca Junior, Newell’s Old Boys, River
Plate, Vélez Sársfield); no Brasil (Arsenal de Mato Grosso, Corinthians
de São Paulo, Ríver do Piauí, Tranways de Pernambuco), no Chile (Everton, Green Cross, Wanderers), na Bolívia (The Strongest) ou no Peru
(Sporting Cristal). Foi na América Latina, inclusive, que aconteceu o
primeiro jogo internacional de futebol fora do Reino Unido, em 1901,
em Montevidéu, quando o Uruguai perdeu para a Argentina por 3 x 2
(MURRAY, 2000: 55).
Mas houve o reverso da medalha: territórios que formalmente tinham feito parte do Império Britânico resistiram à adoção do futebol,
o que lhes dificultou posteriormente o desenvolvimento da modalidade,
tanto que, via de regra, continuam ainda hoje secundários no universo
futebolístico (África do Sul, Austrália, Canadá, Estados Unidos, Nova
34
Zelândia). “Também não foi casual que o futebol tenha se mantido associado à cultura ocidental cristã. Em terras muçulmanas, a introdução do
futebol foi precoce, ocorrida em 1918, no Egito (protetorado inglês), país
que participou já da segunda Copa do Mundo [...]. Sua popularidade no
mundo islâmico dar-se-ia tardiamente, a partir da década de 1970, depois
de o símbolo do imperialismo ter deixado de ser a Inglaterra, berço do
futebol, passando a ser os Estados Unidos, país sem tradição no esporte
[...]” (FRANCO JÚNIOR, 2007: 23-4).
Mesmo na Europa, pelo menos de início, houve algumas resistências em
adotar o futebol, em virtude de sua origem britânica. Explica-se: o final do
século XIX e começo do século XX caracterizam-se por intenso crescimento
do nacionalismo em decorrência das rivalidades entre as potências imperialistas nas disputas por mercados e territórios. Esse clima de rivalidades contribuiria para a eclosão da chamada Grande Guerra (Primeira Guerra Mundial - 1914/18). Não surpreende, portanto, que rivais ingleses, a exemplo da
Alemanha, relutassem em aceitar o “esporte bretão”. Ali, o futebol chegou a
ser comparado a uma “doença dos ingleses” e uma coisa de “macacos desengonçados e desnutridos”, incompatível com a disciplina corpórea e o ideário
militarista prussiano, tão importante para o processo de formação do Estado
alemão, encerrado em 1871. O Turn, ginástica clássica coletiva, era considerado desde o século XIX a verdadeira “alma germânica”. “Principalmente
em Berlim, mas em vários outros locais da Alemanha, os parques públicos,
clubes, fábricas e escolas tinham suas associações de Turn, com hierarquias
próprias, altamente prestigiosas” (SILVA, 2006: 17). Apenas às vésperas da I
Guerra Mundial que muitos dos preconceitos em relação aos trabalhadores
seriam superados entre os alemães, especialmente por obra da geração mais
jovem de trabalhadores (AGOSTINI, 2002: 29).
Mesmo assim, o futebol em pouco propagou-se pelo continente, igual
a uma “praga”, derrubando barreiras, virando paixão. Há times de futebol
na França em 1872; na Suíça, em 1860; na Holanda, em 1879; na Bélgica,
em 1878; na Dinamarca, em 1876; na Itália, em 1893. Em pouco começaram a acontecer jogos entre equipes de países distintos. O primeiro jogo
internacional na Europa continental deu-se em 1902, quando a Hungria goleou a Áustria por 5 x 0 – foi, na verdade, uma disputa entre os
35
melhores jogadores das capitais, Budapeste e Viena. Nada mais simbólico da popularização que a admissão do futebol como esporte olímpico
em 1908 (AQUINO, 2002: 20). Do início do século XX até o nascimento
dos grandes times italianos da década de 30, os clubes de futebol de Viena,
Budapeste e Praga dominariam o futebol europeu [continental] (MURRAY, 2000: 46, 49 e 55). A empolgação que o “esporte bretão” despertava
levaria o filósofo marxista italiano Antônio Gramsci a dizer: “O futebol é
o reino da liberdade humana ao ar livre” (apud AGOSTINO, 2002: 30).
Richard Giulianotti observa que após expandir o futebol globalmente,
a Inglaterra fez pouco (ou pouco pôde fazer) para preservar a liderança em
termos políticos e administrativos – sintoma de uma nação em declínio no
começo do século XX. Assim, num “vácuo organizacional” com a recusa
inglesa de liderar o movimento e num momento de crescente nacionalismo, em 1904, sete nações europeias (Bélgica, Dinamarca, França, Holanda, Espanha, Suécia e Suíça), por iniciativa do francês Robert Guérin
e do holandês Carl Anton Wilhelm Hirschman, criaram em Paris a FIFA
(Federation Internacional of Football Association). Seu papel: coordenar as
diferentes associações nacionais e uniformizar as regras do jogo. Assim, a
fundação visava tornar a FIFA uma instituição de caráter internacional,
visto que os membros eram confederações representantes de Estados nacionais (GIULIANOTTI, 2002: 44).
Em 1914, havia 24 países filiados, incluindo, entre outros, Argentina,
Chile, Estados Unidos e África do Sul, o que dava à entidade já certo caráter mundial. Em várias tentativas, os demais países tentaram, sem sucesso,
acolher os britânicos na FIFA, fazendo-lhes concessões especiais, como
prova o fato da International Board (entidade britânica) continuar a ser
aceito como o legislador máximo do futebol – apenas a partir de 1913, a
FIFA passou a ter dois representantes naquele órgão. A insistência não era
obra do acaso. Tinha-se a Inglaterra como a “pátria do futebol” e o nível de
seu futebol, a princípio, era bem superior, tanto que receber um time das
ilhas britânicas era um frissom para os demais países. Até mais ou menos
meados da segunda década do século XX, normalmente os times ingleses
venciam facilmente seus adversários nas excursões realizadas, não raro os
goleando. Em rigor, era o futebol britânico o mais organizado, que mais
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atraía público e era o único com jogadores profissionais em período integral (MURRAY, 2000: 60-65).
Por anos, a Inglaterra manteria uma postura arrogante de distanciamento da FIFA – e mesmo de confronto –, vendo-se como superiora no
domínio do futebol e recusando-se a discutir “seu” esporte em pé de igualdade com estrangeiros, povos que não estavam incorporados ao império
britânico e eram livres para terem suas próprias perspectivas e trajetórias
culturais. Além disso, muitas eram nações rivais, adversários, países com
quem os ingleses travavam cada vez mais acirradas disputas diplomáticas e econômicas, no contexto das disputas imperialistas que levariam à I
Grande Guerra (1914-18). Não foi por acaso que os britânicos se filiaram
(a primeira vez, em 1905) e se desfiliaram várias vezes à FIFA e se recusaram a participar das três primeiras Copas do Mundo (1930, 1934 e 1938).
Apenas após a II Guerra Mundial (1939-45) que a mentalidade isolacionista inglesa iria diminuir, tanto que os britânicos se reintegraram à FIFA
em 1946 e enviaram um time para a Copa do Mundo no Brasil, em 1950,
(GIULIANOTTI, 2002: 44 e 45).
Não obstante, às vésperas da I Guerra Mundial (1914-18), a vulnerabilidade do futebol inglês já era evidente – muitos atletas, ex-jogadores
e, sobretudo, treinadores britânicos passaram a trabalhar no continente,
melhorando o nível técnico de equipes de outros países. Na década de 20,
com a expansão do profissionalismo pela Europa, a Inglaterra perdeu definitivamente a liderança do futebol (MURRAY, 2000: 65).
Já em 1900, o futebol entrou como
esporte de exibição na Olimpíada de
Paris, na França. A Inglaterra, como
pátria da modalidade, teria a hegemonia do futebol olímpico até a I Guerra
Mundial (1914-18). Nos jogos parisienses, as seleções foram representadas por clubes, universidades e combinados de cidades e não aconteceu a
distribuição de medalhas – o título fi-
cou com o Uptown Park FC, da Inglaterra. Em 1904, nos jogos olímpicos de
St. Louis, mais um torneio de exibição
(embora, depois, o Comitê Olímpico
tenha decidido dar medalhas), sendo
ganho pelo time do Galt FC, do Canadá. Quatro anos depois, nos Jogos
Olímpicos de Londres, o futebol se
tornou oficialmente esporte olímpico
(o segundo jogo coletivo a sê-lo, de-
37
pois do polo aquático), sendo a medalha de ouro ganha pelos donos da casa,
ao vencerem a Dinamarca por 2 x 0 –
os dinamarqueses eram uma das forças do futebol mundial de então e um
de seus jogadores, Niels Bohr, privado
da medalha de ouro em 1908, ganharia em 1922 o prêmio Nobel de Física
(MURRAY, 2010: 45). Na Olimpíada
seguinte, em Estocolmo (Suécia), em
1912, repetiu-se a final de 1908, ganhando mais uma vez os ingleses o
ouro ao vencerem na partida decisiva
a Dinamarca por 4 x 2.
Com a I Guerra Mundial, os Jogos
Olímpicos foram suspensos. Voltariam
a acontecer em 1920, em Antuérpia,
na Bélgica, mal estando os países recuperados dos estragos devastadores do
conflito bélico. Na final, diante de um
público de mais de 40 mil torcedores,
a Bélgica fez 2 x 0 na Tchecoslováquia
(hoje República tcheca), com uma arbitragem que teria favorecido os donos da
casa. O jogo sequer chegou a terminar,
pois os tchecos se retiraram de campo
quase no final do primeiro tempo em
protesto contra a parcialidade do juiz
(AQUINO, 2002: 22).
O futebol olímpico tornou-se mais
importante na década de 1920, tanto
que era considerado um campeonato mundial (era a única competição
de abrangência mundial da modalidade). Por essa época, a melhor seleção do mundo era a do Uruguai,
bicampeão olímpica em 1924 (em
Paris, ganhando de 3 x 0 da Suíça na
final) e 1928 (em Amsterdã, derro-
tando a Argentina por 3 x 2 no jogo
último). Devido a tais conquistas, a
seleção uruguaia passou a ser chamada de Celeste Olímpica. Com um
futebol ágil e de extrema habilidade,
o time uruguaio encantou a Europa
e chamou a atenção dos desportistas
para a América do Sul. Um de seus
craques era Hector Scarone, um atacante ambidestro, bom cabeceador e
driblador, afora exímio cobrador de
faltas.
Com o avanço da profissionalização
do futebol (entenda-se, remuneração dos jogadores) e a criação da
Copa do Mundo de Futebol a partir
de 1930, as relações entre FIFA e COI
deterioram-se. Afora a oposição ao
profissionalismo, o COI desejava ter
o controle máximo sobre o esporte
mundial, inclusive do futebol. Não foi
por acaso que nos Jogos Olímpicos de
1932, em Los Angeles, a modalidade
não foi disputada, numa clara retaliação da entidade olímpica. O futebol
voltaria quatro anos depois, continuando a condição de que os jogadores
a atuar nas Olimpíadas fossem amadores. COI e FIFA temiam que seus
principais eventos, Copa do Mundo
e Jogos Olímpicos, fossem ofuscadas
pela competição do outro.
Após a II Guerra Mundial (1939-45),
as duas entidades continuaram a travar duras disputas acerca da hegemonia do futebol olímpico. Como não tinham o completo controle do torneio
dos Jogos Olímpicos, e temendo uma
concorrência que tirasse o brilho (e os
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lucros) da Copa do Mundo, a FIFA e
as federações ocidentais começaram
a dar menos atenção ao futebol olímpico. Disso se aproveitaram os países
socialistas. Como FIFA e COI não
aceitavam jogadores profissionais nos
jogos olímpicos e o mundo socialista,
em tese, apresentava apenas jogadores
amadores – um amadorismo de fachada, pois na verdade os atletas se dedicavam ao esporte tendo apenas uma
relação formal de trabalho com as for-
ças armadas ou empresas estatais –, os
países comunistas do Leste Europeu
mandavam fortes times para os Jogos
Olímpicos, enquanto os ocidentais enviavam equipes de jogadores juvenis.
Em consequência, os países do bloco
socialista dominaram o futebol olímpico na segunda metade do século XX
(1952: Hungria; 1956: União Soviética;
1960: Iugoslávia; 1964 e 1968: Hungria; 1972: Polônia; 1976: Alemanha
Oriental; 1980: Tchecoslováquia).
Bola e Guerra
A força do futebol era tão grande nas primeiras décadas do século XX que
mesmo durante a I Guerra Mundial sua prática continuou, embora em
grau menor. Na Inglaterra, o esporte foi usado como estratégia do esforço
de guerra e fortalecimento do sentimento nacionalista. Postos de alistamentos eram instalados nos estádios em que aconteciam jogos importantes. O exército inglês chegou a usar equipes de football composta por soldados para se exibir nas cidades do país e estimular o voluntariado entre
os jovens. Uma dessas equipes ficou conhecida como “Os Extremados”,
dando grandes exibições por todo o país. Com o prolongar-se da guerra
(imaginava-se de início que o confronto seria breve, “resolvido até dezembro”), campeonatos nacionais acabaram suspensos e muitos jogadores foram para o front, não raro perdendo a vida nas trincheiras. A guerra não
perdoava ninguém. Os italianos recordam da perda de 26 jogadores da
Internazionale e mais da metade do time da Udinese, número igual ao
que perdeu o Hellas, de Verona. Os soldados de “os Extremados”, em boa
parte, sucumbiram no mortal campo de batalha. Entre os prisioneiros de
guerra era comum também a realização de jogos e até mesmo torneios. O
mesmo acontecia entre os soldados nos períodos de folga ou enquanto se
preparavam para entrar nas batalhas.
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Apesar de muitos jogos internacionais terem sido cancelados durante o confronto, aconteceram amistosos e até torneios entre os aliados de
guerra. Curiosamente, a ida dos homens para a guerra e a necessidade de
distração e de sustentação da moral interna num momento tão conturbado, possibilitaria o aparecimento de várias equipes de futebol feminino,
modalidade que enfrentava forte oposição dos grupos conservadores da
sociedade. No futebol, como em outros setores das sociedades, a guerra
possibilitou um maior espaço social para o sexo feminino. Na França, em
1918, ocorreram campeonatos específicos de futebol feminino. Na Inglaterra, o principal time foi formado por jogadoras da Dick Kerr, uma
fábrica de Preston, que chegou a reunir um público de mais de 50 mil
pessoas numa apresentação em Liverpool – sua atacante, Lily Parr, ficou
famosa pelos gols e pela comemoração com espetaculares saltos mortais.
O Dick Kerr’s Ladies realizou excursões à Irlanda, à França e até a América
do Norte, onde jogou contra times masculinos, atraindo multidões entusiasmadas. Não obstante, com o final da Grande Guerra, com o retorno
dos homens aos postos do mercado de trabalho e a pressão e ataques dos
conservadores, o futebol feminino perdeu seu espaço anterior. Em 1921,
a FA (Football Association, a federação inglesa) determinou o banimento do futebol feminino, alegando que a modalidade era inadequada para
mulheres. Anda seriam necessárias algumas décadas para a modalidade se
consolidar (AGOSTINO, 2002; MURRAY, 2000).
Um dos casos mais emblemáticos da paixão pelo futebol – e para não
dizer, um dos mais belos – deu-se no natal de 1914, quando soldados ingleses e alemães saíram das trincheiras e se confraternizaram por algumas horas na “terra de ninguém”, expressão pela qual chamavam a área
“neutra” entre as fortificações inimigas e severamente castigada por bombardeios. A trégua aconteceu espontaneamente em vários locais do front
ocidental (que ia do Mar do Norte aos Alpes suíços, cruzando a França). Coisas parecidas já tinham ocorrido na semana anterior, como em
Armentières (França), quando soldados dos dois lados haviam acertado
um cessar-fogo para que ocorresse uma festa de aniversário a um comandante alemão, bem como em Fleurbaix (França), para o enterro dos
combatentes tombados nas batalhas. No episódio do que ficou conhecido
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como “trégua de natal”, a iniciativa partiu dos alemães, que repetindo seus
costumes, passaram a montar árvores de natal nas trincheiras e a cantar
canções do período. Os ingleses, a princípio, surpresos e desconfiados,
passaram a cantar também. Em pouco, soldados de ambos os lados estavam se desejando feliz natal e confraternizando-se.
“Em meio à troca de cigarros, bebidas, chocolates, houve notícia de
que alguém deu o pontapé inicial, fazendo um jogo de futebol emergir
entre as crateras de lama. Enquanto alguns relatos falam em uma lata de
carne sendo chutada [...], há quem diga ter sido utilizada uma bola de verdade, o que não era difícil, uma vez que, ao longo de todo o conflito, centenas de bolas foram enviadas ao front” (AGOSTINI, 2002: 31). Nos dias 25
e 26, foram organizadas animadas partidas de futebol por centenas de soldados. No lugar das traves, capacetes, tocos de madeiras ou o que estivesse
disponível. Na maioria das vezes, o jogo era apenas por brincadeira, pouco importando o resultado. Mas também houve partidas “sérias”, inclusive
com juiz, intervalo e troca do lado do campo. Ficou famoso o jogo em que
tropas alemãs venceram o regimento inglês de Bedfordshire por 3 x 2, com
um gol aparentemente em impedimento – a partida foi encerrada quando
a bola furou ao cair no arame farpado de uma trincheira...
A maior parte das confraternizações se deu nos 50 quilômetros entre
Diksmuide (Bélgica) e Neuve Chapelle (França), envolvendo principalmente soldados alemães e ingleses. Como França e Bélgica estavam com
seus territórios ocupados pela Alemanha, era menor a demonstração de
boa vontade com os oponentes alemães.
Os comandos militares ficaram profundamente irritados com o que
consideraram uma “insana insubordinação”. Aquela trégua espontânea abalava o processo de satanização do inimigo que vinha sendo propagado há
anos tanto na imprensa como nos campos de treinamentos pelos oficiais.
Entre tantos interesses econômicos, geopolíticos, doutrinamentos nacionalistas e militaristas, belicismo, desgraças nos campos de batalha, por alguns
momentos, os jovens soldados perceberam que sem as imposições de ordens
superiores, armas e obrigações nacionais, os “terríveis inimigos” não passavam de pessoas comuns, homens que estavam ali a seu lado, se divertindo,
chutando uma bola, sorrindo, com saudade de casa, com medo da mor-
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te, sonhando com a paz e desejosos que tudo aquilo acabasse o mais breve
possível. Assim, compreende-se a fúria dos generais e comandantes: aquele
jogo de futebol talvez tenha feito muitos soldados questionarem o sentido da
guerra e da hierarquia militar. Conta-se que em Wijtschate, na Bélgica, um
jovem cabo austríaco que lutava ao lado dos alemães, chamado Adolf Hitler,
também queixou-se do fato de seus companheiros estarem cantado com os
britânicos, em vez de atirarem nos mesmos.
Os governos e os comandos militares (especialmente franceses) tomaram providências contra a “trégua de natal”. Dos quartéis-generais,
saíram ordens expressas proibindo qualquer tipo de confraternização,
sob pena de submeter os responsáveis à corte marcial. Sir Horace SmithDorrien, comandante do II Corpo Britânico, reagiu com uma simples
instrução: “O Comandante do Corpo, portanto, ordena aos Comandantes de Divisão para incutirem em todos os seus comandantes subordinados a absoluta necessidade de encorajarem o espírito ofensivo das tropas,
enquanto estiverem na defensiva, por todos os meios à sua disposição.
Relações amistosas com o inimigo, armistícios não oficiais e a troca de
tabaco e outros confortos, não importa o quão tentadores e ocasionalmente agradáveis possam ser, estão absolutamente proibidos”3.
Os soldados tiveram que voltar para as trincheiras, embora, alguns deles,
nos dias seguintes, tenham se recusado a matar os adversários – para manter
as aparências, erravam os alvos... Durante alguns meses, alemães e britânicos
entrincheirados em Festubert (França) faziam de conta que o conflito não
existia. Mas depois as lembranças das confraternizações arrefeceram e a carnificina aumentou. Para evitar um cessar-fogo espontâneo igual ao de 1914,
os comandos militares tomaram precauções especiais, determinando que os
bombardeios de artilharia fossem aumentados durante os natais de 1915, 1916
e 1917. A Grande Guerra deixaria um saldo de 10 milhões de mortos4.
Notas
1. “No dia 26 de outubro [de 1863], representantes de 11 clubes e escolas reuniram-se e fundaram a Football Associacion. Esse fato aconteceu em uma taberna,
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em Londres: a Old Freemanson Tavern, situada na Great Queen Street” (AQUINO, 2002: 18).
2. O tiro de meta foi criado em 1869. Em 1867, o impedimento – era, de início,
preciso haver três adversários entre a linha de fundo e o atacante no momento
que este era lançado por um companheiro. Em 1872, o escanteio. Em 1872,
definiu-se a medida e o peso da bola do jogo. Em 1875, estabeleceu-se o travessão de madeira, substituindo a fita usada desde 1865 para unir as traves e
melhor delimitar as metas. Em 1890, o futebol estabeleceu a demarcação do
campo. Em 1891, apareceram as redes nas balizas, o pênalti foi criado, o tempo
de duração do jogo foi fixado em 90 minutos. Em 1896, cria-se o intervalo de
15 minutos. Em 1899 fixou-se oficialmente em 11 os jogadores de cada time
(antes era possível acordo conforme a vontade das equipes). Em 1902, surgiram os limites das áreas, linha e círculo centrais, marca do pênalti (a meia-lua
da grande área só apareceria em 1937). Em 1907, as leis de impedimento passaram a ser mudadas não haveria mais irregularidade quando o jogador partia
do próprio campo. Novas modificações nas regras vieram em 1912, quando foi
determinado que não haveria impedimento do arremesso de lateral e que os
goleiros não mais poderiam usar as mãos fora dos limites da grande área. Em
1913, estabeleceu-se a distância mínima de 10 jardas (9.14m) entre o jogador
adversário quando da cobrança de falta. Em 1925, apareceu uma nova lei de
impedimento, colocando fora do jogo o atleta que não tivesse dois adversários, alem do goleiro, entre ele e a linha de fundo (atualmente, a regra fixa em
apenas um adversário, além do goleiro). Em 1939, surgiu a obrigatoriedade da
colocação de números nas camisas das equipes (AQUINO, 2002: 19; FRANCO
JÚNIOR, 2007).
3. Apud “A trégua de Natal de 1914”. http://www.grandesguerras.com.br/artigos/
text01.php?art_id=125
4. “Noite feliz na terra de ninguém: Natal de 1914”. http://guiadoestudante.abril.
com.br/aventuras-historia/noite-feliz-terra-ninguem-natal-1914-433575.shtml;
“A trégua de Natal de 1914” - http://www.grandesguerras.com.br/artigos/text01.
php?art_id=125; THEODORO, Reinaldo. “A Trégua de Natal”. http://www.clubesomnium.org/arquivos/militaria/historia/Tregua_de_Natal.pdf
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José Aírton de Farias nasceu em Santana do Acaraú-CE, em 1973. Bacharel em
Direito pela Universidade Federal do Ceará
(UFC) e em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), é também Mestre
em História Social pela mesma UFC. Exerce
a profissão de professor há 21 anos, ministrando aula em diversos colégios e faculdades do estado. Já escreveu livros sobre os
mais diversos temas, abrangendo biografias,
ensaios e futebol.
Daniel Brandão, jornalista pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2007,
quadrinista, ilustrador, arte-educador e
empresário, Daniel sempre direcionou suas
atividades profissionais para o desenho artístico e os quadrinhos, tendo, inclusive,
cursado a Joe Kubert School of Cartooning
and Graphic Arts, em Nova Jersei (EUA).
Ganhador de três prêmios HQ Mix pela
publicação Manicomics, trabalhou com diversas editoras, revistas, personagens e empresas nacionais e internacionais, tais como
DC Comics, Marvel, Dark Horse, Abril e
Maurício de Sousa Produções.
Criador dos personagens Liz, Sebastião
e Cariawara. Daniel possui um estúdio próprio em Fortaleza, Ceará (Estúdio Daniel
Brandão) onde oferece cursos de desenho,
quadrinhos e mangá.
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