Uma volta pela casa de mil salas paralelas

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Uma volta pela casa de mil salas paralelas
Revista Icarahy
Edição n.04 / outubro de 2010
Uma volta pela casa de mil salas paralelas: colagem e surrealismo em Poliedro, de
Murilo Mendes
Bárbara Nayla Piñeiro de Castro Pessôa∗
RESUMO: Baseada na produtividade quase infinita da prática do deslocamento, a
colagem surrealista é a estética que privilegia como motor de sua prática os “efeitos de
estranhamento sistemático”, próprio da surrealidade, conforme André Breton. Este
trabalho tem como objetivo ler o livro Poliedro (1966), de Murilo Mendes, sob a ótica
da prática da colagem e de sua recepção crítica do movimento surrealista.
Palavras-Chave: Colagem, Murilo Mendes, surrealismo
ABSTRACT: Based on the almost infinite productivity of the practice of displacement,
the surrealistic collage is the aesthetic that privileges the “systematic defamiliarization
effect” which characterizes the surreality, according to André Breton, as a motor of its
practice. This work aims to read the book Poliedro (1966), by Murilo Mendes, in the
optic of the practice of collage and its critical reception of the surrealistic movement.
Key-Words: Collage, Murilo Mendes, surrealism
O temporal ao mesmo tempo mostra oculta a realidade. É bem deste mundo mas desvendanos um ângulo outro. Quem é no temporal, quem está? O verbo desarticula-se, o som.
Inquietante pensar que o invisível adverte.
•
Nenhum Dubuffet consegue pintar a matéria do temporal. Serão fluidas todas as coisas?
Talvez todas as coisas sejam através (MENDES, 1994: p.1016).
Escolho minha porta de entrada nesta “casa de mil salas paralelas” que é Poliedro
(1966), de Murilo Mendes. Dentre a oferta numerosa, tomo a que nos entrega seu
segredo, “ser através”. Desautomatizando a percepção da nossa lente, os códigos
culturais que condicionam nosso olhar para o mundo, “ser através” é a chave que nos
abre a porta desta casa, é a oportunidade do olhar que ensaia um outro ângulo de
aproximação.
Mestranda em Estudos Literários – Literaturas Hispânicas pela Universidade Federal Fluminense.
Bolsista do CNPq.
∗
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Edição n.04 / outubro de 2010
Na heterogeneidade dos fragmentos que manipula, Murilo nos desvenda outras
perspectivas; desarticula, seguindo o conselho de Rimbaud. Poliedro é uma colagem de
textos divididos em setores: o “Setor Microzoo”, um zoológico insólito, o “Setor
Microlições das Coisas”, dedicado a objetos que o olho do poeta corta da realidade e
carrega de significados, o “Setor A Palavra Circular”, que trata de temas diversos, entre
cartas e textos críticos, humorísticos e violentos. Fecha (?) o livro o “Setor Texto
Délfico”, série de enigmáticos aforismas de tom oracular. Estas divisões obedecem a
uma certa ordem construtiva, que divide e dá uma configuração ao texto. Entretanto, a
organização empregada está longe de ser de cunho lógico; se trata, antes, de uma ordem
fragmentária e insólita cujo objetivo consistiria, através do “desregramento de todos os
sentidos”, no desenvolvimento das faculdades visionárias. Na verdade, cada texto é uma
face desta figura poliédrica cujo vislumbre só pode ser dado na entrevisão dos espaços
de corte, na tangência gerada por este mesmo espaço, marcado graficamente pelo ponto
preto tão presente como forma de separação e ponto de contato.
“Ser através” serve para nossa leitura também como os pontos pretos que marcam
o texto, lugar de contato e separação entre duas polaridades que o atravessam: a
visibilidade e a invisibilidade. É também possibilidade de acesso e passagem entre as
fronteiras do real e do irreal, aquele ponto em que se instala o “não-reconhecimento da
fronteira realidade-irrealidade” de que Murilo nos fala como um dos fatores pelos que
se sente compelido ao trabalho literário.
Será este o caminho de exploração do cotidiano. De entrada, em “Setor Microzoo”
e “Setor Microlições das Coisas”, o olhar logo se diverte na observação dos seres, na
inquietação pelas coisas. Neste primeiro setor, assistimos ao desfile de animais
murilianos que despontam sempre em seu poder de imagem, evocam experiências
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antigas, revelam, reúnem-se para “através” descortinar faces da realidade até então
ocultas.
A escolha dos animais aparece segundo um critério afetivo, a catalogação é a
daqueles animais que estiveram presentes na vida de Murilo, à maneira de um bestiário
pessoal. Segundo Serra,
O objectivo fundamental do bestiário era expor o mundo natural, mais do que documentá-lo
ou explicar o seu funcionamento. Outro dos objectivos era a instrução do homem. Os seus
autores sabiam que tudo na Criação tinha uma função e o seu Criador tinha uma intenção,
que consistia na edificação do homem pecador. Através da natureza e hábitos dos animais,
o homem poderia ver a humanidade reflectida e aprender o caminho para a redenção. Cada
criatura assume assim uma mensagem de redenção. Procurava-se também atribuir a cada
animal um significado místico, tendo como base as Sagradas Escrituras. Isto não era
simples, pois um ser poderia representar o bem e o mal simultaneamente; deste modo, os
escritos optavam por atribuir uma dualidade a alguns animais. (...) Mais tarde, com o
desenvolvimento científico, estes tratados vão perder a sua importância e passar-se-á a dar
um maior relevo à observação e à experiência. Contudo, os bestiários tiveram uma grande
influência na Literatura (nomeadamente através das fábulas e das alegorias), na Arte (pelo
seu valor pictórico) e até na Biologia (na enumeração e estudo das espécies) (SERRA,
2009: p.1).
Recuperando esta noção didática dos bestiários, em Poliedro os animais
funcionam simbolicamente como portadores de alguma lição: “A preguiça foi
encarregada pelos deuses didáticos de, não digo destruir, mas corrigir a noção de tempo
que eu possuía do infinito” (MENDES, 1994: p.991). Entretanto, se o bestiário é a
catalogação de seres reais e imaginários, o inventário muriliano apresenta-nos retratos
de “seres reais” transfigurados pelo olhar do autor, em que está em jogo o próprio
estatuto do real. A atitude do visionário é aquela de perceber a relatividade e
reversibilidade destas categorias, como grande mote que percorre todo o livro, o visível
é também o invisível.
A intervenção paródica da classificação científica que Murilo insere em seu
discurso sobre a lição dada pelo bicho-preguiça acusa a inversão de valores que o
escritor estabelece. O homem da racionalidade-para-os-fins, detentor dos conhecimentos
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científicos, se aproxima ao animal como objeto de estudo com um esforço objetivo:
conhecê-lo através do exame, da categorização. Murilo inverte os fatores desta relação,
o homem está disponível ao conhecimento, é ele quem aprende com o animal, é o
animal quem o ensina:
Muito cedo descobri, naturalmente, o bicho-preguiça, maravilhando-me com seus
ademanes. Foi mais tarde, em plena juventude, que revisitando a preguiça no Jardim
Zoológico do Rio tive a revelação de sua importância: deu-me de repente, mal sabe ela, a
idéia do nosso limite no tempo e no espaço. (...)
O conceito de finito, vivido praticamente pela preguiça, mamífero xenartro da família dos
Bradipodídeos, o conceito de finito, digo, aplicado por exemplo à literatura implica uma
“situação” da palavra que funciona para designar determinada coisa. Idéia, portanto, de
limite, não menos fecunda do que a romântica, de infinito (MENDES, 1994: p.991).
Brincando com tais descrições científicas, Murilo não só não opta pela descrição
dos animais no decorrer do seu texto, senão que as usa parodicamente, como um
instrumento de crítica ao saber enciclopédico. O mesmo se passa com a observação das
coisas: é ilustrativa, neste sentido, a lição dada ao poeta pelo queijo. Um dos ícones
mais fortes da “mineirilidade”, o queijo aparece em Poliedro como a primeira ideia de
eternidade que recebe Murilo ainda em sua terra natal: “A eternidade nasceu pois para
mim redonda e branca, vinda da forma do queijo de Minas que despontara na mesa
ainda fresco (...)” (MENDES, 1994: p.1009). A cotidianeidade da brancura e forma do
queijo aparece aqui explorada em uma relação direta com o conceito abstrato de
eternidade.
Neste contexto, subtrai-se a funcionalidade das coisas, própria do discurso
científico, para projetá-las num espaço antifuncional, pessoal e revelador. Na contramão
da classificação enciclopédica, Murilo joga com o discurso técnico-científico,
esvaziando de sentido as descrições latinas usadas nas classificações, aproveitando delas
apenas sua matéria sonora: “Segundo registro civil a lagosta é um crustáceo macruro (de
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cauda longa), antenas cilíndricas, originário da família dos Palinurídeos, portanto,
piloto, nauta, guia” (MENDES, 1994: p.993), “A baleia é um cetáceo da dinastia dos
Balenídeos de forma quadradoredonda, cor de burro quando foge” (MENDES, 1994:
p.996).
Se Murilo ri da classificação cientificamente organizada, é sobre seu avesso que
compõe uma outra ordem, na qual cada fragmento desponta uma face do que trata.
Através dos processos de colagem, o poeta superpõe camadas de significado que só se
multiplicam: “O infinito peixe. Alfa e ômega dos bichos. O peixe finito. O peixe fluvial.
O peixe marítimo. O peixe redondo. O peixe estilete. O peixe oblongo. O peixe lírico. O
peixe dramático. O peixe épico, assaltador de homens e navios” (MENDES, 1994:
p.987).
Numa escrita sempre justaposta, acumulativa, as imagens dos bichos se formam
na colagem de suas múltiplas facetas: “O tigre é belo. Inadiável. Sibilino. Calmo.
Intransferível.” (MENDES, 1994: p.981), “A baleia: auto-suficiente, melvilleana,
inexpugnável” (MENDES, 1994: p.983). O texto se desdobra como “a casa de mil salas
paralelas” onde o poeta diz estar: “No meio de qualquer destas salas encontrareis uma
mulher com um livro na mão: todas se preparam a contar-me uma história que se
desdobra, se prolonga sempre: la suite au prochain numéro” (MENDES, 1994: p.984).
Se a enciclopédia ambiciona o projeto de cobrir a totalidade dos saberes baseada na
crença de que o mundo é passível de conhecimento por meio do escrutínio e da
categorização, a colagem, parodiando esta prática, aponta para a direção contrária, a do
desdobramento infinito.
Tal como “Setor Microzoo” e “Setor Microlições das Coisas”, o “Setor A Palavra
Circular” também é um álbum de instantes, um olhar que parece dedicar-se à fixação do
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efêmero atravessada por uma consciência trágica, o mundo da bomba atômica, da
guerra. Vasto é o repertório de objetos que encenam a violência e engendram um gesto
de revolta que imprime força subversiva ao texto. Murilo, como menino experimental,
“Sabe escolher seus objetos. Adora a corda, o revólver, a tesoura, o martelo, o serrote, a
torquês. Dança com eles. Conversa-os” (MENDES, 1994: p.1013), apontando no
sentido de uma poética destrutiva. Tais artefatos disseminam uma rede de significação
ácida, irônica, como podemos ver no texto “Estilhaços”:
Detesto estilhaços de vidro. Quando irrompem de qualquer parte, atacam-me a pele, a vista,
os ouvidos, a planificação do texto; sournois.
Insistem, o que é grave. São merdinhas de diamante a gritar.
•
Eu ofereceria a uma nazista (mas felizmente não conheço nenhuma) um colar de estilhaços
de vidro giratórios, movidos por um dispositivo mecânico especial, o que lhe permitiria
roer-lhe o pescoço dia e noite.
O serrote, pai de Artaud. (MENDES, 1994: p.996)
A confecção imaginária de um colar de estilhaços giratórios revela como o
recurso da tortura, da crueldade, funciona como uma negação incisiva, um espaço de
rejeição à racionalidade absoluta que, em uma de suas mais catastróficas expressões,
forjou as potentes estruturas de opressão e exploração política e econômica da ideologia
nazista. Em Poliedro a figura de Artaud aparece mais de uma vez relacionada ao
serrote. No texto que dedica ao instrumento, Murilo repete esta relação: “Acho
angustiante a música dentada do serrote rangendo, pai de Antonin Artaud, cuja mãe é
uma das Górgones” (MENDES, 1994: p.995). A intensidade extrema da figura de
Artaud se liga à violência de uma busca dilacerada de vivência da utopia surrealista
enquanto “máquina de revirar o espírito” (ARAGON, 1996: p. 92). É nesta reviravolta,
possível através da negação violenta, que reside a força rebelde da crueldade de Artaud,
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mais um elemento que faz coro e expande ainda mais a rede de símbolos relacionados à
contundente reação aos valores absolutos.
Nesta constelação maligna, também assoma a figura da górgone, criatura
monstruosa da mitologia grega que tinha o poder de transformar em pedra quem a
olhasse. Outra figura mitológica relacionada ao aspecto da violência que percorre todo o
texto é Átropos, criatura responsável por cortar o fio da vida. Entre os atributos de
Átropos aparece a tesoura tão valorizada por Murilo. Se o corte de Átropos pode
relacionar-se com o fim da vida, ao mesmo tempo, se pensamos no contexto da colagem
e da escritura muriliana, seu afiado corte serve para “descamar” a realidade, mostrar sua
multiplicidade: “A tigresa eternidade avança para mim sob a forma de uma tesoura:
Átropos” (MENDES, 1994: p.1033). A eternidade em forma de tesoura pode apontar a
eterna multiplicação a que procede este instrumento. É somente pela tesoura que é
possível o desdobramento do mundo: desta forma, a tesoura estanca o fechamento do
texto, passível de multiplicação ad infinitum.
O aspecto cruel da vida engendra um tipo de humor particular que se alimenta de
uma certa tragicidade do mundo, de seu aspecto degradante. Neste sentido, Murilo se
aproxima da linhagem “maldita” do humor noir surrealista. Tomada a lição jarryana, os
surrealistas usam do humor para ferir a representação que nós fazemos do mundo,
oferecendo uma imagem inteiramente subversiva do mesmo (GENDRON, 1992: p.105).
O humor intimamente ligado à crueldade também aponta para uma posição de revolta,
uma não aceitação da realidade dada; assim, o qualificativo negro vem dessa
“predileção do humor por brincar com a imagem da morte, pois então é elevada ao
máximo de sua potência de recusa do real” (GENDRON, 1992: p.106).
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Ainda em uma perspectiva surrealista, é importante lembrar o valor da violência
como ato transgressor, marcado pela célebre passagem do “Segundo Manifesto
Surrealista”: “Revolta absoluta, a insubmissão total, a sabotagem em regra, e que só da
violência se espera alguma coisa. O mais simples ato surrealista consiste em ir para a
rua, empunhando revólveres, e atirar ao acaso, até não poder mais, na multidão”
(BRETON, 2004: p.28). Em Murilo, da mesma forma, a violência recupera o sentido de
transgressão contra o texto, a literatura, as convenções sociais e contra todo sentido
imposto.
O tema da liberdade está intimamente relacionado a esta tendência anárquica:
(...) diria que o meu maior instinto é o da liberdade, que procuro aplicar a mim e a todos.
Fui, felizmente, enfant-terrible. Detestando o primeiro da classe. Indisciplinado, irregular,
insatisfeito. Não aceitava observações, que me pareciam um limite traçado à minha
liberdade (MENDES, 1994: p.1020).
Neste contexto, o menino experimental funciona no texto como símbolo deste
sentimento de rebeldia, é a força concentrada de contestação que se lança contra os
discursos estabelecidos. O Menino volta-se contra a Igreja: “O menino ateia fogo ao
santuário para testar a competência dos bombeiros” (MENDES, 1994: p.1013); contra a
Filosofia: “O menino experimental decreta a alienação de Aristóteles. Expulsa-o da sua
zona, com a roupa do corpo e amordaçado” (MENDES, 1994: p.1014); contra a Arte “O
menino experimental, escondendo os pincéis do pintor e trancando-o no vaso sanitário,
obriga-o a fundar a pop art, única saída do impasse” (MENDES, 1994: p.1013); e,
enfim, contra a História: “O menino experimental atira uma granada em forma de falo
na mãe de Cristóvão Colombo, sepultando as Américas” (MENDES, 1994: p.1014).
No plano literário, Murilo é o menino experimental que “devora o livro e soletra o
serrote”, que usa de seus instrumentos torcitários para agredir a literatura em seus
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alicerces firmemente cimentados: o texto enquanto textura contínua, o autor enquanto
criador individual, o livro enquanto totalidade, os gêneros enquanto unidades estanques
e, por fim, a própria literatura como instância separada da vida. Por meio das incisões,
opera-se uma espacialização do texto, preocupada em desestabilizar o valor de fluidez
atribuído ao Livro. Neste sentido, comenta Barthes,
se tudo que se passa na superfície da página desperta uma suscetibilidade tão viva, é
evidentemente porque essa superfície é depositária de um valor essencial, que é o contínuo
do discurso literário. (...) O Livro (tradicional) é um objeto que encadeia, desenvolve,
desliza e escorre, em suma, tem o mais profundo horror do vazio (BARTHES, 2008:
p.113).
O corte que Murilo emprega é dado pelo espaço vazio ou o branco da página que
funciona como um elemento de tensão em relação à escrita, um contrapeso, um silêncio,
um nada que polariza a existência do discurso. É importante ressaltar que os espaços
que se dão entre os fragmentos deixam a nu o próprio processo de composição, o espaço
intersticial, o corte que foi operado entre cada realidade textualizada. A essa operação
Murilo dedica o texto “Tesoura” no qual relaciona estreitamente o corte e a abertura da
realidade, “Quem ousaria dizer que a tesoura só serve para cortar? Ela abre diante de
nós - consciente - em forma plástica, reduzida, o grande X do universo” (MENDES,
1994: p.1010).
Na colagem a operação do corte não atua apenas espacialmente, o tempo
também é seu objeto. A superposição dos tempos só é possível mediante um corte na
leitura linear que tradicionalmente se faz. Em “Chaves do Tempo”, Murilo “cola” estes
diferentes tempos:
Um aloprado fotorrepórter, americano ou não, dispondo somente de meia hora concedida
pelo seu jornal, cai de helicóptero na cidade de Nazaré para documentar-se sobre a
sociologia da sagrada família:
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Hélas! Nosso Senhor acha-se no deserto, jejuando e fazendo penitência contra a guerra, os
campos de concentração, os bombardeios; a Virgem, seguindo lições de enfermagem na
Escola das Dominicanas; José, ensinando o ofício de carpinteiro a jovens de um quibuz,
numa aldeia distante de Nazaré um tiro de fuzil (MENDES, 1994: p.1026).
Através do jogo das justaposições, da idéia de simultaneidade presente na imagem
do texto como “casa de mil salas paralelas”, Murilo, segundo Raimundo Carvalho,
contradiz Lessing que propõe a clássica divisão entre arte espacial (a pintura) e arte
temporal (a literatura) na medida em que “incorporou a espacialidade à dimensão
temporal, à sucessividade de seu discurso” (CARVALHO, 1994: p.66).
No que se refere à composição, uma das características da colagem é seu caráter
reciclado, a confecção do texto que se constrói na base de um outro texto. A exibição
deste caráter aponta sua auto-reflexibilidade, a crítica aos meios de criação e à noção de
uma autoria individual. Como colagem Poliedro também é um mosaico de citações,
selecionados pelo olhar do autor, que assume sua prática de escrita na constante relação
com outros textos. As citações preparam em nosso imaginário uma constelação
significativa, uma rede simbólica que cresce e expande a malha textual. Neste sentido, a
relação se amplia a outras artes, como as artes plásticas e a música, como ainda veremos
nos casos dos textos de crítica de arte.
As citações funcionam como elementos alheios que são inseridos no texto, às
vezes mimetizados pela incorporação sem vestígio que faz da citação um furto, às vezes
explicitamente retirados de seu contexto e colados em outro ou, ainda, como “falsas
citações”, quando humoristicamente Murilo atribui a terceiros seu próprio discurso. Em
várias ocasiões, Murilo deixa clara sua intervenção no texto “original” e sua subversão
como parte do próprio processo criador num desconcerto constante dos critérios de
propriedade e autoria. Um exemplo ilustrativo está em “A tartaruga” em que Murilo re-
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contextualiza ludicamente a citação livre de Walter Benjamin: “De resto no século XIX,
conforme nos revela Walter Benjamin muitos parisienses, entre os quais provavelmente
Baudelaire, tinham o hábito de flanar em certas ruas e passagens da cidade arrastando
uma tartaruga pelo cordel” (MENDES, 1994: p.1034). Murilo impõe à sua citação a
marca de sua escrita, sem deixar claro, ainda que possa ser facilmente inferido no
exemplo em questão, onde começa o texto do outro e onde termina o seu. A agressão à
noção de autoria aqui é dupla, não só o poeta assume o texto do outro como seu, como
faz com que o texto do outro sofra intervenção.
As referências constantes a outras personalidades e artistas também funcionam
como núcleos de significação dentro do texto que se constrói mediante a incorporação
do outro. Murilo, em “Microdefinição do Autor”, dedica uma seção inteira ao
reconhecimento destas figuras:
Tenho raiva de Aristóteles, ando à roda com Platão. Sou reconhecido a Jó; aos quatro
evangelistas; a São Paulo, a Heráclito de Éfeso, Lao-Tse, Dante, Petrarca, Shakespeare,
Cervantes, Montaigne, Camões, Pascal, Quevedo, Lichtenberg, Chamfort, Voltaire,
Novalis, Leopardi, Stendhal, Dostoievski, Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Lautréamont,
Nietzsche, Ramakrishna, Proust, Kafka, Klebnicov, André Breton; a Ismael Nery, Machado
de Assis, Mário de Andrade, Raul Bopp; Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Guimarães
Rosa, João Cabral de Melo Neto (...) (MENDES, 1994: p. 47).
A respeito deste procedimento, David Arrigucci Jr., em sua análise do “Poema
só para Jaime Ovalle”, comenta: “[as figuras] perdem seu caráter estritamente factual e
se transfiguram (...) por meio da construção literária, numa parte integrante e
significativa do todo formado que é o poema” (Apud: FRANCO, 2002: p.27). Junto às
citações, este recurso infiltra o outro no discurso, criando um relevo no texto que,
somado à descontinuidade dada pelo corte, dão o efeito textual de uma colcha de
retalhos.
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Na dinâmica dupla da ruptura e do contato deste incongruente terreno se forma
um olhar que se atém ao desnível, aquilo que não se combina na semelhança, mas
convive em um mesmo lugar. A leitura parece saltar, o olhar adquire a sensibilidade da
exploração “do encontro fortuito de duas realidades distantes em um plano não
pertinente” ou, para usar um termo mais curto, “encontro de elementos díspares”, a
estética da colagem é aquela “dos efeitos de estranhamento sistemático” segundo a tese
de André Breton: “A surrealidade será aliás função de nossa vontade de estranhamento
em relação a tudo” (BRETON, 2001: p.253).
O estranhamento sistemático aguça o olho, o desarticula, faz com que ele seja
“selvagem” no sentido de ser “solicitado a abandonar o maior número possível de
códigos, a fim de empregar sua sensibilidade sem reserva” (GENDRON, 1992: p.93).
Visibilidade e Invisibilidade aparecem como binômios em constante articulação, uma
força que atravessa todo o texto. O concreto da microlição das coisas, o olhar à mesa, à
gravata, ao lençol, ao copo, ao tomate, à laranja, aponta uma materialidade da
visualidade em busca do “invisível que se esconde atrás do visível”, idéia que se
cristaliza em um aforisma do “Texto Délfico”. Assim como as colagens de Ernst, em
que um dos procedimentos consiste em recuperar elementos da vida cotidiana, textos de
jornais, revistas ou propagandas e colocá-los na tela, Murilo lança sua atenção aos
objetos da vida vulgar. Se na colagem plástica o artista desvia tais elementos de seus
contextos tradicionais para submetê-los a novos, colando no espaço da tela materiais
considerados fora do terreno da arte, o escritor toma aqui estes elementos cotidianos
também no sentido de mostrá-los através uma outra significação. Pelo deslocamento se
esvazia o sentido utilitário das coisas e, em seu lugar, abre-se um outro, o poético. O
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olho recorta da realidade cotidiana o objeto, já não mais em sua função utilitária, mas
num nível de percepção que o excede e transborda.
É somente através da operação visual que objetos e lugares ganham sentido
poético, transformando-se em signos. Esta é a ótica surrealista a que se refere o crítico
José Miguel Wisnik ao retomar Walter Benjamin: “Falando do Surrealismo, e
identificando nele um tipo de olhar que sonda o impenetrável no cotidiano, e o cotidiano
no impenetrável, Benjamin localizou a pedra de toque do visionarismo moderno”
(Apud: NOVAES, 1988: p.287). A lição deste visionarismo, Murilo atribui a Ernst em
seu texto “Max Ernst”, em que o poeta afirma:
Confesso-lhe o quanto lhe devo, o coup de foudre que foi para o desenvolvimento de minha
poesia a descoberta do seu prodigioso livro de fotomontagens La femme 100 têtes, só
comparável, no plano literário, à do texto de Les illuminations. De resto, creio que Max
Ernst descende de Rimbaud pela criação de uma atmosfera mágica, o confronto de
elementos díspares, a violência do corte do poema ou do quadro, a paixão do enigma (aí foi
ajudado pela obra do primeiro De Chirico). É um vidente. Perguntaram-lhe um dia qual sua
ocupação preferida. Resposta: desde menino olhar (MENDES, 1994: p.1248).
Encontramos na citação características que Murilo atribui à Ernst e que são
facilmente identificadas em Poliedro. Aqui Murilo sintetiza as linhas de força de sua
escritura e expõe sua vinculação à colagem tanto pela menção da colagem ernstiana La
femme 100 têtes como pela referência à Les illuminations, de Rimbaud. O uso da
violência do corte, do confronto do díspar, da criação da atmosfera mágica e da paixão
pelo enigma são os alicerces desta prática que abarca o intuito da construção múltipla,
poliédrica da realidade. Desta forma, vemos que o estranhamento funciona aqui como
um dispositivo que coloca em alerta nossa percepção para o mundo e tenta, deste modo,
desautomatizar nosso olhar. O impacto da colagem reside exatamente em seu poder de
deslocamento e de estranhamento para a construção de um outro espaço poético, arredio
à lógica racional e ancorado no enigma.
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Recebido em setembro de 2010
Aprovado em outubro de 2010
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Revista Icarahy
Edição n.04 / outubro de 2010
NOVAES, Adauto. O olhar. São. Paulo: Companhia das Letras, 1999.
SERRA, Antônio. S.v. Bestiário, E-Dicionário de termos literários, coord. Carlos Ceia,
ISBN:989-20-0088-9 http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/B/bestiario.htm, consultado
em 20-12-2009.

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