3 O DIREITO GREGO NA ANTIGUIDADE O Direito
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3 O DIREITO GREGO NA ANTIGUIDADE O Direito
3 O DIREITO GREGO NA ANTIGUIDADE O Direito Grego divide-se em duas épocas – arcaica e clássica - bastante distintas conforme o desenvolvimento desse povo se aproxima mais da política e conforme a vida mais se concentra em torno da pólis. 3.1 Época Arcaica Na época arcaica, do século VIII a.C. ao século V a.C., predominou a religião, os mitos, os deuses e os oráculos. Todos os problemas humanos eram consequência da inteveniência direta dos deuses, e os infortúnios dos homens só podiam ser contornados com a participação dessas divindades. Assim nos contam as narrativas de Hesíodo (Teogonia) e Homero (Odisseia). Aliás, uma das características desse período, quando da formação das fátrias e, posteriormente, das cidades-estado, é a abundância de deuses, visto que cada família se identificava com deuses diversos como forma de criar sua identidade comunal. Foi na época arcaica que os gregos promoveram a maior parte da colonização do Mediterrâneo. Devido, possivelmente, ao excesso de população de algumas cidades, ou por dificuldades na produção de víveres, motivadas por secas e chuvas em demasia, os gregos eram compelidos a fundarem colônias (<apokia> residência distante). Nessa emigração eles se espalharam levando a toda a região o poder político tradiconal da aristocracia, proveniente das famílias tradicionais, as que fundavam as cidades-estado. O poder religioso concentrava-se nos templos eregidos aos deuses e nos oráculos, onde cerimônias eram efetuadas pelos sacerdotes para escutarem os desejos e orientações dos deuses (oráculo de Delfos era o mais conhecido). Na época arcaica não se pode falar propriamente de um Direito, seja porque a orientação da vida está completamente impregnada de mitologia, servindo esta de base para a solução de conflitos, seja porque ainda não existe qualquer código escrito a se impor ao cotidiano dos indivíduos. Apesar dos gregos não serem dos povos mais agressivos e vingativos, talvez com excessão de Esparta, obviamente que as questões pessoais mais sérias eram resolvidos pela espada e a vingança era certa, a menos que as famílias envolvidas se autocompuséssem. Este tipo de autocomposição, que podia levar ao desterro e pagamento de multa, envolvia muitas vezes protetores especiais, ou por via dos deuses ou semideuses, que assim se fundiam e aproximavam mais os indivíduos em torno da defesa coletiva da pólis. Costuma-se confundir o Direito de Atenas com o Direto Grego de forma geral, o que, obviamente não é aconselhável. Cada cidade tinha absoluta autonomia e é certo que desenvolve-se sistemas jurídico-políticos próprios. O principal legislador grego da época arcaica foi Licurgo, que viveu em Esparta entre 1000 a.C. e 850 a.C. Bom de oratória, suas leis eram tansmitidas oralmente e consistiam em máximas e sentenças. Essas máximas morais e aforismos visavam sobretudo perpetuar o poder político da aristocracia espartana, ainda que ali defendese a democracia e a liberdade, a começar pelo relacionamento familiar. Por outro lado, é considerável que por esta época tenha surgido o Areópago, um dos mais importantes e duradouros tribunais atenienses. Em Atenas, no século VII a.C., uma assembleia de nobres aristocratas fundaram o Areópago, os arcontes, que como magistrados aposentados julgavam os casos mais importantes para a cidade. Mais tarde este tribunal vai perder seus poderes originários como parte da reforma democrática e popular ateniense, e as questões do Judiciário são direcionadas preferencialmente para o Heliastes (séc. VI a.C.), tribunal que comportava até 6000 pessoas. Portanto, na época arcaica dos gregos, o Direito ainda é substancialmente oral, sem importância significativa as provas materiais e o testemunho, inexistindo código material que sustente o ‘devido processo legal’. Soberanos e aristocratas, sacerdotes e deuses se misturam nos mitos e nos destinos humanos. Por isso mesmo, as tradições e costumes são na época emblemáticos na solução de conflitos solucionados com base nesses princípios pelas famílias envolvidas, por autocomposição, recorrendo-se ao Areópago nos casos mais danosos e de maior repercussão social. Fig. – Areópago em Atenas O Areópago era o mais antigo tribunal de Atenas, fundado pelos aristocratas das famílias originárias, possuia amplos poderes como uma corte de justiça e também como conselho político, diferente das cortes modernas (Supremo Tribunal FederalSTF), que são as guardiãs das Constituições mas não têm poder político. Com as reformas jurídicas a partir do século IV a.C. perde seu poder político e passou a julgar os casos de homicídios premeditados, os voluntários, de incêndia e de envenenamento, considerados os delitos mais reprováveis. 3.2 Época Clássica A partir do século V a.C. uma revolução cultural, econômica, filosófica, jurídica e política abala as cidades gregas, principalmente naquelas onde os filósofos e os legisladores mais se notificaram, com destaque para a cidade de Atenas. A Filosofia dá um salto gigantesco com os pensadores pré-socráticos, a partir do século VII a.C., como Tales de Mileto, Anaximandro (ambos de Mileto), Heráclito (cidade de Égfeso), Pitágoras (cidade de Samos), Filolau (cidade de Cróton), Xenófanes (cidade de Colofon), Parmênides (cidade de Eléia), Demócrito (cidade de Abdera) entre outros. Como se pode ver, as origens dos questionamentos mais importantes não partiram de Atenas, mas foi nesta cidade que as artes, o direito e a política mais se desenvolveram nos dois séculos seguintes (do VII ao V a.C.) e continuou em ascensão até perto de nossa Era. Quando a moeda apareceu no Mediterrâneo, por volta do século VII a.C., os gregos, ótimos comerciantes e navegadores, logo a adotaram. Isto proporcionou a acumulação de riquezas e dinheiro, e assim o surgimento de uma nova classe que até então mantinha-se na sombra. Com o aparecimento dos plutocratas a aristocracia começa a perder muito do seu secular poder, principalmente o poder econômico, ainda que por muito tempo mantive-se o poder político. Só a partir do século V a.C. que os legisladores e os soberanos vão aos poucos codificando o direito e ampliando a participação política dos plutocratas e demais cidadãos Em Atenas, basicamente existiam, por esta época, três classes sociais: a) Os cidadãos plenos – aristocratas (em sua grande maioria aristocratas ou descendentes dos mesmos), que têm poder político e descendem dos fundadores da cidade e os filósofos; b) Os semi cidadãos – plutocratas (comerciantes, fabricantes, financistas), que têm poder econômico, mas não político, não podendo livremente participar da confecção de leis e dos julgamentos; também as mulheres tinham um papel importante na sociedade e economia ateniense, embora não pudessem participar da Ágora; c) Os não cidadãos – escravos e estrangeiros, estes últimos independente da condição econômica. Mas como uma sociedade de classes permite mobilidade dos indivíduos (diferente das sociedades de ‘castas’ como na Índia), não é de estranhar que algumas vezes, ainda que não frequentemente, houvesse ascensão, por motivos econômicos ou notória sabedoria, de plutocratas, o que vai se acentuar à medida que estes vão sendo protegidos pelas reformas jurídicas dos legisladores. Posteriormente, a escrita surge como nova tecnologia, permitindo a codificação de leis e sua divulgação através de inscrições nos muros das cidades. A codificação é um golpe duro no poder da aristocracia, pois, enquanto a oralidade favorece os costumes e as tradições dos aristocratas e sacerdotes, a escrita permite legislar em termos de ‘direito substantivo’ (leis) e ‘direito processual’ (processo), outorgando direitos e obrigações a todas as classes. Retirar o poder das mãos da aristocracia com leis escritas foi o papel dos legisladores. Coube-lhes compilar a tradição e os costumes, modificá-los e apresentar uma estrutura legal em forma de leis codificadas. Apesar de ter sido o berço da democracia, da filosofia, do teatro e da escrita alfabética fonética, a civilização grega apresentava, de forma geral duas caracterísitcas peculiares: 1. Os gregos recusavam a profissionalização do Direito, do magistrado e do advogado que não podiam receber pagamento privado; 2. Os gregos preferiram falar a escrever por muitos séculos tendo desenvolvido formidavelmente a retórica e a dialética em seus discursos públicos. As atividades jurídicas eram em Atenas consideradas parte das obrigações públicas voltadas para a administração da cidade, e por isso, apesar de serem exercidas pela aristocracia, eram obrigatórias e não remuneradas. Aliás esta prática de gratuitidade será imitada pelos romanos com relação aos jurisconsultos (doutrinadores), que assim podiam ascender a magistrados. As motivações para que os gregos aderissem à escrita no Direito se devem, provavelmente, a mais de uma circunstância: 1. Assegurar melhor a justiça por parte dos juízes das classes superiores, fazendo com que os costumes e tradições, base do Direito arcaico, permanecesse nas mãos de um grupo restrito; 2. Tornar público em lugar aberto e acessível a todos as leis; 3. Promover a reforma do sistema judicial quanto ao seu processo, visto que a estrutura de funcionamento da justiça é complexa e ao mesmo tempo vital para a democratização do mesmo, ainda que por muito tempo o poder político continuasse nas mãos do grupo de governantes e magistrados. De qualquer forma, com o crescimento das cidades, a probabilidade de conflitos aumentava e assim a necessidade de meios para sua solução pacífica. A escrita, neste contexto, é, ao mesmo tempo, um instrumento de controle e persuassão dos governantes e alta magistratura, e a forma como lentamente os menos favorecidos podem garantir seus interesses. Já presente em Atenas no século VIII a.C., a escrita somente foi utilizada publicamente para a confecção e publicação das leis por volta da metade do sétimo século antes de Cristo, e só se cristalizaram a partir do século V a.C. Finalmente, no sexto século antes de Cristo, o período clássico fez aparecer uma das mais importantes iniciativas jurídicas da antiguidade ocidental, a instalação do Heliastes, o tribunal popular grego. Composto pelos heliastas, os membros do Heliastes eram sorteados anualmente dentre os atenienses, e dentre estes eram escolhidos os dikastas, os cidadãos que comporiam o júri, parecido com os membros da sociedade que modernamente compõem nossos tribunais, com a grande diferença que os membros do júri podiam chegar a algumas centenas, sempre em número ímpar para evitar empate. A decisão final do julgamento era dada por votação secreta, refletindo a vontade da maioria. Não havia Juiz: um magistrado presidia o julgamento, mas não interferia no processo. Os litigantes dirigiam-se diretamente aos jurados através de um discurso, sendo algumas vezes suportados por amigos e parentes que apareciam como testemunhas. O julgamento resumia-se a um exercício de retórica e persuasão. Cabia ao litigante convencer a maior parte de jurados e para isso valia-se de todos os “truques” possíveis. Com o passar do tempo, entretanto, a lei que exigia que os litigantes ou queixosos apresentassem os casos diretamente e de forma pessoal aos jurados, foi se tornando “morta”, pois na prática o júri sempre permitia a intervenção de alguém próximo ou de um representante se dirigir ao tribunal em nome do envolvido. Assim, apareceu um tipo de profissional que, provavelmente pago, ainda que essa prática não fosse admitida, se especializou em discursos forenses, talvez os primeiros “advogados” da história. Estes profissionais eram chamados de logógrafos, à semelhança dos escribas egípcios, e que provavelmente eram os filósofos com retórica mais brilhante, ainda que seus discursos estivessem apenas preocupados em defender determinado indivíduo ou uma causa colocada por um cidadão no Heliastes. Possivelmente, estes especialistas retóricos eram sofistas, um grupo de filósofos que foi denunciado por Sócrates e Platão como “vendilhões da palavra”, em detrimento das causas públicas e do bem comum mais elevado. 3.3 O Direito Grego Para entender-se melhor o Direito ateniense e as reformas democráticas promovidas a partir do século sexto antes de Cristo, deve-se lembrar de que por muitos séculos, antes mesmo do período arcaico, o Direito estava estreitamente ligado à oganização familiar, depois às gens e mais tarde às fratrias. Essas tribos cultuavam os seus próprios deuses e mantinham rituais dentro de seus próprios lares, como o fogo sagrado que permanecia acesso dia e noite. Dessa forma, a família era uma unidade elementar e a única a integrar os indivíduos entre si e ao seu quinhão de terra, onde nasciam e onde eram enterrados após a morte. Não é por acaso que em milhares de anos tivesse sido a terra sempre a forma mais elementar de poder e de riqueza, só tendo perdido espaço após a Revolução Industrial e o advento da ascensão da classe burguesa. Os povos da antiguidade fizeram guerras por séculos em nome da posse da terra. Na Idade Média foi o feudo que manteve o poder dos princípes e suseranos, bem como a influência da igreja. No Renascimento, pelo menos até o século XVII, o poder econômico, e político, estava associado à posse de terras, como apregoava a Escola Fisiocrata. Também ainda se verifica em países contemporâneos menos desenvolvidos industrialmente, a tendência forte a que o poder esteja nas mãos dos latifundiários, em detrimento de uma reforma agrária mais efetiva. Com relação ao Direito propriamente dito, um exemplo dessa extrema concentração nuclear na família e a sua influência na vida social, política e econômica das tribos originárias, está o fato da mulher que ao casar passa a pertencer à família de seu esposo, inclusive sendo “arrancada” dos deuses de sua família, dos rituais do fogo sagrado de seus pais. Quando morria essa mulher era enterrada na propriedade de seu marido e não de seus ancestrais. Enquanto Direito de sucessão, pode-se aferir daqui o quanto esteve presente, por milênios, figuras jurídicas que reforçam o patriarcado e o poder do homem sobre a mulher, enquanto durou, de cabeça de casal, pater poder, responsável pela educação dos filhos, herança etc. Esta predominância do homem, por outro lado, levou, posteriormente, a crises e decadência das cidades-estados do período clássico. A par com o crescimento das sociedades e as dificuldades crescentes de suprir sua sobrevivência, as derrotas nas guerras, levaram a uma mudança que, senão sempre explícita, acabou por reformar os direitos e obrigações dos cidadãos frente às classes aristocratas e sacerdotais, com forte impacto nas relações patriarcais familiares, no tratamento das classes endinheiradas e com relação à situação dos próprios escravos e estrangeiros. Por exemplo, pode-se citar o papel da filosofia, como no caso de Aristóteles, em conformar as classes todas ao interesse público maior, e de Aristófanes, ao usar o teatro de comédia para expor a mulher como a que pode, pelos seus atrativos sexuais, contribuir para a sustentabilidade econômica de Atenas (p.ex., cortesãs, convivas, prostituição) e evitar mais guerras retendo os maridos em casa. Nestes casos, a mulher que outrora era manifestamente um objeto de procriação a serviço do homem, agora se liberta, e sua sexualidade pode ajudar ao interesse público; seja liberando a physis ao coletivo, seja guardando seus melhores atributos sexuais aos maridos como forma de manter a paz do nomos. Estas atividades consideradas até então como amorais e subversivas, atribuídas e autorizadas apenas às escravas e cortesãs, e rapazinhos, agora são funções políticas importantes das esposas e filhas da cidade, que de um lado prteferem se libertarem desta forma do que padecer de fome, e de outro, provavelmente, como forma de extravasarem de alguma forma sua submissão patriarcal. Lembremo-nos que a primeira submissão da mulher ao homem sempre esteve relacionada à sua castidade. Se os códigos mais arcaicos submetem a mulher a penas mais severas que aos homens, por exemplo, a mulher estéril autorizava o divórcio, mas se a esterilidade fosse do homem, a mulher deveria aceitar como esposo um irmão ou parente do marido (levirato), por outro lado, esta medida protegia, de certa forma, a mulher: a viúva que não podia ficar sozinha, pois precisava criar os filhos, a mulher que devido à esterilidade do marido não podia cumprir sua grande função social, a procriação. Nestes casos havia o risco da mulher se prostituir como forma de sobrevivência. Só quando esta regra foi extinta pela monogamia patriarcal e o problema da sobrevivência da cidade-estado está em cheque, e só então, a mulher pode se libertar do jugo maior do homem revolucionando as normas morais e legais restritivas. Maria de Fátima Silva, de forma eloquente, afirma: Foi então que, certamente ecoando teorias em voga entre os filósofos e intelectuais da época, Aristófanes instalou numa Atenas utópica um regime comunista de bens e de mulheres. Em vez de um programa de regresso a uma normalidade conhecida, através da reinvidação da sexualidade conjugal, como aquele que lisístrata defendia, o projeto era desta vez de ruptura com a ordem estabelecida: que as paredes da casa desabassem para dar lugar a uma única família, dentro da qual o sexo fosse livre e democrático. Como regra de ouro a orientar o comportamento masculino, o princípio fundamental traduz-se numa fórmula simples, ‘se não fazes amor não comes’, como suspeitam, em conversa visada, Bléfiro e Cremes. Na lógica feminina, para as mulheres é chegada a hora de darem desafogo pleno, e legitimado pela lei, ao seu eterno erotismo: amor livre para todas, com a única restrição de uma prioridade devida às velhas, deterioradas e caquéticas. A vantagem antes detida pelas escravas, por via da prostituição e do adultério, perde agora terreno perante a igualdade democrática que se instala. O tempo pertence às mulheres livres, desvinculadas de todos os bloqueios impostos pelo nomos tradicional. É esta a resposta que a fantasia encontra para opor ao desmoronamento de uma estrutura política em crise. À ruptura do coletivo, responde-se com a ruptura completa do privado. (Nomos e sexo na comédia de Aristófanes, 2005:53-54). Notável no direito grego era a clara distinção entre lei substantiva e lei processual. Enquanto a primeira é o próprio fim que a administração da justiça busca, a lei processual trata dos meios e dos instrumentos pelos quais o fim deve ser atingido, regulando a conduta e as relações dos tribunais e dos litigantes com respeito à litigação em si, enquanto que a primeira determina a conduta e as relações com respeito aos assuntos litigados. Embora os gregos não estabelecessem diferença explícita em lei entre direito público e direito privado, civil e penal, o direito processual é bastante desenvolvido. Um exemplo significativo de quão evoluído era o direito processual grego é encontrado no estudo dos árbitros públicos e privados. Trata-se aqui de duas práticas que se tornaram comuns, no direito grego, como alternativas a um processo judicial normal: a arbitragem privada e a arbitragem pública. À época de Drácon era possível a mediação entre as famílias – do morto e do homicida – com vistas à autocomposição para definir os termos de punição. Atenas praticava arbitragem privada, de forma simples e rápida e fora dos tribunais. Normalmente esses litígios eram resolvidos pela intermediação de árbitros, que não emitiam um julgamento, mas ajudavam as partes a obter um acordo. Como se vê, a moderna arbitragem (no Brasil, Lei 9307/96), ainda tão mal apreciada e usada no ordenamento jurídico brasileiro, já existia a partir de meados do século VI a. C. nas cidades-estados do mediterrâneo. Em muitos casos, por exemplo, em julgamentos públicos, no tribunal de Heliastes, também se recorria à mediação de um ou mais árbitros, que mesmo não emitindo um parecer decisivo, ajudavam os cidadãos a decidirem por voto o destino de litígios mais abrangentes, que podiam envolver mais pessoas ou já envolvera o interesse e preocupação do povo. Segundo Aristóteles, se um filósofo era chamado a fazer esse papel, seria conveniente não aceitar, em muitos casos, devido à sua ideia que um cidadão só poderia ser julgado levando-se em consideração todas as suas ações e oportunidades ao longo da vida, e não unicamente com relação a uma ação específica (o julgamento pela totalidade das ações humanas refere-se ao mesmo princípio platônico que um homem só seria julgado e condenado no além pela sua obra existencial completa). No direito processual grego, também se diferenciava a forma de mover uma ação: a ação pública e a ação privada. A ação pública podia ser iniciada por qualquer cidadão que se considerasse prejudicado, por exemplo, por conduta corrupta de funcionário público. A ação privada, por sua vez, era um debate jurídico entre dois ou mais litigantes, reivindicando um direito ou contestando um comportamento, e somente as partes envolvidas podiam dar início à ação. Esta diferenciação apresenta-se no atual direito brasileiro: Ação Pública ou Pública Incondicionada, a executada pelo Ministério Público - MP sem necessidade de representação de agente social; Ação Privada, em que somente o agente pode iniciar o processo jurídico por sua vontade e representação junto ao Estado. Em alguns casos, o direito pátrio ainda prevê a Ação Pública Condicionada à Representação, nos casos em que o MP segue as tratativas legais para constituir processo cabível de representação ao juiz, mas que demanda, inicialmente, o interesse do agente prejudicado em efetuar a queixa diante de autoridade competente. Exemplos de ações privadas nas cidades-estados antigas: assassinato, perjúrio, propriedade, assalto, ação envolvendo violência sexual, ilegalidade, roubo. Exemplos de ações públicas nas cidades-estados antigas: contra oficial que se recusa a prestar contas, por impiedade, contra oficial por aceitar suborno, contra estrangeiro pretendendo ser cidadão, por registro falso, matrimônios ou alianças e negócios que envolviam potencialmente a vida coletiva. No direito grego é notório que toda a ação começa quando a pessoa lesada coloca diretamente, ou por intermédio de um representante, diante dos jurados, sua queixa, suas explicações e suas reinvindicações. Neste caso, a ação pública é classificada pelo tipo de queixa, fato ou teor, e não pela iniciativa do agente - que pode ser uma família, se o lesado está morto ou impossibilitado de se queixar -, já que o agente sempre tem a iniciativa, pois em Atenas, por exemplo, não existe Ministério Público, advogados, delegados. Neste sentido, o sentido que temos atualmente com relação aos tipos de Ação difere substancialmente. Portanto pode-se afirmar que o direito ateniense é essencialmente retórico. O fato do direito em Atenas ser fundamentalmente retórico explica, pelo menos em parte, a grande discussão e a cisma criada por Sócrates em seus discursos denunciativos dos sofistas, pois como representantes que podiam ser dos cidadãos e dos que tinham poder econômico, facilmente poderiam usar seus discursos elaborados, mas “escorregadios”, para convencer os jurados em situações de julgamentos que contrariassem os interesses das elites, ou mesmo em julgamentos onde algum aristocrata estivesse sub judice. Por outro lado, esta democracia ou facilidade de acesso aos tribunais e à defesa por iniciativa pessoal, barateava e agilizava a Justiça na cidade de Atenas, fornecendo ao povo a ideia de uma equidade e justeza, transparência e efetividade que são princípios de eficácia jurídica em todas as épocas, mesmo se a retórica apresentada por alguns não seja verdadeira, ou possa provocar desproporcionalidade entre os indivíduos. O que o direito processual grego nos provoca a pensar, é que parece ser objetivo maior a certeza da igualdade de acesso à Justiça do que o resultado desse mesmo processo. Quando no medievo e no renascimento a diferenciação entre direito substancial – leis – e direito processual se voltam a confundir no despotismo eclesiástico e dos monarcas absolutos, houve verdadeiro retrocesso com relação às práticas já existentes no mundo clássico antigo. Daí a necessidade de uma “revolução” anunciada, por exemplo, por Cesare Beccaria (1768-1794), no século XVIII, em seu Dos Delitos e das Penas, quando o mesmo volta a discutir essa separação entre direito substancial, material, e direito processual. O direito a um julgamento por um júri formado por cidadãos comuns (em vez de pessoas tendo alguma posição especial e conhecimento especializado) é comumente visto nos estados modernos como uma parte fundamental da democracia. Foi uma invenção de Atenas que a democracia jurídica se se realiza à luz do dia, todos os dias, na presença de centenas de cidadãos não especializados em Direito e sem a necessidade de Doutores. Exemplo disso é o tribunal Heliastes, que julgava tanto ações privadas como públicas, à exceção de crimes de sangue, julgados pelo Areópago. 3.4 Os Legisladores Gregos Os dois legisladores mais importantes de Atenas foram Drácon (século VII a.C.) e Sólon (640 a.C. - 558 a.C.). O primeiro foi responsável por notável codificação penal, principalmente quanto ao homicídio, por volta do sétimo século antes de Cristo. O segundo por ter reformado o mesmo código e melhorá-lo quanto aos aspectos mais violentos do mesmo e quanto à conquista de benefícios por parte dos cidadãos atenienses apesar do poder secular da aristocracia e oráculos. Drácon é chamado a legislar de forma autocrática após uma tentativa de golpe por parte de Cílon e a instalação de uma tirania, por volta de 632 a.C. - a própria aristocracia, segundo os historiadores, estava dividida quanto à necessidade de reformas em Atenas, devido ao monopólio das terras pelos eupátridas (membros das grandes famílias). Nestas condições, diante da insurbodinação e insubmissão aos costumes e às leis das classes proeminentes, não é de estranhar que a primeira tarefa de Drácon tenha sido a de restabelecer a qualquer custo a velha ordem, benificiando assim os grupos tradicionais atenienses. O restabelecimento da ordem foi efetuada à custa de leis severas e violentas – leis taliônicas: açoite em praça pública, corte de membros, empalamento, pena de morte. De tão violentas as punições constantes no código de Drácon, até hoje é costume nos referirmos aos códigos e sentenças desproporcionais e mais severas como “draconianas”. Algumas circunstâncias jurídicas devem ser levadas em consideração, que se repetem ao longo dos vários momentos mais importantes da história do Direito ocidental: 1. Os grandes momentos de criação e desenvolvimento do Direito estão atrelados aos momentos mais conturbados ou revolucionários da história política-social dos povos; 2. O Direito Público, por vias da regulamentação penal, foi instrumento a restabelecer o poder soberano e a ordem social, prática que, obviamente, favorecia mais a continuidade do status dos grupos de poder conservadores; 3. A origem do Direito é a truculência legislativa via Código Penal, e as penas precisavam ser extremamente severas, não porque a violência nas sociedades de então fosse pior que a de hoje, por exemplo, mas porque, a par da necessidade da ordem, existia um segundo enfrentamento, o poder do clero, dos sacerdotes e oráculos, com reincidente envolvimento dos Deuses, contra o dos soberanos, ansiando por um Direito laico que lhes desse poder de fato, aliás, desejo igual de grande partre da filosofia grega a partir do século V a.C.; 4. O antropocentrismo crescente desenraizou os cidadãos de seus antigos credos familiares que os mantinha sobre domínio do medo dos Deuses; os soberanos precisavam restabelecer esse medo, por isso as punições precisavam serem extremas e violentas; 5. Só o sedentarismo, o desenvolvimento urbano, a indústria e o comércio ligado às guerras, o crecimento vegetativo humano, a escassez de víveres e o contato com civilizações orientais, levou os Gregos a reinvidicarem novas formas de organização social e de manutenção da ordem, com abrandamento dos tribunais e das penas cominadas. Contudo, é especialmente interessante que mesmo praticando um Direito máximo com relação à punição, Drácon introduziu princípios importantes que prevalecem até nossos dias no Direito Penal: quanto ao homicídio, a diferenciação entre homicídio voluntário (CP, art. 18, inciso I – Crime Doloso), homicídio involuntário (CP, art. 18, inciso II – Crime Culposo) e a legítima defesa (CP, art. 25). Na verdade, a grande tarefa de Drácon foi acabar, através de instrumentos legislativos, com a prática da vendetta, vingança, que era comum nos tempos antigos, principalmente após a condenação e morte de Cílon. Segundo Delfim Leão: Ora, a provável inexistência, nesta época recuada da história ateniense, de um código público e claramente definido relativo a casos de homicídio, teria encorajado naturais propósitos de vingança entre os clãs envolvidos... A decisão era complexa e recheada de importantes consequências, pois equivalia a criar o primeiro código de leis escritas em Atenas (O horizonte legal da oresteia, 2005:15) Com relação aos homicídios e seus tipos, os mesmos eram tratados de forma proporcional conforme seus elementos. O tribunal mais importante existente em Atenas na legislação de Drácon, provavelmente em 621 a.C., era o Areópago, cujos magistrados eram todos descendentes da aristocracia tradicional, os arcontes. Os homicídios voluntários ou intencionais eram imediatamente remetidos ao Areópago. A parte mais interessante, contudo, dentro do contexto de violência punitiva e autocracismo draconiano, era o fato que os homicídios involuntários podiam ser resolvidos de forma direta, entre as famílias envolvidas, do homicida e do morto – o que o Direito contemporâneo chama de Ciclo Restaurativo. Estes acordos geralmente eram resolvidos, por consenso, através de indenização pecuniária e expulsão do culpado para as portas da cidade. Sua vida, entretanto, estava condicionada a não cometer novo crime, pois no caso de reincidência extinguia-se o acordo e o mesmo podia ser morto segundo a lei. Atenas tinha vários tribunais, um para cada tipo de homicídio (Areópago: homicídios intencionais ou voluntários; Paládion: homicídios involuntários quando as famílias não resolviam a contenda, ou no caso de morte de escravos e estrangeiros; Delfínion: nos casos de o homicida confessar o crime, mas dentro da legalidade, por exemplo, no caso de adultério em flagrante; Freato: para os casos em que havia reincidência – neste caso o arguido era julgado à distância em um barco para evitar a “poluição”; Pritaneu: autor desconhecido ou morte derivada de objeto inanimado ou animal). É esta possibilidade de composição e solução de conflito que se distingue, pois a mesma remete ao Direito Privado e não Direito Público, como seria de esperar no caso de homicídio. Em parte, porque o assassinato “poluía” o agente que cometera o crime e a todos que entrassem em contato com ele, portanto uma solução deveria caber apenas aos que estavam envolvidos, evitando “poluição” maior. Também se deve levar em consideração que esta prática reforça a ideia que os gregos já possuiam de evitar a vingança, que podia surgir após um julgamento que a família e/ou o clã julgasse injusto. Colocando-os frente e frente, o consenso ou a vontade do reclamante, no caso da família da vítima, deveriam prevalecer de forma a evitar futuras retaliações. Distinguia-se este tipo de contraditório privado, dos demais contraditórios, pelo fato que neste caso, obviamente, a vítima não podia reclamar o delito cometido, cabendo-o à sua família. Por outro lado, vê-se nesta prática que a justiça retributiva não exclui a possibilidade de justiça reataurativa. Sólon manteve basicamente o mesmo Código criado por Drácon. No entanto promoveu reformas importantes, como a eliminação de hipotecas por dívidas e a libertação de escravos por dívidas, além de incentivar que a Justiça levasse em consideração as difenças sociais entre as classes. Estas medidas fizeram com que uma quantidade maior de estrangeiros e artífices procurassem Atenas, contribuindo para o desenvolvimento econômico da cidade e almejando conquistarem a cidadania. Foi mantida a distinção entre homicídio voluntário, involuntário e legítima defesa, e apesar de não haver nítida separação entre Direito Privado e Público, procurou estabelecer regras mais claras para a vida social, por exemplo, estabelecendo pela lei que o pai que não ensinasse um ofício ao filho desobrigava este de o abrigar e cuidar quando estivesse velho. Fig. - Heliastes Sólon também foi importante para o desenvolvimento da economia ateniense, reorganizando a agricultura e incentivando o cultivo da oliveira e da vinha, tanto para consumo como para exportação. Mas o mais importante foi a “reforma agrária” que Sólon promoveu, horoi, desmarcando muitas terras que estavam de posse dos nobres, o que obrigava o pagamento de tributos, na quantia de um sexto do produto obtido, por parte dos agricultores que nelas viviam. Até então, como era difícil pagar esses tributos os menos abastados eram julgados nos tribunais dominados pelos aristocratas, fazendo com que se hipotecassem bens e mesmo se condenasse à escravidão os devedores. Portanto, Sólon ao abolir as hopotéticas e a escravidão por dívidas, uniu reforma jurídica à reforma econômica e social. De acordo com o Código de Drácon e as reformas importantes de Sólon, as leis gregas podem ser separadas em quatro grandes grupos, ainda que assim não fossem exatamente categorizadas: crimes (nosso Código Penal), família, pública e processual. Com relação aos crimes são inseridos aqui principalmente os homicídios voluntários, involuntários e de legítima defesa, que como se disse são a grande inovação com relação ao Direito Penal ateniense. Vimos acima como os vários tribunais recepcionavam os delitos desta autoria. Por novo exemplo tomemos o caso do crime de estupro e adultério. No primeiro caso o homem que raptasse e violentasse uma mulher virgem deveria pagar cem dracmas. Mas se um homem fosse pego em flagrante cometendo adultério, poderia ser morto sem punição para quem o matasse. Frontalmente contrário ao nosso conceito de proporcionalidade penal, ao que tudo indica, o estupro era menos violento do que o adultério. Isso se explica devido ao valor que está contido em ambas as ações: na verdade Sólon interpretou que no caso do estupro a mulher foi forçada e, portanto, mantém a recusa à obscenidade mantendo íntegra a sua alma e a dignidade de toda sua casa e família, ao passo que no adultério ela consente sob sedução do homem, que a desvirtua, e ao fazer isso, torna impura toda a casa e a família dela. Por esse motivo não é de estranhar que enquanto o homem adúltero pode ser morto se apanhado em flagrante, nada acontece com a mulher. Da mesma forma que a mulher que se prostitui por profissão também não é sacrificada, pois conta sua vontade, ela não foi seduzida pelo homem, o que faz com que ele e ela não sejam de fato adúlteros. Delfim Leão o explica nos seguintes termos: Ora, para melhor compreendermos essa característica do direito ático há que entender, em primeiro lugar, à própria noção de moicheia, termo ao qual, à falta de melhor, daemos o equivalente de ‘adultério’,fato que nos faz pensar de imediato, para o caso da mulher, numa infidelidade em relação ao marido. No entanto, para os atenienses, o conceito era mais amplo e poderia abranger a prática sexual ilícita com grande parte das mulheres do oiko. Portanto, não seria apenas a honra do marido que estava em jogo, mas a de toda a sua casa. (...) O fator essencial para distinguir a moicheia da violação era o consentimento, já que, no segundo exemplo, se prossupunha a força. Portanto, com a moicheia, além da entrega do corpo, havia ainda a considerar a questão moral da corrupção do espíritoseduzido. (Matrimônio, amor e sexo na legislação de Sólon, 2001:116) Classificadas como família, encontramos leis sobre casamento, sucessão, herança, adoção, legitimidade de filhos, escravos, cidadania, comportamento das mulheres em público, entre outros. Por exemplo, Sólon instituiu que o testamento fosse livre, transferindo a posse da terra do domínio público para o domínio privado. Outro exemplo interessante da reforma soloniense, diz respeito ao matromônio, autorizandoo entre meios-irmãos, filhos do mesmo pai, mas não filhos da mesma mãe. Isto quer dizer que um homem podia casar com sua meia-irmã por parte de pai, mas não podia desposar uma mulher sua meia-irmã por parte de mãe, portanto de pais diferentes, mas de mesma mãe. Interessante não apenas pelo consentimento de casamento consanguíneo, incestuoso para nossos dias, interessante também quanto à proibição se o vínculo consanguíneo fosse matriacal, que pode ser interpretado ora como o poder do homem sobre a mulher, ora como moralmente uma proteção a favor da mulher. Como leis públicas temos as que regulam as atividades e deveres políticos dos cidadãos, as atividades religiosas, a economia, finanças, vendas, alugueis, o processo legislativo, relações entre as cidades, construção de navios, dívidas entre outras. Clístenes (565 a.C. – 492 a.C.), depois de Sólon, efetuou a grande reforma política que possibilitou que Atenas caminhasse a passos largos para a democracia. Sólon não tinha conseguido evitar que os altos postos da cidade e a composição das assembleias fossem dominados quase exclusivamente pelos eupátridas, os ricos e nobres originários das tribos mais antigas, como no caso do Areópago, o tribunal mais importante, que era constituido por juizes aristocratas. Coube a Clístenes essa reforma política. Este governante, no final do século V a. C., colocou em sua Constituição dispositivos que possibilitaram o voto às massas, muitos descendentes de antigos escravos e estrangeiros. Além disso, Clístenes aumentou de quatro tribos para dez as tribos orginárias o que resultou na constituição de 500 arcontes que governavam Atenas. Foi com Clístenes que apareceu a figura do ostracismo. Todos os anos a assembleia popular se reunia publicamente e julgava se existia algum cidadão que por sua excepcional inteligência, heroísmo e elequência podia com facilidade canalizar simpatia e poder muito além dos demais, colocando em perigo a democracia que era vista como a vida pública em estreita igualdade. Se fosse o caso, esse cidadão era condenado a abandonar a Ática por um período de dez anos, cumprindo pena de ostracismo (colocava-se, segundo a tradição, o nome desses indivíduos em uma concha, em grego ostracon). Tal prática, que ainda vigorou por todo o governo de Péricles, deve-se, provavelmente, ao fato de Atenas querer evitar uma tirania como a implantada por Pisístrato, que governou de forma absoluta antes de Clístenes. Ainda no plano das leis públicas, coube a Aristides (535 a. C. – 468 a. C.), que sucedeu Clístenes, reformar as atribuições dos tribunais, criando o Heliastes, tribunal dos heliatas, cidadãos com voto, deixando para o Areópago, velho reduto da aristocracia, os julgamentos de homicídios e outros crimes graves, esvaziando-o do poder político. Por fim, Atenas conheceu seu apogeu com Péricles (495 a.C. – 429 a.C.), descendente dos eupátridas e sobrinho de Clístenes, muito popular por sua inteligência e capacidade de realização excepcional. Péricles consagrou de forma definitiva a democracia de então, concentrando o poder na assembleia popular, que se reunia três ou quatro vezes por mês, e nas funções diversas e compulsórias dos magistrados. A assembleia votava as leis, julgava os casos mais importantes e nomeava os magistrados. Dos 500 arcontes – senado, 10 estrategos executavam as decisões da assembleia popular. Também muitas vezes eram estes que apreciavam previamente as matérias a serem levadas à assembleia. Notável instituto político na democracia ateniense da época de Péricles era a escolha dos magistrados por sorteio, a partir de uma lista de todos os cidadãos ou dos que se candidatavam a tal posto. Assim, um partido majoritário na assembleia não poderia escolher apenas seus representantes, apesar dos estrategos poderem ser reeleitos quantas vezes o povo desejasse. O mandato dos outros magistrados só durava um ano, e o cargo de presidente dos 500, um dia. Além disso, perceba-se que o poder estava distribuído entre a assembleia popular, os arcontes, os estrategos, o Areópago e uma série de outros magistrados que exerciam de graça, como obrigação de contribuir com a cidade-estado, várias funções. Ao final de seus mandatos todos eram julgados por seus trabalhos na assembleia popular. ------------------------------------------------------------------------------------------------------§ A Grécia por séculos não teve códigos escritos, prevalecendo o direito consuetudinário, ritualístico, cultuando os ancestrais e os deuses, passados familiarmente. § Com o avanço da escrita o direito oral perde força, com isso questiona-se o poder da aristocracia e a forma de se fazer justiça. O direito escrito é oportunamente utilizado pelos legisladores como forma de promover as reformas necessárias à democracia, principalmente em Atenas. § Existe diferença entre Direito – Dikáion – e Justiça – Dikaiosune. Da mesma forma, existe diferença entre um direito mais agressivo, legalista e punitivo – simbolizado pela deusa Themis -, e um direito mais equitativo, humano e conciliador – simbolizado pela deusa Diké. § Os primeiros legisladores empenharam-se em escrever as leis e usá-las para organizar e manter a ordem, motivo pelo qual os códigos desse período tendem a ser extremamente punitivos e violentos – “lei de talião”. Apesar disso Dracon distinguiu os homicídios em Voluntários, Involuntários e de Legítima Defesa, classificação que os governantes seguintes mantiveram em Atenas. § Como parte da reforma jurídica Sólon promoveu o fim da escravidão e morte por dívidas, o que possibilitou uma verdadeira reforma agrária, devolvendo as terras, que por dívidas de impostos estavam nas mãos dos aristocratas, para os cidadãos comuns e atraindo muitos estrangeiros para Atenas. Sólon também elaborou a lei que instituía a herança. § Por sua vez, Clístenes reformou os tribunais, criando o Heliastes, uma assembleia judiciária com a participação de até 6.000 cidadãos, que julgavam os casos mais importantes e públicos em Atenas, com exceção de crimes violentos, voluntários e consanguíneos, que permaneceram a ser julgados pelo Areópago. § Desavenças, conflitos e homicídios não voluntários, contudo, poderiam ser resolvidos “pessoalmente” entre os envolvidos, seus parentes ou mesmo árbitros designados. Isto constitui o que modernamente chamamos de conciliação ou ciclo restaurativo. § Segundo as leis atenienses, a representação caberia exclusivamente ao ofendido, injustiçado ou queixoso. Mas na prática sempre os tribunais permitiam que outras pessoas intercedessem a pavor das partes, como árbitros ou como defensores, o que criou a prática da redação de peças de defesa – especialidade dos logógrafos, os primeiros “advogados”. § Os tribunais eram compostos por jurados sorteados entre os cidadãos em forma de rodízio que tinham a obrigação de comparecerem aos julgamentos como parte de suas tarefas cidadãs, prática estendida por Péricles em Atenas. Portanto temos aí o início dos tribunais de justiça atuais. § Toda atividade judiciária, ainda que amplamente barata, acessível e rápida, permitia que os mais abastados, as elites, pudessem requerer para sua defesa e de seus interesses, não só os melhores logógrafos, mas os filósofos retóricos, os sofistas, mesmo que seus discursos pudessem deteriorar os interesses públicos e o bem-estar coletivo. De fato, o avanço do direito processualístico na Grécia antiga, demonstra que o mais importante para os gregos de então era a acessibilidade e eficácia da justiça, do que a “pureza jurídica” dos discursos nos controversos e nas lides. ------------------------------------------------------------------------------------------------------O Direito e a Mitologia Obra: Oresteia, parte III, Eumênides: teatro trágico grego Autor: Ésquilo, Século V a.C., Grécia – período clássico Tempo da narrativa: Séc. XIV a.C., Grécia – período arcaico Personagens: Clitemnestra, Agamémnon, Egisto, Orestes, Erínias e Eumênides, Apolo e Atena Lugar: Delfos e Atenas: Tribunal Areópago 1 Uma esposa adúltera, por ciúme, por vingança e por poder, de conluio com seu amante, Egisto, mata o esposo, Agamémnon, o soberano de Micenas (Grécia), que troca facilmente as graças da esposa por sua concubina. 2 A lascívia, a traição, ciúme, vingança, poder, todas as PULSÕES, todas as forças portentosas do espírito humano. Foram essas forças que Clitemnestra libertou ao matar o marido Agamémnon, como a caixa de Pandora (mito) reaberta e ainda cheia de impulsos, desejos e desvarios. De alguma forma, Agamémnon, o rei, representa a razão, o controle, a logística, a vigilância, a LEI (Lacan). 3 Um filho doído, orgulhoso e com rancor, presa fácil para a vingança (Nietzsche): até os deuses assim o induzem, a vingar a morte do pai, a honrar o nome de seus predecessores. O filho mata a mãe e o seu possível amante. O arrependimento se submete ao rancor, previamente. 4 Os mesmos sentimentos brutos, a mesma escravidão dos sentidos, a mesma irracionalidade pode ser usada para se fazer justiça? O que os deuses, no Oráculo de Delfos, sugerem a Orestes é uma vendetta ou existe algo mais por detrás do matricídio? Apolo defende Orestes e Atenas se convence de sua absolvição e isso pacifica também o iminente contraditório entre os deuses. Fig. – Erínias perseguindo Orestes 5 As Erínias não dão sossego para o matricida, o ‘poluído’, mesmo que ele se exile e por mais que peça a proteção dos deuses, elas, as fúrias, o haverão de perseguir até conseguirem condená-lo e matá-lo, pois o homicídio de parente do mesmo sangue é hediondo demais para ser absolvido; já o assassinato do amante da mãe não é do mesmo nível, ele merecia a pena de talião?! 6 Orestes vai a julgamento no tribunal de Ares, o Areópago, por decisão inédita de Atenas, que nega a prerrogativa divina de o julgar, mas não se furta ao Devido Processo Legal; condenado ou absolvido deverá ser por vontade do povo, e afinal absolvido, mesmo após as assertivas do coro e do corifeu, este intérprete daquele, que inicialmente tende a ver os fatos humanos pelo senso comum e a fazer prevalecer a TRADIÇÃO e a MORAL. Então, as Erínias, sempre dispostas a perseguir e condenar os homens, humanizam-se, transformam-se em Eumênides, na mesma medida em que algo mais humano e terreno deve prevalecer: a LEI e a sua adequação aos fatos! 7 Lutas, forças antinômicas colocadas dialeticamente por detrás da marcha da História: paixão e razão, libido e supereu, arbítrio e lei, caos e ordem, desordem e controle, teogonia e antropogonia, deuses e homens, costumes e leis (Antígone), poder e perdão, condenação e absolvição, o bem por linhas tortas e o mal por linhas acertadas. Precisa Orestes ser absolvido para que a lei restabeleça a normalidade das coisas e das pulsões bestiais humanas? Orestes precisa ser absolvido para que a política se afaste da religião! 8 O homem, diante da pujança da efervescência do Espírito Subjetivo de Hegel, sua ânsia de liberdade ilimitada, não se curva ao hábito consuetudinário, às tradições, sequer à moral, aos valores, só o peso da Lei, esse ‘pé de chumbo’ instituído pelos homens pode conter e domesticar de alguma forma o próprio homem; a criatura se volta contra o criador para seu próprio bem, como Frankenstein (Shelley), para fazer provar à ciência de seu próprio veneno e, ternamente, para lhe oferecer o amor. 9 O homem não pode ser livre, não consegue dominar as potências da liberdade, e se alguma característica metafísica possui, ontológica, que o protege do mal, em sua onticidade (Heidegger) é um traído e, (in)consequentemente, um traumatizado, cuja redenção está não no além, nas entidades transcendentais, mas na figura mais poderosa que sua emancipação do primitivismo criou: o Direito. O Direito é, antes de tudo, criação da sexualidade humana. 10 O homem não é “bom”, mas não é “mau”, é apenas um Ser diante de suas Circunstâncias (Ortega & Gasset), ‘fazer para ser’, ‘ser ou não ser’, que se agarra, afinal, a si mesmo, às suas criaturas que crescem em monstruosidade há medida que nele cresce a liberdade. Não podem os homens experimentar a felicidade e a paz, viverem com igualdade e justiça sem ‘assassinarem permanentemente a sua mãe’, detentora dos impulsos da maternidade, da procriação, da dor e do prazer,‘impondo a virilidade do pai’? Esta é a circunstância existencial primordial do humano que se liberta dos deuses!