POLÍTICA, RETÓRICA E VIOLÊNCIA EM EURÍPIDES
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POLÍTICA, RETÓRICA E VIOLÊNCIA EM EURÍPIDES
POLÍTICA, RETÓRICA E VIOLÊNCIA EM EURÍPIDES: Uma análise a partir da peça retórica em Hécuba vv. 786-845. Brian Kibuuka www.briankibuuka.com.br RESUMO A tragédia Hécuba de Eurípides apresenta em seu enredo uma trama cujas motivações que tensionam e conduzem às ações são claramente políticas, envolvendo as relações entre estrangeiros unidos por códigos de hospitalidade, entre os senhores e as cativas de guerra, entre os governantes e os seus vassalos, e até mesmo entre os mortos e os vivos. Inerente a tais relações, a díke idealmente vigora e normatiza os discursos e atos, mas torna-se volúvel no transcorrer da peça dada a sua vulnerabilidade diante dos jogos retóricos e diante das relações de poder que determinam as oposições trágicas da peça. Tal erosão da díke por meio da retórica justifica os assassinatos à traição, os assassinatos rituais ou o assassinato motivado por vingança que fecha a peça. E é neste jogo retórico que Eurípides encena não apenas o mŷthos, mas expõe a própria pólis, amalgamando as questões vigentes em seu contexto às suas concepções particulares e às demandas artísticas do drama. Este trabalho visa identificar tal jogo político-retórico presente na peça, destacando-o no discurso de Hécuba a Agamêmnon no terceiro episódio (vv. 786845), identificando, onde possível, as características retóricas da fala da protagonista. Palavras-Chave: Eurípides, Hécuba, Retórica, Violência INTRODUÇÃO As tragédias e comédias gregas supértites do século V a.C. evidenciam que os poetas gregos trágicos e cômicos convergem em sua posição ambivalente em relação à oratória na pólis democrática. Ainda assim, os dramaturgos e os oradores atenienses têm muito em comum.1 Como os oradores, os dramaturgos eram cidadãos de Atenas 1 Tratamentos recentes a respeito da relação entre a oratória e a tragédia diferem a respeito daquestão. OBER, J. & STRAUSS, B. Drama, Political Rhetoric, and the Discourse of Athenian Democracy, in: WINKLER, J. J. & ZEITLIN, F. I. (eds.). Nothing to Do with Dionysos?: Athenian Drama in its Social Context. New Jersey: Princeton University Press, 1990, p. 237-270 discute como os símbolos no drama e na retórica transcendem uma estética/política e expande a ideia de civilidade. BERS, V. Tragedy and Rhetoric, in: WORTHINGTON, I. (ed.) Persuasion: Greek Rhetoric in Action. Londres: Routledge, 1994, p. 176-195 mostram que a diferenciação normativa entre a retórica forense e a tragédia está na contramão da crescente abertura do gênero trágico para a retórica. HALL, E. Lawcourt Dramas: The Power of Performance in Greek Forensic Oratory. Bulletin of the Institute of Classical Studies 40, 1995, p. 39-58 destaca as afinidades entre a oratória e o drama. HALLIWELL, S. Between Public and Private: Tragedy and Athenian Experience of Rhetoric, in: PELLING, C. B. R. (ed.), Greek Tragedy and the Historian. Oxford: Oxford University Press, 1997, p. 121-141 argumenta que a tragédia testifica a ambivalência e a instabilidade da experiência retórica. PELLING, C. Tragedy, Rhetoric, and Performance Culture, in www.briankibuuka.com.br (21) 97959-1514 1 autorizados pela democracia a ocuparem um lugar de prestígio dentro da cidade devido à liberdade que tinham para formularem os seus discursos. Os dramaturgos, como os oradores, disputavam a vitória diante das audiências das massas, apesar do voto para a definição do vencedor dos concursos dramáticos ser representativo - cinco juízes eram escolhidos aleatoriamente, e não a maioria dos espectadores.2 O público de ambos, dramaturgos e oradores, embora não fosse o mesmo, é considerado por Demóstenes um grupo formado por testemunhas dos eventos que ocorreram na pólis e foram em seguida encenados no teatro.3 Como Simon Goldhill afirma, “para a audiência, o teatro não é apenas um fio no tecido social da cidade, mas é um ato político fundamental”.4 A evidência de que as tragédias e as comédias encenadas em festivais em honra a Dionísio tinham algum sentido político é significativa. Mas, em que sentido tais peças eram políticas? Este trabalho visa discutir uma evidência da utilização da oratória dos retores pelo dramaturgo Eurípides na peça Hécuba, especificamente a utilização explícita dos instrumentos retóricos na argumentação da protagonista no terceiro episódio da peça, entre os versos 786 e 845. Também se sugere neste trabalho que a violência simbólica e real presentes nas decisões tomadas no regime democrátivo ateniense despertou em Eurípides uma nostalgia potencialmente antidemocrática, que se manifestou em seu drama, especialmente nos apelos feitos por Eurípides aos valores do tempo ficcional das ordens sócio-econômicas, políticas e morais unitárias, o tempo dos pais, período expresso nos slogans “constituição ancestral” e “leis ancestrais”, evocados através do slogan justiça (Díke). GREGORY, J. (ed.), A Companion to Greek Tragedy. Malden: Blackwell, 2005, p. 83-102 percebe como a tragédia e a retórica são utilizados mutuamente por oradores e tragediógrafos como discursos desviantes. 2 PICKARD-CAMBRIDGE, A. W. The Dramatic Festivals of Athens. 2ª ed. Londres: Oxford University Press, 1968, p. 95-99; CSAPO, E. & SLATER, W. J. The Context of Ancient Drama. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1995, p. 157-165. Para as questões relacionadas à audiência e como era determinada a vitória no concurso trágico, ver: WALLACE, R. W. Poet, Public, and ‘Theatrocracy’: Audience Performance in Classical Athens, in: EDMUNDS, L. & WALLACE, R. W. (eds.). Poet, Public, and Performance in Ancient Greece. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1997, p. 97-111. 3 Demóstenes afirma: καὶ τούτων, ὅσα γ᾽ ἐν τῷ δήμῳ γέγον᾽ ἢ πρὸς τοῖς κριταῖς ἐν τῷ θεάτρῳ, ὑμεῖς ἐστέ μοι μάρτυρες πάντες, ἄνδρες δικασταί [e a respeito dessas coisas, elas igualmente surgiram entre o povo, diante dos juízes no teatro, vós sois para mim testemunhas, juízes (DEMÓSTENES, Contra Mídias, 21.18). Outras alusões ao teatro são feitas por Demóstenes, que acusa Mídias de alguém digno de aparecer em uma tragédia (21.149), menciona os hábitos dos que vão ao teatro (Contra Mídias, 21.226) e acusa Filipe de corego dos membros do partido que o defendia em Atenas (Terceira Filípica, 9.60). Mais exemplos em: PERLMAN, S. Quotations from Poetry in Attic Orators of the Fourth Century B. C., AJPh 85, 1964, p. 162. 4 GOLDHILL, S. Representing Democracy: Woman at the Great Dionysia, in: LEWIS, D. M.; OSBORNE, R.; HORNBLOWER, S. (eds.). Ritual, Finance, Politics: Athenian Democratic Accounts Presented to David Lewis. Oxford: Oxford University Press, 1997, p. 347-369 (352). 2 A RELAÇÃO ENTRE A RETÓRICA E A TRAGÉDIA GREGA Os poetas trágicos dramatizaram em suas peças os mitos pan-helênicos para um público pan-helênico. A maior parte dos enredos trágicos coloca em cena um mundo predemocrático, que contava com instituições e formas de autoridade pessoal não mais vigentes – e até mesmo ilegais na sociedade democrática. Ainda assim, o mundo da pólis era representado no quadro esboçado pelos poetas trágicos em seus dramas, pois as escolhas políticas (p. ex., ir à guerra) e as suas conseqüências eram objeto de discussão nos temas encenados diante dos olhos dos cidadãos nos festejos cívicos. Aristóteles observou a estreita relação entre os discursos políticos e o debate de ideias que vigoram nos dramas trágicos (Poética 1450b6-7). O Estagirita percebeu que as matérias políticas estavam embutidas no material da tragédia. Sendo assim, as tragédias reforçavam, questionavam ou mesmo subvertiam as normas da vida política, já que os efeitos canônicos da retórica trágica - a piedade e o temor - têm conotações políticas. Segundo Aristóteles, a tragédia induzia emoções cívicas e civilizadas. O temor, segundo Aristóteles, impelia os espectadores à deliberação (Retórica 1383a6-8). A piedade, por sua vez, exige, segundo Aristóteles, a autoidentificação com a dor alheia e promove os julgamentos sobre os valores morais, as culpas e as responsabilidades do cidadão (Retórica 1385b11-1386a3; Poética 1453a5).5 A piedade era, segundo Aristóteles, fundamental para a retórica dos tribunais da justiça democrática. Os réus procuravam a absolvição por meio de apelos à piedade e até mesmo encenavam súplicas no final de suas defesas, exibindo os seus filhos e os membros da sua família chorando diante dos jurados (por exemplo, Ésquines 2.179-81; Aristófanes, Vespas, 560-75, 97581).6 A piedade era, na pólis de Atenas, uma norma do poder democrático: o dêmos era aberto atém mesmo aos sentimentos de compaixão em relação aos sofrimentos dos bemnascidos, dos ricos, dos bem-sucedidos, quando tais eram vítimas nos casos litigiosos em que estavam envolvidos. A compaixão constitui o fulcro da identidade coletiva da cidade democrática. Demóstenes define a “piedade com os mais fracos”, como um elemento essencial do 5 Para a piedade como um julgamento emocional, ver: KONSTAN, D., Pity Transformed. London: Duckworth, 2001. 6 JOHNSTONE, S. Disputes and Democracy: The Consequences of Litigation in Ancient Athens. Austin: University of Texas Press, 1999, p. 109-125. 3 caráter da pólis.7 Tragédias contendo fortes apelos à piedade foram encenadas, e tais eram eivadas de apelos baseados nas falhas de julgamento e na brutalidade dos mais poderosos, na maldade dos deuses e na caracterização dos fracos como vítimas da crueldade daqueles que desobedeciam as leis e os costumes helênicos. Os políticos atenienses posteriores a Péricles procuraram, após 420 a.C., excluir o núcleo da retórica trágica de sua arena. Quando o orador Cléon, o político “mais violento dentre os cidadãos e, de longe, o homem mais persuasivo para o dêmos”,8 procurava persuadir a assembléia para aniquilar os cidadãos de Mitilene devido a sua revolta contra o império ateniense em 427 a.C., ele admoestou os seus ouvintes para que eles não fossem vítimas das “três coisas mais inconvenientes para o império - compaixão, o prazer dos discursos e a razoabilidade”.9 Com efeito, os três elementos mencionados no discurso de Cléon mencionado por Tucídides constituem uma definição apropriada dos valores da retórica trágica, que é oposta aos valores do imperialismo ateniense por serem obstáculos aos interesses dos seus defensores. No discurso de Cléon em Tucídides, a democracia é considerada incapaz de dirigir os rumos do império,10 e faz-se a opção pela violência. A oratória política dos democratas radicais, demagogos e sofistas em atuação intensa após a morte de Péricles afastou o discurso a respeito do poder dos valores coletivos. Eles promoviam os interesses particulares e rejeitavam as concepções cristalizadas na dicção dos dramas trágicos, o que explica em parte a ambivalência em relação aos oradores e à retórica política nos dramas encenados após 429 a.C. EXEMPLOS DE CRÍTICA AOS ORADORES NAS TRAGÉDIAS E COMÉDIAS Os tragediógrafos apresentavam suas peças diante de cidadãos e estrangeiros nas Grandes Dionisíacas. Por tal razão, raramente as tragédias eram dramas dedicados ao louvor à cidade de Atenas. Por outro lado, os dramaturgos que escreviam e produziam as peças não estavam inclinados a culparem a cidade pelos males que a acometiam e que acometiam as cidades da simaquia ateniense, e é improvável que o dêmos permitiria que os dramaturgos criticassem radical e explicitamente a pólis diante dos estrangeiros que 7 DEMÓSTENES, Contra Mídias 24.171. TUCÍDIDES 3.36.6: “βιαιότατος τῶν πολιτῶν τῷ τε δήμῳ παρὰ πολὺ ἐν τῷ τότε πιθανώτατος” 9 TUCÍDIDES 3.40.2: “τρισὶ τοῖς ἀξυμφορωτάτοις τῇ ἀρχῇ, οἴκτῳ καὶ ἡδονῇ λόγων καὶ ἐπιεικείᾳ”. 10 TUCÍDIDES 3.37.1-2. 8 4 assistiam os dramas nos festejos pan-helênicos.11 Além disso, o caso de Frinico, que foi multado por encenar a captura de Mileto logo após o saque da cidade pelos persas em 494, estabeleceu um precedente: a tragédia não deve lembrar os espectadores de suas “próprias dores”.12 Quando os tragediógrafos se intrometiam diretamente nas questões referentes à democracia ateniense em tal contexto pan-helênico, tal ato tendia a gerar reações negativas. Eurípides era um tragediógrafo distinto dos demais. As possíveis reações negativas diante das críticas à democracia ateniense não foram suficientes para desestimular Eurípides a tecê-las. Ainda que os resultados fosssem desfavoráveis nos concursos trágicos, peças como Hécuba, Suplicantes, Troianas e Orestes demonstram o descontentamento do dramaturgo com as falhas morais dos discursos dos oradores no regime democrático. Em tais peças, as personagens e os coros criticam os atenienses e também os regimes não-atenienses. A autoridade de tais regimes é considerada questionável ou alienante, e as vozes que ecoam nos dramas são críticas e ambíguas. Os poetas cômicos também eram, como Josiah Ober argumenta, críticos internos da democracia.13 As comédias encenadas apresentavam em seus enredos personagens reais, e os próprios comediógrafos se comunicavam diretamente com a audiência. Eles o faziam diretamente pela parábase, parte do drama cômico em que o o coro aborda o público, asumindo a voz do poeta, entre outras vozes; e informalmente, pela identificação do dramaturgo com os “heróis”, como Diceópolis em Acarnenses (vv. 377-382).14 A existência de um elo essencial entre a comédia e a democracia era uma das característica dos debates sobre as origens megáricas da comédia,15 e a comédia foi incorporada às Grandes Dionisíacas em 486 a.C., nas primeiras duas décadas de democracia ateniense – o que não é acidental. Eventualmente, o gênero explorava o valor democrático da parrhēsía (“liberdade de expressão”), levando tal valor a um grau praticamente infinito.16 11 XENOFONTE, Constituição de Atenas, 2.18 afirma que o dêmos não se permite ser ridicularizado pela comédia. ISÓCRATES 8.14 apresenta uma visão contrária. 12 HERÓDOTO 6.21. Ver também: ROSENBLOOM, D. Shouting ‘Fire’ in a Crowded Theater: Phrynichos’s Capture of Miletos and the Politics of Fear in Early Attic Tragedy. Philologus 137, 1993, p. 159-196. 13 OBER, J. Political Dissent in Democratic Athens: Intellectual Critics of Popular Rule. New Jersey: Princeton University Press, 1998, especialmente p. 122-126. 14 Para a parábase, ver: HUBBARD, T. K. The Mask of Comedy: Aristophanes and the Intertextual Parabasis. Ithaca: Cornell University Press, 1991. Sobre o herói cômico, ver: WHITMAN, C. H. Aristophanes and the Comic Hero. Cambridge: Harvard University Press, 1964, p. 21-58. 15 ARISTÓTELES, Poética 1448a29-b3. 16 Há evidências de que aprovaram leis em Atenas para limitar o uso jocoso do nome de pessoas na comédia. HALLIWELL, S. Comic Satire and Freedom of Speech in Athens. Journal of Hellenic Studies 111, 1991, 5 A parrhēsía cômica não era necessariamente autorizada pelo dêmos. Ainda assim, os poetas cômicos demonstram, pelos enredos e pelo tom jocoso com que tratam personagens em atuação na pólis democrática, que havia liberdade de expressão em suas peças.17 A ridicularização de líderes e políticos atenienses era feroz e caluniosa mesmo nas Grandes Dionisíacas, evento que contava com a participação estrangeira. O tom das críticas também era obsceno e/ou pessoal nas Leneias, um festival em honra a Dioniso que contava com a participação de cidadãos e estrangeiros residentes em Atenas.18 Os comediógrafos exploravam a sua liberdade de expressão tanto nas Grandes Dionisíacas quanto nas Leneias, insultando com violência os cidadãos e, em especial, um tipo de orador da pólis democrática - o ‘demagogo’ ou o ‘defensor do dêmos’, que prometia amizade e boa vontade e se dispunha a agir somente em favor de seus interesses.19 As comédias relacionavam os demagogos a oficios menores: Cléon é chamado de ‘o curtidor’; Hipérbolo de ‘o fazedor de lâmpadas’; Cléofon é chamado de ‘o fazedor de liras’; e Andócles é chamado de ‘diarista’ e ‘prostituto’. Todos os demagogos mencionados nas comédias, especialmente de Aristófanes, foram mortos em atos de violência política nos levantes oligárquicos de 411 e 404.20 A comédia elogia os líderes que derivam a sua autoridade de fontes externas e que as utilizam em sua oratória, oradores que não vendem mercadorias ou serviços e que não adotam as posturas dos ‘defensores do dêmos’.21 p. 48-70; CSAPO, E. & SLATER, W. J. The Context of Ancient Drama. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1995, p. 176-180 colige e discute as evidências. 17 GOLDHILL, S. The Poet’s Voice: Essays on Poetics and Greek Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. Ver, especialmente, p. 188-200. 18 ARISTÓFANES, Acarnenses 496-508. As representações teatrais eram encenadas nas festas a Dioniso, sendo parte dos muitos festejos cívico-religiosos que mobilizavam Atenas. As festas eram cinco: as Oscofórias, que ocorriam na segunda quinzena de outubro; as Dionisíacas rurais, que eram realizadas entre os meses de dezembro e janeiro; as Leneias, que eram realizadas entre os meses de janeiro e fevereiro; as Antestérias, que eram realizadas entre os meses de fevereiro e março; e as Dionisíacas urbanas, que eram realizadas entre os meses de março e abril. E a importância da tragédia nessas festas, que ocupavam a cidade durante a metade do ano, estava em constituir-se um espaço de interação social, de debate e de entretenimento. Ver: SOMMESTEIN, Greek Drama and Dramatists. New York: Routledge, 2002. p. 6-7. 19 CONNOR, W. R. The New Politicians of Fifth-Century Athens. Indianapolis: Hackett, 1992, especialmente p. 109s; FINLEY, M. I. Athenian Demagogues. In: Democracy Ancient and Modern. 2ª ed. New Brunswick: Rutgers University Press, 1988, p. 38-75. 20 RESENBLOOM, D. Ponēroi vs. Chrēstoi: The Ostracism of Hyperbolos and the Struggle for Hegemony in Athens after the Death of Perikles, Part I. Transactions of the American Philological Association 134, 2004, p. 55-105 (88–89). 21 Sobre os alvos dos comediógrafos, ver: SOMMERSTEIN, A. How to Avoid Being a Komodoumenos. Classical Quarterly 46, 1996, p. 327-356. A respeito do “defensor do dêmos”, ver: CONNOR, W. R. The New Politicians of Fifth-Century Athens. Indianapolis: Hackett, 1992, p. 110-115; RESENBLOOM, D. From Ponēros to Pharmakos: Theater, Social Drama, and Revolution in Athens, 428–404 bce. Classical Antiquity 21, 2002, p. 283-346 (292–300); RESENBLOOM, D. Ponēroi vs. Chrēstoi: The Ostracism of Hyperbolos and the Struggle for Hegemony in Athens after the Death of Perikles, Part II. Transactions of the American Philological Association 134, 2004, p. 323-358 (90–93). 6 As críticas cômicas aos oradores são praticamente idênticas aos discursos de oradores do século IV a.C. contra os abusos cometidos por outros retores nos casos públicos julgados no tribunal ateniense: eles ridicularizavam uns aos outros, chamandose mutuamente de escravos, estrangeiros, sem educação e sem cultura, prostitutos, sicofantas, sofistas, subornados, bodes expiatórios e traidores.22 No entanto, há diferenças fundamentais entre as críticas dos dramaturgos do século V a.C. e as críticas dos oradores do século IV a.C. As comédias encenam a suspensão dos decretos, promovem com alegria o encerramento dos tribunais de júri,local em que as demonstrações de força eram mais agudas. Por sua vez, os oradores insultavam ferozmente certo tipo de retores (não apenas um único adversário), e violentamente chamavam os denunciantes voluntários de crimes públicos de bajuladores – de promotores maliciosos, desejosos de lucros e vantagens.23 O julgamento legal era um processo dialógico entre os membros de uma classe de líderes que discutiam sob a autoridade do dêmos; a comédia, por outro lado, era uma forma de abuso cometido por uma subclasse específica de líderes contra a autoridade do dêmos, chegando até mesmo a ser uma manifestação antidemocrática e conservadora. A hostilidade dos dramaturgos trágicos e cômicos com o regime democrático é surpreendente, uma vez que a oratória ateniense e os ensinos sobre a retórica sofística certamente influenciaram o drama de Eurípides e de Aristófanes. Ambos os autores, conscientes de que as performances retóricas constituiam a experiência do público do teatro, teceram em seus dramas vários confrontos discursivos, eivados de ideias e tópoi retóricos. Nos dramas de Aristófanes e Eurípides, em especial deste último, estavam incorporados debates formais, nos quais as personagens realizavam disputas retóricas. Tais debates percorriam as fronteiras entre a retórica sofística, a epidítica e a forense.24 A RETÓRICA DRAMÁTICA: CONCEITOS 22 DOVER, K. J. Greek Popular Morality in the Time of Plato and Aristotle. Oxford: Blackwell, 1974, p. 30-33; HEATH, M. Aristophanes and the Discourse of Politics, in: DOBROV, G.W. (ed.). The City as Comedy: Society and Representation in Athenian Drama. Chapel Hill: University of North Carolina Press, p. 230-249, especialmente p. 232-233. 23 A respeito dos sicofantas, ver: CHRIST, M.R. The Litigious Athenian. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1998, p. 104-117. 24 A respeito do agôn em Eurípides, ver: LLOYD, M. The Agon in Euripides. Oxford: Oxford University Press, 1992. 7 O caráter retórico do drama euripidiano e a sua conexão com a oratória forense nocional não escapou a Aristófanes: o comediógrafo afirma que não tem prazer em Eurípides, um poeta de “discursinhos forenses”.25 É mais justo dizer que a tragédia de Eurípides e a comédia de Aristófanes sejam, ao mesmo tempo, poderosamente atraídas e repelidas pelo poder da retórica. O ‘lugar comum’ da retórica durante o século V a.C. era a sua identificação como ‘língua’ [glôssa]. A eloquência, ‘língua boa’ [euglōssía], era considerada um elemento importante na tentativa de privar os oradores da autoridade intelectual e moral necessária para liderança legítima. Mesmo que o teatro tenha funcionado cada vez mais como um espaço para performances retóricas, os dramas trágicos, em especial o de Eurípides, problematizavam a língua como um instrumento de dominação, um órgão do desejo e um meio de produção - uma ferramenta econômica que fazia do discurso uma mercadoria, prometendo poder, prazer e lucro monetário, um produto que podia ser entregue pelos que a dominavam para os que desejavam dominá-la. A associação feita entre a retórica, a ‘língua’ e os oradores culminou na representação da integração do corpo político a um órgão que é incapaz de se por em pé. A escolha não foi aleatória: a língua tem associações culturais com os sintomas da doença, com os prazeres poluentes e com o ritual sacrificial. A pólis pode falar e, quando o faz, tem uma voz coletiva – porém, ela não tem uma “língua” coletiva. O desempenho oral da língua salienta a dependência perigosa que a pólis tem dos indivíduos, dependência dos atos de fala e do seu poder para criar realidades em performances momentâneas que anulam a experiência acumulada do passado. A língua sofre a sua apoteose no quinto século a.C. O Sócrates de Aristófanes diz a Estrepsíades, que quer uma educação na retórica sofística para que ele possa enganar seus credores no tribunal, que ele deve acreditar em três deuses: caos, nuvens, e língua.26 O Eurípides de Aristófanes dirige suas preces ao “Éter, meu pasto e pivô da minha língua”,27 que juntamente com a inteligência e as suas narinas ajuda-o a provar e a refutar os argumentos. Quando a língua assume o status divino, os deuses não governam mais.28 ARISTÓFANES, Paz 534: ῥηματίων δικανικῶν. ARISTÓFANES, Nuvens 423-24. 27 ARISTÓFANES, Rãs 893. 28 ARISTÓFANES, Nuvens 247-248. 25 26 8 O exercício da língua29 é a personificação da prova retórica e o expoente da retórica. O Discurso Injusto de Nuvens afirma que a deusa da Justiça (Díkē) não existe.30 O poeta cômico Cratino caracteriza a língua como o principal motor da assembléia democrática: a língua faz fluir os discursos – e o dêmos se move pela fala.31 A língua “move” todas as coisas por causa da destreza oratória do poder pessoal, que se torna uma força no mundo32 - o que implica dizer que a língua controla o dêmos, sendo a persuasão (peithṓ) a força primordial. O sofista Górgias de Leontini escreve: “o lógos que persuade a alma, as forças da alma, que convence a obedecer ao que é dito...”.33 Górgias descreve o logos como uma “grande dinastia”,34 comparando seus efeitos aos feitiços mágicos e às drogas no organismo.35 Língua, persuasão, obtenção de lucros pela retórica, variação nos discursos – são esses os temas e os argumentos que Eurípides assumirá em seus dramas para tratar da oratória, relacionando-os à violência e utilizando-a para tensionar a mola trágica. Para observar mais de perto tal dado, passar-se-á a analisar tal dado no drama de Eurípides em geral e na tragédia Hécuba em particular, mormente no discurso de Hécuba a Agamêmnon no terceiro episódio da peça. 29 ARISTÓFANES, Nuvens 1058s. ARISTÓFANES, Nuvens 904b-906. 31 CRATINO, fr. 327. 32 SÓFOCLES, Filoctetes 98-99. 33 GORGIAS, Helena 12. 34 GORGIAS, Helena 8. 35 GORGIAS, Helena 10-14. 30 9 A RETÓRICA EM EURÍPIDES A tragédia Hécuba de Eurípides é o drama em que se pode observar mais de perto o poder da oratória. Nela, Eurípides descreve peithṓ como “Persuasão, para os homens a única tirana”.36 O poder da oratória suprime o consentimento do que é convencido, privando-o da liberdade e da responsabilidade moral.37 A visão de Eurípides sobre o poder retórico sustenta a noção de que o dêmos não é responsável por seus votos na assembléia.38 A língua do orador é responsável pela persuasão e pelos seus resultados. O orador é um bode expiatório do dêmos, um phármakos, uma figura cuja culpa ritualizada, a expulsão ou a morte purifica e renova toda a comunidade (o mesmo ocorre em Aristófanes, Cavaleiros 1121-1150, 1397-1408).39 A retórica, sendo atributo da língua, exime a responsabilidade individual, mas também priva o dêmos de sua responsabilidade moral e autoridade. As características definidoras da retórica em Eurípides são onipotência e falta de autoridade moral. Poetas trágicos e cômicos usam para os oradores os rótulos ponērós e mochthērós [“ruim”, “vil”, “vilão”, “imoral”].40 A eloquência [euglōssía] constitui a linha divisória entre o ponērós e a sua antítese ética, chrēstós [“bom”, “honesto”, “nobre”, “autêntico”].41 “Zeus”, reclama um personagem em um fragmento de Eurípides, “por que tu dás esta disposição aos homens, a todos os vilões (ponēroís), a eloquência (euglōssían), mas para aqueles que são bons (chrēstoís) a incapacidade de falar?”.42 As personagens dos dramas de Eurípides expressam as suas ansiedades quanto à possibilidade de que um orador eloquente, por meio de uma difamação injusta, derrote uma causa justa por causa da falta de habilidade verbal por parte dos justos (aglōssía, EURÍPIDES, Hécuba 816: Πειθὼ δὲ τὴν τύραννον ἀνθρώποις μόνην. WARDY, R. The Birth of Rhetoric: Gorgias, Plato, and their Successors. Londres: Routledge, 1996, p. 62-64. 38 Aristófanes, Cavaleiros 1355-1357; Lísias 20.20; Tucídides 3.43,4-5; Xenofonte, Constituição de Atenas 2.17. 39 RESENBLOOM, D. From Ponēros to Pharmakos: Theater, Social Drama, and Revolution in Athens, 428–404 bce. Classical Antiquity 21, 2002, p. 283-346 (329-339); RESENBLOOM, D. Ponēroi vs. Chrēstoi: The Ostracism of Hyperbolos and the Struggle for Hegemony in Athens after the Death of Perikles, Part II. Transactions of the American Philological Association 134, 2004, p. 323-358 (332-339). 40 Para textos e bibliografia, ver: RESENBLOOM, D. Ponēroi vs. Chrēstoi: The Ostracism of Hyperbolos and the Struggle for Hegemony in Athens after the Death of Perikles, Part I. Transactions of the American Philological Association 134, 2004, p. 55-105 – especialmente p. 56, nota 4. 41 Sobre o termo chrēstós, ver: CONNOR, W. R. The New Politicians of Fifth-Century Athens. Indianapolis: Hackett, 1992, p. 183-193; RESENBLOOM, D. Ponēroi vs. Chrēstoi: The Ostracism of Hyperbolos and the Struggle for Hegemony in Athens after the Death of Perikles, Part I. Transactions of the American Philological Association 134, 2004, p. 55-105 (63–66). 42 EURÍPIDES, fr. 928b. 36 37 10 “falta de língua”).43 A equivalência entre as proezas oratórias e o fracasso moral é um princípio cardeal no jogo de expressões competitivas que os oradores e as audiências utilizam. Os oradores, segundo Eurípides, procuravam alinhar-se com o discurso honesto e direto, ao mesmo tempo em que atribuiam o rótulo ‘hábil em falar’ [deînos légein] aos adversários, aos desonestos.44 Eurípides não rejeita as instituições democráticas. Em Suplicantes, Teseu exalta Atenas, afirmando; “Esta é a liberdade. Quem tem um bom (khrēstón) conselho para a pólis e deseja trazê-lo à frente e ao centro? Aquele que está disposto a fazer isso é celebrado e não está em silêncio. O que é mais apropriado para uma cidade do que isto?”.45 Teseu elogia o regime democrático como um discurso de concretização dos valores democráticos de liberdade e de igualdade. Os termos isegoría e parrhēsía expressavam a importância sociopolítica desses dois valores para a democracia ateniense: privilegiar todos os cidadãos, independentemente de classe ou de status; tratar todos os cidadãos como iguais, permitindo-os expressar seus pensamentos livremente. O tratamento dramático do discurso do regime democrático testava severamente tal ideal. 43 EURÍPIDES, Alexandre fr. 56; Antíope fr. 206. DOVER, K. J. Greek Popular Morality in the Time of Plato and Aristotle. Oxford: Blackwell, 1974, p. 25-26; OBER, J. Mass and Elite in Democratic Athens: Rhetoric, Ideology, and the Power of the People. New Jersey: Princeton University Press, 1989, p. 173-174; HESK, J. The Rhetoric of Anti-Rhetoric in Athenian Oratory, in: GOLDHILL, S. & OSBORNE, R. Performance Culture and Athenian Democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 201-230; HESK, J. Deception and Democracy in Classical Athens. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. 45 EURÍPIDES, Suplicantes 438-441: τοὐλεύθερον δ᾽ ἐκεῖνο: Τίς θέλει πόλει χρηστόν τι βούλευμ᾽ ἐς μέσον φέρειν ἔχων; 440καὶ ταῦθ᾽ ὁ χρῄζων λαμπρός ἐσθ᾽, ὁ μὴ θέλων σιγᾷ. τί τούτων ἔστ᾽ ἰσαίτερον πόλει; 44 11 VITÓRIA RETÓRICA E MORAL: A LÍNGUA DE ODISSEU EM EURÍPIDES Odisseu é, nas tragédias de Eurípides, uma figura do orador democrático. Sempre astuto,46 Odisseu é o modelo da retórica política e sofística, a causa da violência e da injustiça insanável. Quando Hécuba se descobre escrava de Odisseu em Troianas, ela o ultraja: Odisseu é um “inimigo da justiça, besta transgressora, que torce todas as coisas de lá para cá e seus opostos novamente com sua língua dupla, fazendo quem era um inimigo, um amigo”.47 A língua de Ulisses relativiza a ética, como os sofistas faziam com os seus ‘duplos discursos’. Ele, através de sua retórica, modifica as bases da ética e das alianças com base em seus interesses pessoais, eliminando a reciprocidade ou a justiça. Sua língua dupla encarna a inversão da ordem moral - mentiras se tornam verdades, as palavras suplantam as obras, falta a vergonha, sobeja a vilania e a ilusão sobre a realidade – o que permite submeter o grupo ao seu controle e possibilita que ele satisfaça os seus interesses. O chamado “debate sobre Mitilene” está implícito na figura de Odisseu. O debate presente em Tucídides mostra que a justiça e o autointeresse estavam mutuamente excludentes nas assembleias atenienses pós-Pericles. Na disputa na assembleia, os interesses pessoais dos demagogos levaram os atenienses a decidirem pela morte de todos os homens da cidade de Mitilene, homens que se revoltaram contra o poder ateniense.48 A língua de Odisseu é uma imagem trágica do deslocamento da ordem moral feita pelos discursos sob o regime democrático, culminando na determinação coletiva pela busca do auto-interesse. A língua de Odisseu é um agente da vitória no debate competitivo diante de um público de massa. O homem mau [kakós] ‘ganha’ concursos verbais julgados pelas massas. São maus: o ‘sábio’ Odisseu,49 o orador tebano em Suplicantes, o demagogo e os anônimos em Orestes.50 O uso condenatório do epíteto ‘sábio’ [sóphos] para caracterizar um orador falso ou injusto é também um motivo eloquente em Eurípides. A vitória de Odisseu na discussão a respeito do sacrifício de Políxena, apesar de ele ter obrigações morais com a mãe da jovem, Hécuba, que aceitou a sua súplica e salvou a sua vida quando 46 EURÍPIDES, Ifigênia em Áulis 526: EURÍPIDES, Troianas 283-86: πολεμίῳ δίκας, παρανόμῳ δάκει, 285ὃς πάντα τἀκεῖθεν ἐνθάδ<ε στρέφει, τὰ δ᾽> ἀντίπαλ᾽ αὖθις ἐκεῖσε διπτύχῳ γλώσσᾳ φίλα τὰ πρότερ᾽ ἄφιλα τιθέμενος πάντων. 48 TUCÍDIDES, 3.47.5. 49 EURÍPIDES, Troianas 721, 1224-1225; Hécuba 116-139. 50 EURÍPIDES, Orestes 944. 47 12 ele esteve em Tróia é uma evidência significativa.51 A permissão para que Polimestor assassinasse e mutilasse seu convidado de Tróia, o último dos Priamidas,52 e a decisão pela morte de Astianax, de modo a “não [deixar] crescer o filho de um nobre pai”,53 têm a participação de Odisseu. Em Orestes, o demagogo argumenta que Orestes e Electra devem ser apedrejados até a morte.54 Nessas peças, Eurípides retrata as tristezas da realeza e da aristocracia, vítimas de um orador cuja formulação do discurso culmina na ratificação de sua vontade pela audiência da massa movida pelo autointeresse coletivo. Enfatiza-se no drama de Eurípides a violência que inflige a sua realização em suas pessoas, famílias, comunidades e culturas. Hécuba e as mulheres de Tróia encarnam a nobreza, nobreza de pessoas alheias à identidade helênica democrática. Hécuba é uma mulher bárbara, ex-rainha e escrava que perdeu tudo na guerra de Tróia e sofreu as conseqüências da derrota. Sua história no drama de Eurípides é uma crítica indireta à oratória democrática, denúncia feita em termos idênticos aos de Tucídides: os oradores querem agradar e satisfazer o dêmos. O coro da tragédia Hécuba caracteriza Odisseu como astuto, de língua doce [hēdylógos], alguém que agrada o dêmos [dēmocharistḗs].55 E na peça, a própria protagonista Hécuba constrói a sua retórica em oposição à oratória democrática, condenando todos os oradores, chamando-os de “sem gratidão... [tu] que não te importas em prejudicar seus amigos, que falas algo agradável para muitos”.56 51 EURÍPIDES, Hécuba 218-331. EURÍPIDES, Hécuba 850-863, 1132-1182. 53 EURÍPIDES, Troianas, 723: ἀρίστου παῖδα μὴ τρέφειν πατρὸς… 54 EURÍPIDES, Orestes 914-915. 55 EURÍPIDES, Hécuba 131-133; Suplicantes 412-416. 56 EURÍPIDES, Hécuba 254-257: ἀχάριστον… οἳ τοὺς φίλους βλάπτοντες οὐ φροντίζετε, ἢν τοῖσι πολλοῖς πρὸς χάριν λέγητέ τι. Ver também: EURÍPIDES, Orestes 1155-1157. 52 13 O DISCURSO DE HÉCUBA NA TRAGÉDIA HÉCUBA 786-845 O terceiro episódio da tragédia Hécuba contém um diálogo entre a protagonista e seu senhor, que lhe tem a posse, Agamêmnon. Porém, ao fim do diálogo, Hécuba é inquirida por Agamêmnon a respeito da pessoa sobre quem ela previamente falou, mulher atingida por desgraças: Ἀγαμέμνων φεῦ φεῦ: τίς οὕτω δυστυχὴς ἔφυ γυνή; [AGAMÊMNON Ai, ai! Quem é a mulher que tanta desgraça engendra?] v. 785 A resposta de Hécuba é uma peça retórica elaborada, com o objetivo de mover Agamêmnon a executar a vingança contra o assassino de seu fiho, Polimestor. Hécuba se apropria da fala de Agamêmnon, falando da deusa Τύχη [Týchē, Fortuna, Sorte] em oposição ao termo “δυστυχὴς” [desgraça] utilizado por Agamêmnon. Assim, ela já se insere na fala do seu interlocutor se apropriando de seu discurso: Ἑκάβη οὐκ ἔστιν, εἰ μὴ τὴν Τύχην αὐτὴν λέγοις. [HÉCUBA Não há, se é possível que tu fales da própria Týche.] v. 786 O discurso de Hécuba tem início com o questionamento sobre a possibilidade de Agamêmnon falar a respeito do tema.Tal recurso retórico coloca, desde o princípio, Hécuba em uma posição acima de seu interlocutor, uma vez que não se tem certeza se ele pode falar a respeito do assunto, ao mesmo tempo em que ela pode fazê-lo sem qualquer restrição e o faz em um longo discurso. Dissolve-se então a sua condição de escrava subserviente e surge em cena uma oradora cheia de recursos retóricos, os quais se desdobrarão diante de Agamêmnon. Hécuba, após a sua primeira intervenção retórica, começa a revelar os seus planos de vingança, que se baseia na existência de um nómos, que governa até mesmo os deuses e que concede ordem moral ao cosmos (787-805). Se Polymestor pôde assassinar o seu convidado, filho do seu hóspede, com quem ele tinha íntimas relações de philía, por causa do ouro, mutilando o seu corpo e jogando-o ao mar, e se ele ainda ficará impune, todos os outros podem pilhar os templos e cometerem as maiores atrocidades, pois nada mais será justo. Assim afirma Hécuba: 14 ἀλλ᾽ ὧνπερ οὕνεκ᾽ ἀμφὶ σὸν πίπτω γόνυ ἄκουσον. εἰ μὲν ὅσιά σοι παθεῖν δοκῶ, στέργοιμ᾽ ἄν: εἰ δὲ τοὔμπαλιν, σύ μοι γενοῦ τιμωρὸς ἀνδρός, ἀνοσιωτάτου ξένου, ὃς οὔτε τοὺς γῆς νέρθεν οὔτε τοὺς ἄνω δείσας δέδρακεν ἔργον ἀνοσιώτατον, κοινῆς τραπέζης πολλάκις τυχὼν ἐμοί, ξενίας τ᾽ ἀριθμῷ πρῶτ᾽ ἔχων ἐμῶν φίλων, τυχὼν δ᾽ ὅσων δεῖ — . καὶ λαβὼν προμηθίαν ἔκτεινε: τύμβου δ᾽, εἰ κτανεῖν ἐβούλετο, οὐκ ἠξίωσεν, ἀλλ᾽ ἀφῆκε πόντιον. [Mas, portanto, ouve essas coisas, eu caio diante do teu joelho. Se para ti eu pareço sofrer as leis divinas, desejo me resignar; se, porém, o contrário, torna-te para mim um homem vingador contra o hóspede mais ímpio, que sem temer os de baixo da terra, nem os de cima, realizou uma ação muito ímpia, embora tenha sido escolhido por mim muitas vezes para a mesa comum, e embora tenha recebido hospitalidade de primeira ordem entre meus amigos, e de haver obtido o quanto era necessário - e tomando precauções matou: decidiu matar e não considerou digno de tumba, mas atirou ao mar.] vv. 787-797 O princípio fundamental da justiça, o nómos [lei], é evocada por Hécuba, que reconhece a sua condição de escrava – e, em tal condição, inapta para qualquer apelo -, ao mesmo tempo em que mostra ser a lei não apenas a governante da ordem cósmica, mas algo acessível a todos os homens e mulheres. E os homens e mulheres, conhecedores da lei, estão aptos a definirem apropriadamente o que é justo e o que é injusto: ἡμεῖς μὲν οὖν δοῦλοί τε κἀσθενεῖς ἴσως: ἀλλ᾽ οἱ θεοὶ σθένουσι χὡ κείνων κρατῶν Νόμος: νόμῳ γὰρ τοὺς θεοὺς ἡγούμεθα καὶ ζῶμεν ἄδικα καὶ δίκαι᾽ ὡρισμένοι: [Nós, em efeito, os escravos, somos igualmente débeis; Mas os próprios deuses têm o poder, mas a Lei os governa: pois pela lei consideramos aos deuses e vivemos, e as coisas injustas e as justiças definimos.] vv. 798-801 Hécuba, em seguida, dá seguimento ao seu discurso e inclui entre os atos injustos que enumera a sua própria escravização, o sacrifício de Políxena e o assassinato e mutilação de Polidoro. A partir disso, ela subverte a autoridade e os interesses do exército para reivindicar uma ordem moral baseada na xenía [“hospitalidade”], um valor pré e antidemocrático, configurado em uma antítese precisa em relação aos valores do regime democrático e do discurso dos outros oradores: καὶ μὴ δίκην δώσουσιν οἵτινες ξένους κτείνουσιν ἢ θεῶν ἱερὰ τολμῶσιν φέρειν, 15 οὐκ ἔστιν οὐδὲν τῶν ἐν ἀνθρώποις ἴσον. ταῦτ᾽ οὖν ἐν αἰσχρῷ θέμενος αἰδέσθητί με: οἴκτιρον ἡμᾶς, ὡς †γραφεύς† τ᾽ ἀποσταθεὶς ἰδοῦ με κἀνάθρησον οἷ᾽ ἔχω κακά. τύραννος ἦ ποτ᾽, ἀλλὰ νῦν δούλη σέθεν, εὔπαις ποτ᾽ οὖσα, νῦν δὲ γραῦς ἄπαις θ᾽ ἅμα, ἄπολις ἔρημος, ἀθλιωτάτη βροτῶν... [e deixam de retribuir seu castigo aos que matam a seus hóspedes ou se atrevem a levar aquilo que é consagrado aos deuses, não há nada de equitativo entre os homens. Pois bem, respeita-me e considera essas coisas entre as desonrosas: Compadece-te de nós, como um pintor à distância olha-me e observa de perto os males que eu tenho. Rainha eu era outrora, mas agora sou tua escrava, abundante em filhos eu era outrora, mas agora sou velha e sem filhos, ao mesmo tempo, sozinha sem cidade, a mais desgraçada dos mortais...] vv. 802-811 Os apelos de Hécuba incluem o respeito à condição superior de Agamêmnon, porém a restringe à capacidade de observação e à condição de vingador. O discurso também é uma exposição de sua condição vulnerável, mas tal não a impede de apelar por justiça. O resultado, porém, dos apelos de Hécuba é a indiferença, a reação de rejeição de Agamêmnon. Em um dos raros marcadores cênicos presentes no texto trágico, a protagonista menciona um ato do deuteragonista: recolher os joelhos, um índice de nãoacolhimento dos rogos de Hécuba: οἴμοι τάλαινα, ποῖ μ᾽ ὑπεξάγεις πόδα; ἔοικα πράξειν οὐδέν: ὦ τάλαιν᾽ ἐγώ. [Ai de mim, desgraçada, para onde retiras os teus pés? Assemelha-se ao que nada fará. Ó, eu sou desgraçada!] vv. 812-813 A indiferença de Agamêmnon diante da farta argumentação de Hécuba exerce outras funções na peça. A primeira função é se adequar a um dado mítico: Hécuba é aquela cujas petições nunca são atendidas, nem pelos deuses, nem pelos homens. É a mãe amorosa, de dores, cuidadosa, mas que não consegue impedir que os males atinjam sua casa. Em Homero, Hécuba é descrita como uma figura marcada pela dedicação aos filhos e pelo sofrimento.57 Mãe amorosa, ela estimula o filho Heitor quanto ao seu ímpeto de combater pela cidade, e cuida dele para que ele tenha suas forças renovadas em Ilíada 6.251-262: ἔνθά οἱ ἠπιόδωρος ἐναντίη ἤλυθε μήτηρ Λαοδίκην ἐσάγουσα θυγατρῶν εἶδος ἀρίστην: ἔν τ᾽ ἄρα οἱ φῦ χειρὶ ἔπος τ᾽ ἔφατ᾽ ἔκ τ᾽ ὀνόμαζε: 57 HOMERO, Ilíada 6.251-311; 22.79-92; 24.193-227, 283-301, 747-760. 16 τέκνον τίπτε λιπὼν πόλεμον θρασὺν εἰλήλουθας; ἦ μάλα δὴ τείρουσι δυσώνυμοι υἷες Ἀχαιῶν μαρνάμενοι περὶ ἄστυ: σὲ δ᾽ ἐνθάδε θυμὸς ἀνῆκεν ἐλθόντ᾽ ἐξ ἄκρης πόλιος Διὶ χεῖρας ἀνασχεῖν. ἀλλὰ μέν᾽ ὄφρά κέ τοι μελιηδέα οἶνον ἐνείκω, ὡς σπείσῃς Διὶ πατρὶ καὶ ἄλλοις ἀθανάτοισι πρῶτον, ἔπειτα δὲ καὐτὸς ὀνήσεαι αἴ κε πίῃσθα. ἀνδρὶ δὲ κεκμηῶτι μένος μέγα οἶνος ἀέξει, ὡς τύνη κέκμηκας ἀμύνων σοῖσιν ἔτῃσι. [Foi nessa altura que a mãe amorosa ao encontro lhe veio, Que acompanhava até a casa a mais bela das filhas, Laódice. Toma-lhe a mão e, falando, lhe diz as seguintes palavras: “Filho, a que vens aqui? Por que causa deixaste o combate? Sim, certamente é mui grande a pressão dos malditos Acaios contra a cidade sagrada. Por isso, teu peito te trouxe, para que do alto da acrópole a Zeus as mãos ambas alcançasses. Pára, aqui, um pouco de vinho mais doce que o mel vou buscar-te para que libes a Zeus e às demais divindades eternas, e tuas forças restaures, também, pós haveres bebido. Tônico é o vinho, excelente, para o homem no extremo das forças, Tal como te achas, de tanto lutar em defesa da pátria.] Outro episódio da Ilíada mostra a preocupação e os rogos de Hécuba. Diante do combate iminente entre Heitor e Aquiles, Hécuba demonstra preocupação - não mais com a aplicação do filho nos combates, mas com a preservação de sua vida diante do terrível guerreiro aqueu. A comovente súplica de Hécuba a seu filho, em Ilíada 22.82-89, é ilustrativa: Ἕκτορ τέκνον ἐμὸν τάδε τ᾽ αἴδεο καί μ᾽ ἐλέησον αὐτήν, εἴ ποτέ τοι λαθικηδέα μαζὸν ἐπέσχον: τῶν μνῆσαι φίλε τέκνον ἄμυνε δὲ δήϊον ἄνδρα τείχεος ἐντὸς ἐών, μὴ δὲ πρόμος ἵστασο τούτῳ σχέτλιος: εἴ περ γάρ σε κατακτάνῃ, οὔ σ᾽ ἔτ᾽ ἔγωγε κλαύσομαι ἐν λεχέεσσι φίλον θάλος, ὃν τέκον αὐτή, οὐδ᾽ ἄλοχος πολύδωρος: ἄνευθε δέ σε μέγα νῶϊν Ἀργείων παρὰ νηυσὶ κύνες ταχέες κατέδονται. [Heitor querido, respeito e piedade a estes seios demonstra. Lembra-te quando te punha a mamar para o choro acalmar-te. Vem para dentro, meu filho, e daqui, resguardado, defende-te. Contra este monstro; não podes, sozinho, com ele medir-te. Se te matar, infeliz, não virei a chorar-te, no leito em que jazeres, pimpolho querido de minhas entranhas, nem tua esposa de dote copioso; mas, longe de todos, junto às naus dos argivos, aos cães servirás de repasto.] Esta súplica é feita por ocasião do desfecho terrível: os momentos que antecedem o combate derradeiro entre Aquiles e Heitor, e que terminará com a morte deste. A Ilíada revela uma Hécuba passional diante da tragédia que está prestes a acometer sua casa. Também mostra ser a rainha troiana uma mãe decisivamente comprometida com a 17 preservação dos seus filhos, ainda que em detrimento da cidade – o bem da cidade, que outrora foi a razão da inquirição dela a Heitor, por conta de sua retirada dos combates, agora não é levada em consideração. Hécuba, a mãe e rainha preocupada com os filhos e eventualmente interessada no bem do seu povo, também é caracterizada como rainha piedosa, dedicada ao serviço religioso em favor da sua família e da causa posta em questão na guerra. Ela é descrita em uma cena vivaz da Ilíada oferecendo um péplos e votando o sacrifício de vacas para Atena: ὣς ἔφαθ᾽, ἣ δὲ μολοῦσα ποτὶ μέγαρ᾽ ἀμφιπόλοισι κέκλετο: ταὶ δ᾽ ἄρ᾽ ἀόλλισσαν κατὰ ἄστυ γεραιάς. αὐτὴ δ᾽ ἐς θάλαμον κατεβήσετο κηώεντα, ἔνθ᾽ ἔσάν οἱ πέπλοι παμποίκιλα ἔργα γυναικῶν Σιδονίων, τὰς αὐτὸς Ἀλέξανδρος θεοειδὴς ἤγαγε […] τῶν ἕν᾽ ἀειραμένη Ἑκάβη φέρε δῶρον Ἀθήνῃ, ὃς κάλλιστος ἔην ποικίλμασιν ἠδὲ μέγιστος, ἀστὴρ δ᾽ ὣς ἀπέλαμπεν:[…] […]τῇσι θύρας ὤϊξε Θεανὼ καλλιπάρῃος Κισσηῒς ἄλοχος Ἀντήνορος ἱπποδάμοιο: 300τὴν γὰρ Τρῶες ἔθηκαν Ἀθηναίης ἱέρειαν. αἳ δ᾽ ὀλολυγῇ πᾶσαι Ἀθήνῃ χεῖρας ἀνέσχον: [Disse ela, então, para casa voltou, tendo às servas dado ordens que as venerandas matronas, por toda a cidade, chamassem. Ao aposento fragante baixou, logo após, onde péplos inumeráveis se achavam de grande brancura, tecidos pelas mulheres sidônias. O divo Alexandre os trouxera […] Hécuba um desses tomou para a Palas Atena ofertá-lo, o mais bonito e maior, que se achava por baixo de todos, de brilho igual ao dos astros e enfeites de fino trabalho. […] Teano formosa, nascida do claro Cisseu, lhe abre as portas, filha e consorte do forte Antenor, domador de cavalos. Sacerdotiza a elegeram, de Palas Atena, os troianos.]58 Hécuba é descrita, no fim da Ilíada, por ocasião da morte de Heitor, como intercessora junto ao marido, para que este não atenda ao seu ímpeto de ir aos argivos para requerer o corpo de seu filho. A sugestão de Hécuba, no afã de preservar Príamo de uma sorte semelhante a de Heitor, em Ilíada 24.201-209, é reveladora: ὤ μοι πῇ δή τοι φρένες οἴχονθ᾽, ᾗς τὸ πάρος περ ἔκλε᾽ ἐπ᾽ ἀνθρώπους ξείνους ἠδ᾽ οἷσιν ἀνάσσεις; πῶς ἐθέλεις ἐπὶ νῆας Ἀχαιῶν ἐλθέμεν οἶος ἀνδρὸς ἐς ὀφθαλμοὺς ὅς τοι πολέας τε καὶ ἐσθλοὺς υἱέας ἐξενάριξε: σιδήρειόν νύ τοι ἦτορ. εἰ γάρ σ᾽ αἱρήσει καὶ ἐσόψεται ὀφθαλμοῖσιν ὠμηστὴς καὶ ἄπιστος ἀνὴρ ὅ γε οὔ σ᾽ ἐλεήσει, οὐδέ τί σ᾽ αἰδέσεται. 58 HOMERO, Ilíada, 6.286-290; 293-295; 298-301. 18 [Pobre de mim! Onde o siso deixaste que tanto os estranhos como teus próprios vassalos outrora soíam louvar-te? Como pretendes ir só aos navios dos fortes Argivos e apresentar-te ante os olhos do monstro fautor do extermínio de tantos filhos valentes? Tens férreas entranhas, decerto. Se lhe caíres às mãos e ante os olhos, com vida, enxergar-te, pérfido e cruel como ele é, não terá compaixão do teu fado, nem reverente há de ser.] Observa-se, tanto em Hécuba quanto na Ilíada, os mesmos aspectos da caracterização de Hécuba: o cuidado com os filhos, o ímpeto de violência passional e o desejo de vingar-se. Porém, em Eurípides, suas ineficientes súplicas são peças retóricas que denunciam a própria retórica, como se pode ver na segunda parte do discurso de Hécuba a Agamêmnon: τί δῆτα θνητοὶ τἄλλα μὲν μαθήματα μοχθοῦμεν ὡς χρὴ πάντα καὶ ματεύομεν, Πειθὼ δὲ τὴν τύραννον ἀνθρώποις μόνην οὐδέν τι μᾶλλον ἐς τέλος σπουδάζομεν μισθοὺς διδόντες μανθάνειν, ἵν᾽ ἦν ποτε πείθειν ἅ τις βούλοιτο τυγχάνειν θ᾽ ἅμα; [Por que, certamente, nós, os mortais, nos fatigamos pelos demais saberes, como a todos é necessário, e os buscamos, mas a Persuasão, para os homens a única tirana, é nada mais que [algo] que nos apressamos a aprender com a finalidade de nos dar salários, para que o persuadir seja eventualmente com quem possa querê-la e ao mesmo tempo escolhê-la?] vv. 814-819 A crítica direta à persuasão envolve os elementos significativos da sofística e das ações dos demagogos. Tirana dos homens, a persuasão é fonte de lucros aos que a ensinam, é desejada pelos que têm sede de poder. É um objeto comercializável, posto em oposição à justiça, que é inegociável e que é posse de todos os homens. Se a persuasão é uma ferramenta retórica dos poucos que podem por ela pagar, ainda que seja desejada por todos, a lei governa deuses e todos os homens, é o verdadeiro patrimônio democrático. As petições e denúncias de Hécuba são reforçadas pela argumentação direta a Agamêmnon. Hécuba, após mostrar o poder da persuasão, volta ao lugar comum da dívida de gratidão e menciona a relação amorosa entre a sua filha Cassandra e o rei Agamêmon – relação que os torna parentes e que deveria mover a mão do rei a atender a seus pedidos. Assim discursa Hécuba: καὶ μήν — ἴσως μὲν τοῦ λόγου κενὸν τόδε, Κύπριν προβάλλειν: ἀλλ᾽ ὅμως εἰρήσεται: πρὸς σοῖσι πλευροῖς παῖς ἐμὴ κοιμίζεται ἡ φοιβάς, ἣν καλοῦσι Κασάνδραν Φρύγες. 19 ποῦ τὰς φίλας δῆτ᾽ εὐφρόνας δείξεις, ἄναξ, ἢ τῶν ἐν εὐνῇ φιλτάτων ἀσπασμάτων χάριν τίν᾽ ἕξει παῖς ἐμή, κείνης δ᾽ ἐγώ; [ἐκ τοῦ σκότου τε τῶν τε νυκτερησίων φίλτρων μεγίστη γίγνεται βροτοῖς χάρις.] [E bem, talvez seja vão o seguinte tema do argumento: invocar a Cipris como pretexto: mas, contudo, será dito. Junto a tuas costas deita a minha filha, a inspirada por Febo, a quem os frígios chamam Cassandra. De onde, pois, demonstrará, senhor, que tuas noites te são gratas, que graça obterá minha filha e eu por ela? Da sombra e dos amorosos tratos noturnos se origina um grande agradecimento entre os mortais.] vv. 824-830 Hécuba, ao descrever sua filha, destaca as relações dela com os deuses, colocando em segundo plano o seu nome frígio. Portanto, está implícito no discurso de Hécuba que os deuses estão envolvidos com sua causa, e que o rei, mortal, deve ser grato por partilhar do leito dela durante as noites. Diante dos olhos de ambos está Polidoro, que, devido à relação amorosa entre Agamêmnon e Cassandra, é um parente e deve ser vingado: ἄκουε δή νυν: τὸν θανόντα τόνδ᾽ ὁρᾷς; τοῦτον καλῶς δρῶν ὄντα κηδεστὴν σέθεν δράσεις. [Ouve agora: Vês este morto? Se te portas bem o tratarás como a um parente.] vv. 803-804 A peroração do discurso de Hécuba a Agamêmnon contém mais uma indicação explícita de que tal é um argumento. Neste, Hécuba gostaria que se multiplicassem os seus instrumentos de fala do alto da cabeça à planta dos pés. Os deuses são mais uma vez invocados, como se tais estivessem em concordância com os apelos da protagonista: ἑνός μοι μῦθος ἐνδεὴς ἔτι. εἴ μοι γένοιτο φθόγγος ἐν βραχίοσι καὶ χερσὶ καὶ κόμαισι καὶ ποδῶν βάσει ἢ Δαιδάλου τέχναισιν ἢ θεῶν τινος, ὡς πάνθ᾽ ὁμαρτῇ σῶν ἔχοιντο γουνάτων κλαίοντ᾽, ἐπισκήπτοντα παντοίους λόγους. Para mim, o relato necessita ainda de uma só coisa. Se me surgisse voz nos braços, nas mãos e cabelos e planta dos pés, ou pelas artes de Dédalo, ou pelas artes de algum dos deuses, para que todas estas partes a um só tempo implorassem ao teus joelhos chorando, recomendando-te todo tipo de argumentos!] vv. 835-840 A peroração do discurso de Hécuba termina com o reconhecimento da possibilidade de ação de Agamêmnon, com a indicação clara do que ele deve fazer: 20 ὦ δέσποτ᾽, ὦ μέγιστον Ἕλλησιν φάος, πιθοῦ, παράσχες χεῖρα τῇ πρεσβύτιδι τιμωρόν, εἰ καὶ μηδέν ἐστιν, ἀλλ᾽ ὅμως. ἐσθλοῦ γὰρ ἀνδρὸς τῇ δίκῃ θ᾽ ὑπηρετεῖν καὶ τοὺς κακοὺς δρᾶν πανταχοῦ κακῶς ἀεί. [Ó amo, ó maior luz para os Helenos, persuade-te, oferece as mãos de defesa da honra para esta anciã, embora ela nada seja, ainda assim. Pois um homem nobre serve a justiça e faz mal sem cessar aos malvados de todas as partes.] vv. 841-845 O fim do discurso contém a menção ao valor fundamental da justiça grega: fazer bem aos amigos e fazer mal aos inimigos. O rei, ainda que o seja, deve oferecer as suas mãos como instrumentos para a realização da justiça, ainda que a apelante não passe de uma velha escrava. O que está sugerido aqui é que a condição social não deve sser empecilho para a realização da justiça e para a justa vingança, promovida por quem é dotado de condição para executá-la. O paradoxo da tragédia Hécuba, porém, é que a vingança é por fim executada, mas é realizada pela protagonista e culmina em uma nova série de autênticas e convincentes performances retóricas. A subversão dos interesses do exército aqueu é realizada pelas mãos da velha escrava, e o rei trácio Polimestor se converte a suplicante cego, despojado de vigor. Ele se torna uma voz a apelar pela ordem moral que os seus interesses e o interesse do exército aqueu haviam suprimido. A vitória retórica de Hécuba diante da audiência é, por definição, o inverso da vitória moral, pois não há suplício da heroína, nem há um final infeliz – exceto para quem transgrediu os valores originários que, para além dos valores democráticos, unem deuses e mortais e sobre eles governam. 21 CONCLUSÃO Hécuba e Troianas são, das tragédias de Eurípides, aquelas em que a rainha troiana ganha voz e é explorada, sendo a sua caracterização e história um amálgama entre mitos conhecidos em Homero, na tradição do Ciclo Troiano e inovações euripidianas. Em Troianas, Eurípides dramatiza a situação das vítimas escravizadas por causa da derrota na guerra – usando como base para as narrativas os eventos narrados no Ciclo Troiano, concentrando-se no impacto da guerra sobre os cativos e vencedores. As troianas, outrora nobres, são escolhidas concubinas dos guerreiros gregos: Cassandra por Agamêmnon, Andrômaca por Neoptólemo, Hécuba por Odisseu e Políxena será destinada a ser sacrificada sobre o túmulo de Aquiles. Neste drama, Hécuba e as mulheres com ela cativas passam por estágios de sofrimento que levam à raiva, à ira e ao desejo de vingança, etapas que passam e que caracterizam a descrição euripidiana de um desastre cuja amplitude é praticamente insuportável. Quanto à tragédia Hécuba, tal está ambientada no momento posterior à destruição de Tróia, situação em que Hécuba, a rainha viúva, primeiro perde a filha Políxena, sacrificada em honra do fantasma de Aquiles, e depois descobre o cadáver de seu filho, último sobrevivente, Polidoro. É nesta peça que as inovações euripidianas em relação ao mito original são significativas: a proveniência queronesa de Hécuba, a mudança em relação à paternidade da rainha (Kisseus, não mais Dimas) e a atribuição de filiação de Polidoro provavelmente são invenções euripidianas.59 Tais invenções constam nas referências a tais informações em Virgílio, Ovídio e nas tragédias de Sêneca. Eurípides é o responsável maior por mudar o tratamento secundário dispensado a Hécuba, fazendo dela protagonista. Ela é responsável no drama euripidiano pela morte dos filhos de Polimestor e por cegá-lo, recebendo por isso a curiosa profecia de ser posteriormente transformada em uma cadela.60 Em Troianas, Eurípides torna Hécuba uma personagem central, que obtém vitória moral contra Helena.61 Neste mesmo texto, ela é descrita como um prêmio de guerra de Odisseu.62 É feita ainda menção (profética, na tragédia) à Hécuba e à sua transformação em cadela na fala de Polimestor, no fim da tragédia Hécuba, bem como é mencionado o lugar da sua tumba.63 A maior contribuição 59 Na Ilíada, Polidoro é irmão de Licaóne e filho de Laótoe e Príamo. Ver: HOMERO, Ilíada 22.47. EURÍPIDES, Hécuba 1259-1273. 61 EURÍPIDES, Troianas, 860-1059. 62 EURÍPIDES, Troianas, 1260-1286. 63 EURÍPIDES, Hécuba 1271, 1273 60 22 de Eurípides, porém, é a transformação de Hécuba em uma oradora, que fala dos seus sofrimentos, do seu desejo de vingança, do amor pelos seus filhos e da sua condição em meio às muitas inovações e prolongamentos dos mitos, fundamentalmente em direção às estratégias discursivas dos oradores. A tragédia se desenvolve a partir de um hiato temporal: o tempo mítico e o tempo da encenação. Sendo assim, ela desenrola em dois tempos distintos. Para que a brecha temporal seja dissolvida, lança-se mão da etiologia. Ésquilo usa a etiologia no final de Eumênides, quando Atena estabelece o conselho Areópago, lugar de julgamento familiar ao público ateniense do dramaturgo. Eurípides se apropria do dispositivo, introduzindo suas próprias etiologias em suas tragédias, mas também utiliza em suas tragédias um recurso usual das comédias:64 ele faz em seus dramas referências teatrais, alusões ao coro, aos atores e ao público no texto trágico, e o faz de forma retoricamente elaborada. Eurípides parece ser o tragediógrafo que de forma mais estreita insere em seus diálogos não apenas a perspectiva do público, as referências ao contexto teatral, a atmosfera séria uma peça trágicam as também os oradores.65 Mas a sua Hécuba mostra que os oradores trágicos de Eurípides são escravos, velhos, homens e mulheres andrajosos e em situação servil. Para Eurípides, não há razão para interromper a ilusão dramática, já que seus espectadores de Eurípides observam as referências do tragediógrafo no cotidiano e as assumem porque podem apreciá-las tanto no teatro quanto na assembleia. 64 EASTERLING, P. E. Euripides in the theatre. Pallas 37, 1991, p. 49-59; MARSHALL, C. W. Theatrical references in Euripides’ Electra. In: CROPP, M. J.; LEE, K. H.; & SANSONE, D. (eds.). Euripides and Tragic Theatre in the Late Fifth Century, Champaign, 1999-2000, p. 325-341. Para uma opinião divergente, ver TAPLIN, O. Fifth-century tragedy and comedy: a synkrisis. JHS 106, 1986, p. 163-174. 65 EASTERLING, P. E. Euripides in the theatre. Pallas 37, 1991, p. 56. 23 REFERÊNCIAS DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL EURIPIDES. Hecuba. Introduction, text, and commentary: Justina Gregory. Atlanta, Georgia: American Philological Association, 1999. HERÓDOTO. Histórias. Tradução e notas de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora da UnB, 1986. EURÍPIDES. Tragedies, v. III. New York: Putnam Son’s, 1929. TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Livro I. Tradução e apresentação de Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BIBLIOGRAFIA GERAL BERS, V. Tragedy and Rhetoric, in: WORTHINGTON, I. (ed.) Persuasion: Greek Rhetoric in Action. Londres: Routledge, 1994, p. 176-195. 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