uma análise comparativa da percepção - PPGHC
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uma análise comparativa da percepção - PPGHC
Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de História Programa de Pós-Graduação em História Comparada Leandro Couto Carreira Ricon Melodias Paralelas: uma análise comparativa da percepção nacionalista em óperas de Richard Wagner e Giuseppe Verdi na primeira metade do século XIX Rio de Janeiro 2013 Leandro Couto Carreira Ricon Melodias Paralelas: uma análise comparativa da percepção nacionalista em óperas de Richard Wagner e Giuseppe Verdi na primeira metade do século XIX Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-IHUFRJ) como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre. Orientador: Professor Doutor José Costa D’Assunção Barros Rio de Janeiro 2013 Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de História Programa de Pós-Graduação em História Comparada Melodias Paralelas: uma análise comparativa da percepção nacionalista em óperas de Richard Wagner e Giuseppe Verdi na primeira metade do século XIX Dissertação apresentada pelo aluno Leandro Couto Carreira Ricon (matrícula 111313001) ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-IH-UFRJ) como requisito parcial para a obtenção do título de mestre. _______________________________________________ Professor Doutor José Costa D’Assunção Barros (orientador) _______________________________________________ Professor Doutor Wagner Pinheiro Pereira _______________________________________________ Professor Doutor Karl Schurster Veríssimo de Souza Leão Rio de Janeiro 2013 A Leticia dos Santos Vicari que, com toda sua alma, me mostrou que a vida é incrível AGRADECIMENTOS Agradecer é sempre uma tarefa difícil mas sem qualquer dúvida gratificante. Lembrar daqueles que possibilitaram, colaboraram e incentivaram o trabalho é, tanto quanto o trabalho em si, fundamental. Desta forma, gostaria de agradecer à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo auxílio fornecido ao trabalho, sem o qual este não existiria. Ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro que, com sua seriedade e competência profissional e acadêmica possibilitou todas as pesquisas bem como me apresentou aos profissionais que tanto admirei e admiro ao longo de minha jornada. Meu muito obrigado, também à Profa. Dra. Gracilda Alves por toda a sua presteza e atenção com os alunos. Ao meu orientador, Prof. Dr. José Costa D’Assunção Barros por permitir que ousasse em minhas pesquisas, assim como por me puxar novamente quando ousava demais. Por todas as suas sugestões e incentivos. Ao Prof. Dr. Celso Garcia Ramalho por todo o carinho, generosidade, respeito e dedicação que teve comigo e com meu trabalho, inclusive participando, além da qualificação, de eventos nos quais estava, pelo simples prazer em ajudar. Espero que ainda possamos trabalhar muitas vezes juntos. De verdade. Ao Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira, por ter incentivado a ousadia antes escondida em meu texto. Também agradeço por em todos os momentos de dificuldade estar ao lado, não apenas na qualificação. Creio que ele nunca saberá ou acreditará o quanto devo a ele. Meu muito obrigado a esses três professores, também, por me mostrarem que um trabalho de História Social da Música deve levar em conta a Música. Por mais simples que pareça, estes me alertaram sobre essa fragilidade de minha percepção historiográfica, assim como me alertaram acerca dos perigos do excesso de interpretação. Ao Prof. (ou amigo, ou melhor, ambos) Dr. Karl Schurster, primeiro orientador, amigo querido. Devo tanto a Karl que simplesmente é impossível resumir em um agradecimento. Espero que saiba. A minha família, sempre presente. À Professora Maria das Graças Duvanel Rodrigues, coordenadora do curso de História da Universidade Católica de Petrópolis que me abriu as portas desta instituição de ensino da qual uma vez fui aluno. Meu muito obrigado por acreditar no meu trabalho e por sempre incentivar. Meu muito obrigado por abrirmos o Laboratório de História Social e por confiar em mim para a coordenação deste grupo. Ainda produziremos muito. Meu muito obrigado, também, a todos os colegas e amigos que possuo até hoje na instituição. Ao professor e amigo Dr. Leandro Rust da Universidade Federal do Mato Grosso, professor que, destarte a minha descrença, foi o primeiro a mostrar que sim, é possível termos excelentes amigos e passarmos horas extremamente agradáveis, mesmo que por telefone, morando tão longe. A Ester, Raimundo, Nathalia (ou metralha – apelido péssimo para alguém tão gentil) e Daniel (ou Nini) por serem, sem dúvida, minha segunda família e por terem, como uma família, compreendido minha ausência ao longo destes anos de pesquisa e por, mesmo assim, sempre estarem presentes. Ao Maestro Antônio Carlos Leal Gastão, ou simplesmente Gastão, amigo com o qual aprendi tanto e espero aprender mais sobre música e sobre a vida. Ao querido amigo Leonardo Malgeri, que realmente acreditou em mim. Obrigado por todas as oportunidades e por me deixar trabalhar com seu profissionalismo e humanismo de excelência. Agradeço, finalmente, a todos os amigos que acompanharam esta jornada, principalmente Igor Lapsky e Pedro Paulo Aiello. Meu muito obrigado a todos... mesmo. Por todos os meios, nós temos um campo de música que nos pertence por direito, – e que é a música instrumental; – mas uma Ópera Alemã nós não temos, e por essa mesma razão não temos um Drama nacional. Richard Wagner (A ópera alemã) Copiar a verdade pode ser uma boa coisa, todavia inventar a verdade é melhor, muito melhor. Giuseppe Verdi (Carta para Clara Maffei de 20 de Outubro de 1876) Sem música a vida seria um erro... Friedrich Nietzsche (Crepúsculo dos Ídolos – Máximas e Satiras 33) ...ou pelo menos um grande equívoco. RESUMO Esta dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-IH-UFRJ) busca analisar comparativamente a percepção nacionalista de dois compositores do romantismo europeu – Richard Wagner (Alemanha) e Giuseppe Verdi (Itália) – no contexto antecedente das unificações destes países. Assim sendo, analisamos as óperas Rienzi e Lohengrin de Wagner e Nabucco e La Battaglia de Legnano de Verdi procurando as representações diretas ou indiretas (inconscientes) do nacionalismo. A partir da delimitação do conceito de romantismo e da percepção da interação entre a História e a Arte dentro dos estudos operístico, sondamos a possibilidade de produções artísticas, a partir da metodologia comparativa, oferecerem dados suficientes para a compreensão dos distintos quadros sociais nos quais as peças são produzidas. PALAVRAS-CHAVE: Romantismo. Richard Wagner. Giuseppe Verdi ABSTRACT This dissertation presented to Postgraduate Program in Comparative History of the History Institute of the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ-PPGHC-IH) seeks to analyze the perception of two nationalist composers of European Romanticism Richard Wagner (Germany) and Giuseppe Verdi (Italy) - in the context of previous unifications of these countries. Therefore, we analyzed the representations in Rienzi and Lohengrin by Wagner and Nabucco and La Battaglia Legnano by Verdi searching direct or indirect (unconscious) nationalism. From the definition of romanticism and the perception of the interaction between history and art within the operatic studies, we probe the possibility of artistic productions, in comparative methodology, provide sufficient data to understand the different social contexts in which are produced . KEYWORDS: Romanticism. Richard Wagner. Giuseppe Verdi. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 13 PARTE I 19 CAPÍTULO I – POR UMA HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA: UMA METODOLOGIA APLICADA À PRODUÇÃO OPERÍSTICA 1.1 História Social da Música: uma definição necessária 1.2 História Social da Música: problematizações metodológicas em forma de breves apontamentos 20 21 29 1.3 A ópera: um esboço de sua história desde a sua formação até a configuração do nacionalismo romântico operístico no decorrer do século 34 XIX 1.4 História Social da Música: a possibilidade e a aplicabilidade metodológica no caso da ópera: questões e apontamentos 40 PARTE II 44 CAPÍTULO II – WAGNER 45 2.1 A Alemanha: estrutura política e cultural na formação de Richard Wagner 45 2.2 Wagner: estilo 51 2.3: Rienzi: a escrita, a música e o enredo da ópera 57 2.4: Lohengrin: a escrita, a música e o enredo da ópera 66 CAPÍTULO III – VERDI 71 3.1 A formação do compositor de Busseto e o ambiente italiano 71 3.2 Verdi: estilo 78 3.3 Nabucco: a escrita, a música e o enredo da ópera 82 3.4 La Battaglia di Legnano: a escrita, a música e o enredo da ópera 87 CAPÍTULO IV: EM PERSPECTIVA COMPARADA, O NACIONALISMO NAS ÓPERAS DE VERDI E DE WAGNER ENTRE 1830 E A PRIMAVERA 92 DOS POVOS 4.1 A política em Rienzi e Lohengrin 94 4.2 A política em Nabucco e em La Battaglia di Legnano 97 4.3 As harmonias consonantes e as dissonantes: sínteses possíveis 101 CONSIDERAÇÕES FINAIS 107 REFERÊNCIAS 109 APÊNDICES 119 APÊNDICE I: CRONOLOGIA COMPARATIVA DE RICHARD WAGNER E DE GIUSEPPE VERDI (1813 – 1901) APÊNDICE II: OS ARTISTAS E AS SOCIEDADES NOS ESTUDOS DE HISTÓRIA COMPARADA OU AS VIDAS PARALELAS 120 137 LISTA DE IMAGENS Imagem 1 Richard Wagner 46 Imagem 2 As barricadas de Dresden 49 Imagem 3 Publicação nos jornais de Dresden sobre as atividades revolucionárias de Richard Wagner 49 Imagem 4 Cena de multidão em Tannhäuser 55 Imagem 5 Cartaz da estreia mundial de Rienzi 60 Imagem 6 Rienzi regressando a cavalo após o conflito 63 Imagem 7 Imagem 8 Imagem 9 A chegada de Lohengrin em um barco com forma de concha puxado por um cisne através de correntes de ouro Giuseppe Verdi Le cinque giornate di Milano: Barricadas em Borgo delle Fontane, 1848 69 73 75 Imagem 10 O ‘slogan’ Viva V.E.R.D.I. 77 Imagem 11 Uma cena de Don Carlos 81 Imagem 12 Temistocle Solera 83 Imagem 13 Cartaz da primeira apresentação de Nabucco 83 Imagem 14 Concepção artística da Babilônia 86 Imagem 15 Salvadore Cammarano 88 Imagem 16 A Batalha de Legnano 90 Imagem 17 Caricatura de Richard Wagner 102 Imagem 18 Caricatura de Giuseppe Verdi 102 Imagem 19 Enterro de Richard Wagner 105 Imagem 20 Enterro de Giuseppe Verdi 105 INTRODUÇÃO Tomamos como título para o trabalho que se segue Melodias Paralelas, um claro empréstimo da obra Vidas Paralelas1 do grego Plutarco de Queronéia, um dos fundadores do modelo de análise biográfica, pelo menos aquela de cunho comparativo. Guardamos, contudo, as devidas proporções analíticas: devemos lembrar que, enquanto o autor grego se preocupa com um modelo narrativo biográfico de nítido caráter propedêutico moralista, nós utilizamos, aqui, o modelo de trajetórias de vidas e suas produções comparadas como contextualização analítica da política, da sociedade e da cultura em dois compositores operistas da Europa do século XIX: o alemão Richard Wagner e o italiano Giuseppe Verdi. Este trabalho objetiva, em linhas gerais, analisar comparativamente a percepção político-nacionalista presente em óperas destes dois indivíduos durante o contexto que culminaria no ciclo revolucionário ocorrido entre 1848 e 1849. Este contexto é relevante uma vez que esta Primavera dos Povos, como ficou conhecida esta sequência de revoltas, se transformará na fundamentação política e social para as unificações dos territórios nos quais estes compositores viviam, ou seja, a Alemanha e a Itália. Assim, percebendo que o romantismo presente nos dois deve ser compreendido como um romantismo-nacionalista é possível ampliar a ideia da produção artístico-operística no século XIX. Desta forma, a nossa hipótese é a de que existe a possibilidade de estudos de produções artísticas e trajetórias comparadas oferecerem subsídios para uma comparação de fenômenos políticos, sociais e culturais nos quais essas produções e existências se inserem uma vez que as obras e as vidas transformam-se, diretamente, a partir do contexto no qual são criadas e vividas. Algumas similitudes entre estes compositores merecem destaque e foram decisivas na escolha destas personagens – além da coincidência de ambos terem nascido no mesmo ano, 1813 –, são elas: tanto Wagner quanto Verdi são considerados compositores românticos nacionalistas extremamente específicos, sendo difícil a comparação destes com outros do mesmo período e de seus próprios territórios e mais, estes são considerados os principais compositores operísticos do século XIX de seus 1 No original, em grego, Βίοι Παράλληλοι (Bíoi Parállēloi). Na versão latina, Vitae Parallellae. 13 respectivos países; ambos foram indivíduos amplamente envolvidos em política, podemos lembrar que Richard Wagner lutou juntamente com a população durante a Primavera dos Povos em Dresden tendo se aproximado do governo monárquico posteriormente, em 1864, com a ida de Ludwig II ao trono. Já Giuseppe Verdi, por sua vez, exerceu o cargo de deputado e, posteriormente, senador, se transformando em nome tão significativo nos territórios italianos que logo um grito ficaria famoso: Viva Verdi! o qual, apesar de significar, originalmente, Viva Vittorio Emanuele Re D’Italia [Viva Vitorio Emanuel Rei da Itália] foi cunhado e identificado diretamente com o compositor; por último, podemos ressaltar que a biografia de ambos, destarte todas as diferenças, possui um ponto central comum de extrema relevância: foram trajetórias de vida cruzadas pelos processos nacionalistas de unificação de ambos os países. Poucos são os estudos, principalmente em âmbito nacional, que se preocupam em mesclar as perspectivas teóricas e metodológicas da História Comparativa com a História Social das Artes e com a História Política enfocando, por exemplo, a produção intelectual e mesmo a artística dos indivíduos. Em nosso ponto de vista, a comparação entre política e manifestações sociais da arte oferece sólidos pontos de apoio para percebermos as semelhanças e as singularidades de variados fenômenos processuais. Partimos, dessa forma, da análise de que toda obra artística tem um quê político, mesmo que de forma indireta ou, para usar o termo empregado por Fredric Jameson, inconsciente2. Vale, contudo, ressaltarmos que aquilo que pretendemos com este trabalho é História, uma modelagem interdisciplinar, porém histórica. Desta forma, não entraremos em discussões acerca do processo composicional dos autores. A motivação originária para este trabalho veio a partir da percepção da escassa produção de trabalhos que mesclem as características da pesquisa musicológica com a percepção historiográfica e mais, os poucos estudos que surgem nesta modalidade ainda possuem grande fragilidade teórica e, principalmente, metodológica o que implica na ausência deste tipo de trabalho a partir da ótica da lógica comparativa. Outro ponto de motivação é a necessidade de se problematizar socialmente a produção operística dos dois autores, até hoje os mais executados nas salas, teatros e auditórios. Neste trabalho não entraremos no mérito de amplos debates acerca do conceito de artista. Ernst Gombrich já afirmou certa vez que “uma coisa que realmente não existe 2 JAMESON, Fredric. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Ática, 1992. 14 é aquilo a que se dá o nome de Arte. Existem somente artistas”3. Desta forma, o célebre pesquisador austríaco identifica o artista com o produtor de determinada forma de expressão estética que pode ou não agradar um determinado grupo. Trabalhamos aqui compreendendo os conceitos de romantismo e artista romântico e nacionalismo. Para a compreensão de romantismo e de artista romântico, utilizamos a percepção de Norbert Elias. Para este, estes conceitos são complementares através da instauração de um fenômeno sócio-cultural relevante no cenário europeu de crise do século XIX. Este é o período no qual os artistas se fundamentam sócioeconomicamente o que possibilitará a estes trazer à tona e sem maquilagens suas ideias de forma representativa através de suas produções. Lembremos, contudo, que esta fundamentação teórica é um modelo que funciona dentro de nosso determinado quadro de análise e não para as artes em todos os tempos e lugares de análise possível. Desta forma, apesar de existirem alternativas conceituais, escolhemos esta por se adaptar melhor a nosso objeto de estudo e problemática já que a historiografia e a musicologia inserem tanto Wagner quanto Verdi dentro do definido romantismo. Estas produções visam, no geral, a fundamentação do nacionalismo percebido na época, ou seja, estas obras buscam a formação de uma cultura unida que possibilitará ao grupamento social se perceber como pertencente e igual a determinado grupo. Este modelo conceitual nos é útil uma vez que os territórios que formariam a Alemanha e a Itália eram extremamente divididos durante o século XIX e estes compositores identificaram, em suas obras, determinada função social de criação deste sentimento de pertença. A partir dessas utilizações conseguimos incluir as produções artísticas destes autores em um agir político discursivo. Ainda nos resta, portanto, uma definição metodológica para o trabalho que se segue. Utilizamos como metodologia principal, uma vez que comportará em seu interior uma série de outros modelos metodológicos sem criar incoerências, a História Comparada. Buscamos assim perceber as diferenças e as similitudes no que concerne a estruturação social, política e cultural do ambiente de nossos dois indivíduos aqui pesquisados, compreendendo, também, como essa estrutura maior se apresenta na produção artística desses indivíduos. Todavia, como métodos complementares, buscando uma maior intra e interdisciplinaridade, anexamos à comparatividade as metodologias de análise discursiva, procurando compreender os textos políticos e 3 GOMBRICH, Ernst. A História da Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p.4. 15 epistolares que nossos compositores deixaram e a análise da escrita musical, que nos demonstrará uma possibilidade de pesquisa das inovações estilísticas que fazem destes compositores alguns dos indivíduos mais reconhecidos durante seu próprio século – característica esta que levará a ambos a fama necessária para a constituição de seu projeto musical-nacionalista. Nosso trabalho encontra-se dividido em duas partes: a primeira parte, A ópera: apontamentos metodológicos para uma História Social da Música é constituída do capítulo chamado Por uma História Social da Música: uma metodologia aplicada à produção operística. Este capítulo pode ser dividido em alguns momentos diretamente complementares: em um primeiro momento deste trecho, fazemos breves apontamentos buscando uma diferenciação entre a tradicional historiografia que possui a produção musical como objeto, a História Social da Música e a Musicologia, principalmente aquela de cunho histórico (inserindo nesta modalidade as possibilidades de etnomusicológicas). Em outro momento, buscamos definir e analisar a metodologia da História Social da Música, procurando relacionar essa nova possibilidade com as necessidades da História enquanto disciplina a partir do final do século XX. Logo após, buscamos compreender as características de especificidade histórica da construção da ópera enquanto gênero artístico-musical para, então, podermos relacionar essa prática criadora com a emergência dos nacionalismos e das escolas nacionais ao longo do século XIX. Por último, buscamos uma possibilidade metodológica da História Social da Ópera como fenômeno. Dessa forma, podemos perceber que há uma possibilidade direta da comparação, em nosso estudo, entre os produtos artísticos dos atores e seus espaços de atuação. Nesta primeira parte encontramos, portanto, análise dos aparatos metodológicos ao entendimento do restante do trabalho – a partir desta parte, ficará claro, por exemplo, a escolha das óperas de cada autor e de sua documentação complementar. A segunda parte, O artista político no século XIX: o caso alemão em Richard Wagner e o italiano em Giuseppe Verdi em perspectiva comparada, busca demonstrar a aplicabilidade do arcabouço teórico-metodológico analisado anteriormente em casos concretos, buscando, portanto, perceber a atitude política de dois personagens na mesma época porém em quadros sociais e culturais distintos, procurando notar como esses 16 quadros sociais diferentes e as atitudes políticas plurais modificam ou unem o padrão artístico destes. Destarte, nosso segundo capítulo Wagner, e terceiro capítulo, Verdi, apresentam temas concorrentes: o segundo foca na vida e contexto geral da produção de Richard Wagner enquanto o terceiro faz o mesmo só que com Giuseppe Verdi. Nesses capítulos pretendemos trazer o máximo de referencial da relação entre esses indivíduos e a presença política de seus respectivos territórios em sua produção estilística – este é o momento no qual analisamos determinadas óperas destes autores e seu relacionamento com a política nacional da época4. Este paralelo entre o segundo e o terceiro capítulo de nosso texto nos conduzirá diretamente a nosso quarto e último capítulo, As harmonias dissonantes, no qual propomos uma discussão comparativa entre a produção artística destes personagens analisadas individualmente nos capítulos anteriores e o contexto social, político e cultural nos quais estes estão inseridos como produtores de discursos políticos e estéticos, buscando pontos próximos e pontos afastados entre os dois autores, suas produções e entre seus quadros sociais no século das unificações dos dois países. Após o término do trabalho, como Apêndice, além da presença de uma cronologia comparativa que busca melhor situar o leitor, há um texto de nossa autoria que objetiva demonstrar, através da análise teórica e metodológica, a possibilidade da utilização da produção de artistas-intelectuais como fonte para a análise de realidades sociais, políticas e culturais díspares dentro do modelo proposto pela História Comparada. Desta forma, abrimos um foco de interdisciplinaridade com os estudos artísticos para a construção da História enquanto disciplina. Assim sendo, nosso trabalho, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que aqui se inicia busca um enfoque, ou seja, um modo de ver o objeto, localizado na interação entre a História Social, a História Cultural e a História Política – lembremos, portanto, que essas divisões de dimensão são criações arbitrárias dos próprios historiadores, atendendo a seus interesses. Por sua vez, nossa abordagem, nossa forma de fazer, é, por excelência, a História Comparada das Representações Políticas, método este que amplia as possibilidades de questionamentos e de subordinações metodológicas, ou seja, a partir deste método base outros podem se somar. Por último, nosso eixo temático é o ponto de encontro entre a História – História Social das Artes, 4 As óperas escolhidas para a análise são: de Richard Wagner, Rienzi e Lohengrin e de Giuseppe Verdi, Nabucco e La Battaglia di Legnano. 17 mais especificamente da Música – e a Musicologia. Vale ressaltarmos que esta amplitude historiográfica formadora de um complexo mosaico teórico-metodológico é, em si, um produto da própria realidade social da necessidade de cientificidade da História enquanto disciplina no nosso tempo presente. No mais, não buscamos encerrar os temas acerca das possibilidades comparativas destes dois indivíduos no ano de seus bicentenários. Pelo contrário, este trabalho pretende se colocar como um pequeno início de debate. Debates este que continuará nos próximos anos. 18 PARTE I A ÓPERA: APONTAMENTOS METODOLÓGICOS PARA UMA HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA CAPÍTULO I – POR UMA HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA: UMA METODOLOGIA APLICADA À PRODUÇÃO OPERÍSTICA. Ao longo do século XX a História enquanto disciplina acadêmica sofreu uma série de questionamentos que acabaram por ampliar suas possibilidades de pesquisa e de problematizações possíveis criando, assim, núcleos diversificados de análise desta ciência. Podemos citar, como característica das novas historiografias propostas durante este período. Passa a ocupar uma posição central no fazer historiográfico a necessidade de se questionar o papel das narrativas dentro da cientificidade histórica1, assim como a utilização da lógica de lugar de fala de cada historiador – ou seja, a partir deste momento passou a ser necessário localizar social e institucionalmente o produtor da historiografia2; De igual maneira, podemos indicar como outra característica importante da nova historiografia a definição, plural, das temporalidades históricas entre a curta duração dos fatos, a média duração das conjunturas e a longa duração das estruturas. As novas abordagens metodológicas, a inovação teórica e a percepção da relevância dos estudos dos conceitos, a definição do papel dos indivíduos dentro do núcleo social – eis aqui algumas das outras variadas características que se, por um lado, ampliaram as possibilidades científicas desta disciplina, por outro, muitas vezes também relativizaram o conhecimento proposto por esta matéria. Dentre estas novas propostas, um âmbito surgiu sendo relativamente pouco explorado devido, principalmente, à complexidade de interpretação que os historiadores possuem acerca deste ramo: a música. Relacionar a musica com a História se fez difícil labor, uma vez que este tipo artístico possui uma linguagem por demais específica à qual os historiadores, em sua maioria, não possuem acesso. Todavia, negar a inserção desta prática artística nos estudos históricos é, diretamente, reduzir as possibilidades analíticas de compreensão da realidade cultural, social, política e até mesmo econômica de determinada realidade temporal. Primeiramente, antes mesmo de entrar em classificações e análises metodológicas, uma definição tipológica se faz necessária: trata-se de diferenciar o que é a tradicional História da Música, o que é Musicologia, principalmente a de caráter 1 Lembremos, no entanto, que esta volta das narrativas aos questionamentos historiográficos gerou a necessidade de uma narrativa de caráter nitidamente problematizador sendo, assim, as narrativas meramente descritivas e factuais tendem (e devem) ser afastadas dos modelos historiográficos contemporâneos. 2 CERTEAU, Michel. A escrita da história. 2ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. 20 histórico, e o que é a História Social da Música. A maior parcela de historiadores que tenta se envolver com a música enquanto objeto de pesquisa ainda não possui em sua formação a clara distinção entre estes três modelos de pesquisa possíveis. Desta forma, a maior parte dos pesquisadores que enfrentam o desafio da feitura de uma História Social da Música, bem como os músicos que se colocam na pesquisa de determinada Musicologia Histórica de caráter social ainda persistem elaborando uma narrativa tradicionalista de História da Música, privilegiando indivíduos e obras e anulando, mesmo que de forma inconsciente, as características mais gerais que possibilitam a existência destes mesmos indivíduos e obras. 1.1 História Social da Música: uma definição necessária. Em primeiro lugar, devemos situar o que é comumente chamado de História da Música; aquela mais tradicionalista e que, apesar de sua relevância para a pesquisa, por recolher grande número de informações e documentos, infelizmente ainda domina o cenário historiográfico contemporâneo. Podemos lembrar que durante o século XIX, muitas vezes chamado de o século da História – já que nesse momento surgem as primeiras críticas metodológicas ao conhecimento histórico – os historiadores que focavam na arte vinculavam a criação artística com a lógica de alta cultura, ou cultura letrada sem problematizar socialmente a produção. Assim sendo, a arte era tida como uma manifestação do espírito humano. Neste contexto, raros eram os textos específicos relacionados à música e estes, quando existiam, focavam principalmente as análises biográficas sendo escritos, em geral, por sujeitos próximos ao biografado, como é o caso da biografia que o compositor, pianista e maestro Franz Liszt dedicou a Frederic Chopin, ou a biografia de Ludwig van Beethoven escrita por seu secretário e amigo íntimo Anton Felix Schindler. Fazia-se, portanto, uma História voltada à fundamentação e manutenção de determinado gosto hierarquizado. Desta forma, conseguia-se disfarçar os parâmetros sociais e econômicos utilizados para a hierarquização no período. O historiador da arte – e da música – era um perito que, no geral, apenas agrupava as obras artísticas em estilos. Estes estilos, apesar de possuírem determinada validade analítica, ainda reúnem os sujeitos exclusivamente por características similares ou próximas, não bastam para a compreensão da produção artística. Dessa forma, historicamente passou a ser comum chamarmos de História da Arte aquela descrição dos estilos e suas modificações 21 ancoradas, em geral, na vida dos compositores, ou seja, sem relacionamento direto com o meio social do contexto vivido3. Esta história, conjectural e simplificadora buscou, então, a sucessão de formas e estilos, sem se preocupar com as devidas problematizações estruturais, apenas possíveis com a análise das dinâmicas sociais. Muitos questionamentos possíveis, obras artísticas e personagens, a partir desta lógica exclusivamente narrativa proposta pelo século XIX, foram postos de lado em favor das chamadas personagens centrais, o que gerou a anulação das influências ímpares nas práticas sócio-culturais de variados momentos. Podemos lembrar, como característica prática dentro da historiografia da música, a ausência de significativos estudos acerca dos descendentes de Johann Sebastian Bach. Dentre estes descendentes, podemos marcar Wilhelm Friedemann Bach que influenciou o modelo de escrita tecladístico no século XIX, Carl Philipp Emanuel Bach que acabou por fundamentar as técnicas composicionais do classicismo e Johann Christian Bach, o Bach inglês, grande divulgador da sinfonia enquanto forma composicional. Estes indivíduos tiveram, no final das contas, relevantes influências nas concepções musicológicas de seus tempos e territórios, porém, a partir do momento em que Johann Sebastian se transformou em centro, seus herdeiros acabaram sendo postos de lado. A fórmula encontrada para este evento foi simples: anulou-se as problematizações possíveis dos descendentes para se preservar o gênio do compositor do cravo bem-temperado. O século XX não foi suficiente em reformular as necessidades de uma historiografia da música. Podemos lembrar que os textos daquele momento, destarte buscarem inovações teóricas e metodológicas, ainda se fundamentam na anedotização, mitologização e romantização de determinados atores – os que se firmaram como compositores centrais ao longo do tempo, ou seja, aqueles que conseguiram fama duradoura devido a qualquer quesito – e nem sempre a sua obra ou à inserção desta em seu contexto. Neste sentido, podemos lembrar que, apesar de se chamar Uma nova história da música, o texto do ensaísta Otto Maria Carpeaux4 ainda é um perfeito representante daquilo que é mais antigo dentro da historiografia da música: os grandes feitos, as grandes obras, as pequenas análises problematizadoras da relação entre o indivíduo e o seu mundo e a ideia de História quase total de determinado tema – o autor 3 RAYNOR, Henry. História Social da Música: da Idade Média a Beethoven. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1981, p.9. 4 CARPEAUX, Otto Maria. Uma nova história da música. 4d. Rio de Janeiro: Alhambra, 1977. 22 vienense oferece uma análise que vai desde a música renascentista até a música eletrônica. Em segundo lugar, devemos localizar o que é a Musicologia, principalmente aquela de caráter histórico. A Musicologia ainda é uma disciplina demasiadamente jovem e, por isso, até agora carrega uma ampla gama de significados o que gera uma confusão acerca de seu escopo conforme atestam variados autores5. Podemos lembrar que o termo musicologia é datado no Oxford English Dictionary como tendo sido utilizado pela primeira vez na década de 1910. Logo, o fato deste termo ser recente faz com que muitos ainda se coloquem contra a sua utilização. Originalmente o termo musicologia foi empregado como sendo o conhecimento mais pleno possível das mais diversas áreas da música, ou seja, o significado era lato. Contudo, devido principalmente à hiperespecialização que os ramos de conhecimento sofreram através do XX, hoje o sentido é mais restrito e Musicologia passou a significar o estudo da História da Música enquanto arte – formando-se a Musicologia Histórica. Os indivíduos que se dedicam a esta área, portanto, trabalham com temas que vão desde a confecção de resenhas musicais para jornais, revistas e programas de concertos até as palestras e pesquisas acadêmicas. A partir do momento em que a Musicologia como área de conhecimento foi se consolidando e se auto-reconhecendo acabou por se aproximar da História. Contudo, por falta de contato entre as disciplinas, aproximou-se daquele modelo histórico tradicionalista que marca a transição do século XIX para o século XX. Assim sendo, esse estudo acabou por ser factual, documental, verificável e amplamente personalista, ou seja, a percepção estética e estilística além do cunho sóciopolítico da análise acabaram por ser afastados. Os musicólogos foram se aproximando dos comportamentos arqueológicos e filológicos, buscando o resgate de repertórios antigos e decodificando as notações musicais que já não eram utilizadas buscando, com isto, que as músicas antigas fossem executadas hoje em dia com as características interpretativas de outrora 6. Mesmo chegando a possuir pontos em comum com a historiografia, a Musicologia acabou não comungando das características daquela ciência que buscava se afastar das narrativas ditas neutras. Esse aspecto gerou um hiato entre ambas as disciplinas que permanece até 5 Cf.: CHIMÈNES, Myriam. Musicologia e História. Fronteira ou ‘Terra de ninguém’ entre duas disciplinas? Revista de História 157 (2º semestre de 2007), p.15-29. KERMAN, Joseph. Musicologia. Sâo Paulo : Martins Fontes, 1987. LESURE, François. Musicologie. In: Encyclopédie de la musique. Paris: Fasquelle, 1961. ______. Musicologia et sociologie. La revue musicale, n.221, 1953, p.4-11. 6 CHIMENES, Op. Cit. 23 os dias de hoje. Todavia, devemos levar em conta que o afastamento não ocorreu apenas pelo fato de cada disciplina seguir um caminho diferente, a questão não foi apenas de caráter interno: um dos principais fatores para a persistência deste hiato é o desconhecimento da música enquanto prática artística por parte dos historiadores e da metodologia histórica por parte dos musicólogos. Desta forma, a Musicologia ainda permanece com as características positivistas no sentido mais original do termo aplicado à Teoria da História7. A noção de Musicologia ainda hoje não encontrou sua lógica própria e a concepção lato da disciplina é ampla por demais, adentrando nas mais variadas áreas da prática musical, como a Teoria da Música, a Crítica da Música e a própria História deste ramo; por outro lado, a concepção estrita de Musicologia é tão restrita que é praticamente coincidente com a História da Música praticada anteriormente e, até hoje, presente na maioria das produções. Desta forma, ainda são raros os casos no qual ocorre uma Musicologia orientada para a crítica e mais, para uma crítica historicamente localizada, assim como sugere o musicólogo americano Joseph Kerman8. Vale lembrarmos que apesar de jovem, esta disciplina conseguiu se ampliar criando tópicos relevantes de análise e no interior da Musicologia surgiu, em paralelo, uma nova possibilidade, a Etnomusicologia. Surgindo dentro do espaço deste modelo de estudos, essa nova subespecialidade focou nas manifestações musicais de determinado grupo comunitário desde que estas manifestações atendessem às demandas sociais e/ou culturais da comunidade não sendo, então, voltada ao consumo capitalista massificado iniciado nos últimos tempos. Em suma, a Etnomusicologia propôs “o estudo da música na cultura”9 se aproximando, assim, da Antropologia. Assim sendo, este novo pesquisador, o etnomusicólogo, acabou focando sua análise em comunidades que produziam músicas singulares, folclóricas, tais como as comunidades indígenas, os povos subsaarianos e as comunidades do oriente mais distante. Logo, formando complexas descrições técnicas, o etnomusicólogo acabou localizando as funções da música dentro de cada grupo criador. 7 BARROS, José D’Assunção. Teoria da História: princípios e conceitos fundamentais (v.1) Petrópolis: Editora Vozes, 2011. ______. Teoria da História: os paradigmas iniciais da história: positivismo e historicismo (v.2) . Petrópolis: Editora Vozes, 2011. 8 KERMAN, Op. Cit. 9 MERRIAM, Alan P. The Anthropology of Music. Evanston: Northwestern University Press, 1964, p.358 24 Em terceiro e último lugar, temos que ter uma nítida ideia daquilo que chamamos de História Social da Música10. A História da Música é tratada, quase sempre, como uma dimensão da História Cultural, ficando muitas vezes limitada às análises estilísticas que fazem parte de um consumo comum. Ou seja, esse modelo não carrega, no geral, as possibilidades de percepção política e/ou sociais que as obras possuem em seu interior11. Os compositores e as obras, desta forma, foram isolados em uma torre de marfim e a função da nova historiografia que surge a partir das décadas de 1970 e 1980 é resgatar essa produção artística com suas características mais amplas. Percebemos, então, que a História da Música é tradicionalista tanto em seu ramo historiográfico quanto no musicológico, assim, surge a História Social da Música, atendendo a todas as demandas. Aqui, devemos levar em conta que a História Social da Música nada mais é do que uma subespecialidade multidisciplinar, tendo sua fronteira estabelecida entre a História e a Música enquanto disciplinas. Essas duas característica, a criação de espacialidades e a limitação de voláteis fronteiras, são atributos gerais das mais variadas ciências ao longo do século XX. Já é uma constatação desde o próprio século XIX, principalmente com a obra de Karl Marx, que a produção de um contexto, incluindo as ideias e a própria arte, está intimamente relacionada com o “modo de vida” do período12. Devemos lembrar que “a música surge, em parte, das atitudes de espírito que o compositor partilha com seus contemporâneos, ou de sua reação contrária a ele”13. Logo, percebemos uma clara vinculação da História da Arte com a História das Ideias14, uma vez que ambas são produções socialmente orientadas. Como afirma Henry Raynor: A música, a menos que não passe de rabiscos casuais em sons, tem o seu lugar na história geral das ideias, pois sendo, de algum modo, intelectual e expressiva, é influenciada pelo que se faz no mundo, pelas crenças políticas e religiosas, pelos hábitos e costumes ou pela 10 Nos momentos em que citarmos História Social das Artes deve-se levar em conta que estamos, em sentido estrito, nos referindo à Música como prática artística. 11 BARROS, José D’Assunção. O campo da História. p. 148. 12 WILLIAMS, Raymond. Cultura e Sociedade: de Coleridge a Orwell. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, p.154. 13 RAYNOR, Op. Cit. p.19. 14 O historiador americano Robert Darnton distinguiu, em célebre texto, a História das Idéias, a História Intelectual e a História Social das Idéias. A primeira é voltada para o pensamento clássico, como as obras filosóficas escritas ao longo da história; a segunda, se preocupou com o pensamento geral de determinada época, bem como o estudo das opiniões; a terceira, por sua vez, buscou o estudo da difusão das idéias, bem como das ideologias. Desta forma, podemos lembrar que a História Cultural foca no estudo da cultura em sentido antropológico. Cf.: DARNTON, Robert. História Intelectual e Cultural. In:______. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 25 decadência deles; tem sua influência e talvez velada e sutil, no desenvolvimento das ideias fora da música15. Assim sendo, devemos buscar uma História Social da Música não apenas como fruto de uma História Cultural que anseie, inicialmente, examinar unicamente em estilo determinado objeto de pesquisa, desvinculando-se da sociedade que os produz. Findada esta lógica introdutória da História Social da Música enquanto forma de conhecimento, devemos perceber como se dá a vinculação da produção artística com o meio social no qual é produzida. Aceitando que existe uma interação entre a sociedade e o artista, devemos perceber que a produção faz a ponte entre estas duas margens, além, é claro, do fato de o artista, enquanto indivíduo, já fazer parte da sociedade como membro. Hoje, pensar em uma História Social da Arte requer a inserção da sociedade enquanto consumidora do modelo artístico criado e já encontramos autores que inserem esta relação produçãopúblico em suas análises16. Para tal, devemos levar em conta que o modelo musical de determinado autor é subordinado às percepções coletivas ocorrendo, a partir disto, uma interação entre gosto individual e gosto coletivo – de forma convergente ou divergente. O musicólogo francês Joël-Marie Fauquet já afirmou que “a música é uma linguagem coletiva. Como as outras artes, ela elabora os signos sensíveis pelos quais os homens de um momento do mundo revelam sua vontade e esperança”17. E mais, o antropólogo argentino Néstor Garcia Canclini também afirmara acerca da importância da inserção do artista em seu momento sócio-cultural: [as artes não representam] as ideias do artista, nem vacuidades como ‘a sociedade’ em geral ou o ‘momento histórico’. A arte representa as contradições sociais e a contradição do próprio artista ente a sua inserção real nas relações sociais e a elaboração imaginária dessa mesma inserção18. Devemos pensar, portanto, que a produção musical atende a uma necessidade social sem prejudicar a necessidade individual de representação do compositor, ou seja, este deve estar consciente dos anseios de seu público enquanto produtor estético19. Além desta percepção da música inserida no núcleo social, podemos lembrar que ainda 15 RAYNOR, Henry. Op. Cit. p.14 Como exemplo na música, cf.: RAYNOR, Henry. Op. Cit. 17 FAUQUET, Joël-Marie. La musique et le pouvoir. Paris: Aux Amateurs de Livres, 1987, p.15. 18 CANCLINI, Néstor García. A socialização da arte: teoria e prática na América Latina. 2ed. São Paulo: Cultrix, 1984, p.27. 19 FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 3ed. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1971. 16 26 é possível a discussão, socialmente orientada, das características ideológicas das produções musicais. Partindo da lógica de que a música é sempre socialmente relacionada notamos que as classes sociais que percebem esta ou aquela peça devem ser levadas em conta e problematizadas. Theodor Adorno afirmou certa vez que a música pode ser compreendida como ideologia, o que acaba por ser uma das funções das análises sociológicas e historiográficas. Para este sociólogo alemão a música se torna ideologia quando se torna objetivamente falsa ou quando ocorre contradição entre a sua determinação e a sua função, e mais: a música é ideologia quando se coloca como criadora de uma falsa consciência, buscando auxiliar e, muitas vezes, manter as contradições sociais existentes20. Percebido que a música apenas pode existir na sociedade, assim como qualquer outra manifestação artística, podemos enxergar que as obras tem sempre uma função, mesmo que esta função vá se modificando ao longo dos tempos, através de uma série de reapropriações, e partindo da análise da política, da cultura, da sociedade e mesmo da economia de uma época, conseguimos compreender determinada produção, uma vez que o autor está, também, inserido em um contexto macro. Dessa forma, a História Social da Música, enquanto um novo campo possível para a análise, deve ser pensada a partir da lógica de um sujeito coletivo de composição, assim, o compositor escreve aquilo que encontra determinada circulação social ou aquilo que, direta ou indiretamente, critica a possibilidade de circulação. Hoje, este campo ainda inexplorado, destarte seus problemas e dificuldades analíticas, oferece aos pesquisadores uma nova seara a ser desvelada. Seara esta que amplia o próprio olhar do historiador, uma vez que não pode existir História da Arte separada de quaisquer outros tipos de práticas historiográficas. Por último, devemos lembrar que, além de sempre possuir um espaço pífio na historiografia contemporânea, a História Social da Música – principalmente aquela chamada de clássica ou erudita – apresenta-se como um complemento às novas possibilidades de objetos da História: outros modelos fontísticos não só já encontraram o seu espaço bem como hoje são alguns dos modelos mais debatidos e produzidos além, é claro, de já terem se constituído teórico- 20 ADORNO, Theodor Wiesegrund. Idéias para a sociologia da música. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Coleção Os Pensadores). ______. Introdução à sociologia da música. São Paulo: Editora UNESP, 2011. 27 metodologicamente, como é o caso das análises das produções fotográficas e, mais notadamente, da literatura e do cinema21. Vale ressaltarmos, contudo, que a divisão feita neste trabalho entre estas três áreas atende às expectativas de nossos trabalhos. Contudo, não é um modelo de interpretação único. Podemos lembrar, por exemplo, que outros autores, como o professor Marcos Napolitano22, dividem as pesquisas de forma diferente: "Grosso modo, a abordagem acadêmica da música divide-se em três grandes áreas: a Musicologia histórica, a Etnomusicologia e um terceiro campo, ainda confuso, que poderíamos chamar de “Estudos em música popular”, congregando Sociologia, Antropologia e História.”23 Todavia, discordamos deste autor e de aqueles que seguem esta proposição, uma vez que não é analisada a possibilidade de se inserir os aparatos metodológicos na área da Música Erudita. Desta forma, estes inserem a Música Erudita dentro da Musicologia Histórica, disciplina esta que possui os problemas de análise demonstrados anteriormente – e mais, no caso citado, o próprio autor, simplifica esta possibilidade disciplinar como sendo, apenas, o “estudo da vida e obra dos compositores e das formas eruditas”24. 21 Para as discussões acerca da utilização da fotografia, cf: LIMA, Solange Ferraz de. CARVALHO, Vânia Carneiro de. Fotografia: usos sociais e historiográficos. In: PINSKY, Carla Bassanezi. LUCA, Tania Regina de (org). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011, p.29-60 e MAUAD, Ana Maria. LOPES, Marcos Felipe de Brum. História e Fotografia. In: CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo (org). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p.263-282. Para as discussões acerca da utilização do cinema, cf: VALIM, Alexandre Busko. História e cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo (org). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p.283-300. Para uma interessante análise conjunta entre cinema e fotografia, cf: CARDOSO, Ciro Flamarion. MAUAD, Ana Maria. História e imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo (org). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.401-418. Por último, para a análise da relação entre a história e a literatura e das possibilidades metodológicas desta conjunção, cf: FERREIRA, Antônio Celso. Literatura: a fonte fecunda. In: PINSKY, Carla Bassanezi. LUCA, Tania Regina de (org). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011, p.61-92 e CARDOSO, Ciro Flamarion. História e textualidade. In: CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo (org). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p.225-242. 22 NAPOLITANO, Marco. A história depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2010, p.235-290. 23 Idem, p.254. 24 Idem, p.255 28 1.2 História Social da Música: problematizações metodológicas em forma de breves apontamentos. Já no início da Idade Moderna, percebeu-se que aquilo que fundamentava qualquer modalidade científica era a característica metodológica que algumas disciplinas carregavam. Desta forma, temos a História, enquanto ramo do conhecimento humano, plenamente estabelecida a partir deste momento – sua metodologia e seu escopo no entanto permaneceram se transformando ao longo do tempo até nossos dias fazendo com que atenda às demandas do presente, daí a célebre frase do filósofo, político e historiador italiano Benedetto Croce: ‘toda história é contemporânea’25. Ao chegar no século XIX, essa necessidade de questionamentos e percepções metodológicas atingiu, simultaneamente, a necessidade de se questionar o papel das narrativas e mais, o século XIX elegeu a neutralidade como principal característica dos historiadores, assim sendo, a função do método histórico passou a ser a validação das documentações encontradas afastando, portanto, os questionamentos subjetivos dos autores. Todavia algumas especialidades da História, como a História Social da Música ainda não foram pensadas no que tange a sua própria metodologia. O que se segue, agora, é um breve esboço de apontamentos metodológicos desta nova possibilidade fontística. Primeiramente podemos lembrar que cada modelo de fonte requer uma avaliação cautelosa a partir do momento no qual precisemos criar uma tipologia metodológica para a sua análise. A música, enquanto objeto de estudo historiográfico não foi, ainda, colocada no centro das discussões acerca de suas possibilidades e características metodológicas e, como Adorno já afirmara, não deve existir separação entre o método e o objeto uma vez que cada fonte possui determinada peculiaridade que a define 26. Mas ficam algumas questões: o que é aquilo que chamamos de metodologia e qual a sua função na análise historiográfica. Entendemos metodologia como a sequência procedimental criada para se resolver determinado problema ou atingir certo resultado. Desta forma, o método é o ‘como fazer’ a pesquisa27. A constituição de um método específico para cada pesquisa é 25 CROCE, Benedetto. História, pensamento e ação. Rio de Janeiro: Zahar, 1964. ADORNO, Op. Cit. (1980). 27 Dúvida comum é a separação do método e da teoria. A teoria é o ‘modo de ver’ determinado objeto buscando uma coerência que possibilite as pesquisas. Teoria e Metodologia, desta forma, devem estar em consonância para a realização do trabalho científico. E mais: a utilização de novas possibilidades 26 29 de extrema relevância uma vez que os objetos, contextos sociais e tempos históricos não serão iguais. Partindo disto, a repetição de métodos como fórmulas matemáticas fixas deve ser problematizada no interior das ciências humanas e sociais. Portanto, o método, sempre pensado e problematizado, é importante para não se reduzir as fontes ao óbvio uma vez que os documentos não falam sozinhos, apenas respondendo as perguntas que lhes são colocadas, como alguns historiadores, notadamente os positivistas, pensavam no passado. No caso da História Social, os modelos metodológicos se ampliam em demasia uma vez que, como podemos perceber, não existe limitação para as fontes nesta subespecialidade enquanto dimensão historiográfica. Não ocorrem tais limitações uma vez que qualquer produção humana, individual ou coletiva, consciente ou inconsciente, é socialmente orientada estando, assim, inserida em redes de cultura, política e economia. Logo, a escolha das fontes é orientada pelos problemas e hipóteses surgidos durante a pesquisa. Podemos perceber, então, a partir desta perspectiva teórico-metodológica, que os fatos sociais estão nas mais variegadas partes da estrutura humana de vivência assim sendo, devemos, obrigatoriamente, ampliar a percepção daquilo que identificamos como documento histórico28. Neste sentido, a derradeira ordem de tratamentos metodológicos corresponde à (...) eleição de um recorte privilegiado que funcione como lugar de projeção das atitudes coletivas ou de poderes de sensibilidade. Pode ser um microcosmo localizado ou uma vida, desde que o autor considere significativos para a percepção de uma mentalidade coletiva mais ampla29. A partir desta percepção, entendemos que a lógica de metodologia pode ser encontrada, por exemplo, na percepção de recortes coletivos – sociais no sentido lato – ou no recorte de apenas um indivíduo desde que, neste ator, identifiquemos a possibilidade de existência de um sujeito globalizante30. No caso da análise da música metodológicas e teóricas assegura à História no novo século que se apresenta uma pluralidade científica não pensada anteriormente. 28 BARROS, Op. Cit. p,40. 29 Idem, p.41 30 Este termo foi, originalmente empregado pelo medievalista francês Jacques Le Goff a partir do momento em que este autor reconhece que a escolha de um sujeito para uma análise deve ser orientada pela presença de características macros (cultura, sociedade, política e economia) neste microcosmos que constitui a vida de um indivíduo. Assim sendo, Le Goff traz a possibilidade da análise de trajetórias de vidas (biografias) para o cerne da escrita da história (LE GOFF, Jacques. São Luís: biografia. Rio de 30 enquanto forma de expressão e prática artística, a compreensão deve levar em conta ou o ser coletivo ou o indivíduo e, numa possibilidade maior, ambos os fatores31. A principal dificuldade metodológica, no caso desta fonte artística que é a música, é a localização das possibilidades de críticas, tanto a interna quanto a externa. Internamente, a obra deve ser ouvida variadas vezes e, se possível, em várias interpretações distintas que possibilitarão ao historiador identificar as nuances interpretativas possíveis o que possibilita a percepção dos mais diversos prismas da obra. Essa audição, no entanto, no caso da música partiturada, deve ser realizada com a leitura da própria partitura – neste quesito os historiadores ainda não possuem, infelizmente, um domínio razoável para a análise; no caso da música dita popular geralmente não ocorre a partituração da peça o que pode facilitar este tópico, uma vez que, este modelo musical é mais aberto a improvisações. A crítica externa, por sua vez, deve levar em conta, para a afirmação da obra como fonte histórica, a autoria, as condições sociais, políticas, econômicas e culturais de produção – tanto do autor quanto do meio no qual está inserido –, a historicidade, as representações simbólicas, bem como a recepção e a circulação deste fenômeno artístico. Também deve ser claro que o trabalho não será capaz de finalizar todas as possibilidades de análise de determinada peça32 – principalmente num mundo no qual a História se apresenta como portadora de uma verdade hermenêutica, interpretativa e, por isso mesmo, subjetiva. A música, assim como qualquer outra produção artística, possui uma função historicamente determinada e, em alguns momentos, a sua função acabou por encontrar a necessidade política e social afastando-se, assim, das características que o século XIX propôs: a elevação per se do espírito humano em uma produção intelectualmente superior e global. Destarte, faz-se necessário localizarmos a relação entre a arte musical e a vontade política atingindo, assim, as características macro da estrutura da existência incluindo, nesta estrutura, a própria população ouvinte das obras. Logo se deve problematizar não apenas a música ou o compositor ou músico mas, também, a vida Janeiro: São Paulo: Record, 1999). Outros autores, como o historiador francês François Dosse, já demonstraram a necessidade da percepção individual como característica possível e necessária para a historiografia contemporânea (DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: EDUSP, 2009). 31 Como obra que privilegia as análises do coletivo, podemos mencionar RAYNOR Op. Cit. como obra que foca no indivíduo como produtor estético sem, no entanto, anular as possibilidades sociais, podemos lembrar de COELHO, Lauro Machado. Liszt: o cigano visionário. São Paulo: Algol, 2010. Por último, como obra que faz a nítida interação entre possibilidade de criação individual e modificações nas estruturas sociais, podemos citar o célebre texto: ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. 32 NAPOLITANO, Marco. Op. Cit. 31 musical do período, ou seja, o ouvinte, aqui compreendido como receptor. No mais, devemos mencionar que os autores muitas vezes inserem em suas obras características de percepção social e/ou política de forma indireta ou mesmo inconsciente, conforme já atestou Fredric Jameson33. A linguagem estética, mesmo que não seja o centro da análise proposta, também deve ser pensada. Para exemplificar esse relacionamento entre História, Estilo e Estética, podemos lembrar da classificação dos indivíduos, feita a posteriori, em Escolas Artísticas, como o classicismo, o romantismo ou o barroco, o que reduz a unidade de percepção já que o sujeito acaba sendo moldado (leia-se: modificado) para ser inserido nestas classificações, que acabam por funcionar como tipos ideais weberianos34. Dentre as características de estilos e percepções de beleza, marcamos que a utilização de determinados instrumentos musicais, formações de grupos, harmonias e possibilidades melódicas carregam, em si, as inovações técnicas sem, contudo, anular as características de percepções pessoais. Logo, a interação entre possibilidade técnica historicizada e percepção pessoal deve ser levada em conta. Analisar o conteúdo e a forma é fundamental: assim ocorre com o modelo de cantatas de Johann Sebastian Bach no barroco alemão dominado pela religiosidade da Reforma iniciada pouco tempo antes que ideologiza, mesmo que de forma indireta, determinado sujeito ou classe, inclinando-os a certa atitude. Todavia, percebemos que o método, no caso de uma História da Música com caráter de problematização social deve ser criado pelo pesquisador através da inserção de métodos da própria disciplina histórica com outras possibilidades, principalmente com aqueles aparatos metodológicos vindos originalmente da Musicologia e da Sociologia buscando atender suas demandas35. Desta forma, “a tarefa do historiador da arte [passa a ser] trazer à luz as ligações entre uma dada obra de arte e as estruturas sociais e processos históricos aos quais ela foi criada”36. Contudo, como qualquer fonte base, ou seja, como qualquer fonte eleita para ser a base dos questionamentos 33 JAMESON, Fredric. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Ática, 1992. 34 Henry Raynor (Op. Cit.) inovou neste sentido propondo este cruzamento entre a História, o Estilo e as modificações estéticas. Todavia, o texto do musicólogo inglês possui, ainda, aquilo que para a historiografia se configura como juízo de valor e de metodologia: as constantes adjetivações de personagens tidos como centrais na História da Música. Estes adjetivos iludem o leitor e o ouvinte modernos acerca da realidade histórica, social e cultural de determinada obra. 35 ADORNO. Op. Cit. CHIMENES. Op Cit. 36 TOSH, John. A busca da História: objetivos, métodos e as tendências no estudo da história moderna. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, p.243. 32 historiográficos em determinado trabalho, a música possui problemas e vantagens metodológicas. Dentre as suas virtudes, destacamos que este modelo de fonte possibilita ao historiador mergulhar no modelo de percepção estética e estilística de determinado período, bem como as suas críticas. Por outro lado, como fraqueza, a música deve ser cercada de outras fontes, aqui compreendidas como acessórias, de caráter plural evitando-se, assim, que a pesquisa se encerre em uma descrição da produção artística de determinado período e localidade, o que constitui erro metodológico e científico. Dentre as fontes complementares muitas vezes esquecidas, para citar algumas além das ditas oficiais com as quais os historiadores já trabalham desde o século XIX, podemos lembrar-nos das cartas, falas públicas, diários pessoais, textos autobiográficos, bem como quaisquer outros documentos produzidos pelo sujeito. As cartas demonstram fragmentos da existência social e a complexidade das relações humanas. As falas públicas, tais como discursos e pronunciamentos, quando existirem, também demonstram características do pensamento dos atores. A utilização destes dois modelos: cartas e falas públicas é complementar, ocorrendo um trânsito entre a exposição de ideias de forma privada e de forma pública. Também não podemos deixar de levar em conta, quando existirem, a escrita de diários pessoais que mostram a internalização de pensamentos e a autobiografia que demonstra a vontade de publicizar o que o próprio sujeito julgou relevante em sua existência privada e coletiva, bem como definir aquilo que buscou esquecer. O uso desta pluralidade de fontes complementares utilizadas para cercar as obras centrais que estão sendo analisadas na empresa historiográfica marca a complexidade da vida humana. Podemos lembrar que aquilo que determinado indivíduo demonstra em uma carta pode ser diferente daquilo que exprime em seu diário pessoal ou mesmo em cartas para outros, uma vez que apenas conhecemos determinado lado de nosso sujeito pesquisado37. Cremos, portanto, que a análise social da música não deve subordinar as características individuais, nem mesmo o oposto pode ocorrer. O que deve existir é uma interação entre micro e macro cosmos, entre indivíduo e coletivo. Não devemos, também, superestimar o contexto histórico nem o pensamento da época já que estes dois 37 Para maiores informações acerca destes modelos fontísticos, e como estes se inserem nas pesquisas Cf.:MALATIAN, Teresa. Cartas: narrador, registro e arquivo. In: PINSKY, Carla Bassanezi. Tania Regina de (org). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011, p.195-222. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Discursos e pronunciamentos: A dimensão retórica da historiografia. In: PINSKY, Carla Bassanezi. Tania Regina de (org). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011, p.223-251. CUNHA, Maria Teresa. Diários pessoais: territórios abertos para a História. PINSKY, Carla Bassanezi. Tania Regina de (org). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011, p.251280. 33 caminham em direção à construção das obras. Beethoven já demonstrou isto muito bem com sua Terceira Sinfonia (Op.55), dita Eroica, originalmente dedicada a Napoleão Bonaparte, escrita e executada no início do século XIX. No geral, graças às falhas metodológicas dos historiadores ao longo do século XIX e XX, a música acabou se transformando em ilustradora de determinado momento ou, no mínimo, em fonte secundária. Todavia, esta forma artística, metodologicamente problematizada e devidamente questionada não deve ser encarada apenas como complemento podendo, sim, ser o centro de determinados trabalhos historiográficos além da sempre encarada História Cultural. 1.3 A ópera: um esboço de sua história desde a sua formação até a configuração do nacionalismo romântico no decorrer do século XIX. O início da Idade Moderna viu surgir inúmeras modificações no aparato social, cultural e político no mundo europeu. Neste contexto, o território no qual melhor identificamos essas modificações é a região da península itálica. O panorama nesta região, ao longo do século XVI e XVII é de extrema descentralização política. Essa descentralização, apenas organizada durante o século XIX, possibilitou que um variado número de cortes se instalassem e disputassem a prevalência da produção artística neste conturbado contexto político-social. Esta disputa servia, a partir disto, para a afirmação do status quo dos territórios autônomos. Desta forma, podemos perceber que as manifestações artístico-culturais passam a ter plena relevância para a vida peninsular. Logo, política e práticas artísticas38 passam, então, a caminharem conjuntamente buscando a primazia de ambas dentro de determinada localidade. Este é o momento no qual surge a figura do mecenas39, sem a qual a produção do Renascimento e, em certa medida, do barroco seguiria rumos socialmente diferenciados 38 Preferimos, neste trabalho utilizarmos a ideia conceitual de práticas artísticas propostas por Jean Duvignaud (1970 e 1971) uma vez que este conceito abarca uma pluralidade de interpretações sociológicas que facilitam a localização das personagens estudadas bem como de nossas fontes no panorama historiográfico. Cf.: DUVIGNAUD, Jean. Sociologia da arte. Rio de Janeiro: São Paulo: Forense, 1970. DUVIGNAUD, Jean. Problemas de sociologia da arte. In: VELHO, Gilberto (org). Sociologia da Arte (volume 1). 2ed. [Textos básicos de ciências sociais]. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1971, p.23-36. 39 O termo mecenas deriva do nome de Caio Mecenas, figura política da Roma Antiga que auxiliou e manteve relevante número de intelectuais e artistas. O Renascimento italiano utilizou, por sua vez, o termo mecenas para se referir aos patronos, detentores de poder político e/ou econômico que financiavam intelectuais e artistas no início da Idade Moderna buscando a superioridade de seus territórios em detrimento de outros com os quais, indiretamente, competiam. 34 – rumos estes que definiram a vida artística europeia até o início do século XX. Destarte, podemos notar que a descentralização política da península italiana deve ser levada em conta e mais, é a própria chave para se compreender as características de apoio às mais diversas formas artísticas40, incluindo, aí, a musical. A música possuía posição singular neste panorama. Enquanto outras formas artísticas como a pintura e a produção de obras literárias encontravam posição social de prestígio, os compositores ocupavam as partes mais inferiores na hierarquia social, à exceção dos músicos que também ocupavam lugar de destaque no clero ou em famílias abastadas do período41. Logo, surgem dois questionamentos: em primeiro lugar devemos perceber que, neste caso, a prática musical possui posição específica ou, para utilizarmos o termo de Alphons Silbermann, a música possui uma estrutura social bem delimitada42; em segundo lugar, podemos perceber que os produtores artísticos deste momento produzem suas obras de forma anônima seguindo os modelos estéticos prédeterminados por seus superiores hierárquicos, dentro de características econômicas, pouco se impondo perante o modelo artístico. Neste panorama, a transição entre o Renascimento e o Barroco é inventado um modelo artístico capaz de condensar a interpretação teatral com as formas musicais vigentes no momento: a ópera43. Este gênero estaria plenamente estabelecido após Claudio Monteverdi (1567 – 1643) – é com este compositor que a ópera encontra a necessidade de retratar aquilo que é plenamente humano, as características mais profundas da alma como então era percebido, diferentemente das produções similares feitas anteriormente. A ópera, quando já estabelecida, sofreu uma série de influências que facilitaram sua divulgação, notadamente a influência da imprensa recém-criada e os embates religiosos entre os Católicos e os Reformistas que atravessavam a Europa do 40 Vale ressaltarmos que eram parte das relações do mecenato o próprio patrono, aqui chamado de mecenas, financiador e, muitas vezes, idealizador, das produções, o artista ou artesão, produtor da obra e a própria sociedade enquanto receptora periférica da obra, já que o principal receptor, neste contexto, é exatamente o próprio mecenas. 41 REGINA, Roberto de. A Música no Renascimento. In: MELO FRANCO, Afonso Arinos; et alli. O Renascimento. Rio de Janeiro: Agir, 1978. 42 Cf.: SILBERMANN, Alphons. Estructura Social de la Musica. Madrid : Taurus, 1961. 43 Devemos lembrar que utilizamos a noção de invenção deste gênero musical uma vez que as modificações nas criações musicais ocorriam de forma lenta já que esta prática artística ainda estava atada às funções sociais e religiosas. Com a ópera o fenômeno ocorre razoavelmente em ritmo mais acelerado e em menos de 20 anos o modelo operístico, como conhecemos hoje, estava plenamente delimitado. A ópera, portanto, deve ser compreendida como o modelo artístico-musical necessário para a sociedade italiana deste período, atendendo a claras funções sociais e tendo, por isso, uma estrutura cognitiva plenamente definida. Cf.: CASOY, Sergio. A invenção da ópera: a história de um engano florentino. São Paulo: ALGOL, 2008. COELHO, Lauro Machado. A ópera barroca italiana. São Paulo: Perspectiva, 2003. FISCHER, Ernst. Op. Cit. RAYNOR, Henry. Op. Cit. 35 momento. A partir de 1637 é inaugurada a primeira ópera com bilheteria da história e o público já pode freqüentar estas exibições. Este público constitui-se, no geral, de um grande número e a ópera, surgida nos centros aristocráticos, rapidamente já atingia uma massa. A ópera já era espetáculo. Após certo tempo Veneza passa a ser a maior produtora deste gênero e termina o século XVII mantendo seis teatros estáveis para as exibições. O período posterior, o Classicismo, buscando o equilíbrio e perfeição estética, vê se consolidar a característica que mais marcará a ópera até nossos dias: a afirmação da melodia como ponto central da obra musical. A partir do momento no qual a melodia está afirmada como parte superior da música, o gênero operístico ganha total liberdade. Juntando-se a este fator uma maior variação nas possibilidades dinâmicas – afinal os instrumentos foram se aperfeiçoando ao longo dos anos – a ópera foi se tornando cada vez mais popular deixando, por exemplo, os temas místicos de lado e buscando os temas do cotidiano e dos personagens palpáveis. Palpáveis como o público que já lotava os teatros de exibição. Infelizmente, no entanto, poucos compositores conseguiram manter a fama após o passar dos séculos e, hoje, quando se pensa em ópera clássica o nome de Wolfgang Amadeus Mozart é um dos únicos que nos veem à mente. E isso se deve, entre outros, a um fator singular: este compositor austríaco é um dos mais significativos indivíduos a fazer a transição entre os modelos de produção da escrita musical. O caso de Mozart é relevante, não apenas para o contexto de sua produção operística bem como de toda a sua obra, já que este é o autor que transita entre o modelo de composição artesanal e o modelo artístico. O sociólogo Norbert Elias, em seu texto acerca da vida, obra e contexto deste compositor44 nos oferece uma clara divisão entre os modelos citados: para Elias, o artesão é o indivíduo que trabalha de maneira ‘anônima’ subordinado a um modelo de formas pré-estabelecidas pelos conhecidos compradores de seu produto que pertencem a uma classe sócio-econômica superior a sua – é um empregado assim como Joseph Haydn que produzia sua obra para a rica dinastia dos Eszterházy; o artista, por sua vez, é o indivíduo que rompe com o modelo anterior: ele não trabalha subordinado estética e intelectualmente a um comprador nomeadamente conhecido e passa a poder produzir seu material de acordo com sua própria percepção estética, logo, a figura do comprador nomeadamente conhecido é 44 ELIAS, Norbert. Op. Cit. 36 substituída por uma série de compradores desconhecidos da mesma classe sócioeconômica do produtor – Elias identifica, com certa relutância, essa classe como sendo a burguesia em ascensão durante o século XIX 45. Deixando, assim, de ser um empregado, assim como um Frédéric Chopin, Robert Schumann ou qualquer outro representante desta modificação; este é o momento característico da transição entre a arte do XVIII e do XIX. Esse fenômeno – a transformação do artesão em artista – acompanhou, em certa medida, a transição do modelo artístico-criativo saindo do Clássico e atingindo o Romântico. Analisando as modificações semânticas ocorridas na Europa, percebemos que o contexto de transição entre o século XVIII, marcado pelo Classicismo, para o século XIX, Romântico por excelência, viu a transformação da própria palavra arte: originalmente arte era um atributo humano no sentido de habilidade passando a significar um grupo específico de habilidades criativas. Arte passou a ser considerada uma “verdade imaginativa”. Além disso, o termo estética, passa a significar a descrição e avaliação da produção artística neste momento. 46 Chegamos, então, ao momento do romantismo, no qual o compositor encontrará, além de sua maior liberdade sócio-econômica, uma maior possibilidade de criação. Os românticos, enquanto grupo filosoficamente próximo, percebem a sua diferença aos modelos estabelecidos anteriormente e a busca por se afastar deste passado próximo marca as suas obras. Assim sendo, seguindo a lógica de Ernst Fischer, compreendemos romantismo como um movimento estético contraditório em seu interior – abarcando percepções filosóficas plurais mesmo mantendo certa unidade – que critica diretamente o estabelecimento de uma sociedade moderna nos modelos capitalistas instaurados até 45 Elias, contudo, mantém algumas questões relativamente abertas à pesquisas, mesmo fazendo pequenas análises acerca delas, uma vez que seu modelo se preocupa com Mozart enquanto transição entre Classicismo e Romantismo, as questões seriam: ‘Quais são as razões para a mudança na situação social dos artistas?’ e ‘Por que a transição de arte de artesão para a arte de artista não aconteceu simultaneamente em todos os campos artísticos? Ou em todos os lugares do mundo?’ Neste modelo, indivíduos como Leonardo da Vinci, Michelangelo ou qualquer outro submetido ao esquema de mecenato na Itália renascentista, por exemplo, acaba sendo afastado das possibilidades do artista, assim ficando restritos às características artesanais. Um dos outros problemas da análise proposta pelo autor, a partir destas conceituações, é a negação da presença da percepção individual do produtor dentro de sua obra como característica de afronte ao comprador, característica essa tão comum no próprio renascimento. Outro ponto esquecido é a possibilidade de aplicação deste modelo ao século XX. Neste, vários artistas no sentido lato vieram de classes sócio-econômicas inferiores às de seus compradores e acabaram enriquecendo e, portanto, mudando de classe após venderem suas obras. Surgiria então uma pergunta: esses indivíduos ficariam em qual classificação? Há, então, a possibilidade de um mesmo indivíduo existir simultaneamente nas duas concepções teóricas? Seriam artesãos, artistas ou algo transitório, indefinido pelo autor? Mais do que uma conceituação ampla, Elias oferece um claro projeto para as análises da música do classicismo e do romantismo, mas não para antes ou depois dos problemas propostos, por isso nossa escolha por esta percepção teórica. ELIAS, Op. Cit. p.135-136. WILLIAMS, Raymond, Op. Cit, p.17-18. 37 então, criticando, assim, a sociedade e a política conturbada do momento47. Dessa forma, o conceito de romantismo não pode ser compreendido sem a idéia das revoltas e revoluções tão presentes no século XIX. Porém, essa idéia de revolta deve ser problematizada. O século XIX assistiu a uma interação de dois tipos básicos de atitudes revoltosas – logo, o conceito de revolta deve ser ampliado. Uma primeira atitude revoltosa é caracterizada pelas inúmeras manifestações revolucionárias e de conflitos reais entre grupos sociais e forças políticas, assim como as revoltas de 1830 e 1848. Contudo, falando de caracterizações românticas, é necessário lembrarmos que os românticos – se percebendo assim – utilizam-se de outras formas de revoltas, a mais marcada sendo as atitudes escapistas ou evasivas. Este é o momento no qual os indivíduos, insatisfeitos com sua realidade e não dispostos a participarem de movimentos revolucionários, abandonam a realidade que os cerca. Esse escapismo ocorrerá de duas maneiras: primeiramente temos as formas escapistas reais, na qual os indivíduos retiram-se de sua realidade fisicamente, como é o caso de Chopin e sua estadia em Maiorca, de Franz Liszt e seu ingresso na igreja ou a visita de Delacroix ao Marrocos; em segundo lugar, temos as formas de escapismo na própria criação artística, na qual os autores buscam refúgio ante a realidade vivida em outros tempos, outros locais e culturas, na morte, na loucura e no sonho. Essa característica ambivalente da revolta influenciou de forma direta ou indireta a produção artística e intelectual da época, conforme atestam as músicas de um Beethoven, as pinturas de um Goya, e os textos de um Victor Hugo ou mesmo as obras de um Herder ou de um Schiller. Essa ambivalência, criada e motivada pelos próprios autores, levou o século XX a ler as atitudes românticas apenas como filosoficamente e/ou artisticamente relevantes, esquecendo as origens político-sociais de sua essência. Assim, os românticos passaram a ser vistos sem seu motivador social, sendo a primeira classe que romperia com a política. Essa característica equivocada ainda impera nos livros de análise e alguns poucos pensadores, como Raymond Williams48, demonstram que o que realmente ocorre com o romantismo é uma nova forma de leitura da realidade, leitura essa que privilegia, como nenhuma outra anteriormente, as atitudes políticas e sociais. A emancipação proporcionada aos compositores permitiu que cada um dos indivíduos se localizassem sócio-politicamente. Esta auto-localização fez com que a maior parte dos compositores percebessem a necessidade nacional que, então, cruzava a 47 48 FISCHER, Ernst. Op. Cit. WILLIAMS, Raymond. Op. Cit. 38 Europa. No caso dos compositores operistas, passaram, posteriormente, a ser agrupados no que chamamos de Escolas Nacionais, ou seja, os compositores foram inseridos de acordo com suas percepções nacionalistas49. Estes sujeitos, tais como Berlioz, Glinka, Weber, Wagner e Verdi, viram que a música mais do que qualquer outra forma artística se deixa impregnar por princípios nacionais50. Desta forma, começaram a moldar sua produção buscando uma unidade para se vincular a estas características nacionalistas51 e as obras passaram a ser utilizadas como força criadora de sentimentos comunitários. A nação, partindo desta lógica, é mais imaginária do que real, logo, as metáforas usadas para fundamentá-las e mantê-las, como as óperas no século XIX, possuem grande força: A política, a ascenção e queda de Estados influíram no curso da música, pois qualquer arte que exija os serviços de grande número de executantes qualificados precisa de apoio de considerável riqueza, e por esta razão os triunfos e vicissitudes das nações, governos e seus domínios também afetam o trabalho dos músicos.52 No mais, durante o romantismo europeu do século XIX três modelos operísticos foram relevantes: o modelo francês, mesclando o cunho nacional com o livre; o italiano, considerado o principal no contexto, focado nos personagens e classes do contexto – que também mesclava o nacional com o livre; e o alemão, modelo mais jovem e responsável por questionar o tradicionalismo italiano que entraria em declínio durante o próprio século porém que alcançaria sucesso ao ser convertido em drama musical. Destarte, a ópera, originalmente escrita para uma elite aristocrática, ao longo do tempo foi se adaptando a uma maior possibilidade de público e rapidamente variadas classes sociais passaram a frequentar o espetáculo, basta lembrarmos que exibições públicas e a baixo custo ou mesmo grátis eram comuns no século XIX. 49 Chamamos neste trabalho de Escolas Nacionais o agrupamento real ou criado a posteriori de autores, compositores e pintores que devem ser compreendidos a partir do fenômeno do nacionalismo em seus respectivos territórios no século XIX, como é o caso de Chopin na Polônia, Liszt na Hungria, Wagner na Alemanha e Verdi na Itália. A utilização do termo escola ou onda, em nosso ponto de vista, é mais correta do que a clássica denominação geração, uma vez que a utilização deste termo implicaria na presença de toda uma sequência temporal de autores inseridos nesta temática ou neste mesmo padrão funcional da arte o que, certamente, não ocorreu. 50 ADORNO, Op. Cit. 51 Compreendemos nação como sendo a detentora da possibilidade de criar sentimentos de igualdade nas comunidades às quais se insere. Cf.: GUIBERNAU I BEDRUM, Montserrat. Nacionalismo: o Estado Nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1997. 52 RAYNOR, Op. Cit. p.23 39 1.4 História Social da Música: a possibilidade e a aplicabilidade metodológica no caso da ópera: questões e apontamentos. A forma, no caso da Música chamada Erudita marca a sua especificidade e, dentro desta especificidade, a ópera se destaca como o modelo que mais aproxima o autor de seu contexto e do próprio público, uma vez que a representação ocorre, também, nas formas orais e visuais, além da musical, fator este que, no geral, facilita a compreensão da obra e das ideias do compositor. Por esta característica, a ópera deve ser problematizada e compreendida como possibilidade de fonte para a escrita da História, porém esta escrita encontra uma série de dificuldades (e possibilidades) metodológicas. A música foi a última forma artística a entrar nas análises sociológicas e históricas e ainda na década de 1980 raros eram estes estudos. Tratada como fonte histórica a música, por excelência, e isso não é uma característica apenas da ópera enquanto gênero, mescla o conteúdo objetivo com o subjetivo e esta característica, a localização da fronteira entre subjetivo e objetivo, entre conteúdo e forma, é uma das principais dificuldades desta escrita53. Apesar de outras formas artísticas também mesclarem o objetivo com o subjetivo, a música, especificamente a ópera, encontra uma subjetividade demasiadamente complexa no tangente à análise: no geral, apenas se analisa letra, conteúdo verbal, e poucas vezes ocorre uma reflexão acerca da melodia, harmonia e forma54. O problema central destas análises reducionistas é que as características gerais da música são inseparáveis. É regra na pesquisa da ciência histórica o historiador conhecer a linguagem de seu material trabalhado e no caso da ópera, percebem os problemas que devem ser resolvidos antes da empreitada historiográfica. Em primeiro lugar encontramos as características idiomáticas: nesta característica podemos perceber que a ópera deve ser compreensível ao idioma do historiador. Enquanto música com texto cantado, o pesquisador deve, além de conhecer o idioma da peça, caso não seja o seu, conhecer os termos da época e a estrutura poética do momento no qual o compositor viveu. Outro problema relevante é o acesso à especificidade da partitura operística, muitas vezes mais 53 FISCHER, Op. Cit. p.205. Nesta dissertação trabalhamos diretamente com a produção operística, porém, devemos marcar que, além da ópera, a produção de música instrumental também encontra amplas dificuldades de análise e mais, sem dúvidas este modelo ainda é muito pouco pesquisado e os trabalhos que utilizam este material como fonte são, no geral, de pouca relevância ou profundidade científicas. 54 40 complexa do que a partitura de outras obras eruditas: mesmo com os historiadores muitas vezes se interessando por pesquisas musicais, eles tendem a evitar a ópera devido à complexidade de acesso a esta linguagem: a música não exprime conteúdo diretamente [...] mesmo quando acompanhada de letra, no caso da canção55, o seu sentido está cifrado em modos muito sutis e quase sempre inconscientes de apropriação dos ritmos, timbres, das intensidades, das tramas melódicas e harmônicas dos sons”56. Esta linguagem musical, ou seja, a textura, a instrumentação, a disposição da letra, entre outros deve ser compreendida como um mecanismo interno de linguagem, desta forma, deve ser pensado com as possibilidades artísticas-culturais do contexto existente. O historiador deve, portanto, levar em conta a ópera como um todo, incluindo as características composicionais às quais apenas aqueles que já estudaram música terão acesso. Nas palavras do professor Marcos Napolitano podemos perceber a importância de fazer interagir a constituição da música e da letra: “na música, a textura, ou colocação de uma voz, os timbres e o equilíbrio entre os instrumentos, o andamento e as divisões de rítmicas e melódicas, são estruturas que interferem no sentido conceitual, corpóreo e emocional de uma letra”57. A criação operística inclui a elaboração de um texto – chamado de libretto. Este, geralmente distribuído ao público contem os diálogos e as principais informações acerca da dinâmica cênica que a ópera possui. É mais comum, todavia, que este texto não seja elaborado pelo compositor e, quando disso, devemos levar em conta a figura do indivíduo responsável pelo texto, o libretista. Desta forma, localizar a relação deste com o seu próprio mundo, sua percepção social, política e artístico-cultural, seu relacionamento com o compositor e com os financiadores da ópera que ambos estão produzindo é fundamental. Outro ponto referente ao libretto, material primário sobre o qual a música será escrita, é a análise da função que cada personagem criado representa na trama. Algumas óperas, apesar de terem o mesmo tema, muitas vezes até com os mesmos personagens, possuem modificações no tangente à função que o personagem exerce na peça. Isto ocorre pelas mudanças nas percepções da relevância de 55 E no nosso caso, da ópera. CONTIER, Arnaldo. Brasil novo: música, nação, modernidade. Tese de livre-docência, São Paulo, História/USP, 1986. 57 Apesar deste texto estar se referindo diretamente à análise das músicas populares contemporâneas, é plenamente aplicável às produções operísticas a partir do momento de sua popularização, principalmente após o século XIX. NAPOLITANO, Op. Cit. p.267. 56 41 determinado papel que se modifica de acordo com as necessidades e percepções sócioculturais. Outro ponto que as análises operísticas devem levar em conta é a especificidade das figuras dos financiadores e dos compradores da produção. A análise da ópera, mais do que dos outros gêneros musicais, incluindo aí as sinfonias e sonatas necessita desta percepção já que estas personagens possuem específicas características que modificam a análise. Isto se deve ao próprio gênero da ópera em si: uma vez que a peça é escrita para ser representada em determinado momento, devemos lembrar que ela utilizará, além dos músicos instrumentistas, cantores, cenógrafos, funcionários dos teatros e, acima de tudo, um modelo de teatro específico que possibilitará a interação entre estes personagens: a casa de ópera. Desta forma, e percebendo-se que o compositor, até o século XX, não está inserido nesta possibilidade econômica, devemos problematizar quem são os financiadores, quem são os indivíduos que fazem as encomendas e quem é o público, compradores, que possibilitam a manutenção de todos estes. Logo, percebemos que, passa a ser necessário levar em conta a figura da recepção e de circulação das ideias colocadas neste aparato artístico mesmo que este não seja o cerne do trabalho – herança que a historiografia recebeu diretamente de áreas como os Estudos Literários e a Sociologia – Apesar desta herança ser necessária, esta também criou uma zona de conforto dificultando que os historiadores criassem, para a análise operística, um método próprio para a análise mais geral, buscando uma possibilidade holística. No mais, podemos lembrar também que devemos levar em conta o local de representação, uma vez que a ópera é escrita para um lugar específico, a relação entre este lugar, representante do poder econômico, produção e audiência. Seguindo o exposto, podemos perceber que o texto operístico – libretto e música – devem ser analisados metodologicamente a partir de um mescla entre o texto em si e seus aparatos representativos e a sua percepção social, ou seja, a apropriação e a circulação do produto estético. Em primeiro lugar, buscando uma análise holística, devemos analisar os elementos em separado: letra, timbres e harmonias para só depois analisarmos a obra como um todo. Destarte, representações e circularidade/apropriação ficam para uma analise posterior, mais densa e profunda. A ópera possui uma facilidade em relação à música popular contemporânea: a partitura. A partitura demonstrará as variações de timbre, melodias e harmonias, que possibilitam, também, a melhor compreensão de personagens e ideais contidas na peça – daí a importância do autor ter conhecimento de teoria musical. No mais, a ópera, enquanto aliança entre literatura e 42 música, deve ser vista e ouvida variadas vezes e em variadas apresentações para criar a possibilidade heurística deste objeto, ou seja, apenas com a inserção do historiador no seu objeto ele conseguirá fazer sua análise científica. O musicólogo Henry Raynor afirmou que: O empenho de relacionar o desenvolvimento da música com o mundo no qual ela existe e considerar o relacionamento do compositor com o mundo econômico e social em que viveu é responder a várias questões que, embora decisivas, não são respondidas pelos historiadores dos estilos.58 Desta forma, não basta pensar apenas a obra em si, com suas características estilísticas, mas sim, a obra como produto de determinado quadro social que possibilite a sua feitura, execução, representação, apropriação e circulação, além, é claro, de ser o aparato econômico da relação entre o compositor e seus ouvintes, sem importar em quais classes sociais estes estão. Notando que a música, e no caso da ópera isso é mais patente ainda, pode e deve ser utilizada como fonte principal para a escrita de uma História Social percebemos a necessidade da configuração e problematização de uma abordagem metodológica que possibilite esta empreitada. Ramo ainda inexplorado devido, principalmente, à dificuldade de acesso a essa linguagem, a música, na historiografia contemporânea, briga por seu espaço na produção da História enquanto ciência. 58 RAYNOR, Op. Cit. p.25 43 PARTE II O ARTISTA POLÍTICO NO SÉCULO XIX: O CASO ALEMÃO EM RICHARD WAGNER E O ITALIANO EM GIUSEPPE VERDI EM PERSPECTIVA COMPARADA CAPÍTULO II: WAGNER 2.1 A Alemanha: estrutura política e cultural na formação de Richard Wagner A estrutura política dos Estados que formariam a Alemanha no início do século XIX era extremamente dividida e descentralizada. Assim, esta localidade, originalmente chamada de Sacro Império Romano da Nação Germânica reuniu, desde o século XV, uma grande quantidade de cidades autônomas, principados e cidades administradas pela Igreja, num total de mais de 300 territórios. Essa complexa estrutura acabou por permitir grandes diferenciações sociais, políticas e econômicas que diretamente influenciaram na configuração do romantismo alemão enquanto forma artística principal. Este romantismo, originado em toda a Europa com o acentuado crescimento da classe burguesa e da pobreza que culminaria na Revolução Francesa estruturou-se, na Alemanha, a partir do movimento literário Sturm und Drang1, que “preconizava os sentimentos em detrimento da razão, a volta ao primitivo, a ruptura com a rigidez dos gêneros proposta pelos clássicos, a liberdade de criação”2, além, é claro, das atitudes escapistas nas mais variadas formas, da idealização do herói e do amor . O romantismo, na música, por sua vez, originou-se a partir de Ludwig van Beethoven durante a transição entre os séculos XVIII e XIX, período da Revolução Francesa, da qual o compositor era um entusiasta; ou seja, se enquanto literatura as origens estão voltadas ao interior dos homens, enquanto música está encaminhado diretamente ao político. Foi neste contexto que nasceu, na cidade independente de Leipzig – estado da Saxônia, Wilhelm Richard Wagner, em 22 de Maio de 1813, durante as Guerras de Libertação, evento que iniciou a Batalha da Nações, que findaria com o Império Napoleônico na Germânia. Logo, é evidente que a identidade alemã acabou ficando ligada à ideia de uma cultura e língua única e não a qualquer território ou razão de estado bem delimitados. Língua, cultura e identificação histórica comum uniam esta população e nada além disso podia garantir a unidade do Império. O compositor acabou ficando conhecido durante o século XX basicamente por dois fatores: em primeiro lugar seu modelo operístico específico e, em segundo lugar, pela releitura e utilização das obras – artísticas ou não – pelo regime nazista, devido à especificidade de seu 1 Tempestade e Ímpeto. Este é o título da peça de Friedrich M. Klinger, de 1776 que acabou por se transformar na nomenclatura do período e do estilo. 2 OLIVEIRA, Clenir Bellezi de. Arte literária: Portugal – Brasil. São Paulo: Moderna, 1999, p.139. 45 pensamento nacionalista e étnico. Enquanto Wagner ainda era criança a estrutura organizacional do território germânico acabou se transformando profundamente e, a partir de 1815, o antigo Sacro Império foi substituído pela Confederação Germânica que, agrupando cidades em territórios maiores e melhor administrados, mantiveram sua hereditariedade monárquica, com a presidência honorífica da Áustria, um dos dois territórios mais poderosos – o outro era a Prússia. Imagem1: Richard Wagner3 Ainda jovem, Richard Wagner teve contato com o teatro antigo e com a cultura greco-romana, chegando a traduzir textos do grego arcaico para o alemão. Esta característica de desenvolvimento intelectual de nossa personagem marcará sua concepção de arte para o seu mundo. Esta juventude, marcada pelo início do desenvolvimento musical, principalmente de caráter nacionalista, de nossa personagem, presenciou, também, um evento que modificaria a curto prazo as possibilidades sociais da Germânia: as Revoluções de 1830. Esta revolução, iniciada em Julho de 1830 em Paris levou inquietação a todo o resto da Europa e, na Alemanha, que acumulava uma gama imensa de crises sociais, políticas e econômicas, revoltosos tentaram derrubar a modelo monárquico da Confederação Germânica, sem sucesso no entanto. Estes eventos influenciaram a percepção de vida do jovem compositor. A influência deste evento seria totalmente perceptível em pouco tempo, 18 anos depois, momento no qual Wagner ficaria disposto ao serviço revolucionário. 3 Óleo sobre tela retratando o compositor Wilhelm Richard Wagner produzido em Biebrich no ano de 1862 produzido por Cäsar Willich (1825-1886). A pintura encontra-se no Reiss-Engelhorn-Museen em Mannheim. 46 Após as revoluções de 1830 e como conseqüência destas, em 1834, 18 Estados da Confederação Germânica unificaram sua alfândega, medidas e moedas, através da União do Uso Geral da Alemanha [Deutscher Zollverein], buscando um maior crescimento econômico que atendesse às camadas populares que proporcionaram as revoltas. Com isto, a Prússia, líder do grupo, procurou evitar possíveis manifestações futuras. A ausência da Áustria em tal União Aduaneira ocorreu devido ao distanciamento político que esta mantinha com a Prússia e a sua ossificação econômica. Essa ausência austríaca determinaria a hegemonia, juntamente com o crescimento econômico e industrial, da Prússia, levando tal estado a ser o mais forte dentre os confederados, aquele que realizaria futuramente a unificação a partir do poder central e não das manifestações populares, como outrora pareceu que ocorreria4. Neste momento após as revoltas, Wagner começa a se dedicar àquele que será seu principal gênero: a ópera; e, entre 1833 e 1834 escreve As Fadas [Die Feen]. Deste mesmo ano, também é o primeiro ensaio wagneriano: A ópera alemã [Die deutsche Oper]5, voltado à análise da estética operística, que obteve grande circulação e encontrou excelente acolhida no interior dos movimentos nacionalistas alemães. Com este texto, já se delineava um compositor nacionalista. As revoltas de 1830 acabam levantando, novamente, uma reivindicação popular anterior: as questões democráticas. Estas, presentes desde a década de 1810 de forma intensa, atingem seu ápice em 1848, momento no qual as massas não estão dispostas a conviverem com o tradicionalismo político que dominava a região. Logo, iniciando na França, assim como outrora em 1830, a revolução se instaura e rapidamente se espalha pela Europa. Inicialmente triunfante em Viena e Berlim, as duas cidades mais importantes da Confederação, essa Primavera dos Povos6, se instaura em toda a Germânia com um nítido caráter nacionalista e unificador, agrupando as mais variadas camadas sociais. Os revoltosos, conseguem instaurar governos reformistas e realizar eleições para aquilo que seria uma Assembléia Nacional. Esta Assembléia se reuniu em 18 de Maio 4 BUND, Konrad. Panorama Histórico. In.: MILLINGTON, Barry. Wagner: Um compêndio: Guia completo da música e da vida de Richard Wagner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, p.51. 5 Para a nossa tradução deste texto para o português, cf: RICON, Leandro Couto Carreira. Por uma ópera alemã: Richard Wagner e o início de seu nacionalismo musical. Rio de Janeiro: Multifoco, 2012. 6 HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: Europa 1789 - 1848. 24ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009. 47 de 1848 em Frankfurt e elaborou uma constituição democrática visando afastar a monarquia presente. Conforme atesta o historiador Konrad Bund: A esquerda republicana, apoiando a idéia de uma Alemanha unida que incluísse todos os territórios de fala alemã, discutiu a organização futura de seu país com os direitistas que apoiavam uma monarquia constitucional federal (a unificação alemã só seria possível se os laços monárquicos da Áustria com territórios não-alemães, como a Hungria e a Itália, fossem cortados), enquanto os aristocratas contrarevolucionários na Áustria e na Prússia reorganizavam seus exércitos, no outono de 1848, e passavam a reinstaurar as antigas estruturas de poder por meio da força militar, impondo a seus súditos novas constituições, vindas de cima. Nisso, tiveram o apoio da Rússia e da Inglaterra, duas potências importantes e de antiga hostilidade às revoluções, mas também por parte da burguesia rica7, que observava com horror o movimento pela democracia, que não só ameaçaria seus privilégios de classe, como também daria poder político à massa do povo.8 Estas manifestações amplamente interessaram a Wagner e, logo, este começa a pronunciar discursos políticos revolucionários colaborando com o levante de Dresden, cidade na qual vivia, principalmente na confecção de bombas e vigia, acabando por militar ao lado do revolucionário anarquista Mikhail Bakunin como atesta em sua autobiografia: Um quadro interessante apresentou a cidade com as barricadas e eu, que me encontrava completamente inserido nos preparativos para a defesa da cidade, fiquei surpreendido ao ver que Bakunin havia abandonado seu refúgio para se juntar a nós usando trajes negros9. Ainda deste período, é a elaboração do texto A Revolução [Die Revolution] publicado no Volksblätter de Dresden no início de 1849. Neste texto, o compositor demonstra a necessidade de uma revolução que instaure novas formas de organização política e social na Europa. O texto foi amplamente divulgado e alguns detalhes de suas percepções foram adaptadas a seus textos operísticos. Assim, o compositor conseguiu levar ao público suas ideias políticas de forma indireta10. 7 Notemos aqui a necessidade de divisão do conceito de burguesia. A burguesia rica que o autor identifica aqui é a parte proprietária de indústrias e do grande capital para investimento. 8 BUND, Konrad. Op. Cit., p.54. 9 WAGNER, Richard. Mein Leben. In: FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben). Richard Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Directmedia: Berlin, 2004 [edição digital dos textos completos de Richard Wagner]. 10 Em oportunidade propícia, escrevemos um texto comparando a lógica revolucionária deste texto com a lógica revolucionária presente em determinadas óperas de Richard Wagner. Para mais informações, cf: RICON, Leandro Couto Carreira. Richard Wagner: revolução, panfletagem e música. Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 5, Nº32, Rio de Janeiro, 2010. 48 Imagem2: As barricadas de Dresden11 Quando o Levante de Maio estourou em Dresden no mesmo ano de 1849, Wagner junto com os outros revoltosos obtiveram sucesso. Porém, rapidamente, houve a repressão por parte do exército e vários revolucionários, como o próprio Bakunin e August Röckel, amigo pessoal do compositor, foram presos. Wagner, contudo, conseguiu fugir de Dresden após a publicação de um mandato de prisão em todos os jornais da cidade ao término da supressão do Levante. Imagem 3: Publicação nos jornais de Dresden sobre as atividades revolucionárias de Richard Wagner12. 11 Óleo sobre tela representando as tropas da Prússia e da Saxônia em Neumarkt (Dresden) e a barricada de rebeldes. A imagem é localizada de frente para a Moritzstraße. Sem informações acerca da autoria, o quadro encontra-se exibido no Museu da Cidade de Dresden. 12 Texto publicado no Dresden Anzeiger de 19 de Maio de 1849. No cartaz lê-se: “Procurado. Mestre-deCapela Richard Wagner daqui é convocado por sua participação essencial nesta cidade no movimento insurgente. Dresden, 16 de Maio de 1849. Delegacia de polícia da cidade. Oppell. Wagner tem entre 37 e 38 anos de idade, estatura mediana, cabelos castanhos e us óculos” [Tradução nossa]. Uma outra publicação no mesmo sentido também aparece nas fontes acerca do compositor. Nesta, podemos ler: “Wagner tem entre 37 e 38 anos; de estatura mediana, tem cabelos e sobrancelhas castalhos, fronte ampla; olhos cinza-azulados, nariz e boca bem proporcionados; queixo redondo, usa óculos. Sinais 49 Após os próprios conflitos, com a vitória das forças militares aristocráticas defensoras da contra-revolução e sendo procurado, Wagner foge para Weimar, onde Franz Liszt, que futuramente seria seu sogro, conseguiu escondê-lo e enviá-lo para fora dos territórios germânicos. Na sequência de infrutíferas tentativas de se estabelecer em Paris, asilou-se em Zurique, iniciando um exílio que duraria 12 anos. Durante este momento de amplas dificuldades financeiras, escreveu dois dos mais relevantes textos de sua obra teórica: A Arte e a Revolução [Die Kunst und die Revolution] e A Obra-deArte do Futuro [Das Kunstwerk der Zukunft]. No cenário da Confederação Germânica, novamente ratificada em 1850, vale ressaltarmos que a Prússia manteve sua soberania sobre os outros territórios com a criação de uma monarquia constitucional federalista. Porém, a economia já estava diversificada na mão de burgueses e o proletariado cada vez ganhava mais fôlego. A década de 1860 marcaria dois pontos importantes: um na existência da própria Alemanha e o outro na vida de Richard Wagner. Na década de 1860, Otto von Bismarck foi nomeado chanceler da Prússia e logo, em 1866, declara guerra contra a Áustria – Guerra Austro-Prussiana – visando sanar os embates acerca da supremacia militar, política e econômica no interior da Confederação. A Prússia, a partir do momento em que logrou êxito sobre a Áustria, desconstrói a Confederação Germânica, fundando a Confederação Germânica do Norte [Norddeutscher Bund]. Desta forma, a Áustria perdeu seu apoio nortista e a Prússia resolveu as questões enfraquecendo a rival. Após este momento de crise militar interna, chega o momento decisivo na constituição da Alemanha enquanto Estado. Napoleão III, tentando manter o próprio poder na França, buscou territórios na Germânia, o que diretamente gerou a Guerra Franco-Prussiana que se iniciou em 1870. Com a situação interna já resolvida, a Prússia consegue vencer os franceses proclamando, com isso, seu rei como Imperador em Janeiro de 1871 fundando, assim, o II Reich13. Neste ínterim, a Alemanha tornou-se uma das maiores sufocadoras de revoltas nos países vizinhos, uma vez que temia que tais revoltas alcançassem seus territórios e incentivasse seu povo às mesmas manifestações. Porém, a especificidade do nacionalismo germânico colaborou para a criação da nação alemã. Fala e costumes, além de identificação histórica, particulares: rapidez de movimentos e de fala. Vestimenta: sobretudo de pele de gamo verde-escuro, calças negras, colete de veludo, lenço de seda, chapéu de feltro comum e botas.” Cf. HAREWOOD (Ed). Kobbé: o livro completo da ópera. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1997, p.148. 13 O I Reich durou de 843 até 1806, o II Reich durou de 1871 até 1818 e o terceiro, coincidente com o regime nazista, prolongou-se de 1933 a 1945. 50 facilitaram o reconhecimento individual no povo alemão, o que diminuiu o número de conflitos internos após a unificação, já que os habitantes julgavam-se pertencentes ao mesmo grupo nacional14. Quanto a Wagner, este é o momento no qual sua vida mudaria completamente. Em 1864, Maximilino II, rei da Baviera, morreu deixando o trono para o seu filho de 18 anos, Ludwig II. Este jovem, um admirador de Wagner, convidou o compositor para fazer parte de sua corte, o que já era possível, uma vez que a anistia plena pela participação no Levante de 1849 já alcançara o compositor. Assim, este se muda para a corte e começa a trabalhar diretamente para o rei. Encontrando calmaria financeira, Wagner pode se dedicar amplamente ao trabalho. Deste momento, 1869, é a revisão de seu texto O judaísmo na música [Das Judenthum in der Musik], no qual confere amplos ataques à presença da comunidade judaica na cultura europeia15. A relação com o restante da corte, no entanto, não era das mais amistosas: o rei oferecia quantias demasiadamente altas ao compositor. E o compositor acaba saindo da corte retornando pouco tempo após. Em seu retorno, Wagner propõe a criação do teatro de festivais de Bayreuth, um teatro no qual, construído com ajuda econômicas de indivíduos ao redor do mundo além da contribuição da corte bávara, suas peças seriam executadas. O teatro manteve sucesso e até nosso tempo presente mantem a tradição musical alemã. O compositor faleceu em Veneza em 1883 e seu corpo está enterrado, hoje, naquilo que considerava a sua maior criação: o Festspielhaus de Bayreuth16. 2.2 Wagner: estilo A obra de Richard Wagner é uma das mais inovadoras do século XIX. Suas mudanças de percepção estilística fizeram com que a ópera atingisse um nível que ainda não tinha ocupado. Esse estilo, por demais específico deve, então, ser analisado e 14 HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. 3ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. “É claro que o anti-semitismo de Wagner não era um fenômeno isolado. Insere-se numa tradição histórica que, em função do contexto nacionalista, assume caráter muito concentrado no século XIX: a ideologia völkisch (popular), que pregava o retorno a um mundo mítico primordial, habitado por camponeses de puro sangue germânico, via como um corpo estranho a raça dos ‘judeus errantes’. E longe de ser uma distorção da periferia reacionária, essas eram ideias expressas até mesmo por membros da elite liberal e progressiva que, preocupados com a sua posição social e a possível proletarização na Alemanha recém-industrializada, não hesitavam em escalar os judeus como podes expiatórios.” Cf.: COELHO, Lauro Machado. A ópera alemã. São Paulo: Perspectiva, 2000, p.230. 16 Para uma biografia detalhada do compositor, uma vez que apenas apresentamos até agora os pontos relevantes para a compreensão do nacionalismo deste, ou seja, o período que se estende entre 1830 e 1850, cf.:GREGOR-DELLIN, Martin. Richard Wagner. Madrid: Alianza Editorial, 1983 [2 volumes]. 15 51 problematizado. Assim sendo, visando à compreensão da obra de Richard Wagner e principalmente a compreensão das óperas que aqui serão estudadas, recortamos os principais pontos acerca do estilo deste compositor, pontos estes que farão com que atinja fama singular e que ainda seja debatido hodiernamente. São eles: a busca pela história e pela Idade Média nas óperas; as modificações harmônicas; a representação das massas; a renovação e uso do Leitmotiv; a instauração do Drama Musical no lugar da ópera; e a tentativa de criação de uma Obra-de-Arte Total (Gesamtkunstwerk). O romantismo como um todo, e isso é mais visível no caso do romantismo alemão, principalmente em Wagner, fez uma releitura e deu uma utilização artística ao período da Idade Média. Em certa medida, isso ocorre como crítica ao ceticismo do período Iluminista e Clássico existente no passado imediato. No caso da Alemanha, essa característica ainda era mais notável devido, principalmente, ao emergente nacionalismo que dominava estes territórios desde as Guerras de Libertação. Esse nacionalismo identificava um passado unido e glorioso que atravessava todos os germânico. Esta ideia nacional de resgate atinge nosso compositor diretamente. Entre os anos de 1835 e final da década de 1840, Wagner, em seus estudos de mitologia e medievo germânicos, encontrou os temas de Tannhäuser, Lohengrin, a Tetralogia do Anel, Tristão e Isolda, Os mestres cantores de Nurenberg e Parsifal. Ou seja, em menos de quinze anos o compositor já havia definido o tema operístico de toda a sua vida, encontrando o tema para nove das suas treze óperas – as outras peças ou já estavam prontas ou em processo de término e todas levam em conta a história ou a mitologia nórdica de alguma forma. Os temas que regeriam estas óperas seriam, assim, a inevitabilidade do destino e a natureza destrutiva do amor. Apesar desta visão pessimista não ser a única que ocorria na Alemanha medieval ou na do momento do compositor, esta imperava no cenário artístico e Wagner a utilizou como meio estilístico de alcançar seu público, e demonstrar sua visão de mundo17. No entanto, não devemos superestimar as representações medievais feitas por Wagner em suas peças: ocorreram claras adaptações da lógica histórica para melhor se encaixarem no texto operístico. O compositor também inovou dentro da própria escrita musical, apesar de não possuir uma linguagem artística unificada. Para este, a linguagem musical deveria caminhar em conjunto com a falada, daí a relevância da ópera que conseguiria a perfeita 17 Para mais informações acerca da visão medieval do compositor, cf.: SPENCER, Stewart. A Idade Média de Wagner. In: MILLINGTON, Barry. Wagner: Um compêndio: Guia completo da música e da vida de Richard Wagner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, p.185-188. 52 comunhão. Herdeiro da tradição de Weber e Marschener em sua primeira ópera (Die Feen – As fadas) e de Bellini e Auber em sua segunda (Das Liebesverbot – O amor proibido), Wagner vai moldando sua própria escrita ainda jovem. Dentre estas, uma se destaca no campo puramente musical: as inovações harmônicas propostas pelo compositor. Diferentemente da maioria dos outros operistas europeus do século XIX, não partia da melodia para a construção musical; mas sim da construção harmônica para a identificação melódica. E mais, inova a partir da percepção das possibilidades atonais e cromáticas18. Iniciando sua vida artística pública como maestro, este compositor acabou modificando o uso de seu instrumento primeiro de trabalho: a orquestra. Wagner é um dos responsáveis pela criação e consolidação do fosso orquestral invisível19. Este modelo de fosso, hoje o mais comum nas casas de ópera ao redor do mundo, tem como função principal fazer com que o público não consiga identificar a orquestra apenas ouvindo o seu som podendo, assim, dedicar toda a sua atenção ao palco, onde está sendo encenada a peça. Dentro ainda da orquestração podemos lembrar que Wagner é o responsável pela orquestração de óperas que exigiam orquestras de grandes proporções, como é o caso de sua Tetralogia do Anel20, buscando com isso o caráter heróico da peça, transformando, assim, a ópera em espetáculo. Além disso, também inovou, buscando seu estilo próprio, na área instrumental: a trompa wagneriana. Este instrumento foi criado especificamente para a exibição da Tetralogia do Anel e foi feito para ser um intermediário entre o trombone e a trompa. Dentro da especificidade de Richard Wagner e apresentando-se como relevante ao estilo linguístico-composicional deste compositor, podemos lembrar o fato do processo criativo deste. É claro que Wagner ficou conhecido para a posteridade por suas óperas – as outras peças são de menor interesse aos estudos e de construções musicalmente frágeis. Porém, estas peças que levaram fama ao compositor são 18 O atonalismo é uma forma de composição musical no qual se busca o afastamento do centro tonal; por sua vez, o cromatismo é a utilização de toda a escala musical existente em determinado instrumento (semitons) que tem como função adiar a resolução tonal e ampliar as possibilidades de modulação e de interpretação, no caso da ópera. Percebemos, portanto que ambas as técnicas buscam um afastamento do centro tonal, o que já caracteriza uma mudança do antigo romantismo, sempre tão preocupado com esta resolução. A utilização destas características não são inéditas em Wagner, outros compositores, tais como o próprio sogro deste, Franz Liszt, já criavam obras neste sentido antes de Wagner. 19 O fosso, nas casas de óperas é o local determinado para o estabelecimento da orquestra. Hoje, no geral, como herança wagneriana, o fosso é praticamente todo coberto, se localizando entre o público e a parte inferior do palco. 20 Para se ter uma ideia, a orquestração da Tetralogia do Anel utilizava em torno de 90 instrumentos. 53 marcadas por uma singularidade: Wagner participava de todo o processo criativo da música, desde a construção dos textos em prosa até os librettos (textos poéticos) chegando, finalmente, à partitura musical. O individualismo que marcou o romantismo é representado, sim, por estes autores que cuidavam de toda a produção e execução de suas peças, todavia, no caso de Wagner, esta característica encontra seu ponto máximo: este autor participou de todo o processo criativo de todas as suas obras, o que certamente marca as possibilidades estilísticas deste. O processo criativo do compositor pode ser resumido da seguinte forma: após a pesquisa bibliográfica buscando temas este escrevia longas análises em prosa nos quais debatia todas as possibilidades de expressão dramática do texto. Após este estudo e estruturação do enredo, o compositor criava o libretto atendendo, sempre, às necessidades de equilíbrio entre música e língua. Em seguida, com o libretto e os temas harmônicos e melódicos já criados e definidos, o compositor lançava-se à criação da partitura orquestral que conduziria toda a obra. Porém, após este término – momento no qual os compositores geralmente se afastavam da produção – Wagner continuava, colaborando com as escolhas dos cantores, da regência, dos músicos e, até mesmo, dos cenários que suas peças teriam durante a exibição. Este fato, o pleno mergulho em todas as possibilidades de intervenção na própria ópera é, sem dúvida, a principal característica do estilo wagneriano de composição. Toda esta presença do compositor em sua obra, os estudos de história e mitologia germânica, a elaboração dos próprios textos e as interferências na produção de suas óperas marcam outro traço extremamente importante no estilo wagneriano: a sua relação com o seu público. Assim sendo, um outro ponto relevante da forma de escrita de Wagner é a presença de grandes multidões em suas obras. Destarte ser característica comum em óperas, principalmente no romantismo, na escrita wagneriana o coletivo tem sempre importância. Esta característica, originária de suas percepções coletivas e sociais, não deve, contudo, ser pensada apenas sobre o palco. O público, enquanto massa, também deve ser levado em conta. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que manteve contato próximo com o compositor, afirmou certa vez num ataque a Richard Wagner e a seu projeto de Bayreuth: Em Bayreuth se é honesto apenas como massa, como indivíduo se mente, mente-se para si mesmo. O indivíduo deixa a si mesmo quando vai a Bayreuth, renuncia ao direito de ter a própria escolha, a própria 54 língua, ao direito ao seu gosto, mesmo a sua coragem, como a temos e exercitamos entre as nossas quatro paredes, em oposição a Deus e o mundo.21 O filósofo que outrora fora amigo do compositor e que sempre percebeu a relação entre a obra wagneriana e a política-nacionalista germânica com isso demonstra os perigos que a estética e as formas de trabalho de Wagner assumem a partir do momento que passam a ter uma função além da artística22. A multidão encenada nas óperas passa, portanto, a representar a multidão do público – uma multidão que ansiava por modificações sociais, políticas e reafirmações culturais e que, por isto, ajudavam no processo de sacralização da música wagneriana, objetivo próprio do compositor23. Imagem 4: Cena de multidão em Tannhäuser24 No entanto, para alcançar, através de sua arte, seu projeto nacionalista que contava com o apoio da massa de ouvintes25 o compositor teve que modificar a estrutura tradicional da ópera que até então existia na Europa. Logo, Wagner modificou a ópera como um todo. Em primeiro, o compositor, retirando a importância melódica do texto e inserindo-a no discurso, passa a se utilizar da técnica de composição chamada de 21 NIETZSCHE, Friedrich. Nietzsche contra Wagner. In: ______. O caso Wagner: um problema para músicos e Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.54. 22 Friedrich Nietzsche e Richard Wagner mantiveram intensa correspondência até a ruptura, ocorrida em 1876. Alguns traços marcam esse afastamento: em primeiro lugar, o ideal ascético conflitante; em segundo lugar, a vinculação entre o pensamento wagneriano e o de Arthur Schopenhauer, filósofo que Nietzsche afiramará que nega a vida, a caluniando; em terceiro, podemos lembrar das fortes posições deste filósofo contra o anti-semitismo wagneriano. 23 BLANNING, Tim. Richard Wagner e a apoteose do músico. In: ______. O triunfo da música: a ascensão dos compositores, dos músicos e de sua arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. COELHO, Lauro Machado. Op. Cit. p.239-241. 24 Ilustração divulgada pela França no momento da primeira execução de Tannhäuser em Paris, ocorrida em 13 de Maio de 1861. 25 Podemos lembrar que os ouvintes de Wagner se transformaram em verdadeiros apaixonados pela obra do compositor fundando, inclusive, sociedades para financiamentos e revistas, como a Bayreuther Blätter, que tinham o único objetivo de divulgar a obra deste, sendo ela musical, política, filosófica ou literária. 55 Durchkomposition, ou seja, o autor se utiliza da música como um todo, criando uma melodia contínua que interliga atos e cenas do espetáculo, ou seja, o compositor buscou equilibrar texto e música evitando quaisquer quebras no encadeamento de ambos. A partir disto, e para manter a lógica da peça, o compositor se utiliza do artifício da Unendliche Melodia [Melodia Infinita] que possibilita, através de cromatismo, o surgimento de novos temas musicais e diálogos dramáticos. Partindo deste ponto, Wagner começa a se utilizar do Leitmotiv26. Todavia é um engano afirmar que o compositor da Tetralogia do Anel foi o primeiro a utilizar esta técnica. Essa característica pode ser facilmente encontrada em outros autores, como Mozart e Weber – compositores que Wagner admirava. A inovação que este compositor coloca é que leva importância a esta possibilidade: os motivos de Wagner vão se modificando a cada nova aparição de acordo com as demandas da peça. Com isso, este compositor conseguiu aquilo que tinha sido tentado desde Claudio Monteverdi: juntou texto e música, porém, a responsável pela narrativa era a música. Wagner tinha conseguido o que sempre quisera, modificou as estruturas da ópera, formou aquilo que chamamos de Drama Musical27. Em suma, o Drama Musical se difere da ópera basicamente por dois fatores. Em primeiro lugar, a partir da racionalização que une poesia, música e as artes cênicas, buscou-se o desaparecimento dos números musicais incluídos no modelo operístico, procurando-se, assim, um fluxo contínuo de música. Dessa forma, desapareceriam, por exemplo, as árias ligadas pelos recitativos, buscando-se um maior realismo sentimental. Em segundo lugar, inclui-se o leitmotiv [motivo condutor], que é a associação de uma frase musical ou motivo a cada caráter ou idéia da peça, obtendo-se, portanto, maior coesão de elementos artísticos-operísticos, possuindo a função social de simplificar a compreensão da obra para uma plateia ainda em formação. 26 O Leitmotiv, provavelmente o termo mais conhecido de um ‘glossário wagneriano’ é a utilização de uma ideia musical (melódica, harmônica ou rítmica) idenficiada com determinada personagem, ato ou sentimento. Desta forma, sempre que este motivo condutor é ouvido, a audiência é inconscientemente transportada para as aspirações cênicas do compositor. 27 Apesar de utilizarmos a noção de Drama Musical, Wagner não utilizava constantemente e diretamente este termo. A origem desta utilização se encontra em um texto no qual Wagner afirma: ‘Não mais escreverei óperas; mas, como não pretendo inventar nomes arbitrários para estas obras, vou chamá-las simplesmente de dramas, pois isso, ao menos, representa uma indicação do ponto de vista pelo qual devam ser compreendidas’ (WAGNER, Richard. Uma comunicação a meus amigos (1851) Apud: GREY, Thomas S. Um glossário wagneriano. In: MILLINGTON, Barry. Wagner: Um compêndio: Guia completo da música e da vida de Richard Wagner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, p.256. 56 Partindo desta configuração do Drama Musical, Wagner se proporá à criação de uma Obra-de-Arte Total, ou seja, o compositor identifica na ópera enquanto Drama a função de agrupar todas artes em uma. Assim, as artes se transformariam em interdependentes. Esta necessidade de fusão de artes é uma tentativa de resgate de uma leitura grega da arte que Wagner fazia28. Este identificava a supremacia cultural grega exatamente com o encaminhamento em conjunto de todas as artes. E mais, o compositor, além de buscar o Drama como Obra-de-Arte Total, identifica a necessidade deste Drama atender, também, as demandas sociais e políticas germânicas do momento criando, a partir disto, o Nationaldrama. Este Drama Nacional, além de ser, segundo Wagner, um amplo exemplo da perfeição do espírito humano, funciona como um aparato cultural que possibilita a identificação dos germânicos como um povo unificado29. Desta forma, o estilo musical e intelectual wagneriano é aquele que localiza tanto na arte quanto na política a possibilidade de complementação social nacionalista utilizando, para tal, o simbolismo da história e da mitologia germânica adaptados as suas necessidades sócio-culturais. Podemos lembrar que um de seus textos do período de exílio, Die Kunst und die Revolution30 já marca esta característica. Para Wagner, a arte afirma o seu poder revolucionário na medida em que colabora com o projeto de emancipação social. A modernidade ocidental, ao mesmo tempo em que separou a racionalidade estética da racionalidade política, angustiou-se sobre o relacionamento entre estas áreas [arte e política]. Portanto, em Wagner, o que separa a arte e a política é também aquilo que as une: ambas são modos de se fazer emergir o possível das sociedades, no entanto, os meios que usam e os modos como surgem fazem toda a diferença e é por isso que a relação entre elas é tão complexa. 2.3 Rienzi: a escrita, a música e o enredo da ópera A terceira ópera de Richard Wagner, Rienzi, marca a transição deste enquanto compositor tanto para seu período nacionalista quanto para seu período de maturidade composicional. As duas primeiras óperas, Die Feen e Das Liebesverbot, foram 28 Podemos lembrar que outros pensadores do contexto também percebiam esta necessidade de ampliação e fusão das possibilidades artísticas em uma única. 29 Acerca da Obra-de-Arte do Futuro e da união desta com as possibilidades nacionalistas, Cf.: WAGNER, Richard. A Obra de Arte do Futuro. Lisboa: Antígona, 2003. 30 WAGNER, Richard. A Arte e a Revolução. 2ed. Lisboa: Antígona, 2000. 57 acolhidas friamente pelo público e pela crítica e possuem uma estrutura demasiadamente simples que fez com que raras vezes fossem exibidas no próprio século XX – além do mais poucas vezes foram executadas ao longo do século XIX31. Quanto a Rienzi, o compositor se engajou no projeto durante a primeira metade do ano de 1837 após conhecer o romance homônimo de Sir Edward Bulwer-Lytton32 que contava a história de Cola de Rienzi, tribuno e notário papal que derrota a classe nobiliárquica ampliando os direitos políticos da população e termina traído por esta mesma população e pela Igreja que anteriormente os ajudaram contra a aristocracia. Partindo desta leitura que, conforme Wagner atesta, acontece por acaso durante uma viagem, o autor começou a elaborar a obra colocando, nesta, sua crença de que iria atingir o sucesso que já buscava há algum tempo por toda a Europa, principalmente a própria Germânia e a França. Influenciado pelas ideias da Jovem Alemanha 33 e buscando cruzar essa perspectiva com as possibilidades do texto de Bulwer-Lytton, lança-se ao esboço em prosa que fica pronto rapidamente em Julho de 1837. Feito este esboço em prosa começa, então, a parte mais complexa e demorada – uma vez que Wagner cuidava de todas as partes da produção sozinho: a elaboração do texto operístico. Este ficaria pronto em 6 de Agosto de 1838. Após a elaboração dos textos, e se dedicando aos estudos orquestrais, Wagner inicia a escrita da ópera. A escrita orquestral ocorre entre 7 de Agosto de 1838 e 19 de Novembro de 1840 – posteriormente o compositor faria variadas revisões das quais as que mais se destacam são as que ocorreram entre 1843 e 1844 e a revisão de 1847. Esta última, no geral, é a versão executada em nossos dias. Um fato relevante desta ópera é 31 Die Feen, por exemplo, apenas foi executada na íntegra no ano de 1888, ou seja, cinco anos após a morte do compositor. 32 Edward George Earl Bulwer-Lytton (1803-1873) foi um novelista, dramaturgo e influente político britânico. O romance que Wagner se utilizou para escrever seu libretto foi publicado pela primeira vez com o título Rienzi, the last of the tribunes (Rienzi, o último dos tribunos) e, a partir da segunda edição, com o título de Rienzi, the last of the roman tribunes (Rienzi, o último dos tribunos romanos). 33 No alemão junge Deutschland, foi um movimento literário existente entre, aproximadamente, as décadas de 30 e 50 do século XIX, integrado por personalidades como Laube e Heine. Esse nome o coloca em paralelo com movimentos de outros países europeus como é o caso da "Jovem Italia". No entanto, apesar de ter uma forte vocação de compromisso político exerceu uma influência muito menor sobre a vida pública na Alemanha. Sua aparência lembrava o movimento Sturm und Drang do século anterior, já que expressavam antipatias comuns no plano social e os dois se manifestavam conscientemente como geração e tinham um valor intrínseco do conceito “juventude”. Os homens da "Jovem Alemanha" eram como cosmopolitas e abjuraram o nacionalismo doentio que demonstraram seus precursores. Isto é talvez o que feria Wagner levando-o a se afastar, uma vez que estava cada vez mais inserido no mundo do alegado “espírito alemão”. 58 que parte dela (os atos III, IV e IV) foram escritos em Paris após uma longa pausa no processo geracional. Com a ópera pronta, Wagner tentou a sua exibição em Paris sem, contudo, obter sucesso. Mesmo sem este sucesso alcançado naquele que era considerado o principal palco da Europa, o compositor de Leipzig continuava certo de que Rienzi era a obra que o traria fama e através da qual conseguiria demonstrar seus ideais para uma culturanacional germânica. Wagner afirmou em sua autobiografia: “Rienzi [grifo nosso], cuja composição eu havia concluído pouco tempo antes de chegar em Riga, deveria me conduzir a um mundo grandioso com o qual, há tempos, eu sonhava”34. A primeira apresentação da ópera se deu no Königlich Sächsisches Hoftheater em Dresden no dia 20 de Outubro de 1842 com a regência do próprio compositor e contou com a presença da ilustre soprano Wilhelmine Schröder-Devrient35 no papel de Adriano. Wagner desejou executar obras suas com esta soprano desde a primeira vez que a ouviu cantando, na ópera I Capuleti e i Montecchi de Vicenzo Bellini, conforme seus diários atestam. A exibição da ópera teve um imprevisto não pensado nem percebido nos ensaios que, no geral, não eram realizados na íntegra: a duração. A ópera encenada levou mais de seis horas para ser concluída e, apesar de o público não ter feito qualquer tipo de manifestação, o fato da peça ter começado em um dia e terminado em outro desagradou Wagner. Após isto, o compositor pensou em dividir a ópera em duas partes para serem executadas em dias seguidos, uma primeira chamada A grandeza de Rienzi e a segunda chamada de A queda de Rienzi porém acabou se contentando com alguns cortes que facilitaram as próximas apresentações da peça. Mesmo com todas as dificuldades encontradas em Paris para a elaboração, e com todos os imprevistos da execução da obra culminando com a duração extremamente longa desta, Rienzi conseguiu levar a Wagner aquilo que ele tanto ansiava e que as duas obras anteriores não tinham conseguido: o sucesso. Todavia este sucesso não foi imediato. Foi se construindo durante toda a década de 1840 quando, cada vez mais, passou a ser perceptível as características nacionalistas da obra que atendiam plenamente as demandas populares deste contexto. Compreendido o contexto 34 Cf.: nota 9. Wilhelmine (1804-1860) foi utilizada várias vezes para a realização de personagens masculinos jovens, como é o caso do próprio Adriano em Rienzi de Wagner e, também, como é o caso de Romeo na obra de Bellini. 35 59 e o processo de criação de Rienzi devemos, agora, conhecer o enredo desta obra para, então, analisarmos sua estrutura musical. Imagem 5: Cartaz da estreia mundial de Rienzi36 Ambientada na Roma do século XIV durante a transferência do papado desta cidade para Avignon na França, a obra trata da vida do tribuno e notário papal Cola de Rienzi, personagem que lutara pela ampliação dos direitos populares e contra as imposições da classe nobiliárquica da região no momento de ausência de poderes mais centralizadores. O primeiro ato da ópera se inicia com a aparição de uma rua de Roma pela noite, na presença dos Orsinis na frente da casa de Rienzi. Paolo Orsini, junto com seus seguidores tentam invadir os aposentos de Irene, irmã de Rienzi, pela janela, no intento de sequestrá-la. A jovem grita por socorro até o momento em que surgem os Colonna. As casas nobiliárquicas Orsini e Colonna estão em conflito aberto, principalmente, após a saída do papado que era a forma de centralização política possível na época. As 36 Este cartaz é o utilizado na primeira apresentação de Rienzi em Dresden e marca os personagens e seus intérpretes: Rienzi, o tribuno romano e notário papal foi interpretado pelo tenor Josef Aloys Tichatschek; Irene, irmã de Rienzi, pela soprano Henriette Wüst; Stefano Colonna, um nobre, pelo baixo Georg Wilhelm Dettmer; Adriano, filho de Stefano, pela Wilhelmine Schröder-Devrient; Paolo Orsini, outro nobre, por Johann Michael Wächter (baixo); Raimondo, legado papal, pelo baixo Giacchino Vestri; Baroncelli e Cecco Del Vecchio, cidadãos romanos, foram interpretados, respectivamente, pelo tenor Friedrich Traugott Reinhold e pelo baixo Karl Risse; por último, o mensageiro foi interpretado pela soprano Anna Thiele. 60 famílias iniciam-se na contenda e o jovem Adriano Colonna defende Irene. A partir disto, a contenda vai ganhando cada vez mais volume e a própria população já participa. Surge, então, o cardeal Raimondo, legado papal, que tenta parar o conflito utilizando seu poder eclesiástico. Sem sucesso, no entanto. Apenas após a chegada de Rienzi e seus dois companheiros, Baroncelli e Cecco Del Vecchio, a ordem é reestabelecida – para isto, basta a presença de Rienzi. Este repreende os nobres e seus seguidores declarando, por fim, sua intenção de conduzir Roma à glória através de sua unificação política-social. Neste momento, as famílias nobres deixam a parte urbana da cidade para continuarem o conflito e Rienzi proíbe o retorno destes, ordenando o fechamento dos portões da cidade. Adriano Colonna, no entanto, permanece. Após a saída dos nobres, o núncio oferece o apoio eclesiástico a Rienzi na incitação que este provoca na população na luta contra as famílias aristocráticas. Rienzi abraça a irmã e pergunta o que lhe fizeram, ao que esta explica que tentaram raptá-la mas que sua honra foi preservada por Adriano. Rienzi manifesta, então sua surepresa a Adriano pelo fato de um membro da família Colonna ter protegido sua irmã. O jovem, no entanto, não concorda em utilizar a força para deter os conflitos aristocráticos que tanto prejudicaram a população, mudando de ideia apenas quando Rienzi o lembra que a casa dos Colonna matou seu irmão. Com a notícia, Adriano pergunta o que pode fazer para compensar o crime passando, assim, a seguir Rienzi em seus intentos. As hesitações deixam de existir a partir do momento em que o notário afirma que, sob seu comando, os romanos podem se tornar livres. Com a ajuda a Rienzi e a redenção que Adriano proporciona à própria casa, o tribuno confia sua irmã aos cuidados deste jovem. Surge, nisto, a figura do amor redentor, tão comum nas obras wagnerianas. Embora Adriano respeite Rienzi e confie neste, adverte, temeroso, sobre as possibilidades do plano de combater o poder das casas patrícias terminar em tragédia, com mortes. Trazendo desgraças à existência da própria Roma. A sós, Adriano e Irene, reafirmam seu amor contra todos os infortúnios. O jovem, mesmo fiel ao cunhado, prevê que suas ideias não resistirão e que o próprio povo que parece tendencioso a seu lado o trairá possibilitando que os nobres o punam. A população vai ao encontro da movimentação e, após se ajoelhar diante da força do som do órgão da Igreja, um coro entoa certo cântico sobre a necessidade de se defender a cidade. Neste momento ressurge Rienzi com vestimentas apropriadas para o conflito. Esta mesma população o saúda e com influência de Cecco, o reconhece como seu rei. O tribuno, no entanto, não aceita tal título, pois ambiciona que o povo continue livre. 61 Sugere, então, que o reconheçam como um tribuno, um representante do povo, título com o qual é prontamente aclamado. É então afirmado que Roma será renovada, passando a possuir liberdade e lei. Ao final deste primeiro ato toca-se o trompete e, lembrando a tradição política romana, Rienzi e o cardeal Raimondo convocam toda a população para o embate que se aproxima. O segundo ato inicia-se no Capitólio, no qual Rienzi entra com toda a cerimônia, seguido por Baroncelli e Cecco. Neste instante, os mensageiros trazem as notícias de que toda a Roma está pacificada. Todos os aristocratas juram fidelidade ao tribuno, falsamente. Todavia Rienzi não demonstra preocupação com sua glória mas sim com a persistência da lei criada outrora por ele e por seus seguidores, lei essa que obriga todos os cidadãos a serem iguais, incluindo os pertencentes à casa Orsini e à casa Colonna. Indignados, Colonna e Orsini, sendo ouvidos pelos outros nobres, conspiram contra Rienzi em quem identificam apenas demagogia discursiva. O medo destes se localiza no fato do pleno apoio que Rienzi tem das massas armadas. Adriano entra e acaba escutando a conspiração em prol do assassinato do tribuno que se forma no ambiente. Sem poder acreditar no que ouve, o jovem manifesta sua indignação contra a possível traição e assassinato. É o momento de ruptura entre Adriano e seu pai. O jovem, no entanto entra em conflito consigo: teme a morte de Rienzi mas também teme a punição que seu pai poderá receber. Inicia-se a cerimônia festiva e Rienzi saúda todos os seus convidados. Neste momento Adriano adverte o tribuno acerca da conspiração tramada anteriormente pelas duas famílias mais influentes. Começa a apresentação que na peça é representada com o balé sobre o tema ‘O Sequestro de Lucrécia’. Durante a apresentação, Orsini se aproxima de Rienzi e tenta matá-lo com uma punhalada sem, contudo, obter sucesso, já que o tribuno estava com uma densa cota de malha. O povo, percebendo a artimanha, se enfurece contra os traidores ao passo que Adriano clama por clemência, uma vez que seu pai, Stefano, está entre os denunciados. O povo, já tendo automaticamente condenado os traidores, é contido por Rienzi que explica a importância do perdão, libertando os conspiradores. Enquanto Irene e Adriano agradecem a piedade, Baronceli e Cecco se colocam contra esta anistia. No mais, os traidores juram novamente vingança ao tribuno. O terceiro ato se inicia na frente do antigo Fórum, local no qual o povo e Rienzi lançam-se às armas para combater os nobres que anteriormente já haviam sido perdoados. Rienzi, então, faz um apelo patriótico e a população responde com um hino 62 guerreiro. Este é momento do clímax de indecisão de Adriano, no qual deve optar se defenderá Rienzi ou os Colonna. Após a preparação para o conflito, a população, liderada pelo tribuno, marcham em direção à guerra, deixando Adriano para trás, sozinho com Irene. Rapidamente Rienzi retorna e anuncia a vitória do povo de Roma, trazendo o corpo de Orsini e Colonna para a cena. Todavia, o lado da população também teve pesadas baixas e, mesmo vitoriosos, Baroncelli prevê que este fato poderá gerar a queda do modelo político implementado. Ao perceber que seu pai está morto, Adriano amaldiçoa Rienzi, jurando vingança. Este que, por sua vez, sai da cena triunfante. Imagem 6: Rienzi regressando a cavalo após o conflito37 O quarto ato se passa diante da Basílica de São João de Latrão, aonde ocorre um encontro entre Baroncelli e outros cidadãos, no qual o antigo colega informa que Rienzi conduziu tão mal Roma que o próprio Papa, bem como o Imperador, se colocaram contra o regime. Com a chegada de Cecco, o cenário da revolta contra Rienzi fica definitivamente instalado. Baroncelli afirma que Rienzi fez um pacto com os nobres e Adriano, o primeiro a se identificar na multidão, confirma este fato, procurando vingar a morte de seu pai. Assim, Rienzi passa a ser identificado como traidor. Surge o cardeal Raimondo com seu séquito em direção à igreja. Logo após, Rienzi entra em cena com sua irmã e, com o discurso preparado, começa a convencer a população de seus feitos na administração e libertação de Roma. Neste momento, de dentro da igreja, começa a música de caráter sinistro que assusta tanto Rienzi quanto todos da cena. O tribuno 37 Ilustração da entrada de Rienzi da estreia de Paris, no Théâtre Lyrique, em 6 de Abril de 1869. A obra foi encontrada nos arquivos de Augustin Vizentini (1810-1890) e a autoria da ilustração, como era comum neste tipo de obra durante o século XIX, é desconhecida. 63 intenta entrar na basílica porém é impedido por Raimondo que afirma que Rienzi fora excomungado. Desta forma, este perde os poucos seguidores que ainda possuía. Adriano tenta convencer Irene a se afastar do irmão, sem sucesso. O jovem, então, percebe que esta união entre os irmãos acabará com a vida de Irene, já que a população está totalmente revoltada contra as perdas do conflito e contra o próprio Rienzi. O quinto e último ato ocorre no Capitolio Romano. Inicialmente a ação se desenrola no interior do prédio, no qual Rienzi reza a Deus por proteção. Ao se aproximar da irmã, Rienzi afirma que todos, exceto ela, o abandonaram. Após isto, o tribuno se retira para preparar suas armas. Adriano entra no ambiente sem ser percebido e tenta convencer Irene a fugir com ele. Quando percebe que esta abordagem não surte efeito, tenta levar a amada à força, o que também não funciona. A partir daí, a ação se desenvolve por fora do Capitolio, onde a multidão, furiosa, espera para atear fogo no prédio. Neste momento, Rienzi surge tentando apaziguar a população, sem efeito, contudo, já que Baroncelli inflama cada vez a população afirmando que Rienzi é um traidor – a massa ficou cega. Começam, então, a atear fogo no prédio com Rienzi e sua irmã dentro. Os irmãos permanecem abraçados esperando o fogo que os consumirá. É o momento em que Adriano invade o prédio para salvar sua amada, sem resultado, encontrando a morta, já que o prédio desmorona com os três em seu interior. A peça termina com o retorno dos nobres que chegam a tempo de assistir a construção se despedaçando em fogo. Durante a escrita de Rienzi, duas formas operísticas estavam em voga na Europa: o modelo italiano e o modelo francês. Neste momento, interessa-nos o modelo francês, a grand opéra. A grand opéra é um modelo operístico comum na França do século XIX, principalmente entre os anos de 1835 e 1860, geralmente estruturada em quatro atos e com a presença de grande orquestra e elenco. Giacomo Meyerbeer (1791-1864) foi um dos principais representantes deste modelo que cruzou a Europa como sinônimo daquilo que era mais sofisticado neste terreno artístico. Conhecendo esta possibilidade, Richard Wagner inicia esta ópera buscando ser aceito em locais como a França. A partir do momento em que os palcos franceses não oferecem boa recepção ao compositor, este vai se fechando cada vez mais dentro da produção operística alemã. Rienzi, a grand opéra de Wagner se insere na tradição de óperas heroicas, herdeiras de Christoph Willibald Gluck (1714-1787) e surge como a tentativa de um jovem compositor alcançar Meyerbeer e Fromental Halévy (179964 1862). Contudo, mesmo utilizando este modelo de escrita nesta ópera, Wagner o atacou em seu texto Oper und Drama [Ópera e Drama]38. Algumas diferenças entre o modelo proposto pelos franceses desta forma, como Meyerbeer e Berlioz, no entanto, já são diversos daqueles apresentados pelo compositor alemão. Por exemplo, Wagner não alterna constantemente a métrica da obra permanecendo quase que a música inteira no mesmo compasso. Esta ópera, politicamente simpatizante com a classe média e contrária à nobreza, é dividida em cinco atos: o primeiro e o quinto com quatro cenas cada um, o segundo e o terceiro com três cenas cada um e o quarto dividido em duas cenas O compositor localizava vantagens nas óperas italianas, francesas e, mesmo sendo musicalmente fragmentada, nas óperas da Alemanha. Assim sendo, Rienzi surge como ópera eclética cosmopolita, pretendendo fundir “o apelo sensual da melodia belliniana com a vitalidade e a grandiosidadedos gêneros franceses e a ‘seriedade’ inata da tradição alemã”39. As cenas de multidão também marcam bem esta peça. As multidões presentes no palco, além de marcarem o caráter nacionalista da peça, auxiliam na reafirmação da ópera enquanto grand opéra. Essas multidões em cena marcaram tão bem a obra que acabariam se transformando, no século XX, em um dos fatores que levariam Adolf Hitler a se identificar com a peça e dela possuir um autógrafo40. Após iniciar a escrita da obra, com o texto em prosa na metade de 1837, Wagner parou em sua empresa em Abril de 1839, com os dois primeiros atos completos, apenas retornando em Fevereiro de 1840 e, apesar da pausa de meses ser relativamente curta, o estilo foi significativamente modificado. Wagner conheceu Meyerbeer em Paris neste intervalo e, enquanto os dois primeiros atos são uma mescla de ópera italiana com modelo operístico francês, a partir do terceiro se delineia um estilo pessoal tendencioso ao modelo de Meyerbeer. Contudo, apesar da ópera seguir amplamente este modelo francês de composição tão famoso e executado, a obra não conseguiu apoio para ser realizada na capital francesa. 38 Cf.: WAGNER, Richard. Oper und Drama. In: FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben). Richard Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Directmedia: Berlin, 2004 [edição digital dos textos completos de Richard Wagner]. 39 GREY, Thomas. Op. Cit. p.79. 40 Hitler afirmara, após assistir a execução de Rienzi logo no início do século XX, In jener Stunde begann es (Naquele momento tudo começou). Cf.: MILLINGTON, Barry. Op. Cit. p.312. 65 Durante a abertura da peça, de caráter brilhante, aparecem cinco temas que serão reutilizados durante a peça com importâncias variadas. A primeira destas aparições são três notas longas no trompete que serão transformadas em um sinal para que a população se levante contra os nobres, lutando contra a opressão proporcionada por estes. Aparece, também nesta abertura, aquilo que, no quinto ato, será transformado na oração de Rienzi; o tema associado ao povo; o hino da guerra; e, por último, aparece exposto na abertura a marcha do segundo ato. Um último ponto musical relevante para a análise de Rienzi é a música de balé presente no segundo ato. Composta em Riga, é a única peça deste gênero, além do presente em Tannhäuser, composto pouco tempo depois, escrita por Wagner. Na maioria das grand opéra o balé funciona como uma distração ao público. Dessa forma, buscando ampliar as possibilidades representativas, Wagner deu grande importância a esta composição. O balé encenado conta a história de Tarquínio, rei de Roma, que tenta desonrar Lucrécia. Assim, o trecho é nitidamente uma aproximação do início da ópera e o que acontece com Irene na mão dos Orsini quanto, também, da violação da aristocracia contra a população que Rienzi defende41. 2.4 Lohengrin: a escrita, a música e o enredo da ópera Richard Wagner idealizou a peça Lohengrin quando teve acesso, entre os anos de 1841 e 1842, a textos da Sociedade Germânica de Königsberg, uma associação dedicada ao estudo e preservação da língua e da cultura alemã, nos quais existiam o relato desta antiga lenda. Esses estudos, somados àqueles que Wagner empreendeu por toda sua juventude marcam a relevância das duas principais temáticas de escrita wagneriana: a Idade Média e a mitologia nórdica, conforme o próprio compositor atestou em sua autobiografia: Me familiarizei com a Idade Média germânica amplamente e, apesar de não possuir o rigor de um filólogo, levei esses estudos com muita seriedade (...) Alguns não entendiam o motivo de eu, por ser um simples compositor de óperas, estar nestes estudos tão aprofundados. Porém, posteriormente, as pessoas se deram conta de que meu Lohengrin era tão específico devido à escolha e estudo do tema42. 41 Nas exibições contemporâneas este trecho sofre grandes cortes, já que na partitura original é uma das cenas mais demoradas, influenciando de forma significativa na longa duração da peça. 42 Cf.: nota 9. 66 Entusiasmado como o tema encontrado, Wagner escreveu a peça rapidamente, entre 1845 e 1848. O primeiro rascunho em prosa foi terminado em 3 de Agosto de 1845. O segundo rascunho, feito logo após e no qual o poema se baseia, foi feito de ordem inversa, começando pela parte final até alcançar o início – vale lembrarmos que, nesta ópera, o compositor mudou sua forma de escrita, também, de outra maneira: esta ópera ele rascunhou na íntegra e não em partes como era de costume até então. O poema básico, uma vez que este foi constantemente modificado e adaptado durante a escrita da peça, ficou pronto em 27 de Novembro de 1845 e o primeiro rascunho musical, contando com a harmonia (no geral apenas a linha do baixo) e a melodia vocal foi completado no dia 30 de Julho de 1846. A revisão da obra, se transformando no segundo rascunho da música, com as harmonias e melodias completas, foi finalizada dia 29 de Agosto de 1847. A partitura orquestral final foi escrita, também rapidamente, entre os dias 1º de Janeiro de 1848 e 28 de Abril do mesmo ano. Entre 1848 e a estreia da peça, contudo, a vida de Wagner mudaria completamente. Em 1849, antes da execução da ópera ser aceita, o compositor participou do Levante de Maio em Dresden. Procurado, acabou tendo que sair da Confederação Germânica, passando os próximos anos entre a França e a Suíça. Do exílio, Wagner escreveu a Franz Liszt, em 21 de Abril de 1850, pedindo que este o ajudasse na execução da obra e, caso fosse possível, a regesse em Weimar, corte na qual Liszt mantinha um importante cargo musical. Extremamente influente no cenário artístico-cultural europeu, Liszt mobilizou suas forças para a execução da obra do amigo, conseguindo que esta tivesse sua primeira exibição, com a regência daquele que futuramente seria seu sogro, no Grossherzogliches Hoftheater de Weimar em 28 de Agosto de 1850 sem, no entanto, contar com a presença do compositor, que apenas a ouviria no dia 15 de Maio de 1861, em Viena. A primeira apresentação não foi como Wagner e Liszt esperaram: de início, a música soou estranha ao público e, apesar de contar com bons solistas43, Liszt não possuía os recursos que Wagner desejou quando escrevera a peça, contando com cerca de 40 músicos e não com os mais de 80 pensados originalmente pelo compositor. A história se passa em uma planície próxima ao rio Escalda, na Antuérpia. O primeiro ato se inicia com a chegada do rei Henrique que veio a este território convocar 43 A primeira exibição teve em cena o tenor Karl Beck como Lohengrin; Rosa von Milde-Agthe, soprano, como Elsa; Josephine Fastlinger, mezzo, como Ortrud; Hans von Milde, barítono, como Friedrich; August Höfer, baixo, como Heinrich. 67 os brabantinos a defenderem a Germânia contra a possível e provável invasão dos húngaros. Um dos brabantinos, no entanto, o conde Frederico de Telramud, juntamente com sua esposa, Ortrud, acusa Elsa pelo assassinato do próprio irmão, Gottfried, herdeiro legitimo do trono de Brabante. Assim, Henrique percebe a grande divisão política encontrada no território e percebe a dificuldade de união deste povo: a população não se decide se Frederico pode ou não ser herdeiro do trono no lugar de Gottfried. Frederico tenta, então, convencer o rei que era o desejo do antigo nobre de Brabante, já falecido, de que ele, Frederico, assumisse o trono. O rei Henrique, então, decide que a solução está em um combate entre Frederico e o cavaleiro que se apresentar para defender Elsa. Assim sendo, o arauto convoca Elsa à presença do ilustre rei germânico. Após a aparição de Elsa, o público perceberá que Ortrud possui os poderes das religiões nórdicas antigas e que busca eliminar Elsa na tentativa de frear a expansão do cristianismo. Daí o medo de Elsa quando na presença de Ortrud. Elsa explica que o cavaleiro que irá defendê-la é aquele que guarda a verdade e que ela apenas conhece de seus sonhos. Após as preces de Elsa e o toque dos trombeteiros, percebe-se que, ao longe, um cavaleiro vem pelo rio, em pé dentro de um barco, puxado por um cisne. Ortrud e Frederico temem com a chegada do cavaleiro nunca antes visto. Ao sair do barco, Lohengrin se despede do cisne que prontamente se vai. Ao se aproximar de Elsa o cavaleiro, portando elmo e escudo com os símbolos do cisne, promete defender-lha e casar-se com ela, protegendo seu reino para sempre, desde que esta jamais pergunte quem ele é ou de onde ele veio. Com o consentimento de Elsa, Lohengrin pede ao rei para ser o cavaleiro que duelará em prol da jovem. Inicia-se o duelo e Lohengrin vence Frederico apenas com um golpe. O cavaleiro misterioso, contudo, não mata o pretendente ao trono, percebendo que ele é manipulado por Ortrud. Após o confronto, Elsa é entregue pelo rei Henrique aos cuidados de Lohengrin e todos o saúdam como sendo o salvador da jovem e da verdade. O segundo ato se passa na noite após o conflito e o exílio de Ortrud e Frederico. Estes, tendo que deixar a fortaleza, acabam ficando escondidos no entorno, tramando como fariam para Elsa se afastar do cavaleiro desconhecido. Ortrud se aproxima da sacada de Elsa e, quando esta aparece, consegue ter com ela. No amanhecer, a população está reunida esperando as festas de núpcias. Ortrud se encontra sorrateiramente inserida no meio do povo, inflamando as questões acerca da ocultação das origens de Lohengrin entrando, logo após, Frederico com as mesmas insinuações 68 acerca do cavaleiro do cisne. As dúvidas colocadas surtem efeito e Elsa começa a mesclar seus sentimentos: amor, gratidão, dúvida, medo. Imagem 7: A chegada de Lohengrin em um barco com forma de concha puxado por um cisne através de correntes de ouro44 O terceiro ato inicia-se e rapidamente Lohengrin e Elsa são deixados, pela primeira vez, sozinhos em cena. Lohengrin chama Elsa pelo nome e ela percebe que nunca fará o mesmo, porém, acredita que um dia o amado confiará a ela este segredo. Assim, o cavaleiro percebe que Elsa foi envenenada pelas mentiras de Ortrud. Elsa, aterrorizada com a visão do cisne voltando para buscar seu amado, começa uma série de questionamentos acerca de Lohengrin. No mesmo lugar em que chegou, Lohengrin resolve responder às questões da amada. Conta que veio de Montsalvat e é, juntamente com seu pai, Parsifal, um dos guardiões do Graal. O cavaleiro deve voltar porque é uma exigência dos poderes do Graal que o bem seja feito, mas que a origem desse bem seja ocultada. Após as revelações, o cisne retorna para buscar Lohengrin. Ortrud confessa, então, que o cisne é, na verdade, Gottfried, irmão de Elsa, que foi transformado pelo poder dos antigos deuses. Lohengrin reza e um pombo desce dos céus transformando o cisne em Gottfried. Elsa, após a transformação e vendo o amado partindo, tomba morta nos braços do irmão. Lohengrin encerra o ciclo de óperas de caráter romântico de Richard Wagner45. Este ciclo, iniciado indiretamente com Rienzi, contou, também, com as óperas Der Fliegende Holländer (O holandês voador) e Tannhäuser. Como ópera romântica ainda existem partes parecidas com árias, duetos e recitativos, todavia, nesta peça já se 44 Pintura de August von Heckel para o castelo de Neuschwanstein na Baviera (construído por Ludwig II). Nas divisões feitas na tradicional História da Música, Lohengrin é a ópera que encerra o ciclo romântico da escrita operística alemã. 45 69 encontram as características que farão Wagner converter a ópera em Drama. Já existe a lógica da melodia infinita, da orquestra como artefato narrativo e do uso antecipado – mesmo que tímido – daquilo que seria o leitmotiv, como no caso do cisne e na pergunta proibida. Lohengrin, destarte suas inovações, ainda possui o modelo de grand opéra parisiense e acaba sendo uma síntese das possibilidades germânicas e francesas – o puro germanismo, na ópera wagneriana, seria alcançado anos mais tarde. A composição se deu rapidamente e, de início, a música foi estranhada devido a suas inovações. A peça também se utiliza, várias vezes, das cenas de multidão, notadamente na quarta cena do segundo ato na qual ocorre a procissão de Elsa em direção à igreja com a intromissão de Ortrud. Nesta peça, Wagner inova com a utilização das associações tonais: Lohengrin e o Graal são, assim, representados pelo mesmo tom: lá maior. Este tom também é o de início e de término da peça sendo o mais utilizado durante a obra. As contradições na ópera são representadas, por tons próximos, como lá bemol maior, como é, muitas vezes, representada Elsa, o que cria uma dificuldade de manutenção composicional que Wagner acaba resolvendo nas cenas dramáticas46. O compositor utiliza o tom relativo da representação de Lohengrin para representar Ortrud, ou seja, fá sustenido menor criando uma movimentação harmônica que serve como narrativa emotiva. A orquestração é cheia de significados: os metais acompanham o rei, as madeiras, extremamente emotivas, Elsa; o sombrio clarinete baixo encomendado especialmente por Wagner, Ortrud; e os violinos, Lohengrin. O compositor não fez nenhuma grande revisão nesta ópera. A única que merece destaque é, portanto, aquela que o próprio compositor encomendou a Liszt após a estreia, no trecho conhecido como A Narração de Lohengrin47. A Marcha Nupcial também merece destaque sendo, até hoje, utilizada em cerimônias de matrimônio. Junto com Parsifal esta é a peça mais lírica de Wagner, na qual o compositor perfeitamente equilibrou textura, harmonia e melodia. As óperas de Wagner, além de suas características humanas e estéticas guardam, também, possibilidades políticas e, estas duas peças serão analisadas a seguir, em nosso quarto capítulo. 46 Esta dificuldade origina-se no fato de que tons muito próximos nas escalas diatônicas estão extremamente afastados na escala de vizinhança. 47 Cf.: MILLINGTON, Barry. Op. Cit. p.325. 70 CAPÍTULO III: VERDI 3.1 A formação do compositor de Busseto e o ambiente italiano A região que formaria a Itália, durante a transição do século XVIII para o século XIX, era formada por vários territórios independentes. Dentre estes Estados, os que mais se destacavam política e economicamente eram os reinos da Sardenha, de Nápoles e da Sicília e as repúblicas de Veneza e Gênova. Esses Estados, porém, estavam sob o domínio austríaco dos Habsburgos desde o final do século XVII. Napoleão Bonaparte, a partir de sua expansão pela Europa, conseguiu tomar a península, com exceção da Sardenha e da Sicília, entregando partes do governo a seu irmão José. Assim, alguns dos tradicionais poderes políticos baseados nos vínculos de feudalidade e eclesiásticos foram extintos fazendo com que os territórios passassem por reformas liberais. Os austríacos, já presentes no território, no entanto, expulsaram o exército napoleônico ampliando seus poderes no norte da península e, na sequência da assinatura do Tratado de Viena, o domínio austríaco foi plenamente reestabelecido. Contudo, o Estado da Sardenha, composto na época pela Sardenha e pelo Piemonte, manteve alguns traços liberais instaurados por Napoleão. A partir disto, o chanceler austríaco Klemens Wenzel Lothar Nepomuk von Metternich, príncipe de Metternich-Winnenburg-Beilstein, assegurou, pessoalmente, a possibilidade de manutenção do poder austríaco na península. Com esta manutenção austríaca a população continuava sem representatividade política e seus anseios acabavam por não serem ouvidos, o que acontecia, também, com a burguesia emergente da localidade. É também deste contexto – a transição entre o século XVIII e o XIX – que se configura, no território italiano, assim como em toda a Europa, o romantismo. O romantismo na região que formaria a Itália é um dos mais específicos da Europa. Com a fragmentação política e com a administração estrangeira dentro da vida cultural peninsular, a burguesia ascendente, com sua visão de mundo e valores próprios, buscou a consolidação de um modelo estético próprio. A partir da afirmação desta classe social intermediária, começa a ocorrer uma mescla de refinamento elitista e objetos temáticos populares1. Assim, o romantismo italiano que, diferentemente dos 1 No caso das óperas de Verdi é nítido este comportamento de mescla de modelo estético aristocrático com o enredo popular, como é o caso de La Traviata e Stiffelio. 71 outros, não teve um claro iniciador se configura com temáticas humanas, diferentemente daquilo que acontecia com territórios como a Alemanha e França, nos quais vingavam os personagens e temas místicos. Este modelo artístico-cultural privilegia o humano já que é o momento de se afirmar a ótica revolucionária e, nos Estados italianos, o romantismo encontrará essa mescla entre arte e política como em poucos outros locais. Esta mescla entre política e arte será tão ampla que virou comum no período a figura da censura artística, assim, vários escritores e librettistas tiveram que mudar, várias vezes, seus temas de escrita e seus diálogos por serem considerados demasiadamente nacionalistas. Desta forma, a arte romântica italiana vai se convertendo na grande divulgadora do Risorgimento, o movimento singular que buscou a unificação nacional italiana durante o século XIX nas mais diferentes possibilidades2. Neste contexto nasceu, em 10 de Outubro de 1813, na fração de Le Roncole 3, comuna de Busseto, província de Parma, Giuseppe Fortunino Francesco Verdi4, que se transformaria no compositor italiano mais influente do século XIX – tanto pela qualidade de sua escrita tanto quanto por sua atividade política. Neste contexto de nascimento do compositor, os vínculos nacionais entre a população italiana eram extremamente frágeis: ocorria uma pluralidade de legislações e a própria língua possuía dialetos específicos. O que era responsável pela manutenção do reconhecimento nacional era, portanto, a percepção de uma raiz cultural comum – remontando aos tempos da Roma Antiga – e a aversão ao domínio estrangeiro. O início da vida de Giuseppe Verdi foi pobre, tendo crescido entre camponeses da pequena vila em que nasceu. Seus pais, Carlo Giuseppe Verdi e Luigia Uttini, tiveram outra criança, uma menina, nascida dois anos após o compositor e que morreu prematuramente aos 17 anos em 1833. Com o nascimento de Verdi acontecendo durante os conflitos napoleônicos, Roncole viu a presença de soldados russos que combatiam os franceses e, mesmo sem comprovações, Verdi acreditava que sua família teve que se esconder em uma igreja evitando, assim, estar na presença dos conflitos entre austríacos, russos e franceses5. 2 Uma parcela da população do momento queria a ampliação do poder papal, fazendo com que este dominasse a península através de uma religiosidade comum; outra parcela tendia às possibilidades republicanas. Assim, os descontentes com a restauração das influências estrangeiras afirmavam o Risorgimento – sem levar em conta a pluralidade política. 3 Hoje, Roncole Verdi 4 Foi registrado também com o nome de Joseph Fortunin François já que a região em qual nasceu possuía significativa influência francesa no contexto. 5 SOUTHWELL-SANDER, Peter. Verdi. Rio de Janeiro: Ediouro, 1994. 72 Imagem 8: Giuseppe Verdi6 Enquanto as ideias revolucionárias e nacionalistas continuavam se propagando, principalmente devido ao desenvolvimento econômico da região norte, Verdi crescia tendo seus primeiros contatos com a música. O futuro compositor começou seus estudos musicais com uma espineta, um instrumento musical similar ao cravo e, indiretamente, antecessor do piano, presenteada por seu pai. Este instrumento, tecnicamente simples e, no caso do utilizado por Verdi, em estado não satisfatório, foi o primeiro contato do jovem com a música sendo, também, o responsável por apresentar o teclado ao compositor que rapidamente se transformou em um exímio músico, sendo convidado por várias igrejas para ocupar o cargo de organista e sendo contratado por algumas. A partir destas oportunidades abertas principalmente pelas igrejas, Verdi começou a poder ajudar sua família e mais, começou a pensar na possibilidade da arte como forma de seu sustento futuro. A década de 1830 fez com que novas revoltas assolassem a Itália, principalmente a região de Parma, província na qual Verdi nasceu. Nos Estados de administração nobiliárquica os eventos giraram em torno dos anseios liberais; nos Estados eclesiásticos, localizados no centro da península, se combatia o poder papal 7; já nos domínios austríacos – localizados principalmente no norte – as questões expostas 6 Retrato de Giovanni Boldini, 1886. Vale lembrarmos que Francesco Saverio Maria Felice Castiglioni, Pio VIII, papa no contexto das revoltas de 1830, foi um dos que mais combateram as sociedades secretas do século XIX. Essas sociedades, no caso da península itálica, tinham relevante atuação no processo de unificação nacionalista, lutando contra a elite reacionária. 7 73 nas revoltas era o nacionalismo em si. Toda essa movimentação revolucionária, no entanto, não conseguiu o pretendido já que a intervenção austríaca por toda a península foi forte o suficiente para sufocar, rapidamente, essas possibilidades revolucionárias. Porém estes questionamentos apenas iriam se intensificar durante os anos que se seguiriam. Neste contexto revoltoso Verdi inicia sua produção operística e até o final da década já tinha escrito duas peças: Oberto, Conte di San Bonifacio [Oberto, Conde de São Bonifácio] e Un Giorno de Regno [Um dia de reinado]. Estas óperas do período de formação do compositor, apesar de não serem claramente nacionalistas, são um prelúdio para a próxima fase, a do romantismo nacionalista que se intensificariam na década de 1840 – assim como os questionamentos sociais da população. Neste meio tempo, em 4 de Maio de 1836, Giuseppe Verdi se casou com Margheritta Barezzi. Este casamento foi, porém, uma das principais causas de infortúnio do compositor: entre o casamento e o ano de 1840 Verdi e Margheritta tiveram dois filhos – Virginia e Icilio. Ambos morreram prematuramente e, em Junho de 1840 morreu a própria esposa do compositor, filha de um dos homens que mais o incentivaram em sua juventude no tangente a seu desejo de se transformar em compositor. Logo chegou o ciclo revolucionário da metade do século, a Primavera dos Povos. Este ciclo foi, em grande parte, o ponto final de reconhecimento popular e a unificação deve ser compreendida partindo deste evento. A revolta iniciada com a população, como é o caso da tentativa popular de expulsar os austríacos em Milão, rapidamente atingiu as necessidades burguesas e Carlos Alberto da Sardenha e do Piemonte, governante desde 1831, instaurou um governo de características liberais, firmando, assim, o parlamento. A partir desta postura, iniciou-se um conflito contra a Áustria em 1848, buscando expulsar o país estrangeiro de seus territórios. O conflito foi rápido já que as tropas austríacas presentes na península eram extremamente fortes e os italianos, lutando sozinhos, rapidamente foram sufocados. Após a derrota e a retomada da presença austríaca em 1849, Carlos Alberto abdicou do trono em favor de seu filho Vittorio Emanuele, então com 29 anos. As revoltas, populares, burguesas ou aristocráticas estavam sendo, todas elas, sufocadas. 74 Imagem 9: Le cinque giornate di Milano: Barricadas em Borgo delle Fontane, 18488 Vittorio Emanuele, destarte ser um monarca, começou a ter apoio popular, inclusive dos republicanos, quando anistiou os italianos revoltosos e manteve as características liberais instauradas por seu pai mesmo com o reestabelecimento dos austríacos o que foi claramente percebido como uma atitude de coragem. Logo a região da Sardenha-Piemonte se transformaria no centro dos anseios nacionalistas. Neste contexto e já antes dos levantes do final da década de 1840 a presença política de Verdi é significativa: em 1846 este compositor trocou o nome de um personagem de sua ópera Ernani já executada desde 1844. O personagem que originalmente chamava-se Carlo passou, naquele ano de 1846, a chamar-se Pio, devido à anistia concedida, também, pelo Papa Pio IX. No entanto, Il maestro, forma com que Verdi passou a ser chamado ainda em vida, não pode participar do serviço revolucionário que se aproximava devido, principalmente, a sua saúde deteriorada devido ao excesso de trabalho: entre 1839 e 1850 Verdi se lançou na composição de, pelo menos, 16 óperas9. Desta forma, seguindo várias revoltas individuais, a Itália foi se formando. Assim sendo, podemos identificar a diferença entre as revoltas da década de 1830 e de 1840: 8 Pintura de Donghi. Museu do Risorgimento. Florença. Oberto (1839), Un giorno de Regno (1840), Nabucco (1842), I Lombardi nella Prima Croata (1843), Ernani (1844), I due Foscari (1844), Alzira (1845), Giovanna d’Arco (1845), Atilla (1846), Macbeth (1847), I masnadieri (1847), Jerusalem (1847), Il Corsaro (1848), La Battaglia di Legnano (1849), Luisa Miller (1849) e Stiffelio (1850). 9 75 (...) as revoluções de 1848 manifestam a aliança da idéia de democracia com afirmação nacional. Se os movimentos revolucionários de 1830 buscavam sua inspiração básica no liberalismo, os de 1848, (...) na Itália são incontestavelmente de essência democrática.10 Visando a unificação italiana sob a força do Piemonte e da casa Sabóia, da qual era membro, Vittorio Emanuel II nomeou Camilo Benso, o Conde Cavour, líder da ala moderada, como seu ministro-chefe. A partir da inserção de Cavour na política, Vittorio Emanuel conseguiu reorganizar suas forças militares e firmar contatos com outras potências, notadamente a França e a Inglaterra, em busca de combater a presença austríaca dos Habsburgos no território italiano já reestabelecida. Devido ao contato de Cavour e da reorganização da Sardenha-Piemonte a França começou a auxiliar a corte italiana numa defesa contra uma possível invasão austríaca maior. Em seguida, a população de regiões dominadas pelos austríacos começou a lutar contra suas respectivas cortes, notadamente o caso de Parma. A atividade política de Verdi foi aumentando constantemente – nesse contexto suas principais óperas nacionalistas já tinham sido escritas e executadas, levando a este compositor fama a nível continental. Apesar de originalmente republicano, o compositor passou a perceber que apenas uma monarquia poderia ser capaz de expulsar os austríacos e criar as possibilidades políticas da unificação. A importância de Verdi foi tamanha que seu nome foi colidido com a representação de Vittorio Emanuel como rei de uma futura Itália unificada e a partir de 1859 um grito começou a ecoar por todo o território italiano: Viva V.E.R.D.I. Mais do que buscar consolidar a fama deste compositor, o grito funcionava como um acrônimo para Viva Vittorio Emanuele Re d’Italia [Viva Vittorio Emanuel Rei da Itália]. A Itália já tinha se rebelado durante a Primavera dos Povos e, agora, possuía também o fundamental apoio da França. O poder do Piemonte foi se consolidando e a Áustria começou a ser derrotada, perdendo cada vez mais seu poder de influência na península já que as outras casas monárquicas abriram mão de seus domínios em prol da casa Sabóia de Vittorio Emanuel ou buscando a não-execução certos de que a Revolução triunfaria derrubando-os do poder, como outrora aconteceu em outros Estados europeus. 10 RÉMOND, René; WILENTZ, Sean. Os ciclos revolucionários no século XIX. In: DARTON, Robert; DUHAMEL, Olivier (ORG). Democracia. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.60. 76 Imagem 10: O ‘slogan’ Viva V.E.R.D.I.11 Com as revoltas causando mortes, Verdi se solidarizou com as vítimas das revoltas e escreveu um apelo público: A vitória, conseguida pelos nossos valorosos irmãos, custou derramamento de sangue e dolorosos transes para milhares de famílias. Neste momento ninguém que possua um coração italiano pode furtar-se a concorrer, com todas as suas forças, para a santa causa pela qual se está combatendo. Propondo uma subscrição a favor dos feridos e das famílias dos que morreram pela pátria. Santa Ágata, 20 de Junho de 1859. G. Verdi12 A Itália ia se unificando em torno do Piemonte e da administração de Vittorio Emanuel e Verdi, com sua fama em ascensão, foi aclamado pelo povo como seu representante devido a sua ampla defesa da unidade italiana e suas declaradas posições anti-austríacas. Assim, Verdi enviou uma carta à administração de Busetto, na qual se lia: Ilmo. Sr. Prefeiro. A honra que os meus concidadãos quiseram outorgar-me, nomeandome representante à Assembléia da Província Parmense, lisonjeia-me e 11 Instituto di Studi Verdiani, Parma. No momento da divulgação deste grito, Verdi já tinha transferido seu apoio do grupo republicano para a monarquia de Sabóia. 12 VERDI apud SABBA, Marcílio. Vida de Verdi. São Paulo: Atena Editora, 1959, p.149. 77 enche-me de gratidão. Se meu escasso talento, os meus estudos, a arte a que me dedico, me tornam pouco apto para esse lugar, valha-me o grande amor que consagrei e consagro a esta nobre e infeliz Itália. Inútil dizer que, em nome dos meus representados e no meu, propugnarei por: Queda da Dinastina Borbônica; Anexação ao Piemonte; Ditadura do ilustre italiano Luigi Carlo Farina. Na anexação ao Piemonte reside a futura grandeza e regeneração da pátria comum. Quem sente correr nas próprias veias o sangue italiano deve querê-la fortemente, constantemente; dessa forma surgirá, ainda para nós, o dia em que possamos orgulhar-nos de pertencer a uma grande e nobre nação. Tenho a honra de confessar-me de V. S. Ilma. humilíssimo e devotadíssimo servo G. Verdi.13 Assim, como representante de Busetto na Assembléia das Províncias, o compositor foi encarregado de firmar contato com Vittorio Emanuele o que ocorreu com o sucesso esperado no dia 15 de Setembro de 1859. Com a Itália plenamente unificada entre as décadas de 1860 e 1870 e após todas as suas participações políticas, Verdi foi eleito membro da Câmara dos Deputados em 10 de Janeiro de 1861, seguindo um pedido pessoal de Cavour, de quem se tornou próximo quando do encontro com Vittorio Emanuel pouco tempo antes. A relação de Il maestro com Cavour foi também de extrema relevância para o modelo monárquico piamontês já que Verdi não possuía grande conhecimento político, votando sempre conforme Cavour. O compositor, devido a seu pouco contato com a política jamais chegou a discursar. Verdi ficou pouco tempo na política, porém, após o término do processo de unificação, é nomeado senador pelo próprio rei em 1874. Cargo honorífico no qual permaneceria por pouquíssimo tempo apenas aceitando o título por agradecimento ao rei. No final de sua vida, o compositor ainda conseguiu abrir uma Casa de Repouso para antigos músicos, morendo nesta em 1901. 3.2 Verdi: estilo Servindo como local de representação de sentimentos de unidade nacional, as Casas de Ópera na Itália e seus compositores acabaram defendendo o modelo clássico e tradicional de escrita musical. Assim, a música italiana – principalmente a operística –, 13 VERDI, apud, SABBA, Op. Cit., p.151. 78 na visão dos principais compositores e centros culturais da Europa, estava estagnada no início do século XIX. Esse panorama contrastava com o apresentado nos séculos anteriores, quando a música produzida na Itália era encarada como o modelo único a ser seguido pelas mais importantes cortes do continente. Verdi, buscando que sua arte servisse às problematizações político-sociais pouco mudou este panorama produzindo, portanto, uma música de característica composicional tradicionalista. É possível percebermos que o início da obra de Verdi é fiel à tradição italiana de composição, ou seja, a prevalência da melodia vocal sobre quaisquer outras possibilidades, com a utilização, portanto, de uma métrica rígida. Logo, o texto tem que ser adaptado à música com repetições de trechos e palavras, alargamento ou diminuição de fonemas e deslocamento de tônicas para melhor manutenção da sequência melódica – o texto se subordinou à música. Com o passar do tempo, porém, Verdi iniciou uma série de tímidas inovações que acabariam modificando o panorama operístico italiano. Exemplo disso é fato do compositor permitir que a própria letra sugira a música. A sua maneira, portanto, Verdi buscou a melhor interação entre a melhor interação entre letra e música, assim como vários outros compositores da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX14. A partir destas problematizações e pequenas inovações Verdi encontra a possibilidade de escrever os recitativos, peças de transição narrativa na ação operística, de forma cantada para suas peças. Além de se utilizar de recitativos operísticos cantados, o compositor de Roncole se utilizou, também, da orquestra como total acompanhante da linha vocal, tal qual os compositores italianos anteriores a ele. Assim, se estabeleceram os dois lados da crítica: aqueles que focavam suas análises no recitativo o acusavam de modificar a parte teatral da ópera sendo, portanto, muito inovador; os que percebiam as manutenções na orquestra como acompanhante melódica o acusavam de conservadorismo musical. Na verdade, o que Giuseppe Verdi buscou foi a conciliação entre as possibilidades modernas e as antigas – partindo destas, é claro. Daí a célebre frase do compositor escrita em uma carta de e 4 de Janeiro de 1871 e endereçada ao musicólogo, compositor e historiador da música Francesco Florino.: torniamo all’antigo, sarà un progresso [Tornemo-nos antigos, será um progresso]. Percebemos, portanto, que as principais alternativas do estilo verdiano de composição estão localizadas na prática do canto e, neste compositor, a melodia passa a 14 Essa busca por interação pode ser encontrada em autores como o russo Modest Mussorgski, o francês Claude Debussy e o alemão Richard Strauss. 79 ter características instrumentais, aprofundando, assim, as possibilidades expressivas das cenas. Desta forma, Verdi sintetizou a tradição italiano do bel canto15 com as necessidades narrativas do conjunto operístico tão necessário com as inovações do século XIX. Um outro ponto de relevância composicional no estilo verdiano, se não o mais importante, é a condução da ária enquanto número operístico16. A ária, desde a criação da ópera em próprio território italiano, sempre foi a peça em que os próprios italianos mais se identificaram, principalmente por sua tradição coralista que remonta ao medievo. A execução italiana das árias operísticas com grande emotividade e seu caráter virtuosístico fez com que o modelo peninsular de escrita e principalmente de intérpretes se sobressaíssem a outros. Verdi não busca, assim, modificar estruturalmente este número tão arraigado às necessidades sócio-culturais dos italianos. Como solução a este panorama, o compositor passou a escrever poucas árias solos buscando, no lugar disto, criar diálogos entre o personagem solo e coro. Assim, o compositor conseguiu colocar vários personagens executando diferentes falas simultaneamente para atingir uma continuidade cênica – característica que poucas tradições operísticas conseguiam. O que Verdi consegue é fazer com que a coloratura17 ariosa perca o papel decorativo e virtuosístico transformando-se em expressão das emoções das personagens. Assim, o texto e a música passam a caminhar sem subordinações. A partir disto, podemos perceber, por exemplo, que em óperas como Otello e Falstaff a ária já está diluída e inserida na ação operística18. Buscando estas possibilidades humanas, Verdi passou a escolher os cantores pelas características das atuações cênicas e não apenas pelas qualidades vocais exigidas pela música. Esta marca, no compositor italiano, define sua especificidade perante a maior parcela dos compositores românticos: apesar de a maioria procurar a boa interpretação teatral, apenas Verdi hierarquiza a pratica musical como inferior à boa atuação – no geral buscava-se o equilíbrio. Assim, Il maestro já podia se utilizar de 15 Chamamos de bel canto toda a tradição do canto operístico italiano. Esta tradição inovou, desde o século XVII, na técnica vocal em áreas como a respiração, as mudanças nos registros tímbricos da voz e a ampliação e controle da amplitude vocal. 16 Enquanto o recitativo é o trecho narrativo da ópera e, portanto, próximo à fala. A ária é o trecho virtuosístico de máxima emoção da peça, geralmente executada apenas por um indivíduo, que se faz central na peça. 17 Ornamentação do fraseado melódico do canto geralmente buscando a demonstração da técnica do solista. 18 Esta característica de escrita em Verdi já é evidente em óperas como La Traviata de 1853 e Rigoletto de 1851. 80 situações consideradas originalmente não-musicais como temática central a suas criações. Os debates acerca da liberdade, as conspirações políticas e as cenas de conflito ganham seu espaço, buscando representar o indivíduo do Risorgimento. Verdi, então, consegue sintetizar as obras de Gioachino Rossini, Gaetano Donizetti e Vicenzo Bellini, célebres operistas italianos do início do século XIX. A partir da dissolução da ária dentro do contexto musical e da percepção humanista do compositor – principalmente na escolha dos atores – a crítica passou a afirmar que a melodia era demasiadamente simples. Esta característica, no entanto, era proposital e a melodia fica simples quando a ação cênica diminui. E mais, Verdi ampliou as possibilidades de diálogo entre as personagens centrais e o coro, representante dos mais variados agrupamentos. Assim, a população que assistia a encenação podia, indiretamente, se perceber como personagem e, na maioria das vezes, esse é o intuito do próprio compositor. Desta forma, as cenas de multidão constantes, característica que herdou da grand opéra francesa com a qual também teve contato, passavam a representar as necessidades nacionais que o público buscava sendo, muitas vezes, censuradas pelas autoridades austríacas presentes. Imagem11: Uma cena de Don Carlos (1867)19 Um último ponto relevante deve ser mencionado dentre as características do estilo empregado por Giuseppe Verdi em sua escrita: apesar de não se utilizar de motivos condutores e de uma lógica definida de melodia infinita, este compositor se utilizava das possibilidades proporcionadas pelos temas recorrentes (musicais e 19 Bibliotheque-Musee De L'opera National De Paris-Garnier. 81 literários). Ou seja, Verdi reaproveitava temas, das mais variadas formas, durante a execução do enredo. Esta característica de inovação é notada, por exemplo, em óperas como Don Carlo, sua ópera de 1867 com libretto de Camille du Locle e Joseph Méry, uma das mais relevantes para a análise do estilo do compositor. 3.3 Nabucco: a escrita, a música e o enredo da ópera Verdi, em 1840, tinha acabado de passar pela perda de seus filhos e de sua esposa, Margheritta. Jurando se afastar da arte, encontrou em seu antigo companheiro, o agente do La Scala de Milão Bartolomeo Merelli, a possibilidade de sua vida. Merelli ofereceu ao compositor um libretto de Temistocle Solera que fora negado pelo compositor alemão Otto Nicolai20. Era o libretto de Nabuccodonosor. O librettista já havia trabalhado com Verdi em sua primeira ópera, Oberto, Conte de San Bonifacio, e estava ganhando cada vez mais reconhecimento além de cada vez mais estar se aproximando do compositor21. Apesar de não desejar voltar à música após os infortúnios de seus últimos anos, Verdi se encantou com o texto da ópera. Em pouco tempo, com o libretto revisado pelo autor, exigência de Verdi, o compositor terminou a música. Era o segundo semestre de 1841 quando do término da música e, em pouco menos de um ano, Verdi se transformaria no compositor mais relevante do nacionalismo italiano. Conseguir que a ópera fosse encenada, no entanto, foi mais difícil. Verdi buscou escrever uma peça solene, dando mais importância à atuação impactante do que ao sentimentalismo comum do momento, o que encarecia muito a apresentação. A solução foi encontrada quando o compositor e os agentes do La Scala de Milão, uma das principais casas de ópera do mundo à época e responsável pelo contrato de Nabucco, entraram no acordo de encenar a peça utilizando a cenografia e os acessórios de óperas anteriores que possuíam ambientação temporal e temática próximas. 20 Otto Nicolai (1810 – 1849) foi um dos fundadores da Filarmônica de Viena e já havia escrito a música de um outro libretto de Solera: Gildippe ed Odoardo, em 1840. 21 Apesar de manterem uma relação extremamente próxima, Verdi rompeu com Solera a partir do momento em que percebeu que este estava perdendo muito dinheiro no jogo e abrindo mão de sua produção de excelência. Verdi, durante toda a vida, foi conhecido pela gentileza com a qual tratava aqueles que com ele trabalhavam. Porém, além da gentileza, Verdi também ficou conhecido por seu temperamento forte que proibia qualquer tipo de vício àqueles que o cercavam (Cf.: WALKER, Frank. The Man Verdi. The University of Chicago Press, 1982). 82 Imagem 12: Temistocle Solera22 Determinada como seria feita a estreia da ópera, os ensaios começaram. Entre os ensaios e a encenação tudo correu muito rápido: os ensaios iniciaram-se em Fevereiro de 1842 e já no dia 9 do mês seguinte a ópera estreou no teatro milanês. Imagem 13: Cartaz da primeira apresentação de Nabucco23 Nabuccodonosor, neste contexto já era conhecida oficialmente apenas por Nabucco, um nome menor e, portanto, mais fácil para o público se recordar. Já na própria première a obra foi ovacionada e Verdi afirmaria posteriormente acerca da apresentação: 22 Fotografia de 1879. A primeira apresentação contou com a atuação dos seguintes cantores: Giorgio Ronconi, barítono, como Nabuccodonosor; Giuseppina Strepponi, soprano, como Abigail; Giovannina Bellinzaghi, mezzosoprano, como Fenena; Corrado Miraglia, tenor, como Ismael; Prosper Dérivis, baixo, como Zacarias; Teresa Ruggeri, soprano, como Anna; Napoleone Marconi, tenor, como Abdallo; Gaetano Rossi, baixo, como o Grande Sacerdote de Baal. 23 83 Pode-se dizer que, com está ópera, começou a minha carreira artística. Se é certo que afrontei muitas contrariedades, deve-se reconhecer que Nabucco nasceu sobre uma estrela propícia, visto que as circunstâncias, tendentes a produzir efeitos perniciosos, originaram, afinal, bons resultados. De fato: escrevi uma carta furibunda a Merelli, provável era ele irritar-se e não se importar mais com a partitura; sucedeu o contrário24. Mesmo com a peça sendo tão bem recebida pelo público, alguns críticos afirmavam que a ópera não alcançava tanta qualidade na técnica de escrita – o que, na verdade, não mudou a opinião do público nem de compositores como Donizetti que, publicamente, declararam seu agrado perante a obra. Graças ao amplo sucesso de Nabucco, os contratos seguintes de Verdi garantiam 8000 liras austríacas, uma quantia elevada para um músico sem nenhum sucesso ainda escrito – a mesma quantia paga, por exemplo, à Norma de Rossini, compositor já consagrado no período. Essas negociações, contudo, não eram realizadas por Verdi, que ainda sentia falta da vida afastada dos centros que teve em sua infância e não conhecia as regras das negociações operísticas italianas, muito complexas no momento mesmo para compositores já antigos. Giuseppina Strepponi, a Abigail da estreia, intermediou as negociações – com o tempo, esta conquistaria o compositor, se transformando em sua segunda esposa. Ainda em Março de 1842, mês da primeira apresentação, e devido ao amplo sucesso e repercussão da ópera, Verdi conseguiu que esta fosse editada por Giovani Ricordi25, um dos principais editores de música da Itália no contexto. Com a venda dos direitos da partitura, conseguiu, mais uma vez com o intermédio de Giuseppina, um somatório de 2500 liras austríacas. Na capa da partitura impressa, contudo, havia uma menção curiosa, a seguinte: “Musicado e humildemente dedicado a Sua Alteza Real a Sereníssima Arquiduquesa Adelaide da Áustria em 31 de Março de 1842 por Giuseppe Verdi”26. Apesar de parecer contraditória esta dedicatória em uma ópera identificada como sendo nacionalista foi necessária. O compositor estava no início de sua carreira e, com isto, buscou evitar a censura tão comum na época. Além do mais, aquilo que parecia contraditório acabou sendo extremamente relevante no próprio contexto da unificação nacionalista italiana já que, pouco tempo depois, a Arquiduquesa Adelaide 24 VERDI apud SABBA, Op. Cit., p.60. Na verdade, como costume da época, a principal impressão feita era da parte vocal com a redução orquestral ao piano. 26 SOUTHWELL-SANDER, Peter. Op. Cit. 25 84 da Áustria se casou com o Duque de Sabóia, Vittorio Emanuel, futuro rei da Itália unificada. A ópera se passa entre Jerusalém e a Babilônia, no século VI a.C. período de constantes invasões. O povo de Jerusalém implora a Deus, então, que impeça os invasores de tomarem o templo sagrado, porém as notícias que chegam à cidade é de que Nabuccodonosor, rei da Babilônia, continua avançando em direção ao território judaico. Ismael, parente do rei de Jerusalém e responsável pelas atualizações da população acerca dos avanços de Nabucco, fica sozinho com Fenena, filha de Nabucco, que fora levada pelos hebreus contudo o jovem amava secretamente Fenena desde o momento em que esta o retirou da prisão quando de sua prisão pelos babilônios por ter sido um emissário oficial de Jerusalém. Neste momento deste primeiro ato surge Abigail, suposta irmã de Fenena e, portanto, filha de Nabucco, seguida por soldados babilônios e ameaça o casal de morte. Todavia, Abigail nutre, secretamente, amor por Ismael oferecendo-lhe uma forma de sobreviver. Zacarias chega à cena quase que no mesmo momento em que Nabucco surge. Assim, Zacarias, um sacerdote de Jerusalém, ameaça assassinar Fenena caso o rei da Babilônia profane o templo. Ismael, contudo, em um ato que mescla bravura e amor, impede que Fenena morra, abrindo possibilidades para que Nabucco ordene o saque do templo. No segundo ato presenciamos o sequestro dos judeus, levados ao cativeiro na Babilônia. Assim, ao chegar na Babilônia, encontram Fenena como regente, já que o rei se ausentou devido às guerras que empreendia. Logo, Abigail, enciumada pela preferência do pai pela irmã, vasculha o próprio passado, descobrindo que é uma escrava, assim como a população da Babilônia sempre afirmava. Neste contexto, o sacerdote de Baal afirma a Abigail que Fenena libertou os judeus, inflamando na escrava a vontade de usurpar o trono, espalhando um boato acerca da morte do rei. A cena muda para os hebreus que invocam a proteção de Deus. O povo condena Ismael por traição porém Zacarias os lembra de que, graças a intervenção de Ismael, Fenena se converteu ao judaísmo, libertando todos os prisioneiros. Surge, então, Abdallo, um antigo oficial de Nabucco afirmando, conforme o plano do sacerdote e de Abigail, que Nabucco morreu em combate e que esta planeja tomar o trono da irmã de criação a qualquer custo. No momento em que Abigail surge para exigir o poder do reino, reaparece Nabucco que retoma o poder repreendendo sua filha de criação. Assim, Nabucco se proclama um Deus vivo, exigindo que Zacarias e Fenena se ajoelhem perante sua presença. Na mesma hora e sem qualquer explicação humana, a coroa de 85 Nabucco é arrancada de sua cabeça no momento em que se ouve um trovão. O rei ficou louco e suas palavras já não mais fazem sentido. Este é o momento perfeito para o golpe e Abigail consegue pegar a coroa para si e se proclamar administradora única da Babilônia. Durante o terceiro ato Abigail inicia sua regência com o apoio dos sacerdotes. Em troca do apoio destes clérigos prometeu a execução dos judeus e de Fenena. Neste instante, Nabucco, já deposto, é levado, por Abdallo, à presença da filha de criação. Ao seguir ocorre um longo dueto entre os dois – um dos mais conhecidos do compositor italiano. Após o término do dueto, a cena se muda para os judeus escravizados que entoam próximos, ao rio Eufrates, o clássico cântico de louvor à pátria perdida, Va, pensiero. Zacarias, o sacerdote hebraico, ao perceber a atitude repreende o pessimismo de sua população afirmando que o Deus poderoso de Israel os salvará, derrubando a potência invasora. Imagem 14: Concepção artística da Babilônia27 O quarto e último ato inicia-se na prisão com o despertar de Nabucco ouvindo os pedidos públicos pela execução de Fenena e dos judeus. Desesperado, o rei pede perdão ao Deus no qual a filha crê, pedindo também que a salve. Abdallo, seu servo, como um enviado por Deus, liberta Nabucco que impede que Abigail proceda com o crime. No mesmo momento os falsos ídolos da Babilônia tombam. A cena é interrompida com a chegada de Abigail que se envenenara e encontra-se à beira da morte suplicando perdão. 27 Esta representação da Babilônia, com seus jardins suspensos, produzida por Maarten van Hemmskerck (1498 – 1574), foi comum na Europa entre os séculos XVI e XIX a partir deste, os estudos históricos influenciaram nas modificações desta representação. No detalhe ao fundo, percebe-se a representação da Torre de Babel. 86 Após a morte desta, Zacarias deseja a glória a Nabucco, uma vez que este acaba de encontrar a verdadeira divindade. Iniciando-se com uma abertura convencional na qual os grandes temas corais são exmplorados, Nabucco possui características singulares. Esta peça demonstra claras modificações no estilo composicional verdiano. Assim, Verdi conseguiu superar as duas primeiras óperas que escreveu, Oberto e Un Giorno di Regno, que foram, no geral, consideradas mornas pela crítica especializada. Sem dúvidas é uma das óperas mais importantes escritas por este compositor sendo, também, seu primeiro sucesso. Verdi se empenhou em caracterizar musicalmente seus personagens. Todavia, a personagem principal desta peça é a própria massa judia de exilados e se, compararmos as figuras públicas com as representações emotivas individuais, veremos que estas são acessórias se comparadas àquelas. 3.4 La Battaglia di Legnano: a escrita, a música e o enredo da ópera Possuímos poucos relatos da época sobre La Battaglia di Legnano. Anotações do próprio compositor ou dos envolvidos na produção também são poucas e, no geral, extremamente superficiais para a análise do processo criativo desta ópera. Essa ausência é compreensível: a ópera foi escrita rapidamente e não chegou a ser planejada pelo compositor. Não atingindo, também, sucesso duradouro. Nascido em 1801, Salvadore Cammarano foi um dos principais librettistas italianos do século XIX. Tendo trabalhado com Donizetti em variadas óperas28. Este autor era próximo de Verdi desde o início da década de 1840 quando da escrita do libretto de Alzira. Assim, inflamado pelo furor revolucionário do contexto, iniciou o texto daquela que seria considerada a mais nacionalista das óperas do compositor italiano, La Battaglia di Legnano. Para a escrita deste libretto, Cammarano se baseou em uma obra que o agradava, La Bataille de Toulouse. Escrita pelo francês Joseph Méry (1797 – 1866), a obra foi rapidamente transformada em libretto pelo italiano que, ao morrer, em 1852, deixou aproximadamente 40 textos operísticos. 28 Incluíndo Lucia di Lammermoor, uma das peças mais conhecidas deste compositor. 87 Imagem 15: Salvadore Cammarano A peça, dividida em quatro atos e ambientada entre Milão e Como no contexto de defesa da península por parte da Liga Lombarda durante a presença do germânico Federico Barba-Ruiva – o século XII – inflamou o patriotismo nos corações italianos obtendo significativo sucesso popular. A crítica, no entanto, afirmou que o sucesso da peça ocorreu devido ao momento sócio-político que atravessava a Europa e, notadamente, a península itálica da época sendo, assim, considerada uma pièce d’occasion. Apesar da inflamação que a peça causou, com o tempo a ópera realmente foi deixada de lado se compararmos às outras óperas de Verdi deste contexto. Os críticos, contudo, alternaram-se quanto a validação estética da obra. Verdi rapidamente musicou o texto que o agradou, como era de costume em seu trabalho. Para musicar esta ópera o compositor gastou apenas o verão de 1848, o que ocorreu devido a um cancelamento contratual promovido por parte do teatro San Carlo de Nápoles que desejava uma ópera de Verdi. A partir do momento em que o teatro napolitano rompeu o contrato, liberou Verdi para se dedicar a este texto de Cammarano. A produção e os ensaios foram supervisionadas, diretamente, pelo compositor. Assim sendo, La Battaglia di Legnano estreou no Teatro Argentina de Roma no dia 27 de Janeiro de 1849, durante a temporada de carnaval daquele ano que coincidia com o final das revoltas populares iniciadas no ano anterior na França. A peça foi recebida com entusiasmo pelo público devido à atualidade de seu tema. Desta forma, a primeira performance contou com a presença em cena do baixo Pietro Sottovia no papel de Federico; dos baixos Alessandro Lanzoni e Achille Testi encarnando os cônsules milaneses (primeiro e segundo, respectivamente); o baixo Filippo Giannini como autoridade de Como; o barítono Filippo Colini no papel de Rolando, o líder milanês; Teresa De Giuli-Borsi, soprano, no papel de Lida, esposa do líder milanês; o tenor Gaetano Franschini como Arrigo, um guerreiro de Verona; Ludovico Butia, barítono, 88 como Marcovaldo, o prisioneiro germânico; Vincenza Marchesi, mezzo-soprano, interpretando Imelda, a serva de Lida; Mariano Conti, tenor, no pequeno papel do escudeiro de Arrigo e, por último, o tenor Gaetano Ferri como o arauto. Durante a abertura da ópera já é evidente o caráter militar que a peça carregará durante toda a exibição. A abertura conduz à primeira cena do ato inicial que se passa em Milão. Logo no início percebemos a formação de uma Liga entre várias cidades da Lombardia – a Liga Lombarda. Este grupo busca organizar um contingente para combater Federico Barba-Ruiva (Federico I) do Sacro Império Romano Germânico que se aproxima do território italiano. Nesse contexto, Rolando, comandante dos milaneses, descobre que as tropas de Verona são comandadas por Arrigo, um antigo amigo que julgava ter morrido há muito. No momento em que se encontram, entende-se que esteve sumido por ter sido preso em combate e não por ter morrido. Assim, e como de costume nos textos de Verdi deste momento, um coro se forma e nele ocorre a promessa de se morrer pela pátria italiana, promessa essa reafirmada pelos amigos. A segunda cena deste ato inicia-se com Lida e seus seguidores em um jardim. A cena caminha com delicadeza até o momento em que são interrompidos por Marcovaldo, o prisioneiro germânico que se encontra apaixonado por esta. Após as declarações de Marcovaldo, Lida se espanta e o afasta de si. Neste momento chegam os amigos Arrigo e Rolando e Marcovaldo percebe que Lida está dividida entre os dois. A partir disto, Lida e Arrigo ficam sozinhos e o amor secreto é finalmente revelado de forma direta ao público. Neste diálogo, Arrigo critica Lida por ter se envolvido com Rolando e não ter permanecido fiel ao compromisso que tinham antes dela julgá-lo morto. O segundo ato se passa na cidade de Como no norte da península itálica (Lombardia). Neste local, Arrigo e Rolando se encontram com os chefes das regiões do entorno procurando convencê-los de colaborarem nas lutas contra os estrangeiros. A administração de Como, no entanto, se recusa a combater as tropas de Federico, afirmando que possuem um tratado firmado com este que garante sua segurança. A afirmação da administração enfurece os representantes que buscavam a colaboração desta região e, assim, Arrigo e Rolando afirmam que o futuro da Itália está sendo negado pelos próprios italianos que aceitam determinadas invasões. Seguindo isto, o Imperador Germânico surge e afirma aos representantes de Verona e Milão que a derrota dos italianos se aproxima com velocidade cada vez maior. Após perceberem os acampamentos germânicos, Arrigo e Rolando, mesmo temendo pelo futuro da pátria, 89 mantêm a confiança na vitória da Liga Lombarda jurando, uma vez mais, morrer pela vitória italiana. O terceiro ato inicia-se em Milão, no momento no qual Arrigo é aceito dentre os Cavaleiros da Morte – o grupo que jurou defender a liberdade da pátria com a própria vida. Em seguida, na segunda cena, Lida escreve uma epístola para Arrigo e ordena que seja levada por sua criada. Ao seguir, Rolando, pressentindo a morte que se aproxima, se despede de Lida no momento em que Arrigo chega comunicando ter sido aceito dentre os Cavaleiros e a partir disso prometem, um ao outro, que quem sobreviver cuidará de Lida e da pátria. Marcovaldo, neste momento, entrega a Rolando a carta escrita por Lida e destinada a Arrigo. Assim, o líder milanês jura vingar-se daquilo que considera traição. Já na terceira e última cena do terceiro ato Lida vai ao encontro de Arrigo afirmando que, apesar de amá-lo, devem parar de se encontrar. Na sequência os dois percebem que Rolando se aproxima e Lida fica escondida na sacada dos aposentos. Ao que Rolando chega à cena, e encontra sua esposa escondida. Quando o milanês se prepara para matar o amigo traidor, ouve o chamado dos instrumentos de guerra. Rolando percebe, então, que a melhor opção é punir Arrigo trancando-o no quarto e fazendo com que este não lute na batalha patriótica que se aproxima quebrando, assim, o juramento outrora feito aos compatriotas e aos outros Cavaleiros. Arrigo, objetivando não fugir da contenda, salta pela janela. Imagem 16: A Batalha de Legnano29 29 La Battaglia di Legnano de Amos Cassioli (1832 – 1891). Pintada no ano de 1860, encontra-se, hoje, na Galleria d’Arte Moderna de Florença. Este pintor foi extremamente admirado em seu tempo por sua atividade patriótica e esta pintura, que acabou fazendo-o conhecido, retrata plenamente sua percepção nacionalista. 90 O quarto e último ato se passa na catedral de Milão com a presença de todo o povo que espera as notícias da frente de batalha de Legnano. A notícia chega e é do agrado dos italianos: os germânicos foram derrotados, se retirando dos territórios. Arrigo, após conseguir sair do local no qual foi preso por Rolando, foi de importância fundamental na batalha, tendo derrubado o próprio imperador. Contudo, mesmo conseguindo a vitória, Arrigo foi ferido e, agonizando, entra na cena levado pelos Cavaleiros da Morte em direção à catedral. Lida e Arrigo garantem, então, a Rolando que ambos são inocentes. No momento em que Rolando os compreende e os perdoa, tomando Lida pelos braços, Arrigo morre beijando a bandeira enquanto a população comemora a vitória. A ópera La Battaglia di Legnano não possui nenhuma significativa modificação estilística em relação às óperas escritas antes de Verdi e conquistou o público exatamente por ser feita nos moldes tradicionais italianos, não se submetendo a nenhuma possibilidade estrangeira – que, com o tempo, estavam ganhando o cenário operístico europeu. Mais que sobre o tradicionalismo ou a inovação das óperas de Verdi, a historiografia contemporânea deve, também, basear suas problematizações nas possibilidades de interpretação sócio-política das obras verdianas e como estas são artefatos plenamente utilizáveis pela percepção popular durante o contexto da unificação nacional italiana ocorrida no século XIX. 91 CAPÍTULO IV: EM PERSPECTIVA COMPARADA, O NACIONALISMO NAS ÓPERAS DE VERDI E WAGNER ENTRE 1830 E A PRIMAVERA DOS POVOS Compreendida a singularidade dos contextos sociais nos quais estavam inseridos Richard Wagner e Giuseppe Verdi, ou seja, a Alemanha e a Itália, devemos, então, compreender como as obras das décadas de 1830 e 1840 destes personagens são representantes do nacionalismo do período. E mais, como estas mesmas obras fundamentam e divulgam as necessidades nacionais de unificação alemã e italiana. O século XIX, principalmente aquele momento denominado de Primavera dos Povos – as revoltas iniciadas em 1848 e terminadas em 1849 – foi analisado pelo historiador Eric Hobsbawm, recentemente falecido nos seguintes termos: (...) a revolução que eclodiu nos primeiros meses de 1848 não foi uma revolução social simplesmente no sentido de que envolveu e mobilizou todas as classes. Foi, no sentido literal, o insurgimento dos trabalhadores pobres nas cidades – especialmente nas capitais – da Europa Ocidental e Central1. Dessa forma, compreendemos o ciclo revolucionário da década de 1840 como sendo a manifestação plural de grupamentos sociais diversos. Cada um destes grupos com uma necessidade específica a ser defendida dentro do ambiente revoltoso. Contudo, todas as reivindicações fundamentaram-se no nacionalismo social e na política econômica2. Assim, percebemos que as interpretações artístico-culturais oferecidas por Richard Wagner no caso germânico e por Giuseppe Verdi no caso italiano são aproximações de seus respectivos quadros sociais. Lembremos que o sociólogo e dramaturgo francês Jean Duvignaud demonstrou que o contexto, ou o quadro social, conforme este sociólogo nomeou, influencia diretamente na produção artística, chegando a afirmar que [partindo das variações artísticas] poderíamos analisar como uma estética de princípios análogos, mas em quadros sociais diferentes, 1 HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções (1789-1848). 6ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p.329. 2 REMOND, René. O século XIX: introdução à história de nosso tempo. São Paulo: Editora Cultrix, 1990. HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. 3ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2002. 92 desenvolve-se de maneira inteiramente diversa segundo a moda de intervenção que implica o tipo de sociedade onde se define.3 Neste ponto, devemos perceber que os ciclos revolucionários do século XIX são intimamente ligados à criação e manutenção do romantismo, entendido aqui como uma estética de princípios análogos e execuções diversificadas. O ideário deste estilo romântico começou com “uma revolta pequeno-burguesa contra o classicismo da nobreza, contra as normas e os padrões, contra a forma aristocrática e contra um conteúdo que excluía todas as soluções ‘comuns’”4. Logo, desde o seu princípio o romantismo está intimamente ligado a revoltas. Desta forma, a revolução acaba transformando-se na chave para entender os estilos composicionais de Richard Wagner e de Giuseppe Verdi5. A historiografia contemporânea não deve analisar personagens como Wagner e Verdi de forma estritamente artístico-cultural ou política, mas sim deve procurar compreender como estes compositores deixam de ser meramente produtores poéticos e passam a ser pensadores político fazendo uma clara interação entre política e cultura6. A partir desta possibilidade, devemos compreender como o romantismo, principalmente o existente na Alemanha e o comum na Itália7, passam a ser mais políticos do que artísticos8. Assim, podemos analisar como o indivíduo se coloca na história e como a sua percepção política é apagada por sua percepção poética. É perceptível, portanto, que os compositores do período interpretam o próprio momento artístico ao que se filiam – o romantismo – como sendo uma possibilidade estética integrada na vida social, cultural e política. Assim, mais do que entendermos o movimento romântico como o imaginário contemporâneo propõe, ou seja, afastado das 3 DUVIGNAUD, Jean. Problemas de Sociologia da Arte. In: VELHO, Gilberto (ORG). Sociologia da Arte (Volume I). 2ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971, p.23-36 (textos básicos de Ciências Sociais). 4 FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 3ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971, p.64. Fischer afirmaria também que “[O romantismo é] o reflexo mais completo das contradições da sociedade capitalista em desenvolvimento.” (Op. Cit. p.63) e que ‘A revolução (as atitudes adotadas em face dela como um todo e em face de cada uma das suas fases) é a verdadeira chave para a compreensão do movimento romântico’ (Idem, p.65). Acerca da relação entre o romantismo e as revoltas comuns no século XIX, conferir, também, TALMON, J. L. Romantismo e Revolta: Europa 1815-1848. Lisboa: Editorial Verbo, 1967. 5 Acerca da relação do Romantismo com a Música, Cf.: KIEFER, Bruno. O Romantismo na Música. In: GUINSBURG, J. O Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978, p.209-238. 6 Ver: MALHERBE, Henry. Richard Wagner révolutionnaire. Paris: Albin Michel, 1938. MILLINGTON, Barry. Wagner: um compêndio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. CONATI, Marcello (ed). Encounters with Verdi. New York: Cornell University Press, 1984. 7 Cf. : ROSEN, Charles. A geração romântica. São Paulo: EDUSP, 2000. 8 Ver: SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação Liberdade, 2010. LÖWY, Michael. Romantismo e política. São Paulo: Paz e Terra, 1993. 93 atitudes políticas e preocupado apenas com o interior sentimental humano, devemos pensar como os próprios artistas compreendiam esta estética a qual se filiavam. Ou seja, devemos perceber que o próprio artista romântico buscava a afirmação da arte de artista, quebrando com o sistema cultural mantido pelos regimes políticos anteriores. Daí a compreensão da necessidade da afirmação nacional-burguesa9. Assim sendo, se em todos os momentos históricos os artistas devem ser compreendidos pela tríade indivíduo-obra-contexto, essa característica de amplitude de entendimento acentua-se dentro das produções do romantismo10 e mais, esse sujeito, o artista romântico, pode e deve ser encarado com as características de intelectual já que, no geral, são ativos no espaço público11. 4.1 A política em Rienzi e Lohengrin Rienzi, uma das mais discutidas dentre as óperas de Richard Wagner é um claro exemplo da percepção política e nacional do compositor germânico. Logo no início do enredo, em uma afirmação do tribuno durante o primeiro ato, percebemos que a aristocracia existente na cidade de Roma, representada pelas famílias Orsini e Colonna, foi a responsável por transformar esta cidade em um ‘covil de ladrões’. Estes aristocratas, no fundo, apenas se preocupam com a manutenção de seu status quo e com a defesa de suas honras individuais, esquecendo-se da glória da própria cidade e das necessidades de sua população – principais preocupações de Rienzi. Aqui já percebemos, claramente, a posição política do compositor germânico. Ou seja, Wagner demonstra sua aversão inicial a qualquer forma de concentração de poder na mão de camadas aristocráticas defendendo, portanto, a distribuição de poder para todos, assim como o grupo republicano defendia na Confederação Germânica após a assinatura do Tratado de Viena e o reestabelecimento de determinadas monarquias em continente europeu. 9 Mário de Andrade já afirmou que “[o romantismo] não queria nem profanizar nem regenerar coisíssima nenhuma em arte. Queria sinceramente dignificar e elevar o povo. E por isso se preocupou em mostrar o que era o povo, chamando atenção, reforçando, acentuando, eloqüentizando as maneiras de sentir e de agir populares. Neste reforçamento, que o processo específico do Romantismo, está a deformação que ele imprimiu ao espírito do povo” (ANDRADE, Mário de. Pequena história da música. 4ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1953, p.134). 10 ARAÚJO, Nando. Quando as musas usam máscaras: ídolos e ideologias em música. São Paulo: Apontamentos, 2002, p.40. 11 Acerca desta nossa percepção de interação entre artista e intelectual, cf. Apêndice II. 94 Ainda no primeiro ato percebemos que Rienzi consegue a confiança do povo de Roma através do apelo que estes faziam por representatividade política. Porém, o tribuno se afastará da representatividade concentrada de poder ao negar a possibilidade ofertada de se transformar em monarca de Roma. Seguindo este fato, Rienzi promete à população acordar Roma de seu sonho desde que estes jurem protegerem a honra e a liberdade da Cidade Eterna transformando-o em Tribuno do Povo. Wagner consegue, assim, demonstrar um reconhecimento identitário nos seguintes termos: a partir de um momento em que diferentes núcleos sociais combatem um mal maior em conjunto, podem obter sucesso com maior facilidade, transformando uma população fragmentada em una, assim como ocorre na ópera. Para afirmar a necessidade de unidade popular como emanada da própria população, Richard Wagner se utiliza, na terceira cena do segundo ato, de um clamor popular que pede a união italiana total. Essa união, a partir do momento em que ocorre, é responsável, enfim, por apaziguar as divergências políticas internas e a subordinação da maioria popular à minoria aristocrática. Porém os aristocratas, na visão do compositor, estariam sempre dispostos a tudo para manterem-se no poder e isso fica evidente na medida em que estes juram obediência ao Tribuno logo após tramando a morte deste. Soma-se a este fator a inconstância revolucionária da população: mesmo com as vitórias conseguidas, a população não está disposta a lutar e a colocar sua vida em risco por um bem maior. A partir do momento em que os aristocratas são perdoados e já tramam a conspiração contra Rienzi – que triunfará até o final da ópera – podemos perceber a postura revolucionária de Wagner e mais, uma clara comparação pode ser feita com as monarquias europeias reestabelecidas após o Tratado de Viena. Assim, o perdão popular passa a ser encarado como mais uma possibilidade de golpe nobiliárquico. A ausência de coragem da população é percebida, finalmente, como sendo a forma de traição final. A partir da qual o próprio libertar é colocado para morrer. Uma vez que o povo não está disposto a lutar e a ter baixas ao lado de seu representante, passa a ser prontamente influenciado pelo antigo poder existente no território. O líder revolucionário também perde seus amigos e o apoio crucial da Igreja, representado na figura do cardeal Raimondo, chegando a ser excomungado. Assim, todo o aparato de manutenção da liberdade popular de Roma se transforma no maquinário da restauração aristocrática. 95 Rienzi é, ao mesmo tempo, aquele líder que combate a aristocracia e, também, o indivíduo que apazigua os conflitos sociais tentando devolver a glória a Roma12. Este herói é nitidamente solitário – tendo o apoio total apenas de sua irmã, Irene. Ele escolhe a solidão para ser capaz de executar seus ideais de igualdade. Assim, Rienzi demonstra o pensamento político de Wagner, principalmente as atitudes anti-monárquicas, tão comuns nas revoltas ocorridas entre 1848 e 1849. A peça chega a demonstrar, também, o pessimismo político de Wagner, basta lembrarmos o final da peça, quando o personagem central morre após todas as traições possíveis: amigos, Igreja e, fialmente, o povo que outrora defendera. A lógica pessimista é, contudo, modificada ao longo tempo, e o compositor coloca uma gota de otimismo ao fazer o personagem que titula a obra afirmar: “Escutem minhas últimas palavras: enquanto existir as Sete Colinas de Roma, enquanto a Cidade Eterna não perecer, verão Rienzi regressar!”13. Outra ópera de Wagner que, como um todo, representa as aspirações nacionalistas de seu povo, Lohengrin, se passando no contexto das invasões húngaras também demonstra as expectativas unificação nacional do compositor. Neste contexto, o rei Henrique, o passarinheiro, é proclamado rei de todos os germânicos. Esta característica de enredo desta ópera já marca uma interpretação das mais relevantes da compreensão de unidade proposta por Wagner. Se durante a época de composição de Rienzi o compositor apenas enxergava a possibilidade de unificação sob uma égide republicana, conforme atestam seus escritos; em Lohengrin, o compositor passa a perceber que uma unidade é plenamente alcançável com um apoio nobiliárquico. Esta característica é singular já que o compositor futuramente começará a trabalhar diretamente com o poder monárquico, na figura de Ludwig II da Baviera, recebendo total apoio e apaziguando as divergências surgidas durante a década de 1840 e as revoltas deste momento. Um outro tema relevante que surge na ópera é a figura do antagonismo. O antagonismo é representado pelas tentativas de usurpações do trono de Elsa por parte de Ortrud e Federico. Desta forma, na ópera, assim como no ambiente político revolucionário de seu tempo, Wagner, escrevendo os próprios librettos, demonstra que a mentira e a traição são comuns. Logo, apenas um herói, ou população, corajosa e que defenda a verdade pode erguer-se do nada para resgatar e criar sua vida político-social desejada. Como são corajosos e defensores da verdade, a própria divindade apoiará a 12 13 ARBLASTER, Anthony. Viva la Libertà! Politics in Opera. London: New York: Verso, 2000. Última fala de Rienzi na ópera homônima, ocorrida na quarta cena do quinto ato. 96 causa. Assim que todos lutarem pela verdade política – manter quem é de direito no poder –, todos serão identificados como protetores e salvadores, conforme atesta Elsa já na terceira cena do primeiro ato. Como último ponto, podemos lembrar que a usurpação proposta por Ortrud é fundamentada em sua aproximação com as religiões e deuses antigos. A personagem confessa, no segundo ato da ópera, que é uma bruxa e que como tal, terá o poder para eliminar seus adversários. Aqui Wagner faz uma nítida interação entre a cultura antiga germânica que deve ser seguida apenas por ser tradicional e a cultura cristã que, no território que viu nascer a reforma luterana, era o principal centro de religiosidade da população. Assim sendo, mais do que um compositor afastado de sua realidade social, Wagner deve ser compreendido como um indivíduo que buscou se inserir na política do contexto, sugerindo a constituição de uma nacionalidade germânica através das possibilidades artísticas. Essa nacionalidade, portanto, apenas poderia ser criada plenamente e mantida a partir de uma unificação política. 4.2 A política em Nabucco e em La Battaglia di Legnano O compositor italiano Giuseppe Verdi, nosso segundo personagem a ser analisado não perde em atividade política perante o compositor alemão. Apesar de não ter uma produção específica acerca de política, tal como Richard Wagner, Verdi deixou uma quantidade significativa de óperas. Considerado um dos músicos intelectualmente mais ativos do século XIX, deve-se a ele pontos significativos da característica nacionalista presente durante a unificação italiana. Nabucco foi a ópera que alçou Giuseppe Verdi ao sucesso e nesta peça, as características nacionalistas estão escondidas por um enredo que se passa antes de Cristo, na Babilônia. Contando a história do cativeiro dos judeus neste local durante o governo de Nabucco, a ópera foi amplamente utilizada nos questionamentos nacionalistas italianos durante o século XIX. Todavia o processo de adaptação do tema às necessidades italianas foi mais complexa. Desta forma, a identificação dos italianos com os judeus exilados ocorre através de um processo de assimilação: ambos perderam todas as singularidades culturais, os judeus da peça, por terem sido retirados de seu território, sendo subordinados a outra cultura administrativa perderam sua identidade 97 religiosa e os italianos por terem que coexistir com um corpo culturalmente estranho em seu próprio território sendo, também, subordinados a outra administração, a austríaca, perderam sua autonomia. Esta ópera de Verdi alcançou tal sucesso que nos anos que se seguiram à estreia, foi executada mais de 50 vezes nos mais variados teatros italianos. A ópera como um todo é uma representação de amor à pátria e por este amor é necessário morrer. A morte por um bem maior é representada por toda a peça, principalmente na lógica do sacrifício perante um ídolo estrangeiro, Baal. Durante a apresentação da ópera, contudo, um tema musical se destacou, ‘Va pensiero’, o coro dos judeus exilados e temerosos, a quarta cena do terceiro ato. Neste trecho, lemos: Vá, pensamento, sobre as asas douradas. Vá, e pouse sobre os campos e as colinas, onde exalam as do solo da terra natal! Saúde as margens do Jordão e as torres destruídas do Sião. Oh, minha pátria tão bela e perdida! Oh lembrança tão grata e fatal! Harpa dourada de destinos fatídicos. Porque chora a ausência da terra querida? Reacenda a memória no nosso peito, fale-nos do tempo que passou! Trazendo um ar de lamentação triste, lembre-nos do destino de Jerusalém. Ou o que o senhor te inspire harmonias que nos infundam a força para suportar o sofrimento. Este trecho foi ovacionado durante a própria estreia e apesar dos pedidos do público não pode ser bisado, já que isto era considerado uma manifestação antiaustríaca. Assim, a população imediatamente se identificou com o coro dos judeus exilados. Fato importante é que a singularidade do nacionalismo nesta ópera é que não apenas um trecho específico representa um sentimento italiano porém a temática como um todo é responsável por revelar as necessidades desta população na luta contra a presença austríaca em seus territórios. Após Nabucco alçar Verdi ao sucesso graças a seu apelo político, suas óperas passaram a ter um caráter cada vez maior, como é o caso de I Lombardi alla prima crociata, de 1843, Giovanna d’Arco, de 1845 e Atilla, de 1845, sendo que esta última também despertou significativos sentimentos nacionalistas. Essa curva ascendente de 98 mescla entre o sucesso e a representação do nacionalismo atingiu o ápice na ópera La Battaglia di Legnano, a única escrita e composta buscando exatamente esta característica, conforme as cartas de Verdi afirmam. Na estreia da ópera, que mistura os elementos típicos da ópera italiana, como o amor e a traição, com a necessidade de unificação nacional, o público, sejam homens, mulheres e até mesmo os jovens, carregavam os símbolos de uma Itália una, principalmente a bandeira tricolor14. Após a abertura militarizada que já marca o mote que conduzirá toda a música. A cortina sobre e a peça começa com um argumento fundamental: “Viva Itália! (...)Viva a Itália forte e unida pela espada e pelo pensamento! O solo que nos viu nascer, será a tumba do estrangeiro!”. Após esta afirmação nacionalista e anti-germânica de que a Itália será livre e grande feita pelo coro inicial, começaram a ecoar nas galerias do teatro os primeiros gritos de Viva Itália e Viva Verdi que fariam, futuramente, a ópera ser questionada pela presença austríaca em território italiano. O início da ópera é marcado pelo reencontro de dois amigos e pela suposta traição de um deles e esta já marca uma característica da interpretação verdiana de nacionalismo: o amor à pátria deve ser superior a qualquer anseio individual deve-se, portanto, lutar por um desejo comum. Outra marca importante, na peça, já apresentada no primeiro ato é que a presença germânica era encarada como uma profanação do solo italiano considerado sagrado. A cidade de Milão é apresentada, então, como a única que mantém a tradição italiana e, portanto, a líder da Liga Lombarda, aquela que futuramente conseguirá expulsar os as tropas de Federico I. O segundo ato, nomeado Barba-Ruiva, se passa em Como, cidade rival de Milão. Os representantes de Milão e Verona (Rolando e Arrigo) afirmam que já é hora das cidades esquecerem as antigas desavenças e se unirem contra o inimigo em comum. Essa, por sua vez, é uma clara alusão à necessidade de as regiões italianas, por maior que fossem suas diferenças, se unirem contra a presença estrangeira conseguindo, assim, afirmar sua soberania e expulsar o estrangeiro governante. Todavia, como os habitantes de Como possuem um pacto com Federico, é mais seguro não derramar o sangue dos cidadãos apresentando-se o medo da revolução. Quando do surgimento de Federico, percebemos que o exército germânico é extremamente forte mas a união da Liga Lombarda é insuperável devido à força da 14 Apesar de a atual bandeira da Itália ter sido oficializada no século XX, as cores verde, branca e vermelho representam um tipo de pan-italianismo desde, pelo menos, meados do século XVIII. 99 verdade política que carregam. Esta verdade política é apresentada com o juramento que Arrigo faz aos Cavaleiros da Morte de morrer pela pátria. Outro momento em que se demonstra que a união itálica marca a presença da verdade superior é Marcovaldo, o prisioneiro germânico em território italiano. Este personagem mente a Arrigo e Rolando, tentando fazer com que estes líderes militares e políticos cheguem em divergências facilitando, assim, vitória dos germânicos. A percepção que Verdi oferece ao público acerca da traição e das mentiras políticas é única nas óperas italianas – afinal de contas, durante o século XIX italiano era comum a venda de informações aos austríacos como forma de se conseguir vantagens políticas e econômicas. Um último ponto acerca da relevância de se lutar pela pátria é apresentado pelo compositor de Roncole no quarto e último ato, chamado de Morrer pela pátria. Verdi, ao fazer com que Rolando prenda o antigo amigo, Arrigo, em seus aposentos demonstra que o valor italiano está na luta. Tanto o é que este salta pela sua sacada para participar dos conflitos. Mais do que se utilizar de um tema histórico para responder necessidades de seu tempo, Verdi escreveu uma ópera politicamente direta. Isto é evidente quando percebemos que a peça passou por uma série de censuras. A principal censura, realizada pelos austríacos na sequência da estreia, foi a mais significativa. Objetivando apaziguar os gritos nacionalistas que se seguiam à ópera, os austríacos exigiram algumas trocas, dentre elas, podemos destacar que o nome da ópera mudou e o título La Battaglia di Legnano passou para Assedio di Arlem. A partir desta mudança, todo o enredo se alterou. Assim, a cidade de Milão foi substituída por Arlem; a Itália se transformou em Flandres; Federico, o rei germânico, se converteu no espanhol Duque de Alba; e o primeiro verso foi trocado para “Viva a Holanda”. Essas modificações na estrutura narrativa, contudo, não modificaram a influência nacionalista da ópera. Cantava-se, no palco, “Viva a Holanda”. Ouvia-se, no público, “Viva Itália”15. Verdi foi um dos primeiros compositores a perceber que, além de economicamente rentável, a ópera, no modelo praticado na Itália, era acessível à maioria da população, sem importar classes sociais e, assim, se transformou em um dos meios mais eficazes de se atingir o público durante seu século, principalmente no tangente à propaganda nacionalista16. Nas criações musicais, o compositor italiano mescla nobres atitudes com os perigos apresentados pelo poder político. Nestas óperas, 15 SABBA, Marcílio. Vida de Verdi. São Paulo: Atena Editora, 1959, p.98. Para uma discussão acerca da propaganda política nas suas mais diversas formas, cf.: DOMENACH, Jean-Marie. A Propaganda Política. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1955. 16 100 mesclam-se, também, o nacionalismo exaltado dos Estados italianos do XIX com o medo perante o sacrifício que a pátria exige. 4.3 As harmonias consonantes e as dissonantes: sínteses possíveis Percebemos que os artistas aqui estudados, Richard Wagner e Giuseppe Verdi, são o oposto do artista romântico idealizado pelo século XX já que mesmo sendo política em essência, a característica romântica que permaneceu na mentalidade contemporânea é a de um movimento afastado dos questionamentos políticos. Mais preocupado com questões de ordem sentimental do que social. A historiografia contemporânea, no entanto, destarte seus problemas de ordem metodológica, busca resgatar estes atores e os temas e formas debatidos e utilizados por estes para uma melhor compreensão do mosaico que se forma do passado. Os questionamentos políticos inseridos representativamente nas óperas destes compositores aconteceram, principalmente, entre as décadas de 1830 e 184017. Por outro lado, as atitudes políticas ativas, como a participação em revoltas e a inserção na política de forma direta, encontram seu auge entre os anos de 1850 e a metade da década de 1860. Estes dois compositores, buscando estabelecer o equilíbrio necessário entre texto, música e espetáculo, acabaram por se preocupar com todos os detalhes mínimos para a execução de suas obras, característica que ambos herdaram do modelo francês de ópera com o qual tiveram contato entre as décadas de 1830 e 1840. Daí a percepção do público de que estas obras, mais do que as de outros artistas eram feitas para a própria audiência18. Uma percepção de que suas obras atingiram os anseios populares pode ser percebido se levarmos em conta as constantes aparições destes personagens, de forma representativa, em jornais e textos da época, como caricaturas e poesias. Essa era a forma que as classes não-dirigentes possuíam para demonstrar seu afeto ou suas discordâncias destes. A população, assim, demonstrou que estes artistas acabaram sendo influentes cultural e socialmente para suas realidades. 17 Contudo especificamente Verdi nunca fugiu de claramente demonstrar suas preocupações nacionalistas de unificação italiana. 18 Wagner e Verdi, como pôde se perceber, constantemente frequentavam os teatros para assistir os ensaios bem como modificar partes de vestimentas e cenários. 101 Imagem 17: Caricatura de Richard Wagner19 Imagem 18: Caricatura de Giuseppe Verdi20 Estes indivíduos, contudo, possuem aproximações e especificidades, consonâncias e dissonâncias. Ambos compositores representam uma crença comum na época, a de que a revolução pode ser feita, de forma mais simples, por um indivíduo apoiado pelo grupo a que pertença. Assim, o grupo só ou o indivíduo único não são suficientes para a conquista política21. A partir destas percepções, passamos a melhor compreender a presença das cenas de multidão nas óperas dos compositores. 19 Esta caricatura mostra o compositor Richard Wagner regendo e utilizando um típico elmo prussiano como pódio. Ao mesmo tempo, percebemos que durante a regência, a música que emana do compositor é suficiente para subordinar a todos os outros indivíduos representados à grandeza germânica. 20 Esta caricatura de Verdi, muito comum na Itália do século XIX e início do XX – assim como a de Wagner na Alemanha – representa a figura de Il maestro, título com o qual Verdi ficara conhecido por toda sua vida, carregando Don Carlos, sua ópera. Ao mesmo tempo, o compositor carrega, também, uma coroa representando os louros da vitória atingida pelo compositor desde a década de 1840. 21 Essa característica de interação entre indivíduo revolucionário e grupo é percebido, também, em obras historiográficas significativas. 102 A multidão em cena, destarte ser uma característica comuns nas óperas da primeira metade do século XIX22, em Wagner e Verdi possuem uma função maior do que em outros autores do romantismo europeu. Mais do ser um simples artefato artístico para transformar esta arte em espetáculo público a multidão, nestes compositores, funciona como a representação da própria audiência. A partir desta apresentação, a população se percebia como parte da movimentação de interação entre o sujeito – o líder – e as possibilidades de modificação política. Essa característica de necessidade de união popular é apresentada, portanto, nos textos La Battaglia di Legnano, de Verdi e Lohengrin de Richard Wagner. Estas duas óperas, narrando as invasões germânicas e húngaras, respectivamente, demonstram que apenas a união populacional e a liderança forte – emanada da própria população – é capaz de sufocar qualquer tentativa de subordinação nacional. Um outro lado de aproximação entre os compositores são seus personagens centrais, Rolando, de La Battaglia di Legnano, e Rienzi que são heróis solitários, casa qual a sua maneira. Essa solidão surge uma vez que o sacrifício pela pátria é superior a qualquer necessidade individual. Um último ponto relevante de aproximação entre os compositores é a interpretação da religiosidade. Wagner e Verdi, em todas as óperas analisadas aqui, possuem a mesma lógica religiosa. A religiosidade cristã (ou judaica) é apresentada, portanto, como ponto de apoio e reconhecimento popular. A partir disto, a população pode lutar contra um mal na expectativa de proteção divina, mesmo com todas as nuances entre as quatro óperas. Apesar de ambos os compositores possuírem contradições de pensamento político, alternando entre as possibilidades republicanas e as monárquicas na defesa de um nacionalismo pró-unificação, as óperas seguem uma constância. Percebendo que o poder sofre modificações ao longo do tempo concordamos com o pensador francês Georges Balandier que percebe que muitas vezes o poder pode ser exercido de forma oculta. Assim, se consegue que determinada população tenha uma atitude política a partir de seu posicionamento sentimental e não de seu posicionamento racional. Quanto a isso, as obras de Wagner e Verdi são claros exemplos23. Percebemos, por exemplo, que La Battaglia di Legnano (Verdi) se aproxima de Rienzi (Wagner) através das posturas revolucionárias e da interação entre o público e o 22 Pode ser percebida em óperas de Giacomo Meyerbeer, como Les Huguenotes, e Hector Berlioz, como Les troyens. 23 BALANDIER, Georges. O poder em cena. Brasília: EdUNB, 1982. 103 líder. Por outro lado, Nabbuco, do compositor italiano, e Lohengrin, de Richard Wagner, se aproximam em vários outros sentidos: a possibilidade de usurpação do trono ao menor descuido e, principalmente, a não especificação do nacionalismo. Assim, estas peças são, como um todo, identificadas com o furor nacional24. Algumas diferenças são, também, marcantes. Podemos lembrar que Verdi é tradicionalista enquanto Wagner inova nas obras – logicamente ambos fazem isto buscando as necessidades sócio-políticas de seus respectivos contextos25. Sem entrar no mérito das diferenças de estilo já analisadas em nossos capítulos anteriores e que são, sem dúvida, marcantes, podemos enumerar outras diferenças destes artistas. Verdi nunca se aprofundou em problematizar a política social de seu tempo sendo, então, mais voltados ao pensamento filosófico. Wagner, por outro lado, foi amplamente conhecido por sua atitude e seus questionamentos políticos públicos. Wagner gostava de seu posicionamento politicamente ativo conforme seus textos e diários afirmam; já Verdi preferia os bastidores, conforme os todos os relatos afirmam26. No entanto, a necessidade sócio-cultural fez, de ambos, inseridos nos debates político-nacionalistas mesmo com suas diferenças. Se em Wagner, a partir de um momento, percebemos a atitude política diretamente servindo a um nobre – e produzindo textos acerca da sociedade e da política para este – em Verdi a percepção é extremamente mais popular. Os compositores não chegaram a se conhecer porém alguns documentos nos esclarecem a percepção entre estes. Verdi admirou as inovações de Wagner porém isto lhe causou uma série de conflitos internos, já que a presença germânica era má vista dentro da península itálica. Porém nem tudo o que o compósito de O Anel escreveu foi de agrado do italiano: quando assistiu à estreia de Lohengrin na Itália, não sentiu prazer em ouvir a peça27. Richard Wagner, por seu turno, quase não tinha conhecimento da ópera de Verdi, julgando sua obra tradicionalista e representante da decadência musical 24 Percebemos que estas óperas não possuem um tema ou trecho específico nacional mas devido a seu tema e sua condução musical as óperas rapidamente foram inseridas dentre os clamores nacionalistas préunificação. 25 Podemos lembrar, também, que as possibilidades estéticas de Wagner partem da teoria enquanto as de Verdi surgem da percepção prática do conjunto operístico. Logo, comparar as estéticas de Wagner e Verdi é constatar que entre estes compositores ocorrem mais diferenças do que semelhanças. A melodia é predominante no compositor de Roncole enquanto que os instrumentos ganham certa auto-suficiência no compositor germânico. Além de a unidade formal de Verdi ser baseada na sinfonia clássica e não no poema sinfônico estruturado em um tipo de leitmotiv como em Wagner. 26 CONATI, Marcello (Ed). Encounters with Verdi. New York: Cornell University Press, 1984. 27 Soma-se a isso, o fator de que, durante a execução a audiência gritou constantemente Viva Verdi e Viva Itália o que, certamente, influenciou a percepção de Verdi acerca da obra wagneriana encenada. 104 que atravessava a Europa do momento28. Para evitar esta decadência, apenas as modificações constantes, como as que Wagner empreendia, seriam suficientes anulando, então, o esgotamento do gênero musical Estes compositores atingiram tal nível de respeito popular que acabaram entrando profundamente nos anseios da população de seus países. Tal respeito e o reconhecimento que estes compositores obtiveram é tão significativo que suas exéquias, conforme podemos perceber, foram seguidas por multidões: Imagem 19: Enterro de Richard Wagner29 Imagem 20: Enterro de Giuseppe Verdi30 28 MILLINGTON, Barry. Op. Cit. Enterro do compositor em Bayreuth sendo presenciado por cerca de 20000 pessoas. A foto foi feita em 18 de Fevereiro de 1883 por Hans Bartolo Brand. 30 Verdi teve um enterro simples, assim como desejou. Todavia, no translado de seu corpo, a cerimôni foi solene: a orquestra e o coro operístico do La Scala, sob a regência de Arturo Toscanini executaram ‘Va Pensiero’ um dos trechos mais famosos do compositor. 29 105 Ao analisarmos as obras de Wagner e de Verdi, notamos a possibilidade de utilização de objetos culturais que, a partir de sua circulação, geram a expressão política coletiva. A constante reação do público perante a execução das obras destes compositores sugere, claramente, que ocorria um processo de significação e resignificação política. Em primeiro lugar, acreditamos que os nacionalismos presentes nas obras destes dois compositores se baseiam na interação do social com o cultural, ou seja, o lugar de fala destes autores possibilitou a mescla de um aparato político em uma produção artística. Esta mistura entre o político e o artístico é fruto claro de uma necessidade social, uma vez que o teatro de ópera era, a partir do século XIX, o local aonde grande parte da população busca lazer e reafirmava laços de sociabilidade. Logo, a partir do momento no qual o tema ressaltasse as características nacionalistas inflamatórias, o povo carregaria consigo, segundo textos, similares neste sentido, destes dois compositores, o ideário nacionalista. Então a ópera encontraria sua função social própria. Poderemos perceber que Richard Wagner incentiva a percepção nacionalista resgatando e muitas vezes criando ou reinterpretando a mitologia nórdica enquanto que Giuseppe Verdi foca em personagens muitas vezes comuns da burguesia em ascensão italiana, o que se deve ao modelo econômico e cultural dos dois territórios: enquanto a Alemanha possuía uma cultura bem unificada desde o século XI a Itália passava por crises culturais setorizadas, mas com a manutenção do crescimento burguês em determinados territórios. Desta forma, podemos notar que, mesmo no seio do mesmo movimento romântico nacionalista, as óperas destes dois compositores se modificam em função dos quadros sociais divergentes nas quais são compostas e produzidas. Entre consonâncias e dissonâncias, as obras destas personagens devem, acima de tudo, serem questionadas e problematizadas para uma melhor compreensão da própria obra e sua atualidade bem como para a melhor panorâmica do contexto de escrita destas peças. 106 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em nosso primeiro capítulo expusemos como a ópera pode ser fonte válida e principal para a compreensão do panorama social de determinada realidade através de sua problematização metodológica. Desta forma, a História Social da Música apresentase como uma seara a ser desbravada. Este campo, contudo, deve ser pesquisado com o devido cuidado para não ocorrerem subordinações entre História e Música enquanto práticas de pesquisa. Assim, é tarefa do historiador contemporâneo ampliar os recortes e não se satisfazer com as tradicionais narrativas da História da Música ou com as descrições estilísticas da Musicologia Histórica. O segundo capítulo analisa em primeiro momento a vida. o contexto e o estilo de Richard Wagner, procurando localizar e apontar sua atividade política que gera a sua visão do todo. Visão esta que será representada nas óperas como propagandística. Logo após, analisamos as duas óperas do compositor escritas entre as revoluções de 1830 e a Primavera dos Povos, Rienzi e Lohengrin. Procuramos, a partir do conhecimento do enredo e das características estilísticas destas obras, apontar temas que serão retomados em uma futura análise da percepção nacionalista – capítulo IV. Nosso terceiro capítulo segue, desta forma, a lógica proposta pelo segundo, com uma alteração: enquanto no segundo capítulo o indivíduo analisado é Wagner, no terceiro nos deparamos com a figura de Giuseppe Verdi e suas óperas do contexto: Nabucco e La Battaglia di Legnano. Como último capítulo apresentamos, argumentativamente, as características nacionais pró-unificação nas obras destes compositores que foram significadas e resignificadas pela população europeia ao longo do próprio século XIX. Não nos preocupamos, aqui, em pensar as utilizações destas obras em nosso tempo presente porém sim, em compreender como este aparato artístico foi se fundamentando e foi, cada vez mais, se aproximando das percepções e representações político-sociais. Neste capítulo, portanto, analisamos comparativamente a percepção nacionalista destas óperas. Logo, percebemos que apenas a História Comparada, enquanto método de pesquisa, é capaz de demonstrar com clareza as semelhanças e as singularidades destes atores. Com a leitura das óperas de Richard Wagner e de Giuseppe Verdi expostas neste texto dissertativo, conseguimos perceber que a movimentação nacionalista préunificação, principalmente durante as décadas de 1830 e 1840. nos territórios que 107 formariam a Alemanha e a Itália foi intensa e que sua representação e propaganda nos aparatos artísticos-culturais que se fundamentam nas óperas foi ampla; Nestas óperas a tragédia e o júbilo político-social são consonantes e quem harmoniza essa consonância e o nacionalismo. Desta forma, ocorre uma clara possibilidade de estudos de produções artísticas e trajetórias comparadas oferecerem subsídios para uma comparação dos fenômenos políticos, sociais e culturais nos quais essas produções e existências se inserem uma vez que as obras e as vidas são modificadas a partir do contexto no qual são criadas e vividas. Mais do que óperas soltas, a tinta das escritas destes compositores aqui analisados é claramente nacionalista e mais: destarte suas vidas, obras e interpretações políticas serem constantemente paralelas a física teórica, neste sentido, já auxiliou esta compreensão historiográfica: linhas paralelas podem se encontrar num infinito. 108 REFERÊNCIAS Librettos VERDI, Giuseppe (música); CAMMARANO, Salvatore (libretto). La Battaglia de Legnano. Libretto disponível em: http://www.kareol.es/obras/labatalladelegnano/legnano.htm ______ (música); SOLERA, Temistocle (libretto) . Nabucco. Libretto disponível em: http://www.kareol.es/obras/nabucco/nabucco.htm WAGNER, Richard (libretto e música). Lohengrin. Libretto disponível em: http://www.kareol.es/obras/lohengrin/lohengrin.htm ______ (libretto e música). Rienzi, der letzte der Tribunen. Libretto disponível em: http://www.kareol.es/obras/rienzi/rienzi.htm Áudios VERDI, Giuseppe. 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Luigia se esconde com o filho. 1815 --- --- 1816 --- --- 1817 1818 Freqüenta a escola de Karl Friedrich Inicia sua educação básica com Don Schmidt, o vice-Kantor real. --- Pietro Baistrocchi. --- 1 Apesar de a historiografia contemporânea não aceitar a possibilidade de listas cronológicas, principalmente as biográficas, – parece-nos claro que a História enquanto ciência precisa de problematizações – optamos por colocar esta tabela para o leitor ter uma visão geral da produção de nossas personagens. Utilizamos como referências para a elaboração deste plano os seguintes textos: MILLINGTON, Barry: Cronologia Wagneriana: vida, obra e eventos correlatos. In: MILLINGTON, Barry. Wagner: um compêndio: guia completo da música e da vida de Richard Wagner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. BUDDEN, Julian. Verdi. London: J. M. Dent, 1985. 120 1819 --- --- Começa a ter aulas de piano em Carlo compra para o filho uma antiga 1820 Possendorf (próxima a Dresden), espineta e logo Giuseppe comeã a ser ficando sob os cuidados do pastor organista substituto em S. Michele Christian Wetzel. 1821 em Roncole. 30 de Setembro: Morre Geyer --- Wagner, provavelmente assiste a 1822 estreia de Der Freischütz. Entra para a Kreuzschule de Dresden com o Se torna organista titular em Roncole. nome de Richard Geyer. 1823 --- 1824 --- 1825 --- Aceito no ginnasio de Busseto. --Começa seus estudos musicais com Ferdinando Provesi. Traduz 12 livros da Odisseia – fato que já demonstra seu interesse pela Grécia antiga. Tenta escrever um poema épico: A Batalha do Parnaso. 1826 Inicia a escrita de Leubald, uma --- tragédia em 5 atos. Dezembro: A família se muda para Praga porém Wagner permanece em Dresden, na casa de colegas, devido aos estudos. Visita Praga. Vai a Leipzig para 1827 estudos e, em Dezembro, muda-se para a cidade – a família se muda para --- o local pouco tempo após. 21 de Janeiro: Entra para a Nicolaischule, já com o nome de 1828 Richard Wagner. Conclui o Leubald. Escreve a cantata I deliri di Saul. Começa aulas de harmonia com Christian Gottlieb Müller. 1829 Escreve suas primeiras obras: duas Convidado para ser organista em 121 sonatas para piano e um quarteto de Soragna – rejeita. Se transforma em cordas (todos perdidos). Viaja até assistente de Provesi em Busseto. Magdeburg. Escreve Le lamentazioni di Geremia. Deixa a Nicolaischule e entra na Thomasschule de Leipzig. Tem aulas de violino. Escreve quatro aberturas 1830 (todas perdidas). Escreve uma --- transcrição para piano da Nona Sinfonia de Beethoven. Sua Abertura de tambor é executada em Leipzig com a regência de Heinrich Dorn. Compõe peças para voz e piano sobre o texto de Fausto de Goethe e, também, uma sonata para piano em si bemol maior para quatro mãos. Muda-se para a casa de Antonio 1831 Matricula-se Leipzig. na Estuda Universidade com de Barezzo, presidente da Sociedade Christian Filarmônica – ensina à filha deste, Theodor Weinlig e escreve uma que será sua esposa. fantasia e uma sonata, ambas para piano. A sonata é publicada como Op.1 Compõe a Grosse Sonata em lá maior. Entre Abril e Junho compõe a sinfonia em dó maior que seria 1832 executada em Novembro. Concebe a ópera Die Hochzeit (O Casamento) Viaja a Milão. Tem aulas com Vincenzo Lavigna. porém abandona o projeto em março do ano seguinte. Muda-se para Würzburg aonde assume o posto de maestro do coro do 1833 teatro local. Escreve o texto Die Feen (As Fadas). Provesi e Giuseppa (irmã de Verdi) morrem. A música é concluída no início do ano 122 seguinte. Volta a Leipzig e é influenciado por Heinrich Laube e pelo movimento Jovem Alemanha. Conhece Wilhelmine Schröder-Devrient. 10 de Junho: primeiro ensaio, A ópera 1834 alemã, publicado no periódico de Laube. Concebe Das Liebesverbot (A Retorna a Busseto. proibição de amar), executada nos próximos 18 meses. 2 de Agosto: estreia como regente operístico, com Don Giovanni. Lá conhece Minna Planer, que será sua primeira esposa. Em Agosto começa anotações na Completa seus estudos com Lavigna. 1835 Caderneta Vermelha que será a base É recomendado por este para o cargo de sua futura autobiografia. de organista na catedral de Monza. Começa a obra Rocester com o texto de Antonio Piazza. É examinado para 29 de Março: Das Liebesverbot estreia em Magdeburg. Tenta montar 1836 esta peça em Berlim sem êxito. Porém lá escuta Fernand Cortez de Spontini que o impressiona. 24 de Novembro: casa-se com Minna. o posto de chefe dos músicos de Busseto por Giuseppe Alinovi, organista da corte em Parma – e nomeado. Em 4 de Maio casa-se com Margheritta Barezzi passando a luade-mel em Milão. Escreve: Il cinque maggio e Tantum, além de completar a ópera que começara no início do ano. Nomeado diretor musical do teatro de Königsberg. Minna o deixa porém Nasce sua filha Virginia em 26 de 1837 Wagner vai atrás da esposa e, em um Março. Rocester, apesar das alojamento, após se reencontrarem, tentativas, não é encenada nem em conhece o romance Rienzi. Parma nem em Milão. Rapidamente esboça uma ópera sobre 123 o tema. Junho: Nomeado diretor musical do teatro de Riga. 24 de Dezembro: Nasce Cosima Liszt, filha do pianista Franz Liszt, em Como, que será a segunda esposa do compositor. Nasce seu filho, Icilio Romano, em 11 de Julho. Pouco tempo depois, em 12 de Agosto, morre sua filha 1838 Agosto: Completa o poema de Rienzi Virginia. e inicia a música. organiazar Visita a Milão apresentação para de Rocester entre Setembro e Outubro. Afasta-se da chefia dos músicos de Busseto. Deixa Busseto em direção a Milão. Seu contrato em Riga não é renovado. Morre seu filho Icilio Romano em 22 Conhece Londres e Paris, aonde de Outubro. Première de Oberto, 1839 conhece Meyerbeer. Wagner assiste a Conde de São Bonifácio – baseada na primeira apresentação de Romeo e revisão de Rocester – no La Scala de Julieta de Berlioz e fica Milão em 17 de Novembro. Aceita impressionado. um contrato para a escrita de outras 3 óperas. Durante a composição de Um giorno Faz o esboço em prosa de O Navio Fantasma enviado, em junho, a Meyerbeer. Entre Maio e Julho inicia 1840 a música de O Novaio Fantasma. Em 12 de Maio publica o seu Ensaio sobre a Música a Alemã. Em 19 de Novembro conclui Rienzi. de regno Margheritta morre, em 8 de Junho, de encefalite. Verdi retorna a Busseto para completar a ópera que é encenada pela primeira vez em 5 de Setembro no La Scala de Milão. A ópera não obteve sucesso e as outras exibições foram cancelas, dessa forma, Oberto volta a ser encenado em 17 de Outubro. 1841 Em Maio escreve o poema de O Recebe o libretto de Nabucco de 124 Navio Fantasma, concluindo a música Mirelli em Janeiro e completa a em Novembro. composição até Outubro. Conheçe Giuseppina Strepponi. Estréia de Nabucco no La Scala de Vai, com Minna, a Dresden, onde Milão em 9 de Março. A obra 1842 Rienzi será encenada. Faz o esboço de consegue sucesso, fazendo com que Tannhäuser. Rienzi consegue êxito e Verdi se inserisse na alta sociedade faz Wagner famoso. Milanesa. Visita Rossini, em Junho, na Bologna. 2 de Janeiro: estreia de O Navio Fantasma com a regência do próprio Wagner. Em 1 e 8 de Fevereiro ele Estréia de I Lombardi Allá prima publica o seu Esboço Autobiográfico crociata em 11 de Fevereiro. Vai para no jornal de Laube. É nomeado, em Viena assistir a estreia de Nabucco 1843 Dresden, Kapellmeister. Em Abril em Março. Começa as negociações termina o poema de Tannhäuser. com o La Fenice de Veneza para o Inicia a composição de Tannhäuser. futuro Ernani. Vai, em Abril, para Em Outubro muda-se e forma uma Parma, assistir Nabucco. ampla biblioteca com material sobre as epopeias alemães. 7 de Janeiro: rege, em Berlim, O Estréia de Ernani no La Fenice, Navio 1844 Fantasma. Dezembro: Veneza, em 9 de Março. Estréoa de I cerimônia de translado do corpo de due Weber para Dresden. Foscari em Roma. Firma Wagner amizade com Ferretti, poeta, e com o discursa no evento. escultor Luccardi. 13 de Abril: conclui a partitura de Tannhäuser. Começa a estudar as lendas de Parsifal e Lohengrin. 16 de 1845 Julho: conclui o esboço em prosa de Os Mestres Cantores. 3 de Agosto: conclui o esboço em prosa de Lohengrin. Tannhäuser estréia, regida Estréia de Joana D’Arc, em 15 de Fevereiro, no La Scala de Milão. Estréia de Alzira no teatro San Carlo de Nápoles. Compra residência em Busseto. pelo próprio Wagner, em 19 de 125 Outubro, em Dresden. Estréia de Atilla no La Fenice de Em 5 de Abril rege a Nona Sinfonia 1846 de Beethoven. Conclui o primeiro esboço de Lohengrin. Veneza em 17 de Março. A saúde de Verdi piora, fazendo com que cancela alguns compromissos, ficando recluso durante Julho. Trabalha em Macbeth durante o outono. Vai para Florença para a estréia de Em 29 de Agosto conclui o segundo 1847 esboço completo de Lohengrin. Estréia de Rienzi em Berlim regida por Wagner em 24 de Outubro. Macbeth em 14 de Março. Parte para Londres e conhece Luís Bonaparte. I masnadieri estreia em Londres no Teatro de Sua Majestade em 22 de Julho. Começa a viver com Giuseppina Strepponi. Em 9 de Janeiro, Wagner perde a mãe. A rebelião de Viena é aclamada por Wagner em um poema assinada: Saudação da Saxônia aos Vienenses. Conclui a partitura de Lohengrin em Completa I corsaro. Vai para Paris 28 de Abril. Apresenta o seu Plano em Junho para começar o trabalho de 1848 para a organização de um teatro A batalha de Legnano. Presencia o nacional alemão para o Reino da conturbado contexto social e político Saxônia. Discursa Vaterlandsverein na da França neste momento. republicana, publicado com o título A quantas andam os esforços republicanos em relação à monarquia? Entre Janeiro e Abril idealiza o Jesus Estréia de A batalha de Legnano no Von Nazareth. Publica o ensaio A tatro Argentina, Roma, em 27 de 1849 Revolução em 8 de Abril. Entre Abril Janeiro. Volta para Paris em e Maio luta na revolução fabricando Fevereiro e posteriormente retorna bombas e cuidando da movimentação com Giuseppina para sua residência. de tropas. Em 16 de Maio é emitido Trabalha em Luisa Miller. Viaja até 126 um mandato de prisão contra o Nápoles para a estreia desta peça em compositor – publicado no dia 19 8 de Dezembro, no Teatro San Carlo. seguinte no Dresdner Anzeigner. Foge com a ajuda de Liszt. Escreve, em Julho, Arte e Revolução, concluindo, em Novembro, seu texto A obra de arte do futuro. Estreia de Lohengrin em Weimar (28 de Agosto), regida por Liszt. Em 1850 Setembro publica O judaísmo na música e, ainda neste ano começa a redação de Ópera e Drama que terminaria no início do ano seguinte. Escreve Uma comunicação a meus 1851 amigos. Inicia o esboço em prosa de O ouro do Reno e de A Valquíria. Rege quatro vezes O navio fantasma em versão revisada, em Zurique. 1852 Termina os rascunhos em verso de A Valquíria e O ouro do Reno, respectivamente em 1º de Julho e 3 de Novembro. Planeja escrever com Cammarano, enviando a este, sinopses.Vai a Bolonha para a récita de Macbeth em Setembro e Outubro e a Trieste para a primeira apresentação de Stiffelio em 16 de Novembro. Possui problemas com a censura sobre seu Rigoletto. Estréia de Rigoletto no Lafenice, Veneza, em 11 de Março. Morre Luigia Verdi em 28 de Junho. Vai para Paris. Assina contrato para representação de suas óperas e retorna a Busseto em Março. Morre Cammarano e o libreto de Il trovatore é completo por Bardare. Nomeado Cavaleiro da Legião de Honra por Louis Bonaparte em Agosto. Lê o poema que formará a tetralogia d’O Anel para convidados. Liszt visita Estréia de Il trovatore no Teatro Wagner. Entre Agosto e Setembro Apollo de Roma em 19 de Janeiro. 1853 conhece a Itália. Conhece Cosima, Estréia mal-sucedida de La traviata, então com 15 anos, durante um jantar no Teatro la Fenice de Veneza em 6 com Liszt em Paris. Inicia o rascunho de Março. Regresso a Busseto. completo de O ouro do Reno. 1854 Inicia o rascunho completo de A Vai ao Reino Unido. Estréia de La 127 Valquíria. Neste ano, toma contato traviata revisada no Teatro Gallo, em com a filosofia de Schopenhauer. Veneza. Concebe Tristão e Isolda. Estréia de As bodas sicilianas em 13 de Junho. Trabalha na tradução desta 1855 Conhece a rainha Vitória. ópera e de Il trovatore para o francês com a ajuda de Emilien Pacini. Volta ao Reino Unido e França. Vai a Parma discutir o direito internacional de execução de suas Termina a cópia final de A Valquíria. Começa a composição de Siegfried. 1856 Se familiariza com os poemas sinfônicos de Liszt. Primeiros esboços musicais de Tristão e Isolda. peças. Recebe de Vittorio Emanuele, em Fevereiro,o título de Cvaliere dell’Ordine di S. S. Maurizio e Lazzaro. Trabalha, com Piave, na revisão de Stiffelio. Inicia processos contra teatros que usavam suas partituras sem pagar seus direitos, perdendo a maioria. Concebe Parsifal. Hans Von Bülow e 1857 sua noiva, Cosima, ficam hospedados com os Wagner em sua lua-de-mel. Estréia de Simon Boccanegra e de Aroldo (Stiffelio revisada). É censurado em trechos de Un ballo in maschera. A censura devolve o libretto de Un ballo in maschera com modificações. 1858 --- Verdi analisa as críticas dos censores e faz adaptações na peça para garantir sua execução em teatros italianos. Conclui a partitura de regência de Em Nápoles, testemunha o início da Tristão e Isolda. Após se deslocar utilização do slogan Viva V.E.R.D.I. 1859 constantemente, fixa residência em Vai a Roma para a estréia de Un Paris que manterá até 1861, busca ballo de maschera, ocorrida no encenar, na capital francesa, Teatro Apollo em 17 de Fevereiro. Tannhäuser, Loengrin e Tristão e Eleito membro honorário da 128 Isolda. O casamento com Minna está Accademia Filarmonica Romana no em crise. mesmo mês. Casa-se com Giuseppina Strepponi em 29 de Agosto. Inicia-se a carreira política através de sua eleição como representante de Busseto na assembleia das províncias de Parma, realizando um pedido de anexação ao Piemont em Stembro. Transformado em cidadão honorário em Turin e firma contato (e amizade) com Cavour. Rege três concertos em Paris de suas músicas. Há uma anistia parcial que 1860 permite que Wagner volte à Financia a compra de armamento Alemanha – no entanto, ainda está para a milícia de Busseto. proibido de entrar na Saxônia. Ensaia Tannhäuser na Ópera de Paris. Eleito deputado em Janeiro, vai à Tannhäuser é apresentada porém 1861 manifestações políticas fazem a ópera ser retirada de exibição. Inicia o projeto de Os mestres cantores. abertura do Parlamento Italiano em Fevereiro. Firma contrato com a ópera de São Petersburgo, indo ao país em Novembro todavia a ópera apenas seria apresentada posteriormente. Conclui o poema de Os mestres Vai a Paris em Fevereiro. Durante o cantores e realiza uma leitura pública verão, permanece entre Turim e deste. Aumenta a tensão entre Wagner Busseto, indo, finalmente, para São 1862 e Minna. A anistia plena permite ele Petersburgo para a estreia russa de La voltar para a Saxônia, todavia, o forza del destino no Teatro Imperial compositor não se inclina a voltar. Italiano em 10 de Novembro. Recebe Em Novembro, se encontra pela a Cruz da Ordem Real e Imperial de última vez com Minna. 1863 São Stanislaw. Conhece Praga, São Petersburgo e La forza del destino é reencenada em 129 Moscou. Em Novembro, Wagner e Madri em 21 de Fevereiro. Passa Cosima se estabelecem. Em 10 de grande parte do ano em Busseto. Março, Ludwig II, admirador de Wagner, torna-se rei da Baviéria com 18 anos, manda chamar o compositor, paga suas dívidas e o instala perto do castelo real Schloss 1864 Berg, próximo a Munique. Cosima chega com consuma-se suas a duas união. filhas e Bülow é nomeado músico do rei por indicação Permanece entre Busseto e Gênova com visitas constantes a Turim. Inici a revisão apresentação de Macbeth em Paris. para a Eleito membro da Academia de Belas-Artes da França, em Junho. de Wagner. Surge a ideia de se criar um teatro de festivais em Munique. Sofre ataques por parte da corte e da imprensa local. Em 10 de Abril nasce Isolde, primeira filha de Wagner com Cosima. Estreia, em 10 de Junho, o Tristão e Isolda em Munique, com regência de Bülow. No dia 17 de Estréia da revisão de Macbeth no 1865 Julho inicia a ditar seu autobiografia Théâtre Lyrique, em Paris, no dia 1º Mein Leben para sua esposa, de Abril. Retira-se do Parlamento em utilizando as anotações da Caderneta Setembro. Vermelha. Esboço de Parsifal em prosa. As hostilidades contra Wagner crescem e Ludwig II pede para que o compositor deixe Munique, o que ocorreria em 10 de Dezembro. Em 25 de Janeiro morre Minna, neste mesmo momento Richard Wagner 1866 busca um local para viver. Wagner e Cosima mentem acerca de suas Escreve Don Carlo em Busseto e Paris. relações. 1867 Nascimento de Eva, segunda filha. Morre Carlo Verdi, em 14 de Janeiro. 130 Conclui a partitura de regência de Os Estréia de Don Carlo em 11 de mestres cantores. Retorna a Munique, Março. Transforma-se, em Abril, em permanecendo até 9 de Fevereiro de cidadão honorário de Gênova. Vai a 1868. Paris com Giuseppina. Verdi não permanece presente na estreia de Don Carlo, que teve a regência de Mariani, ocorrida no Teatro Comunale, em Bolonha, no dia 27 de Outubro. Recusou, em Maio, a Cruz da Coroa Estreia de Os mestres cantores em Munique com a regência de Bülow. 1868 Viaja à Itália com Cosima. Conhece Nietzsche em Leipzig em 8 de Novembro. Italiana, uma vez que a receberia do Ministro Broglio, um contundente atacante de todos os músicos italianos desde Rossini. Planeja compor uma missa em homenagem a Rossini. Inicia a revisão de La forza del destino. Retoma a composição de Siegfried parada há tempos. Reedita O judaísmo na música com um novo prefácio, no qual se queixa da suposta perseguição dos judeus. Em 6 de Junho nasce o filho de Wagner e 1869 Cosima: Siegfried. A partir deste ano Nietzsche começa a fazer visitas frequentes a Wagner. O ouro do Reno é encenada em Munique em 22 de Estréia da versão revisada de La forza del destino no La Scala de Milão em 27 de Fevereiro. Nomeado Cavaliere dell’ordine del Merito Civili di Savois, em Julho. Setembro com a regência de Franz Wüllner – Wagner tentou impedir esta regência. Durante o Natal, Nietzsche conhece o esboço de Parsifal. 1870 A partir deste ano, a cidade de Bayreuth passa a ser cogitada para a Concorda em compor Aida 131 construção do Teatro de Festivais. Estreia de A Valquíria em Munique em 26 de Junho com a regência de Wüllner. Cosima consegue a dissolução de seu casamento. Logo após Wagner e Cosima se casam (25 de Agosto). Escreve o ensaio Beethoven. É nomeado membro honorário da Conclui Siegfried. Apresenta, em 14 de Abril a Kaisermarsch. Wagner anuncia, em Leipzig, que o primeiro Festival de Bayreuth acontecerá em 1871 1873. Escreve o prefácio para a edição completa dos seus textos – supervisiona a publicação dos 9 primeiros volumes, o 10º e último volume apenas foi publicado postumamente, ainda em 1883. Società Filarmonica de Nápoles em Janeiro, relevante grupo financiador de inúmeros espetáculos musicais. Passa a pertencer ao grupo responsável pela administração do Conservatório de Florença que, na época, debatiam as possíveis reformas. Assiste Lohengrin, regida em Milão por Mariani em 19 de Novembro. Estréia de Aida na Casa de Ópera do Cairo em 24 de Dezembro – Verdi não comparece. Adquire o terreno no qual será construído Bayreuth. Fundação da Sociedade dos Patronos do Festival de Bayreuth. Lançamento da pedra fundamental do novo teatro, em 22 de 1872 Maio, seguido de discurso e da execução da Nona Sinfonia de Estréia italiana de Aida no La Scala de Milão em 8 de Fevereiro. Beethoven. Os Wagner mudam-se para Bayreuth. Liszt visita Bayreuth. Cosima se converte ao protestantismo. 1873 Wagner rege para levantar fundos Verdi concebe a possibilidade de 132 para Bayreuth. Em Maio inicia a escrever um Réquiem. partitura de regêcia de Crepúsculo dos deuses. Em 24 de Junho envia a Bismarck seu relatório sobre o lançamento da pedra fundamental do Festspielhaus, juntamente com seu discurso nacionalista; todavia não encontra ajuda financeira. Anuncia o adiamento do festival até 1875. Bruckner visita Wagner em Bayreuth. No final do ano Wagner pede auxílio econômico para Ludwig II. Rege a estreia do Réquiem na Igreja O rei Ludwig II auxilia Wagner 1874 mesmo tendo evitado no início. Conclui a tetralogia do Anel. de San Marco, em Milão, no dia 22 de Maio; no La Scala no dia 25 de Maio e na Opéra Comique de Paris em 9 de Junho. Em Novembro, é nomeado Senador. Rege o Réquiem na Opéra Comique de Paris em 19 de Abril. Recebe a Cruz da Légion d’Honneur. Conduz a versão revisada do Réquiem no Royal 1875 Ensaios para o Anel para a realização do festival no ano seguinte. Albert Hall, em Londres, no dia 15 de Maio. Também rege a peça no Hofoperntheater de Viena, no dia 11 de Junho, seguida de Aida, no dia 19 de Junho. Empossado, em Roma, como Senador, no dia 15 de Novembro. Começam, em 3 de Junho, os ensaios 1876 finais para o Festival. Entre os dias 13 Rege Aida no Théâtre des Italiens em e 30 de Agosto ocorre o Primeiro Paris, no dia 22 de Abril e o Réquiem. Festival de Bayreuth – três sequências 133 completas – com a regência de Richter. O festival é acaba deficitário. Wagner e Nietzsche se encontram pela última vez em Outubro. Conduz o Réquiem no Festival do 1877 Conclui o texto de Parsifal e, em Baixo Reno em 21 de Maio. Firma sequência, inicia a escrita da música. amizade com Ferdinand Hiller. Visita a Holanda em Maio. Visita Monte Carlo em Março e vai a Em 31 de Março, Wagner e Ludwig II Paris em Abril e Novembro. Eleito 1878 encontram uma possibilidade para membro honorário da Academia de acabar com as dívidas de Bayreuth. Ciência, Letras e Artes de Modena em Dezembro. Com Boito e Ricordi, quando em Conclui o esboço musical de Parsifal. Milão, 1879 Entra nos vivissecção. debates Por contra concebe Otello. Rege o a Réquiem em concerto beneficente recomendação para as vítimas das inundações. Boito médica, muda-se para a Itália. encia, em Setembro, a sinopse do libreto de Otello. Eleito membro honorário do Gesellschaft der Musikfreunde de Viena em Janeiro. Dirige Aida na Depois de permanecer todo o ano na França com o balé definitivo em 22 1880 Itália, em 12 de Novembro tem o de Março. Recebe uma sequência de último encontro com Ludwig II títulos honoríficos e, em Agosto, regressando a Bayreuth 5 dias depois. recebe a versão final (revisada) do texto de Otello. Antes do final do ano inicia a revisão de Simon Boccanegra. Em 1881 Maio ocorre a primeira Estréia da versão revisada de Simon apresentação completa da tetralogia Boccanegra no La Scala de Milão em do Anel em Berlim. Wagner e 24 de Março. Aumenta sua dedicação Gobineau estreitam laços e este passa a Otello. 134 várias semanas em Bayreuth. 1882 Conclui a partitura de Parsifal. Em Março sofre o primeiro dano cardíaco. Inicia a revisão de Don Carlo. 13 de Fevereiro: sofre um ataque 1883 cardíaco fatal. 18 de Fevereiro: é enterrado em Revisa Don Carlo. Bayreuth. Estréia da versão revisada de Don 1884 --- Carlo no La Scala de Milão, em 10 de Janeiro. Inicia a composição de Otello em Março. Continua na composição de Otello, 1885 --- com o auge do período de escrita ocorrendo no mês de Setembro. Termina a composição de Otello em 1886 --- Novembro. Estréia da versão final de Don Carlo, no Teatro Municipale de Modena, em 26 de Dezembro. Recebe a Grande Cruz da Ordem de SS. Maurício e Lazzaro. Estréia de 1887 --- Otello no La Scala de Milão em 5 de Fevereiro. Cidadão honorário de Milão em 8 de Fevereiro. 1888 --- 1889 --- 1890 --- 1891 --- --Decide escrever uma ópera sobre o tema de Falstaff em Julho Termina o primeiro ato de Falstaff. Continua trabalhando, lentamente, na escrita de Falstaff. Participa 1892 --- das celebrações homenagem ao compositor Gioachino relevante operista em centenário italiano do Rossini, – as 135 celebrações se deram, principalmente, no dia 10 de Abril, em Milão. Termina, em Dezembro, Fastaff. Estréia de Falstaff no La Scala de Milão 1893 --- 2m 9 de Fevereiro. Transforma-se em cidadão honorário de Roma em 14 de Abril. Modifica alguns trechos de Falstaff. Falstaff é apresentada na Opéra Comique de Paris em 18 de Abril. 1894 --- Escreve o balé para a versão francesa de Otello. Recebe a Grande Cruz da Legião de Honra em 12 de Outubro. Projeta a construção da Casa de Repouso em Milão, que abrigaria 1895 --- artistas e músicos sem condições financeiras de se manterem. Começa a composição do Te Deum. 1896 --- Trabalha no Te Deum e no Stabat Mater. Envia Quattro pezzi sacri para a 1897 --- publicação Giuseppina (Ricordi). Verdi em Morre 14 de Novembro. Stabat Mater, Laudi e o Te Deum são 1898 --- exibidos em Paris. Em Turim estas peças são regidas por Toscanini. 1899 --- 1900 --- 1901 --- Fundação da Casa de Repouso. --Morre em 27 de Janeiro após ter problemas de saúde no dia 21. 136 APÊNDICE II OS ARTISTAS E AS SOCIEDADES NOS ESTUDOS DE HISTÓRIA COMPARADA OU AS VIDAS PARALELAS1 Tomamos como título para o trabalho que se segue Vidas Paralelas, um claro empréstimo da obra do grego Plutarco de Queronéia, um dos fundadores do modelo que ficou conhecido como biografia, pelo menos aquele de cunho comparativo, guardando, contudo, as devidas proporções analíticas: devemos lembrar que, enquanto o autor grego se preocupa com um modelo narrativo biográfico de nítido caráter propedêutico moralista, nós utilizamos, aqui, questionamentos teóricos e metodológicos que fundamentam a comparação entre indivíduos artistas-intelectuais como contextualizadores da política e da arte na história. Indivíduo e Sociedade: um problema sócio-historiográfico Um dos principais temas de discussão dos estudos contemporâneos que problematizam a sociedade em nível mundial, se não mesmo o principal, é o relacionamento entre os indivíduos e a coletividade na qual estão agrupados. Conhecer os limites do indivíduo e os limites do todo, onde se encontram cada, o que se nega a partir do momento em que caminham juntos e qualquer outro aspecto dessa relação é característica sine qua non aos estudos sociais de nosso tempo presente. Essa discussão tornou-se comum principalmente após a década de 1970, época de renovação das disciplinas sociais, incluindo aí a História, demonstrando que, mais uma vez, os indivíduos passaram a interessar às análises, porém, agora, de forma nova, expondo problemáticas antes esquecidas. 1 O texto que se segue, fruto do material produzido durante a qualificação de mestrado, foi publicado, como artigo, no periódico História em Reflexão (ISSN: 1981-2434). Está inserido nesta dissertação por ser um complemento ao nosso primeiro capítulo. Aqui procuramos demonstrar a relevância dos estudos dos indivíduos, bem como a aplicabilidade destes estudos dentro de uma metodologia comparativa. Uma vez que este texto pode ser compreendido separadamente do restante do texto dissertativo, decidimos manter as referências bibliográficas em separado, incluindo as obras que, porventura, se repetem. Decidimos, também, uma vez que a formatação de apêndices, conforme ABNT em vigência autoriza, manter a formatação similar às recomendações da revista na qual esta pequena reflexão foi publicada buscando, assim, sua aproximação com a edição virtual. 137 O indivíduo desde o seu nascimento passa por um processo de socialização que determinará formas de comportamento e atitudes sociais, porém devemos ter em mente que não apenas esses fatores são levados em conta nas escolhas das atitudes sociais, existe, também, o fator personalidade, que escapa, em certa medida, das formações sociais (INKELES, 1961: 172-209). Dessa forma, percebemos que ‘estar localizado na sociedade significa estar no ponto de interseção de forças sociais específicas’ (BERGER, 1976: 79). Sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade, Norbert Elias certa vez resumiu a questão em sua obra A sociedade dos indivíduos (1994) com as seguintes palavras: ‘[Com esta obra eu] tentava mostrar que uma sociedade se compõe, é claro, de indivíduos, mas que o nível social possui regras que lhes são próprias e que não se pode explicar somente em função dos indivíduos’ (ELIAS, 1980: 73)2. Logo, passamos a compreender que o indivíduo e a sociedade apenas existem um com a presença do outro (CARR, 1982: 67) e, com isso, também passamos a identificar a cultura como uma dessas formas de socialização geradas por aquelas forças sociais específicas faladas anteriormente. Já que a cultura é uma dessas formas de socialização, pensamos, em nosso trabalho, a cultura como um ‘todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer aptidões adquiridas pelo homem como membro da sociedade’ (CHINOY, 1982: 56). Esta conceituação proposta por Chinoy passa a ter relevância maior já que demonstra a relação entre a arte e a cultura, e mais, demonstra que as aptidões individuais possuem relacionamento conceitual. Segundo este conceito ampliado de cultura podemos identificar seus principais componentes agrupados em três grandes categorias: as instituições, as idéias e os produtos ou artefatos materiais que os indivíduos produzem e usam no curso de sua existência social. Assim sendo, percebemos que as artes fazem uma clara intersecção entre as idéias e os produtos humanos, sendo originadas como idéias e alcançando um nível social de produto (CHINOY, 1982: 59). Esse todo complexo, no qual a cultura se enquadra, responsável também pela socialização dos indivíduos demonstra que ‘a sociedade é externa a nós [e] estamos na sociedade localizados em setores específicos do sistema social’ (BERGER, 1976: 105). Uma vez que a cultura está inserida no contexto social, notamos que os sistemas de significados desta cultura possuem uma estruturação que pode mudar de acordo com determinadas relações (BERGER, 1976: 76). Logo, os indivíduos incorporam a cultura social a sua própria realidade adaptando-a, o que, segundo Ruth Benedict, cria uma pluralidade sócio-cultural dos sujeitos (BENEDICT, 1946). 2 Para mais informações acerca do pensamento sociológico de Norbert Elias – principalmente a sua visão de configuração social – ver: ELIAS, 1980 138 Essa pluralidade de pensamentos individuais coletivizados marca as contradições dentro de determinada sociedade em dada época, o que gera a necessidade de se compreender o pensamento de, no mínimo, alguns indivíduos que formem e demonstrem as contradições e formas sócio-políticas de certo momento. Desta forma, se o protagonismo dos indivíduos é condicionado pela sociedade e pelas relações interiores a ela, ainda nos resta uma questão relevante a ser respondida: e se esse indivíduo for um artista? Por todo o século XIX e grande parte do século XX os artistas foram estudados pelo simples fato de serem artistas, produtores de obras de valor estético, pouco importando se possuíam um lugar específico na sociedade ou mesmo se tinham uma atuação política como muitos, principalmente após a Revolução Francesa e a instauração do artista autônomo (ELIAS, 1995). O único objeto que bastava ao pesquisador seja ele historiador ou não e ao leitor era, portanto, conhecer a vida deste produtor estético, principalmente as obras que este deixara e as passagens acerca de seu mundo privado, principalmente os fatos mais curiosos, tais como: quantos filhos teve, quantas amantes teve, como era sua personalidade, seus medos e qualquer outra característica insignificante para a compreensão de um contexto maior – as biografias do século XIX e XX demonstram claramente essas características. Separou-se o indivíduo-artista do indivíduo-político, aquele que obrigatoriamente possuía uma postura social pelo simples fato de existir em dada realidade pública, tentando-se encaixar o último no primeiro, anulando, assim, todas as contradições que marcam a vida humana. Isto ocorria devido ao fato dos pesquisadores ainda acreditarem na independência das atividades artísticas frente à existência social. Era o momento no qual a Arte bastava-se numa forma elitista, acreditavam. Logo, a produção estética foi vista apenas como dom humano, excluindo as estruturas nas quais ela é criada, desenvolvida, mantida e, principalmente, consumida e apropriada. Claro que, ainda neste momento, alguns autores das mais variadas perspectivas intelectuais já percebem a relação entre a sociedade e a arte3, como é o caso do sociólogo Max Weber que problematiza a produção musical e o relacionamento desta com a racionalidade (WEBER, 1995) e do filósofo Arthur Schopenhauer que coloca na música a função de libertadora (SCHOPENHAUER, 2005). Todavia, na grande maioria, as análises do momento não se preocupavam em problematizar o fator arte-sociedade. A partir de meados do século XX, contudo, com o estabelecimento de uma História Social das Artes que identificava na produção artística as idéias individuais provenientes do 3 Devemos lembrar que essa percepção que alguns autores possuem liga-se diretamente ao fato do surgimento de uma nova sociedade burguesa revolucionária e a instauração de novos padrões artísticos, principalmente o romantismo. 139 convívio social, os estudos acerca dos artistas e de sua produção passaram a ter forte relevância nos núcleos acadêmicos (SALAZAR, 1944) – acompanhando a lógica daquilo que aconteceu com a figura dos intelectuais anos antes4. Desta forma, a produção dos indivíduos, sejam eles intelectuais ou artistas passou a ser analisada no ‘cruzamento das histórias política, social e cultural’ (SIRINELLI, 2003: 232). Destarte, devemos fazer uma separação daquilo que chamamos de intelectuais e daquilo que chamamos de artistas, para, então, podermos analisar a presença dos artistas enquanto intelectuais. Como dito, o artista é o indivíduo que produz determinada obra de valoração estética perante o padrão sócio-cultural de gosto existente em seu contexto. Segundo Sidney Finkelstein (1969), esses são os indivíduos que evocam estilos intelecto-emocionais, questionando, exemplificando e complementando a vida. Podemos lembrar que o próprio classicismo julgava a sua característica de exemplificação da vida como extremamente forte, assim como os românticos percebiam nas artes a função de complementação, basta percebermos, por exemplo, as atitudes escapistas que estes propunham. Por último, podemos lembrar que o questionamento da existência humana já era característica desde o barroco. Por outro lado, o conceito de intelectual é muito mais complexo, muito mais polissêmico, tendo sido definido por uma gama de autores das mais variadas perspectivas analíticas, sociais e políticas5. Assim sendo, até hoje ocorre nos núcleos acadêmicos um intenso debate acerca da natureza desses indivíduos, de sua função, de sua presença e de quaisquer outras características relacionadas a estes atores. Ainda segundo Finkelstein, o intelectual é aquele que forma um todo coerente teórico ou prático aplicável à pluralidade de eventos, ou seja, nesse sentido, o pensador está ligado diretamente à análise da existência. Todavia essa característica não abarca toda a explicação acerca deste conceito. Podemos lembrar, por exemplo, que Norberto Bobbio diferencia os intelectuais em ideólogos e 4 Lembremos que foi necessário, principalmente a partir das décadas de 1970 e 1980, a inovação em uma modalidade de pesquisa histórico-artística, a História Social das Artes, uma vez que as análises até então denominadas História da Arte predominantemente permaneciam (e permanecem) presas a modelos puramente eruditos de aferições de datas, técnicas e modelos, excluindo, portanto, todos os caracteres sociológicos das práticas artísticas. Esse modelo de História da Arte, ainda vigente na grande maioria das análises, serve apenas para fazer hierarquizações de determinadas culturas sobre outras mesmo que indiretamente, colocando constantemente o modelo cultural-artístico ocidental como superior. 5 Vale ressaltarmos alguns autores que fazem esse debate acerca da conceituação de intelectual: GRAMSCI, 1988; GRAMSCI, 2002; SARTRE, 1994; BOBBIO, 1997; BOURDIEU, 1989. Interessante também é o debate entre Foucault e Deleuze: FOUCAULT; DELEUZE, 1974: 139-148. 140 expertos6 e o que os caracteriza é justamente o exercício do ‘poder ideológico’ nas sociedades. André Botelho nos oferece uma clara análise deste conceito na obra de Bobbio: [Nas sociedades existe] ao lado do poder econômico e do poder político, o poder ideológico, que se exerce não sobre os corpos como o poder político, jamais separado do poder militar, não sobre a posse de bens materiais, dos quais se necessita para viver e sobreviver, como o poder econômico, mas sobre as mentes pela produção e transmissão de idéias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos práticos, mediante o uso da palavra. (BOTELHO: 103) Feito este pequeno paralelo entre a conceituação de artista e a de intelectual, antes de voltarmos às leituras acerca da presença dos artistas na sociedade, devemos pensar qual a relação entre o artista e o intelectual. Será possível esses indivíduos ocuparem uma mesma posição social, de artistas-intelectuais, relacionando as duas características? A partir da leitura de Marilena Chauí, cremos que sim. A autora brasileira partindo da percepção de que o saber e, portanto, as produções deste saber, estéticas ou não, são uma ‘instituição social’, uma vez que exprimem as relações sociais, políticas e culturais nas quais são produzidas, distribuídas e conservadas, percebe que o intelectual é a figura pessoal – um filósofo, cientista ou o próprio artista – que interfere criticamente no espaço público da forma mais ampla possível (CHAUÍ, 2006: 28-29). Destarte, se referindo diretamente ao engajamento intelectual é possível um produtor estético ser considerado artista-intelectual, como é o caso, por exemplo, do compositor Ludwig van Beethoven durante a Revolução Francesa, momento no qual escreveu obras e correspondências acerca do evento. Uma vez que a função do artista pode se aproximar da função do intelectual, percebemos que a validade dos estudos das trajetórias nos parece muito clara, principalmente a desses indivíduos que se ligam diretamente ao espaço público de sua realidade. O historiador francês Jean-François Sirinelli, especialista em política e cultura, nos afirmará que ‘as trajetórias pedem naturalmente esclarecimento e balizamento, mas também e, sobretudo, interpretação. O estudo dos itinerários só pode ser um instrumento de investigação histórica se pagar este preço’ (SIRINELLI, 2003: 247). É necessário, dessa forma, estudar a descida das cúpulas da intelligentsia até a sociedade civil, dessas idéias fecundas e analisar de um lado, sua influência sobre os sobressaltos da 6 Apesar desta separação proposta por Norberto Bobbio parecer próxima às divisões dos intelectuais propostas por Antonio Gramsci entre intelectuais tradicionais e orgânicos, os conceitos destes dois autores não caminham juntos, possuindo contrastes evidentes. 141 comunidade nacional, e de outro, mais amplamente, sua assimilação – ou não – pela cultura política da época (SIRINELLI, 2003: 258-259). Temos, contudo, que ter em mente que os intelectuais, apoiando-se em uma mitologia de infalibilidade criada pela própria sociedade que o supervaloriza, produzem ou veiculam ideologias, mesmo que de formas inconscientes, inclusive através de movimentações estéticas, uma vez que, agora, o estilo deve passar a ser compreendido como a combinação da caracterização social de um determinado ponto da cultura e da vontade individual, ou seja, aquilo que a sociedade oferece culturalmente adaptado àquilo que o indivíduo sente e percebe, como é o caso do romantismo e do modernismo, que influenciam diretamente no quadro social nos quais estão inseridos, podendo se relacionar, inclusive, com a cultura política de seu contexto. Dessa forma, a produção estética – arte – passa a ser interpretada como fenômeno social e o artista começa a estar no centro de uma cadeia de interdependência, uma rede de sociabilidade complexa que o possibilita interagir criticamente de forma direta em seu espaço público, produzindo, com isso, uma atitude política e cultural que influenciará seu meio e que por este meio será influenciada. Sobra-nos, contudo, alguns pontos que devemos questionar ainda: se está claro a necessidade de se problematizar uma vida individual, principalmente de um intelectual ou de um artista – ou de um indivíduo que encerre ambas as características – qual a possibilidade deste sujeito ser utilizado como fonte para a análise de sua realidade social, política e cultural? E mais: é possível pensarmos comparativamente os indivíduos, procurando estabelecer similitudes e singularidades entre quadros sociais diversos? Desta forma, faz-se necessário compreendermos o que comumente chamamos, de forma equivocada na maioria das vezes, de História Comparada. A partir de então, devemos pensar na possibilidade de utilizarmos as biografias ou trajetórias de vidas (KOFES, 2001), como preferem os antropólogos, como fonte para as análises comparativas. Por uma História Comparada das Trajetórias Individuais como Fonte para Comparações dos Fenômenos Sociais, Políticos e Culturais. No início do século XX firmou-se como campo histórico um modelo de pesquisa que encerrava em seu próprio nome não apenas o seu objeto de pesquisa, como é o caso da 142 política, da economia ou da cultura no caso da História Política, da História Econômica ou da História Cultural respectivamente. Esta nova abordagem, todavia, guardava em seu próprio termo sua forma de trabalho, seu método analítico: a comparação. Esse método era a História Comparada. Portanto, para o prosseguimento deste trabalho, devemos definir o que compreendemos como método, já que essa nova abordagem carrega em seu nome o próprio método que utiliza, e o que compreendemos como teoria, já que essa nova forma abarca as mais variadas gamas teóricas, fazendo um claro paralelo entre ambos. Neste trabalho, compreendemos teoria como 'um corpo coerente de princípios, hipóteses e conceitos que passam a constituir uma determinada visão científica do mundo' (BARROS, 2010: 224). Método, por sua vez, é definido como um caminho através do qual se pretende atingir determinado resultado e, também, um conjunto de procedimentos que são sistematizados com vista à resolução de determinado problema. Dentre os métodos fundamentais podemos citar o método indutivo, que parte do específico e busca formulações mais amplas e o dedutivo, que parte do geral e busca o específico, além, é claro, do método de observação e do método de experimentação, tão comuns nas ciências da natureza (BARROS, 2010: 213)7. Sendo assim, devemos perceber, agora, como ocorre a gênese e as modificações desse modelo historiográfico desde sua formação, ainda na transição do século XIX para o XX, analisando suas vantagens e seus problemas para, então, darmos um passo adiante na construção de uma História Comparada dos Indivíduos enquanto artistas, intelectuais e políticos. História Comparada: uma apresentação histórico-analítica A comparação é uma característica humana comum e está presente, mesmo que indiretamente, na maioria das práticas historiográficas. As teorias, os métodos, as fontes e os recortes são escolhidos, afinal de contas, de formas comparativas. O historiador e economista polonês Witold Kula já afirmou em sua obra (1973) que nenhum trabalho pode lançar mão da não utilização de comparações. Autores gregos, como Heródoto já se comparavam a outras culturas, o mesmo pode ser dito acerca de Tucídides em sua História da Guerra do 7 Para mais informações acerca do debate entre Teoria e Método, ver, do mesmo autor: BARROS, 2011. 143 Peloponeso e, também, acerca de Políbio que também realizava comparações – não é nosso interesse, porém, entrar, aqui, no mérito comparativo proposto por tais autores que, certamente, tinham uma função social, cultural e política bem definida. Todavia, devemos pensar aquilo que marca essa nova forma comparativa surgida há poucos anos no interior das análises sociais. Após a crise historiográfica ocorrida durante a transição do século XIX para o século XX, marcada especialmente pela recusa dos historiadores ante o paradigma positivista que é marcado por um rigor cientificista quase empirista o qual a História não alcançara, surgiu um modelo historiográfico voltado diretamente às abordagens sociológicas. Comparar, no início, serviu para romper com este modelo historiográfico até então praticado. Este método, o comparativismo, foi utilizado de forma ampla desde sua constituição dentro da disciplina histórica o que permitiu abarcar uma pluralidade de objetos e teorias diferentes em seu escopo. Essa característica de englobar teorias plurais dentro de um mesmo método principal facilitara os debates sobre a nova modalidade. Neste contexto de início de século – mais especificamente durante as décadas de 1920 e 1930 – alguns autores propuseram a aproximação entre a História e as Ciências Sociais. O sociólogo alemão Max Weber originalmente já se utilizava de abordagens comparativas das instituições e de seus referenciais, como a burocracia. Assim sendo, propôs um ‘método tipológico e procurou comparar fenômenos sociais complexos a partir de modelos ideais’ (RUST; LIMA, 2008: 14). Em Weber, contudo, a análise comparativa não opera na busca daquilo que seja comum a várias ou a todas as configurações históricas mas, pelo contrário, permite trazer à tona o que é peculiar a cada uma delas. Logo, buscando encontrar fatores que estavam ausentes em outros momentos históricos, o sociólogo praticou uma comparação sem a preocupação do correr temporal, tão característico da História enquanto disciplina analítica8. Desta forma, surge um primeiro e intenso debate nos núcleos historiográficos da Europa, debate esse que contribuirá, posteriormente, para a fama de um historiador: Marc Bloch9. Dentro deste primeiro contexto podemos ressaltar as análises de Louis Daville, Lucien Febvre, François Simiand e Henri Sée, para quem a comparação facilita a fundamentação da História enquanto ciência não-experimental. Neste momento fica conhecido também o debate entre Henri Pirenne, defensor deste modelo, e Henri Berr, que 8 Para uma referência do próprio autor, ver: WEBER, Max. The city. New York: Paperback, 1966. Já para uma pesquisa mais detalhada acerca das abordagens weberianas, ver: RINGER, Fritz. A metodologia de Max Weber: unificação das ciências culturais e sociais. São Paulo: EDUSP, 2004. 9 Outros autores, que acabaram se destacando menos que Marc Bloch, também tiveram significativa influência neste momento realizando, assim como Bloch, estudos comparativos. Vale lembrar, por exemplo, o caso do historiador alemão Otto Hintze (1861-1940), que possui interessantes estudos acerca da burocracia. 144 questionara a validade deste método historiográfico. É então que Marc Bloch apresenta sua compreensão sobre a validade deste método10. A perspectiva de Bloch vem diretamente da abordagem comparativa nas Ciências Sociais propostas por Émile Durkheim. O comparativismo para este sociólogo francês serve para analisar fatores que levam cada sociedade a possuir uma forma determinada (DURKHEIM, 1974). O historiador, por sua vez, tenta se afastar de comparações muito amplas procurando estudar sociedades vizinhas e contemporâneas que sejam influenciadas umas pelas outras, o que evitaria anacronismos e falsas analogias, dois perigos constantes nas análises comparativas (Cf. BUSTAMANTE; THEML, 2003). Partindo dessa visão, Bloch faz, acima de tudo, uma ‘História Comparada Problema’ (BARROS, 2007: 6). O autor escreveu duas obras teóricas relevantes (BLOCH, 1998: 111-118 e 119-150) e dois estudos fundantes para a matéria, nos quais, aplicando suas próprias teorizações, compara objetos do mesmo campo humano, como a religiosidade no caso de Os reis taumaturgos texto no qual compara a crença no poder milagroso dos reis na França e na Inglaterra e os sistemas sociais no caso da obra A sociedade feudal, no qual compara o modelo feudal ocidental ao japonês. Esta realidade de comparação proposta inicialmente por Marc Bloch prevalece até hoje na grande maioria dos estudos, inclusive nos que se propõe a comparar questões dispares11, o que modificou, contudo, foi o recorte. Uma das questões constantemente debatidas após o início desta abordagem da disciplina histórica é acerca da validade e da pluralidade das escalas de observação, os recortes. Bloch originalmente propôs um modelo nacional, conforme a época necessitava. Arnold Toynbee (1987), por sua vez, desejou comparar, equivocadamente, civilizações12. Anos mais tarde a Micro-História começa a dialogar diretamente com essa abordagem, focando no cotidiano de uma pequena localidade. Dentro deste modelo de Micro-História surgem as comparações, mesmo que indiretas, das comunidades. Neste momento inicial, essa modalidade foca, quase que exclusivamente, nas redes de sociabilidades individuais, sem se preocupar com questões do tipo indivíduo/sociedade ou em esquematizações biográficas. Após estes debates que permearam os historiadores na primeira metade do século XX e após o relativo crescimento das abordagens comparativas durante as décadas de 1970 e 1980 10 Para mais informações acerca do método comparativo na obra de Marc Bloch, ver: SEWELL, William. Marc Bloch and the logic of comparative history. History and Theory, v.6, n.2, 1976, p.208-218. 11 Para uma melhor discussão acerca deste caráter comparativo proposto por Marc Bloch e para uma discussão acerca da relação entre a História Comparada e as críticas epistemológicas surgidas no século XX, ver: RUST, Leandro Duarte; LIMA, Marcelo Pereira. Ares Pós-Modernos, Pulmões Iluministas: para uma epistemologia da História Comparada. Revista de história comparada (UFRJ), v. 03, p. 01-26, 2008 12 Dizemos que Toynbee faz uma análise equivocada uma vez que as civilizações que ele analisa tiveram que ser reduzidas a determinados aspectos enquanto fenômenos. Para outras críticas a essa modelagem proposta para Toynbee, ver: BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: Unesp, 2002. 145 que ampliaram as possibilidades metodológicas das comparações, a História Comparada ainda receberia uma profunda modificação. Esta nova proposta de mudança viria na voz do belga Marcel Detienne (2004), um especialista em História Antiga, especialmente em mundo grego. Detienne parte da crítica ao modelo proposto por Marc Bloch que procura explicar semelhanças e diferenças em séries análogas13. Bloch portanto, segundo o helenista, procura fazer um modelo mais seguro de comparações buscando e defendendo uma cientificidade específica – rígida demais na visão de Detienne. Desta forma, o autor propõe uma análise na qual se compare o incomparável – o que acabará dando nome a seu livro –, fazendo um trocadilho com a conhecida sentença que diz que ‘só devemos comparar aquilo que é comparável’. Detienne, que sugere a aproximação entre os historiadores e os antropólogos uma vez que estes últimos já estão acostumados com modelos comparativistas de cunho nãohierarquizante, prega por uma prática de pesquisa em grupo sem a necessidade de que cada membro abra mão de sua formação específica. A partir dessa divisão de grupos, que amplia os horizontes de pesquisas, Detienne propõe que esses grupos dividam a pesquisa em três etapas: (1) construção de objetos de pesquisa pelos projetos individuais de cada membro da equipe; (2) construção de conjuntos de problemas; (3) criação de um campo de exercício de experimentação comparada (BUSTAMANTE; THEML, 2003: 12-14). Faz-se mister, contudo, analisar algumas vantagens, possibilidades e limitações desta nova modalidade da disciplina histórica. O historiador alemão Jürgen Kocka, defendendo um novo tipo de história que empregasse métodos e teorias das ciências sociais, a chamada Historische Sozialwissenschaft (FONTANA, 2004: 368), diferenciou em seu célebre texto Comparação e além quatro propósitos para a História Comparada, são eles: (1) os propósitos heurísticos, que permite identificar pontos que seriam perdidos sem as comparações, (2) descritivos, que esclarece determinadas singularidades perante os contrastes, (3) analíticos, facilitando a localização e a resposta de questionamentos e (4) paradigmáticos, facilitando o afastamento do historiador ante seu objeto (KOCKA: 39-44). Essa pluralidade de propósitos demonstram plenamente as vantagens desta modalidade que afasta, também, os problemas de uma História estática dando a mobilidade necessária ao momento a partir da comparação dos processos. O sociólogo estadunidense Charles Wright Mills já afirmou certa vez que ‘só por um ato de abstração que violenta desnecessariamente a realidade social podemos tentar congelar um processo’ (MILLS, 1975: 151). Por sua vez, o historiador britânico John Tosh ainda afirmaria que a História Comparada é ‘um meio essencial de aprofundar nossa 13 Lembramos que uma das funções do historiador comparativista, hoje, é decidir se e o motivo pelo qual ressaltará certa semelhança ou certa diferença. 146 compreensão do passado’ (TOSH, 2011: 171) já que ‘trabalhar sempre dentro das fronteiras de uma sociedade é impedir que se tenha um ângulo crítico de visão’ (TOSH, 2011: 171). Podemos também pensar na pluralidade de campos que devemos comparar, o que gera inúmeras possibilidades de análise. Destarte estas vantagens e possibilidades, esta prática historiográfica aqui analisada possui certas limitações e alguns problemas. O já mencionado Jürgen Kocka afirma que existem três razões metodológicas que dificultam a comparação. Primeiramente percebemos que quanto mais casos forem comparados mais difícil é o trabalho de aproximação do historiador do fenômeno que está pesquisando. Em segundo lugar, podemos citar que as comparações muitas vezes quebram as continuidades, ainda tão úteis e necessárias aos historiadores. Por último, existe a impossibilidade prática de se comparar totalidades, desta forma, resta ao historiador comparativista, a comparação de aspectos de determinada realidade (KOCKA, Op. Cit.). Outra ponto relevante é acerca dos anacronismos: os historiadores comparativistas devem tomar cuidado extremo com o anacronismo, principalmente nas análises diacrônicas que, por tratarem de temporalidades distintas, podem levar a análises e conceituações errôneas. Partindo das ponderações de Marc Bloch, os professores Ciro Flamarion Santana Cardoso e Héctor Pérez Brignoli pontuam o perigo do anacronismo no método comparativo ‘ao confundir analogias superficiais com similitudes profundas, sobretudo em se tratando de sociedades estruturalmente bem diversas, ou muito afastadas no tempo’ (CARDOSO; BRIGNOLI. 1983: 413-414). Logo, apenas ‘é proveitoso se comparar o realmente comparável’ (CARDOSO; BRIGNOLI, 1983: 413-414). Percebemos nesse trecho que os autores inviabilizam, em certa medida, o modelo que seria futuramente proposto por Marcel Detienne de comparar aquilo que, no início, é incomparável, sendo assim, acabam buscando uma neutralidade objetiva nas Ciências Humanas quando defendem a utilização desse método com parcimônia. Outro cuidado que os comparativistas devem ter, além do anacronismo, é o referente aos etnocentrismo que ocorre, principalmente, nas análises interculturais. Portanto, os pesquisadores devem cuidar para que não considerem um dos modelos comparados superior ao outro. Neste quesito, uma das críticas mais diretas que a História Comparada sofreu veio diretamente da Antropologia – principalmente da Cultural –, que seria defendida posteriormente por Marcel Detienne. O antropólogo Cliford Geertz, por exemplo, tentou afastar qualquer interpretação comparativa cultural já que essas podem gerar hierarquizações, mesmo que de forma indireta (GEERTZ, 1973). Percebemos, portanto, que por seus possíveis problemas de análise a História Comparada tem que ter, em seu interior, uma plena 147 fundamentação teórica e metodológica, sem a qual o trabalho ficaria equivocado ou mesmo inviável. Podemos ressaltar também, a guisa de conclusão, que, nos últimos anos, a História Comparada recebeu uma série de críticas por realizar compartimentações do todo. Esses críticos, contudo, afirmam a necessidade de certas comparações. A essa nova abordagem, próxima de certa forma, chamamos de História Cruzada14. Nesta modalidade historiográfica os pontos analisados são vistos como unos ocorrendo, assim, uma influência mútua de determinado aspecto em ambas as realidades pesquisadas. Kocka, da chamada escola de Beielefeld, defende, contudo, que os comparativistas se utilizem também da História Cruzada. Já que, ‘o ato de comparação pressupõe a separação analítica dos casos a serem comparados. Mas isto não significa ignorar ou negligenciar as inter-relações entre estes casos (se e na extensão de que estas existam). Ao invés disto, tais inter-relações devem se tornar parte do esquema comparativo através de sua análise como fatores que levaram a similaridades ou diferenças, convergência ou divergência entre os casos que se compara.’ (KOCKA, Op. Cit.: 4) E continua, ainda defendendo a aproximação da História Comparada à História Cruzada: ‘(...) exemplos poderiam ser dados de modo a mostrar que é tanto possível como desejável tratar fenômenos históricos como unidades de comparação e, ao mesmo tempo, como componentes de um todo maior. As abordagens de História Comparada e as de História Cruzadas são diferentes modos de reconstrução histórica. Há uma tensão entre elas, mas não são incompatíveis. Pode-se tentar analisar em termos comparativos e se narrar uma história ainda assim. Não é necessário escolhe entre História Comparada e História Cruzada. O objetivo é combiná-las.’ (KOCKA, Op. Cit.: 4) Contudo, mesmo com essa complexa gênese e conturbados debates acerca de sua validade e de suas possibilidades, a História Comparada se firmou como um campo histórico. Podemos lembrar que a história deste campo historiográfico já foi analisado por vários autores, entre os quais, demonstrando um trabalho de ampla pesquisa, encontram-se, podemos citar, as obras de Hein-Gerhard Haupt, O lento surgimento de uma História Comparada (1998: 205-216) e de Jean-Marie Hannick, Breve história da História Comparada (2000: 301-327). Um campo específico de comparações de fenômenos. Devemos ressaltar que 14 Histoire Croisée ou Verflechtungsgeschichte [História Entrelaçada] 148 mesmo com as comparações existindo em praticamente todas as abordagens historiográficas, o que diferencia a História Comparada de outras modalidades comparativas é a comparação de fenômenos. O historiador comparativista foca sua análise nos fenômenos comparados e não apenas nas diversas teorias, métodos, fontes ou recortes que estão a sua disposição, sem negar, contudo, essa prática comparativa15. Logo, a História Comparada acabaria sendo um procedimento historiográfico, mais do que certo método, apesar de a nomearmos no cotidiano assim, já que reúne em si a possibilidade de utilização de outros métodos, guardando à comparação a importância inicial e final. Desta forma, é possível realizar certa sistematização de cinco aspectos para a delimitação da História Comparada como um campo historiográfico próprio. São eles: (1) um duplo ou múltiplo campo de observação, (2) a utilização de metodologias comparativas, (3) uma escala de inscrição, (4) uma perspectiva de análise e, por último, (5) uma articulação intradisciplinar com outras modalidades históricas (BARROS, 2007: 26) que permitirá uma História Comparada Política, Econômica ou Biográfica. Resta-nos, agora, advogar em favor de uma análise comparativa das trajetórias individuais – biografias – como fonte para a análise dos fenômenos sociais, políticos e culturais nos quais estas realidades de vida estão circunscritas. Logo, percebemos que é necessária a anexação de novas formas de pesquisa, como as metodologias biográficas. Uma história cercada de vidas: os indivíduos comparados. Inegável é, em nosso tempo, a contribuição do estudo das vidas individuais de certos personagens, sejam eles seres ilustres ou indivíduos comuns. Já nos parece de forma clara a impossibilidade de dissociar o indivíduo de seu quadro social, aquele que é responsável, em certa medida, por sua conduta, por suas criações, e por todas as outras características que formam o sujeito. Essa contribuição do estudo das vidas pode ser percebida perante várias modalidades históricas, como alguns estudos culturais acerca de determinado sujeito com um pensamento religioso peculiar durante o início da chamada Idade Moderna, como é o caso do Domenico Scandella, também conhecido como Menocchio, de Carlo Ginzburg (2006), ou mesmo alguns estudos político-sociais acerca de certos ditadores durante determinado tempo 15 Acerca desta consideração, José D’Assunção Barros nos afirmará que nem todo comparativismo histórico é História Comparada, esta é, por sua vez, a comparação de fenômenos com rigor metodológico próprio, saber ‘o que e como comparar’, assim sendo, o comparativismo histórico pode existir mesmo sem a presença de uma História Comparada. Cf.: BARROS, 2007: 1-30 149 e da relação destes com sua sociedade em tempos próximos, como é o caso do Hitler de Ian Kershaw (2010). Contudo, poucos são os estudos que tentam tratar as vidas individuais como fonte para análise comparada de realidades sociais. Explicamos: em nossa visão os indivíduos podem oferecer material relevante para a análise de uma realidade. Dessa forma, através de um ator torna-se possível perceber as características que definem determinado período e determinado processo. Cabe relembrarmos ainda que os estudos acerca da vida de indivíduos, principalmente os ‘ilustres’, reaparecem como modalidade histórica juntamente com o retorno, em forma renovada, da História Política e, também, com as questões impostas pela narratividade. Uma vez que as três modalidades (Estudos Biográficos, História Política e Narratividade) passam a ser consideradas e são problematizadas em um mesmo momento, a interação entre elas passa a ser bastante freqüente fazendo com que acabem, portanto, ‘caminhando juntas’. Mesmo assim ainda ocorrem problemas. Notamos que o principal problema dos estudos biográficos contemporâneos surgem quando tais estudos se encerram em uma narratividade sem valor prático para a compreensão de um processo, seja ele qual for. Para usar uma metáfora comum no século XIX, o problema é quando esse tipo de conhecimento é posto em uma torre de marfim, tornando-se gratuito e desconectado de problematizações e de demandas científicas e sociais. De modo contrário, quando colocado em prática, esse material transforma-se em ampla fonte. Assim sendo, inegável é, também, o valor heurístico dos estudos das vidas nas novas interdisciplinaridades históricas, tais como a História e Sociologia, História e Filosofia, História e Literatura ou qualquer outra forma. A partir de então podemos, também, comparar duas visões de mundo para compreendermos mais plenamente uma realidade una: dois sujeitos circunscritos no mesmo quadro social, não importando qual posição ocupam em suas realidades, podendo ser próximos ou distantes, criam interpretações sociais singulares. dessa maneira, esses dois indivíduos podem oferecer material relevante para a melhor compreensão de seu determinado quadro. Outra possibilidade, cremos, é analisar os indivíduos circunscritos em quadros sociais diversos, porém com a mesma atuação social: políticos, filósofos, militares ou qualquer outra modalidade de indivíduo. Desta forma, conseguimos perceber como os indivíduos percebem fenômenos similares em realidades distintas a partir de sua presença nas sociedades plurais. E mais, se os indivíduos comparados forem artistas atuantes no espaço público através da política – os definidos artistas-intelectuais –, o estudo passa a oferecer uma nova possibilidade de abordagem, muito mais ampla. O indivíduo além de estar inserido em um condicionamento social oferecendo possibilidades de análise através de sua existência em si 150 passa a ser, também, além de um pensador, um produtor estético. Enquanto atuante no espaço público, deixa-nos material específico para análise; enquanto artista, deixa-nos obras imersas de vida social: política e cultural. Porém, nos deparamos com alguns problemas, tais como: Por que estudar o indivíduo em um tempo em que a preferência está nas análises culturais, políticas e de mentalidades? Qual a interação que um artista, no sentido exposto anteriormente, pode oferecer entre a cultura e a sociedade na qual está inserido para a análise histórica? E, por último e, para nossa análise, mais importante: Qual a possibilidade de aplicarmos uma metodologia comparativa ao estudo das trajetórias de vida dos artistas enquanto intelectuais numa realidade de quadros sociais distintos e como ela deve ser conduzida? Pelo menos desde meados da década de 1970, a historiografia passou a focar sua abordagem em dois modelos afastados: uma retomada da História Política com novos objetos, problemas e métodos e uma modificação nas análises, vindas diretamente das questões impostas pelos pós-estruturalistas que levariam ao assentamento de determinada História das Mentalidades. Apesar de uma das vertentes da História Política ter se aproximado fortemente das leituras de trajetórias de indivíduos após a segunda metade da década de 1980, essa disciplina se utilizou, em seu retorno, de abordagens teóricas que inviabilizavam ou, ao menos, dificultavam as análises dos sujeitos enquanto seres políticos individuais. Era a época em que se privilegiava uma análise das características institucionais da política. Por outro lado, as abordagens que focavam as mentalidades viraram seu olhar para as questões referentes a estruturas mentais, costumes, vida privada ou qualquer outra análise que excluía ou, ao menos, relativizava o indivíduo (Cf.: MALERBA, 2010). Acerca da relevância do indivíduo e da complexidade da leitura problematizadora da interação deste com a sociedade na qual está inserido, o sociólogo alemão Norbert Elias afirmaria acerca de sua própria obra: um dos elementos centrais de meu pensamento [...] era a idéia de que não se pode separar o indivíduo da sociedade, que eles constituem de fato dois níveis de observação distintos. Os fenômenos de grupo têm certas particularidades que se distinguem daquelas dos fenômenos individuais, mas sempre é preciso considerar os dois níveis simultaneamente (ELIAS, 2001: 70) Logo, uma volta a esse padrão de estudos mostra-se necessária mesmo com a dificuldade de se estabelecer certa autonomia do indivíduo frente ao todo social no qual 151 existe. Essa dificuldade leva ao cuidado de análise na fronteira entre a Sociologia, a História e a Psicologia na construção das análises das trajetórias individuais. Apesar de não praticar o modelo que aqui explicitamos, fazendo um tipo historiográfico bem distinto das análises de vida, o historiador francês Emmanuel Le Roy Ladurie afirma, acerca destas análises biográficas, que elas são um domínio que a História Social não absorveu. [E que] no entanto, a idéia de ver uma época através do destino de um homem seria, sem dúvida, fecunda; as realizações neste domínio não têm estado, porém, à altura de tais potencialidades. (LADURIE, s/d: 57) Acerca da validade do pensamento individual para o estudo de um determinado contexto social, podemos lembrar que Karl Marx, em sua obra A ideologia alemã (2008) já afirmava que as idéias e percepções políticas são originárias dentro das formações da classe social nas quais os autores permanecem inseridos, logo, o estudo passa a ser validado. Por outro lado, sobre a interação entre artista, cultura e sociedade e a relevância destas trajetórias particulares para as análises históricas, podemos lembrar, acima de tudo, que as ocupações escolhidas pelos indivíduos os subordinam diretamente a uma série de controles sociais, conforme afirma Peter Berger (1976) e, os talentos especiais acabam se tornando pontos de determinação social (ELIAS, 1995). Ladurie nos fala acerca da História das Idéias algo que pode, também, ser aplicado à produção artística se seguirmos a lógica de que modelos de produção estéticos estão subordinados a fatores similares àqueles da produção das idéias. Segundo o autor, ocorre entre os historiadores, certo declínio da história das idéias, ou, pelo menos, uma desvalorização desta disciplina. Os historiadores têm-se interessado mais pelas massas do que pelas elites, mais pela encarnação social das idéias do que pela produção intelectual dos grandes pensadores. A idéia de base era a seguinte: a história, embora seja eventualmente influenciada pelas obras dos grandes criadores intelectuais, só o poderá ser na medida em que as idéias emanadas desses poderosos personagens se apoderarem das massas, ou, em linguagem marxista, se tornarem uma força material. (LADURIE, s/d: 59) Devemos concordar, também, que além de se estudar o intelectual ou sua idéia, seja ela estética, política, ou qualquer outra, é necessário analisarmos os meios de produção criativa, os recebimentos e as apropriações de suas idéias e, também, as redes de sociabilidade nos quais este indivíduo permanece inserido, uma vez que uma das novas funções da 152 historiografia contemporânea é problematizar a presença de determinado ator e de sua produção dentro de seu núcleo social e não apenas analisar e compreender a produção em si (SIRINELLI, 1988. SIRINELLI, 1997 e DOSSE, 2004). Percebemos, assim, que as produções artísticas ou não e os próprios indivíduos não possuem uma autonomia absoluta extra-social como pretendiam alguns filósofos, principalmente aqueles que produziam no século XVIII e no XIX. A arte pela arte, a idéia pela idéia bem como o produtor solitário totalmente livre de pressões exteriores, como nos diz Mathias Schreiber, são ilusões: os solitários devem ser coletivizados (SCHREIBER, 1983). A partir de agora, localizaremos nosso produtor de idéias na figura do artista, enquanto intelectual, e as idéias, na arte por ele produzida. Percebemos que o artista enquanto indivíduo é um ser social, e enquanto produtor estético está situado em outras localizações socialmente determinadas. Dessa forma, este indivíduo possui uma série de obrigações e uma série de privilégios perante outros membros de classificações sociais díspares (KÖNIG, 1983). Logo, no caso do artista, as artes, que são a sua produção, passam a aparecer como um meio de socialização individual. Deste ponto, conseguimos, então, perceber a pluralidade de atitudes estéticas e a alteração da função da arte conforme a variabilidade dos quadros sociais nos quais ela é produzida, recebida, interpretada e reinterpretada (DUVIGNAUD, 1970). Podemos perceber, por exemplo, que a arte muitas vezes pode ser compreendida como a continuidade de uma rivalidade política, como é o caso do mecenato italiano durante os séculos XV e XVI e dos Estados germânicos do século XIX. Podemos lembrar, conforme nos propõe Charles Henry a partir da leitura de Norbert Elias que a riqueza musical [durante o século XVIII] na Alemanha e na Itália [locais de descentralização política] comparada à situação na França e na Inglaterra [locais de política centralizada] é estimulada pela multiplicidade das cortes que fazem concorrência entre si (HENRY, 2010: 151). O grande problema é que as análises tradicionalistas se esqueceram de que a produção artística depende, também, da existência social de seu criador. Percebemos que, as características dos indivíduos enquanto artistas são frutos de construções sociais uma vez que seus talentos e a utilização destes só se evidenciaram por estes atores participarem de grupos nos quais estas qualidades eram estimuladas e valorizadas (SCHIMIDT, 2009). Essas análises propõem, por sua vez, que é possível separar a produção entre o artista e o indivíduo, negando a complexidade do sujeito. Apesar da dificuldade de analisar o limite entre coexistência social 153 e produção estética, essas separações são desnecessárias e podem levar os pesquisadores a enganos. Elias diz que esses enganos devem-se à ‘tendência de traçar uma clara linha divisória entre o artista e o ser humano, o gênio e a “pessoa comum’’. Como também à tendência de tratar a arte como algo que flutua no ar, exterior e independente das vidas sociais dos povos’ (1995: 56). Percebemos neste trecho escrito pelo sociólogo que a arte está integrada à vida dos povos, característica perceptível em todo o correr histórico. Hoje, por outro lado, devemos pensar de que forma podemos, a partir de um rigor metodológico, comparar essas vidas para compreendermos estruturas maiores dentro de realidades distintas. Para isto, partimos da certeza de que nas análises dos artistas podemos colocar em paralelo a estrutura social que caracteriza a produção, o esquema político no qual esta realidade social este inserida e é praticada, a cultura que forma a produção estética e a própria produção individual marcada pelas interpretações do autor de seu mundo. Contudo, devemos tomar cuidado com falsas generalizações, como a utilização da marca temporal das gerações16. Assim sendo, a leitura desses indivíduos deixa de lado as curiosidades das biografias dos tempos passados e passa a interagir com ramos de conhecimentos sociais, principalmente a Sociologia e a História. Primeiramente, devemos deixar claro que não se deve nem superestimar nem subestimar o papel e a influência dos indivíduos em seu tempo, conforme já atestou Ralph Linton ainda em 1945. O que propomos, aqui, é o reconhecimento de que certos indivíduos oferecem material para a análise dos caracteres sociais, políticos e culturais nos quais vivem e que neles se encerram. Em segundo lugar, devemos lembrar que os indivíduos não são comparáveis entre si, pelo menos não no modelo historiográfico ao qual nos propomos, a História Comparada, uma vez que, primariamente apenas se comparam fenômenos e mais, a partir do momento em que comparamos os indivíduos ou suas obras, principalmente as artísticas, corremos o risco de hierarquizá-los; todavia, os modelos sociais nos quais estão inseridos estes atores e como sua produção ocorre são comparáveis através das percepções 16 Jean-François Sirinelli (SIRINELLI, 2008, p.131-138) realizou um pequeno estudo acerca da complexidade das análises geracionais demonstrando, por exemplo, que os historiadores desde o início do século XX ainda não chegam a conclusões acerca do uso desta idéia, como é o caso de Lucien Febvre que é radicalmente contra o uso e de Marc Bloch que já percebe certa utilidade no termo. A nosso ver, a utilização do recorte geracional, a partir do momento que é uma construção do historiador que classifica e rotula, sincroniza as movimentações políticas, sociais e culturais o que não corresponde ao processo histórico. Percebemos que a utilização deste termo pode ser encontrada na obra de Charles Rosen, A Geração Romântica (ROSEN, 2000) e que, dentro da própria obra, o autor demonstra a impossibilidade de se pensar um modelo artístico, a música no caso de Rosen, apesar do recorte geracional. Assim sendo, o recorte temporal de uma geração apenas existe como um instrumento de análise e não como uma busca de unidade. 154 desses sujeitos. Dessa forma, é possível, também, uma comparação da discursividade política e de modelos estéticos de determinada realidade. O medievalista Jacques Le Goff propõe a abordagem das vidas através do conceito de ‘sujeito globalizante’ (1999: 21). Ou seja, o historiador francês reconhece que, para a escolha de determinado sujeito a ser analisado, devemos aceitar que nele se encontram características de um mundo que queremos compreender. Como levarmos essa característica ao modelo comparativo torna-se, contudo, um problema. Para uma análise comparativa da atuação de determinados indivíduos, não basta colocarmos diferentes análises historiográficas em paralelo, o que não nos oferece nenhuma análise profunda, apenas oferecendo um panorama que, apesar de necessário, não possui valor historiográfico no sentido em que pensamos hoje17. Um cuidado diferente deve ser tomado, também, com o ato de encaminhar a pesquisa, um finalismo da análise. Esse ato de encaminhamento define-se como o conduzir certos parâmetros da pesquisa para determinados resultados que facilitam a comparação. Cremos ser mais fácil essa falha ocorrer no modelo de pesquisa que propomos uma vez que os indivíduos já deixaram uma obra integral e que pode ser analisada de forma retroativa, criando enganos que levem o resultado da pesquisa a um fator pré-determinado. No mais, a partir do momento em que o historiador escolhe as fontes individuais nas quais trabalhará, sejam elas, cartas, diários, anotações ou qualquer outra fonte produzida por um sujeito escolhido, deve problematizar o material em dois ângulos, ou seja, ambos os indivíduos analisados devem deixar materiais de conteúdo semelhante para a análise existir sob pena de o historiador correr o risco de se sufocar em uma narratividade irrelevante. Marcamos que o conteúdo deve ser semelhante porém o formato das fontes entre os indivíduos pode ser diferente: muitas vezes o que um autor confidenciara a um colega em certa carta, outro pode ter confidenciado apenas para si mesmo em seu diário. No mais, no caso das vidas artísticas comparadas, é tarefa do historiador escolher seu foco na relação arte (produto)–sociedade, artista (produtor) – sociedade ou no encaminhamento dos três fatores em conjunto (KÖNIG, Op. Cit.). Dessa forma, a partir do momento em que a vida narrada caminha juntamente com o contexto vivido e este contexto é a realidade social, política e cultural, percebemos que, partindo de um rigor metodológico e teórico, a abordagem comparativa dos indivíduos enquanto produtores de idéias e, especialmente aqui, de obras artísticas, é fonte útil para a 17 Rüssen falará, por exemplo, da complexidade de se fazer uma análise intercultural, na qual, criticará a possibilidade de apenas juntar diversas obras historiográficas para encontrar uma resposta não problematizadora. Cf.: RÜSSEN, 2006) 155 compreensão dos processos político-sociais representados nestes indivíduos. A obra artística passa, portanto, a ser a expressão da organização social como um todo, nos transmitindo tanto quanto qualquer outra fonte. E mais, já que tratamos de produções estéticas, podemos comparar diretamente como ocorre a realidade social e a discursividade política no interior das obras, percebendo, também, como essas obras foram recebidas e interpretadas pela sociedade. Percebendo que a interação entre indivíduo e sociedade é de difícil, mas não inviável, análise, principalmente quando trata de atores socialmente localizados, como os intelectuais e os artistas; percebendo também a possibilidade biográfica como matéria para a problematização social, política e cultural e, por último, pensando nas possibilidades e complicações da História Comparada, notamos que a análise comparativa do artista enquanto ser político e social é possível já que a sua arte enquanto manifestação permite compreender as dinâmicas singulares de cada momento ou de cada território dentro de sua estrutura. 156 REFERÊNCIAS BARROS, José D’Assunção. História Comparada: um novo modo de ver e fazer a História. Revista de História Comparada. v.1, n.1, 2007, p.6. ______. Teoria da história: princípios e conceitos fundamentais (volume 1). Petrópolis: Vozes, 2011. BENEDICT, Ruth. Patterns of culture. New York: Pelican, 1946. BERGER, Peter. 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