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FACULDADE DE JAGUARIÚNA ROGÉRIO FERNANDO BENATI SOCIEDADE EMPRESÁRIA UNIPESSOAL LIMITADA: Notas sobre o regime jurídico de limitação da responsabilidade do empresário individual Jaguariúna 2008 ROGÉRIO FERNANDO BENATI SOCIEDADE EMPRESÁRIA UNIPESSOAL LIMITADA: Notas sobre o regime jurídico de limitação da responsabilidade do empresário individual Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Direito da Faculdade de Jaguariúna para obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Francisco de Assis Garcia Jaguariúna 2008 ROGÉRIO FERNANDO BENATI SOCIEDADE EMPRESÁRIA UNIPESSOAL LIMITADA: Notas sobre o regime jurídico de limitação da responsabilidade do empresário individual Este exemplar corresponde à redação final da Monografia de graduação defendida por Rogério Fernando Benati e aprovada pela Comissão julgadora em ___/___/___. Francisco de Assis Garcia Orientador ____________________________ (componente da banca) ____________________________ (componente da banca) Jaguariúna 2008 Aos meus filhos Rogério e Isadora, razões maiores da minha existência, e à minha esposa Mônica, por iluminar a minha vida. AGRADECIMENTOS Ao Professor Doutor Francisco de Assis Garcia, pela orientação, paciência, dedicação e apoio incondicional, durante o período em que convivemos. Aos Dignos Membros da Banca, por suas honrosas e valiosas contribuições na apreciação deste trabalho. Aos meus colegas de turma, que se tornaram verdadeiros amigos nestes anos que passamos juntos. À minha família, cujo apoio permitiu que eu chegasse até aqui. Finalmente, a todos que contribuíram direta ou indiretamente para a realização deste trabalho. Obrigado! BENATI, Rogério Fernando. Sociedade empresária unipessoal limitada: notas sobre o regime jurídico de limitação da responsabilidade do empresário individual. 2008. 160f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Curso de Direito, Faculdade de Jaguariúna, Jaguariúna, 2008. RESUMO A empresa – atividade econômica organizada – pode ser exercida tanto individualmente como coletivamente. No primeiro caso, a atividade econômica organizada é explorada por uma única pessoa, o empresário individual; no segundo, o agente econômico organizador da empresa denomina-se sociedade empresária, cuja constituição resulta da união de duas ou mais pessoas, chamadas de empreendedores ou investidores. Inerente ao exercício de empresa, quer pelo empresário individual, quer pela sociedade empresária, está o risco; ele é componente indissociável da atividade econômica. No Brasil, ao contrário do tratamento jurídico dispensado às sociedades empresárias limitadas, onde os empreendedores e investidores encontram um sistema capaz de limitar os riscos inerentes ao exercício de empresa, porquanto respondem apenas pelo valor das quotas que se comprometeram no contrato social, àquele que exerce individualmente a atividade econômica não é conferido qualquer instrumento que permita a limitação da responsabilidade ao montante investido na empresa. Sem tal instrumento de limitação de responsabilidade, o expediente utilizado pelo empresário individual, para lograr o mesmo fim, tem sido o de criar, ainda que a contragosto, só para satisfazer a idolatria das formas preconizada pela lei, uma sociedade puramente fictícia, cujo quadro societário é composto por um sócio quase totalitário – a própria pessoa natural do empresário individual – e um sócio de complacência, detentor, na maioria das vezes, de apenas uma quota do capital social. A questão que se analisa neste estudo é a validade desse expediente, que diz respeito a duas ordens de idéias: a eventual existência de simulação dos atos constitutivos dessas sociedades fictícias e a verificação, nesse caso, de fraude à lei. Não obstante, em outros países, a limitação da responsabilidade do empresário individual tem sido alcançada de duas formas diferentes: por um modelo personificado, admitindo-se a constituição de uma sociedade empresária limitada formada pela vontade de uma única pessoa e outro não-personificado, permitindo-se ao empresário individual destacar parte de seu patrimônio e afetá-lo ao exercício da empresa. Palavras-chave: Empresário Individual; Personalidade Jurídica; Sociedade Unipessoal; Responsabilidade Limitada. BENATI, Rogério Fernando. Sociedade empresária unipessoal limitada: notas sobre o regime jurídico de limitação da responsabilidade do empresário individual. 2008. 160f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Curso de Direito, Faculdade de Jaguariúna, Jaguariúna, 2008. ABSTRACT The company - organized economic activity - may be exercised both individually and collectively. In the first case, economic activity is organized operated by one person, the individual entrepreneur, in the second, the official organizer of economic enterprise is called society businesswoman, whose constitution results from the union of two or more persons, called entrepreneurs or investors. Inherent to the exercise of company, either by the individual entrepreneur, either by the company manager, is in danger, he is inseparable component of economic activity. In Brazil, unlike the legal treatment accorded limited to commercial companies, where entrepreneurs and investors find a system capable of limiting the risks inherent in the pursuit of business because respond only by the value of shares pledged that the social contract, which holds that individual economic activity is not given any instrument that permits the limitation of liability to the amount invested in the company. Without such an instrument of limited liability, the pretext used by the individual entrepreneur, to achieve the same purpose has been to create, even if the assist, only to meet the idolatry of the ways recommended by the law, a purely fictitious company, whose table Company is composed of an almost totalitarian partner - the person's natural individual entrepreneur - and a member of complacency, holder, in most cases, only a share of the capital. The question that is analyzed in this study is the validity of that knack, which relates to two orders of ideas: the possible existence Simulation constitutive acts of these fictitious companies and established in that case, the law of fraud. However, other countries, limiting the responsibility of the individual entrepreneur has been achieved in two different ways: for a model personified by allowing itself to set up a limited company formed by entrepreneur will of one person and one non-impersonated, allowing itself to the individual businessman out of his net worth and affect you the performance of the company. Keywords: Single Entrepreneur; Legal personality; Society Unipessoal; Limited Liability. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 9 2 A EMPRESA, O EMPRESÁRIO E A SOCIEDADE EMPRESÁRIA..................... 13 2.1 A empresa..................................................................................................................... 15 2.2 O empresário............................................................................................................... 19 2.2.1 Espécies de empresário............................................................................................ 23 2.2.2 Pessoas impedidas de exercer a atividade de empresário..................................... 25 2.3 A sociedade empresária.............................................................................................. 32 2.3.1 Classificação das sociedades.................................................................................... 34 2.3.2 Das sociedades empresárias em espécie................................................................. 40 2.3.2.1 Das sociedades empresárias não personificadas: a sociedade em comum e a em conta de participação.................................................................................................. 41 2.3.2.2 Das sociedades empresárias personificadas: a sociedade em nome coletivo, em comandita simples, limitada, por ações e em comandita por ações........................ 45 3 DA PERSONALIDADE JURÍDICA............................................................................ 50 3.1 Início e término da personalização da sociedade empresária................................. 52 3.2 Efeitos da personalização............................................................................................ 54 3.3 A personalidade jurídica do empresário individual: uma mera ficção do Direito tributário............................................................................................................................ 57 3.4 Desconsideração da personalidade jurídica.............................................................. 61 3.4.1 A teoria maior e a teoria menor da desconsideração............................................ 65 3.4.2 Pressupostos para a aplicação da desconsideração: a fraude e o abuso de direito.................................................................................................................................. 67 3.4.3 A desconsideração inversa....................................................................................... 71 3.4.4 A desconsideração indireta...................................................................................... 73 3.4.5 A desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro...... 75 3.4.6 Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica................. 79 4 A SOCIEDADE LIMITADA........................................................................................ 84 4.1 Conceito e natureza jurídica...................................................................................... 84 4.2 Da constituição da sociedade limitada: o contrato social........................................ 85 4.2.1 Requisitos de validade do contrato social.............................................................. 87 4.2.1.1 Requisitos comuns ou genéricos de validade do contrato social....................... 87 4.2.1.2 Requisitos específicos de validade do contrato social......................................... 91 4.2.2 Pressupostos de existência do contrato social........................................................ 93 4.2.3 Da invalidade do contrato social............................................................................. 98 4.3 Dos sócios..................................................................................................................... 102 4.3.1 Direitos dos sócios..................................................................................................... 102 4.3.2 Deveres dos sócios..................................................................................................... 104 4.3.3 Responsabilidade dos sócios.................................................................................... 105 4.4 A administração da sociedade limitada..................................................................... 108 5 A LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO INDIVIDUAL 110 5.1 Da sociedade empresária unipessoal limitada.......................................................... 111 5.2 Do empresário individual de responsabilidade limitada......................................... 118 5.3 Em defesa da validade das sociedades fictícias ou de favor...................................... 121 5.3.1 Da simulação e da fraude à lei no Direito Civil..................................................... 122 5.3.2 Da eventual existência de simulação dos atos constitutivos das sociedades 130 fictícias ou de favor............................................................................................................ 5.3.3 Da eventual existência de fraude à lei operada por meio dos atos constitutivos 133 das sociedades fictícias ou de favor................................................................................... 5.3.4 Da validade das sociedades fictícias ou de favor..................................................... 136 5.4 Da sociedade simulada fraudulentamente................................................................ 138 5.4.1 A simulação da sociedade........................................................................................ 139 5.4.2 A simulação na sociedade........................................................................................ 142 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 145 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................ 153 9 1 INTRODUÇÃO A atividade econômica organizada de produção e circulação de bens ou serviços pode ser exercida tanto pelo empresário individual quanto pela sociedade empresária. Quanto uma pessoa dispõe, sozinha, dos recursos necessários à implantação da empresa, ela própria se lança ao exercício da atividade econômica sob empresário individual. Quando duas ou mais pessoas unem-se para explorar uma atividade econômica, surge a sociedade empresária como a titular da empresa. Em suma, exerce-se empresa de duas formas: individualmente, sob empresário individual, ou coletivamente, pela figura da sociedade empresária. Inerente a qualquer uma dessas formas de exercício da empresa está o risco. Em razão deste componente indissociável da atividade econômica, poucas pessoas dedicar-seiam a explorar novas empresas se o insucesso da iniciativa pudesse acarretar a perda de todos os bens pessoais, amealhados ao longo do trabalho de uma vida ou mesmo de gerações. Daí surgirem, ao longo do tempo, instrumentos aptos a limitar a responsabilidade daqueles propensos ao exercício de empresa. É o caso das sociedades personalizadas de responsabilidade limitada, como a sociedade por ações e a sociedade limitada, onde os sócios, por meio da separação patrimonial, limitam suas responsabilidades ao montante da contribuição transferida à sociedade. No ordenamento jurídico brasileiro, em que pese os sócios ou acionistas encontrarem nas sociedades empresárias personificadas um sistema jurídico capaz de limitar os riscos inerentes à exploração da atividade econômica, ao empresário individual o legislador pátrio reservou o silêncio, senão o descaso. Enquanto aqueles limitam suas responsabilidades ao montante alocado à sociedade, este responde com todas as forças de seu patrimônio pessoal pelas obrigações que assumiu, quer contraídas no exercício de empresa, quer no âmbito privado e particular. Nesse cenário, o questionamento que surge é de lógica trivial: se o risco é um componente indissociável da atividade econômica, presente, portanto, em qualquer empresa, por que limitar tais riscos àquelas pessoas que se unem para explorar uma atividade econômica, mas assim não o fazer àquela pessoa que, sozinha, explora a mesma atividade? E mais: por que não pode uma pessoa fazer o que a lei permite que façam duas ou mais? 10 Muitos países, conscientes dessa manifesta contradição legal, construíram instrumentos jurídicos aptos a limitar a responsabilidade daquele que decida individualmente exercer empresa, conferindo, assim, tratamento igualitário a todos que decidam explorar atividade econômica organizada de produção e circulação de bens ou serviços. Nesses países, a técnica mais difundida e aceita de limitação da responsabilidade do empresário individual é aquela que permite a constituição de uma sociedade limitada por ato de vontade de uma só pessoa, ou seja, admite-se a sociedade limitada, com personalidade jurídica própria, formada por um só sócio, a chamada “sociedade empresária unipessoal limitada”. Outra técnica de limitação de responsabilidade, menos difundida, mas aceita, é aquela que permite ao empresário individual destacar parte de seu patrimônio e afetá-lo ao exercício de empresa, mediante o denominado “empresário individual de responsabilidade limitada”. Todavia, nos sistemas legais que não admitem a sociedade empresária unipessoal limitada, nem tampouco o empresário individual de responsabilidade limitada, como ocorre no Brasil, o expediente há muito utilizado para obter a limitação da responsabilidade tem sido a constituição de sociedades puramente fictícias, formadas pela união daquele indivíduo que, a priori, iria lançar-se individualmente ao exercício de empresa e um figurante de complacência – em regra, pessoas ligadas àquele por íntimos laços afetivos, como, v.g., cônjuge ou filhos –, que comparece na constituição da sociedade apenas para satisfazer a idolatria das formas preconizada pela lei: compor a pluralidade de sócios. A questão que resta por analisar é a validade dessas sociedades ditas fictícias ou de favor frente ao ordenamento jurídico brasileiro, e dizem respeito a duas ordens de idéias: (i) a eventual existência de simulação de seus atos constitutivos; e (ii) se os resultados últimos obtidos por meio dessas sociedades – a limitação da responsabilidade ou a separação patrimonial do empresário individual – são proibidos de serem atingidos por quaisquer meios, o que caracterizaria fraude à lei. Para tanto, dividiu-se este trabalho em quatro capítulos. O segundo capítulo cuida dos conceitos e distinções acerca da empresa, do empresário, da sociedade empresária e do estabelecimento empresarial, discorrendo-se, inclusive, sobre a natureza jurídica de cada instituto. No tópico que trata do empresário, além de se discorrer sobre os elementos que o caracterizam, também abre-se espaço para as suas espécies, bem como, ao falar sobre a capacidade para ser empresário, destacar as pessoas legalmente impedidas ao exercício de empresa. Já no tópico reservado à sociedade empresária, cuida-se primeiramente da classificação das sociedades em geral, sob os mais variados critérios, para, em seguida, discorrer-se sobre as sociedades empresárias em espécie, iniciando-se pelas não- 11 personificadas e terminando-se com as personificadas. Nesse ponto, constata-se que, não obstante a previsão legal de cinco tipos diversos de sociedades empresárias personificadas, apenas a sociedade limitada e a sociedade por ações possuem relevância econômica e jurídica, devido, sobretudo, à limitação da responsabilidade dos sócios ou acionistas a eventuais insucessos no exercício de empresa. O terceiro capítulo, por sua vez, trata da personalidade jurídica. Preambularmente, verifica-se quando se dá o início e o término da personalização da sociedade empresária. Em seguida, discutem-se os efeitos da personalização, abrindo-se sobremodo destaque ao princípio da autonomia patrimonial, porquanto implica a separação patrimonial entre a sociedade empresária e seus membros. Logo após, abre-se tópico em que se aborda a ficção do empresário individual enquanto pessoa jurídica, deixando-se vislumbrar a disparidade de tratamento conferido a este em relação aos membros da sociedade empresária personificada. Por fim, discorrer-se-á sobre o remédio jurídico aplicável àqueles que manipulam fraudulentamente o instituto da pessoa jurídica: a desconsideração da personalidade jurídica. A sociedade empresária limitada é tema discutido no quarto capítulo, principalmente porque a limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações da sociedade exsurge nesse tipo societário como característica peculiar. De início, abre-se tópico para conceituar e averiguar a natureza jurídica da sociedade limitada. Em seguida, cuida-se do contrato social, instrumento de constituição desse tipo societário, destacando-se, em primeiro lugar, a teoria do contrato plurilateral, de Tullio Ascarelli, para depois discorrer sobre os seus requisitos de validade, tanto os comuns quanto os específicos, bem como sobre os pressupostos de existência, podendo-se vislumbrar, nesse ponto, o quanto é paradoxal o Código Civil de 2002. Logo após, abre-se tópico para tratar acerca da invalidade do contrato social, não obstante a mais abalizada doutrina defenda uma utilização cautelosa e parcimoniosa desse instituto, tudo a demonstrar a diluição da importância dos interesses dos sócios na proporção inversa da relevância dos interesses da empresa. No final, fala-se sobre os sócios, bem como sobre os seus direitos e deveres, sem deixar de lado, por evidente, a matéria que cuida da sua responsabilidade. Por seu turno, o quinto capítulo trata, em seus dois primeiros tópicos, dos instrumentos jurídicos de limitação da responsabilidade do empresário individual. Em primeiro lugar, abre-se destaque para a técnica personificada, materializada na sociedade empresária unipessoal limitada, que coloca no centro da discussão sobre o contrato de sociedade, não mais a sua vocação para unificar uma pluralidade de pessoas, mas, sim, o seu 12 caráter instrumental e organizativo. Em segundo lugar, a técnica não-personificada que vem a lume com chamado empresário individual de responsabilidade limitada, trazendo consigo a possibilidade de criação de patrimônios distintos para um mesmo sujeito de direito: do patrimônio geral destaca-se uma parte para formar o patrimônio especial e afetá-lo ao exercício de empresa. Logo após, abre-se tópico para defender a validade das sociedades cuja pluralidade de sócios é artificialmente construída, oportunidade em que se analisará a eventual existência de negócio simulado ou de fraude à lei. Finalmente, tecem-se as considerações finais sobre o trabalho, em que se analisa o resultado da pesquisa realizada para a composição do tema proposto. Quanto à metodologia, o trabalho foi delineado pela pesquisa bibliográfica, que permitiu, através de um processo analítico e sistemático, coletar e analisar dados, provenientes das mais variadas fontes, tais como a legislação, a doutrina e a jurisprudência. 13 2 A EMPRESA, O EMPRESÁRIO E A SOCIEDADE EMPRESÁRIA Empresa, empresário e sociedade não se confundem. Em síntese, empresa é a atividade econômica organizada para a produção de bens ou de serviços e não a pessoa que a explora; empresário não é o sócio da sociedade empresarial, mas a pessoa, física ou jurídica, que explora a atividade econômica.1 A empresa, assim, pode ser explorada por uma pessoa física ou jurídica. No primeiro caso, aquele que exerce a atividade econômica denomina-se empresário individual; no segundo, sociedade empresária.2 Afora isso, embora o empresário, a empresa e o estabelecimento empresarial se encontrem estreitamente correlacionados, são três noções distintas: o empresário (pessoa física/ empresário individual – ou pessoa jurídica/sociedade empresária) é um sujeito de direito e a empresa é a atividade econômica por ele exercida; o exercício da empresa, por empresário, é viabilizado por meio de um complexo de bens organizado3, denominado estabelecimento empresarial4 (objeto de direito). A esse respeito, Oscar Barreto Filho, com clareza, preleciona: [...] ao conceito básico de empresário se ligam as noções, também fundamentais, de empresa e de estabelecimento. São três noções distintas, mas que na realidade se acham estreitamente correlacionadas. O empresário, como vimos, é um sujeito de direito e a empresa é a atividade por ele organizada e desenvolvida, através do instrumento adequado que é o estabelecimento.5 1 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. vol. 1, 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 63. 2 Idem, p. 64. 3 CÓDIGO CIVIL, art. 1.142: “Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.” 4 Ensina Coelho: “Existem nada menos que nove teorias diferentes sobre a natureza do estabelecimento, compondo um leque de visões que vão desde a personificação do complexo de bens até a negativa de sua relevância para o direito (cf. Barreto Filho, 1969:77/109; Correia, 1973: 121/134; Ferrara, 1952: 161/162). Da rica discussão, basta apenas destacar três pontos essenciais: 1º) o estabelecimento empresarial não é sujeito de direito; 2º) o estabelecimento empresarial é uma coisa; 3º) o estabelecimento empresarial integra o patrimônio da sociedade empresária. Esses tópicos são suficientes para a completa e adequada compreensão do instituto e dispensam maiores considerações sobre o infértil debate acerca da natureza do estabelecimento empresarial.” (COELHO, 2002, p. 99). 5 BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do estabelecimento comercial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 115. 14 Em outras palavras, empresário (sujeito de direito), empresa (atividade econômica) e estabelecimento empresarial (objeto de direito) podem ser distinguidos pelos verbos aplicáveis a cada qual: empresário se é; empresa se exercita; estabelecimento se tem.6 Nessa senda, o Juiz Federal Eugênio Rosa de Araújo, valendo-se da doutrina de Sylvio Marcondes, muito bem assinala que: [...] a empresa “não existe”, mas “se exerce”; não é “um ser” – nem sujeito nem objeto –, mas “um fato”; quem é, o que existe, são o empresário, como sujeito e o “estabelecimento”, como objeto. O “exercício” que o empresário faz do estabelecimento constitui exatamente a empresa.”7 Insta, ainda, anotar que nem toda empresa é sociedade, ao mesmo tempo em que nem todas as sociedades são empresas, porquanto pode existir empresa sem que haja sociedade, como, por exemplo, a do empresário individual, que não utiliza qualquer forma societária, bem como pode haver sociedade não empresária, isto é, que não exerce atividade econômica organizada para a produção de bens ou de serviços, como as associações e as sociedades simples.8 Nesse diapasão, Marcelo M. Bertoldi assevera que “A empresa – atividade exercida pelo empresário – não pressupõe a existência de uma sociedade, na medida em que esta atividade pode ser exercida por uma única pessoa física e não por um conjunto de pessoas reunidas em sociedade.”9 Daí, finaliza Sérgio Campinho, apresentar-se a empresa como “[...] um elemento abstrato10, sendo fruto da ação intencional do seu titular, o empresário, em promover o exercício da atividade econômica de forma organizada.”11 Com efeito, para melhor entendimento dos institutos trazidos à colação, torna-se necessário sobre eles discorrer, ainda que de forma sucinta. 6 TOMAZETTE, Marlon. A teoria da empresa: o novo Direito “Comercial”. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 56, abr. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2899>. Acesso em: 07 jul. 2008. 7 ARAÚJO, Eugênio Rosa de. Breve introdução ao Direito de empresa. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 18, 2006. p. 17. Disponível em: <http://www.jfrj.jus.br/Rev_SJRJ/num18/artigos/artigo_1.pdf>. Acesso em: 01 jul. 2008. 8 WALD, Arnoldo; TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord). Comentários ao novo Código Civil: do direito de empresa – arts. 966 a 1.195. vol. XIV, Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 7. 9 BERTOLDI, Marcelo M. Curso avançado de Direito Comercial. vol. 1, 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 56. 10 Quanto ao entendimento de que a empresa é uma abstração, Rubens Requião pontifica que “[...] o conceito de empresa se firma na idéia de que é ela o exercício de atividade produtiva. E do exercício de uma atividade não se tem senão uma idéia abstrata.” (REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. vol. 1, 26. ed. atual. por Rubens Edmundo Requião. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 60). 11 CAMPINHO, Sérgio. O Direito de empresa. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 11. 15 2.1 A empresa Jorge Rubem Folena de Oliveira arrolou, com muita propriedade, as dificuldades em conceituar empresa: A dificuldade em se definir ou conceituar o que seja empresa decorre de sua própria natureza jurídica, pois uns a consideram como mero objeto de direito, uma verdadeira abstração sem vida própria, e outros a consideram como sujeito de direito, tendo vida independentemente da vontade de seus sócios. Além disso, a expressão “empresa” é utilizada, no dia-a-dia, com uma variedade numerosa de significados, que vão desde o sentido de organização, passando pela noção de estabelecimento e chegando, de certa forma, à de sociedade comercial, o que, como alude Waldirio Bulgarelli, não contribui para a certeza e segurança características do ordenamento jurídico.12 Alberto Asquini, um dos expoentes da doutrina italiana acerca da teoria da empresa, considerou que esta deveria ser conceituada, não de modo direto ou linear, tal como ocorre na ciência econômica, mas, sim, detida e pormenorizadamente. Nesse contexto, sugeriu a empresa como um “fenômeno econômico poliédrico”, que teria, no aspecto jurídico, não um, mas diversos perfis. Dizia o jurista italiano: O conceito de empresa é o conceito de um fenômeno econômico poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico, não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que o integram. As definições jurídicas de empresa podem, portanto, ser diversas, segundo o diferente perfil, pelo qual o fenômeno econômico é encarado.13 Baseando-se, então, no multifacetado fenômeno econômico da empresa, Alberto Asquini a vislumbra sob quatro diferentes perfis: (i) subjetivo; (ii) funcional ou dinâmico; (iii) patrimonial ou objetivo; e (iv) corporativo ou institucional.14 Pelo perfil subjetivo, a empresa é vista como o empresário, cujo conceito é dado pelo art. 2.082, do Código Civil Italiano, como sendo “[...] quem exerce profissionalmente uma atividade econômica organizada tendo por fim a produção ou a troca 12 OLIVEIRA, Jorge Rubem Folena de. A empresa: uma realidade fática e jurídica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 36, out./dez., n. 144, 1999. p. 113. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_144/r144-08.PDF>. Acesso em: 07 jul. 2008. 13 ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Tradução e notas de Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, out./dez., n. 104, 1996, p. 109-110. Título original: Profili dell’Impresa, Rivista del Diritto Commerciale, v. 41, I, 1943. 14 Idem, ibidem. 16 de bens ou de serviços.”15 Eis, aliás, a definição de empresário dada por Asquini, à luz do citado artigo 2.082: Empresário é a) ‘quem exerce’, isto é, o sujeito de direito que exerce em nome próprio; e b) ‘uma atividade econômica organizada’, isto é, uma atividade empresarial que implica de parte do empresário a prestação de um trabalho autônomo de caráter organizador e a assunção do risco técnico e econômico correlato.16 Nesse aspecto, assim, o sujeito (pessoa física ou jurídica) que organiza a produção ou circulação de bens ou serviços é identificado com a própria empresa. Pelo segundo perfil, o funcional ou dinâmico, “[...] a empresa aparece como aquela força em movimento que é a atividade empresarial dirigida para um determinado escopo produtivo.”17 Segundo o autor italiano, O conceito de atividade empresarial implica em uma atividade voltada, de um lado, a recolher e organizar a força do trabalho e o capital necessário para a produção ou distribuição dos determinados bens ou serviços, e, do outro lado, a realizar a troca dos bens ou serviços colhidos ou produzidos.18 Nesse particular, identifica-se a empresa à própria atividade empresarial. O perfil patrimonial ou objetivo refere-se à empresa como patrimônio aziendal ou estabelecimento. Segundo Asquini, “O fenômeno econômico da empresa, projetado sobre o terreno patrimonial, dá lugar a um patrimônio especial distinto, por seu escopo, do restante patrimônio do empresário.”19 Nesse caso, portanto, a empresa seria um patrimônio afetado a uma finalidade específica. Pelo perfil corporativo ou institucional, a empresa é considerada como o resultado da organização do pessoal, formada pelo empresário e seus colaboradores. Como dizia Asquini: O empresário e os seus colaboradores dirigentes, funcionários, operários, não são de fato, simplesmente, uma pluralidade de pessoas ligadas entre si por uma soma de relações individuais de trabalho, com fim individual; mas formam um núcleo social organizado, em função de um fim econômico comum, no qual se fundem os fins individuais do empresário e dos 15 CODICE CIVILE, art. 2082: “È imprenditore chi esercita professionalmente un’attività economica organizzata al fine della produzione o dello scambio di beni o di servizi.” 16 ASQUINI, op. cit., p. 114. 17 Idem, p. 116. 18 Idem, p. 117. 19 Idem, p. 118. 17 singulares colaboradores: a obtenção do melhor resultado econômico na produção.20 Assim, nesse perfil, a empresa é considerada uma instituição, na medida em que reúne pessoas – empresário e seus colaboradores – com propósitos comuns. A visão multifacetária da empresa proposta por Alberto Asquini recebeu apoio entusiasmado da doutrina21, mas, a evolução da teoria da empresa implicou a paulatina desconsideração dos perfis subjetivo, patrimonial e corporativo, concentrando-se os autores no perfil funcional como sendo o conceito jurídico mais apropriado para a empresa.22 Isso porque, enquanto os perfis subjetivo e patrimonial não são mais que uma outra denominação para os conhecidos institutos de sujeito de direito (empresário) e de objeto de direito (estabelecimento empresarial), o perfil corporativo ou institucional sequer corresponde a algum dado de realidade, porquanto a idéia de identidade de propósitos a reunir na empresa proletários e capitalista apenas existe em ideologias populistas de direita, ou totalitárias.23 Na verdade, no Direito pátrio, empresa só pode ser mesmo entendida como uma atividade – equivalente ao perfil funcional da teoria de Alberto Asquini –, uma vez que, definido legalmente24 o empresário como o profissional exercente de “atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”, a empresa somente pode ser a atividade revestida com estas características25. A par dessa concepção, Waldirio Bulgarelli define empresa como “Atividade econômica organizada de produção e circulação de bens e serviços para o mercado, exercida pelo empresário, em caráter profissional, através de um complexo de bens.”26 20 ASQUINI, op. cit., p. 122. Como, por exemplo, a de Sylvio Marcondes, segundo o qual “Estes perfis jurídicos do conceito econômico de empresa são obra do grande comercialista italiano Alberto Asquini, que resolveu uma pendência na doutrina italiana, dividida em inúmeras correntes, cada qual pretendendo que a sua fosse a verdadeira conceituação de empresa, em termos jurídicos. A tese de Asquini, hoje generalizadamente acolhida, é de que a empresa tem um conceito unitário econômico, mas não um conceito unitário jurídico, porque a lei ora a trata como uma, ora, como outra.” (MARCONDES, Sylvio. Questões de Direito mercantil. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 7-8). 22 COELHO, 2002, p. 19. 23 Idem, p. 19. 24 CÓDIGO CIVIL, art. 966: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.” 25 Acerca do significado dessas características – “econômica” e “organizada” –, vide item 2.2 deste trabalho. 26 BULGARELLI, Waldirio. Tratado de Direito empresarial. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1995. p. 100. 21 18 Entendida como atividade econômica organizada, não se confunde a empresa com o sujeito exercente da atividade (empresário),27 nem com o complexo de bens organizado por meio dos quais se exerce a atividade (estabelecimento empresarial),28 isto é, não há como classificar empresa como pessoa (sujeito de direito), tampouco como coisa (objeto de direito),29 porque ela é a própria atividade de alguém. Nessa esteira, as palavras de Fábio Ulhoa Coelho: Empresa é a atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços. Sendo uma atividade, a empresa não tem a natureza jurídica de sujeito de direito nem de coisa. Em outros termos, não se confunde com o empresário (sujeito) nem com o estabelecimento empresarial (coisa).30 Na mesma direção, Ricardo Negrão, em lição lapidar, pontifica que: É de notar que o empresário tem existência natural ou jurídica, isto é, as pessoas naturais são seres humanos que exercem efetivamente atos de vontade, e as pessoas jurídicas, embora criadas por lei, têm, para todos os fins, existência, deveres e direitos assemelhados aos da pessoa natural, sendo, como tal, sujeitos de direitos e obrigações. O estabelecimento, como complexo de bens, corpóreos e incorpóreos, também possuiu existência, fisicamente, ocupando lugar no espaço, ou como bem jurídico protegido, e, assim, pode ser objeto de direito dos primeiros mencionados. A empresa, portanto, considerada como atividade exercida pelo empresário, como já se considerou acima, não é nem sujeito, nem objeto de direito. Ela não existe 27 A esse respeito, Fábio Ulhoa Coelho, com a clareza de sempre, muito bem explica que “[...] na linguagem cotidiana, mesmo nos meios jurídicos e até na lei, usa-se freqüentemente a expressão ‘empresa’ com significados diferentes de atividade. Se se afirma, por exemplo, que ‘a empresa faliu’ ou que ‘adquiriu estoque’, a expressão é empregada erradamente, de forma não-técnica. A empresa, sendo atividade, não pode ser confundida com o sujeito de direito que a explora, o empresário. É esta pessoa (física ou jurídica) que pode ter a falência decretada ou realizar negócio jurídico de compra de mercadorias. Como destacado no item anterior, ‘empresa’ não é o conceito jurídico apropriado para se referir ao seu perfil subjetivo. Quando se pretende fazer referência ao sujeito de direito que organiza a empresa, deve-se usar, quando explorada a atividade individualmente, ‘empresário individual’; e, quando explorada por pessoa jurídica, ‘sociedade empresária’.” (COELHO, Fábio Ulhoa: Parecer dado ao Instituto de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas no Brasil. Disponível em: <http://www.irtdpjbrasil.com.br/parecerfabio.htm>. Acesso em: 07 jul. 2008. p. 9). 28 Acerca do estabelecimento empresarial, Fábio Ulhoa Coelho completa: “Similarmente, se alguém exclama ‘a empresa está pegando fogo!’ ou constata ‘a empresa foi reformada, ficou mais bonita’, está também se valendo do termo ‘empresa’ equivocadamente. A empresa, sendo atividade, não se confunde com o local em que é exercida. Já se deu ênfase à impropriedade de se chamar de ‘empresa’ o que Asquini considerava ser o seu aspecto objetivo. O conceito correto, neste caso, é o de ‘estabelecimento empresarial’.” (COELHO, Parecer dado ao Instituto..., p. 9). 29 Alguns autores, entretanto, filiam-se à idéia de empresa como objeto de direito. Neste sentido: REQUIÃO, op. cit., p. 60; BERTOLDI, op. cit., p. 56; BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998. p. 27; MIRANDA, Maria Bernadete. Curso teórico e prático de Direito Societário. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 10. 30 COELHO, 2002, p. 19. 19 como pessoa (sujeito de direitos), tampouco como objeto de direito, porque é a própria atividade de alguém – pessoa natural (empresário) ou jurídica (sociedade empresária).31 Pois bem, se não é sujeito, nem objeto de direito, qual, então, é a natureza jurídica da empresa? O Professor Waldirio Bulgarelli considera empresa como uma nova categoria jurídica, distinta de atos e fatos jurídicos (em sentido estrito), mas espécies do mesmo gênero32. Nessa senda, Ricardão Negrão afirma que a concepção de empresa é “[...] abstrata e corresponde ao conceito de fatos jurídicos, ou exercício de negócios jurídicos qualificados (atividade econômica organizada, com fim próprio, lícito).”33 Fábio Ulhoa Coelho, na mesma direção, leciona que a “[...] empresa tem estatuto jurídico próprio, que possibilita o seu tratamento com abstração até mesmo do empresário.”34 Dessa forma, pode-se considerar empresa como uma nova categoria jurídica, um terceiro gênero, porquanto não se trata nem de sujeito, tampouco de objeto de direito, enquadrando-se na noção de fato jurídico em sentido amplo. 2.2 O empresário O empresário é entendido, juridicamente, como o sujeito de direito que exerce a empresa. Como visto alhures, o legislador brasileiro, a exemplo do italiano que o inspirou em muitos aspectos, não define empresa, mas apenas empresário. Com efeito, de acordo com o art. 966, do Código Civil: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.” Da definição legal de empresário, dada pelo art. 966 do Código Civil, verifica-se que são três os elementos que o caracterizam: (i) profissionalismo; (ii) atividade econômica; e (iii) organização.35 Nessa ordem, tem-se que: (I) Profissionalismo: o elemento da profissionalidade relaciona-se com a habitualidade do desenvolvimento da atividade ou, nas palavras de Ricardo Negrão, tal 31 NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de empresa: evolução histórica do Direito Comercial. Teoria geral da empresa. Direito societário. vol. 1, 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 57-58. 32 BULGARELLI, op. cit., p. 132. 33 NEGRÃO, op. cit., p. 58. 34 COELHO, 2002, p. 19. 35 NEGRÃO, op. cit., p. 46. 20 elemento “[...] enfoca o empresário como aquela pessoa (natural ou jurídica) que, profissionalmente, isto é, não ocasionalmente, assume, em nome próprio, os riscos de sua empresa, organizando-a, técnica e economicamente.”36 Na mesma direção, Sylvio Marcondes esclarece que o profissionalismo representa “[...] a habitualidade da prática da atividade, a sistemática dessa atividade e que, por ser profissional, tem implícito que é exercida em nome próprio e com ânimo de lucro. Essas duas idéias estão implícitas na profissionalidade do empresário.”37 Por outro lado, não será considerado empresário aquele que exerce atividade “[...] à custa de outrem, ou sob o risco desse; nem o será quem exerce simples profissão, de forma autônoma.”38 (II) Atividade econômica: para caracterizar o empresário deve existir o exercício de uma atividade econômica, isto é, de uma “[...] atividade criadora de riqueza e de bens ou serviços patrimonialmente valoráveis para o mercado consumidor.”39 Na lição de Fábio Ulhoa Coelho, “[...] a atividade empresarial é econômica no sentido de que é apta a gerar lucro para quem a explora”40. Para Francesco Galgano, a idéia da atividade econômica está relacionada com o desenvolvimento de uma atividade capaz de cobrir os próprios custos41. Nos termos propugnados por Sylvio Marcondes, a atividade econômica refere-se “[...] à criação de riquezas, bens ou serviços. A economicidade da atividade está na criação de riquezas; de modo que aquele que profissionalmente exerce qualquer atividade, que não seja econômica ou não seja atividade de produção de riquezas, não é empresário.”42 Desse modo, quem exerce profissão intelectual, a exemplo dos profissionais liberais, não é considerado empresário, salvo se organizados em empresa. A esse respeito, Sylvio Marcondes esclarece que: Há pessoas que exercem profissionalmente uma atividade criadora de bens ou de serviços, mas não devem e não podem ser consideradas empresários – referimo-nos às pessoas que exercem profissão intelectual – pela simples 36 NEGRÃO, op. cit., p. 47. MARCONDES, op. cit., p. 11. 38 NEGRÃO, op. cit., p. 47. 39 Idem, p. 46. 40 COELHO, Parecer dado ao Instituto... p. 10. 41 Francesco Galgano emprega ao critério da economicidade o sentido de equilíbrio dos custos, isto é, “l´attività produtiva deve alimentaris con i suoi stessi ricavi e non comportare erogazione a ‘fondo perduto’ della dotazione patrimoniale dell´ente e dei contributi che l´ente riceve dallo Stato.” (GALGANO, Francesco. Diritto privato. 5. ed. Padova: CEDAM, 1988. p. 431). 42 MARCONDES, op. cit., p. 11. 37 21 razão de que o profissional intelectual pode produzir bens, como o fazem os artistas; podem produzir serviços, como o fazem os chamados profissionais liberais; mas nessa atividade profissional, exercida por essas pessoas, falta aquele elemento de organização dos fatores de produção; porque na prestação desse serviço ou na criação desse bem, os fatores de produção, ou a coordenação de fatores, é meramente acidental: o esforço criador se implanta na própria mente do autor, que cria o bem ou o serviço. Portanto, não podem – embora sejam profissionais e produzam bens ou serviços – ser considerados empresários. A não ser que, organizando-se em empresa, assumam a veste de empresários. Parece um exemplo bem claro a posição do médico, o qual, quando opera, ou faz diagnóstico, ou dá a terapêutica, está prestando um serviço resultante de sua atividade intelectual, e por isso não é empresário. Entretanto, se ele organiza fatores de produção, isto é, une capital, trabalho de outros médicos, enfermeiros, ajudantes etc., e se utiliza de imóvel e equipamentos para a instalação de um hospital, seja pessoa física, seja pessoa jurídica, será considerado empresário, porque está, realmente, organizando os fatores da produção, para produzir serviços.43 Deveras, distingue-se a expressão “econômica” das que qualificam outras atividades previstas no Código Civil, tais como as atividades intelectuais, científicas, literárias ou artísticas44, as atividades associativas45 e as fundacionais de fins religiosos, morais, culturais ou de assistência46, de tal sorte que pode existir sociedade sem que haja empresa, a exemplo das associações e das sociedades simples47. (III) Organização: a noção de organização, segundo Fábio Ulhoa Coelho, envolve a conjugação de quatro fatores de produção: capital, mão-de-obra, insumos e tecnologia.48 Nessa senda, Sylvio Marcondes deixa claro o significado de organização: [...] esta atividade deve ser organizada, isto é, atividade em que se coordenam e se organizam os fatores da produção: trabalho, natureza, capital. É a conjugação desses fatores, para a produção de bens ou de serviços, que constitui a atividade considerada organizada, nos termos do preceito do Projeto.49 43 MARCONDES, op. cit., p. 11. CÓDIGO CIVIL, art. 966, parágrafo único: “Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.” (grifos nossos) 45 CÓDIGO CIVIL, art. 53: “Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos.” (grifo nosso) 46 CÓDIGO CIVIL, art. 62, parágrafo único: “A fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência.” (grifos nosso) 47 CÓDIGO CIVIL, art. 982: “Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.” (grifo nosso) 48 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 13. 49 MARCONDES, op. cit., p. 10-11. 44 22 Waldirio Bulgarelli, por sua vez, adverte: O que caracteriza, em termos pragmáticos, a empresa, não é a própria organização em si, mas a forma de produzir organizadamente, o que não é o mesmo que organização da atividade de produção. Em termos históricos, por exemplo, é incontestável que a perspectiva pela qual se deve ver a empresa é justamente a da evolução das técnicas de produção, portanto, forma de produzir que de rudimentar familiar e artesanal, passou a ser mecanizada ou maquinizada, com mão de obra alheia e com maior grau de organização, já que esta última sempre existiu e existe em qualquer tipo de trabalho.50 Rubens Requião, com a lucidez costumeira, sintetiza: O empresário, assim, organiza a sua atividade, coordenando os seus bens (capital) com o trabalho aliciado de outrem. Eis a organização. Essa organização, em si, o que é? Constitui apenas um complexo de bens e um conjunto de pessoal inativo. Esses elementos – bens e pessoal – não se juntam por si; é necessário que sobre eles, devidamente organizados, atue o empresário, dinamizando a organização, imprimindo-lhes atividade que levará à produção. Tanto o capital do empresário como o pessoal que irá trabalhar nada mais são isoladamente do que bens e pessoas. A empresa somente nasce quando se inicia a atividade sob a orientação do empresário.51 (grifos do autor) E, logo em seguida, Requião conclui: “Dessa explicação surge nítida a idéia de que a empresa é essa organização dos fatores de produção exercida, posta a funcionar, pelo empresário. Desaparecendo o exercício da atividade organizada do empresário, desaparece, ipso facto, a empresa.”52 A propósito, a partir do elemento organização, Fábio Ulhoa Coelho distingue as atividades econômicas empresariais das não-empresarias: Empresariais são as atividades econômicas organizadas como empresas. Sempre que ao produzir ou circular bens ou serviços, alguém combina os quatro fatores de produção do capitalismo superior (mão-de-obra, insumos, tecnologia e capital), confere à sua atividade uma organização específica. O nome desta organização é empresa. Não-empresariais, por sua vez, são as atividades econômicas exploradas independentemente da articulação dos fatores de produção. Quando quem produz ou circula bens ou serviços não contrata senão alguns poucos empregados, não adquire nem desenvolve sofisticadas tecnologias, não faz circular insumos ou não tem relevante capital, falta-lhe empresarialidade.53 50 BULGARELLI, op. cit., p. 149. REQUIÃO, op. cit., p. 59. 52 Idem, p. 60. 53 COELHO, Parecer dado ao Instituto... p. 22. 51 23 Desse modo, não é empresário quem explora atividade de produção ou circulação de bens ou serviços sem alguns desses quatro fatores de produção, quais sejam, capital, mão-de-obra, insumos e tecnologia54. 2.2.1 Espécies de empresário São duas as espécies de empresário, o individual, isto é, aquele que exercita a atividade econômica em nome, conta e risco próprios; e o coletivo, que é revestido pela figura da sociedade empresária. A esse respeito, Ricardo Negrão leciona que: Relativamente à forma que reveste o exercício da atividade empresarial, os empresários podem ser classificados em individuais e coletivos, sendo os primeiros os que exercem sua atividade debaixo de uma firma individual e os coletivos os que a praticam por meio de uma sociedade empresária.55 Fábio Ulhoa Coelho, por sua vez, prefere distinguir as espécies de empresário pelo tipo de pessoa, física ou jurídica, que exercita a atividade econômica organizada: Empresário é a pessoa que toma a iniciativa de organizar uma atividade econômica de produção ou circulação de bens ou serviços. Essa pessoa pode ser tanto a física, que emprega seu dinheiro e organiza a empresa individualmente, como a jurídica, nascida da união de esforços de seus integrantes.56 (grifos do autor) 54 Nesse sentido, Fábio Ulhoa Coelho apresenta uma riqueza de exemplos: “O comerciante de perfumes que leva ele mesmo, à sacola, os produtos até os locais de trabalho ou residência dos potenciais consumidores explora atividade de circulação de bens, fá-lo com intuito de lucro, habitualidade e em nome próprio, mas não é empresário, porque em seu mister não contrata empregado, não organiza mão-de-obra. O feirante que desenvolve seu negócio valendo-se apenas das forças de seu próprio trabalho e de familiares (esposa, filhos, irmãos) e alguns poucos empregados, também não é empresário porque não organiza uma unidade impessoal de desenvolvimento de atividade econômica. O técnico em informática que instala programas e provê a manutenção de hardware atendendo aos clientes em seus próprios escritórios ou casa, o professor de inglês que traduz documentos para o português contratado por alguns alunos ou conhecidos deste, a massagista que atende a domicílio e milhares de outros prestadores de serviço – que, de telefone celular em punho, rodam a cidade – não podem ser considerados empresários, embora desenvolvam atividade econômica. Eles não são empresários porque não desenvolvem suas atividades empresarialmente, não o fazem mediante a organização dos fatores de produção.” (COELHO, Parecer dado ao Instituto... p. 12). 55 NEGRÃO, op. cit., p. 48. 56 COELHO, 2002, p. 63. 24 E, logo em seguida, Coelho completa: “A empresa pode ser explorada por uma pessoa física ou jurídica. No primeiro caso, o exercente da atividade econômica se chama empresário individual; no segundo, sociedade empresária.”57 Deveras, como se verá no próximo capítulo deste trabalho, a sociedade empresária, que arquiva o seu ato constitutivo no registro próprio, adquire personalidade jurídica, isto é, nasce no mundo jurídico como pessoa jurídica. Sendo, pois, pessoa jurídica, não mais se confundem a pessoa dos sócios com a pessoa da sociedade, separando-se, inclusive, seus respectivos patrimônios, podendo-se afirmar que, em regra, um não responde pelas obrigações do outro. Situação inversa é a do empresário individual, uma vez que a lei não lhe confere personalidade jurídica; o empresário individual não é pessoa jurídica, mas, sim, a própria pessoa natural ou física, razão pela qual, conforme se verá adiante, os seus bens respondem pelas obrigações assumidas, sejam elas de natureza civis ou empresariais. Desse modo, ao contrário do tratamento jurídico dispensado às sociedades empresárias, o empresário individual carece de expediente apto a limitar, por meio da separação patrimonial, a responsabilidade pelos riscos na exploração da atividade econômica. Por conta disso, passou-se a recorrer à figura das chamadas sociedades fictícias ou de favor, constituídas por um sócio quase totalitário – a própria pessoa do empresário individual – e um presta-nome58, detentor, na maioria das vezes, de apenas uma quota do capital social. Não obstante, a aparente ilicitude desse expediente, consistente na afirmação de que o presta-nome não seria sócio efetivo, no decorrer deste trabalho será possível verificar que as chamadas sociedades fictícias não padecem de qualquer vício que lhes atinja o plano da validade, porque representa hipótese de negócio indireto, perfeitamente lícito, ante a inexistência, no ordenamento jurídico brasileiro, de meios diretos para se obter a limitação de responsabilidade do empresário individual. Por outro lado, também se verá, mais adiante, que a validade das sociedades fictícias ou de favor, não se confunde com as hipóteses de simulação da sociedade, uma vez 57 COELHO, 2002, p. 64. Presta-nome, nas palavras de Newton de Lucca et al, “É a pessoa que empresta o nome à sociedade como sócio e que passa automaticamente à categoria de sócio, mesmo que não tenha interesse nos lucros da sociedade.” (LUCCA, Newton de; MONTEIRO, Rogério; SANTOS, J. A. Penalva; SANTOS, Paulo Penalva; ALVIM, Arruda (Coord); ALVIM, Thereza (Coord). Comentários ao Código Civil Brasileiro: do direito de empresa (artigos 966 a 1.087). vol. IX, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 44). 58 25 que, nesse caso, a constituição da sociedade, por interpostas pessoas,59 opera-se com o exclusivo intento de fraude, com o fito de causar prejuízos ao Erário Público, aos empregados, à concorrência, aos credores, ao interesse coletivo e, em substância, ao bem comum. 2.2.2 Pessoas impedidas de exercer a atividade de empresário Ao estabelecer a capacidade para o exercício da atividade de empresário, o Código Civil, em seu art. 972, dispôs: “Podem exercer a atividade de empresário os que estiverem em pleno gozo da capacidade civil e não forem legalmente impedidos.” Desse modo, quem tem capacidade civil60 é também capaz para ser empresário, desde que não esteja impedido por qualquer razão legal, isto é, toda pessoa que estiver no gozo de sua capacidade civil e não estiver legalmente impedida, possui, também, a capacidade para exercer a atividade de empresário.61 Cabe ressaltar que a pessoa impedida de exercer a atividade de empresário não é incapaz, uma vez que “[...] não se trata aqui de incapacidade jurídica, mas de incompatibilidade da atividade negocial em relação a determinadas situações funcionais. Não são incapazes, mas praticam irregularmente atos válidos.”62 Assim, aquele que a despeito da proibição atua como empresário, não fere de nulidade o ato praticado,63 porque não é incapaz, mas responde pelas obrigações assumidas perante terceiros. Essa, aliás, é a regra contida no artigo 973 do Código Civil: “A pessoa 59 Interpostas pessoas, conforme se verá, são aquelas que, sem ter legítimo interesse, aparecem em um negócio jurídico como parte, a fim de ocultar o verdadeiro interessado que, por motivos quase sempre ilícitos, não quer ou não pode aparecer. 60 A capacidade civil é a regra; a exceção é a incapacidade, que pode ser absoluta ou relativa. Quanto à primeira, o Código Civil, em seu art. 3º, dispõe que: “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.” Quanto à incapacidade relativa, o art. 4º, mesmo Codex, estabelece: “São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos.” 61 WALD; TEIXEIRA, op. cit., p. 24. 62 CASTRO, op. cit., p. 46. 63 A esse respeito, Rubens Requião, com a lucidez de sempre, muito bem esclarece que: “O proibido de comerciar não é incapaz. Convém esclarecer que o exercício do comércio, malgrado a proibição legal, não fere de nulidade o ato de comércio praticado pelo proibido; o ato é realmente válido (art. 973 do novo Cód. Civ.) e o proibido torna-se comerciante, e sofrerá as penalidades administrativas a que sua falta corresponder.” (REQUIÃO, op. cit., p. 100-101). 26 legalmente impedida de exercer atividade própria de empresário, se a exercer, responderá pelas obrigações contraídas.” Segundo Arnoldo Wald, A regra do artigo 973 determina com clareza que a incapacidade empresarial, em razão da existência de impedimento legal ao exercício da atividade empresarial, não gera a ineficácia das obrigações por ele assumidas. É conseqüência do princípio jurídico pelo qual a ilicitude ou irregularidade do ato realizado não pode beneficiar ou isentar de responsabilidade quem o praticou. Esse exercício irregular, no entanto, estará sujeito a sanções administrativas e a esse ato (ou empresário irregular) não serão estendidos os direitos concedidos pelo regime especial do direito comercial. Responde, portanto, o legalmente impedido pelos atos empresariais que exercer, ficando sujeito às sanções pela ilegalidade de sua conduta.64 Passa-se a verificar, então, quais são as pessoas impedidas de exercer a atividade de empresário, destacando-se, dentre outros: (I) Os falidos:65 aos falidos, enquanto não reabilitados, é negado o direito do exercício da atividade empresarial, consoante o disposto no art. 102, da Lei nº 11.101/05: “O falido fica inabilitado para exercer qualquer atividade empresarial a partir da decretação da falência e até a sentença que extingue suas obrigações.” A inabilitação ao exercício de qualquer atividade empresarial, segundo Frederico Augusto Monte Simionato, “[...] tem o significado interpretativo de proibição, por conta que o falido perde a sua prerrogativa de empresário, ficando inabilitado, impedido e proibido de organizar uma atividade econômica organizada, ou seja, aquilo que a prática denomina de empresa.”66 Além do empresário individual e da sociedade empresária, também os sócios desta, mesmo não sendo empresários, podem ficar inabilitados para o exercício da atividade empresarial. Deveras, a falência da sociedade com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência desses sócios, que ficam sujeitos aos mesmos efeitos jurídicos produzidos em relação à sociedade falida (Lei nº 11.101/05, art. 81, caput e art. 160). Daí, então, Frederico Augusto Monte Simionato dizer que “O sócio nas falências das 64 WALD; TEIXEIRA, op. cit., p. 25. Ensina Ricardo Negrão que “Falidos são empresários e sociedades empresárias que, sem relevante razão de direito, deixaram de pagar no vencimento obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários mínimos na data do pedido de falência, ou praticaram alguns dos atos previstos no art. 94 da Lei n. 11.101/2005, e assim foram declarados por decisão judicial irrecorrível.” (NEGRÃO, op. cit., p. 52-53). 66 SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Tratado de Direito Falimentar. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 167. 65 27 sociedades com responsabilidade ilimitada são, também, falidos, e ficam inabilitados para o exercício da atividade empresarial.”67 Na mesma direção, Ricardo Negrão preleciona que: Os falidos e os sócios da sociedade falida que ostentam responsabilidade ilimitada são impedidos de exercer a atividade empresarial desde a decretação da falência até a extinção de suas obrigações (art. 102 da nova Lei de Falências). A vedação decorre, tão-somente, da ausência de idoneidade financeira, isto é, o falido que teve seus bens arrecadados para pagamento de credores e, ainda, poderá ter seus bens futuros aprendidos – até a extinção de suas obrigações – não pode dispor de outros bens livres para o exercício da atividade econômica.68 Afora isso, na falência de sociedade empresária, equiparam-se ao falido, de acordo com o art. 179 da Lei Falimentar,69 os seus sócios, diretores, gerentes, administradores, conselheiros e o administrador judicial, de tal modo que, se forem condenados por crime falimentar sentirão eles essa afiada “foice” da inabilitação, tanto que o art. 181, inciso I, da mesma Lei de Falências, preceitua como um dos efeitos da condenação “a inabilitação para o exercício de atividade empresarial.”70 (II) Os agentes políticos:71 a lei menciona expressamente alguns agentes políticos72 proibidos de exercer a atividade de empresário, tais como: 67 SIMIONATO, op. cit., p. 167. NEGRÃO, op. cit., p. 53. 69 LEI Nº 11.101/05, art. 179: “Na falência, na recuperação judicial e na recuperação extrajudicial de sociedades, os seus sócios, diretores, gerentes, administradores e conselheiros, de fato ou de direito, bem como o administrador judicial, equiparam-se ao devedor ou falido para todos os efeitos penais decorrentes desta Lei, na medida de sua culpabilidade.” 70 SIMIONATO, op. cit., p. 167. 71 Agentes políticos, segundo Hely Lopes Meirelles, “[...] são os componentes do Governo nos seus primeiros escalões, investidos em cargos, funções, mandatos ou comissões, por nomeação, eleição, designação ou delegação para o exercício de atribuições constitucionais. Esses agentes atuam com plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições com prerrogativas e responsabilidades próprias estabelecidas na Constituição e em leis especiais. Não são servidores públicos, nem se sujeitam ao regime jurídico único estabelecido pela Constituição de 1988. Têm normas específicas para sua escolha, investidura, conduta e processo por crimes funcionais e de responsabilidade, que lhes são privativos.” (MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 21. ed. atual. por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 56). 72 Segundo Ricardo Negrão, “Ao proibir o exercício do comércio – e, em conseqüência lógica, o exercício da atividade empresarial – a alguns agentes políticos, a lei pretendeu preservar a liberdade e o status político para o exercício pleno de suas funções. Um pedido de falência, por exemplo, contra um desses agentes teria notáveis reflexos sobre a comunidade em geral. Permitir a um falido – impedido de administrar seus próprios bens – a administração da coisa pública é um contra-senso inaceitável.” (NEGRÃO, op. cit., p. 51). 68 28 Os magistrados: de acordo com o inciso I, do art. 36, da Lei Complementar nº 35, de 14.3.79 (Lei Orgânica da Magistratura), é vedado ao magistrado exercer a atividade de empresário individual ou participar de sociedade empresária, salvo como acionista ou quotista73. Ademais, o art. 95, parágrafo único, inciso I, da Constituição Federal, veda ao magistrado o exercício de outro cargo ou função, mesmo encontrando-se em disponibilidade, salvo a de magistério74. Os membros do Ministério Público: tal qual os magistrados, os membros do Ministério Público também encontram-se proibidos de exercer a atividade de empresário, bem como de participar de sociedade empresária, exceto como acionista ou quotista (CF/8875, art. 128, § 5º, II, ‘c’ e ‘d’; Lei nº 8.625/9376, art. 44, III). Os deputados e senadores: não se proíbe aos deputados e senadores o exercício da atividade empresarial de forma ampla, mas se restringe seu exercício quando forem “proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público” (CF/8877, art. 54, II, ‘a’). A mesma restrição imposta aos senadores e deputados federais atinge aos deputados estaduais e vereadores, consoante o disposto no inciso IX, do art. 29, da Constituição Federal. Os chefes do Poder Executivo e seus auxiliares imediatos: segundo Ricardo Negrão, como a lei não restringiu o exercício da atividade empresarial aos membros do Poder Executivo, como o presidente da República, ministros e secretários de Estado, governadores e prefeitos municipais, não cabe ao intérprete incluí-los na proibição, por se tratar de norma de caráter restritivo. Todavia, entende que as mesmas restrições do art. 54, inciso II, da Constituição Federal aplicam-se, ao contratar, aos chefes do Executivo e demais 73 LEI COMPLEMENTAR Nº 35/79, art. 36: “É vedado ao magistrado: I - exercer o comércio ou participar de sociedade comercial, inclusive de economia mista, exceto como acionista ou quotista.” 74 CONSTITUIÇÃO FEDERAL, art. 95, parágrafo único: “Aos juízes é vedado: I - exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério.” 75 CONSTITUIÇÃO FEDERAL, art. 128, § 5º: “Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros: [...] II - as seguintes vedações: [...] c) participar de sociedade comercial, na forma da lei; d) exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério.” 76 LEI Nº 8.625/93, art. 44: “Aos membros do Ministério Público se aplicam as seguintes vedações: [...] III - exercer o comércio ou participar de sociedade comercial, exceto como cotista ou acionista.” 77 CONSTITUIÇÃO FEDERAL, art. 54: “Os Deputados e Senadores não poderão: [...] II - desde a posse: a) ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada.” 29 auxiliares imediatos, porquanto seus atos devem obedecer aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (CF/88, art. 37, caput).78 Waldo Fazzio Júnior, por sua vez, é de opinião que a proibição inclui todos os ministros de Estados e os ocupantes de cargos públicos em comissão, bem como, é claro, os chefes do Poder Executivo, em todos os níveis.79 Mesma opinião é a de Rubens Requião, para quem a proibição total para o exercício da atividade empresarial atinge os chefes do Executivo e os governadores de Estado.80 (III) Os servidores públicos:81diante do art. 117, inciso X, da Lei nº 8.112/9082, os servidores públicos, seja da administração pública direta, indireta, autárquica ou fundacional, não podem ser empresários individuais, permitindo-se-lhes, no entanto, a participação nas sociedades na qualidade de acionistas ou quotistas, isto é, como sócios não gerentes, não diretores e não administradores. (IV) Os militares em geral: os militares da ativa das Forças Armadas e das Polícias Militares, em razão do art. 29, da Lei nº 6.880/8083 (Estatuto dos Militares) e do art. 204, do Decreto-Lei nº 1.001/6984 (Código Penal Militar), encontram-se proibidos de exercer a atividade de empresário individual, bem como de integrar a administração ou a gerência de sociedade, ou dela ser sócio, salvo na qualidade de acionista ou quotista em sociedade anônima ou sociedade limitada. 78 NEGRÃO, op. cit., p. 52. FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Manual de Direito Comercial. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 54. 80 REQUIÃO, op. cit., p. 99-100. 81 Servidor público, na lição do Mestre Nestor Sampaio Penteado Filho, “[...] é a pessoa física que se liga à Administração Pública direta, indireta, autárquica e fundacional, mediante uma relação de trabalho de natureza não eventual para lhe prestar serviços.” (ANGERAMI, Alberto; PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Direito Administrativo sistematizado. São Paulo: Editora Método, 2007. p. 187). 82 LEI Nº 8.112/90, art. 117: “Ao servidor é proibido: [...] X - participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário.” 83 LEI Nº 6.880/80, art. 29: “Ao militar da ativa é vedado comerciar ou tomar parte na administração ou gerência de sociedade ou dela ser sócio ou participar, exceto como acionista ou quotista, em sociedade anônima ou por quotas de responsabilidade limitada.” 84 DECRETO-LEI Nº 1.001/69, art. 204: “Comerciar o oficial da ativa, ou tomar parte na administração ou gerência de sociedade comercial, ou dela ser sócio ou participar, exceto como acionista ou cotista em sociedade anônima, ou por cotas de responsabilidade limitada: Pena suspensão do exercício do posto, de seis meses a dois anos, ou reforma.” 79 30 (V) Os leiloeiros:85 por força do art. 36, do Decreto nº 21.981/3286, ficam impedidos os leiloeiros de exercer a atividade empresarial, bem como de participarem de sociedade de qualquer espécie ou denominação. Segundo Rubens Requião, o leiloeiro é empresário, mas de natureza especial, porque ele não pode exercer outra atividade empresarial direta ou indiretamente em seu ou em alheio nome, nem tampouco constituir sociedade de qualquer espécie ou denominação.87 (VI) Os despachantes aduaneiros: por força do art. 10, inciso I, do Decreto nº 646/9288, os despachantes aduaneiros estão cerceados de serem titulares de empresa de exportação ou importação de mercadorias, e nem lhes é admitido comercializar as mercadorias oriundas do exterior. (VII) Os estrangeiros com visto temporário: a teor do art. 99 da Lei nº 89 6.815/80 , ao estrangeiro que se encontra no Brasil com amparo de visto temporário é vedado exercer a atividade empresarial, de forma individual, bem como exercer cargo ou função de administrador, gerente ou diretor de sociedade empresária ou simples. (VIII) Os estrangeiros residentes no País: o estrangeiro, regularmente residente no País, não está proibido de exercer a atividade empresarial90, salvo em algumas hipóteses contempladas pela lei, a saber: 85 Segundo Rubens Requião, “Os agentes de leilão ou leiloeiros são auxiliares independentes da empresa, que têm por função a venda, mediante oferta pública, de mercadorias que lhes são confiadas para esse fim [...] O leiloeiro é empresário, mas de natureza especial, como se está vendo. Não pode ele, todavia, exercer outra atividade empresarial direta ou indiretamente em seu ou em alheio nome; constituir sociedade de qualquer espécie ou denominação; encarregar-se de cobrança ou pagamentos comerciais; adquirir para si, ou para pessoas de sua família, coisa de cuja venda tenha sido incumbido, ainda que a pretexto de destinar-se a seu consumo particular.” (REQUIÃO, op. cit., p. 202-204). 86 DECRETO Nº 21.981/32, art. 36: “É proibido ao leiloeiro: 1. sob pena de destituição: 1º, exercer o comércio direta ou indiretamente no seu ou alheio nome; 2º, constituir sociedade de qualquer espécie ou denominação.” 87 REQUIÃO, op. cit., p. 204. 88 DECRETO Nº 646/92, art. 10: “É vedado ao despachante aduaneiro e ao ajudante de despachante aduaneiro: I - efetuar, em nome próprio ou no de terceiro, exportação ou importação de quaisquer mercadorias ou exercer comércio interno de mercadorias estrangeiras.” 89 LEI Nº 6.815/80, art. 99: “Ao estrangeiro titular de visto temporário e ao que se encontre no Brasil na condição do artigo 21, § 1°, é vedado estabelecer-se com firma individual, ou exercer cargo ou função de administrador, gerente ou diretor de sociedade comercial ou civil, bem como inscrever-se em entidade fiscalizadora do exercício de profissão regulamentada.” 90 Nesse sentido, Rubens Requião afirma que “O estrangeiro, regularmente residente no País, pode dedicar-se ao exercício do comércio, nos limites que a lei ordinária determinar.” (REQUIÃO, op. cit., p. 102). 31 O estrangeiro não naturalizado e o naturalizado há menos de dez anos não podem explorar empresa jornalística, de radiodifusão sonora e de sons e imagens, a teor do art. 222 da Constituição Federal.91 Por força do § 1º do art. 176 da Constituição Federal, aos estrangeiros é vedado o exercício de empresa para proceder à pesquisa e à lavra de recursos minerais e ao aproveitamento do potencial de energia hidráulica.92 De acordo com o art. 181 da Lei nº 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica), a concessão para a exploração de serviços aéreos será dada à pessoa jurídica brasileira que tiver pelo menos 4/5 (quatro quintos) do capital com direito a voto pertencente a brasileiros, e a direção confiada exclusivamente a estes.93 Nos termos do art. 199, § 3º, da Constituição Federal, “É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei.” Por sua vez, a Lei nº 8.080/90, em seu art. 23, preceitua a mesma vedação, excetuando as “[...] doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos.”94 O art. 190 da Constituição Federal diz que “A lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional.” 91 CONSTITUIÇÃO FEDERAL, art. 222: “A propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País. § 1º Em qualquer caso, pelo menos setenta por cento do capital total e do capital votante das empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens deverá pertencer, direta ou indiretamente, a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, que exercerão obrigatoriamente a gestão das atividades e estabelecerão o conteúdo da programação.” 92 CONSTITUIÇÃO FEDERAL, art. 176, § 1º: “A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o ‘caput’ deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.” 93 LEI Nº 7.565/86, art. 181: “A concessão somente será dada à pessoa jurídica brasileira que tiver: I sede no Brasil; II - pelo menos 4/5 (quatro quintos) do capital com direito a voto, pertencente a brasileiros, prevalecendo essa limitação nos eventuais aumentos do capital social; III - direção confiada exclusivamente a brasileiros.” 94 LEI Nº 8.080/90, art. 23: “É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou de capitais estrangeiros na assistência à saúde, salvo através de doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos.” 32 2.3 A sociedade empresária Como visto alhures, são duas as espécies de empresário: o individual, que exercita a atividade econômica organizada em nome próprio, e o coletivo, que é revestido pela figura da sociedade empresária. Já discorrido sobre o empresário individual, passa-se, então, a discorrer acerca do coletivo, isto é, das sociedades empresárias, não antes de falar-se da própria sociedade. Dizia o saudoso Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, que “A sociedade é a mais alta expressão do poder do homem. Tudo o que o indivíduo, isoladamente, não consegue, em sua fraqueza, atingir, é alcançado pela união.”95 Segundo Maria Helena Diniz, “[...] sociedade é a convenção por via da qual duas ou mais pessoas se obrigam a conjugar seus esforços ou recursos para a consecução de fim comum.”96 Na mesma direção, Maria Bernadete Miranda entende que “sociedade é a união de duas ou mais pessoas que juntam seus esforços e riquezas na consecução de objetivos comuns de natureza mercantil.”97 Na lição do Mestre Orlando Gomes, “Sociedade é o negócio jurídico pelo qual duas ou o mais pessoas se obrigam reciprocamente a contribuir, com bens ou, quando permitido, com serviços, para o exercício de determinada atividade econômica e partilha dos resultados.”98 Deveras, o Código Civil propõe, no art. 981, a seguinte definição legal de sociedade: “Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.” Por seu turno, o art. 982, do mesmo Codex, considera “[...] empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.” 95 PEIXOTO, Carlos Fulgêncio da Cunha. A sociedade por cotas de responsabilidade limitada. 2. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 7. 96 DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos. vol. 5, São Paulo: Saraiva, 1993. p. 815. 97 MIRANDA, op. cit., p. 7. 98 GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. atual. por Antonio Junqueira de Azevedo, Francisco Paulo de Crescenzo Marino e Edvaldo Brito (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 328. 33 Com efeito, pelo art. 982, verifica-se que as sociedades simples são definidas legalmente por exclusão, isto é, são aquelas que não têm por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro. Assim, como se vê, o critério adotado pelo Código Civil para distinguir a sociedade empresária da simples está centrado na forma, organizada empresarialmente ou não, pela qual a sociedade exerce atividade econômica visando à produção ou circulação de bens e serviços. Daí o porquê de Amador Paes de Almeida conceituar sociedade empresária como “[...] aquela estrutura empresarialmente para o exercício da atividade econômica, voltada para a produção e circulação de bens ou serviços.”99 Ricardão Negrão, na mesma direção, assevera que: [...] sociedade empresária é o contrato celebrado entre pessoas físicas ou jurídicas, ou somente entre pessoas físicas (art. 1.039), por meio do qual estas se obrigam reciprocamente a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços.100 Fábio Ulhoa Coelho, por sua vez, lembra que: Sociedade empresária é a pessoa jurídica que explora uma empresa. Atentese que o adjetivo ‘empresária’ conota ser a própria sociedade (e não os seus sócios) a titular da atividade econômica. Na se trata, com efeito, de sociedade empresarial, correspondente à sociedade de empresários, mas da identificação da pessoa jurídica como o agente econômico organizador da empresa. Essa sutileza terminológica, na verdade, justifica-se para o direito societário, em razão do princípio da autonomia da pessoa jurídica, o seu mais importante fundamento. Empresário, para todos os efeitos de direito, é a sociedade, e não os seus sócios. É incorreto considerar os integrantes da sociedade empresária como os titulares da empresa, porque essa qualidade é da pessoa jurídica, e não dos seus membros.101 (grifos do autor) Encontra-se nas lições de Fran Martins a definição a seguir, que complementa as anteriores: Denomina-se sociedade empresária a organização proveniente de acordo de duas ou mais pessoas, que pactuam a reunião de capitais e trabalho para um fim lucrativo. A sociedade pode advir de contrato ou de ato correspondente; 99 ALMEIDA, Amador Paes de. Manual das sociedades comerciais. 14. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 71. 100 NEGRÃO, op. cit., p. 237. 101 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. vol. 2, 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 5. 34 uma vez criada, e adquirindo personalidade jurídica, a sociedade se autonomiza, separando-se das pessoas que a constituíram.102 Ressalta-se que a clareza da distinção entre sociedade empresária e nãoempresária é sobremodo importante, pois importa na aplicação de regimes jurídicos distintos de registro. Se for empresária, o seu ato constitutivo, suas alterações e demais atos societários deverão ser arquivados no Registro Público de Empresas Mercantis, a cargo das Juntas Comerciais; se for simples, tais documentos serão arquivados no Registro Civil de Pessoas Jurídicas.103 Afora isso, somente as sociedades empresárias submetem-se ao novo regime recuperatório e falitário, a teor do art. 1º, da Lei nº 11.101, de 9.2.05.104 2.3.1 Classificação das sociedades São diversos os critérios existentes para a classificação das sociedades. Rubens Requião menciona quatro: (i) responsabilidade dos sócios; (ii) personificação; (iii) forma de capital; e (iv) estrutura econômica.105 Fábio Ulhoa Coelho utiliza os seguintes critérios: (i) condições para a alienação da participação societária; (ii) regime de constituição e dissolução; (iii) responsabilidade dos sócios; e (iv) nacionalidade.106 Dylson Doria fala em: (i) extensão da responsabilidade dos sócios; (ii) influência dos sócios sobre a sociedade; e (iii) variação do capital social.107 Com efeito, utilizando todos esses critérios, embora alguns sejam semelhantes, somados à classificação proposta por Ricardo Negrão,108 discorrer-se-á, de forma resumida, sobre a classificação das sociedades. 102 MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial: empresa comercial – empresários individuais – microempresas – sociedades empresárias – fundo de comércio. 31. ed. rev. atual e amp. por Carlos Henrique Abrão, Rio de Janeiro: Forense, 2007, item 153. p. 162. 103 CÓDIGO CIVIL, art. 1.150: “O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária.” 104 LEI Nº 11.101/05, art. 1º: “Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor.” 105 REQUIÃO, op. cit., p. 361-363. 106 COELHO, 2003, p. 23-30. 107 DORIA, Dylson. Curso de Direito Comercial. vol. 1, 6. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 161163. 108 NEGRÃO, op. cit., p. 239-247. 35 (I) Das sociedades de pessoas ou de capitais: quanto à estrutura econômica, as sociedades se classificam em sociedades de pessoas ou sociedades de capitais. Sociedades de pessoas são aquelas nas quais a pessoa do sócio se reveste de extrema relevância, eis que são formadas com base na affectio societatis. O relacionamento e o vínculo entre os sócios são as motivações da própria sociedade, prevalecendo o intuitu personae. Assim, não se pode substituir um médico por um mecânico, e vice-versa, numa sociedade em que essas qualificações são indispensáveis para sua viabilidade. Neste diapasão, Rubens Requião assevera que: [...] as sociedade chamadas de pessoas são as que se constituem tendo em vista a pessoa dos sócios. Os sócios entre si, cada um deles, escolhem os seus companheiros. A sociedade assim se forma em atenção às qualidades pessoais dos sócios. Ninguém nela ingressa, nem nela se faz substituir, sem a concordância dos demais sócios, importando o ingresso ou retirada em modificação do contrato social.109 Nas sociedades de capitais, por sua vez, o que se torna relevante é a quantidade de capital para o empreendimento e não a figura do sócio, que é indiferente ao outro, prevalecendo o intuitu pecuniae. Nessas sociedades vigora o princípio da livre circulabilidade da participação societária e a mutabilidade dos sócios, por conseguinte, é a regra. A esse respeito, Requião preleciona: Nas sociedades de capitais é indiferente a pessoa do sócio, prevalecendo o impessoalismo do capital, pois o acionista ingressa na sociedade ou dela se retira, sem dar atenção aos demais, pela simples aquisição ou venda de suas ações. Não há, conseqüentemente, necessidade de se tocar no ato constitutivo nessa movimentação.110 Resumindo, pelas palavras de Fábio Ulhoa Coelho, As sociedades de pessoas são aquelas em que a realização do objeto social depende mais dos atributos individuais dos sócios que da contribuição material que eles dão. As de capital são as sociedades em que essa contribuição material é mais importante que as características subjetivas dos sócios.111 109 REQUIÃO, op. cit., p. 415. Idem, p. 415-416. 111 COELHO, 2003, p. 24. 110 36 Quanto à importância da distinção entre sociedades de pessoas ou de capitais, Coelho assevera que esta consiste “[...] no tocante à alienação da participação societária112 (quotas ou ações), à sua penhorabilidade por dívida particular do sócio113-114 e à questão da sucessão por morte.”115 116 (II) Das sociedades contratuais ou institucionais: quanto ao regime de constituição e dissolução do vínculo societário, as sociedades podem ser contratuais ou institucionais. No primeiro caso, a sociedade é constituída por um contrato celebrado entre os sócios; no segundo, constitui-se a sociedade por um ato de vontade dos sócios, sem este revestir-se, porém, de natureza contratual. Fábio Ulhoa Coelho, neste sentido, ensina: 112 A esse respeito, Fábio Ulhoa Coelho explica que “[...] nas sociedades em que prepondera o fator subjetivo, a cessão da participação societária depende da anuência dos demais sócios. Como os atributos individuais do adquirente dessa participação podem interferir na realização do objeto social, é justo e racional que o seu ingresso na sociedade fique condicionado à aceitação dos outros sócios, cujos interesses podem ser afetados. Já em relação às sociedades de capital, a regra é a inversa, ou seja, o sócio pode alienar sua participação societária a quem quer que seja, independentemente da anuência dos demais, porque as características pessoais do adquirente não atrapalham, não têm como atrapalhar o desenvolvimento do negócio social.” (COELHO, 2003, p. 24). 113 Quanto à penhorabilidade da participação societária, Fábio Ulhoa Coelho completa: “Nas sociedades de pessoas, as quotas são impenhoráveis por dívida particular do sócio. De fato, como a garantia do credor é o patrimônio do devedor, e as quotas sociais integram esse patrimônio, é, em princípio, cabível a sua execução para a satisfação de obrigação particular do sócio. A execução importará, muito provavelmente, a venda em juízo do bem penhorado e a mudança de sua titularidade, dando-se a substituição do sócio devedor pelo arrematante. A vedação da penhora se justifica na medida em que o adjudicatário, na hasta judicial, tornar-se-ia necessariamente sócio, a despeito de seus atributos, o que viria a interferir nos interesses dos demais membros da sociedade. Obstar a construção judicial das quotas das sociedades de pessoas é o meio de preservar tais interesses (outro meio é a exclusão do novo sócio da gestão da empresa – Coelho, 1991).” (COELHO, 2003, p. 25). 114 O Egrégio Superior Tribunal de Justiça sedimentou o entendimento no sentido de que “Sendo a natureza da constituição da empresa preponderantemente de capital, formada pela reunião de pessoas naturais e pessoas jurídicas, tendo este último sócio expressiva movimentação financeira da ordem de quinhentos milhões de reais, são penhoráveis as cotas sociais por dívidas particulares dos sócios, uma vez que não importa na extinção da empresa a alteração da titularidade das cotas sociais.” (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 5ª Turma. REsp 60.796/SP. Relator: Ministro Edson Vidigal. Brasília, DF, 18 nov. 97, v.u., recurso não conhecido, DJ de 15.12.97, p. 66473). 115 Em relação às implicações da morte do sócio, Fábio Ulhoa Coelho assevera que: “[...] a morte de sócio pode acarretar a dissolução parcial da sociedade de pessoas. Com o falecimento, os bens do morto são transferidos aos seus sucessores, herdeiros ou legatários, ou ao cônjuge sobrevivente, em caso de meação. Os novos titulares das quotas sociais passam à condição de sócios da sociedade empresária. Evidentemente, se os demais concordam com o ingresso na sociedade do sucessor do sócio morto, ou de seu cônjuge, e estes desejam dela participar, não se opera a dissolução parcial, ainda que o contrato assim o estabeleça [...] Entretanto, se os sócios remanescentes não desejam o ingresso na sociedade do sucessor ou do meeiro do sócio morto, porque consideram que isso não atende aos seus interesses, se a sociedade é de pessoas, eles podem impedi-lo, por meio da dissolução parcial. Essa possibilidade não existe na sociedade de capital, caso em que não se pode obstar a entrada das pessoas a quem as quotas sociais foram atribuídas em razão da sucessão mortis causa.” (grifos do autor) (COELHO, 2003, p. 25). 116 COELHO, 2003, p. 24. 37 As sociedades contratuais são constituídas por um contrato entre os sócios. Isto é, nelas, o vínculo estabelecido entre os membros da pessoa jurídica tem natureza contratual, e, em decorrência, os princípios do direito dos contratos explicam parte das relações entre os sócios. As institucionais também se constituem por um ato de manifestação de vontade dos sócios, mas não é este revestido de natureza contratual. Em decorrência, os postulados da teoria dos contratos não contribuem para a compreensão dos direitos e deveres dos membros da sociedade.117 Com efeito, verifica-se que a principal diferença entre sociedades contratuais e institucionais diz respeito à aplicabilidade ou não das regras gerais dos negócios jurídicos e, a esse respeito, Coelho pontifica que: A diferença entre as espécies contratuais e institucionais diz respeito à possibilidade de se socorrer da teoria dos contratos para tratar as questões atinentes à constituição e dissolução da sociedade. Como o vínculo estabelecido entre os membros das sociedades contratuais tem a natureza de contrato, os princípios e regras do direito contratual podem ser lembrados no exame da formação e do desfazimento desse vínculo. Já, nas institucionais, a natureza não contratual das relações entre os sócios inviabiliza qualquer contribuição da teoria dos contratos para a compreensão de como elas se iniciam e finalizam.118 Diga-se, ainda, que as sociedades limitada, em nome coletivo e em comandita simples são sociedades contratuais, e as sociedades anônimas e em comandita por ações são institucionais.119 (III) Das sociedades personificadas e não personificadas: em relação à personificação, as sociedades se classificam em personificadas e não personificadas. Aquelas que arquivam seus contratos ou atos constitutivos no Registro Público de Empresas Mercantis são denominadas de sociedades personificadas, enquanto aquelas que, ao revés, assim não o fazem, são chamadas de sociedades não personificadas. As primeiras adquirem personalidade jurídica; as segundas, não. A esse respeito, Ricardo Negrão pontifica: Atendendo ao critério da apresentação da matéria legislativa, em relação à divisão proposta quanto à existência de personalidade, as sociedades são divididas em: (1) não personificadas, as que não gozam de personalidade jurídica; e (2) personificadas, as que se constituem por documento inscrito 117 COELHO, 2003, p. 25-26. Idem, p. 382. 119 Idem, p. 26. 118 38 no Registro Público das Empresas Mercantis ou no Registro Civil das Pessoas Jurídicas. Inserem-se entre as primeiras as sociedades em comum (arts. 986 a 990) e as em conta de participação (arts. 991 a 996).120 Na lição de Maria Bernadete Miranda: Sociedades não personificadas são as sociedades em comum (de fato e irregular), previstas no artigo 986 do Código Civil, e as sociedades em conta de participação, previstas no artigo 991 do mesmo diploma legal. Sociedades personificadas são as sociedades simples, previstas nos artigos 997 a 1.038, e as sociedades empresárias, previstas nos artigos 1.039 a 1.092 do Código Civil, devidamente registradas em seu órgão competente que são chamadas de sociedades com personalidade jurídica.121 Com efeito, verifica-se que as sociedades não personificas estão disciplinadas no Livro II, Título II, Subtítulo I, do Código Civil, e as personificas no Livro II, Título II, Subtítulo II, do mesmo Codex. (IV) Das sociedades limitadas, ilimitadas e mistas: em razão do tipo de responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais, as sociedades se classificam em: a) sociedades limitadas, quando a responsabilidade dos sócios se restringe ao valor de suas contribuições ou à soma do capital social; b) sociedades ilimitadas, quanto todos os sócios respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais; e c) sociedades mistas, quando alguns sócios respondem de forma ilimitada e outros de forma limitada.122 Acerca dessa classificação, Fábio Ulhoa Coelho assevera que: Pelo terceiro critério de classificação das sociedades, estas podem ser de três categorias: a) a de responsabilidade ilimitada, se todos os sócios respondem 120 NEGRÃO, op. cit., p. 239. MIRANDA, op. cit., p. 14. 122 A esse respeito, a lição de Newton de Lucca et al: “Considerando a responsabilidade dos sócios, as sociedades se classificam em três hipóteses: de responsabilidade limitada, de responsabilidade ilimitada e de responsabilidade mista. Deve-se frisar que esse grau de responsabilidade varia apenas em relação aos sócios, pois a responsabilidade da sociedade será sempre ilimitada, respondendo o seu patrimônio por todas as obrigações por ela assumidas. As sociedades de responsabilidade ilimitada são aquelas nas quais todos os sócios respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais, como ocorre nas sociedades em nome coletivo. As sociedades de responsabilidade mista são aquelas em que há duas hipóteses de sócios: aqueles que respondem ilimitadamente e os que não têm qualquer responsabilidade patrimonial, ou então respondem limitadamente. São elas as sociedades em comandita simples, em comandita por ações e as de capital e indústria, que não foi regulada no Novo Código Civil. As sociedades de responsabilidade limitada são aquelas nas quais todos os sócios respondem limitadamente pelas obrigações sociais, como é o caso da sociedade anônima e da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, agora denominada apenas sociedade limitada.” (LUCCA et al, op. cit., p. 175). 121 39 pelas obrigações sociais ilimitadamente (sociedade em nome coletivo); b) as de responsabilidade mista, quanto apenas parte dos sócios responde de forma ilimitada (sociedades em comandita simples ou por ações); c) as de responsabilidade limitada, em que todos os sócios respondem de forma limitada pelas obrigações sociais (sociedades por quotas de responsabilidade limitada e anônima).123 Na mesma direção, a Professora Maria Bernadete Miranda preleciona: Quanto à responsabilidade dos sócios, iremos encontrar sociedades de responsabilidade limitada, ilimitada e mista. Nas sociedades de responsabilidade limitada, os sócios respondem pela integralização total do capital social ou pelo valor de suas contribuições, respectivamente, por exemplo: a sociedade limitada, a sociedade anônima e a cooperativa. Nas sociedades de responsabilidade ilimitada, todos os sócios assumem uma responsabilidade solidária e ilimitada, respondendo com seus bens particulares, pelas obrigações assumidas. Os sócios oferecem seu patrimônio como garantia pelos compromissos sociais, por exemplo: a sociedade em comum e a sociedade em nome coletivo. Nas sociedades de responsabilidade mista há dois tipos de sócios: um com responsabilidade limitada e outro com responsabilidade ilimitada. Isso ocorre, por exemplo, na sociedade em comandita simples e na sociedade em comandita por ações. Existem ainda as sociedades em conta de participação, onde os sócios ostensivos respondem ilimitadamente perante os sócios ocultos e terceiros, e os sócios ocultos respondem perante os ostensivos e terceiros, ilimitada ou limitadamente, conforme dispuser o contrato social.124 Desse modo, quanto à extensão da responsabilidade pessoal dos sócios, são sociedades ilimitadas a sociedade em nome coletivo e a sociedade em comum; são sociedades mistas a comandita simples, a comandita por ações e a sociedade em conta de participação; são sociedades limitadas a sociedade anônima e, como o próprio nome diz, a sociedade limitada. (V) Das sociedades empresárias e sociedades simples: em razão da atividade desenvolvida, as sociedades são divididas em empresárias ou simples. São empresárias as sociedades que exercem atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens e serviços e, todas as demais, são simples.125 (VI) Das sociedades nacionais e estrangeiras: quanto à nacionalidade, as sociedades podem ser nacionais ou estrangeiras. De acordo com o artigo 1.126, do Código Civil, sociedade nacional é aquela organizada de conformidade com a lei brasileira e que 123 COELHO, 2003, p. 28. MIRANDA, op. cit., p. 14. 125 NEGRÃO, op. cit., p. 239. 124 40 tenha no País a sede de sua administração. A contrario sensu, é estrangeira toda a sociedade que não atende a qualquer desses requisitos, e, nessa condição, depende de autorização do Poder Executivo para funcionar no País (Código Civil, art. 1.134).126 (VII) Das sociedades de capital fixo ou variável: em relação à forma de capital, as sociedades se classificam em: a) sociedades de capital fixo, quando o capital social é determinado e estável, somente podendo ser modificado, seja para aumentá-lo ou para diminuí-lo, mediante alteração do contrato social ou estatuto; e b) sociedades de capital variável, quando a alteração do capital social, para mais ou para menos, independe de alteração contratual. A sociedade cooperativa é de capital variável (CC/2002, art. 1.094, I); as demais sociedades, empresárias ou simples, são de capital fixo.127 (VIII) Das sociedades coligadas e não coligadas: em razão da existência ou não de relações de capital entre as sociedades, estas se classificam em coligadas ou não coligadas. São denominadas coligadas as sociedades cujo capital ou parte dele pertence a outra sociedade. Conforme a extensão da relação de capital em poder de outra sociedade, a coligada será considerada controlada, filiada ou de simples participação.128 2.3.2 Das sociedades empresárias em espécie De acordo com o sistema adotado pelo Código Civil, as sociedades empresárias dividem-se em dois grandes grupos: as personificadas (CC/02, Livro II, Título II, Subtítulo II) e as não personificadas (CC/02, Livro II, Título II, Subtítulo I). São sociedades empresárias não personificadas (i) a sociedade em comum e (ii) a sociedade em conta de participação. Quanto às sociedades personificadas, o Código Reale dividiu-as, inicialmente, em empresárias e simples (não-empresárias). As empresárias podem adotar um de cinco tipos: (i) nome coletivo; (ii) comandita simples; (iii) limitada; (iv) por ações; ou (v) comandita por ações. Passa-se, por conseguinte, a verificar os vários tipos de sociedades empresárias, iniciando-se pelas não personificadas. 126 127 128 COELHO, 2003, p. 29. NEGRÃO, op. cit., p. 245-246. Idem, p. 246. 41 2.3.2.1 Das sociedades empresárias não personificadas: a sociedade em comum e a em conta de participação Conforme dito alhures, uma vez arquivado seus atos constitutivos no Registro Público de Empresas Mercantis, a sociedade empresária adquire personalidade jurídica e, por conta disso, são chamadas de sociedades personificadas. Aquelas que, ao revés, assim não o fazem, são chamadas de sociedades não personificadas. Para Amador Paes de Almeida, “as sociedades não personalizadas são aquelas que se constituem sem as regras dispostas em lei e que, por isso mesmo, não adquirem personalidade jurídica.”129 Na mesma direção, Cesare Vivante assevera que: [...] a lei exige que a sociedade seja constituída com certas formalidades públicas e solenes [...] A falta destas formalidades produz conseqüências diversas, segundo as diversas espécies de sociedade, mas não impede a sua existência. Em conseqüência daquela falta de formalidades a sociedade existe irregularmente e em conseqüência da sua imperfeição os sócios não encontram na lei a mesma tutela que é concedida somente aos sócios de uma sociedade regularmente constituída.130 Ressalte-se, todavia, que, mesmo sem personalidade jurídica, as sociedades não personificadas não perdem a sua condição de empresária, uma vez que, conforme já exposto, não é o registro do ato constitutivo que confere à sociedade a qualidade de empresária, mas, sim, o exercício da atividade econômica organizada visando à produção ou à circulação de bens e serviços. Nesse diapasão, Moema Augusta Soares de Castro adverte que: [...] a sociedade obtém a condição de empresária a partir da exploração efetiva e de forma profissional da atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços. Assim, é o exercício da atividade e não o registro do contrato social que lhe confere a qualidade, eis que o registro é declaratório e não constitutivo da condição de empresário. O registro é pressuposto do exercício regular da atividade.131 Pelo novo Código Civil, são consideradas sociedades não personificadas a sociedade em comum e a sociedade em conta de participação, merecendo, principalmente a primeira, alguns comentários a seu respeito. 129 ALMEIDA, op. cit., p. 94. VIVANTE, Cesare. Instituições de Direito Comercial. Tradução e notas de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2003. p. 83. 131 CASTRO, op. cit., p. 282. 130 42 (I) A sociedade em comum: cuidou o Código Civil de disciplinar as sociedades em comum, definindo-as, em seu art. 986: “Enquanto não inscritos os atos constitutivos, reger-se-á a sociedade, exceto por ações em organização, pelo disposto neste Capítulo, observadas, subsidiariamente e no que com ele forem compatíveis, as normas de sociedade simples.”Acerca dessa sociedade, Arnaldo Rizzardo preleciona que: Considera-se em comum a sociedade que não tem seu ato constitutivo arquivado no registro próprio, ou proceda o registro irregularmente, em desacordo com os arts. 985 e 1.150, ordenando o primeiro, para fins de aquisição da personalidade jurídica, o arquivamento no registro próprio, e impondo o segundo que cada tipo de sociedade se faça no registro que lhe é próprio. A denominação, embora não apropriada, quer significar que a falta de registro não dá uma individualidade e uma tipificação própria à sociedade. Daí considerar-se comum, que corresponde à antiga sociedade irregular, cujo contrato social não foi registrado, ou mesmo à sociedade de fato, isto é, à sociedade sem o contrato social.132 Na verdade, no sistema anterior ao Código Civil, a doutrina tratava sob as rubricas “sociedade irregular” e “sociedade de fato” o que hoje denomina-se sociedade em comum.133 Aliás, no passado, muitos doutrinadores distinguiam, sob os mais diferentes critérios, as sociedades de fato das irregulares. Na obra de Waldemar Ferreira,134 a sociedade contratada oralmente é chamada de fato,135 sendo irregular aquela que possui contrato escrito, mas não registrado. Carvalho de Mendonça136 chama de irregulares as sociedades que funcionam sem o cumprimento das solenidades legais da constituição, registro e publicidade, reservando a expressão sociedades de fato para as que, afetadas por vícios que as inquinam de nulidade, são fulminadas com o decreto de morte. Para Fábio Ulhoa Coelho a distinção entre sociedade irregular e de fato não tem nenhuma relevância, devendo-se tomar as expressões como sinônimas, até porque, pelo novo Código Civil, as sociedades empresárias sem ato constitutivo arquivado na Junta Comercial, que a doutrina chamava de sociedades de fato ou irregulares, são denominadas apenas de sociedades em comum.137 132 RIZZARDO, Arnaldo. Direito de empresa. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 58. NEGRÃO, op. cit., p. 299. 134 FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial. vol. 3, São Paulo: Saraiva, 1961. p. 179. 135 No mesmo sentido, Jean Guyénot entende que sociedade de fato é aquela que nasce de mero acordo verbal. (GUYÉNOT, Jean. Cours de Droit Commercial. Paris: Librairie du Journal des Notaires et des Avocats, 1977. p. 407). 136 MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. vol. 3, 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1953. p. 131. 137 COELHO, 2003, p. 394-396. 133 43 Daí Ricardo Fiúza conceituar a sociedade em comum como “[...] um tipo de sociedade não personificada, constituída de fato por sócios para o exercício de atividade empresarial ou produtiva, com repartição de resultados, mas cujo ato constitutivo não foi levado para inscrição ou arquivamento perante o registro competente.”138 Insta ressaltar que, a teor do art. 987139 do Código Civil, os terceiros que mantiverem relações jurídicas com a sociedade em comum poderão provar sua existência140 por qualquer meio lícito de prova, mas os sócios, seja no âmbito das relações recíprocas, seja nas relações com terceiros, somente por prova escrita se admite comprovar a existência da sociedade.141 Destaca-se, ainda, que, nos termos do art. 990142 do Código Civil, todos os sócios são solidários e ilimitadamente responsáveis pelas obrigações sociais, excluído do benefício de ordem, previsto no art. 1.024143 do mesmo Codex, aquele que contratou pela sociedade em comum. Nesse sentido, Fran Martins assevera que: Os terceiros que realizam negócios com as sociedades de fato, ou em comum, podem intentar ação contra a sociedade, valendo-se de quaisquer meios de provas para justificar a sua existência, ou podem agir contra os sócios isoladamente, os quais respondem de forma ilimitada e solidária (art. 987 e 989 do CC).144 Nas palavras de Newton de Lucca et al, a responsabilidade dos sócios para com terceiros, pelas obrigações contraídas pela sociedade em comum, é in solidum et in infinitum.145 138 FIÚZA, Ricardo. Novo Código Civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 891. CÓDIGO CIVIL, art. 987: “Os sócios, nas relações entre si ou com terceiros, somente por escrito podem provar a existência da sociedade, mas os terceiros podem prová-la de qualquer modo.” 140 Ricardo Negrão, valendo-se do antigo art. 305 do Código Comercial, enumera nove indicativos dessa existência. São eles: “1) negociação promíscua e comum; 2) aquisição, alheação, permutação ou pagamento comum; 3) se um dos associados se confessa sócio, e os outros o não contradizem por uma forma pública; 4) se duas ou mais pessoas propõem um administrador ou gerente comum; 5) a dissolução da associação como sociedade; 6) o emprego do pronome ‘nós’ ou ‘nosso’ nas cartas de correspondência, livros, faturas, contas e mais papéis comerciais; 7) o fato de receber ou responder cartas endereçadas ao nome ou firma social; 8) o uso de marca comum nas fazendas ou volumes; 9) o uso de nome com a adição ‘e companhia’.” (NEGRÃO, op. cit., p. 299-300). 141 CASTRO, op. cit., p. 282. 142 CÓDIGO CIVIL, art. 990: “Todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, excluído do benefício de ordem, previsto no art. 1.024, aquele que contratou pela sociedade.” 143 CÓDIGO CIVIL, art. 1.024: “Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais.” 144 MARTINS, op. cit., item 191, p. 204. 145 LUCCA et al, op. cit., p. 74. 139 44 (II) A sociedade em conta de participação: para alguns, a sociedade em conta de participação não passa de um contrato de investimento comum, não podendo ser considerada, por isso mesmo, como uma sociedade empresária. A comungar deste entendimento, Fábio Ulhoa Coelho pontifica: Definidas as sociedades empresárias como pessoas jurídicas, seria incorreto considerar a conta de participação uma espécie destas. Embora a maioria da doutrina conclua em sentido oposto (Lopes, 1990), a conta de participação, a rigor, não passa de um contrato de investimento comum, que o legislador, impropriamente, denominou sociedade. Suas marcas características, que a afastam da sociedade empresária típica, são a despersonalização (ela não é pessoa jurídica) e a natureza secreta (seu ato constitutivo não precisa ser levado a registro na Junta Comercial). Outros de seus aspectos também justificam não considerá-la uma sociedade: a conta de participação não tem necessariamente capital social, liqüida-se pela medida judicial de prestação de contas e não por ação de dissolução de sociedade, e não possui nome empresarial.146 (grifos do autor) A sociedade em conta de participação, para Amador Paes de Almeida, [...] é uma sociedade sui generis, com características que a distinguem fundamentalmente das demais espécies societárias. Não constituindo pessoa jurídica (os negócios são exercidos em nome do sócio ostensivo), não pode, por isso mesmo, ser conceituada como sociedade empresária.147 Moema Augusta Soares de Castro, por sua vez, fala que se trata de “Atividade própria de empresário, de sociedade empresária ou de sociedade simples (conforme for desenvolvida a atividade do sócio ostensivo).”148 Deixando de lado a discussão acerca de sua natureza jurídica, destaca-se que, na sociedade em conta de participação, de acordo com o art. 991 do Código Civil, “[...] a atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente pelo sócio ostensivo, em seu nome individual e sob sua própria e exclusiva responsabilidade, participando os demais dos resultados correspondentes.”Afora isso, nos termos do parágrafo único do mencionado artigo, “Obriga-se perante terceiro tão-somente o sócio ostensivo; e, exclusivamente perante este, o sócio participante, nos termos do contrato social.” Explicando, leciona Amador Paes de Almeida: A sociedade em conta de participação se constitui de duas ou mais pessoas que se associam para a realização de empreendimentos, levados a efeito em 146 COELHO, 2003, p. 478. ALMEIDA, op. cit., p. 119. 148 CASTRO, op. cit., p. 284. 147 45 nome exclusivo do denominado sócio ostensivo, que responde solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, assumidas em seu nome pessoal. Os sócios ocultos, também denominados participantes, por sua vez, só se obrigam para com o sócio ostensivo.149 Na mesma direção, a lição de Rubens Requião: Existem, portanto, nessa espécie de sociedade, dois tipos de sócios: o sócio ostensivo, empresário, que aparece nos negócios com terceiro contratando sob o seu nome e responsabilidade, e tanto pode ser uma sociedade comercial como um empresário individual, e o sócio oculto, que é o prestador de capital para aquele, não aparecendo externamente nas relações da sociedade. É, como se vê, uma sociedade interna, oculta, entre o empresário ou uma sociedade empresária e o sócio ou sócios que não se destacam, permanecendo ocultos e anônimos.150 (grifos do autor) No mais, destaca-se que a sociedade em conta de participação independe de qualquer formalidade e pode provar-se por todos os meios admitidos em direito.151 O contrato social somente produz efeito entre os sócios, e a eventual inscrição de seu instrumento em qualquer registro não confere personalidade jurídica à sociedade.152 2.3.2.2 Das sociedades empresárias personificadas: a sociedade em nome coletivo, em comandita simples, limitada, por ações e em comandita por ações A legislação pátria reconhece a existência de cinco tipos diversos de sociedades empresárias personificadas. São elas: (i) sociedade em nome coletivo; (ii) sociedade em comandita simples; (iii) sociedade limitada; (iv) sociedade por ações; e (v) sociedade em comandita por ações. Algumas delas vêm reguladas pelo Código Civil, enquanto outras vêm disciplinadas por lei especial. Continuamente, tem-se: (I) A sociedade em nome coletivo: disciplinam a sociedade em nome coletivo os artigos 1.039 a 1.044 do Código Civil. Trata-se de tipo societário pouquíssimo 149 ALMEIDA, op. cit., p. 118. REQUIÃO, op. cit., p. 433. 151 CÓDIGO CIVIL, art. 992: “A constituição da sociedade em conta de participação independe de qualquer formalidade e pode provar-se por todos os meios de direito.” 152 CÓDIGO CIVIL, art. 993: “O contrato social produz efeito somente entre os sócios, e a eventual inscrição de seu instrumento em qualquer registro não confere personalidade jurídica à sociedade.” 150 46 utilizado, porquanto exige que os sócios sejam pessoas físicas, com responsabilidade solidária e ilimitada por todas as obrigações sociais153. Neste sentido, a lição de Fábio Ulhoa Coelho: É o tipo societário em que todos os sócios respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais. Todos, assim, devem ser pessoas naturais. Qualquer um deles, de outro lado, pode ser nomeado administrador da sociedade e ter seu nome civil aproveitado na composição do nome empresarial.154 Na mesma direção, Moema Augusta Soares de Castro leciona que, na sociedade em nome coletivo [...] os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais. Significa que eles responderão pelas obrigações sociais com o patrimônio pessoal de forma subsidiária, solidária e ilimitada. Subsidiária porque primeiro são excutidos os bens sociais, e na falta ou insuficiência desses é que os sócios serão chamados a responder com os bens de seu patrimônio particular; solidária significa que os credores poderão exigir a integralidade do valor de seus créditos de qualquer dos sócios; e ilimitada, eis que respondem com todas as forças do patrimônio pessoal.155 (II) A sociedade em comandita simples: encontra-se este tipo societário disciplinado nos artigos 1.045 a 1.051 do Código Civil. Trata-se, também, de tipo societário pouco utilizado, porquanto os sócios comanditados respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais.156 Fábio Ulhoa Coelho, aliás, explica que: É o tipo societário em que um ou alguns dos sócios, denominados ‘comanditados’, têm responsabilidade ilimitada pelas obrigações sociais, e outros, os sócios ‘comanditários’, respondem limitadamente por essas obrigações. Somente os sócios comanditados podem ser administradores, e o nome empresarial da sociedade só poderá valer-se de seus nomes civis, portanto. Ademais, devem ser necessariamente pessoas físicas.157 Rubens Requião, a respeito da sociedade em comandita simples, pontifica: Ocorre a sociedade em comandita simples quando duas ou mais pessoas se associam, para fins comerciais, obrigando-se uns como sócios solidários, 153 CÓDIGO CIVIL, art. 1.039: “Somente pessoas físicas podem tomar parte na sociedade em nome coletivo, respondendo todos os sócios, solidária e ilimitadamente, pelas obrigações sociais.” 154 COELHO, 2006, p. 148. 155 CASTRO, op. cit., p. 319. 156 CÓDIGO CIVIL, art. 1.045: “Na sociedade em comandita simples tomam parte sócios de duas categorias: os comanditados, pessoas físicas, responsáveis solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais; e os comanditários, obrigados somente pelo valor de sua quota.” 157 COELHO, 2006, p. 149. 47 ilimitadamente responsáveis, e sendo outros simples prestadores de capitais, com responsabilidade limitada às suas contribuições de capital. Aqueles são chamados sócios comanditados, e estes, sócios comanditários.158 (grifos do autor) (III) A sociedade por ações: reguladas por lei especial (Lei nº 6.404, de 15.12.76), caracterizam-se as sociedades anônimas por terem o capital dividido em partes iguais, denominadas ações, e por ser a responsabilidade dos sócios limitada apenas à importância das ações pelos mesmos subscritas ou adquiridas159. Dylson Doria, neste sentido, assevera que: “Pode-se dizer que sociedade anônima é a que possui o capital social dividido em partes iguais, chamadas ações, e tem a responsabilidade de seus sócios ou acionistas limitada ‘ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas’.”160 (IV) A sociedade em comandita por ações: neste tipo societário, “[...] o capital é, igualmente, dividido em partes iguais, sendo os sócios responsáveis pelas ações que subscrevem ou adquirem; os sócios, porém, que ocupam as funções de diretores ou gerentes, respondem, de forma subsidiária, ilimitada e solidariamente, pelas obrigações sociais.”161 Na lição de Fábio Ulhoa Coelho, A comandita por ações é a sociedade cujo capital social se divide em ações, valores mobiliários representativos do investimento dos sócios nela realizado. A diferença essencial com a outra sociedade por ações, a anônima, está na responsabilidade de parte dos sócios, os que administram a empresa, pelas obrigações sociais. Assim, na comandita por ações, o acionista, se não participa da administração da sociedade, tem a responsabilidade limitada ao preço de emissão das ações que subscreveu ou adquiriu; já o que exerce funções de diretor (ou administrador) responde pelas obrigações da sociedade constituídas durante sua gestão, de forma subsidiária (após o exaurimento do patrimônio social), e solidária (com os demais membros da diretoria).162 (grifos do autor) Neste tipo societário, assim, duas são as categorias de sócios ou acionistas: (i) aquele que participa da administração da sociedade e, como diretor ou gerente, responde 158 REQUIÃO, op. cit., p. 433. LEI Nº 6.404/76, art. 1º: “A companhia ou sociedade anônima terá o capital dividido em ações, e a responsabilidade dos sócios ou acionistas será limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas.” No mesmo sentido, o art. 1.088 do Código Civil dispõe que: “Na sociedade anônima ou companhia, o capital divide-se em ações, obrigando-se cada sócio ou acionista somente pelo preço de emissão das ações que subscrever ou adquirir.” 160 DORIA, op. cit., p. 217. 161 MARTINS, op. cit., p. 187. 162 COELHO, 2003, p. 476. 159 48 pelas obrigações sociais, de forma subsidiária, solidária e ilimitadamente;163 e (ii) todos os outros que não participam da administração da sociedade, cuja responsabilidade é limitada ao preço das ações por eles subscritas ou adquiridas. (V) A sociedade limitada: este tipo societário, antes do novo Código Civil, era regulado pelo Decreto nº 3.708, de 10.1.19, sob a rubrica “sociedade por quotas de responsabilidade limitada”. Segundo estudos estatísticos elaborados pelo Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC), a sociedade limitada é o tipo jurídico de sociedade mais utilizado no Brasil. Deveras, o estudo mostra que, entre 1985 a 2005, as Juntas Comerciais do Brasil registraram a constituição de 4.346.602 novas sociedades, donde se sobressai a sociedade limitada, com 4.300.257 constituições, número este que corresponde a 98,93% (noventa e oito inteiros e noventa e três décimos percentuais) do total de novas sociedades registradas nos vinte e um anos do estudo.164 Sobre a importância deste tipo societário, entende Fábio Ulhoa Coelho que: [...] embora sejam cinco os tipos disponíveis, somente as limitadas e anônimas possuem importância econômica. As demais, em razão de sua disciplina inadequada às características da econômica da atualidade, são constituídas apenas para atividades marginais, de menor envergadura. No ano de 2000, por exemplo, as Juntas Comerciais registraram 231.758 sociedades limitadas, 1.466 anônimas e 360 sociedades de outros tipo. A tecnologia jurídica, portanto, na medida em que tem a função de desenvolver parâmetros para a solução dos conflitos de interesse, deve ocupar-se principalmente das sociedades anônima e limitada, priorizando o seu estudo em relação ao das demais espécies.165 Celso Barbi Filho, em artigo doutrinário intitulado Princípios do Direito Societário no Mercosul, lembra que: Se comparadas a sociedade por quotas e a anônima, verifica-se uma utilização quantitativa bem maior da primeira da prática empresarial. E o motivo é facilmente compreensível, pois ela oferece uma estrutura bem mais simplificada para a disciplina da pequena e média empresa, civil ou 163 LEI Nº 6.404/76, art. 282: “Apenas o sócio ou acionista tem qualidade para administrar ou gerir a sociedade e, como diretor ou gerente, responder subsidiária, mas ilimitada e solidariamente, pelas obrigações sociais.” No mesmo sentido, o art. 1.091 do Código Civil estabelece que: “Somente o acionista tem qualidade para administrar a sociedade e, como diretor, responde subsidiária e ilimitadamente pelas obrigações da sociedade. § 1º Se houver mais de um diretor, serão solidariamente responsáveis, depois de esgotados os bens sociais.” 164 Cf. dados estatísticos apurados pelo DNRC. Disponível em: <http://www.dnrc.gov.br>. Acesso em: 5 jul. 2008. 165 COELHO, 2003, p. 22-23. 49 mercantil, sem as exigências e o formalismo impostos pela lei à constituição e ao funcionamento da sociedade anônima, modelo jurídico voltado às grandes empresas privadas nacionais.166 A utilização expressiva deste tipo societário deve-se, sobretudo, à limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais. Com essa característica básica, o patrimônio pessoal dos empreendedores, como regra, não fica exposto a eventuais insucessos do negócio. Com efeito, dada à importância da sociedade limitada, tanto para a economia quanto para o Direito e, ainda, para melhor entendimento deste trabalho, ela será tratada em capítulo próprio. 166 BARBI FILHO, Celso. Princípios do Direito Societário no Mercosul. Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, vol. 26, n. 1/2, dez., 1997. p. 26. 50 3 DA PERSONALIDADE JURÍDICA A personalidade é qualidade inerente da pessoa, seja ela física ou jurídica. Nas palavras de Francisco Amaral, “[...] a personalidade é, sob o ponto de vista jurídico, o conjunto de princípios e regras que protegem a pessoa em todos os seus aspectos e manifestações.”167 Para César Fiuza, a definição de personalidade constitui um “[...] atributo jurídico conferido ao ser humano e a outros entes (pessoas jurídicas), em virtude do qual se tornam capazes, podendo ser titulares de direitos e deveres nas relações jurídicas.”168 Na lição de Fábio Ulhoa Coelho, abaixo colacionada, pode-se verificar o traço diferencial entre o regime dos sujeitos de direito personalizados e despersonalizados: O que caracteriza o regime das pessoas, no campo do direito privado, é a autorização genérica para a prática dos atos jurídicos. Ao personalizar algo ou alguém, a ordem jurídica dispensa-se de especificar quais atos esse algo ou alguém está apto a praticar. Em relação às pessoas, a ordem jurídica apenas delimita o proibido; a pessoa pode fazer tudo, salvo se houver proibição. Já em relação aos sujeitos despersonalizados, não existe a autorização genérica para o exercício dos atos jurídicos; eles só podem praticar os atos essenciais para o seu funcionamento e aqueles expressamente definidos. Para as não-pessoas, a ordem jurídica não delimita o proibido, mas o permitido. Mesmo que não exista proibição específica, o sujeito despersonalizado não pode praticar ato estranho à sua essencial função [...] Em suma, no campo do direito privado, o sujeito personalizado pode fazer tudo que não está proibido; o despersonalizado, somente o essencial ao cumprimento de sua função ou os atos expressamente autorizados.169 Depois de feitas tais considerações, Fábio Ulhoa Coelho conceitua “[...] pessoa jurídica como o sujeito de direito inanimado personalizado.”170 Para Spencer Vampré, “Pessoa jurídica é uma coletividade de homens, constituída para certo fim, com vida e patrimônio próprios, distintos dos indivíduos que a compõem.”171 Carvalho de Mendonça, adotando definição de Giorgi, pontifica que “A pessoa jurídica é a unidade jurídica, resultante da associação humana, constituída para obter, 167 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 140. FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.p. 129. 169 COELHO, 2003, p. 11-10. 170 Idem, p. 11. 171 VAMPRÉ, Spencer. Tratado elementar de Direito Comercial. vol. 1, Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., item 107. 168 51 pelos meios patrimoniais, um ou mais fins, sendo distinta dos indivíduos singulares e dotada da capacidade de possuir e de exercer adversus ommes direitos patrimoniais.”172 Na lição de Fran Martins: É a pessoa jurídica o ente incorpóreo que, como as pessoas físicas, pode ser sujeito de direitos. Não se confundem, assim, as pessoas jurídicas com as pessoas físicas, as quais deram lugar ao seu nascimento; ao contrário, delas se distanciam, adquirindo patrimônio autônomo e exercendo direitos em nome próprio. Em razão disso, as pessoas jurídicas têm nome particular, como aquelas físicas, domicílio, nacionalidade; podendo estar em juízo, como autoras, ou na qualidade de rés, sem que isso reflita na pessoa daqueles que as constituíram. Por último, têm vida autônoma, muitas vezes superior às das pessoas que as formaram; em alguns casos, a mudança de estado dessas pessoas não irradia efeitos na estrutura das pessoas jurídicas, de molde a variar as pessoas físicas que lhes deram origem sem que tal fato incida no seu organismo. É o que ocorre via de regra com as sociedades ditas institucionais ou de capitais, cujos sócios podem mudar de Estado ou ser substituídos sem que se altere a estrutura social.173 Nas palavras de Rubens Requião, uma vez formada a sociedade empresária “[...] pelo concurso de vontades individuais, que lhe propiciam os bens ou serviços, a conseqüência mais importante é o desabrochar de sua personalidade jurídica”174, isto é: A sociedade transforma-se em novo ser, estranho à individualidade das pessoas que participam de sua constituição, dominando um patrimônio próprio, possuidor de órgãos de deliberação e execução que ditam e fazem cumprir a sua vontade. Seu patrimônio, no terreno obrigacional, assegura sua responsabilidade direta em relação a terceiros. Os bens sociais, como objetos de sua propriedade, constituem a garantia dos credores, como ocorre com os de qualquer pessoa natural.175 Dito isso, passa-se a verificar quando se dá o início e o término da personalização da sociedade empresária, bem como quais são os seus principais efeitos. Em seguida, ver-se-á que a transformação do empresário individual em pessoa jurídica é uma mera ficção do direito tributário, uma vez que, ao contrário da sociedade empresária, o empresário individual não tem personalidade diversa e separada da de seu titular. Por derradeiro, mas não menos importante, cuidar-se-á, neste capítulo, da desconsideração da personalidade jurídica. 172 MENDONÇA, 1953, item 601. MARTINS, op. cit., p. 173. 174 REQUIÃO, op. cit., p. 384-385. 175 Idem, p. 385. 173 52 3.1 Início e término da personalização da sociedade empresária Quanto ao início da personalização da sociedade empresária, fala-se que este se opera com o registro de seu ato constitutivo na Junta Comercial. Diga-se, aliás, que é a própria Lei que estabelece a formalidade como o ato responsável pelo nascimento da pessoa jurídica. Deveras, enquanto o artigo 44, do Código Civil, declara que as sociedades, entre outras entidades, são pessoas jurídicas de direito privado, o artigo 45, do mesmo Codex, dispõe que: Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. Por seu turno, o artigo 985, do mesmo diploma legal, reiterando tal regra, declara que “A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150).” O registro das sociedades empresárias, vale lembrar, procede-se nas Juntas Comerciais, que lavra o ato no Registro Público de Empresas Mercantis, em atendimento ao artigo 1.150, do Estatuto Civil. A respeito do início da personalidade da sociedade, Arnoldo Wald, em lição esclarecedora, pontifica que: A sociedade existe desde o momento da sua constituição, quando os sócios firmam o contrato no qual estão previstas as regras sobre a sua estrutura, os poderes dos administradores, os direitos e deveres dos sócios. A mera constituição da sociedade pela formalização em um contrato, todavia, não implica a formação de um novo sujeito de direito, independentemente dos seus sócios e com patrimônio autônomo e separado. Na realidade, a palavra sociedade, em nosso direito, como na maioria das outras legislações, tem dois sentidos, significando tanto o contrato pelo qual a nova entidade é criada, como o seu resultado, ou seja, a pessoa jurídica que os contratantes decidiram constituir. Essa confusão terminológica tem sido condenada pela doutrina, mas se sedimentou de tal modo que não mais cabe, ou seria muito difícil, desfazê-la. Para a constituição de uma pessoa jurídica, é preciso que se cumpram certas formalidades previstas na lei. De fato, de acordo com o sistema jurídico brasileiro e nos termos do artigo 45 do novo Código Civil, a pessoa jurídica de direito privado nasce a partir da inscrição do respectivo ato constitutivo no registro competente [...] Da conjugação dos dois artigos citados (44 e 45) decorre, no direito empresarial, a incidência do artigo 985, isto é, a sociedade somente é considerada pessoa jurídica se os seus atos constitutivos forem devidamente inscritos no registro competente, que é o Registro Público de Empresas Mercantis, para as sociedades empresárias, e o 53 Registro Civil de Pessoas Jurídicas, para as sociedades não-empresárias (sociedades simples em sentido amplo). É com o registro do ato constitutivo que o direito reconhece a personalidade ao ente coletivo, dando-lhe capacidade para atuar, por intermédio dos seus órgãos, perante terceiros, constituindo direitos e obrigações em nome próprio.176 Quanto ao término da personalização da sociedade empresária, Fábio Ulhoa Coelho ensina que este se dá “[...] com o procedimento dissolutório, que pode ser judicial177 ou extrajudicial.178 Esse procedimento compreende três fases: dissolução, liquidação e partilha.”179 Na verdade, Coelho fala que dissolução180 é conceito que pode ser utilizado em dois sentidos: amplo e estrito. No sentido amplo, pode-se entender que se trata de todo o procedimento de extinção da personalidade jurídica da sociedade empresária. Em sentido estrito, é o marco, o ato ou fato previsto em lei ou no contrato, deflagrador do processo que, após passar pela liquidação, levará à extinção da sociedade empresária. Deste modo, tem-se que: A dissolução, entendida como procedimento de terminação da personalidade da sociedade empresária, abrange três fases: a dissolução (ato ou fato desencadeante), a liquidação (solução das pendências obrigacionais da sociedade) e a partilha (repartição do acervo entre os sócios).181 Na mesma direção, Moema Augusta Soares de Castro leciona que: A dissolução lato sensu, ou dissolução-procedimento, observa três etapas: a dissolução stricto sensu, a liquidação e a extinção. A dissolução stricto sensu 176 WALD; TEIXEIRA, op. cit., p. 43. O art. 1.034 do Código Civil estabelece as causas exemplificativas dessa forma de dissolução: “A sociedade pode ser dissolvida judicialmente, a requerimento de qualquer dos sócios, quando: I anulada a sua constituição; II - exaurido o fim social, ou verificada a sua inexeqüibilidade.” Na hipótese de anulação do contrato de constituição da sociedade, por defeito no ato respectivo, decai o sócio do direito de requerê-la em três anos, contado o prazo da publicação de sua inscrição no registro competente (Código Civil, art. 45, parágrafo único). 178 Nos termos do art. 1.033, do Código Civil, a sociedade dissolve-se extrajudicialmente quando ocorrer: “I - o vencimento do prazo de duração, salvo se, vencido este e sem oposição de sócio, não entrar a sociedade em liquidação, caso em que se prorrogará por tempo indeterminado; II - o consenso unânime dos sócios; III - a deliberação dos sócios, por maioria absoluta, na sociedade de prazo indeterminado; IV - a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias; V - a extinção, na forma da lei, de autorização para funcionar.” Ademais, de acordo com o art. 1.035, do mesmo Estatuto Civil, a sociedade também pode se dissolver extrajudicialmente por condição contratual: “O contrato pode prever outras causas de dissolução, a serem verificadas judicialmente quando contestadas.” 179 COELHO, 2003, p. 18. 180 O regramento processual da dissolução e liquidação judicial das sociedades encontra-se nos arts. 656 a 674 do Código de Processo Civil de 1939, que continuam em vigor por previsão expressa do art. 1.218, VII, do CPC de 1973. 181 COELHO, 2003, p. 453. 177 54 ou dissolução-ato é a etapa inicial do procedimento que determina o fim da sociedade. A liquidação é a realização do ativo para pagar o passivo da sociedade.182 A extinção se completa, segundo Moema Augusta Soares de Castro, “[...] quando o ato do desfazimento da sociedade é levado à inscrição no órgão próprio.”183 3.2 Efeitos da personalização Adquirindo personalidade jurídica, com o registro de seu ato constitutivo, diversas conseqüências úteis ocorrem à sociedade empresária. As mais importantes, segundo a melhor doutrina comercialista, são: a) titularidade negocial e processual; b) individualidade própria; c) possibilidade de modificar a sua estrutura; e d) responsabilidade patrimonial. Continuamente, tem-se: (I) Da titularidade negocial e processual: significa dizer que a sociedade empresária personificada assume capacidade legal para adquirir direitos e contrair obrigações, podendo, por intermédio de seu representante legal, demandar e ser demandada em juízo. Ricardo Negrão, nesse diapasão, assevera que: A sociedade, desde a inscrição de seus atos constitutivos, assume capacidade legal para adquirir direitos e contrair obrigações, podendo figurar, nas ações processuais, tanto no pólo ativo como no passivo, para a defesa de seus interesses. É a sociedade que adquire bens, contrata e realiza negócios, embora o faça mediante a intervenção física de uma pessoa humana.184 Aliás, pelo disposto no 1.022, do Estatuto Civil, verifica-se que, realmente, a personalização da sociedade importa a definição da sua legitimidade contratual e negocial: “A sociedade adquire direitos, assume obrigações e procede judicialmente, por meio de administradores com poderes especiais, ou, não os havendo, por intermédio de qualquer administrador.” 182 CASTRO, op. cit., p. 322. Idem, p. 322. 184 NEGRÃO, op. cit., p. 231-232. 183 55 (II) Da individualidade própria: com a personalização, a pessoa do sócio não mais se confunde com a pessoa da sociedade, inclusive quanto à qualidade de empresário. O Código Civil de 1916, em seu artigo 20, já expressava de forma clara esse efeito: “As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.” A respeito deste efeito, Rubens Requião ensina que “Tendo a sociedade, como pessoa jurídica, individualidade própria, os sócios que a constituírem com ela não se confundem, não adquirindo por isso a qualidade de comerciantes.”185 (III) Da possibilidade de modificar a sua estrutura: Com a obtenção de sua personalidade jurídica, a sociedade pode alterar sua estrutura interna, modificando, por exemplo, seu quadro societário (com o ingresso de novos sócios ou a retirada de outros), seu objeto social, seu endereço, seu tipo societário etc.186 (IV) Da responsabilidade patrimonial: da personalização da sociedade segue-se a separação dos patrimônios desta e de seus sócios, significando que, em regra, um não responde pelas obrigações do outro. Essa questão, diga-se, é bem explicada por Fábio Ulhoa Coelho: Os bens integrantes do estabelecimento empresarial, e outros eventualmente atribuídos à pessoa jurídica, são de propriedade dela, e não dos seus membros. Não existe comunhão ou condomínio dos sócios relativamente aos bens sociais; sobre estes os componentes da sociedade empresária não exercem nenhum direito, de propriedade ou de outra natureza. É apenas a pessoa jurídica da sociedade a proprietária de tais bens. No patrimônio dos sócios, encontra-se a participação societária, representada pelas quotas da sociedade limitada ou pelas ações da sociedade anônima. A participação societária, no entanto, não se confunde com o conjunto de bens titularizados pela sociedade, nem com uma sua parcela ideal. Trata-se, definitivamente, de patrimônios distintos, inconfundíveis e incomunicáveis os dos sócios e o da sociedade. Pois assim sendo, conclui-se que respondem pelas obrigações da sociedade, em princípio, apenas os bens sociais. Sócio e sociedade não são a mesma pessoa, e, como não cabe, em regra, responsabilizar alguém (sócio) por dívida de outrem (a pessoa jurídica da sociedade), a responsabilidade patrimonial pelas obrigações da sociedade empresária não é dos seus sócios.187 185 REQUIÃO, op. cit., p. 395. Autores clássicos não incluem a alteração orgânica como efeito da personalidade jurídica. Essa contribuição cabe ao Mestre Rubens Requião: “A sociedade tem a possibilidade de modificar a sua estrutura, quer jurídica, com a modificação do contrato adotando outro tipo de sociedade, quer econômica, com a retirada ou ingresso de novos sócios, ou simples substituição de pessoas, pela cessão ou transferência de parte do capital.” (REQUIÃO, op. cit., p. 395). 187 COELHO, 2003, p. 15. 186 56 Na mesma direção, Alfredo de Assis Gonçalves Neto assevera que: A autonomia patrimonial da sociedade significa patrimônio distinto e inconfundível com o de seus sócios. Ou seja, os sócios não são condôminos ou co-proprietários dos bens que formam o patrimônio social. Os bens que os sócios trazem para a formação do patrimônio social deixam de lhes pertencer, pois se transferem à sociedade a título de propriedade.188 Outro não é o entendimento de Ricardo Negão, para quem “[...] a pessoa jurídica possui patrimônio próprio, distinto do de seus sócios. É este patrimônio que se sujeita primariamente a responder pelas dívidas assumidas pela pessoa jurídica.”189 Daí Fran Martins afirmar que “Esse patrimônio pertence à sociedade e não aos sócios; é justamente a totalidade do patrimônio que vai responder, perante terceiros, pelas obrigações assumidas pela sociedade.”190 A corroborar esse entendimento, de que o patrimônio dos sócios não responde por dívidas da sociedade, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça vem reiteradamente decidindo que: O sócio e a pessoa jurídica formada por ele são pessoas distintas (Código Civil, art. 20). Um não responde pelas obrigações da outra. Em se tratando de sociedade limitada, a responsabilidade do cotista, por dividas da pessoa jurídica, restringe-se ao valor do capital ainda não realizado [...] Ela desaparece, tão logo se integralize o capital.191 [...] Salvo em hipóteses taxativamente previstas em lei, o patrimônio dos sócios não responde por dívidas da sociedade. Por isso, não é lícita a penhora das quotas sociais em execução movida contra a pessoa jurídica.192 Trata-se, pois, do princípio da autonomia patrimonial, considerado por Fábio Ulhoa Coelho o alicerce do direito societário: “Da personalização das sociedades empresárias decorre o princípio da autonomia patrimonial, que é um dos elementos 188 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito societário: regime vigente e inovações do novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p. 28. 189 NEGRÃO, op. cit., p. 232. 190 MARTINS, op. cit., p. 182. 191 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 1ª Turma. REsp 86.439/ES. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros. Brasília, DF, 10 jun. 96, v.u., recurso improvido, DJ de 1.7.96, p. 24004. 192 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp 757.865/SP. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros. Brasília, DF, 20 jun. 06, v.u., recurso conhecido e provido, DJ de 12.6.06, p. 482. 57 fundamentais do direito societário. Em razão desse princípio, os sócios não respondem, em regra, pelas obrigações da sociedade.”193 Acerca da importância do princípio em comento para o desenvolvimento de atividades econômicas, Fábio Ulhoa Coelho completa: A partir da afirmação do postulado jurídico de que o patrimônio dos sócios não responde por dívidas da sociedade, motivam-se investidores e empreendedores a aplicar dinheiro em atividades econômicas de maior envergadura e risco. Se não existisse o princípio da separação patrimonial, os insucessos na exploração da empresa poderiam significar a perda de todos os bens particulares dos sócios, amealhados ao longo do trabalho de uma vida ou mesmo de gerações, e, nesse quadro, menos pessoas se sentiriam estimuladas a desenvolver novas atividades empresariais. No final, o potencial econômico do País não estaria eficientemente otimizado, e as pessoas em geral ficariam prejudicadas, tendo menos acesso a bens e serviços. O princípio da autonomia patrimonial é importantíssimo para que o direito discipline de forma adequada a exploração da atividade econômica.194 Desse modo, como sócio e sociedade possuem patrimônios distintos, inconfundíveis e incomunicáveis, pelas obrigações da sociedade respondem, em princípio, apenas os bens sociais. 3.3 A personalidade jurídica do empresário individual: uma mera ficção do Direito tributário Como visto alhures, após a inscrição do ato constitutivo no registro próprio, a sociedade empresária adquire personalidade jurídica, ou seja, sócios e sociedade são pessoas distintas, com patrimônio e responsabilidades igualmente distintos. Situação totalmente diversa é a do empresário individual, porquanto este, nos termos da lei civil195, não tem personalidade distinta e separada da de seu titular, antes, ao contrário, ambos, empresário individual e seu titular, são uma única pessoa, com um único patrimônio, e uma única responsabilidade patrimonial.196 193 COELHO, 2003, p. 15. Idem, p. 15-16. 195 No ordenamento jurídico brasileiro, as pessoas jurídicas de direito privado, consoante exposto no art. 44 do Código Civil, são as associações, as sociedades (simples e empresárias), as fundações, as organizações religiosas e os partidos políticos. Neste dispositivo, com efeito, não consta o empresário individual como pessoa jurídica de direito privado. 196 OLIVEIRA, João Paulo de. Empresa individual e personalidade jurídica. Disponível em: <http://www.escola.agu.gov.br/revista/Ano_VI_dezembro_2006/EmpresIndividualvePersJur-JoaoPaul o.pdf> Acesso em: 17 set. 2008. 194 58 Na verdade, a transformação do empresário individual em pessoa jurídica é mera ficção do Direito Tributário, cuja finalidade não é outra senão a de sujeitá-lo ao mesmo tratamento fiscal atribuído as pessoas jurídicas; tanto um, pessoa física, quanto outro, pessoa jurídica, sujeitam-se às mesmas obrigações tributárias, sejam elas principais ou acessórias197. Nesse sentido, as palavras de Láudio Camargo Fabretti: Não obstante pertencerem exclusivamente a uma pessoa física, as atividades econômicas da empresa individual recebem o mesmo tratamento tributário das pessoas jurídicas. Portanto, sujeita às mesmas obrigações tributárias, ou seja, a principal (pagamento dos impostos, taxas e contribuições) e às acessórias (dever de escriturar livros contábeis e fiscais; conservar livros e documentos até que ocorra a prescrição ou a decadência; prestar informações etc).198 A par da mesma concepção, Rubens Requião doutrina: [...] o comerciante singular, o empresário individual, é a própria pessoa física ou natural, respondendo os seus bens pelas obrigações que assumiu, quer sejam civis, quer comerciais. A transformação de firma individual em pessoa jurídica é uma ficção do direito tributário, somente para o efeito do imposto de renda.199 Na mesma direção da preleção de Requião, maiores esclarecimentos na lição de Moema Augusta Soares de Castro: O empresário individual é a pessoa física ou natural, que não é pessoa jurídica, como muitos leigos equivocadamente entendem. Os seus bens pessoais respondem pelas obrigações assumidas pela empresa individual. Não há um patrimônio separado como no caso da pessoa jurídica, exatamente porque não há outra pessoa diferente daquela que a constituiu. O entendimento errôneo de a firma individual ser considerada pessoa jurídica 197 Como exemplo, cita-se: DECRETO-LEI Nº 5.844/43, art. 27: “As pessoas jurídicas de direito privado domiciliadas no Brasil, que tiverem lucros apurados de acordo com este decreto-lei, são contribuintes do imposto de renda, sejam quais forem os seus fins e nacionalidade. § 1° Ficam equiparadas às pessoas jurídicas, para efeito deste decreto-lei, as firmas individuais e os que praticarem, habitual e profissionalmente, em seu próprio nome, operações de natureza civil ou comercial com o fim especulativo de lucro.” No mesmo sentido: DECRETO Nº 3.000/99, art. 150: “As empresas individuais, para os efeitos do imposto de renda, são equiparadas às pessoas jurídicas. § 1º São empresas individuais: I - as firmas individuais; II - as pessoas físicas que, em nome individual, explorem, habitual e profissionalmente, qualquer atividade econômica de natureza civil ou comercial, com o fim especulativo de lucro, mediante venda a terceiros de bens ou serviços; III - as pessoas físicas que promoverem a incorporação de prédios em condomínio ou loteamento de terrenos, nos termos da Seção II deste Capítulo.” 198 FABRETTI, Láudio Camargo. Direito de empresa no novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2003. p. 38. 199 REQUIÃO, op. cit., p. 78. 59 advém da interpretação e aplicação da lei tributária relativa ao imposto de renda, que a equipara como tal para o efeito de tributação, conforme o caso, (1) o titular da empresa individual e (2) a própria empresa individual se houver incidência do tributo. Em suma: para os efeitos da legislação do direito privado, a empresa individual ou a firma mercantil individual não é e nunca foi considerada pessoa jurídica. Repita-se: a transformação de firma individual em pessoa jurídica é uma ficção do direito tributário, que ocorre somente para o efeito da justificação da incidência do imposto de renda.200 Também no mesmo sentido, Sérgio Campinho pontifica que: O exercício da empresa pelo empresário individual se fará sob uma firma, constituída a partir de seu come, completo ou abreviado, podendo a ele ser aditado designação mais precisa de sua pessoa ou do gênero de atividade. Nesse exercício, ele responderá com todas as forças de seu patrimônio pessoal, capaz de execução, pelas dívidas contraídas, vez que o direito brasileiro não admite a figura do empresário individual, com responsabilidade limitada e, conseqüentemente, a distinção entre patrimônio empresarial (o patrimônio do empresário individual afetado ao exercício de sua empresa) e patrimônio individual do empresário, pessoa física.201 Outro não é o ensinamento de Carvalho de Mendonça: A firma individual é uma mera ficção jurídica, com fito de habilitar a pessoa física a praticar atos de comércio, concedendo-lhe algumas vantagens de natureza fiscal. Por isso, não há bipartição entre a pessoa natural e a firma por ele constituída. Uma e outra fundem-se, para todos os fins de direito, em um todo único e indivisível. Uma está compreendida pela outra. Logo, quem contratar com uma está contratando com a outra e vice versa [...] A firma do comerciante singular gira em círculo mais estreito que o nome civil, pois designa simplesmente o sujeito que exerce a profissão mercantil. Existe essa separação abstrata, embora aos dois se aplique a mesma individualidade. Se em sentido particular uma é o desenvolvimento da outra, é, porém, o mesmo homem que vive ao mesmo tempo a vida civil e a vida comercial.202 Corroborando esse entendimento, copiosa é a jurisprudência que repele a personificação do empresário individual, consoante se depreende dos julgados abaixo colacionados, na parte que interessa: Em que pese a sociedade empresária seja dotada de personalidade jurídica própria, a firma individual não é capaz de criar uma nova pessoa. Assim, a pessoa natural que constituiu uma empresa individual não tem a sua personalidade cindida entre uma pessoa física e outra pessoa jurídica. Na 200 CASTRO, op. cit., p. 40. CAMPINHO, op. cit., p. 12. 202 MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. vol. 2, 6. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1957. p. 166-167. 201 60 realidade, não há falar em desdobramento da personalidade, senão na existência de uma única pessoa [...] O patrimônio relacionado ao uso privado, bem como aquele que guarda vínculo estreito com o exercício da atividade empresarial pertence à pessoa natural do titular da firma individual, eis que a empresa individual não possui personalidade jurídica distinta da do seu titular. O patrimônio da firma individual se confunde com o de seu titular. E isso ocorre porque o empresário individual é a própria pessoa física, não existindo pessoa jurídica.203 [...] O sistema jurídico brasileiro não considera a firma individual como entidade distinta da pessoa natural do comerciante, que não se investe de dupla personalidade, uma civil e outra comercial, pelo que os débitos contraídos pela empresa ligam a pessoa civil do comerciante e vice-versa, respondendo este pelas dívidas contraídas por uma ou por outro.204 [...] Empresário individual é a própria pessoa física ou natural, respondendo os seus bens pelas obrigações que assumiu, quer civis quer comerciais.205 [...] À firma individual, não há distinguir-se personalidades diferentes na figura de seu titular, discriminando-as em pessoas jurídica e natural. É que, os atos por ele praticados, sejam atinentes à firma, sejam quanto aos da vida civil, tudo num quotidiano comum, se confundem; e nem seria necessário, tendo em vista que o patrimônio dele sempre será um só.206 Deste modo, o empresário individual não possui a sua personalidade desdobrada entre uma pessoa natural e uma pessoa jurídica, constituindo-se, pois, numa única pessoa, razão pela qual todos os seus bens respondem ilimitadamente pelas obrigações contraídas, sejam elas de natureza civis ou empresariais. Com efeito, verifica-se que, enquanto os sócios encontram nas sociedades empresárias personificadas, mormente na sociedade limitada, um sistema capaz de limitar os 203 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. 1ª Turma. APC 1999.71.11.002407-2. Relator: Desembargador Joel Ilan Paciornik. Porto Alegre, RS, 17 set. 08, v.u., recurso provido, DE de 30.9.08. 204 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. 1ª Câmara Cível. APC 2.0000.00.395448-3/000(1). Relator: Desembargador Osmando Almeida. Belo Horizonte, MG, 24 jun. 03, v.u., recurso parcialmente provido, DJ de 23.8.03. 205 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp 594.832/RO. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, DF, 28 jun. 05, v.u., recurso parcialmente conhecido e, nesta parte, provido, DJ de 1.8.05, p. 443. Julgados no mesmo sentido: JTACSP, 126⁄100; JTACSP 135⁄79; JTACSP, 145⁄140; LEX-JTJ, 260⁄338; JTJ, 203⁄198; JTJ, 142⁄212. 206 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. 11ª Câmara Cível. APC 1.0702.05.204210-9/001(1). Relatora: Desembargadora Selma Marques. Belo Horizonte, MG, 18 jul. 07, v.u., recurso improvido, DJ de 2.8.07. 61 riscos da atividade empresarial, porquanto respondem apenas pelo valor das quotas que se comprometeram no contrato social, o empresário individual, a mingua de personalização, responde ilimitadamente com seus bens por todos os atos praticados no exercício da empresa. Conforme se verá no capítulo 5 deste trabalho, a conseqüência prática dessa malfadada distinção é a criação das chamadas sociedades fictícias, com sócios de favor, expediente pelo qual o empresário individual realiza a separação patrimonial e limita, assim, a sua responsabilidade pelos riscos da atividade empresarial. 3.4 Desconsideração da personalidade jurídica A atribuição de personalidade jurídica às sociedades constitui-se numa das chaves do sucesso da atividade empresarial,207 porquanto assegura ao empreendedor a exploração de atividade econômica com limitação de prejuízos pessoais. Trata-se, pois, de uma sanção positiva ou premial àqueles que se reúnem e desenvolvem conjuntamente determinada atividade econômica.208 Como ensina José Carlos Fortes, a esse respeito, A importância da personificação da sociedade sob o aspecto jurídico decorre da própria necessidade de se criar mecanismos legais capazes de assegurar a distinção entre os sócios e a sociedade de modo a incentivar as pessoas a desenvolverem seus negócios. Com a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a sociedade passa a responder legalmente pelas operações nela realizadas dentro dos limites de gestão estabelecidos nos seus atos constitutivos. Desta forma, a autonomia patrimonial constitui-se em um incentivo às pessoas, que passam a se dispor a colocar seu capital a serviço do empreendimento empresarial, tendo a garantia que não terá seu patrimônio pessoal ameaçado para suprir dívidas da pessoa jurídica. Isto é característico, sobretudo, nas sociedades limitadas.209 Todavia, dessa proteção patrimonial, espécie de escudo a defender a pessoa dos sócios quanto ao seu patrimônio pessoal, decorrem, em alguns casos, fraudes, abusos e burla à lei. Nesses casos, quando a atividade ilícita praticada pelo sócio encontra respaldo 207 ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. A desconsideração da personalidade jurídica e o direito do consumidor: Um estudo de direito civil constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 245. 208 SILVA, Osmar Vieira. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 73. 209 FORTES, José Carlos. A desconsideração da pessoa jurídica e o princípio da autonomia patrimonial. Disponível em: <http://www.classecontabil.com.br/servlet_juizo.php?id=279>. Acesso em: 17 set. 2008. 62 atrás do véu que recobre a pessoa jurídica e a distingue de seu sócio, tornando-o praticamente inatingível, cabe ao poder judiciário aplicar a teoria desconsideração, levantando o véu da pessoa jurídica, para penetrar no substrato da sociedade e afetar especialmente a seus membros e bens.210 Nas palavras de Ricardo Negrão, A concessão de personalidade jurídica, tendo em vista seus efeitos, leva, muitas vezes, a determinados abusos por parte de seus sócios, atingindo direitos de credores e de terceiros. Nesse caso, vem-se admitindo o superamento da personalidade jurídica com o fim exclusivo de atingir o patrimônio dos sócios envolvidos na administração da sociedade. Por essa razão a teoria do superamento da personalidade jurídica – disregard of legal entity – é também conhecida como teoria da penetração.211 Na mesma direção, Fábio Ulhoa Coelho preleciona: Em razão do princípio da autonomia patrimonial, as sociedades empresárias podem ser utilizadas como instrumento para a realização de fraude contra os credores ou mesmo abuso de direito. Na medida em que é a sociedade o sujeito titular dos direitos e devedor das obrigações, e não os seus sócios, muitas vezes os interesses dos credores ou terceiros são indevidamente frustrados por manipulações na constituição de pessoas jurídicas, celebração dos mais variados contratos empresariais, ou mesmo realização de operações societárias, como as de incorporação, fusão, cisão. Nesses casos, alguns envolvendo elevado grau de sofisticação jurídica, a consideração da autonomia da pessoa jurídica importa a impossibilidade de correção da fraude ou do abuso. Quer dizer, em determinadas situações, ao se prestigiar o princípio da autonomia da pessoa jurídica, o ilícito perpetrado pelo sócio permanece oculto, resguardado pela licitude da conduta da sociedade empresária. Somente se revela a irregularidade se o juiz, nessas situações (quer dizer, especificamente no julgamento do caso), não respeitar esse princípio, desconsidera-lo. Desse modo, como pressuposto da repressão a certos tipos de ilícitos, justifica-se episodicamente a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária.212 (grifos do autor) Maurice Wormser, jurista norte-americano, citado por Requião, assim conceituou a teoria da desconsideração da personalidade jurídica: Quando o conceito de pessoa jurídica - corporate entity - se emprega para defraudar os credores, para subtrair-se a uma obrigação existente, para desviar a aplicação de uma lei, para constituir ou conservar um monopólio ou para proteger velhacos ou delinqüentes, os tribunais poderão prescindir da 210 REALI, Ronaldo Roberto. A desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro (disregard of legal entity). Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 266, 30 mar. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5008>. Acesso em: 17 fev. 2008. 211 NEGRÃO, op. cit., p. 234. 212 COELHO, 2003, p. 31. 63 personalidade jurídica e considerar que a sociedade é um conjunto de homens que participam de tais atos e farão justiça entre pessoas reais.213 Cumpre ressaltar que a teoria da desconsideração não visa à desconstituição da pessoa jurídica, atingindo o ato de constituição da sociedade; também, é estranha aos atos de gestão de seus administradores no desenvolvimento do objeto social, quando resultantes da atividade da pessoa jurídica (teoria dos atos ultra vires)214. A teoria da desconsideração, 213 In: REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, dez-69, v. 58, n. 410, p. 15. 214 Acerca da diferença entre a teoria da desconsideração com a teoria dos atos ultra vires societatis, Roberta Macedo de Souza Aguiar, em lição esclarecedora, pontifica: “Fato muito comum, mas que, todavia, jamais poderia ocorrer, é a confusão da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica com a Teoria dos Atos Ultra Vires. Deve-se deixar bem claro que esta última se baseia no objeto social, especificado no contrato ou no estatuto da sociedade. As sociedades, na situação de pessoas jurídicas que são, praticam seus atos através de representantes legais. Estes não contraem responsabilidade pessoal pelos atos praticados dentro da lei, do estatuto ou do contrato, e não respondem pelo cumprimento das obrigações contraídas no exercício dessa função, uma vez que não são suas, mas da sociedade. Seus atos estão vinculados ao objeto social, determinado no instrumento de constituição; os representantes não podem praticá-los fora da finalidade da empresa, sob pena de serem esses atos considerados ultra vires societatis. Aplicando essa teoria em termos absolutos, a sociedade não se responsabiliza por tais atos, mesmo que eles tragam vantagens à empresa; os atos estranhos ao objeto social são insanavelmente nulos, mesmo quando tiverem sido deliberados por decisão unânime dos sócios. Qualquer negócio realizado pela sociedade além de seus poderes é nulo e não pode ser ratificado. Cumpre frisar que o fim da sociedade é realizar o objeto social, sendo de extrema importância a sua descrição precisa e completa, limitando a área de discricionariedade dos administradores e a capacidade da sociedade. Isso torna mais fácil caracterizar o abuso, quando este vier a ocorrer. A proibição ao sócio-gerente de realizar qualquer negócio além dos limites fixados no contrato ou no estatuto social visa principalmente à proteção dos credores, sócios e acionistas, pois estes, por estarem diretamente relacionados com a sociedade, são os eventualmente prejudicados pelos efeitos dos atos abusivos que conflitem com a lei, com o contrato ou com o estatuto social. A proteção aos sócios ou acionistas é devida, já que estes aplicam seu capital em determinada empresa da qual conhecem a finalidade, o objeto. Este, por sua vez, é de confiança e interesse do investidor, pois se parte da idéia de que a sociedade existe apenas para a realização daquele objeto social determinado no seu instrumento constitutivo, não devendo o sócio ou acionista responder por um ato abusivo do gerente, fora dos poderes a ele delegados. O excesso de poder do diretor de uma sociedade não pode também prejudicar os credores, já que estes confiam nos negócios atuais da pessoa jurídica, não podendo esta ingressar em negócio de natureza arriscada, do qual resultará perda do capital social. Deve-se procurar proteger, contudo, a pessoa de boa-fé que negocia com a sociedade, visto que em alguns momentos é difícil vislumbrar o desvirtuamento do objeto. Nessa hipótese, aplicar-se-á a teoria da aparência, presumindo-se assim a boa-fé do terceiro, que se ilude frente à notória dificuldade de verificar se o representante está ou não imbuído de poderes para contrair obrigações em nome da pessoa jurídica. Dessa forma, violando a lei, o contrato ou o estatuto social, o administrador estará agindo além dos poderes e atribuições que a lei lhe confere, o que enseja a responsabilidade deste pela prática de tais atos, respondendo o administrador perante a sociedade e o terceiro prejudicado. Os diretores responsáveis também devem responder em caráter pessoal, diretamente perante os prejudicados, tendo estes legitimidade para acionar aqueles, diretamente, pelo prejuízo que causaram com a má utilização dos poderes a eles delegados pela sociedade que representam. Nesses casos, não haverá aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica.” (AGUIAR, Roberta Macedo de Souza. Desconsideração da personalidade jurídica no Direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 12-13). 64 portanto, não busca responsabilizar o sócio que, na sua atividade social, exerce-a com excesso de poderes, infração à lei ou contrato social.215 Na verdade, a teoria da desconsideração visa à declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica, para determinado efeito – objetivamente aquele que incide na contradição entre a finalidade do instituto da pessoa jurídica e a realidade da constituição e funcionamento desta, com relação ao prejudicado por aquela contradição – prosseguindo, contudo, a mesma incólume para outros fins jurídicos e para com outros que com a sociedade se relacionem216, como bem aponta Fábio Ulhoa Coelho: Pela teoria da desconsideração, o juiz pode deixar de aplicar as regras de separação patrimonial entre sociedade e sócios, ignorando a existência da pessoa jurídica num caso concreto, porque é necessário coibir a fraude perpetrada graças à manipulação de tais regras. Não seria possível a coibição se respeitada a autonomia da sociedade. Note-se, a decisão judicial que desconsidera a personalidade jurídica da sociedade não desfaz o seu ato constitutivo, não o invalidade, nem importa a sua dissolução. Trata, apenas e rigorosamente, de suspensão episódica da eficácia desse ato. Quer dizer, a constituição da pessoa jurídica não produz efeitos apenas no caso em julgamento, permanecendo válida e inteiramente eficaz para todos os outros fins.217 Na mesma direção, Rubens Requião assevera que: Pretende a doutrina penetrar no âmago da sociedade, superando ou desconsiderando a personalidade jurídica, para atingir e vincular a responsabilidade do sócio. Não se trata, é bom esclarecer, de considerar ou declarar nula a personificação, mas de torná-la ineficaz para determinados atos.218 (grifo do autor) Ricardo Negrão, por sua vez, completa: Na aplicação da teoria do superamento, também chamada da penetração ou disregard of legal entity, não se extingue a sociedade, mas apenas se afastam os efeitos legais decorrentes da personalidade jurídica para estender a um, alguns ou todos os sócios os efeitos de obrigações que a rigor seriam suportados exclusivamente pela pessoa jurídica.219 215 LAZZARI, Sandra Maria. O abuso e fraude da forma da pessoa jurídica: sua desconsideração. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Instituto de informática Jurídica, vol. 16, n. 44, 1986, p. 31. 216 Idem, p. 32. 217 COELHO, 2003, p. 40. 218 REQUIÃO, op. cit., p. 390. 219 NEGRÃO, op. cit., p. 262. 65 Desse modo, a aplicabilidade da teoria da desconsideração não importa a dissolução ou anulação da sociedade. Apenas no caso específico, em que a autonomia patrimonial foi fraudulentamente utilizada, ela não é levada em conta, é desconsiderada, o que significa a suspensão episódica da eficácia do ato de constituição da sociedade, e não o desfazimento ou a invalidação desse ato.220 Assim, preserva-se a validade e existência de todos os demais atos estranhos à fraude perpetrada, protegendo, nesse quadro, a existência da própria sociedade.221 É de se ressaltar, desde já, que a validade das sociedades fictícias ou de favor, defendida no capítulo 5 deste trabalho, não representa, nem pode representar, uma espécie de salvo conduto para perpetração de fraudes. Manipulada fraudulentamente a pessoa jurídica, mesmo no domínio particular da sociedade fictícia, autoriza-se a desconsideração da personalidade jurídica, de resto aplicável em qualquer hipótese de utilização fraudulenta das formas societárias. 3.4.1 A teoria maior e a teoria menor da desconsideração Existem, no Brasil, duas elaborações doutrinárias sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, denominadas “teoria maior e teoria menor da desconsideração.” A respeito dessas teorias, Fábio Ulhoa Coelho explica que: Há, no direito brasileiro, na verdade, duas teorias da desconsideração. De um lado, a teoria mais elaborada, de maior consistência e abstração, que condiciona o afastamento episódico da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas à caracterização da manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto. Nesse caso, distinguem-se com clareza a desconsideração da personalidade jurídica e outros institutos jurídicos que também importam a afetação de patrimônio de sócio por obrigação da sociedade (p. ex., a responsabilização por ato de má gestão, a extensão da responsabilidade tributária ao gerente etc.). Ela será chamada, aqui, de teoria maior. De outro lado, a teoria menos elaborada, que se refere à desconsideração em toda e qualquer hipótese de execução do patrimônio de sócio por obrigação social, cuja tendência é condicionar o afastamento da autonomia à simples insatisfação de crédito perante a sociedade. Trata-se da teoria menor, que se contenta com a demonstração pelo credor da inexistência de bens sociais e da solvência de qualquer sócio, para atribuir a este a obrigação da pessoa jurídica.222 (grifos do autor) 220 COELHO, 2003, p. 40. AGUIAR, op. cit., p. 13. 222 COELHO, 2003, p. 35. 221 66 Com efeito, a teoria maior, também denominada de teoria subjetiva, fundamenta-se em maior apuro e precisão do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, baseando-se em requisitos sólidos identificadores da manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto. O principal sistematizador dessa formulação doutrinária é o alemão Rolf Serick, que, em sua precursora obra “Aparencia y realidad en las sociedades mercantiles – El abuso de Derecho por medio de la persona juridica”, assim pontificou: A jurisprudência há de enfrentar-se continuamente com os casos extremos em que resulta necessário averiguar quando pode prescindir-se da estrutura formal da pessoa jurídica para que a decisão penetre até o seu próprio substrato e afete especialmente a seus membros.223 No Brasil, a teoria maior da desconsideração foi inserida na doutrina por Rubens Requião, aqui seu maior expoente, que tratou de sistematizá-la: Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos.224 A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, segundo Fábio Ulhoa Coelho, “[...] não é uma teoria contrária à personalização das sociedades empresárias e à sua autonomia em relação aos sócios. Ao contrário, seu objetivo é preservar o instituto, coibindo práticas fraudulentas e abusivas que dele se utilizam.”225 Por seu turno, a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica dispensa raciocínio mais acurado para a incidência do instituto, bastando que a diferenciação patrimonial da sociedade e sócio se afigure como obstáculo à satisfação de credores. Assim sendo, todas as vezes que a pessoa jurídica não tiver bens suficientes em seu patrimônio para a satisfação do crédito ou até mesmo em razão de sua iliquidez, os sócios seriam responsabilizados.226 223 SERICK, Rolf. Aparencia y realidad en las sociedades mercantiles – El abuso de Derecho por medio de la persona juridica. Trad. Jose Puig Brutau, Barcelona, Ariel, 1958. 224 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, dez-69, v. 58, n. 410, p. 17. 225 COELHO, 2003, p. 37. 226 GUIMARÃES, Márcio Souza. Aspectos modernos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 64, abr. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3996>. Acesso em: 17 fev. 2008. 67 Trata-se, pois, de teoria que não se preocupa em determinar se há ou não fraude ou abuso de direito na condução da sociedade por meio de seus sócios. Formulação doutrinária proposta por Fábio Konder Comparato, a teoria menor combate o subjetivismo da proposta original oferecida por Rubens Requião.227 Segundo Fábio Ulhoa Coelho, ao contrário da teoria maior, a menor reflete a crise do princípio da autonomia patrimonial: A teoria menor da desconsideração é, por evidente, bem menos elaborada que a maior. Ela reflete, na verdade, a crise do princípio da autonomia patrimonial, quando referente a sociedades empresárias. O seu pressuposto é simplesmente o desatendimento de crédito titularizado perante a sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta. De acordo com a teoria menor da desconsideração, se a sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é solvente, isso basta para responsabilizá-lo por obrigações daquela. A formulação menor não se preocupa em distinguir a utilização fraudulenta da regular do instituto, nem indaga se houve ou não abuso de forma. Por outro lado, é-lhe de todo irrelevante a natureza negocial do direito creditício oponível à sociedade. Eqüivale, em outros termos, à simples eliminação do princípio da separação entre pessoa jurídica e seus integrantes. Se a formulação maior pode ser considerada um aprimoramento da pessoa jurídica, a menor deve ser vista como o questionamento de sua pertinência, enquanto instituto jurídico.228 Com efeito, a desconsideração da personalidade jurídica deve ter necessariamente natureza excepcional, episódica, sob pena de tornar ineficaz o próprio instituto da pessoa jurídica, um dos maiores responsáveis pelo impulso e desenvolvimento da economia. Nessa senda, não se justifica o afastamento da autonomia da pessoa jurídica apenas porque um credor seu não pôde satisfazer o crédito que titulariza. É indispensável tenha havido manipulação fraudulenta ou abusiva da pessoa jurídica, a deturpação do instituto.229 3.4.2 Pressupostos para a aplicação da desconsideração: a fraude e o abuso de direito Pela teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, os pressupostos para o afastamento da autonomia patrimonial são a fraude e o abuso de direito. Segundo a teoria menor, o pressuposto da desconsideração se encontra, fundamentalmente, na confusão patrimonial.230 Como a primeira teoria é a de maior aceitação, porque encontra-se 227 COELHO, 2003, p. 43-44. Idem, p. 46. 229 Idem, p. 38-39. 230 Idem, p. 44. 228 68 de acordo com a elaboração doutrinária original da desconsideração, passa-se a analisar os seus elementos autorizadores, quais sejam, a fraude e o abuso de direito. A fraude pode ser caracterizada com um procedimento utilizado para iludir, ludibriar, enganar. Na definição de Clóvis, citada por Serpa Lopes, “[...] fraude é o artifício malicioso utilizado para prejudicar terceiro, de persona ad personam.”231 Nos dizeres de Caio Mário da Silva Pereira, a fraude é tida como “[...] a manobra engendrada com o fito de prejudicar terceiro;” e tanto se insere no negócio unilateral (caso em que macula o negócio ainda que dela não participe outra pessoa), como se imiscui no negócio bilateral (caso em que a maquinação é concertada entre as partes).232 Para Roberta Macedo de Souza Aguiar, A fraude, um dos elementos ensejadores da utilização da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, pode ser conceituada como o artifício malicioso para prejudicar terceiros, que não precisam ser necessariamente credores, apesar de a fraude contra credores também ser um dos fundamentos para que ocorra a aplicação da teoria em estudo [...] Notase uma grande proximidade entre a fraude contra credores e a doutrina da desconsideração. Entretanto, pode-se afirmar que esta última é categoria mais abrangente, por se estender a casos em que não é possível aplicar-se a anulação do ato inquinado por invocação daquele primeiro instituto. Existem, entretanto, hipóteses de fraudes específicas que justificam a invocação da teoria em tela, por lidarem com o uso indevido da autonomia do ente coletivo e que afastam a incidência da disciplina própria da fraude contra credores. Trata-se de ocorrências que não equivalem a este tipo de vício, por inexistir prejuízo a credores. São, portanto, atividades fraudulentas que não redundam no vício da fraude contra credores teorizada na doutrina civilista.233 Na mesma direção, Amanda do Nascimento Nóbrega entende que: A fraude é o artifício malicioso para prejudicar terceiros, isto é, “a distorção intencional da verdade com o intuito de prejudicar terceiros” (SILVA, 1999, p. 36). O essencial na sua caracterização é o intuito de prejudicar a outros, independentemente de se tratar de credores. Tal prática a princípio é lícita, sua ilicitude decorre do desvio na utilização da pessoa jurídica, nos fins ilícitos buscados no manejo da autonomia patrimonial. A pessoa jurídica não existe para permitir que a pessoa física burle uma obrigação que lhe é 231 In: SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil. vol. 1, 8. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1996. p. 466. 232 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: introdução ao Direito Civil. Teoria geral de Direito Civil. vol. 1, 21. ed. rev. e atual. por Maria Celina Bodin de Moraes, Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 536-537. 233 AGUIAR, op. cit., p. 15. 69 imposta, como ente autônomo ela tem o fim de favorecer o exercício normal das atividades econômicas.234 O abuso de direito, por sua vez, conforme lição de Domingos Afonso Kriger Filho,235 caracteriza-se pelo uso anormal das prerrogativas conferidas às pessoas pelo ordenamento jurídico, objetivando, por dolo ou má-fé, auferir uma vantagem indevida ou ilícita. O Código Civil de 2002, em seu art. 187, reconhece expressamente o instituto do abuso do direito, qualificando-o como um ato ilícito: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” Segundo Álvaro Villaça Azevedo,236 o abuso representa o excesso no exercício do direito, ou ainda, no exercício do poder conferido ao titular de um direito. “O poder pode ser exercido somente para os fins, em razão dos quais foi atribuído; todo ato não justificado com referência a essa finalidade e que se desvie do escopo é considerado abusivo.” De acordo com Heloísa Carpena, a nova lei determina de forma incontestável a teoria do abuso do direito no ordenamento jurídico brasileiro, “[...] reconhecendo expressamente o elemento ético que limita o exercício de direitos subjetivos e outras prerrogativas”.237 Assevera a autora, ainda, que a teoria do abuso do direito é decorrência da própria incompletude do direito positivo, que não pode prever todas as condutas que se consideram ilegítimas perante os valores constitucionais: A doutrina do abuso do direito está em sintonia com a mudança da racionalidade jurídica, que se dirige à superação do ideal de completude do ordenamento, ícone do positivismo contemporâneo. O reconhecimento de que o direito positivo não pode dar conta de prever exaustivamente todas as condutas anti-sociais ou indesejadas é o primeiro passo para a construção de um sistema coerente e harmônico. Isto porque, se não é dado à lei estabelecer todos os limites ao exercício dos direitos subjetivos, tal papel será melhor confiado aos princípios, que desta forma assumem um maior 234 NÓBREGA, Amanda do Nascimento. A desconsideração da personalidade jurídica na sociedade limitada e o novo Código Civil. Revista Forense, Rio de Janeiro: set.-out., vol. 381, 2005, p. 608. 235 KRIGER FILHO, Domingos Afonso. Aspectos da desconsideração da personalidade societária na lei do consumidor. Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 13, p. 78-86, jan.-mar, 1995, p. 83. 236 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Negócio jurídico. Atos jurídicos lícitos. Atos ilícitos. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça (coord.). Código Civil Comentado. vol. II. São Paulo: Atlas, 2003. 237 CARPENA, Heloísa. O abuso de direito no Código de 2002. Relativização dos direitos na ótica civil-constitucional. In: TREPEDINO, Gustavo (coord). A parte geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 395. 70 grau de normatividade, incidindo diretamente nas relações jurídicas privadas.238 Citando Verrucoli, Alexandre Couto Silva239 assevera que o abuso de direito é o caso mais comum de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Para o autor, caracteriza o abuso de direito a vontade de tirar proveito de uma situação não fraudulentamente criada e que, por outro lado, permite, no fundo, que se consigam vantagens indevidas. No abuso de direito, para Rubens Requião,240 não existe propriamente trama contra direito do credor, o que o distinguiria da fraude. O abuso surge do inadequado uso de um direito, mesmo que seja estranho ao agente o propósito de prejudicar o direito de outrem. Simone Gomes Rodrigues, resgatando a lição de Rolf Serick, assim pontificou acerca da questão: Segundo Rolf Serick, o abuso – a utilização do expediente da pessoa jurídica com a intenção de furtar-se a uma obrigação legal ou contratual, ou ainda prejudicar terceiros – é essencial existir para justificar o desconhecimento da pessoa jurídica. Quem faz uso da pessoa jurídica para fins ilícitos não merece a tutela que resulta do princípio da separação patrimonial, perdendo a razão de ser a autonomia entre pessoa jurídica e seus membros, quando estes ou aquela ultrapassam os limites traçados pelo ordenamento jurídico.241 Diante do exposto, pode-se dizer que age abusivamente aquele que, apesar de obedecer aos ditames da lei, se desvia da destinação social e econômica desta, causando dano a outrem. É essa uma maneira especial de prática do ilícito, que pressupõe um direito subjetivo, o seu exercício anormal e o dano ou mal-estar provocado às pessoas.242 Sendo assim, na hipótese de o sócio de uma sociedade agir abusivamente, por meio da pessoa jurídica da qual é membro, poderá haver a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. 238 CARPENA, op. cit., p. 383. SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito Brasileiro. São Paulo: LTR, 1999. p. 93. 240 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, dez-69, v. 58, n. 410, p. 16. 241 RODRIGUES, Simone Gomes. Desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 11, p. 07-20, jul.-set, 1994, p. 7. 242 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 405. 239 71 3.4.3 A desconsideração inversa Como dito, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é utilizada como instrumento para responsabilizar sócio por dívida formalmente imputada à sociedade. Contudo, o inverso também é possível: desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizá-la por dívida do sócio.243 Conforme assevera Fábio Ulhoa Coelho, Desconsideração inversa é o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio [...] A fraude que a desconsideração invertida coíbe é, basicamente, o desvio de bens. O devedor transfere seus bens para a pessoa jurídica sobre a qual detém absoluto controle. Desse modo, continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua propriedade, mas da pessoa jurídica controlada. Os seus credores, em princípio, não podem responsabilizá-lo executando tais bens.244 Na mesma direção, Ronaldo Roberto Reali afirma que: Na desconsideração inversa, como o próprio nome diz, a ordem de responsabilidade ocorre no sentido oposto, isto é, neste caso o que se busca é a responsabilidade perante os bens da sociedade, por ato praticado pelo sócio. Pela desconsideração tradicional busca-se responsabilizar o sócio por obrigações contraídas pela sociedade, na inversa, é esta última que responde por dívidas ou atos praticados pelo sócio, através da quebra de sua autonomia patrimonial.245 Diferente não é a posição de Márcio Souza Guimarães: A utilização de mecanismos para se furtar à responsabilidade, em virtude do avançado grau de degradação moral do ser humano, tem dado azo à utilização da desconsideração da personalidade jurídica para a tutela de interesses legítimos, invertendo o percurso da sua aplicação original. Em vez do sócio se utilizar da sociedade como escudo protetivo, passa a agir ostensivamente, escondendo seus bens na sociedade, ou seja, o sócio não mais se esconde, mas sim a sociedade é por ele ocultada. A terminologia desconsideração “inversa” surge com a possibilidade vislumbrada de se desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade para o alcance de bens 243 COELHO, 2003, p. 44-45. Idem, p. 45. 245 REALI, Ronaldo Roberto. A desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro (disregard of legal entity). Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 266, 30 mar. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5008>. Acesso em: 17 fev. 2008. 244 72 da própria sociedade, contudo, em decorrência de atos praticados por terceiros – sócios.246 Corroborando a tese da desconsideração inversa da personalidade jurídica, a jurisprudência pátria vem decidindo que: É possível a desconsideração da personalidade jurídica inversa, por meio da qual a pessoa jurídica é responsabilizada por obrigação do sócio, tendo em vista a necessidade de se evitar fraudes contra credores por meio da utilização do instituto da autonomia patrimonial.247 [...] Muito embora na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, parte-se do pressuposto que o sócio responde com seu patrimônio particular pela obrigação da empresa, o direito não pode se furtar a aplicação dessa teoria de forma inversa quando o devedor cria uma ficção jurídica para defender seu patrimônio particular ameaçado de alienação judicial por força de dívidas contraídas junto a terceiros.248 [...] Desconsideração da personalidade jurídica inversa. Pertinência. O direito não pode se furtar a aplicação dessa teoria quando o devedor cria uma ficção jurídica, caso em que o princípio da separação patrimonial deve ser superado por circunstâncias excepcionais, diante de prova de fraude por parte do sócio para desfrutar dos benefícios de sua posição, não sendo justificável que o devedor se esconda sob o manto da sociedade para fugir de sua responsabilidade e burlar a sua função social. Possibilidade do deferimento da penhora sobre as contas bancárias das empresas na proporção da participação societária do devedor.249 Exemplo muito freqüente que permite a desconsideração inversa é o do cônjuge que pretende se separar e se empenha no esvaziamento do patrimônio do casal, transferindo os bens para uma sociedade. Quando do advento do desfecho do matrimônio, a 246 GUIMARÃES, Márcio Souza. Aspectos modernos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 64, abr. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3996>. Acesso em: 17 fev. 2008. 247 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS. 3ª Turma Cível. AGI 20030020081731. Relator: Desembargador Vasquez Cruxên. Brasília, DF, 03 nov. 03, v.u., recurso parcialmente provido, DJ de 12.2.04, p. 46. 248 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. 12ª Câmara Cível. APC 1.0672.05.182169-8/0001(1). Relator: Desembargador Alvimar de Ávila. Belo Horizonte, MG, 13 set. 06, v.u., recurso improvido, DJ de 30.9.06. 249 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. 15ª Câmara Cível. AGI 2007.002.30467. Relatora: Desembargadora Helda Lima Meireles. Rio de Janeiro, RJ, 18 mar. 08, v.u., recurso parcialmente provido. 73 meação do cônjuge burlado restará reduzida a praticamente nada. Nesse desiderato, restou decidido: Separação Judicial. Reconvenção. Desconsideração da personalidade jurídica. Meação [...] É possível a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, usada como instrumento de fraude ou abuso à meação do cônjuge promovente da ação, através de ação declaratória, para que estes bens sejam considerados comuns e comunicáveis entre os cônjuges, sendo objeto de partilha.250 Dessa forma, verificados os pressupostos de sua incidência, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica pode ser utilizada como instrumento para responsabilizar sócio por dívida formalmente imputada à sociedade ou vice-versa, o que implica responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio. 3.4.4 A desconsideração indireta A desconsideração da personalidade jurídica também pode ser utilizada quando, diante da criação de constelações de sociedades coligadas, controladoras e controladas, uma delas se vale dessa condição para fraudar seus credores. Fala-se, então, em desconsideração indireta. Nessa hipótese, a desconsideração se aplica a toda e qualquer das sociedades que se encontre dentro do mesmo grupo econômico, para alcançar a efetiva fraudadora que está sendo encoberta pelas coligadas. Acerca da aplicação da desconsideração indireta da personalidade jurídica, Amanda do Nascimento Nóbrega esclarece que: Esta vertente da aplicação da teoria da desconsideração, recai sobre a formação de grupos societários, que absorvem a coligação de várias sociedades distintas, de forma a promover o seu controle conjunto, o que, de acordo com os doutrinadores modernos, vem a reclamar novas normas que as regulem, com o fim de proteger os direitos daqueles que forem incluídos nesse processo, uma vez que a desconsideração da personalidade jurídica para alcançar quem está por trás dela não se afigura suficiente, pois haverá outra ou outras integrantes do mesmo grupo que também têm o objetivo de encobrir algum fraudador. A vontade da sociedade controlada, coligada, integrante do grupo ou consórcio pode estar maculada pela do controlador efetivo.251 250 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. 8ª Câmara Cível. APC 1999.001.14506. Relatora: Desembargadora Letícia Sardas. Rio de Janeiro, RJ, 7 dez. 99, v.u., recurso improvido. 251 NÓBREGA, op. cit., p. 609. 74 A corroborar esse entendimento, Daniela Storry Lins afirma: A nosso ver, tomando em consideração a concepção em que se funda a desconsideração da personalidade jurídica, esta se vincula à existência de controle societário, a partir do momento em que a vontade da empresa muitas vezes identifica-se com a vontade de seu controlador, que pode, assim, aplica-la abusivamente, tornando-se imprescindível estabelecer in casu os exatos limites e efeitos da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.252 A jurisprudência, na mesma direção, posicionou-se no sentido de admitir a desconsideração da personalidade jurídica de sociedades que integram o mesmo grupo econômico, quando presentes os pressupostos de sua incidência: Pertencendo a pessoa jurídica embargante ao mesmo grupo econômico da executada e havendo ato lesivo ao direito do credor perpetrado no curso de ação judicial, independente do elemento subjetivo do agente, é legitima a desconsideração da personalidade jurídica da devedora para que os efeitos da execução alcancem as demais sociedades do grupo.253 [...] CIVIL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. EMPRESAS SOB O MESMO GRUPO ECONÔMICO. PRESENÇA DOS REQUISITOS. POSSIBILIDADE. A desconsideração da personalidade jurídica da empresa executada é medida que se impõe quando se observa a transferência dos bens entre as sociedades que se afiguram distintas apenas formalmente, mas o que se observa é a tentativa de frustrar o credor que não localiza bens passives à constrição para promover a execução.254 [...] Desconsideração da personalidade jurídica. Grupo econômico. Cabimento. 1) No caso em análise, configura-se o abuso de direito, na medida em que, de um lado, tem-se a Executada completamente debilitada e seu credor insatisfeito; e de outro, as demais empresas do grupo econômico distribuindo capital entre os sócios afortunados, sendo todas controladas por uma única pessoa, detentora da maior parte do capital social. 2) Com efeito, observa-se a utilização das sociedades à margem das situações para as quais o Direito previu sua existência e tutelou sua personalidade, tendo sido conduzidas com manobras que permitiram o isolamento econômico da Executada em relação às demais empresas, em detrimento de seu credor, enquanto o restante do 252 LINS, Daniela Storry. Aspectos polêmicos atuais da desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor e na Lei Antitruste. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002. p. 69. 253 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS. 2ª Turma Cível. APC 20070110017890. Relatora: Desembargadora Carmelita Brasil. Brasília, DF, 26 set. 07, v.u., recurso improvido, DJ de 2.10.07, p. 12. 254 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS. 4ª Turma Cível. APC 20050610108358. Relator: Desembargador Gilberto de Oliveira. Brasília, DF, 13 jun. 07, v.u., recurso improvido, DJ de 2.10.07, p. 128. 75 grupo permaneceu satisfatoriamente atuando no mercado. 3) Aplicação da doutrina da “disregard of legal entity” em sua feição clássica, tal como já era admitida pela jurisprudência pátria mesmo antes da promulgação do CDC.255 Desse modo, a desconsideração da personalidade jurídica será sempre possível quando restar configurado o abuso de direito ou a manipulação fraudulenta do instituto da pessoa jurídica, permitindo-se, assim, levantar o véu de toda e qualquer das sociedades que se encontre dentro do mesmo grupo econômico, para alcançar aquela sociedade que, encoberta pelas demais, utilizou-se da personalidade jurídica de forma indevida. 3.4.5 A desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro No direito positivo brasileiro, o primeiro dispositivo legal a se referir à desconsideração da personalidade jurídica é o Código de Defesa e Proteção do Consumidor, que assim dispõe: Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. [...] § 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Consoante lição de Fábio Ulhoa Coelho, os fundamentos para a desconsideração da personalidade jurídica em favor do consumidor são: [...] a) abuso de direito; b) excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação dos estatutos ou contrato social; c) falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade provocados por má administração. No tocante ao mencionado na letra a, é evidente a correspondência entre o dispositivo legal e a teoria da desconsideração. Mas os fundamentos 255 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. 4ª Câmara Cível. AGI 2006.002.01014. Relatora: Desembargadora Suimei Meira Cavalieri. Rio de Janeiro, RJ, 11 abr. 06, v.u., recurso provido. 76 referidos na letra b dizem respeito a tema societário diverso, acerca da responsabilidade do sócio ou do representante legal da sociedade por ato ilícito próprio, isto é, embora relacionado com a pessoa jurídica, o ato gerador de responsabilidade, nesse caso, pode ser imputado diretamente a quem incorreu na irregularidade (sócio ou representante legal), não representando a personalidade jurídica própria da sociedade nenhum obstáculo a essa imputação. Já os fundamentos agrupados pela letra c referem-se à responsabilidade por má administração, que é, igualmente, tema diverso de direito societário, em cuja sede a personalização da sociedade não impede o ressarcimento dos danos pelo administrador.256 E, acerca do § 5º do art. 28 do CDC, Fábio Ulhoa Coelho complementa: No tocante ao § 5º do art. 28 do CDC, note-se que uma primeira e rápida leitura pode sugerir que a simples existência de prejuízo patrimonial suportado pelo consumidor seria suficiente para autorizar a desconsideração da pessoa jurídica. Essa interpretação meramente literal, no entanto, não pode prevalecer por três razões. Em primeiro lugar, porque contraria os fundamentos teóricos da desconsideração. Como mencionado, a disregard doctrine representa um aperfeiçoamento do instituto da pessoa jurídica, e não a sua negação. Assim, ela só pode ter a sua autonomia patrimonial desprezada para a coibição de fraudes ou abuso de direito. A simples insatisfação do credor não autoriza, por si só, a desconsideração, conforme assenta a doutrina na formulação maior da teoria. Em segundo lugar, porque tal exegese literal tornaria letra morta o caput do mesmo art. 28 do CDC, que circunscreve algumas hipóteses do superamento da personalidade jurídica. Em terceiro lugar, porque essa interpretação equivaleria à eliminação do instituto da pessoa jurídica no campo do direito do consumidor, e, se tivesse sido esta a intenção da lei, a norma para operacionalizá-la poderia ser direta, sem apelo à teoria da desconsideração.257 Daí Fábio Ulhoa Coelho considerar que tais são os desacertos do dispositivo legal em questão que pouca correspondência se pode identificar entre ele e a elaboração doutrinária da teoria. Com efeito, adverte o autor: [...] entre os fundamentos legais da desconsideração em benefício dos consumidores, encontram-se hipóteses caracterizadoras de responsabilização de administrador que não pressupõem nenhum superamento da forma da pessoa jurídica. Por outro lado, omite-se a fraude, principal fundamento para a desconsideração. A dissonância entre o texto da lei e a doutrina nenhum proveito traz à tutela dos consumidores, ao contrário, é fonte de incertezas e equívocos.258 256 COELHO, 2003, p. 50. Idem, p. 51-52 258 Idem, p. 49. 257 77 O segundo dispositivo do direito brasileiro a fazer menção ao tema é o artigo 18, da Lei Antitruste (Lei n° 8.884/94): Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. Acerca do dispositivo em comento, Alexandre Couto Silva, em artigo doutrinário, assevera que: A lei antitruste (lei 8.884), em seu artigo 18, revelou-se uma adaptação do artigo 28 do Código Proteção e Defesa do Consumidor, reafirmando erroneamente, como hipóteses de aplicação da teoria, o excesso de poder, a falência ou estado de insolvência e o encerramento ou inatividade por má administração, permanecendo o abuso de direito como única hipótese justificadora da desconsideração da personalidade jurídica. Deve-se ressaltar que quando a sociedade é utilizada para obtenção de monopólio, a desconsideração pode muito bem ser aplicada para verificar a existência de abuso de poder econômico, com vista à proteção do interesse público.259 Para Fábio Ulhoa Coelho, no campo da tutela do livre mercado, inexistem dúvidas quanto à pertinência da aplicabilidade da teoria da desconsideração, podendo ser utilizada tanto na configuração de infração da ordem econômica, quanto na aplicação da sanção. Mas, por outro lado, “[...] como o legislador de 1994 praticamente reproduziu, no art. 18 da Lei Antitruste, a redação infeliz do dispositivo equivalente do Código de Defesa do Consumidor, acabou incorrendo nos mesmos desacertos.”260 Desse modo, complementa Coelho, “[...] a segunda referência legal à desconsideração no direito brasileiro também não aproveitou as contribuições da formulação doutrinária, perdendo consistência técnica.”261 A terceira referência legal à teoria da desconsideração encontra-se no artigo 4º, da Lei nº 9.605, de 12.2.98, que dispõe sobre a responsabilidade por lesões ao meio ambiente: “Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for 259 SILVA, Alexandre Couto. Desconsideração da personalidade jurídica: limites para sua aplicação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 780, p. 47-58, out., 2000, p. 55. 260 COELHO, 2003, p. 53. 261 Idem, ibidem. 78 obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.” Segundo Elida Séguin: O art. 4.º da LCA expressamente admite a desconsideração da personalidade jurídica sempre que ela for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do Meio Ambiente, conforme valor fixado na execução civil da sentença (art. 20 parágrafo único da LCA). Deve ser comprovada a fraude contra o credor e que a personalidade jurídica esteja sendo usada para salvaguardar os bens dos sócios. Provada a simulação, a disregard theory pode ser aplicada no caso de insuficiência do patrimônio da empresa, pois a responsabilidade da pessoa jurídica não exclui a da pessoa física, que da atividade da primeira tira proveito.262 Sobre o dispositivo em questão, Fábio Ulhoa Coelho pontifica que: Desta feita, não cabe criticar o legislador por confundir a desconsideração com outras figuras do direito societário, impropriedade em que incorreu ao editar o Código de Defesa do Consumidor e a Lei Antitruste. Mas não se pode, também, interpretar a norma em tela em descompasso com os fundamentos da teoria maior. Quer dizer, na composição dos danos à qualidade do meio ambiente, a manipulação fraudulenta da autonomia patrimonial não poderá impedir a responsabilização de seus agentes.263 Embora o Código Civil de 2002 não traga nenhum dispositivo com específica referência à desconsideração da personalidade jurídica, traz, todavia, uma norma que se destina a atender aos mesmos objetivos que nortearam a elaboração da disregard doctrine. É o artigo 50: Art. 50 Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. Insta ressaltar, a bem da verdade, que a doutrina e a jurisprudência sedimentaram o entendimento no sentido de que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica independe de qualquer previsão legislativa, valendo, nesse sentido, a advertência de Fábio Ulhoa Coelho: 262 SÉGUIN, Elida. Direito ambiental: nossa casa planetária. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 399. 263 COELHO, 2003, p. 53. 79 A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica independe de previsão legal. Em qualquer hipótese, mesmo naquelas não abrangidas pelos dispositivos das leis que se repartam ao tema (Código Civil, Lei do Meio Ambiente, Lei Antitruste ou Código de Defesa do Consumidor), está o juiz autorizado a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que ela for fraudulentamente manipulada para frustrar interesse de credor. Por outro lado, nas situações abrangidas pelo art. 50 do CC/2002 e pelos dispositivos que fazem referência à desconsideração, não pode o juiz afastar-se da formulação maior da teoria, isto é, não pode desprezar o instituto da pessoa jurídica apenas em função do desatendimento de um ou mais credores sociais. A melhor interpretação judicial dos artigos de lei sobre a desconsideração (isto é, os arts. 28 e § 5º do CDC, 18 da Lei Antitruste, 4º da Lei do Meio Ambiente e 50 do CC/2002) é a que prestigia a contribuição doutrinária, respeita a instituto da pessoa jurídica, reconhece a sua importância para o desenvolvimento das atividades econômicas e apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial quando necessário à repressão de fraudes e à coibição do mau uso da forma da pessoa jurídica.264 Conclui-se, dessa forma, que a desconsideração da personalidade jurídica não depende de previsão legal para ser aplicada, uma vez que, deixar de aplicá-la, a pretexto de inexistência de dispositivo legal expresso, significaria o mesmo que amparar a fraude e o abuso de direito.265 3.4.6 Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica Ante a ausência de legislação que discipline especificamente a matéria, discute-se ferrenhamente na doutrina e na jurisprudência qual o momento, bem como o procedimento, a ser utilizado para a efetivação da desconsideração da personalidade jurídica. É bem de ver que existem três correntes a esse respeito: (i) a desconsideração na fase de conhecimento do processo; (ii) a desconsideração por decisão no próprio processo de execução; e (iii) a desconsideração por meio da instauração de um incidente processual na fase de execução.266 Os adeptos da primeira corrente afirmam que os sócios ou administradores da sociedade, que o credor social pretende responsabilizar, devem participar da relação jurídica processual de conhecimento, a fim de lhes assegurar a efetiva observância aos 264 COELHO, 2003, p. 54. Idem, p. 37. 266 SANTIAGO, Edna Ribeiro. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica à luz do Código Civil de 2002 . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1701, 27 fev. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10986>. Acesso em: 17 set. 2008. 265 80 princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, não só em relação à existência ou não dos pressupostos autorizadores da desconsideração da personalidade jurídica, mas também no que se refere à existência e ao conteúdo da dívida objeto da lide.267 Afora isso, amparados pelo art. 472 do Código de Processo Civil,268 mormente pelos limites subjetivos da coisa julgada,269 sustentam que somente os sujeitos que participaram do processo de conhecimento podem sofrer os efeitos da sentença neste proferida, de modo que, se os sócios ou os administradores não integrarem o título judicial, o patrimônio destes jamais poderá ser atingido na fase de cumprimento da sentença.270 Em artigo doutrinário sobre a desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor, Genacéia da Silva Alberton, forte nessa corrente, abona ao posicionamento ora esposado: É necessário, porém, observados os termos do Código do Consumidor acerca da desconsideração, que seja mantida a defesa plena do demandado para que, ao se afastar o abuso no plano material, não se cometa uma ignomínia no plano processual. Por isso deve haver cautela do julgador em verificar se aqueles que, no pólo passivo, ficarão sujeitos aos efeitos da sentença, isto é, serão atingidos pela desconsideração, estão presentes na demanda, sob pena de que, em relação a eles, a sentença deixe de fazer coisa julgada (art. 472 do CPC).271 Acerca da necessidade de se respeitar os limites subjetivos da coisa julgada, quando da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, já se decidiu que: 267 SANTIAGO, op. cit. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, art. 472: “A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.” 269 Acerca dos limites subjetivos da coisa julgada, Cândido Rangel Dinamarco assevera que: “Há duas razões básicas pelas quais a autoridade da coisa julgada não deve ir e não vai além dos sujeitos processuais. A primeira delas é a garantia constitucional do contraditório, que ficaria maculada se um sujeito, sem ter gozado das oportunidades processuais inerentes à condição de parte, ficasse depois impedido de repor em discussão o preceito sentencial. A segunda, colhida do modo como a coisa julgada incide na vida das pessoas e das regras processuais sobre a legitimidade ad causam, consiste no desinteresse dos terceiros pelos resultados do processo, que não lhes afetam diretamente a esfera de direitos e obrigações.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. vol. 2, 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 317). 270 SANTIAGO, op. cit. 271 ALBERTON, Genacéia da Silva. A desconsideração da pessoa jurídica no Código do Consumidor. Ajuris: Revista da Associação dos Juizes do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, vol. 19, n. 54, maio, 1992, p. 175. 268 81 A desconsideração da personalidade jurídica com vistas à responsabilização pessoal dos sócios por eventuais fraudes ou atos ilícitos, que culminem na impossibilidade de quitação dos débitos da empresa, só é susceptível de decretação por meio de ação de conhecimento, em que se outorgue às partes a oportunidade de se defender e produzir as provas necessárias a tanto. Permitir-se a constrição judicial de bens dos sócios, com base em crédito representado por título executivo proveniente de cognição da qual não configuravam no pólo passivo, afronta aos limites subjetivos da coisa julgada (art. 472 do CPC), além de infringir os princípios do devido processo legal e da ampla defesa, constitucionalmente consagrados.272 [...] Nula, a teor do artigo 472, CPC, a decisão que estende a coisa julgada a terceiro que não integrou a respectiva relação processual. A desconsideração da pessoa jurídica é medida excepcional que reclama o atendimento de pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito em prejuízo de terceiros, o que deve ser demonstrado sob o crivo do devido processo legal.273 Com efeito, essa corrente sustenta que, a fim de assegurar o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, deve o credor social propor a demanda tanto em face da sociedade quanto de seus sócios ou administradores, formando-se um litisconsórcio passivo facultativo eventual,274 pois, assim, se ficar demonstrado, no transcorrer do processo, a utilização fraudulenta da personificação societária, poder-se-á, desde logo, decretar a responsabilidade patrimonial dos sócios que nela incorreram.275 Adepto dessa corrente, mas com posicionamento um pouco diverso, Fábio Ulhoa Coelho entende que a composição do pólo passivo da demanda depende da verificação do momento em que a manipulação fraudulenta da personificação societária ocorreu: [...] quando a fraude na manipulação da personalidade jurídica é anterior à propositura da ação pelo lesionado, a demanda deve ser ajuizada contra o agente que a perpetrou, sendo a sociedade a ser desconsiderada parte 272 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. 14ª Câmara Cível. AGI 1.0024.96.100231-8/001(1). Relator: Desembargador Elias Camilo. Belo Horizonte, MG, 10 ago. 06, v.u., recurso provido, DJ de 18.9.06. 273 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp 347.524/SP. Relator: Ministro César Asfor Rocha. Brasília, DF, 18 fev. 03, v.u., recurso provido, DJ de 19.5.03, p. 234. 274 A par dessa concepção, Flavia Lefrèvre Guimarães, ao dissertar sobre a desconsideração no âmbito do direito do consumidor, manifestou-se no sentido de que: “O consumidor deve ser cauteloso no momento de ajuizar a ação, e buscar, nos órgãos públicos competentes, os documentos societários da pessoa jurídica contra a qual vá litigar e procure, desde o início, vincular todos os possíveis responsáveis, previstos nos parágrafos do art. 28, ao resultado da sentença, fazendo uso dos institutos processuais que regulam o litisconsórcio, a fim de garantir um grau de aproveitamento e otimização do processo.” (GUIMARÃES, Flavia Lefrèvre. Desconsideração da personalidade jurídica no Código do Consumidor: aspectos processuais. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 149). 275 SANTIAGO, op. cit. 82 ilegítima. Por outro lado, se o autor teme eventual frustração ao direito que pleiteia contra uma sociedade empresária, em razão de manipulação fraudulenta da autonomia patrimonial no transcorrer do processo, ele não pode deixar de incluir, desde o início, no pólo passivo da relação processual, a pessoa ou as pessoas sobre cuja conduta incide o seu fundado temor. Nesse caso, o agente fraudador e a sociedade são litisconsortes.276 Por outro lado, os adeptos da segunda corrente sustentam que a desconsideração da personalidade jurídica pode ser deferida, por decisão interlocutória, no próprio processo de execução ou no cumprimento da sentença, dispensando-se a propositura de ação autônoma, uma vez que os sócios ou administradores, alcançados pela decisão, poderão interpor, no momento oportuno, todas as medidas cabíveis na defesa de seus direitos e interesses277, não se prosperando, assim, a alegação de ofensa aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Nesse diapasão, já se decidiu que: A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal. Verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o Juiz, incidentemente no próprio processo de execução (singular ou coletiva), levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja terceiros envolvidos, de forma a impedir a concretização de fraude à lei ou contra terceiros. Os terceiros alcançados pela desconsideração da personalidade jurídica da falida estão legitimados a interpor, perante o próprio juízo falimentar, os recursos tidos por cabíveis, visando a defesa de seus direitos.278 [...] Esta Corte Superior tem decidido pela possibilidade da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica nos próprios autos da ação de execução, sendo desnecessária a propositura de ação autônoma.279 [...] Pacífico o entendimento no sentido de possibilitar ao juízo da execução a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que prescinde de ação autônoma, para buscar no patrimônio dos sócios a satisfação da obrigação inadimplida pela sociedade empresária.280 276 COELHO, 2003, p. 55. SANTIAGO, op. cit. 278 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. RMS 12.872/SP. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, DF, 24 jun. 02, v.u., recurso improvido, DJ de 16.12.02, p. 306. 279 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp 331.478/RJ. Relator: Ministro Jorge Scartezzini. Brasília, DF, 24 out. 06, v.u., recurso parcialmente conhecido e, nesta parte, provido, DJ de 20.11.06, p. 310. 280 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. 12ª Câmara Cível. APC 70018535385. Relator: Desembargador Dálvio Leite Dias Teixeira. Porto Alegre, RS, 26 abr. 07, v.u., recurso improvido, DJ de 9.5.07. 277 83 [...] Em homenagem ao princípio da celeridade e da efetiva prestação jurisdicional, é perfeitamente possível a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em sede de execução, sendo, pois, prescindível a propositura de ação autônoma.281 [...] A providência prescinde de ação autônoma. Verificados os pressupostos e afastada a personificação societária, os terceiros alcançados poderão interpor, perante o juízo falimentar, todos os recursos cabíveis na defesa de seus direitos e interesses.282 Uma terceira corrente vem sustentando que a desconsideração da personalidade jurídica deve se dar por meio da instauração de um incidente processual no curso do processo de execução283. Fredie Didier Jr., em abono a esse posicionamento, pontifica que: Também entendemos possível a citação do sócio já no processo de execução, desde que se instaure um incidente cognitivo – o que não é raro nem esdrúxulo – no processo executivo, para que se apure, em contraditório, o preenchimento dos requisitos legais que autorizam a aplicação da teoria, bem como se lhe permita o exercício da sua ampla defesa.284 Insta ressaltar que, no intuito de estabelecer diretrizes, bem como de acabar com a multiplicidade de posicionamentos acerca da forma e do momento de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, foi apresentado, pelo Deputado Ricardo Fiúza, o Projeto de Lei nº 2.426/2003, que, uma vez aprovado, preencherá a lacuna existente no ordenamento jurídico pátrio acerca da matéria. 281 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS. 3ª Câmara Cível. AGI 59701-4/180 (200704606733). Relator: Desembargador Felipe Batista Cordeiro. Goiânia, GO, 11 mar. 08, v.u., recurso improvido, DJ de 16.4.08, p. 70. 282 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp 228.357/SP. Relator: Ministro Castro Filho. Brasília, DF, 9 dez. 03, v.u., recurso provido, DJ de 2.2.04, p. 332. 283 SANTIAGO, op. cit. 284 DIDIER JR., Fredie. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do CC-2002). In: Regras processuais no novo código civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 07. 84 4 A SOCIEDADE LIMITADA Originária da Alemanha, onde nasceu por força da Lei de 20 de abril de 1892 (Gesellschaft mit beschränkter Haftung), a sociedade limitada se tornou a mais comum em solo brasileiro, ganhando a preferência de micros e pequenos empreendedores e investidores,285 pois, além de oferecer uma estrutura bem mais simplificada que a sociedade por ações, ela também fornece um sistema apto a limitar a responsabilidade de seus sócios.286 Cuidar-se-á, neste capítulo, sobre os aspectos mais relevantes da sociedade limitada, tais como a sua natureza jurídica, a forma de sua constituição, os direitos e deveres de seus sócios, bem como, quanto a estes, a limitação da responsabilidade a eventuais insucessos do negócio. 4.1 Conceito e natureza jurídica A sociedade limitada, em seu atual conceito no direto brasileiro, é o “[...] tipo social em que o capital é dividido em quotas iguais ou desiguais, e a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, respondendo todos solidariamente pela integralização do capital social.”287 Segundo o saudoso Professor Fran Martins, “Sociedades limitadas são aquelas formadas por duas ou mais pessoas, cuja responsabilidade é identificada pelo valor de suas quotas, porém todos se obrigam solidariamente em razão da integralização do capital social.”288 Waldo Fazzio Júnior, por sua vez, formula um conceito-síntese que contempla “[...] a sociedade limitada como a pessoa jurídica constituída por sócios de responsabilidade limitada à integralização do capital social, individualizada por nome empresarial que contém o adjuntivo limitada.”289 No que se refere à natureza jurídica, discutiu-se, ferrenha e irreconciliavelmente, a natureza intuitu personae (sociedade de pessoas) ou capitalista 285 NEGRÃO, op. cit., p. 350. TOMAZETTE, 2004, p. 153. 287 SIMÃO FILHO, Adalberto. A nova sociedade limitada. São Paulo: Manole, 2004. p. 3. 288 MARTINS, op. cit., p. 238. 289 FAZZIO JÚNIOR, 2005, p. 194. 286 85 (sociedade de capitais)290 da sociedade limitada. Hodiernamente, todavia, o entendimento consagrado dá-se no sentido de considerar a sociedade limitada de natureza híbrida, porque, dependendo da vontade dos sócios, ela pode ser tanto de pessoas quanto de capital.291 A esse respeito, Maria Bernadete Miranda preleciona que: As sociedades limitadas poderão ser de capital ou de pessoas, conforme esteja prevista em seu contrato social a possibilidade ou não de livre cessão das quotas, sem a anuência dos demais sócios. Portanto, somente consultando-se o contrato social será possível saber se a sociedade limitada é de pessoas ou de capital, o que se mostra determinante para a penhora da quota social. Daí a razão das sociedades limitadas serem consideradas híbridas.292 Desse modo, a sociedade limitada pode ser de pessoas ou de capital, dependendo do que dispuser o contrato social. Todavia, se for impossível concluir a natureza da sociedade limitada a partir da análise de seu contrato social, deve-se considerá-la de pessoas, em virtude da incidência do Código Civil.293 4.2 Da constituição da sociedade limitada: o contrato social Cabe ressaltar, preambularmente, que existem várias teorias acerca do ato constitutivo da sociedade, destacando-se a teoria anticontratualista, a teoria do ato corporativo, a teoria da instituição, a teoria contratualista e a moderna teoria do contratoorganização.294 Apesar dos entendimentos em contrário, a maior parte da doutrina comercialista295 adotou a tese aprimorada por Tullio Ascarelli, de que a sociedade resultada de contrato, de natureza plurilateral. 290 A respeito das sociedades de pessoas e de capitais, vide item 2.3.1 deste trabalho. Destacando-se, dentre outros, REQUIÃO, op. cit., p. 488-489; COELHO, 2003, p. 370-376; NEGRÃO, op. cit., p. 242. 292 MIRANDA, op. cit., p. 14. 293 COELHO, 2003, p. 376. 294 Sobre a moderna doutrina do contrato-organização, vide item 5.1 deste trabalho. 295 Nesse sentido, adotando e corroborando a tese do contrato plurilateral: REQUIÃO, op. cit., p. 382384; CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil: parte especial – do Direito de empresa – artigos 1.052 a 1.195. vol. 13, São Paulo: Saraiva, 2003. p. 55; ABRÃO, Nelson. Sociedades limitadas. 9. ed. rev. amp. e atual. por Carlos Henrique Abrão. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 50; LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas. 5. ed. atual. e amp. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 78. 291 86 Nesse diapasão, Waldo Fazzio Júnior assevera que o “[...] contrato conceptivo de sociedade empresária é plurilateral, aberto e instrumental, direcionado à implementação de uma pessoa jurídica que tem por fito a prática profissional da atividade econômica.”296 Nelson Abrão, em lição esclarecedora, destaca que o contrato plurilateral se caracteriza: a) pela possibilidade da participação de mais de duas partes; b) pelo fato de que, quanto a todas essas partes, decorrem do contrato quer obrigações de um lado, quer direitos do outro. O contrato plurilateral se distingue substancialmente dos outros porque, enquanto nestes uma das partes está defronte à outra como quem exige prestação em troca de contraprestação, naquele as partes estão como que uma ao lado da outra, não trocando, mas carreando paralelamente prestações para um fim comum. Ademais, no pacto societário, a anulabilidade ou anulação da manifestação da vontade de um sócio inquina apenas esta, não atingindo a validade do contrato.297 No contrato plurilateral, dessa forma, uma parte está ao lado da outra, contratando para a realização do fim comum,298 sendo que todas as partes são titulares de direitos e obrigações para com todas e não apenas para com a outra. Ademais, o inadimplemento da obrigação de uma das partes não importa necessariamente o desfazimento da sociedade, pois atinge somente a própria parte inadimplente, mantendo-se íntegro o vínculo social em relação aos demais, se seu objetivo continuar viável.299 Por outro lado, assentado que a sociedade limitada se constitui por um contrato, denominado contrato social,300 sujeita-se este a certos requisitos de validade, bem como a determinados pressupostos de existência, sobre os quais passa-se a discorrer. 296 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Sociedades limitadas: de acordo com o Código Civil de 2002. São Paulo: Atlas, 2003. p. 65. 297 ABRÃO, op. cit., p. 50. 298 A esse respeito, Amador Paes de Almeida destaca que: “O contrato de sociedade comercial tem uma característica que o distingue fundamentalmente dos demais contratos. Com efeito, executando o conjugal, os contratos em geral pressupõem vontades antagônicas, como ocorre, por exemplo, na compra e venda, em que o comprador pretende o objeto, e o vendedor, o dinheiro. As partes têm, portanto, interesses divergentes. No contrato de sociedade os interesses são convergentes, as vontades caminham paralelamente, sendo fixado, por isso, objetivo comum.” (ALMEIDA, op. cit., p. 15). 299 DORIA, op. cit., p. 162; CASTRO, op. cit., p. 266. 300 Segundo Fábio Ulhoa Coelho, “Uma característica do contrato social está no efeito de criação de um novo sujeito de direito (a sociedade limitada). Esse sujeito, de imediato, passa a titularizar direitos e ter deveres relativamente aos sócios. O contrato social é espécie de ato constitutivo de pessoa jurídica, e apresenta a particularidade marcante do gênero: os participantes do ato assumem obrigações e titularizam direitos, uns perante os outros (como em qualquer negócio jurídico), mas, também, criam um novo sujeito (a pessoa jurídica), com o qual passam a manter, de imediato, vínculos obrigacionais, como devedores ou credores.” (COELHO, 2003, p. 399). 87 4.2.1 Requisitos de validade do contrato social Os requisitos imprescindíveis à validade do contrato social são classificados pela doutrina em duas ordens: i) requisitos comuns ou genéricos de validade, que se aplicam aos negócios jurídicos de um modo geral, inclusive ao contrato social; e ii) requisitos específicos de validade, que dizem respeito exclusivamente ao contrato social (contrato plurilateral). 4.2.1.1 Requisitos comuns ou genéricos de validade do contrato social O contrato social, para ser válido em sua inteireza, deve obedecer às regras comuns aos negócios jurídicos e, por conseguinte, pressupõe a) consenso; b) agente capaz; c) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e d) forma prescrita ou não defesa em lei. Continuadamente, tem-se: (I) Consenso: na lição de Rubens Requião, “O contrato é fruto da vontade. A pessoa para se obrigar deve manifestá-la livremente.”301 Deveras, o elemento volitivo (consenso) é base e fundamento do ato, sua razão de ser, a alma do contrato social. Mas, somente a presença da vontade não basta para validar o ato, porque, além de existir, ela não pode estar contaminada por quaisquer vícios. Nessa direção, o Prof. Washington de Barros Monteiro preleciona que: [...] negócio jurídico é manifestação da vontade tendente a criar, modificar ou extinguir um direito. A vontade é, pois, base e fundamento do ato, sua razão de ser, a alma do negócio jurídico. Para que este validamente exista, indispensável é a presença do elemento volitivo. Mas ainda, é necessário que esse elemento, além de ter existido, haja funcionado normalmente. Só então o ato produz os efeitos jurídicos almejados pelas partes.302 Com efeito, na celebração do contrato social, há casos em que a vontade existe, mas ela se encontra contaminada por alguns dos vícios do consentimento (erro ou ignorância, dolo, coação ou violência, estado de perigo e lesão). Em outros casos, a vontade 301 REQUIÃO, op. cit., p. 397. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: parte geral. vol. 1, 40. ed. rev. e atual. por Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto, São Paulo: Saraiva, 2005. p. 225. 302 88 pode existir e funcionar normalmente, mas ela se desvia da lei, ou da boa-fé, e orienta-se no sentido de prejudicar terceiros, ou de infringir o direito, surgindo, assim, os vícios sociais (simulação e fraude contra credores). A esse respeito, Washington de Barros Monteiro pontifica que: [...] dentre esses defeitos, uns se manifestam diretamente sobre a vontade, criando irredutível oposição entre o propósito íntimo do agente e sua expressão, verbal ou escrita. São eles o erro e a ignorância, o dolo e a coação ou violência, além do estado de perigo e a lesão. Os outros, simulação e fraude contra credores, rigorosamente falando, não são vícios da vontade. Exprimindo-nos com mais precisão, diríamos que são vícios sociais, que comprometem também a ordem jurídica, pela deliberada afronta à lisura, à honestidade e à regularidade do comércio jurídico. Mas tanto aqueles como estes têm a mesma força de condenação, no sentido de induzir a anulabilidade do ato jurídico.303 Já se mencionou e enfatiza-se que a defesa, neste trabalho, das sociedades fictícias ou de favor, hipótese de negócio indireto, em nada se confunde com as hipóteses em que a sociedade é simulada com o objetivo de dar operatividade a fraude. No primeiro caso, a sociedade é válida, porque lícito é o negócio jurídico que a constitui. Por outro lado, no segundo caso, o contrato que constituiu a sociedade estará fadado à nulidade, cuja decretação corresponderá à própria extinção da pessoa jurídica, ou, dependendo do caso, em benefício da sua preservação, a desconsideração da personalidade jurídica restará de toda autorizada. Mas tudo isso é matéria que será melhor discutida no último capítulo deste estudo. (II) Capacidade: nos termos do art. 104, I, do Código Civil, a validade do contrato social, negócio jurídico que é, requer agente capaz304, isto é, pessoa capaz de praticar todos os atos da vida civil. A respeito da capacidade do agente, Américo Luís Martins da Silva assevera que: Todo negócio jurídico deve pressupor, obrigatoriamente, agente capaz, isto é, pessoa física que possa praticar todos os atos da vida civil ou pessoa jurídica com personalidade jurídica e regularmente representada, apta a realizar o negócio jurídico. As regras da capacidade aplicam-se 303 MONTEIRO, op. cit., p. 226. A esse respeito, Dylson Doria preleciona que: “As sociedades comerciais podem ser formadas de pessoas físicas ou jurídicas. Com efeito, os sócios, denominação que se empresta às partes de um contrato de sociedade, devem possuir capacidade jurídica para a declaração de vontade no ato constitutivo. Essa capacidade pauta-se pelas normas de Direito Civil, pois a capacidade comercial não é diversa da capacidade civil.” (DORIA, op. cit., p. 162). 304 89 indistintamente aos negócios jurídicos unilaterais, bilaterais e plurilaterais, incluindo os contratos de sociedade mercantil.305 (grifo do autor) Quanto à incapacidade dos menores, Fábio Ulhoa Coelho esclarece que: “O menor – assistido ou representado na forma da lei civil – pode ser sócio de sociedade limitada, se o capital estiver totalmente integralizado e não lhe for atribuída a função de gerente.”306 Importante ratificar307 que a incapacidade não se confunde com o impedimento, de tal modo que a pessoa impedida de exercer a atividade de empresário não é incapaz, mas pratica irregularmente atos válidos. A respeito dessa distinção, Caio Mario da Silva Pereira doutrina que, além das incapacidades genéricas, [...] a lei prevê ainda motivos específicos, que obstam a que o agente, sem quebra de sua capacidade civil, realize determinados negócios jurídicos. A fim de não colidirem tais restrições com a teoria das incapacidades, é preferível designá-las como “impedimentos”. Com o nome, pois, de impedimentos ou de incapacidades especiais, é positiva a restrição que a lei impõe a uma pessoa, em dadas circunstâncias, quanto à realização de certos atos, vigorantes apenas para aquele caso específico, enquanto o agente guarda a sua liberdade de agir em tudo o mais. O requisito subjetivo de validade dos negócios jurídicos envolve, pois, além da capacidade geral para a vida civil, a ausência de impedimento ou de restrição para o negócio em foco: é necessário, portanto, que o agente, além de capaz, não sofra ainda diminuição instituída especificamente para o caso. Quando a lei diz que o tutor não pode, mesmo em hasta pública, adquirir bens do pupilo, cria um impedimento que não importa em incapacidade geral, mas que atinge apenas o ato de aquisição ex ratione personarum.308 (grifos do autor) (III) Objeto lícito, possível, determinado ou determinável: o objeto social, à luz do inciso II, do artigo 104, do Código Civil, deve ser lícito, possível, determinado ou determinável, sob pena de, se assim não o for, o contrato social ser declarado nulo309, nos termos do artigo 166, inciso II, do mesmo diploma legal. Quanto à licitude do objeto social, Américo Luís Martins da Silva preleciona que “Todas as atividades que não violarem a lei, a ordem pública, os bons 305 SILVA, Américo Luís Martins da. Sociedades empresariais. vol. 1, Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 74. 306 COELHO, 2003, p. 385. 307 Cf. item 2.2.2 deste trabalho. 308 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: introdução ao Direito Civil. Teoria geral de Direito Civil. vol. 1, 21. ed. rev. e atual. por Maria Celina Bodin de Moraes, Rio de Janeiro, 2006. p. 100. 309 A licitude, possibilidade e determinação do objeto, segundo Fábio Ulhoa Coelho, “[...] não comporta maiores considerações: é nula a sociedade contratada para a exploração de atividade ilícita (comércio de narcóticos, lenocínio etc.), impossível (venda de entusiasmo, p. ex.) ou sem determinabilidade.” (COELHO, 2003, p. 385). 90 costumes e o contrato social não modificado anteriormente podem ser objeto da sociedade mercantil.”310 Deveras, consoante o disposto no inciso I, do artigo 35, da Lei nº 8.934/94, as Juntas Comerciais não arquivam os contratos sociais “[...] que não obedecerem às prescrições legais ou regulamentares ou que contiverem matéria contrária aos bons costumes ou à ordem pública, bem como os que colidirem com o respectivo estatuto ou contrato não modificado anteriormente.”311 Além de ser lícito o objeto social, ele também deve ser possível, determinado ou determinável, valendo, a esse respeito, a lição de Américo Luís Martins da Silva: Por objeto possível entende-se aquele objeto suscetível de ser praticado ou relacionado a coisas efetivamente existentes, isto é, aquele que pode ser suscetível de mercancia. O objeto impossível são coisas que se acham fora do comércio por serem individualmente inapropriáveis [...] Dentro do tema objeto possível, há que ser esclarecido a respeito da distinção entre possibilidade física e possibilidade jurídica. A possibilidade física diz respeito às coisas permitidas pela natureza (objeto possível propriamente dito). A possibilidade jurídica refere-se ao que não for contrário às leis (objeto lícito). Já objeto social determinado é aquele objeto que já foi determinado, definido, fixado ou estabelecido, ou seja, aquele que é dado ou certo. Objeto determinável é aquele que, apesar de no presente ainda não estar definido ou estabelecido (objeto incerto), ele pode ser perfeitamente definido ou determinado em qualquer momento futuro.312 (grifos do autor) (IV) Forma prescrita ou não defesa em lei: a forma, segundo Clóvis Beviláqua, “[...] dá existência ao ato jurídico. Sem ela, não passará de uma ação humana estranha à vida jurídica.”313 Na seara do contrato social, a forma adequada “[...] é a escrita, e 310 SILVA, Américo, op. cit., p. 77. Ainda quanto à licitude do objeto social, Américo Luís Martins da Silva lembra que ela “[...] está diretamente ligada à incomercialidade de certos bens em virtude de o direito as subtrair da circulação mercantil. A incomercialidade, no caso, abrange as coisas individualmente apreensíveis ou apropriáveis, que a lei declara inalienáveis, por considerações econômicas, de defesa social ou de proteção aos proprietários, como os imóveis dos incapazes, cuja alienação só em determinadas circunstâncias e mediante certas formalidades pode ser realizada. A licitude diz respeito, também, a incomercialidade em virtude dos bons costumes (objeto honesto ou não ofensivo a moral) e da ordem pública. Nesta categoria se incluem as coisas que estão fora do comércio, por ser a disposição delas contra a moral e a ordem necessária a vida em sociedade. Assim é que o homem tem a posse do próprio corpo, mas não pode validamente dispor de uma parte dele de maneira a permanecer um inválido, nem da própria vida.” (grifos do autor) (Idem, ibidem). 312 Idem, p. 78. 313 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. ed. histórica, Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975. p. 329. 311 91 os sócios podem optar sempre pelo instrumento público ou particular.”314 Isso porque, conforme ensina Fábio Ulhoa Coelho, “As sociedades contratadas oralmente são irregulares, e não podem ser provadas pelos sócios. Somente terceiros têm o direito de provar a existência de sociedade de fato entre duas ou mais pessoas, para responsabilizá-las solidariamente.”315 4.2.1.2 Requisitos específicos de validade do contrato social Além dos requisitos comuns de validade, que informam os negócios jurídicos em geral, para os contratos sociais surgem outros requisitos de validade específicos, próprios das sociedades empresárias. São eles: a) contribuição dos sócios para a constituição do capital social; e b) co-participação dos sócios nos lucros e perdas. Grande parte da doutrina comercialista316 enumera como requisitos específicos de validade do contrato social, além destes, aqueles pressupostos referentes à existência da sociedade, quais sejam, a pluralidade de sócios e a affectio societatis. No entanto, neste trabalho, prefere-se tratá-los distintamente, uma vez que a falta de um requisito de validade conduz à invalidação do contrato social, se comum, ou de suas cláusulas, se específico, e a ausência de um pressuposto de existência leva, não à invalidação, mas à dissolução da sociedade.317 (I) Contribuição dos sócios para a constituição do capital social: nos termos do inciso III, do artigo 997, do Código Civil, o capital social318 da sociedade deve ser expresso em moeda corrente, podendo compreender qualquer espécie de bens, suscetíveis de 314 COELHO, 2003, p. 393. Idem, ibidem. 316 Nesse sentido: REQUIÃO, op. cit., p. 400, afirma que: “Além dos elementos que informam o contrato em geral, para os contratos sociais surgem requisitos específicos próprios das sociedades comerciais, de que podemos enumerar os seguintes: a) pluralidade de sócios; b) constituição do capital; c) affectio societatis; d) participação nos lucros e nas perdas.” No mesmo sentido: SILVA, Américo, op. cit., p. 79, pontifica: “Além dos elementos ou requisitos que devem estar presentes nos contratos em geral, para os contratos sociais das sociedades mercantis há que se satisfazer requisitos específicos e exclusivos deste tipo de negócio jurídico mercantil. Tais elementos ou requisitos específicos são os seguintes: a) pluralidade de sócios; b) constituição do capital; c) “affectio societatis”; d) participação nos lucros e nas perdas.” (grifos do autor). 317 COELHO, 2003, p. 388. 318 “Ao contrário do patrimônio, que é variável, o capital social é fixo, pois é uma cifra contábil constante do contrato social. O valor do capital social consta do passivo porque representa um débito da sociedade para com os sócios, e que, em princípio, não pode ser saldado enquanto a sociedade existir. Por isso é que o capital é registrado no balanço como passivo não exigível.” (LUCCA et al, op. cit., 2005. p. 188). 315 92 avaliação pecuniária. Por sua vez, o artigo 1.004, do mesmo diploma legal, prescreve que “Os sócios são obrigados, na forma e prazo previstos, às contribuições estabelecidas no contrato social, e aquele que deixar de fazê-lo, nos trinta dias seguintes ao da notificação pela sociedade, responderá perante esta pelo dano emergente da mora.” O capital social, constante do contrato, segundo lição de Newton de Lucca et al, “[...] é a quantia correspondente ao valor dos bens ou direitos que os sócios transferiram ou se obrigaram a transferir à sociedade, com a finalidade de fixar a limitação das suas responsabilidades com a garantia dos credores.”319 Na mesma direção, Mauro Rodrigues Penteado assevera que o capital social é [...] um instituto destinado a tornar possível a limitação da responsabilidade, mediante um conjunto de normas inderrogáveis, inclusive de natureza penal, que visam tutelar aquele patrimônio especial, subtraído do conjunto geral de bens dos sócios, para formar a base patrimonial da sociedade. É o capital social, como salientou Ascarelli, um ponto de referência, que oferece a terceiros uma tutela no tocante à gestão da empresa, propiciando de outra parte, por meio da publicidade, a identificação de suas relações com o patrimônio social de que é titular a sociedade, este último em contínuo processo de mutação.320 Dessa forma, pode-se dizer que o capital social é a soma representativa da contribuição dos sócios, e tem por finalidade limitar a responsabilidade do patrimônio pessoal destes em relação às obrigações sociais. Por conta disso, todos os sócios devem contribuir para a formação do capital social, seja pela entrega de dinheiro ou de bens. Todavia, deve-se ressaltar que, se os sócios, por um lado, são obrigados a contribuir para a formação do capital social, não existe, por outro lado, a exigência legal de um percentual mínimo de participação. Assim sendo, é perfeitamente lícito, por exemplo, um determinado sócio subscrever 99,99% do capital social e seu sócio apenas 0,01%. Nessa hipótese, a participação diminuta daquele que subscreveu e integralizou apenas 0,01% do capital social não influência, de modo algum, no seu status de sócio. (II) Co-participação dos sócios nos lucros e perdas: o Código Comercial, em seu artigo 228, dispunha que a sociedade que atribuía somente a um sócio a totalidade dos lucros ou das perdas era nula. 319 LUCCA et al, op. cit., p. 188. PENTEADO, Mauro Rodrigues. Aumento de capital das sociedades anônimas. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 13. 320 93 O artigo 1.008, do Código Civil, tem regra semelhante, embora mais restrita, uma vez que não declara nula a sociedade, mas “[...] a estipulação contratual que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas.” Assim, como bem destaca Ricardo Negrão, “[...] é da essência do contrato de constituição a participação nos lucros e perdas da sociedade por parte de cada um dos sócios, sendo nula a atribuição da totalidade deles a apenas um dos sócios.”321 É de se ressaltar que a lei veda a chamada cláusula leonina,322 na qual os lucros ou perdas corram a favor ou a cargo de um único sócio, mas não veda a distribuição diferencial, isto é, a distribuição dos lucros, tanto como a das perdas, pode ser efetuada de forma não igualitária, fora da proporção da contribuição dos sócios para a formação do capital social, de tal modo que, por exemplo, pode-se conceber àquele que contribuiu com parcela menor quinhão maior nos lucros, ou vice-versa.323 4.2.2 Pressupostos de existência do contrato social Segundo boa parte da doutrina, o contrato social, para existência da sociedade, deve atender, no direito positivo brasileiro, a dois pressupostos: a) a pluralidade de sócios; e b) a affectio societatis.324 Conforme se verá no próximo capítulo deste trabalho, mas deixando-se algumas notas desde já, em face da admissibilidade, no Direito brasileiro, da subsidiária integral, da empresa pública unipessoal e da unipessoalidade incidental temporária, a exigência da pluralidade de sócios, como pressuposto de existência da sociedade, vem caindo 321 NEGRÃO, op. cit., 2006, p. 294. Segundo Fábio Ulhoa Coelho, “A cláusula que nega ao sócio parte dos sucessos da sociedade é chamada de leonina. Aliás, a expressão cláusula leonina, atualmente de larga utilização do direito dos contratos, nasce no societário, a partir da regra de repulsa à disposição que implique exclusão de sócio dos resultados sociais. Inspirou-a uma fábula de Fedro – fabulista latino que viveu de 30 a.C. a 44 –, em que o leão, após se associar à vaca, à cabra e à ovelha para caçarem juntos, apropria-se sozinho dos despojos da caça.” (COELHO, 2003, p. 387). 323 REQUIÃO, op. cit., p. 409; CASTRO, op. cit., p. 278; SILVA, Américo, op. cit., p. 98-99. 324 Nesse sentido, Fábio Ulhoa Coelho afirma que: “Para que a sociedade exista, o contrato social deve atender, no direito brasileiro, a dois pressupostos: a) a pluralidade dos sócios; b) a affectio societatis. Diferem essas condições dos requisitos de validade, anteriormente referidos. Isso porque a falta de um pressuposto de existência não conduz à invalidação do contrato social ou de suas cláusulas, mas à dissolução da sociedade. São situações jurídicas diferentes, já que a invalidação pode, se absoluta a nulidade, comprometer todos os efeitos entre os sócios decorrentes do contrato social, enquanto a dissolução nunca importa a desconstituição de efeitos pretéritos do contrato.” (COELHO, 2003, p. 388). 322 94 por terra, mormente porque não passa de um mero resquício de épocas passadas, quando a sociedade era eminentemente contratual.325 Todavia, o Código Civil de 2002, embora tenha optado por um sistema legislativo centrado na empresa, insistiu, de forma paradoxal, no caráter eminentemente contratual e na pluralidade de sócios para a constituição de sociedade, razão pela qual passase a discorrer sobre os pressupostos de existência do contrato social, não obstante o descaso do legislador brasileiro. (I) Pluralidade de sócios: o artigo 981 do Código Civil de 2002 diz que: “Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.” (grifos nosso) Com efeito, da leitura do citado artigo, conclui-se que o direito positivo brasileiro, ao contrário do que ocorre em muitos outros países, não se afeiçoa à sociedade limitada originariamente unipessoal, isto é, de uma só pessoa326, embora se reconheça, como exceção, a unipessoalidade originária tanto na constituição da sociedade subsidiária integral (Lei nº 6.404/76, art. 251) quanto na da empresa pública unipessoal (Decreto-Lei nº 200/67, art. 5º, II), bem como a unipessoalidade incidental temporária (Código Civil, art. 1.033, IV e Lei nº 6.404/76, art. 206, I, ‘d’). A ausência de uma disciplina normativa para a sociedade unipessoal limitada, no Código Civil de 2002, foi sobremodo criticada pela doutrina pátria, sendo oportuno destacar, neste diapasão, as sábias palavras de Carlos Antônio Goulart Leite Júnior: É incompreensível que, em pleno século XXI, o legislador brasileiro mantenha os olhos vendados não só para as soluções adotadas com perspectiva de globalização, mas sobretudo para a realidade socioeconômica brasileira, a necessidade de regulamentar a sociedade unipessoal de fato e a notória conveniência de estabelecer no texto da lei as soluções amplamente debatidas e consagradas no clamor da doutrina.327 325 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998. p. 45. 326 A esse respeito, Fran Martins assevera: “A legislação nacional não consagrou e portanto deixou de abraçar a tipologia empresária individual, na medida em que exige nas sociedades de forma geral a presença de pelo menos dois (2) sócios, possibilitando que na hipótese de retirada, morte ou transformação em firma individual, se obedeça ao prazo de um ano para regularização do contrato societário.” (MARTINS, op. cit., item 154, p. 163). 327 LEITE JÚNIOR, Carlos Antônio Goulart. Affectio Societatis - na sociedade civil e na sociedade simples. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 92. 95 Daí Newton de Lucca, com razão, concluir que: À míngua de uma autorização legislativa para que possa proceder à indispensável separação entre o patrimônio pessoal e aquele destinado à atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, o empresário individual vê-se compelido a ludibriar o legislador que não soube atender a essa sua necessidade básica... Cria, então, ainda que a contragosto, só para satisfazer a idolatria das formas preconizada pela lei, uma sociedade puramente fictícia, apenas para poder constituir um patrimônio da pessoa jurídica - correspondente aos limites toleráveis de seu risco -, distinto daquele que pretende salvaguardar para si e para sua família.”328 De toda sorte, parece que o Código Civil de 2002, ao exigir a pluralidade de sócios, perdeu a oportunidade de revelar-se um diploma realmente avançado para a sua época.329 Afora isso, não há dúvidas que ele deixou uma multidão de empresas com sua função social no limbo do reconhecimento de uma personalidade jurídica.330 (II) Affectio societatis: trata-se de uma antiga expressão latina, usada por Ulpiano 331 , para exprimir a intenção de reunir esforços para a realização do fim comum. Grande parte da doutrina considera que a affectio societatis é um pressuposto essencial das sociedades, mas divergem, porém, quanto à sua definição. Theophilo de Azeredo Santos, por exemplo, define a affectio societatis como sendo “[...] a contribuição para o capital visando fim comum, através do esforço coletivo.”332 De acordo com Edmond Thaller, affectio societatis refere-se ao elo de colaboração ativa entre os sócios, sempre em vista de um fim comum, que é a realização de um enriquecimento pelo concurso dos capitais e da atividade dos sócios.333 328 LUCCA et al, op. cit., p. 11. Idem, ibidem. 330 LEITE JÚNIOR, op. cit., p. 93. 331 A esse respeito, Carlos Antônio Goulart Leite Júnior pontifica que: “Atribui-se a ULPIANO a origem do termo. Ao determinar as hipóteses que ensejavam a ação pro socio e aquelas em que unicamente podia caber a praescriptio verbis, e para solucionar quando cabia uma ou outra ação, reputava necessário investigar se as partes tinham ou não a intenção de constituir uma sociedade, investigação esta por ele designada com as locuções affectio societatis ou animus contrahendae societatis.” (Idem, p. 34). 332 SANTOS, Theophilo de Azeredo. Manual de Direito Comercial. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1965. p. 197. 333 THALLER, Edmond. Traité élémentaire de Droit Commercial. 4. ed. Paris: Arthur Rousseau Éditeur, 1910. p. 311. 329 96 Para Fran Martins, affectio societatis é cooperação efetiva entre os sócios, isto é, “[...] o liame de estarem os sócios juntos para a realização do objeto social.”334 Georges Ripert vê a affectio societatis essencialmente como a vontade da colaboração ativa dos sócios, ou seja, significa que pessoas estão se unindo para operar ou obrar simultaneamente, visando um objetivo comum como resultado de uma determinada atividade econômica.335 Paul Pic, por sua vez, considera tal expressão a mais adequada para designar a vontade, em todos os contratantes, de cooperar, direta ou indiretamente, na obra comum, com a comunhão de capitais e dos esforços pessoais dos membros de uma sociedade.336 Acrescenta Pic que: [...] todo contrato de sociedade pressupõe não somente a intenção de realizar benefícios por uma reunião de capitais, intenção que se pode descobrir num simples empréstimo, acompanhado de uma cláusula de participação, mas a vontade bem determinada, da parte de todos os sócios, de cooperar ativamente na obra comum. Discerne-se, em outros termos, em qualquer sociedade, um pensamento de cooperação econômica (Ripert) ou, mais exatamente, uma vontade de colaboração ativa (Thaller), em vista de um fim comum, que é a realização de um enriquecimento pela comunhão dos capitais e da atividade dos sócios.337 Daí Paul Pic propor, como caráter específico da sociedade, a “[...] colaboração ativa, consciente e igualitária de todos os contratantes, para a obtenção de um lucro a partilhar.”338 Todavia, essa formulação fundada na colaboração ativa, consciente e igualitária dos sócios não resiste ao argumento de João Eunápio Borges, no sentido de que existem sociedades “[...] em que somente um dos sócios trabalha efetivamente para o fim social, limitando-se os demais a entrar com a sua cota para a formação do fundo social.”339 334 MARTINS, op. cit., p. 165. RIPERT, Georges. Traité élémentaire de Droit Commercial. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1951. p. 163. 336 PIC, Paul. Traité Général de Droit Commercial: des sociétés commerciales. 10. ed. Paris: Librairie Arthur Rousseau, 1925. p. 70. 337 Idem, p. 70-71. 338 Idem, p. 71. 339 BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial terrestre. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1964. p. 243. 335 97 Por outro lado, existem autores, como Silvio Rodrigues340 e César Fiúza,341 que apontam a affectio societatis como um elemento peculiar de distinção entre a sociedade e outros estados jurídicos, em particular a comunhão e o condomínio. Rubens Requião, nessa senda, chega a afirmar que finalidade prática da affectio societatis consiste em “[...] distinguir a sociedade de outros tipos de contrato, que tendem a se confundir, aparentemente, com a sociedade de fato ou presumida.”342 De outra banda, ainda, existem aqueles que sustentam que a affectio societatis deixou de ser um pressuposto específico e caracterizador da sociedade. Nessa esteira, José de Oliveira Ascensão, criticando severamente a doutrina subjetivista, preleciona que: [...] não há nenhum animus que seja necessário comprovar para que exista a sociedade. Bastam os elementos objectivos que ficam enunciados. Fora deles, só ficam os clássicos princípios integradores, como o da fraude à lei, que também eles próprios são cada vez mais apresentados a uma luz objectivista, e não subjectivista.343 Solá Cañizares, mais severo, afirma que a affectio societatis serve unicamente para provocar discussões doutrinárias, sendo uma noção desconhecida pela legislação, não tendo, pois, utilidade alguma.344 Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto, por sua vez, não chega a negar a presença da affectio societatis no negócio societário, mas, porém, não encontra utilidade nesse 340 Segundo Silvio Rodrigues, “O que nitidamente caracteriza o contrato de sociedade é o propósito, comum aos contratantes, de se unirem para alcançar um resultado almejado. A esse fator subjetivo a doutrina dá o nome de affectio societatis. Constitui ele o elemento subjacente e fundamental do conceito de sociedade. Sua presença, ou não, é que distingue a sociedade do condomínio tradicional. Enquanto naquela os sócios deliberadamente se unem para buscar um determinado fim, na comunhão os consortes encontram seus interesses acidentalmente reunidos, sem que tal reunião tenha sido um pressuposto para se atingir determinado escopo.” (RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: dos contratos e das declarações unilaterais da vontade. vol. 3, 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 315). 341 César Fiuza, na mesma direção, pontifica: “Definitivamente, não cabe confundir sociedade e condomínio ou comunhão. Duas diferenças elementares traçam forte linha divisória entre os dois institutos. Sociedade é, como vimos, ato jurídico, contrato. É pessoa jurídica. Condomínio é direito real, que duas ou mais pessoas têm sobre um mesmo bem. Não tem personalidade jurídica. Esse direito real nem sempre terá como origem ato jurídico. Seu nascimento pode ser eventual, por força da Lei ou de circunstâncias. Exemplo disso é o condomínio que se estabelece para os herdeiros, até a partilha da herança. Ademais, caracteriza a sociedade a affectio societatis, ou seja, a vontade de constituir sociedade, o que não ocorre tratando-se de condomínio.” (FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 345-346). 342 REQUIÃO, op. cit., p. 408. 343 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Comercial: sociedades comerciais. vol. IV, Lisboa, AAFDL, 2000. p. 36. 344 SOLÁ CAÑIZARES, Felipe de. Tratado de Derecho Comercial comparado. Barcelona: Montaner y Simón S/A, t. III, 1963. p. 68. 98 conceito que, se não é muito claro, confunde-se com os mesmos elementos existentes nos contratos, como consentimento, espírito de colaboração e participação nos lucros.345 Segundo Carlos Antônio Goulart Leite Júnior, “A negação da affectio societatis como elemento caracterizador da sociedade decorre da modificação do conceito de sociedade, a feição institucional conferida pela personalidade jurídica, pela imunidade aos princípios contratuais e pela função social da empresa.”346 4.2.3 Da invalidade do contrato social Invalidade é conceito genérico e abrangente de nulidade e anulabilidade,347 e representa “[...] uma pena,348 a conseqüência, a sanção civil que atinge determinado negócio, por ter sido ele praticado ao arrepio da lei, apresentando lacunas ou vícios na manifestação de vontade.”349 Sendo a invalidade uma sanção, a anulabilidade350 constitui-se numa pena menos intensa, porque se aplica em defesa de interesses privados.351 Nas sábias palavras de Orlando Gomes, “A anulabilidade é diferida, relativa, sanável e provisória, isto é, o contrato subsiste até o momento em que o juiz o anula; apenas pode ser pleiteada pela pessoa a quem a lei protege; admite confirmação e se purifica com o decurso do tempo.”352 (grifos do autor) 345 CUNHA PEIXOTO, Carlos Fulgêncio da. A sociedade por cotas de responsabilidade limitada. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 72. 346 LEITE JÚNIOR, op. cit., p. 40. 347 A invalidade, segundo Itamar Gaino, “[...] indica o desfecho negativo do procedimento normal de formação do contrato: desfecho que, como tal, se contrapõe àquele de validade ou perfeição. Essa denominação (invalidade) compreende duas figuras: nulidade e anulabilidade.” (GAINO, Itamar. A simulação dos negócios jurídicos. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 75). 348 Nessa senda, de que a invalidade é uma forma de sanção, Paulo Nader assevera: “A invalidade constitui sanção porque é conseqüência imposta por lei em decorrência de sua inobservância na feitura do ato negocial. A sua antítese, a validade, significa que o ato se reveste de todos os requisitos essenciais e se acha em condições de produzir os efeitos de lei e os convencionais.” (NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: parte geral. vol. 1, 5. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 637). 349 VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2002. p. 24. 350 Para Maria Helena Diniz, adotando definição de Clóvis Beviláqua, a “[...] anulabilidade refere-se ‘a negócios que se acham inquinados de vício capaz de lhes determinar a ineficácia, mas que poderá ser eliminado, restabelecendo-se a sua normalidade’.” (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: teoria geral do Direito Civil. vol. 1, 21. ed. rev. aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 484). 351 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 19. ed. rev. atual. e aum. por Edvaldo Brito (Coord.) e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 290. 352 GOMES, 2007a, p. 160. 99 Nos termos dos incisos I e II do art. 171 do Código Civil, o contrato social pode ser anulado quando celebrado pelo relativamente incapaz, bem como pelas partes cujo consentimento tenha se dado por erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.353 A nulidade, por sua vez, é a sanção mais severa imposta pela lei, porque visa a punir os que infringem preceitos de ordem pública ou interesse geral.354 Segundo Itamar Gaino, “A nulidade consiste num quê de negativo, ou seja, o contrato resta privado de validade e dos efeitos que lhe são próprios (quod nullum est, nullum producit effectum).”355 Para Orlando Gomes, “Nulidade é a sanção por meio da qual a lei priva de eficácia o contrato que se celebra contra preceito perfeito – leges perfectae – e, notadamente, os que disciplinam os pressupostos e requisitos do negócio jurídico.”356 Ao contrário da anulabilidade, “a nulidade é imediata, absoluta, insanável e perpétua.”357 Ela pode ser total ou parcial. É total a nulidade quando abrange todo o contrato ou todas as suas cláusulas. A nulidade parcial,358 por seu turno, atinge apenas uma ou algumas cláusulas do contrato, sem lhe atingir a parte principal.359 Com efeito, à luz dos incisos I, II e IV do art. 166 do Código Civil,360 a inobservância aos requisitos comuns de validade361 conduz à nulidade do contrato social em sua inteireza (nulidade total), mas a falta de um requisito específico362 compromete apenas a validade de uma ou mais de suas cláusulas (nulidade parcial), e não a do contrato social como um todo. Assim, no primeiro caso, a sociedade não se forma validamente, podendo ser 353 CÓDIGO CIVIL, art. 171: “Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: I - por incapacidade relativa do agente; II - por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.” 354 GOMES, 2007b, p. 290. 355 GAINO, op. cit., 77. 356 GOMES, 2007a, p. 160. 357 Idem, ibidem. 358 A nulidade parcial, na verdade, constitui corolário do princípio da conservação do contrato. Aliás, o Código Civil, em seu art. 184, preceitua que: “Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável.” 359 GAINO, op. cit., p. 79. 360 CÓDIGO CIVIL, art. 166: “É nulo o negócio jurídico quando: I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz; II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; [...] IV - não revestir a forma prescrita em lei.” 361 Cf. item 4.2.1.1 deste trabalho, agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, e forma prescrita ou não defesa em lei, excetuando-se o requisito do consenso, cujo vício conduz à anulabilidade do contrato social. 362 Cf. item 4.2.1.2 supra. 100 decretada a sua nulidade. Já, no segundo, a sociedade é válida, embora seu contrato social seja parcialmente inválido.363 Entretanto, é de se destacar que a doutrina tem defendido uma utilização parcimoniosa do instituto da invalidade ao contrato de sociedade, restringindo-o àquelas hipóteses em que o vício a macular a constituição seja grave o suficiente a ponto de inviabilizar o funcionamento da própria sociedade.364 Isso se deve porque a sociedade, ainda que de forma inválida, atuou no mundo real, contraindo direitos e obrigações, tornando-se muito difícil, por conseguinte, o retorno das partes ao statu quo ante, tal qual preconiza o art. 182 do Código Civil.365 Perfilando o entendimento esposado, mesmo sob a ótica do Código Civil de 1916, Egberto Lacerda Teixeira preleciona: O erro, o dolo, a coação, a simulação e a fraude podem insinuar-se, dissolventemente, na vida das sociedades mercantis. Nem sempre, todavia, tais vícios conduzirão ao aniquilamento da sociedade, pessoa jurídica independentemente da pessoa dos sócios. A noção institucional das sociedades comerciais, a teoria do contrato plurilateral, o respeito à preservação da empresa, como patrimônio destacado e autônomo, aconselham prudência e comedimento na aplicação das sanções punitivas.366 E, logo em seguida, conclui: O conceito de nulidades deve abrandar-se e amoldar-se às peculiaridades da vida mercantil moderna. A sociedade ainda que nula ou passível de anulação, atuou na órbita jurídica. Adquiriu direitos, assumiu obrigações. A restituição das partes ao statu quo ante, recomendada no artigo 158 do Código Civil [atual artigo 182], nem sempre é possível ou aconselhável. Daí o esforço da doutrina e da jurisprudência no sentido de propiciar, tanto quanto possível, a reparação dos vícios que inquinam os contratos institucionais de sociedades sem chegar-se ao extremo da sua anulação.367 363 COELHO, 2003, p. 386 e 388. Exemplo disso tem-se em Tullio Ascarelli, que defende a manutenção do contrato de sociedade quando passível de separação e subsistência em face de uma manifestação de vontade viciada: “É doutrina dominante a que não admite seja o contrato de sociedade viciado no seu conjunto, só pelo fato de estar viciada uma das subscrições. O vício de uma das subscrições afeta apenas a subscrição viciada; não o contrato na sua inteireza, a não ser que acarrete a impossibilidade de alcançar o objeto social, sendo então de se aplicar a disciplina peculiar a este caso.” (ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Campinas: Bookseller, 2001. p. 390). 365 CÓDIGO CIVIL, art. 182: “Anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente.” 366 TEIXEIRA, Egberto Lacerda. Das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. São Paulo: Max Limonad, 1956. p. 71. 367 Idem, p. 71-72. 364 101 Na mesma direção, de amenizar o radicalismo da nulidade do direito civil na órbita societária, é o magistério de Waldirio Bulgarelli: Sem querer adentrar a fundo na tese de que o Direito Societário afastou-se do Direito Obrigacional comum no campo das nulidades, para abrandá-lo, de vez que a prática societária não comporta o mesmo rigor observado no campo obrigacional in genere, a verdade é que a tendência dominante é a de minorar o radicalismo da nulidade absoluta, no campo societário, inclinandose para reconhecer os efeitos dos atos ditos nulos ou inexistentes, impedindo a sua retroatividade e permitindo a sua retificação, a que os espanhóis chamam de subsanación do vício.368 Não destoa a opinião de Trajano de Miranda Valverde, para quem: O regime comum das nulidades dos atos jurídicos não se ajusta, sem graves desvios, aos organismos que, sob a denominação de sociedades, associações, corporações, fundações, surgem por obra da energia dos homens e atuam, como sujeitos de direito, na vida social. A afirmação de que o ato jurídico nulo não existe é um nada – nihil actum est – soçobra no mar agitado da vida econômica.369 Pois bem, segundo a mais abalizada doutrina, em homenagem ao princípio da preservação da empresa e da autonomia patrimonial, o sistema de nulidades do direito civil deve abrandar-se e amoldar-se às peculiaridades da vida empresarial, minorando, assim, o radicalismo da nulidade no campo do direito societário. Nesse contexto, então, pode-se afirmar que o contrato de sociedade não tem, de forma alguma, caráter eminentemente contratual, porque, se tivesse, a ele seria aplicado o regime comum das nulidades, sem ressalvas. Na verdade, o que se vê é a diluição da importância do contrato na proporção inversa da relevância da sociedade, porque é ela, sociedade empresária, a titular da empresa. Por aí, percebe-se o quanto é paradoxal o Código Civil: primeiro adota como núcleo da sociedade empresária a atividade econômica – estereotipada com os predicados de organização e profissionalismo370 –, ou seja, a empresa, mas depois insisti na natureza contratual, consubstanciada, dentre outros aspectos, na imprescindibilidade do número mínimo de dois sócios.371 368 BULGARELLI, Waldirio. Estudos e pareceres de Direito empresarial: o Direito das empresas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 162. 369 VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedade por ações. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 94. 370 Cf. itens 2.1 e 2.2 deste trabalho. 371 LEITE JÚNIOR, op. cit., p. 92. 102 4.3 Dos sócios É de se advertir, novamente, que o participante de uma sociedade empresária (o sócio) não é empresário, porque é a sociedade empresária a titular da atividade econômica organizada (empresa), e não os seus sócios. Neste sentido, Fábio Ulhoa Coelho, com precisão, doutrina: Sociedade empresária é a pessoa jurídica que explora uma empresa. Atendese que o adjetivo “empresária” conota ser a própria sociedade (e não os seus sócios) a titular da atividade econômica. Não se trata, com efeito, de sociedade empresarial, correspondente à sociedade de empresários, mas da identificação da pessoa jurídica como o agente econômico organizador da empresa. Essa sutileza terminológica, na verdade, justifica-se para o direito societário, em razão do princípio da autonomia da pessoa jurídica, o seu mais importante fundamento. Empresário, para todos os efeitos de direito, é a sociedade, e não os seus sócios. É incorreto considerar os integrantes da sociedade empresária como os titulares da empresa, porque essa qualidade é da pessoa jurídica, e não dos seus membros.372 (grifos do autor) A partir dessas considerações, Fábio Ulhoa Coelho qualifica os sócios da sociedade empresária como “[...] empreendedores ou investidores; no primeiro caso, para a identificação dos sócios que, além de investirem capital, são responsáveis pela concepção e condução do negócio e, no último, dos que contribuem apenas com capital para o desenvolvimento da empresa.”373 Dessa forma, sendo certo que o sócio não é empresário, não está ele, por evidente, sujeito às normas que definem os direitos e deveres do empresário, mas, sim, sujeito às regras reservadas pela lei para os que se encontram na condição de sócio. Passa-se, por conseguinte, a verificar os direitos, deveres e responsabilidades dos sócios. 4.3.1 Direitos dos sócios Na província dos direitos, destacam-se os seguintes: (i) direito de participação nos resultados sociais; (ii) direito de fiscalização da administração; (iii) direito de 372 373 COELHO, 2003, p. 5. Idem, p. 6. 103 preferência; (iv) direito de retirada; e (v) direito de participação nas deliberações sociais. Nessa ordem, resumidamente, tem-se: (I) Direito de participação nos resultados: a divisão dos lucros da sociedade entre os seus membros é o fator que mais atrai o interesse dos sócios, correspondendo, no plano jurídico, a direito inerente à titularidade da quota social.374-375-376 Segundo Fábio Ulhoa Coelho, a participação nos resultados da empresa constitui o principal motivo para que pessoas se unam em uma sociedade empresária. Os sócios visam, ao contratar a constituição da limitada, obter retorno maior ou igual ao do capital nela empregado.377 (II) Direito de fiscalização da administração: o sócio tem o direito de fiscalizar a gestão dos negócios sociais, seja examinando, a qualquer tempo ou em épocas determinadas pelo contrato social, os livros, documentos e o estado de caixa da sociedade (Código Civil, art. 1.021), seja requerendo a prestação de contas dos administradores, na forma prevista contratualmente ou ao término do exercício social (Código Civil, art. 1.020).378 (III) Direito de preferência: no aumento do capital social mediante a criação de novas quotas, os sócios titularizam direito de preferência para as subscrever proporcionalmente às respectivas participações. O prazo para o exercício desse direito é o de 30 dias seguintes à deliberação (Código Civil, art. 1.081, § 1º).379 374 Quota, segundo definição de Egberto Lacerda Teixeira, “[...] é a entrada, ou contingente de bens, coisas ou valores com o qual um dos sócios contribui ou se obriga a contribuir para a formação do capital social.” (TEIXEIRA, op. cit., p. 85). 375 Rubens Requião, filiado à doutrina de Carvalho de Mendonça, considera a quota como um direito de duplo aspecto, sendo um patrimonial e outro pessoal: “O direito patrimonial é identificado como um crédito consistente em percepção de lucros durante a existência da sociedade e em particular na partilha da massa residual, decorrendo de sua liquidação final. Os direitos pessoais são os que decorrem do status de sócio.” (REQUIÃO, op. cit., p. 499). 376 A tese acima esposada, de que a quota social representa um direito de duplo aspecto (patrimonial e pessoal), é bem sintetizada da declaração de voto do Ministro Eduardo Ribeiro: “As cotas sociais, segundo autorizada doutrina, constituem um direito patrimonial e um direito pessoal. O primeiro, correspondendo ao direito de participar dos lucros e da divisão do patrimônio social líquido em caso de dissolução; o segundo, conferindo o status de sócio.” (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp 248.269/RS. Relator: Ministro Eduardo Ribeiro. Brasília, DF, 2 mai. 00, v.u., recurso provido, DJ de 19.6.00, p. 146). 377 COELHO, 2003, p. 421. 378 COELHO, 2006, p. 143; CASTRO, op. cit., p. 303. 379 COELHO, 2003, p. 439. 104 (IV) Direito de retirada: nos termos do art. 1.029 do Código Civil, o sócio tem o direito de retirar-se de sociedade contratada por prazo indeterminado, notificando os demais sócios com antecedência de sessenta dias para que se possa promover a alteração contratual correspondente. Se contratada por prazo determinado, o sócio poderá retirar-se antes de vencido o prazo de duração, desde que prove judicialmente justa causa.380 (V) Direito de participação nas deliberações sociais: o sócio da sociedade contratual tem o direito de intervir na administração da sociedade, participando da escolha do administrador, da definição da estratégia geral dos negócios, entre outros. Todavia, é evidente que a vontade da minoria societária não prevalecerá em confronto com a da maioria, mas, mesmo assim, é assegurado a todos o direito de participação nas deliberações sociais.381 4.3.2 Deveres dos sócios No campo dos deveres,382 por sua vez, são dois os principais: a) dever de integralizar a quota subscrita do capital social; e b) dever de lealdade. 380 A respeito do direito de retirada, Fábio Ulhoa Coelho assevera: “O sócio pode, em determinadas condições, retirar-se da sociedade, dissolvendo-a parcialmente. Terá, então, direito de receber, do patrimônio líquido da sociedade, a parte equivalente à sua cota do capital social. Na maioria das sociedades contratuais de prazo indeterminado, o sócio pode retirar-se sem necessidade de motivação. Deverá notificar os demais sócios, os quais devem, em 60 dias, providenciar a alteração contratual correspondente (CC, art. 1.029). Nas contratadas com prazo determinado, somente se houver justa causa comprovada em juízo, poderá o sócio retirar-se antes de vencido o prazo de duração. Em sendo limitada a sociedade com prazo, o direito de retirada surge também quando houver alteração contratual incorporação ou fusão da qual divirja o sócio (CC, art. 1.077).” (COELHO, 2006, p. 144). 381 Idem, p. 143. 382 O sócio que não cumpre com os seus deveres, seja perante aos demais sócios, seja com a própria sociedade, poderá desta ser excluído. A esse respeito, Fábio Ulhoa Coelho assevera: “O sócio da limitada que não cumpre suas obrigações (perante os demais ou a sociedade) pode ser expulso. Tratase a expulsão – ou exclusão – de uma forma de desfazimento de vínculos societários exclusiva das sociedades contratuais. A rigor, está-se diante de ato jurídico muito comum, que é a rescisão do contrato, por culpa de uma das partes. Como qualquer outro contratante, o sócio da limitada que descumpre as obrigações dá ensejo à rescisão do contrato.” (COELHO, 2003, p. 415). Todavia, a rescisão do contrato social em relação a um sócio não afeta os demais vínculos plurilaterais dele decorrentes, valendo, novamente, o magistério de Fábio Ulhoa Coelho: “A pessoa jurídica não se extingue pelo só desfazimento dos vínculos contratuais que envolviam o expulso. Ao contrário, prossegue existindo, em razão dos demais vínculos entre os sócios remanescentes [...] Um dos traços peculiares ao contrato plurilateral é a imunidade das relações de direitos e deveres entre as partes alheias à rescisão, quando operada esta por culpa de uma delas. A existência da sociedade limitada é sempre preservada, na ocorrência de expulsão de sócio.” (Idem, p. 416). 105 (I) Dever de integralizar a quota subscrita do capital social: segundo magistério de Fábio Ulhoa Coelho, “o sócio tem, perante a sociedade, o dever de integralizar a quota subscrita, ou seja, de transferir do seu patrimônio para o social dinheiro, bens ou crédito, nos termos do compromisso assumido junto aos demais sócios.”383 Com efeito, o sócio que deixa de integralizar, no prazo estipulado, a quota subscrita do capital social é chamado de remisso. Os demais sócios podem, qualquer que tenha sido o modo de subscrição, deliberar pela expulsão do remisso, preferindo-a à cobrança judicial do aporte contratado e indenização (Código Civil, art. 1.004, parágrafo único).384 (II) Dever de lealdade: segundo Fábio Ulhoa Coelho, não obstante a ausência de regra legal, pode-se sustentar que o sócio tem, perante os demais e a própria sociedade, um dever de lealdade, traduzido na noção geral de colaboração para o sucesso do empreendimento comum.385 Daí concluir que “É dever do sócio colaborar com o desenvolvimento da sociedade, abstendo-se de praticar atos que possam prejudicar a empresa. Ele deve portar-se, em outras palavras, com lealdade em relação à limitada.”386 4.3.3 Responsabilidade dos sócios Uma vez integralizado o capital social, é correto afirmar que os sócios não respondem, com patrimônio próprio, por qualquer outra obrigação da sociedade limitada.387 Entretanto, enquanto não integralizado o capital, cada sócio responde pela totalidade da integralização, independentemente de ter completado o pagamento de sua parte.388 Essa, aliás, é a regra esculpida no artigo 1.052 do Código Civil: “Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.” 383 COELHO, 2003, p. 400. Sobre a matéria, Fábio Ulhoa Coelho pontifica: “O sócio remisso é aquele que não cumpre, no prazo, a obrigação de integralizar a quota subscrita. A sociedade pode cobra-lhe o devido, em juízo, ou expulsá-lo. Nesta última hipótese, deve restituir ao remisso as entradas feitas, deduzidas as quantias correspondentes aos juros de mora, cláusula penal expressamente prevista no contrato social e despesas.” (Idem, p. 401). 385 Idem, p. 413. 386 Idem, ibidem. 387 Excepcionalmente, quando presentes os requisitos para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (cf. item 3.4 supra), o sócio poderá responder por obrigações da sociedade limitada, apesar de o capital já se encontrar integralizado. 388 NEGRÃO, op. cit., p. 277-278. 384 106 Depois de analisar o artigo em comento, Arnaldo Rizzardo descreve, com precisão, a característica peculiar da sociedade limitada: Aí está a nota fundamental deste tipo de sociedade: os sócios respondem pela integralização de suas quotas de capital; uma vez alcançada essa incumbência, não respondem eles pelas dívidas da sociedade. Mais precisamente, é limitada a responsabilidade dos sócios ao capital constante na última alteração contratual, até que se opere a sua integralização. Justamente a particularidade da limitação da responsabilidade ao montante do capital subscrito é que tornou a mais comum das sociedades, representando a maioria das registradas nas Juntas Comerciais.389 Corroborando esse entendimento, Maria Bernadete Miranda preleciona: Se o sócio subscreve e integraliza as suas quotas, nada mais deverá à sociedade e nem a terceiros credores, ainda que o total do ativo não seja suficiente para saldar o passivo circulante ou real. Porém, se subscritas as quotas, o sócio não as realiza e a sociedade vai à falência, será ele compelido a saldar as obrigações sociais até o limite do capital total da sociedade a que pertence, embora subsidiariamente.390 Outro não é o escólio de Arnoldo Wald: Para a aquisição do status socii391, os sócios têm a obrigação de transferir à sociedade bens ou direitos do seu patrimônio com valor econômico e, passam em contrapartida, a ser titulares de quotas sociais. Depois de integralizado o capital subscrito, não respondem mais os sócios por quaisquer quantias devidas pela sociedade, salvo nos casos de abuso ou excesso de poder, fraude ou prática de ato ilícito. Assim, o principal objetivo da constituição de uma sociedade limitada é a delimitação dos riscos no desenvolvimento de determinada atividade econômica, uma vez que os sócios separam parte do seu patrimônio para alocar à sociedade e garantir suas responsabilidades, e, assim, em princípio, restringem a contribuição que dão à sociedade.392 Na verdade, conforme já salientado,393 a constituição regular de uma sociedade limitada, com arquivamento do contrato social no registro competente, cria um novo sujeito de direito, com vontade, patrimônio e responsabilidades próprias e autônomas 389 RIZZARDO, op. cit., p. 126. MIRANDA, op. cit., p. 57. 391 “Status é a expressão utilizada para indicar o pressuposto comum de direitos e obrigações de um sujeito, tendo em vista a sua participação em uma coletividade. O status socii existe em virtude da ‘abriguição’ de uma multiplicidade de direitos e deveres a um sócio.” (WALD; TEIXEIRA, op. cit., nota 16, p. 176). 392 WALD; TEIXEIRA, op. cit., p. 176. 393 Vide item 3.2 deste trabalho. 390 107 em relação aos seus sócios. A formação da pessoa jurídica enseja a separação de patrimônio destinado ao desenvolvimento da atividade empresarial, de maneira que apenas os bens da sociedade respondem pelas obrigações contraídas em seu nome.394 Nesse diapasão, a lição de Fábio Ulhoa Coelho: A personalização da sociedade limitada implica a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus membros. Sócio e sociedade são sujeitos distintos, com seus próprios direitos e deveres. As obrigações de um, portanto, não se podem imputar ao outro. Desse modo, a regra é a da irresponsabilidade dos sócios da sociedade limitada pelas dívidas sociais. Isto é, os sócios respondem apenas pelo valor das quotas que se comprometem, no contrato social (CC/2002, art. 1.052). É esse o limite de sua responsabilidade.395 É bem de ver, por oportuno, que a limitação da responsabilidade dos sócios existe para socializar, entre os agentes econômicos, os riscos de insucesso, constituindo-se, pois, condição jurídica indispensável, na ordem capitalista, à disciplina da atividade de produção e circulação de bens ou serviços. Neste diapasão, Fábio Ulhoa Coelho doutrina: A limitação da responsabilidade dos sócios é um mecanismo de socialização, entre os agentes econômicos, do risco de insucesso, presente em qualquer empresa. Trata-se de condição necessária ao desenvolvimento de atividades empresariais, no regime capitalista, pois a responsabilidade ilimitada desencorajaria investimentos em empresas menos conservadoras. Por fim, como direito-custo, a limitação possibilita a redução do preço de bens e serviços oferecidos no mercado.396 Como se vê, pelas palavras de Fábio Ulhoa Coelho, o risco é um componente indissociável da atividade econômica, isto é, da empresa, razão pela qual justifica-se a limitação da responsabilidade dos sócios. Pois bem, se o risco está presente em qualquer empresa e esta pode ser exercida tanto pelo empresário individual quanto pela sociedade empresária, porque viabilizase a limitação dos riscos apenas aos membros da sociedade empresária? Ora, se o sócio de uma sociedade empresária pode limitar suas responsabilidades pelas obrigações sociais, identicamente ao empresário individual deve ser facultado o mesmo direito, uma vez que, à luz da Carta Política, todos são iguais em direitos e obrigações, sem distinção de qualquer natureza. 394 WALD; TEIXEIRA, op. cit., p. 176. COELHO, 2003, p. 402. 396 Idem, p. 403. 395 108 4.4 A administração da sociedade limitada A sociedade limitada, nos termos do artigo 1.060, do Estatuo Civil, “[...] é administrada397 por uma ou mais pessoas designadas no contrato social ou em ato separado”, que podem ser sócios ou não.398 Fábio Ulhoa Coelho, a esse respeito, preleciona: Os administradores (diretores ou gerentes) da sociedade limitada podem ser sócios ou não. Podem, por outro lado, ser designados no contrato social ou em ato apartado. De acordo com essas variáveis, e, numa hipótese, também em função da integralização do capital social, é diferente o quorum para a sua escolha ou destituição.399 Desse modo, a sociedade limitada pode ser administrada tanto por um ou mais sócios como, também, por pessoas estranhas ao quadro social. Por aí se vê que o status de sócio deriva da presença deste no quadro societário e em nada se relaciona à administração social. Passando-se ao campo das responsabilidades, o artigo 1.011, do Código Civil, cuida do dever de diligência, tal como o fez o artigo 153, da Lei nº 6.404/76, ao impor ao administrador, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem probo400 costuma empregar na administração de seus negócios.401 Segundo Fábio Ulhoa Coelho, além de diligente, o administrador da sociedade limitada também deve ser leal (Lei nº 6.404/76, art. 155), porque os deveres de diligência e lealdade “[...] podem ser vistos como preceitos gerais, aplicáveis a qualquer pessoa incumbida de administrar bens ou interesses alheios.”402 Por conta disso, conclui o autor, “Quando o administrador da limitada não cumpre seus deveres de atuar como homem 397 Gustavo Saad Diniz conceitua a administração da sociedade limitada como: “O órgão societário, composto por uma ou mais pessoas naturais, com poderes específicos atribuídos pelo contrato social para administrar a sociedade no âmbito interno e atuar por ela nas relações jurídicas com outras pessoas naturais e jurídicas, privadas ou públicas.” (DINIZ, Gustavo Saad. Responsabilidade dos administradores por dívidas das sociedades limitadas. Porto Alegre: Síntese, 2003. p. 88). 398 O art. 1.061 do Código Civil cria a possibilidade de o contrato social permitir administradores nãosócios, caso em que a designação dependerá de quorum especial (unanimidade, no caso de não integralização do capital social, e dois terços, no mínimo, após a integralização). 399 COELHO, 2003, p. 441. 400 Segundo LUCCA et al, op. cit., p. 202, “Esse princípio, que surgiu inicialmente no âmbito do mandato, mencionado no artigo 142 do Código Comercial, decorre da regra romana do vir probus, do bonus pater familias.” 401 CÓDIGO CIVIL, art. 1.011: “O administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios.” 402 COELHO, 2003, p. 442. 109 diligente e leal, e, em decorrência, a sociedade sofre danos, ele está obrigado a ressarcilos.”403 Deveras, de acordo com o disposto no art. 1.016, do Código Civil, “Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções.” No que se refere à responsabilidade tributária do administrador, esta é regida pelo artigo 135, do Código Tributário Nacional, que assim estabelece: Art. 135 São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: [...] III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado. Acerca do dispositivo legal trazido ao destaque, Fábio Ulhoa Coelho doutrina: A pronta e indiscutível conclusão que se extrai da leitura desse dispositivo é a de que nem sempre o administrador pode ser responsabilizado por obrigação tributária da sociedade limitada. A referência a atos, em suma, ilícitos e irregulares, no delimitar a imputação de responsabilidade tributária, afasta a possibilidade de o fisco exigir dele as dívidas da pessoa jurídica, quando inocorridas ilicitudes ou irregularidades na gestão social. Em termos gerais, se a sociedade limitada possuía o dinheiro para o pagamento do tributo, mas o seu administrador o destinou a outras finalidades, este é responsável perante o fisco; mas, se ela não dispunha do numerário, não é cabível a responsabilização do administrador. Para facilitar o exame da matéria, chamo a primeira situação de sonegação, e a segunda, de inadimplemento. O art. 135, III, do CTN deve ser interpretado no sentido de imputar ao administrador a responsabilidade pelas obrigações tributárias da sociedade limitada em caso de sonegação, mas não no de inadimplemento.404 (grifos do autor) Importante lembrar que a regra do artigo 135, do Código Tributário Nacional, não decorre da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (cf. item 3.4 supra), mas, porém, tem o mesmo fundamento.405 403 COELHO, 2003, p. 442. Idem, p. 444-445. 405 LINS, Daniela Storry. Aspectos polêmicos atuais da desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor e na Lei Antitruste. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 44 e ss. 404 110 5 A LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO INDIVIDUAL A empresa – atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços – pode ser exercida tanto individualmente como coletivamente. No primeiro caso, a atividade econômica organizada é explorada por uma única pessoa, o empresário individual; no segundo, o agente econômico organizador da empresa denomina-se sociedade empresária, cuja constituição resulta da união de duas ou mais pessoas, chamadas de empreendedores ou investidores. Inerente ao exercício de empresa, seja pelo empresário individual seja pela sociedade empresária, está o risco, de tal sorte que a limitação da responsabilidade pelos riscos da exploração de empresa “[...] é condição jurídica indispensável, na ordem capitalista, à disciplina da atividade de produção e circulação de bens ou serviços.”406 Todavia, no Brasil, ao contrário do tratamento jurídico dispensado às sociedades empresárias, onde os investidores ou empreendedores encontram um sistema capaz de limitar os riscos inerentes ao exercício de empresa, porquanto respondem apenas pelo valor das quotas que se comprometeram no contrato social, àquele que exerce individualmente a atividade econômica não é conferido qualquer instrumento que permita a limitação da responsabilidade ao montante investido na empresa. Por outro lado, em muitos outros países, a limitação da responsabilidade do empresário individual tem sido alcançada de duas formas diferentes: por um modelo personificado e outro não-personificado. A técnica personificada permite a constituição de uma sociedade empresária formada por uma única pessoa, a denominada “Sociedade Empresária Unipessoal Limitada”. A técnica não-personificada, por sua vez, permite ao empresário individual destacar parte de seu patrimônio e afetá-lo ao exercício de empresa, mediante o denominado “Empresário Individual de Responsabilidade Limitada” ou, como querem alguns, “Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada”407. 406 COELHO, 2003, p. 402. Embora a figura do patrimônio de afetação implique a limitação da responsabilidade de um sujeito de direito – o empresário individual –, único suscetível de adquirir direitos e contrair obrigações, muitos países têm denominado tal instituto de uma maneira inadequada. Portugal, por exemplo, denomina-o de “Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada”, como se o estabelecimento empresarial, classicamente definido como objeto de direito, (cf. item 2.1 supra) estivesse dotado de personalidade jurídica, e, portanto, apto a adquirir direitos e contrair obrigações. Cf. BRUSCATO, Wilges Ariana. Empresário individual de responsabilidade limitada. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 117-120. 407 111 Com efeito, ambos os modelos de limitação da responsabilidade do empresário individual, tanto o personificado quanto o não-personificado, serão alvos do presente capítulo. Além disso, cuidar-se-á, também neste capítulo, acerca da validade das chamadas sociedades fictícias ou de favor, expediente há muito utilizado nos sistemas jurídicos que não admitem a limitação de responsabilidade do empresário individual. Por derradeiro, ver-se-á que a existência válida das sociedades fictícias, hipótese de negócio jurídico indireto e negócio lícito, não se confunde com as hipóteses de simulação fraudulenta da sociedade, onde o objetivo não é outro senão o de causar prejuízos a terceiros. 5.1 Da sociedade empresária unipessoal limitada O modelo personificado de limitação da responsabilidade do empresário individual, amplamente difundido, aceito e utilizado principalmente por países europeus, é aquele que contempla, desde o momento originário de sua constituição, a sociedade unipessoal limitada. Admite-se, com efeito, a constituição de uma sociedade limitada, com personalidade jurídica própria, por ato de vontade de uma só pessoa. Por aí, percebe-se que tal modelo de limitação de responsabilidade só vem a corroborar aquilo que já foi afirmado:408 a exigência da pluralidade de sócios, como pressuposto de existência da sociedade, vem caindo por terra, porque não passa de um mero resquício de épocas passadas, quando a sociedade era eminentemente contratual.409 Em solo brasileiro, sempre foi assente a necessidade de duas ou mais pessoas para a constituição de qualquer tipo de sociedade. Entendia-se que a forma associativa apenas se justificava como uma maneira de unificar a pluralidade de sócios a ela subjacente, sendo a personalidade jurídica destinada única e exclusivamente a essa finalidade.410 408 Vide item 4.2.2 deste trabalho. BORBA, op. cit., p. 45. 410 PRADO FILHO, José Inácio Ferraz de Almeida. Notas sobre as sociedades fictícias, ou de favor. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, ano XLIII (nova série), São Paulo: Malheiros Editores, abr./jun., n. 134, 2004. p. 85. 409 112 Dessa forma, sempre se repudiou411 a idéia da sociedade unipessoal, fato muito bem revelado pela perplexidade demonstrada por Trajano de Miranda Valverde ao deparar-se com esse fenômeno: Com absoluta falta de senso, sugeriu-se a possibilidade de se constituir sociedade anônima com um único subscritor ou acionista. Gente que ouve cantar o galo, mas não sabe onde. Nenhuma lei consagra, ou poderá consagrar essa monstruosidade jurídica412: indivíduo-sociedade. Nem mesmo a lei alemã de 1937, a mais revolucionária de todas, dada a orientação política da Alemanha ‘nacional-socialista’, ousou admitir essa anomalia [...] Aqui, porém, sob o calor dos trópicos, tudo se funde, até o bom senso.413 Essa postura da doutrina pátria deve-se, em certa medida, ao fato de que a sociedade unipessoal jamais foi pensada, no Brasil, como um modelo legal, um instituto jurídico próprio, mas sempre como uma hipótese inaceitável porquanto contrária a um corolário necessário e inexorável da sociedade: a pluralidade de sócios.414 É exatamente essa concepção eminentemente contratualista de constituição societária, fulcrada na pluralidade de sócios, que vem de encontro ao reconhecimento da 411 Esse repúdio à sociedade unipessoal pela doutrina nacional é bem elucidado na lição de José Maria Trepat Cases: “No direito pátrio encontra-se grande resistência, por parte dos doutrinadores mais conservadores, à aceitação da sociedade unipessoal. Arraigados ao conceito da societas, lhes é difícil admitir a existência de uma sociedade originariamente constituída por uma só pessoa (física ou jurídica). Não podemos culpá-los por tal intransigência, eis que têm companhia de juristas de vários outros países. Torna-se, entretanto, imperativo que o direito societário atenda aos reclamos atuais das nações que, em franca modernidade econômica, buscam, cada vez mais, melhor aparelhar e desenvolver as pessoas jurídicas de direito privado. Tentar vincular os tipos societários, em princípio mais adotados (sociedades de responsabilidade limitada e sociedades por ações), à societas do Direito Romano clássico é o mesmo que pretender interromper a queda da areia na ampulheta. Não se pode desprezar as grandes lições e os ensinamentos a nós legados por estes eminentes estudiosos da matéria; todavia, sendo o Direito Comercial o ramo do Direito que carrega a força mais dinâmica, cristalizá-lo em conceitos longevos seria tentar despi-lo das agilidade e praticidade que lhe imprimem os comportamentos modernistas atuais.” (CASES, José Maria Trepat. Breves comentários sobre a sociedade unipessoal.Disponível em: <http://www.professorchristiano.com.br/artigo_jose_maria.pdf > Acesso em: 04 nov. 08). 412 É de se ressaltar que os comentários de Trajano de Miranda Valverde referem-se ao revogado Decreto-lei nº 2.627, de 26.9.40, que dispunha sobre as sociedades por ações. Isso porque, ao contrário da “monstruosidade jurídica” vislumbrada por Valverde, o legislador de 1976 introduziu no ordenamento jurídico brasileiro, nos moldes da wholly owned subsidiary norte-americana, a figura da sociedade anônima formalmente unipessoal (Lei nº 6.404/76, arts. 251 e seguintes). De acordo com a exposição justificativa dos autores do Anteprojeto, visou-se dar “[...] juridicidade ao fato diário, a que se vêem constrangidas as companhias, de usar ‘homens de palha’ para subscrever algumas ações em cumprimento a ritual vazio da lei.” 413 VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedade por ações. vol. I, 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 245, nota de rodapé 16. 414 PRADO FILHO, op. cit., p. 85-86. 113 sociedade unipessoal, sendo necessário, por conta disso, superar415 aquele antigo conceito de sociedade. Nesse contexto, a moderna doutrina do contrato-organização, bem como a formulação da teoria do contrato plurilateral416, colocaram no centro da discussão sobre o contrato de sociedade, não mais a sua vocação para unificar uma pluralidade de sócios, mas, sim, o seu caráter instrumental e organizativo.417 A moderna teoria do contrato-organização contrapõe, funcionalmente, à categoria dos contratos de permuta os associativos: enquanto os primeiros visam criar direitos subjetivos entre as partes, os contratos associativos criam uma organização.418 Assim, diferentemente dos contratos de permuta, que esgotam-se no cumprimento das obrigações avençadas, “[...] o contrato de sociedade tem, no cumprimento dos deveres ao seu abrigo constituídos, o pressuposto para a irradiação de sua eficácia típica: a organização dos fatores produtivos para o exercício da empresa.”419 Daí José Inácio Ferraz de Almeida Prado Filho concluir, com muita precisão, que a idéia de organização desloca-se “[...] de uma posição estrutural no contrato de sociedade e passa a exercer um papel funcional.”420 E completa: A celebração de tais contratos justifica-se na necessidade de organizar esforços e recursos para o exercício da atividade econômica, sendo irrelevante que a organização emergente do contrato seja constituída, ou mesmo beneficie, um único sócio ou mais de dois deles. O próprio caráter 415 Acerca da superação da teoria eminentemente contratualista de constituição societária, Eduardo de Sousa Carmo preleciona: “O contratualismo societário, típico, é tese amplamente superada. O contrato não explica a sociedade na medida em que o seu vínculo se rompe com a infringência. No direito vivo brasileiro o repúdio ao contratualismo societário está presente nos muitos casos em que os tribunais negando a dissolução total de sociedade por cotas de responsabilidade limitada - proferem a dissolução parcial delas e determinam o pagamento dos haveres ao sócio divergente. Preserva-se, assim, a sociedade que, antes de atender a compromissos com os seus sócios, deve satisfazer as exigências do bem público e da função social da empresa.” (CARMO, Eduardo de Sousa. Sociedade unipessoal por cotas de responsabilidade limitada. Revista Forense, Rio de Janeiro, jul.-set., vol. 303, p. 23-27, 1988. p. 24). 416 Sobre a teoria do contrato plurilateral, aprimorada por Tullio Ascarelli, vide item 4.2 deste trabalho. 417 Segundo Carla Marshal, pela teoria do contrato-organização “[...] cria-se uma organização, apta a atribuir individualidade e perpetuidade ao patrimônio a este fim destinado, perdendo importância a pluralidade de sócios, pois tanto a pluralidade como o único indivíduo pode ter interesse na criação de tal organização, não havendo confusão entre interesse social e interesse do sócio único.” (MARSHALL, Carla C. A sociedade por quotas e a unipessoalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 33) Na mesma direção, Calixto Salomão Filho afirma que “[...] “tanto uma pluralidade como um único individuo pode ter interesse na criação de uma tal organização.” (SALOMÃO FILHO, Calixto. A sociedade unipessoal. São Paulo: Malheiros Editores, 1995. p. 58). 418 COELHO, 2003, p. 381. 419 PRADO FILHO, op. cit., p. 86. 420 Idem, ibidem. 114 aberto reconhecido ao contrato de sociedade, a permitir a entrada e saída de associados sem o distrato da avença, permite-nos concluir que são de todo irrelevantes, para a organização criada, tanto a quantidade quanto a qualidade dos sócios.421 Em que pese o ordenamento jurídico brasileiro não ter admitido a sociedade empresária limitada originariamente unipessoal, ao menos reconheceu, ainda que timidamente, esse caráter organizativo do contrato de sociedade, porquanto veio a admitir a unipessoalidade originária tanto na constituição da sociedade subsidiária integral422 (Lei nº 6.404/76, art. 251) quanto na da empresa pública unipessoal423 (Decreto-Lei nº 200/67, art. 5º, II), bem como a unipessoalidade incidental temporária (Código Civil, art. 1.033, IV e Lei nº 6.404/76, art. 206, I, ‘d’). O Direito comparado, por outro lado, contempla a sociedade unipessoal limitada, não apenas supervenientemente – quando a sociedade passa a contar com um único sócio sem que haja, por isso, a necessidade de sua dissolução imediata, como, v.g., os casos 421 PRADO FILHO, op. cit., p. 86. Além disso, José Inácio Ferraz de Almeida Prado Filho afirma que a personalidade jurídica deve ser compreendida de forma deslocada da pluralidade de sócios: “A personificação jurídica deferida a alguns tipos de sociedades representa uma simples técnica de imputação de direitos e deveres, com vistas à obtenção de autonomia patrimonial e limitação de responsabilidade e deve, portanto, ser compreendida e estudada de maneira descolada da pluralidade de sócios. Nada impede, nessa ordem de idéias, que a personificação seja concedida sobre substrato que não represente pluralidade de pessoas, como ocorreria na sociedade unipessoal, desde que autorizado por lei. É, aliás, justamente esse o caso das fundações, tal como admitidas no direito nacional vigente, pessoas jurídicas cujo substrato é uma massa de bens.” (PRADO FILHO, op. cit., p. 86) 422 LEI N.º 6.404/76, art. 251: “A companhia pode ser constituída, mediante escritura pública, tendo como único acionista sociedade brasileira.” 423 Sobre a empresa pública unipessoal, José Cretella Júnior esclarece que: “Unipessoal é a empresa pública federal, constituída sob forma de sociedade anônima de um só acionista - a União. Dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, a empresa pública federal, assim constituída, é criada por lei para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por contingência ou conveniência administrativa. Temos, assim, a implantação de uma novidade em nosso direito, a sociedade de apenas um sócio acionista [...] O objetivo da empresa pública unipessoal federal será a prestação de atividades econômicas, mas nada impede que tenha por objetivo a exploração de serviços públicos administrativos. Criada por lei, a empresa pública federal unipessoal explorará, necessariamente, atividade econômica, revestindo personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União. Pode, entretanto, a empresa pública unipessoal federal resultar da transformação de outra entidade já existente, pública (autarquia) ou privada (concessionária ou permissionária), assumindo a União, no caso, a gestão da empresa. Nesta hipótese, se a entidade anterior explorava ‘atividade privada’, a nova categoria, empresa pública unipessoal federal, manterá a mesma modalidade de serviço; se a entidade anterior explorava ‘serviço público’, a nova categoria também, é claro, na qualidade de mera sucessora, assumirá a gestão dos serviços públicos administrativos, garantindo-lhes a continuidade.” (CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de Direito Administrativo. vol. 1, 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 78). 115 do art. 1.033, IV do Código Civil e art. 206, I, ‘d’ da Lei nº 6.404/76) –, mas desde o momento originário de sua constituição. É conferir: Na Alemanha, já em 1980, com a alteração da GmbHG, possibilitou-se a existência da sociedade limitada unipessoal (Einmann-GmbH).424 No mesmo ano, com a modificação da lei sobre transformação de sociedades (Umwandlungsgestz), o legislador alemão permitiu que a empresa individual alterasse a sua forma para sociedade limitada.425 Pela Lei nº 85.697, de 11.7.85, o legislador francês permitiu que uma pessoa instituísse, por ato unilateral de vontade, uma sociedade de responsabilidade limitada, denominada “empresa unipessoal de responsabilidade limitada” (entreprise unipersonnelle à responsabilité limitée, ou EURL).426 Na Itália, com o Decreto Legislativo nº 88, de 3.3.93, possibilitou-se a instituição de sociedade limitada originariamente unipessoal.427 A Lei espanhola de nº 2, de 23.3.95, em seus artigos 125 e seguintes, disciplina as sociedades unipessoais de responsabilidade limitada, estabelecendo as formas de publicidade, de tomada de decisão, forma de contratação com o próprio sócio e da eventual responsabilidade do sócio no caso de insolvência.428 No direito português, o Decreto-Lei nº 246/86 instituiu o “estabelecimento individual com responsabilidade limitada”, e, posteriormente, pelo Decreto-Lei nº 257, de 31.12.96, a sociedade unipessoal por quotas (de responsabilidade limitada) foi adicionada ao Código das Sociedades Comerciais, não se utilizando, todavia, da figura da sociedade por quotas para dar roupagem jurídica à nova figura.429 Na Bélgica, a sociedade unipessoal de responsabilidade limitada foi instituída pela Lei de 14 de julho de 1987, tendo sido complementada por outra Lei de 13 de abril de 1995. O mesmo ocorreu no Luxemburgo, em virtude da lei de 28 de dezembro de 1992, e na Holanda, em decorrência da Lei nº 275/86.430 Dessa forma, a sociedade unipessoal limitada encontra-se largamente aceita no Direito comparado, cuja finalidade não é outra senão a de incentivar micros, pequenos e 424 A redação do § 1º da GmbHG permite que as sociedades limitadas sejam constituídas por uma ou várias pessoas. 425 WALD; TEIXEIRA, op. cit., p. 175. 426 Idem, ibidem; MARTINS, op. cit., p. 163. 427 WALD; TEIXEIRA, op. cit., p. 175. 428 Idem, ibidem. 429 Idem, ibidem. 430 Idem, ibidem. 116 médios empreendedores,431 e, por conta disso, a inovação útil e oportuna também deveria ter sido objeto de disciplina legislativa no Brasil. No entanto, como bem disse Vera Helena de Mello Franco, o Código Civil deixou “[...] passar em branco a possibilidade de introdução da sociedade limitada unipessoal em descompasso flagrante com as leis modernas, sem explicar o porquê da postura rançosa.”432 Ressalte-se que o silêncio do legislador pátrio para as sociedades unipessoais limitadas e, pois, para a questão da limitação da responsabilidade do empresário individual, não se coaduna com o pensamento da maioria da doutrina nacional433 a respeito do tema. Veja-se, por exemplo, o entendimento de Newton de Lucca et al: A possibilidade de limitação do risco, por parte de quem pretende lançar-se isoladamente ao exercício da atividade empresarial, é poderoso fator de estímulo ao surgimento de novas empresas. Se elas, como se viu no início destas linhas, desempenham papel de extremo relevo na sociedade contemporânea, não parece nada razoável a ausência de uma disciplina para a empresa individual de responsabilidade limitada, no nosso NCC [...] Todos sabem da absoluta necessidade, desde os primórdios do direito marítimo, da necessidade da limitação da responsabilidade patrimonial para o desenvolvimento das atividades mercantis. Nada mais natural e justo, afinal de contas, por parte de quem se aventura na vida empresarial, que queira 431 “Nos considerandos da 12ª Diretiva da União Européia, que trata das sociedades de responsabilidade limitada com um único sócio, há remissão específica à finalidade de beneficiar as pequenas e médias empresas.” (WALD; TEIXEIRA, op. cit., p. 175). 432 FRANCO, Vera Helena de Mello. O triste fim das sociedades limitadas no novo Código Civil. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, n. 123, p. 84, jul.-set., 2001. 433 É o caso de Arnaldo Wald, para quem: “Uma questão não enfrentada pelo legislador do novo Código Civil é a possibilidade da limitação da responsabilidade do empresário individual, mediante a utilização da figura das sociedades limitadas. Conforme o sistema jurídico brasileiro, o critério para a verificação da pluripessoalidade não é a efetiva colaboração entre dois ou mais sujeitos, mas a participação no capital social independente de percentual mínimo. Em vista disto, há situações nas quais um sócio é titular de 99% das quotas, participando o outro com apenas 1% do capital. Para se beneficiar da limitação da responsabilidade, e por não ser aceita a unipessoalidade, os empresários utilizam-se da sociedade pluripessoal para revestir um empreendimento claramente desenvolvido por uma única pessoa. A necessidade de se encontrar um parceiro fictício serve apenas como maneira de cumprir as formalidades legais para atingir o fim pretendido, qual seja, a limitação da responsabilidade. A permissão legal de constituição da sociedade unipessoal evitaria a verdadeira hipocrisia que existe nestas empresas. A adoção de regras específicas para o caso, com vistas à proteção dos credores e à previsão de formalidades que garantam a separação do patrimônio empresarial dos bens individuais do sócio, importariam no reconhecimento de uma realidade préexistente. A unipessoalidade com responsabilidade limitada é relevante para a organização de pequenos e médios empresários, pois implica na possível separação de parte do patrimônio para o desenvolvimento da atividade empresarial, afastando a simulação de sociedade, quando na verdade há apenas um interessado, sendo o outro sócio apenas um ‘homem-palha’ para cumprir com o requisito da pluripessoalidade e obter o benefício da responsabilidade limitada.” (WALD; TEIXEIRA, op. cit., p. 175). 117 fazê-lo pondo em risco apenas uma parcela predeterminada de seu patrimônio.434 Na mesma direção, absolutamente precisa a observação já traçada por Sylvio Marcondes, no sentido de ser [...] corrente que o princípio da responsabilidade patrimonial ilimitada, especialmente no caso das pessoas físicas, não se coaduna com os caracteres da atividade econômica moderna. A extensão e o complicado entrelaçamento dos negócios, a enorme dificuldade de previsão nas operações comerciais e industriais, os riscos e perigos que as circundam na interdependência, freqüentemente mundial, dos fatos econômicos, impõem a limitação dos riscos patrimoniais, e com um impulso irresistível, que se desafoga inevitavelmente no ludíbrio à lei, quando não encontra nesta a fórmula correspondente [...] A limitação da responsabilidade é uma aspiração incoercível, que o comerciante singular, contra a lógica do princípio vigente, concretiza pelo meio escuso de formas sociais fictícias. A empresa individual com responsabilidade limitada pretende enfrentar essa realidade, conferindo-lhe uma solução legal e, por isso mesmo, sincera. E o empenho em criar o instituto encontra inspiração e claridade na lição de Ihering: ‘A vida não deve dobrar-se aos princípios; os princípios é que hão de modelarse pela vida. Não é, de modo algum, a lógica; é a vida, são as relações, o sentimento jurídico, que determinam o que deve ser.’435 Sobre essa necessária limitação do risco no exercício da atividade econômica, é de se conferir, ainda, as seguintes considerações do inolvidável Sylvio Marcondes: Não obstante, setores há, de atividade, no campo da economia, em que a aplicação do princípio deve sofrer atenuações, sob pena de entrave ao progresso dos empreendimentos humanos. Os vultosos recursos necessários ao desenvolvimento de certas iniciativas; o risco de prejuízos peculiar a determinados negócios; a falta de habilitação técnica de pessoas providas de capitais; a longa duração de algumas empresas; a timidez da pequena economia; a alta especialização de vários ramos profissionais – eis algumas, das múltiplas razões, subjetivas ou objetivas, que determinam a conciliação daquele preceito geral, com interesses especiais da coletividade. É nas necessidades do tráfico que operam esses motivos e, por isso, ao Direito Mercantil e às leis do comércio compete regular-lhes os efeitos, harmonizando conveniências e engendrando as formas próprias.436 Dessa forma, ao preferir o silêncio, senão o descaso, o legislador pátrio, no Código Civil, perdeu a oportunidade de admitir e disciplinar as sociedades limitadas 434 LUCCA et al, op. cit., p. 11. MARCONDES, op. cit., p. 16. 436 Idem, p. 19-20. 435 118 originariamente unipessoais, amplamente aceitas no Direito comparado, ou, como prefere Newton de Lucca et al, perdeu “[...] a oportunidade de revelar-se um diploma realmente avançado para a sua época.”437 De toda sorte, a inércia do legislador nacional convida o empreendedor individual a constituir aquelas sociedades puramente fictícias, onde figurantes de complacência comparecem apenas para satisfazer a idolatria das formas preconizada pela lei: compor a pluralidade de sócios. 5.2 Do empresário individual de responsabilidade limitada O modelo não-personificado de limitação da responsabilidade do empresário individual, menos difundido, mas amplamente aceito, é aquele que permite ao empresário individual destacar parte de seu patrimônio geral e afetá-lo ao exercício de empresa, criando-se um patrimônio especial, não personificado. Quando à responsabilidade patrimonial, o patrimônio geral, particular do empresário individual, não responde pelas obrigações do patrimônio especial, afetado à empresa, bem como este não responde pelas obrigações daquele.438 Dessa forma, a separação patrimonial reflete no fato de que somente os bens destinados à atividade econômica, que formam o patrimônio especial afetado à empresa, respondem pelas obrigações contraídas nesse âmbito, ou seja, o patrimônio particular do empresário não é afetado por dívidas da empresa e os credores desta não concorrem com os credores particulares.439 É de se ressaltar que, enquanto o modelo personificado de limitação da responsabilidade do empresário individual, materializado na sociedade unipessoal limitada, implica na superação da teoria eminentemente contratualista de constituição societária, o modelo não-personificado consiste, igualmente, na superação daquela teoria clássica que 437 LUCCA et al, op. cit., p. 11. Credita-se ao jurista Oskar Pisko o mérito de ter desenvolvido, pela primeira vez, o embasamento jurídico para a limitação da responsabilidade para a atividade do empresário individual, com a noção de patrimônio separado, autônomo, patrimoines d'affectation ou Zweckvermögen – na tradução literal do alemão, patrimônio em virtude de um fim –, indicando o conceito de patrimônio autônomo destinado a um objetivo: a atividade comercial com responsabilidade limitada. Essa foi a solução adotada no Principado de Liechtenstein. Cf. COSTA, Carlos Celso Orcesi da. Empresas unipessoais. Revista de Direito Mercantil, ano XXII, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 33-44, jul.-set., n. 51, 1983. 439 SALOMÃO FILHO, 1995, p. 27. 438 119 compreende o patrimônio440 como “[...] emanação da personalidade e, por isso mesmo, inseparável da pessoa, encarado como único e indivisível.”441 Cediço que o patrimônio tem um vínculo natural com a pessoa, seja ela natural ou jurídica, pois supõe um sujeito a que se liga. Uma coisa, entretanto, é reconhecer a ligação entre personalidade e patrimônio; outra, confundir as noções, reduzindo o último à aptidão de ter direitos e obrigações,442 como muito bem elucidado por Orlando Gomes: A noção de patrimônio foi ligada, primeiramente, à de personalidade. Segundo a teoria clássica, o patrimônio é a ‘expressão do poder jurídico em que toda pessoa está investida como tal’. As conseqüências da vinculação do patrimônio à personalidade consubstanciam-se no elemento de coesão, que explica o princípio de identidade e continuidade do patrimônio, pelo qual a substituição dos bens e seu aumento ou diminuição não ferem a substância conceitual de unidade abstrata, que se conserva a mesma durante toda a vida da pessoa. Nessa conceituação, o patrimônio obedece a quatro princípios fundamentais: 1º - só as pessoas, naturais ou jurídicas, podem ter patrimônio; 2º - toda pessoa tem necessariamente um patrimônio; 3º - cada pessoa só pode ter um patrimônio; 4º - o patrimônio é inseparável da pessoa. A tese da unidade do patrimônio confunde duas noções distintas: a de patrimônio e a de personalidade. O patrimônio seria a aptidão para ter direitos e contrair obrigações, tornando-se, assim, um conceito inútil.443 (grifos do autor) De fato, no ordenamento jurídico brasileiro, a teoria do patrimônio subsiste personalista, porquanto somente pessoas, naturais ou jurídicas, podem ser titulares de patrimônio. Pode-se dizer também que todas as pessoas têm, pelo menos, um patrimônio, onde deverão ingressar todas as posições jurídicas, ativas e passivas, simples e complexas, de que o sujeito seja ou venha a ser titular. Mais que isso, porém, não se pode afirmar, uma vez 440 Segundo José Maria Trepat Cases, “A teoria clássica de patrimônio é do século XIX, erigida em torno da obra de Aubry e Rau, desacreditada por alguns doutrinadores, em função de seu rigorismo lógico e artificial. O ponto assinalado por seus criadores, que culmina na síntese da teoria, é o que leva em conta o patrimônio como emanação da personalidade e expressão de potestade jurídica de que está investida uma pessoa como tal. Estigmatizada pelos contrários com excessiva rigidez, a ponto de considerarem uma aberratio, confunde patrimônio, que é um conjunto de bens, com personalidade, que é a aptidão de possuir. Para Aubry e Rau o patrimônio e a personalidade estão unidos por vínculo, sendo o primeiro um atributo da personalidade, cingido pelas características a seguir expostas.” (CASES, José Maria Trepat. Patrimônio: novo conceito da teoria irrestritiva ou imaterial. Disponível em: <http://www.professorchristiano.com.br/artigo_jose_maria01.pdf>. Acesso em: 04 nov. 08). 441 BRUSCATO, op. cit., p. 165. 442 Nesse sentido, a lição de Caio Mário da Silva Pereira: “Há, sem dúvida, uma relação necessária entre a existência do indivíduo em sociedade e o seu patrimônio, sem, contudo, autorizar aquela construção abstrata que encontrou em Aubry e Rau a sua expressão mais apurada, e que criou o artificialismo da concepção do patrimônio como a personalidade mesma do homem, considerada em suas relações com os objetos exteriores. Neste sentido, deixaria de ser um conjunto de valores econômicos e se configuraria como o poder jurídico do homem, abstração incompatível com a sua realidade concreta.” (PEREIRA, op. cit., p. 83). 443 GOMES, 2007b, p. 127. 120 que, na concepção moderna do patrimônio, os princípios de unidade e indivisibilidade não sobrevivem,444 valendo, a esse respeito, a insuperável lição de Orlando Gomes: [...] levanta-se a doutrina moderna, que justifica a coesão dos elementos integrantes de uma universalidade de direito pela sua destinação comum. O vínculo é objetivo. Patrimônio será, desse modo, o conjunto de bens coesos pela afetação a fim econômico determinado. Quebra-se o princípio da unidade e indivisibilidade do patrimônio, admitindo-se um patrimônio geral e patrimônios especiais. No patrimônio geral, os elementos unem-se pela relação subjetiva comum com a pessoa. No patrimônio especial, a unidade resulta objetivamente da unidade do fim para o qual a pessoa destacou, do seu patrimônio geral, uma parte dos bens que o compõem, como o dote e o espólio. A idéia de afetação explica a possibilidade da existência de patrimônios especiais. Consiste numa restrição pela qual determinados bens se dispõem, para servir a fim desejado, limitando-se, por este modo, a ação dos credores.445 (grifos do autor) Na mesma direção, absolutamente precisa a observação já traçada por Clóvis Beviláqua, segundo a qual a regra geral de que a cada pessoa corresponde um único patrimônio não significa impossibilidade de criação de patrimônios distintos para um mesmo sujeito de direito, assim denominados patrimônio especiais, porquanto “[...] o direito permite a divisão delle, para satisfazer a necessidades de ordem prática.”446 O ordenamento jurídico brasileiro, aliás, é fértil em exemplos.447 Veja-se o caso da herança: verificado o óbito, a massa hereditária transmite-se, desde logo, aos 444 Orlando Gomes, nesse sentido, é taxativo: “Na concepção moderna do patrimônio, os princípios de unidade e indivisibilidade não sobrevivem.” (GOMES, 2007b, p. 127). 445 Idem, ibidem. Na mesma direção, José Maria Trepat Cases pontifica: “Toda pessoa tem um único patrimônio geral, mas, em decorrência de determinadas situações, seja por vontade de seu titular, seja por força de lei, poderão ser separados elementos ativos do patrimônio geral para formar um patrimônio distinto, com o objetivo de atender a um fim determinado. São os chamados patrimônios separados, patrimônios especiais, patrimônios de destinação ou patrimônios autônomos. São exemplos de patrimônios distintos do patrimônio geral, dentre outros: a herança indivisa, massas concursais – da falência, da insolvência civil e da liquidação extrajudicial - o dote, o fideicomisso, o bem de família. Quanto à responsabilidade patrimonial, o patrimônio geral não responde pelas dívidas do patrimônio separado ou autônomo e, o patrimônio separado ou autônomo, não o faz pelas dívidas do patrimônio geral.” (CASES, op. cit.). 446 BEVILÁQUA, op. cit., p. 290-291. 447 Alguns desses exemplos são citados por José Inácio Ferraz de Almeida Prado Filho: “Além da aceitação da herança, que em nosso ordenamento só pode ser a benefício de inventário (arts. 1.792 e 1.821 do Código Civil), veja-se os casos da comunhão matrimonial de bens (arts. 1.667 e ss.), do patrimônio do ausente (arts. 22 e ss.), da herança jacente (arts. 1.819 e ss.) e da aceitação da herança pelos credores do renunciante (art. 1.813). Há, ainda, duas grandes inovações trazidas pela promulgação da Lei 10.406/2002. A primeira delas encontra-se no art. 974 e seu § 2º, que põem a salvo do exercício da empresa os bens anteriores detidos pelo incapaz e que sejam estranhos ao acervo da atividade; a segunda foi objeto do art. 978, que dispensa a outorga conjugal, qualquer que seja o regime de bens, para alienação ou oneração de imóveis afetados ao exercício de atividade econômica.” (PRADO FILHO, op. cit., p. 92). 121 herdeiros (Código Civil, art. 1.784), mas pelas dívidas do de cujus responderá apenas o monte da herança (Código Civil, arts. 1792 e 1.821). Anote-se, também, a faculdade de que gozam os credores de exigir que do patrimônio do falecido se discrimine o do herdeiro, assegurandolhes preferência, em concurso com os credores deste (Código Civil, arts. 2.000). Daí, então, Sylvio Marcondes entender que a coexistência no direito nacional da herança e do patrimônio sob a titularidade de uma mesma pessoa, é suficiente para que seja admitida a existência de patrimônio diversos na titularidade de um mesmo sujeito direito.448 Dessa forma, pode-se afirmar que é perfeitamente possível a criação de patrimônios distintos para um mesmo sujeito de direito, em razão de uma finalidade especial previamente estabelecida, desde que tal providência seja obtida pela lei, ou na forma que esta disciplinar. Assim, vislumbrada a possibilidade de criação de patrimônios distintos para um mesmo sujeito de direito, permite-se ao empresário individual destacar uma parte dos bens que compõem o seu patrimônio geral para formar um patrimônio especial, não personificado, afetado ao exercício de empresa. Essa segregação patrimonial traz consigo a limitação da responsabilidade do empresário individual: os bens que compõem o seu patrimônio geral não respondem pelas obrigações contraídas no exercício de empresa; são os bens destinados à atividade econômica, que compõem o patrimônio especial afetado à empresa, que respondem pelas obrigações contraídas nesse âmbito. 5.3 Em defesa da validade das sociedades fictícias ou de favor Recapitulando, o ordenamento jurídico brasileiro não confere ao empresário individual qualquer instrumento que permita a limitação de responsabilidade pelos riscos da exploração de empresa. Sem um instrumento apto a limitar tais riscos, existentes em qualquer empresa, o expediente utilizado pela pessoa natural do empresário individual, para lograr o mesmo fim, tem sido a constituição de sociedades fictícias ou de favor, onde figurantes de complacência comparecem para compor a pluralidade de sócios. A questão que resta por analisar é a validade desse expediente, e dizem respeito a duas ordens de idéias: (i) a eventual existência de simulação dos atos constitutivos 448 MARCONDES, Sylvio. Problemas de Direito mercantil. São Paulo: Max Limonad, 1970. p. 91. 122 das sociedades de favor; e (ii) a verificação, nesse caso, de fraude à lei. Antes dessa análise, para melhor compreensão, exige-se uma breve incursão pela doutrina civilista da simulação e da fraude à lei. 5.3.1 Da simulação e da fraude à lei no Direito Civil A simulação, segundo Itamar Gaino, “[...] é o fenômeno da aparência contratual criada intencionalmente. Tem-se simulação, precisamente, quando as partes estipulam um contrato com a consciência de que ele não corresponde à realidade da relação verdadeiramente querida.”449 No magistério de Orlando Gomes, “A simulação existe quando em um contrato se verifica, para enganar a terceiro, intencional divergência entre a vontade real e a vontade declarada pelas partes.”450 Na mesma direção,451 Luiz da Cunha Gonçalves diz que “[...] na simulação verifica-se um propositado desencontro entre a vontade real e a vontade declarada, tendo esta por fim a realização daquela, mas sem o conhecimento de terceiros ou das autoridades e oficiais públicos, que intervêm no ato ostensivo.”452 Das lições de Francesco Ferrara, grande estudioso do tema, colhe-se a seguinte definição: Negócio simulado é o que tem uma aparência contrária à realidade, ou porque não existe em absoluto ou porque é diferente da sua aparência. Entre a forma extrínseca e a essência íntima há um contraste flagrante: o negócio que, aparentemente, é sério e eficaz, é, em si, mentiroso e fictício, ou constitui uma máscara para ocultar um negócio diferente. Esse negócio, pois, é destinado a provocar uma ilusão no público, que é levado a acreditar na sua existência ou na sua natureza, tal como aparece declarada, quando, na verdade, ou não se realizou um negócio ou se realizou outro diferente do expresso no contrato.453 449 GAINO, op. cit., p. 31. GOMES, 2007b, p. 263. 451 Para Washington de Barros Monteiro, igualmente na mesma direção, a simulação “[...] se caracteriza pelo intencional desacordo entre a vontade interna e a declarada, no sentido de criar, aparentemente, um ato jurídico que, de fato, não existe, ou então oculta, sob determinada aparência, o ato realmente querido.” (MONTEIRO, op. cit., p. 254). 452 GONÇALVES, Luiz da Cunha. Tratado de Direito Civil em comentário ao Código Civil Português. 2. ed. atual e aum. e 1. ed. brasileira. v. 5, t. 2., São Paulo: Max Limonad, 1956. p. 851. 453 FERRARA, Francesco. A simulação dos negócios jurídicos. Tradução de A. Bossa. São Paulo: Saraiva, 1939. p. 51. 450 123 Enzo Roppo, por sua vez, esclarece que: Através da simulação, os contraentes declaram querer um certo regulamento contratual, quando, na realidade, estão de acordo em não querer nenhum ou em querer um diverso do declarado. Para tal fim, é necessário que, ao lado da declaração, à qual corresponde o contrato simulado e, portanto, simplesmente falso, as partes emitam um contradeclaração, que enuncie a sua vontade real. Cria-se, assim, uma situação aparente, destinada, na intenção das partes, a enganar os terceiros (o contrato simulado), por detrás de cuja aparência está a situação real, que corresponde aos efeitos e ao programa efetivamente querido pelas partes.454 A simulação, portanto, é um vício que produz efeitos para o exterior, na medida em que os contraentes sabem exatamente o que declararam e o que na verdade querem,455 não havendo nada há macular o consentimento das partes. Daí a doutrina classificar a simulação, não como um vício do consentimento, mas como um vício social.456 Distinguem-se, como espécies de simulação, a absoluta e a relativa. A simulação é absoluta,457 consoante lição de Itamar Gaino, “[...] quando o negócio nada tem de real, ou seja, é uma pura aparência ou ficção, não ocultando qualquer negócio que, de fato, tenha sido querido pelas partes.”458 A simulação é relativa, por sua vez, “[...] quando sob a aparência de um negócio (falso), oculta-se outro (verdadeiro),”459 isto é: Dá-se a simulação relativa quando se realiza aparentemente um negócio jurídico, querendo e levando-se a efeito outro diferente. Os contratantes concluem um negócio que é verdadeiro, mas o ocultam sob uma forma jurídica diversa. A aparência serve apenas para iludir o público. Detrás dela esconde-se a verdade, a que se chama negócio dissimulado.460 (grifos do autor) 454 ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 1988. p. 162. 455 Nesse sentido, Caio Mário da Silva Pereira assevera: “Não há na simulação um vício do consentimento porque o querer do agente tem em mira, efetivamente, o resultado que a declaração procura realizar ou conseguir. Mas há um vício grave no ato, positivado na desconformidade entre a declaração de vontade e a ordem legal, em relação ao resultado daquela ou em razão da técnica de sua realização. Consiste a simulação em celebrar-se um ato, que tem aparência normal, mas que, na verdade, não visa ao efeito que juridicamente devia produzir. Como em todo negócio jurídico, há aqui uma declaração de vontade, mas enganosa.” (PEREIRA, op. cit., p. 127). 456 A esse respeito vide item 4.2.1.1 supra. 457 Francesco Ferrara diz que “[...] é negócio absolutamente simulado aquele que, existindo em aparência, carece de conteúdo real e sério. As partes não querem o ato, mas somente a ‘ilusão externa’ produzida pelo mesmo. O negócio limita-se a uma forma vazia destinada a enganar o público.” (FERRARA, op. cit., p. 198). 458 GAINO, op. cit., p. 59. 459 Idem, p. 62. 460 Idem, ibidem. 124 Consoante o disposto no caput do art. 167 do Código Civil, somente é nulo o negócio jurídico em sendo absoluta461 a simulação. Se for relativa,462 subsiste o negócio que se dissimulou, salvo se este padecer de outro defeito, na forma ou na própria substância. É bem de ver, aliás, que o Código Civil, em seu art. 167, § 1º, prevê três hipóteses de simulação: (i) por interposição de pessoas; (ii) por ocultação da verdade na declaração; e (iii) por falsidade da data.463 A primeira hipótese legal de simulação (Código Civil, art. 167, § 1º, I) é a que se dá por interpostas pessoas (simulação ad personam ou simulação relativa subjetiva). Nessa espécie, “[...] o negócio celebrado é real, mas a parte nele figurante em verdade parte não é: é chamado ‘testa-de-ferro’, ‘homem-de-palha’ ou ‘presta-nome’. Parte verdadeira é a que resta oculta e que se costuma chamar ‘pessoa real’.”464 Como explica José Beleza dos Santos: Dizem-se interpostas pessoas as que figuram nos negócios jurídicos como simples intermediários entre aqueles a quem esses atos interessam diretamente e sem terem qualquer interesse próprio nos atos que realizam. O seu fim é apenas permitir que se efetuem indiretamente, por seu intermédio, os negócios jurídicos que não se querem ou não se podem realizar.465 A interposição de pessoas, nas palavras de Itamar Gaino, [...] consiste em fazer aparecer um sujeito diverso daquele que é verdadeiro. O sujeito que, aparentemente, assume a obrigação, adquire o direito, ou sucede no benefício, é um sujeito decorativo, destinado a substituir, no secreto acordo simulatório, o sujeito efetivo, que de todos é ignorado, sendo conhecido apenas pelas partes contratantes.466 461 A simulação é absoluta, para Washington de Barros Monteiro, “[...] quando a declaração de vontade exprime aparentemente um negócio jurídico, não sendo intenção das partes efetuar negócio algum (colorem habens, substantiam vero nullam). Caracteriza-se essa modalidade de simulação pela completa ausência de qualquer realidade (umbra sine effectu). O ato é inexistente, ilusório, fictício. Espelha uma simples aparência, uma sombra vã, um corpo sem alma, na feliz expressão de Baldo.” (MONTEIRO, op. cit., p. 256). 462 É relativa a simulação, ainda na lição de Washington de Barros Monteiro, “[...] quando efetivamente há a intenção de realizar algum negócio jurídico, mas este: (a) é de natureza diversa daquele que, de fato, se pretende ultimar (colorem habens, substantiam vero alteram); (b) não é efetuado entre as próprias partes, aparecendo então o testa-de-ferro, o prestanome, ou a figura de palha; ou (c) não contém elementos verdadeiros, ou melhor, seus dados são inexatos.” (MONTEIRO, op. cit., p. 257). 463 CÓDIGO CIVIL, art. 167, § 1º: “Haverá simulação nos negócios jurídicos quando: I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.” 464 GAINO, op. cit., p. 67. 465 SANTOS, José Beleza dos. A simulação em Direito Civil. 2. ed. São Paulo: Lejus, 1999. p. 221. 466 GAINO, op. cit., p. 67. 125 Assim, a pessoa interposta é “[...] apenas um traço de união, uma ponte de passagem, não tendo interesse patrimonial algum nos atos em que colabora, os quais apenas interessam àqueles a quem o interposto serve de intermediário.”467 Todavia, deve-se distinguir a interposição que é lícita (interpostas pessoas reais) daquela que é, ao contrário, considerada ilícita (interpostas pessoas simuladas).468 A par dessa concepção, José Beleza dos Santos arrola os seguintes elementos como necessários à configuração da simulação por interposta pessoa: a) que haja duas ou mais pessoas a quem interesse a realização de um negócio jurídico; b) que todos ou alguns dos interessados não o queiram ou não o possam diretamente realizar; c) que exista um intermediário por meio de quem o ato se pratique e com quem os diretamente interessados estabeleçam relações jurídicas; d) que esse intermediário não tenha interesse próprio na realização do negócio, atuando apenas como um testa-de-ferro ou ponte de passagem.469 Por seu turno, a segunda hipótese legal de simulação (Código Civil, art. 167, § 1º, II) é a que se obtém por falseamento do objeto negocial, nele se fazendo inserir declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira. Nessa espécie, segundo Humberto Theodoro Júnior, “Forja-se um negócio que nunca se quis realmente praticar; ajusta-se a aparência de um negócio quando nada de verdadeiro se pretendeu contratar (simulação absoluta); ou declara-se um tipo de negócio, quando o verdadeiro é outro (simulação relativa).”470 Vislumbra-se a terceira hipótese legal de simulação (Código Civil, art. 167, § 1º, III) quando os instrumentos particulares forem antedatados ou pós-datados. Trata-se de simulação relativa, “[...] porque debaixo do negócio aparente existe um verdadeiro que, entretanto, se consumou em momento diverso do mencionado pelas partes. A manobra 467 SANTOS, op. cit., p. 222. Acerca da distinção entre interposta pessoa simulada e interposta pessoa real, Itamar Gaino destaca que: “Na primeira, a pessoa interposta não é destinatária dos efeitos do contrato e só aparentemente figura como parte. Na interposição real, diversamente, a pessoa interposta adquire o direito decorrente do contrato, mas é obrigada a retransmiti-lo a uma terceira pessoa. Na interposição de pessoa real, o negócio é válido, produzindo efeitos em relação a ela.” (GAINO, op. cit., p. 69). Daí Humberto Theodoro Júnior concluir que para ter-se a simulação por interposta pessoa “[...] é necessário que o negócio aparente seja realmente falso. Não haverá, portanto, negócio simulado quando o intermediário se apresentar ostensivamente como intermediário, na qualidade de mandatário, representante ou gestor, ou quando, por exemplo, figurar como adquirente de um bem com a obrigação de retransmiti-lo, em seguida, a outra pessoa. Em tal conjuntura não se entrevê negócio simulado porque a declaração corresponde à vontade real dos participantes.” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. vol. III, t. I, 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 254). 469 SANTOS, op. cit., p. 222. 470 THEODORO JÚNIOR, op. cit., p. 255. 468 126 astuciosa geralmente se faz para fugir de concurso de credores ou para fraudar direitos de terceiros.”471 Vista de um outro ângulo, isto é, em razão da boa-fé ou da má-fé do agente, ou dos agentes, a simulação pode ser inocente ou maliciosa.472 Na primeira, “[...] faz-se uma declaração que não traz prejuízo a quem quer que seja, e, por isto mesmo, é chamada inocente e tolerada pelo direito.”473 Na segunda, por sua vez, “[...] há intenção de prejudicar a terceiros ou de violar disposição de lei, e, como expressão da malícia ou da má-fé do agente, inquina o ato negocial.”474 Assim sendo, “A simulação inocente, porque o é e enquanto o for, não leva à nulidade do negócio. A maliciosa475 pode ter como conseqüência a nulidade do negócio.”476 É de se ressaltar, por oportuno, que o negócio simulado não deve ser confundido com o negócio indireto. Este “[...] se caracteriza pelo propósito de se alcançar um efeito jurídico por um meio, a rigor, não apropriado. É o uso de uma via oblíqua em lugar da via normal ou o uso de um negócio típico fora de seu fim específico.”477 A diferença essencial entre negócio simulado e negócio indireto, segundo Itamar Gaino, está em que: “[...] no negócio indireto aquilo que aparenta ser é o realmente querido pela parte; na simulação, aquilo que aparenta não é o desejado, podendo haver, isto sim, de modo oculto, o negócio real programado pelas partes.”478 Tullio Ascarelli, com excepcional clareza, ressalta que, no negócio indireto “[...] as partes querem, efetivamente, o negócio que realizam; querem, efetivamente, submeter-se à disciplina jurídica dele; querem também os efeitos típicos do negócio adotado, 471 THEODORO JÚNIOR, op. cit., p. 255. A esse respeito, Orlando Gomes pontifica: “A simulação pode ser inocente ou maliciosa, conforme o fim a que se destina. Quando visa a prejudicar credores ou violar preceito legal diz-se fraudulenta. A simulação inocente não é defeito do contrato.” (GOMES, 2007b, p. 263). 473 PEREIRA, op. cit., p. 127. 474 Idem, ibidem. 475 Segundo Caio Mário da Silva Pereira, na simulação maliciosa, como “[...] as pessoas que participam do negócio estão movidas pelo propósito de violar a lei ou prejudicar alguém, não podem argüir o vício, ou alegá-lo em litígio de uma contra a outra, pois o direito não tolera que alguém seja ouvido quando alega a própria má-fé: ‘nemo auditur propriam turpitudinem allegans’. Se o negócio é bilateral, e foi simuladamente realizado, ambas as partes procederam de má-fé, e nele coniventes ambas, a nenhuma é lícito invocá-lo contra a eficácia da declaração de vontade. Se o negócio é unilateral, foi o próprio agente quem procedeu contra direito, e não tem qualidade para, propriam turpitudinem allegans, pleitear a sua ineficácia. Mas o terceiro lesado, o representante do poder público, ou qualquer legítimo interessado, poderão postular a nulidade do negócio simulado (art. 168).” (Idem, ibidem). 476 Idem, ibidem. 477 GAINO, op. cit., p. 50-51. 478 Idem, p. 51. 472 127 pois sem estes não alcançariam o objetivo que visam.”479 Já no negócio simulado, para alcançar o fim visado, as partes “[...] declaram o que não corresponde à vontade delas, regulando, no entanto, clandestinamente, as próprias relações jurídicas de modo conforme à vontade real; no negócio indireto, ao contrário, o fim prático visado, pelas partes é alcançado justamente por meio do negócio adotado e declarado.”480 Destarte, enquanto no negócio simulado as partes regulam clandestinamente as próprias relações jurídicas de modo conforme à vontade real, mas diverso da vontade declarada, no negócio indireto, ao contrário, o fim prático visado é alcançado justamente por meio do negócio adotado e declarado. Neste, ao contrário daquele, não há qualquer discrepância entre vontade declarada e vontade real. O que as partes querem é exatamente o negócio declarado. A peculiaridade do negócio indireto está no fato que as partes visam alcançar um fim que não é típico no negócio adotado.481 Exemplo clássico de negócio indireto, e, portanto, não simulado, é o negócio fiduciário. Segundo definição clássica, colacionada pela doutrina especializada, o negócio fiduciário é, desde a sua origem, no Direito alemão, “[...] um negócio seriamente desejado, cuja característica consiste na incongruência ou heterogeneidade entre o escopo visado pelas partes e o meio jurídico empregado para atingi-lo.”482 Como bem esclarece Francesco Ferrara: Os negócios fiduciários são sérios e efetivam-se realmente entre as partes com o fim de obter um efeito prático determinado. Os contratantes querem o 479 ASCARELLI, Tullio. O negócio indireto. In: Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Campinas: Bookseller, 2001. p. 91. 480 Idem, ibidem. 481 Sobre a diferença entre negócio simulado e negócio indireto, Humberto Theodoro Júnior destaca que, no negócio indireto “[...] as partes usam uma figura negocial típica para atingir objetivos que não lhe são próprios, mas isto não é feito para enganar ou prejudicar ninguém. Não se oculta o que realmente querem os sujeitos do negócio. O meio técnico utilizado é que não é normal. O resultado, porém, não é contrário ao direito. Na simulação o que se quer não é o negócio praticado, mas, ou se intenta ocultar uma situação de total ausência de relação jurídica (simulação absoluta), ou um outro negócio completamente diverso do aparente (simulação relativa). Às vezes pode-se quase confundir a simulação relativa com o negócio indireto, quando, por exemplo, os agentes do negócio simulado não tenham o objetivo de lesar terceiros (simulação inocente). Aí, realmente, a diferença será tênue e há quem até identifique as duas figuras. Não é, porém, impossível distingui-las: o negócio indireto usa uma via oblíqua, em lugar da via normal; usa um negócio típico fora de seu fim específico, mas o seu fim é, de fato perseguido, embora não dentro da normalidade. Tudo o que aparenta o negócio praticado é realmente querido. A divergência é de função apenas. É o que se passa com o uso do cheque pré-datado em lugar da nota promissória. Na simulação relativa, a diferença é de substância. Não se desvia o negócio aparente da função apenas. O negócio realmente querido é outro, essencialmente diverso: pratica-se, aparentemente, uma compra e venda, quando na realidade o que houve foi uma doação.” (THEODORO JÚNIOR, op. cit., p. 249). 482 CHALOUB, Melhim. Negócio fiduciário. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 41. 128 negócio com todas as suas conseqüências jurídicas, ainda que se sirvam dele para uma finalidade econômica diversa [...] o negócio fiduciário, como querido realmente, produz todos os efeitos ordinários, ainda que entre si os contratantes assumam a obrigação pessoal de usar dos efeitos obtidos unicamente para o fim entre eles estabelecido [...] Na prática, recorre-se a esta espécie de negócio, ou para suprir uma deficiência do direito positivo que não oferece a forma correspondente a uma certa finalidade econômica, ou a oferece ligada a dificuldades e inconvenientes, ou então para obter quaisquer vantagens especiais que resultam desta forma indireta de proceder. O negócio fiduciário serve para tornar possível a realização de fins que a ordem jurídica não satisfaz, para atenuar certas durezas que não se compadecem com as exigências dos tempos, para facilitar e acelerar o movimento da atividade comercial.483 Assim, o negócio fiduciário diverge do negócio simulado porque, como bem sintetiza Pontes de Miranda, “[...] os negócios jurídicos de fidúcia e outros atos jurídicos fiduciários são queridos. Não são aparentes: são.”484-485 Daí Heleno Tôrres concluir que: [...] enquanto no negócio jurídico fiduciário persegue-se um escopo atípico, que não é próprio de qualquer esquema negocial, pela simulação relativa, as partes perseguem um escopo típico que, no todo ou em parte, é próprio de um negócio jurídico típico diferente daquele aparentemente existente, ou mesmo uma ficção, na simulação absoluta, ambos como meio para servir de pressuposto para uma tutela dos terceiros que tenham confiado na situação aparente. Eis o que qualifica e demonstra sua diferença em relação aos atos simulados, pois nos negócios jurídicos fiduciários os efeitos são conhecidos, desejados e manifestados pelas partes, de forma lícita e sem qualquer interesse de causar prejuízos a outrem (simulação relativa), ou porque a vontade é desejada efetivamente e não se trata de uma ficção (simulação absoluta).486 Aliás, a jurisprudência, como se lê em paradigmático precedente do Egrégio Superior Tribunal de Justiça abaixo colacionado, reconhece a validade de negócios fiduciários, afastando-os dos contornos dos negócios simulados: O negócio fiduciário, embora sem regramento determinado no direito positivo, se insere dentro da liberdade de contratar própria do direito privado e se caracteriza pela entrega de um bem, geralmente em garantia, com a 483 FERRARA, op. cit., p. 76-77. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. t. IV, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974. p. 443. 485 Esse também é o pensar de Marcos Bernardes de Mello: “O negócio simulado é negócio que não corresponde à verdade. No negócio fiduciário, nada é inverídico, porque seu conteúdo é, precisamente, aquele que querem as partes. O negócio jurídico fiduciário jamais prejudica terceiro, mas serve aos fins explícitos dos figurantes.” (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico (plano da validade). 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 159). 486 TÔRRES, Heleno. Direito Tributário e Direito Privado: autonomia privada, simulação e elusão tributária. São Paulo: Revista do Tribunais, 2003. p. 328. 484 129 condição, verbi gratia, de ser devolvido posteriormente. Na lição de Francesco Ferrara, ‘o negócio fiduciário, como querido realmente, produz todos os efeitos ordinários, ainda que entre si os contratantes assumam a obrigação pessoal de usar dos efeitos obtidos unicamente para o fim entre eles estabelecido’ (A simulação dos negócios jurídicos, São Paulo: Saraiva, 1939, p. 76). No negócio simulado há uma distância entre a vontade real e a vontade manifestada, ao contrário do negócio fiduciário, no qual a vontade declarada corresponde à realidade.487 Deve-se ressaltar, ainda, que a fraude à lei distingue-se da simulação porque tem configurações diversas. Segundo Paulo Nader, “A fraude à lei se caracteriza quando o agente, valendo-se de negócios jurídicos permitidos, visa a alcançar resultados vedados no ordenamento. O objetivo de quem o pratica não é tirar os proveitos previstos no instituto, mas os que são escusos.”488 Heleno Tôrres, por sua vez, sintetiza: “Para se caracterizar a fraude à lei basta que se tenha lei vedando expressamente um determinado agir, na constituição de situações negociais.”489 Na lição de Itamar Gaino, A figura da fraude à lei é particular, tipificando-se em negócio jurídico por meio do qual as partes procuram criar uma ilusão, dando a entender que se trata de uma modalidade de pacto, quando, na verdade, se trata de outro, que é proibido por lei imperativa. Viola-se a lei por uma forma indireta, insidiosa. Apenas na aparência se a respeita, acatando-se o seu texto, mas falseando-se o espírito, com a finalidade de conseguir um resultado que normalmente, de forma direta, não se poderia alcançar.490 Assim, na fraude à lei, “[...] o objetivo das partes é atribuir ao negócio jurídico a aparência de legalidade, estando elas conscientes de que o resultado que procuram alcançar é, de fato, proibido pela lei.”491 Daí Humberto Theodoro Júnior afirmar que: Apenas as leis imperativas podem ser violadas ou fraudadas. As normas das leis dispositivas são apenas supletivas, isto é, vigoram à falta de convenção em contrário dos sujeitos do negócio jurídico. Logo, não há como falar-se em violação de regra dispositiva ou facultativa. Quando, porém, o preceito legal se apresenta cogente, dele decorre a proibição de qualquer prática que lhe seja desconforme. A ofensa à lei, para nulificar o negócio jurídico, tem de ser cometida contra lei imperativa (art. 166, VI e VII).492 487 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp 155.242/RJ. Relator: Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Brasília, DF, 15 fev. 99, v.u., recurso provido, DJ de 2.5.00, p. 143. 488 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: responsabilidade civil. vol. 7, Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 96. 489 TÔRRES, op. cit., p. 3489-349. 490 GAINO, op. cit., p. 54. 491 Idem, ibidem. 492 THEODORO JÚNIOR, op. cit., p. 241. 130 Analisa a teoria da simulação e da fraude à lei, pode-se adentrar aos questionamentos levantados, isto é, (i) a eventual existência de simulação dos atos constitutivos das sociedades fictícias ou de favor, e (ii) a eventual existência, nesse caso, de fraude à lei. 5.3.2 Da eventual existência de simulação dos atos constitutivos das sociedades fictícias ou de favor Como se disse, à mingua de um instrumento jurídico apto a limitar a responsabilidade pelos riscos na exploração de empresa, outra alternativa não restou ao empresário individual senão a de criar, ainda que a contragosto, só para satisfazer a idolatria das formas preconizada pela lei, uma sociedade puramente fictícia, cujo quadro societário é composto por um sócio quase totalitário – a própria pessoa natural do empresário individual – e um sócio de complacência, também chamado de presta-nome ou homem-de-palha, detentor, na maioria das vezes, de apenas uma quota do capital social. Pergunta-se então: o ato constitutivo dessas sociedades fictícias seria um negócio simulado? Ou melhor: existe simulação nas sociedades fictícias ou de favor? Antônio de Arruda Ferrer Correia filia-se à tese da existência de simulação nessas sociedades, sob o argumento de que, embora o sócio de complacência deseje efetivamente a separação patrimonial advinda da constituição da sociedade, bem como aceite as regras fixadas no contrato social, faltar-lhe-ia a real intenção de constituir-se sócio da sociedade e assumir, desse modo, todos os direitos e obrigações advindos para os que se encontram na condição de sócio.493 Em suma: as sociedades fictícias seriam simuladas, para o autor ibérico, porque o presta-nome não adquire status de sócio.494 Francesco Dominedò, filiado igualmente à tese de simulação, argumenta que nessas sociedades o presta-nome não tem interesse de concorrer para a formação do fundo social, de participar nos lucros e perdas da sociedade, nem de cooperar na sua gestão. Além disso, Dominedò acusa de simulada não só a participação do presta-nome, mas também a do sócio quase totalitário, porque ele manifesta declaração divergente de sua real intenção: 493 FERRER CORREIA, Antônio de Arruda. Sociedades fictícias e unipessoais. Coimbra: Atlântida, 1948. p. 19 e 173. 494 FERRER CORREIA, op. cit., p. 165. 131 declara intenção de associar-se quando, em realidade, não deseja se tornar sócio de ninguém.495 Entretanto, dizer que o sócio de complacência não seja efetivamente sócio, ou que tenham ele e o sócio quase totalitário emitido declarações divergentes das realmente queridas, consistem em argumentos frágeis demais. É de se lembrar o já exposto. Na simulação, há uma discrepância entre a vontade das partes e a declaração por elas emitida, divergência querida e deliberadamente procurada pelos contraentes.496 As partes buscam, por meio do negócio simulado, a criação de uma situação aparente, subjacente à qual se encontra a situação real, que corresponde aos efeitos e ao programa efetivamente querido pelas partes.497 O negócio indireto, por outro lado, é sério e real: aquilo que aparenta ser é o realmente querido pelas partes. Neste, não há qualquer discrepância entre vontade declarada e vontade real. O que as partes querem é exatamente o negócio celebrado, sem que haja a clivagem entre realidade e aparência que é essencial ao conceito de simulação.498 Ora, estes mesmos princípios valem para as sociedades fictícias. Nelas, tanto o sócio quase totalitário quanto o sócio de complacência quiseram exatamente o que foi celebrado, nada além ou aquém. Veja-se que, ao integralizar a quota subscrita, o presta-nome demonstra a sua efetiva e real intenção de integrar o quadro societário, embora sua participação seja diminuta em comparação a do outro sócio.499 Ademais, como bem destaca a doutrina alemã, não é possível presumir que um sócio que assume obrigações e responsabilidades como tal, não tenha intenção de ser efetivamente sócio.500 O mesmo se diga 495 DOMINEDÒ, Franceso. “La costituzione fittizia delle anonime”. In: Studi in onore di Cesare Vivante. vol. II, Roma, Foro Italiano. p. 663-664. 496 GOMES, 2007b, p. 263; MONTEIRO, op. cit., p. 254; GONÇALVES, Luiz da Cunha, op. cit., p. 851; FERRARA, op. cit., p. 51. 497 ROPPO, op. cit., p. 162. 498 GAINO, op. cit., p. 51; ASCARELLI, op. cit., p. 91; PONTES DE MIRANDA, op. cit., p. 443; MELLO, op. cit., p. 159; FERRARA, op. cit., p. 76-77. 499 Interessante apontar que o próprio Antônio de Arruda Ferrer Correia, filiado à tese da existência de simulação nas sociedades fictícias, estabelece uma presunção de que o efetivo desembolso, pelo sócio de complacência, da parcela de capital por ele subscrita, ainda que de pequeno valor, inverteria a situação, estabelecendo que, em regra, não haveria simulação, posto que “[...] o mais natural será ele ter querido adquirir nessa hipótese, para futuramente exercer no seio da corporação, os direitos correspondentes à sua titularidade formal.” (FERRER CORREIA, op. cit., p. 171, nota de rodapé 2). Daí José Inácio Ferraz de Almeida Prado Filho sustentar, com propriedade, que essa concessão de Ferrer Correia “[...] equivale, em última análise, a admitir de fato a plena validade das sociedades fictícias.” (PRADO FILHO, op. cit., p. 89). 500 SALOMÃO FILHO, Calixto. Sociedade simulada. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, ano XXXVI (nova série), São Paulo: Malheiros Editores, jan.-mar., n. 105, 1997. p. 71. 132 em relação ao sócio quase totalitário, porquanto sua declaração exprime efetivamente o seu verdadeiro intento: estruturar o controle da sociedade constituída em união com o sócio de complacência de forma quase totalitária e em seu favor.501 No mais, o simples fato de o sócio de complacência permanecer alheio à gestão da sociedade não influência, de modo algum, seu status de sócio, porque o status socci em nada se relaciona à administração social.502 Na verdade, conforme já dito, é da titularidade da quota social, da presença no quadro societário, que deriva o status de sócio, cujas repercussões encontram-se regulamentadas pela lei e pelo próprio contrato social.503 Dessa forma, o sócio de complacência assume, malgrado sua pequena participação, todos os direitos e deveres que cabem aos membros da sociedade, valendo, nesse sentido, a advertência de José Inácio Ferraz de Almeida Prado Filho: [...] irrelevante o fato de o sócio preocupar-se com atividade social, cooperando ativamente na empresa que constitui o objeto social da pessoa jurídica da qual participa, ou permanecer completamente alheio à ela, comportando-se como mero investidor de capital. Sobre ele incidirão todos os deveres de sócio, e ele poderá, no momento que desejar e independentemente da vontade do controlador, invocar todos os direitos que sua posição de sócio lhe garante.504 O que se vislumbra, portanto, é que nas sociedades fictícias ou de favor não há nenhuma discrepância entre a vontade real das partes e a declaração por elas emitida. O que existe é, em boa verdade, negócio indireto, e não negócio simulado. Lembre-se novamente que, como muito bem anotado por Tullio Ascarelli, “[...] há negócio indireto sempre que as partes recorrem, no caso concreto, a um negócio determinado visando a alcançar através dele, consciente e consensualmente, finalidades diversas das que, em princípio, lhe são típicas.”505 Com efeito, todo negócio jurídico é caracterizado por um escopo típico que se destina a realizar, e, embora a consecução desse objetivo típico seja normalmente o principal objetivo visado pelas partes, estas, nos negócios indiretos, vão além: pretendem não só os efeitos típicos do negócio celebrado, mas também a consecução de um escopo ulterior, para cuja realização faz-se necessária a eficácia padrão do negócio celebrado.506 501 PRADO FILHO, op. cit., p. 88. A esse respeito vide item 4.4 deste trabalho. 503 Cf. itens 4.3.1 e 4.3.2 supra. 504 PRADO FILHO, op. cit., p. 89. 505 ASCARELLI, op. cit., p. 156. 506 Idem, p. 172-173. 502 133 Obviamente, a escolha do negócio a ser celebrado não é aleatória. As partes elegem e celebram o negócio cuja disciplina seja por elas querida. Assim, não há apenas submissão à forma do negócio, mas também às disposições legais que o regulamentam. É exatamente isso que justifica a remissão, no negócio indireto celebrado, ao negócio direto, tipificado no ordenamento jurídico: as partes desejam conscientemente afastar-se o menos possível do terreno conhecido do negócio direto, sujeitando-se no maior grau possível à sua disciplina.507 Desse modo, as partes visam, nos negócios indiretos, tanto os efeitos típicos do negócio celebrado, previsto in abstrato pelo legislador, quanto objetivos ulteriores, exclusivos às partes que celebram o negócio naquele caso in concreto. Há, aí, como bem observado por Prado Filho, “[...] uma dúplice convergência de vontade, a afastar a idéia de simulação.”508 Afora isso, enquanto no negócio simulado a vontade real das partes fica oculta, dissimulada sob um manto de aparência, no negócio indireto, além da ausência de divergência entre a vontade das partes e suas declarações, também inexiste a ocultação típica da simulação, porquanto o processo desenvolve-se, na feliz expressão de Tullio Ascarelli, “[...] à luz do sol, e não há homem experimentado que se engane sobre suas finalidades.”509 Os atos constitutivos das sociedades fictícias, assim, não são negócios simulados; são, em verdade, negócios indiretos. Contudo, é de evidência natural que o negócio indireto não pode servir para superar ou evitar a aplicação de lei cogente, sob pena de incorrer-se em típica situação de fraude à lei. Passa-se, então, a verificar a eventual existência de tal hipótese. 5.3.3 Da eventual existência de fraude à lei operada por meio dos atos constitutivos das sociedades fictícias ou de favor Em seu clássico trabalho sobre o negócio indireto, Tullio Ascarelli distingue, com muita precisão, dois tipos de normas: (i) aquelas que disciplinam somente o instrumento jurídico, sem qualquer preocupação com as finalidades perseguidas pelas partes, que podem dar azo a proibições de meio; e (ii) aquelas que incidem sobre o resultado visado, 507 ASCARELLI, op. cit., p. 171. PRADO FILHO, op. cit., p. 90. 509 ASCARELLI, op. cit., p. 180. 508 134 qualquer que seja o meio utilizado para atingi-lo, que podem dar guarida a proibições de resultado.510 Feita tal distinção, Ascarelli leciona que apenas à essas normas da segunda espécie, que contém proibições de resultado, é que se pode falar em fraude à lei operada por meio do negócio indireto.511 Com efeito, para testar a validade das sociedades fictícias ou de favor, negócios indiretos que são, é necessário identificar se os resultados últimos por elas atingidos são interditados pelo legislador pátrio e ficam, desse modo, proibidos de serem atingidos por quaisquer meios. Necessário saber, portanto, se há, no ordenamento jurídico nacional, normas de resultado que importem em: (i) impossibilidade de separação patrimonial ou (ii) impossibilidade de limitação da responsabilidade do empresário individual.512 Se existirem tais normas de resultado, as sociedades fictícias ou de favor não passam de uma fachada, de um artifício para alcançar finalidade interditada pelo legislador. Se, por outro lado, não existir nenhuma proibição de resultado no tocante à separação patrimonial ou limitação de risco do empresário individual, tratar-se-á de hipótese lícita e, portanto, de toda válida. No que se refere à possibilidade de separação patrimonial, já se concluiu no item 5.2 deste trabalho que a regra geral de que a cada pessoa corresponde um único patrimônio não significa impossibilidade de criação de patrimônios distintos para um mesmo sujeito de direito, assim denominados patrimônio especiais,513 valendo, para confirmação, a lição de José Inácio Ferraz de Almeida Prado Filho: Frente ao direito nacional, a proposição de que a personalidade é o suporte lógico do patrimônio não pode ser interpretada de molde a obter como resultado a imperatividade de que, a um mesmo titular, deva corresponder apenas um único patrimônio (os assim chamados princípios da indivisibilidade e unicidade do patrimônio).514 Dessa forma, a criação de um patrimônio especial não é objeto de proibição de resultado por parte do legislador pátrio. O que se exige, conforme já salientando, é apenas que a separação patrimonial seja obtida ao abrigo da lei, ou por meio dos instrumentos por ela 510 ASCARELLI, op. cit., p. 181. Idem, ibidem. 512 PRADO FILHO, op. cit., p. 90-91. 513 BEVILÁQUA, op. cit., p. 290-291. 514 PRADO FILHO, op. cit., p. 91. 511 135 franqueados.515 É exatamente o que ocorre nas sociedades fictícias ou de favor, cujos sócios valem-se de um instrumento já constituído pela lei para obter a criação de um novo sujeito de direito – a pessoa jurídica –, destinado a limitar o risco a que estaria exposto o sócio quase totalitário caso se lançasse à atividade econômica sob empresário individual.516 O que resta por verificar é se tal providência, qual seja, a limitação da responsabilidade do empresário individual, é colhida por alguma proibição de resultado no direito brasileiro. Insta ressaltar, como já muito bem ressaltado por Ricardo Alberto Santos Costa, que a limitação da responsabilidade do empresário individual, seja pelo modelo personificado, com a admissão da sociedade empresária unipessoal limitada,517 seja pelo modelo não-personificado, com a possibilidade de criação de um patrimônio especial afetado à empresa,518 consiste na última fase de evolução da noção jurídica de responsabilidade. Isso porque, o devedor, que respondia originalmente com sua própria vida, passou a responder apenas com sua liberdade, e, mais tarde, com todo o seu patrimônio. Modernamente, em tema de sociedade personalizada, a regra é a limitação da responsabilidade dos sócios ou acionistas pelas obrigações da sociedade.519 O ordenamento jurídico brasileiro, ao admitir as sociedades limitadas, as sociedades por ações, a subsidiária integral e a unipessoalidade incidental temporária, deixa entrever que se encontra em linha com essa evolução, e não avesso à limitação do risco na exploração da atividade econômica.520 Pode-se dizer, na esteira de Tullio Ascarelli521 e Antônio de Arruda Ferrer Correia,522 que a limitação da responsabilidade do empresário individual não consiste em um resultado em si mesmo proibido pelo legislador, mas uma pura e simples ausência de meios diretos de obter tal limitação, sendo legítima, por isso, a utilização indireta de qualquer dos instrumentos já admitidos para tanto. Está-se diante, nas palavras de Ferrer Correia, de uma “[...] simples deficiência do sistema legislativo, explicável pelo fenômeno da inércia jurídica.”523 515 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. vol. 5, parte geral, 3. ed., 2. reimpr., São Paulo: Saraiva, 1984. p. 368; PRADO FILHO, op. cit., p. 92. 516 PRADO FILHO, op. cit., p. 92. 517 Vide item 5.1 deste trabalho. 518 Vide item 5.2 deste trabalho. 519 COSTA, Ricardo Alberto Santos. A sociedade por quotas unipessoal no Direito Português. Coimbra, Almedina, 2002. p. 127. 520 PRADO FILHO, op. cit., p. 93. 521 ASCARELLI, op. cit., p. 217. 522 FERRER CORREIA, op. cit., p. 256. 523 Idem, p. 175. 136 Aliás, é exatamente nesse contexto de inércia jurídica que o negócio indireto se insere, como uma espécie de “ponte de passagem histórica,”524 a fornecer um meio destinado à evolução histórica do direito, via aproximações sucessivas, de molde a prover à partes instrumentos aptos à satisfação das novas e diversas situações da vida.525 Ademais, até por uma questão de justiça e coerência, se a limitação do risco no exercício da empresa fosse digna de repugnância pelo ordenamento jurídico pátrio, nada justifica que o legislador a tivesse proibido ao empresário individual e admitido aos sócios, nas sociedades limitadas, bem como aos acionistas, nas sociedades por ações.526 Deste modo, a única conclusão que se pode chegar é a que já foi dada e confirmada por Tullio Ascarelli: “Fica destarte confirmado não haver, na constituição da sociedade (de responsabilidade limitada) no interesse de um só sócio, fraude nenhuma.”527 5.3.4 Da validade das sociedades fictícias ou de favor Ante o exposto, pode-se concluir que as sociedades fictícias ou de favor não padecem de qualquer vício que lhes atinja o plano da validade, porquanto seus atos constitutivos representam não só hipótese de negócio jurídico indireto, mas também hipótese lícita. Não há, pois, negócio simulado, porque na constituição dessas sociedades não existe nenhuma divergência entre a vontade das partes e suas declarações. Tanto o sócio de complacência quanto o sócio quase totalitário querem o negócio nos exatos e precisos termos em que foi celebrado, nada além ou aquém, de tal forma que a sociedade constituída é real e efetivamente querida tanto por um como pelo outro. Não fosse isso suficiente, na constituição dessas sociedades também não se encontra a clandestinidade, que é peculiar aos negócios simulados. 524 ASCARELLI, op. cit., p. 189. Idem, ibidem. 526 Nesse contexto, Wilges Ariana Bruscato lança mão da seguinte indagação: “[...] por que não pode uma pessoa fazer o que a lei permite que façam duas ou mais?” (BRUSCATO, op. cit., p. 56). Na mesma direção, o magistério de Fran Martins: “E se o sócio de uma sociedade comercial pode limitar suas responsabilidades pelas obrigações assumidas pela sociedade, não se comprometendo subsidiariamente pelas obrigações sociais, identicamente ao comerciante individual deve ser facultado o mesmo direito, não se concebendo que um indivíduo possa afetar parte de seu patrimônio em uma sociedade, mas não o possa fazer negociar sozinho.” (MARTINS, op. cit., p. 434-435). 527 ASCARELLI, Tullio. Ensaios e pareceres. São Paulo: Red Livros, 2000. p. 251. 525 137 Não há, também, negócio ilícito, uma vez que não existe, no ordenamento jurídico brasileiro, nenhuma proibição de resultado no tocante à separação patrimonial ou limitação de risco do empresário individual. A questão coloca-se, em boa verdade, como pura e simples ausência de meios diretos para obter tais resultados, que o negócio jurídico indireto vem a suprir temporariamente, até que o legislador digne-se a tratar da matéria, valendo, nesse contexto, a irreparável lição de Otto de Sousa Lima: A satisfação das novas exigências, já se verifica, às vezes, lenta e gradualmente, de modo a não comprometer a continuidade do sistema e a certeza da norma jurídica aplicável. As novas necessidades são, então, satisfeitas, mas o são com os velhos institutos. Nessa adaptação, a nova exigência é satisfeita através de um velho instituto que traz consigo as suas formas e a sua disciplina, e oferece à nova matéria, ainda em ebulição, um velho arcabouço já conhecido e seguro. As velhas formas e a velha disciplina não são abandonadas de chofre, mas só lenta e gradualmente, de maneira que, muitas vezes, por longo tempo, a nova função vive dentro da velha estrutura, e assim se plasma, enquadrando-se nos sistemas [...] a adoção de determinados negócios para escopos indiretos não é feita por acaso: tem explicação no intuito de se sujeitarem as partes, não somente à forma, mas também à disciplina do negócio adotado. Esta se estende, assim, a hipóteses para as quais não fora estabelecida, a princípio. O velho negócio, através desse uso indireto, preenche novas funções, responde a novos objetivos.528 (grifos do autor) Assim, enquanto o direito pátrio não conceber outra solução efetiva para a limitação da responsabilidade do empresário individual, quer pelo modelo personificado, com a admissão da sociedade empresária unipessoal limitada, quer pelo modelo não-personificado, com a possibilidade de criação de um patrimônio especial afetado à empresa, dever-se ter por válida a existência das sociedades fictícias ou de favor, como realmente válidas elas são. Todavia, a validade das sociedades fictícias ou de favor não pode, por evidente, representar uma espécie de salvo conduto para a perpetração de fraudes contra terceiros. Como muito bem já elucidará Wilson de Souza Campos Batalha, na constituição de sociedades com o exclusivo intento de causar prejuízos a terceiros, não mais subsistirá obstáculo ao levantamento da forma utilizada.529 Ou seja: contra a manipulação fraudulentamente da pessoa jurídica, mesmo no domínio particular das sociedades fictícias ou de favor, valem os remédios ordinários do 528 LIMA, Otto de Sousa. Negócio fiduciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1962. p. 93-94. CAMPOS BATALHA, Wilson de Souza. Direito Processual Societário. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 378. 529 138 direito comum, mormente a desconsideração da personalidade jurídica,530 de resto aplicável em qualquer hipótese de utilização fraudulenta das formas societárias. Falando-se em fraude contra terceiros, passa-se ao último tópico deste trabalho, que cuidará exatamente dos casos de constituição de sociedades cujo fim não é outro senão o de causar prejuízos a terceiros. 5.4 Da sociedade simulada fraudulentamente Viu-se que os atos constitutivos das sociedades fictícias ou de favor não são negócios simulados, nem tampouco ilícitos. Ante a deficiência do sistema legislativo, duas pessoas valem-se de um instrumento já franqueado pela lei para, criando um novo sujeito de direito, limitar o risco a que estaria sujeito uma pessoa sozinha, caso esta se lançasse à atividade econômica sob empresário individual. Ad argumentandum tantum, se houvesse simulação na constituição dessas sociedades, poder-se-ia dizer, mutatis mutandis, que a hipótese seria de simulação inocente, porque despida completamente de intuitos fraudatórios. Situação completamente inversa ocorre quando duas ou mais pessoas criam um novo sujeito de direito com o exclusivo intento de fraude. Tem-se, aqui, a simulação fraudulenta ou maliciosa da sociedade. Passa-se, por conseguinte, a discorrer sobre as sociedades simuladas fraudulentamente, sem, contudo, esgotar-se a matéria, porque não é este o objetivo principal deste trabalho. Itamar Gaino, com amparo na doutrina de Mosset Iturraspe, assevera que a simulação no âmbito das sociedades pode se dar em dois momentos distintos: já na sua constituição ou durante o curso de sua atuação. No primeiro caso, a constituição da sociedade faz surgir um ente de fachada que carece em absoluto de realidade. Fala-se, então, de simulação da sociedade. No segundo caso, a simulação ocorre durante a atuação da sociedade, ou seja, posteriormente à sua constituição, mediante a modificação de seus integrantes e inserção de “laranjas”. Tem-se, aí, a simulação na sociedade.531 530 531 Acerca da desconsideração da personalidade jurídica, vide item 3.4 deste trabalho. GAINO, op. cit., p. 129-130. 139 5.4.1 A simulação da sociedade Ocorre a simulação da sociedade quando duas ou mais pessoas criam um novo sujeito de direito que carece em absoluto de realidade: tudo é ilusão, falso e inverídico. Como bem destaca Itamar Gaino, Freqüentemente se vê, nos meios de comunicação, notícia de criação de empresa ‘fantasma’ com o objetivo de dar operatividade a desvio de dinheiro público resultante de corrupção ou de dinheiro particular decorrente de outras atividades ilícitas, como tráfico de entorpecentes. Cria-se sociedade que nada tem de real: os sócios são fictícios ou são pessoas que emprestam seus nomes (‘laranjas’) ou ainda pessoas pobres e ignorantes, que nem mesmo chegam a tomar conhecimento do fato; o endereço é fictício ou corresponde a uma casa residencial ou a um imóvel de outra natureza, mas que não se presta a qualquer atividade empresarial.532 É bem de ver que, em regra, a simulação da sociedade pode se dar de três formas,533 a saber: (I) Simulação de existência da atividade econômica (empresa): nesse caso, conquanto constituída com aparência formal, a sociedade nem de longe tem por objeto o exercício de “atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”, muito pelo contrário, sua finalidade de duas com certeza será uma: ou causar prejuízos a outrem ou violar disposição de lei. No âmbito da corrupção política, por exemplo, cria-se sociedade de fachada para viabilizar a emissão de faturas contra o poder público, por fornecimentos inexistentes, e assim possibilitar o recebimento do dinheiro espúrio. No âmbito de outras atividades criminosas, cria-se sociedade com finalidade de “esquentamento” do dinheiro ilicitamente 532 GAINO, op. cit., p. 130-131. Nesse sentido, o Regulamento do ICMS do estado de São Paulo (Decreto nº 45.490, de 30.11.00), em seu artigo 30, dispõe que: “A inscrição no Cadastro de Contribuintes do ICMS será enquadrada como nula, a partir da data de sua concessão ou de sua alteração, quando, mediante processo administrativo, for constatada: I) simulação de existência do estabelecimento ou da empresa; II) simulação do quadro societário da empresa.” Por seu turno, o § 1º, do mesmo artigo, estabelece: “Considera-se simulação: 1) a existência do estabelecimento ou da empresa quando: a) a atividade relativa a seu objeto social, segundo declaração do contribuinte, não tiver sido ali efetivamente exercida; b) não tiverem ocorrido as operações e prestações de serviços declaradas nos respectivos registros contábeis e fiscais. 2) relativamente ao quadro societário, quando a sociedade ou entidade for composta por pessoa interposta, assim entendidos os sócios, diretores ou administradores que: a) não sejam localizados nos endereços informados como sendo de sua residência ou domicílio; b) não disponham de capacidade econômica compatível com as funções a eles atribuídas; c) sejam constatadas pelo fisco evidências da qualidade de pessoa interposta.” 533 140 arrecadado534, ou para fins de fornecimento de notas fiscais “frias” para outras sociedades, ocultando-se, assim, a sonegação fiscal destas. (II) Simulação do quadro societário da sociedade: a ocorrência mais comum de simulação da sociedade opera-se com a utilização de interpostas pessoas simuladas, vulgarmente chamadas de “laranjas”535 ou “testas-de-ferro”. Essas pessoas, na constituição da sociedade, fazem às vezes dos verdadeiros sócios que, por motivos irremediavelmente ilícitos, não querem ou não podem aparecer no quadro societário. É o caso, por exemplo, muito bem apreciado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, onde se conclui que um determinado servidor público, Diretor-Chefe de autarquia, proibido de contratar com o Poder Público, valeu-se de interpostas pessoas simuladas na constituição de sociedade empresária e, por meio desta, participou e venceu, fraudulentamente, vários processos licitatórios promovidos pelo Poder Público daquela localidade. O Venerando Acórdão, aliás, restou assim ementado: Improbidade administrativa. Servidor público. Diretor de autarquia. Partícipe de licitações promovida pela autarquia. Constituição de empresa por meio de simulação. Violação dos princípios da Administração. Enriquecimento ilícito. Prejuízos ao erário. Constitui ato de improbidade a participação direta ou indireta do servidor nas licitações promovidas pelo órgão do qual é diretor, em que as contratadas são empresas das quais participa como sócio ou com elas mantenha qualquer vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira ou trabalhista. O mesmo aplica-se quando evidenciado que a vencedora da licitação é uma empresa composta por ‘laranjas’, que agem em nome daquele servidor, muito embora o nome dele não conste no quadro societário.536 Cita-se, ainda, o caso apreciado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, onde se constatou que o quadro societário de certa sociedade 534 GAINO, op. cit., p. 131. O uso da expressão “laranja” tornou-se tão corriqueiro no meio jurídico, que o Emérito Desembargador Joel Ilan Paciomik, nos autos da Apelação Cível nº 2004.70.02.002190-9/PR, emprestou-lhe definição: “Pode-se definir como ‘laranja’ o indivíduo que, consciente ou inconscientemente, voluntária ou coercitivamente, empresta dados seus (nome, CPF, registro civil, etc.) a terceiros, a fim de que estes possam praticar atos sem que seu nome seja divulgado, seja por razões de impedimento para a prática do ato determinado, seja para o fim de eximir-se de responsabilidade.” (TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. 1ª Turma. APC 2004.70.02.002190-9/PR. Relator: Desembargador Federal Joel Ilan Paciornik. Porto Alegre, RS, 28 fev. 07, v.u., recurso provido, DE de 7.3.07). 536 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE RONDÔNIA. 2ª Câmara Especial. APC 100.007.2003.005077-0. Relator: Desembargador Renato Martins Mimessi. Porto Velho, RO, 24 abr. 07, v.u., recurso provido. 535 141 empresária era composto por interpostas pessoas simuladas, porque os verdadeiros sócios encontram-se inabilitados para o exercício de empresa em razão de falência:537 Os próprios autores admitem na inicial que eram apenas “laranjas” na sociedade. Os verdadeiros donos seriam os membros da família Bonotto Machado, que se encontravam impedidos de exercer atividades comerciais em razão de falência, e por isso teriam utilizado o nome dos autores em determinado período na empresa Moura & Schuartz Ltda, que mais tarde passou a se denominar Cerealista MGM Ltda.538 (III) Simulação concomitante de existência da empresa do quadro societário da sociedade: aqui, a simulação é resultado da soma das duas hipóteses anteriores e, por conta disso, a ficção é total: os sócios que subscrevem as quotas do capital social não são os verdadeiros sócios, são meros sujeitos decorativos (interpostas pessoas simuladas); e a sociedade por eles constituída não tem por objeto as verdadeiras razões de sua criação. A guisa de exemplificação, colaciona-se precedentes jurisprudenciais: As investigações realizadas demonstraram a existência de diversas empresas, constituídas em nome de interpostas pessoas, criadas e mantidas pelas quadrilhas que compõem a organização criminosa, com o propósito de sonegar tributos.539 [...] O decreto condenatório encontra-se devidamente lastreado em conjunto probatório consistente, apto a demonstrar, sem sombra de dúvidas, que os apelantes utilizavam-se de terceiros (‘laranjas’) para encobrir sua participação na empresa Agropar e assim ludibriar o fisco.540 [...] Trata-se de fraude à execução quando há evidência que o sócio da empresa executada criou nova empresa em nome de seus familiares a fim de abrigar seu patrimônio pessoal e fraudar processo trabalhista em andamento.541 537 Acerca da inabilitação do falido ao exercício de empresa, vide item 2.2.2 deste trabalho. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. 15ª Câmara Cível. APC 70017790320. Relator: Desembargador Paulo Roberto Felix. Porto Alegre, RS, 10 out. 07, v.u., recurso improvido, DJ de 19.10.07. 539 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO. 1ª Turma. HC 2007.03.00.034253-6. Relator: Desembargador Federal Vesna Kolmar. DJU de 19.2.08, p. 1570. 540 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO. 4ª Turma. APR 2000.34.00.023906-0/DF. Relator: Desembargador Federal Klaus Kuschel. Brasília, DF, 8 mai. 07, v.u., recurso improvido, DJ de 18.5.07, p. 21. 541 TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 12ª REGIÃO. 1ª Turma. Ag-Pet 01376-2006-01112-00-3. Relatora: Desembargadora Águeda Maria Lavorato Pereira. Florianópolis, SC, 12 jun. 07, v.u., recurso conhecido e, por v.m., improvido, DOE de 26.6.07. 538 142 Ressalte-se que, no caso de simulação do quadro societário, é de evidência natural que os sujeitos decorativos ali inseridos são pessoas com pouquíssimo ou nenhum patrimônio. Disso infere-se que somente a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica seria, nesse caso, totalmente ineficaz. Ora, se os sócios decorativos nada têm, nem nada terão, por que levantar o véu da personalidade jurídica para responsabilizá-los por dívidas formalmente imputadas à sociedade? A solução mais plausível parece ser a de decretar a nulidade da sociedade, cuja decretação corresponderá à própria extinção da pessoa jurídica, fazendo-se recair sobre os verdadeiros sócios a responsabilidade pelas dívidas imputadas fraudulentamente à sociedade. 5.4.2 A simulação na sociedade A simulação também pode ocorrer na sociedade, ou seja, embora ela seja ab origine constituída por seus verdadeiros sócios, estes, na intenção de se esquivarem das responsabilidades administrativas, patrimoniais, ou penais decorrentes dos atos cometidos no comando da sociedade, transferem tal ônus a terceiros, mediante alteração fraudulenta do contrato social.542 É o chamado “alaranjamento”, como bem disse o Emérito Ministro Garcia Vieira, do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar caso típico de simulação na sociedade: Expediente como esse é muito comum. É o chamado ‘alaranjamento’. Os sócios transferem suas cotas à pessoas em regra fictícia ou a pessoas sem patrimônio que possa suportar execução. Visam, com isso, à desoneração, notadamente quanto a débitos tributários, em relação aos quais existe a responsabilidade por substituição (art. 135) ou a responsabilidade solidária (art. 134 do CTN), conforme sejam sócios gerentes ou simplesmente sócios. A infração à lei, em casos como este, é presumida. Dispensa-se a Fazenda Pública de prova da prática de atos significativos de afronta à legislação tributária. O art. 135 do CTN, ao definir a responsabilidade tributária de 542 Acerca da simulação na sociedade, Itamar Gaino preleciona: “A simulação pode ocorrer, também, na sociedade, ou seja, no curso de sua atuação, por meio de transferência das quotas sociais a pessoas fictícias ou sem qualquer patrimônio. É o chamado ‘alaranjamento’, que comumente tem a finalidade de prejudicar credores ou de fugir de obrigação contraída perante o fisco. A falta de recolhimento de tributos, motivada por excesso de poder ou infração da lei, do contrato social ou estatuto, é considerada pelo art. 135 do Código Tributário Nacional como causa de responsabilidade pessoal do sócio-gerente. Para fugir desta responsabilidade, os sócios agem de tal modo, transferindo fictamente as quotas para terceiros. É simulação absoluta, pois a transferência das quotas é feita para não valer, permanecendo o negócio em poder dos primitivos sócios e simuladores.” (GAINO, op. cit., p. 131). 143 terceiros, entre eles os sócios gerentes de pessoas jurídicas, estabelece o pressuposto de serem os créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infrações de lei, contrato social ou estatutos. Mas a responsabilidade exsurge por presunção quando existem dívidas tributárias relativas a vários períodos e quando os sócios hajam se retirado subrepticiamente, exatamente com o objetivo de exoneração perante o Fisco, tudo isso indicando conduta ilícita, contrária à lei.543 O Egrégio Supremo Tribunal Federal também já apreciou caso típico de simulação na sociedade. Nos autos do RHC 54.411/MG verificou-se que “[...] o diretor de direito era um simples ‘pantin’, um boneco, uma marionete que o diretor de fato puxava aos cordéis”, razão pela qual se concluiu, com acerto, que “[...] quem transfere, conscientemente, o controle acionário de empresa insolvente a presta-nomes irresponsáveis, se considera falido, e sujeito às obrigações deste.”544 Aliás, nesse sentido, a jurisprudência é farta em exemplos: Resta evidenciado o dolo na conduta do réu, consistente na intenção de esquivar-se das responsabilidades administrativas, patrimoniais e penais decorrentes dos atos cometidos no comando de empresa, transferindo tal ônus a terceiros, mediante simulação de venda das cotas da sociedade e inserção de informações ideologicamente falsas na 1ª e 2ª Alterações de Contrato Social.545 [...] Os apelantes dificultaram/impediram a satisfação do crédito através da transferência fictícia de cotas sociais das suas empresas a terceiros, conhecidos popularmente como ‘laranjas’. Contudo, eram eles, os apelantes, que continuaram administrando, de fato, as empresas do Grupo Conforto durante o período em que ocorreram os fatos geradores dos débitos relacionados.546 [...] Simulação de transferência de cotas sociais da empresa, inserindo falsos sócios no contrato social, a fim de se evitar a perda do SIMPLES em relação a outra sociedade, bem como a habilitação no Siscomex de pessoa que só formalmente constava como sócio-administrador da pessoa jurídica, caracterizam a prática, em tese, por duas vezes, do delito tipificado no art. 299 do CP, na medida em que inseridas declarações diversas das que 543 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 1ª Turma. REsp 55.566/SP. Relator: Ministro Garcia Vieira. Brasília, DF, 9 nov. 94, v.u., recurso improvido, DJ de 5.12.94, p. 33538. 544 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 2ª Turma. RHC 54.411/MG. Relator: Ministro Cordeiro Guerra. Brasília, DF, 21 mai. 76, v.u., recurso improvido, DJ de 20.8.76. In: RTJ 78/752. 545 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. 2ª Seção. EI 2005.71.07.001487-7. Relator: Desembargador Federal Élcio Pinheiro de Castro. Porto Alegre, RS, 17 mai. 07, DE de 23.5.07. 546 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. 2ª Turma. APC 2003.70.05.000794-7. Relator: Desembargador Federal Dirceu de Almeida Soares. Porto Alegre, RS, 30 ago. 05, v.u., recurso improvido, DJU de 14.9.05, p. 631. 144 deveriam ser escritas, visando alterar a verdade sobre fatos juridicamente relevantes.547 Posto isso, conclui-se que as sociedades fictícias ou de favor não se confundem, de modo algum, com as sociedades simuladas fraudulentamente. Enquanto naquelas sociedades fictícias ou de favor tudo é real, verdadeiro e verídico, nessas sociedades fraudulentamente simuladas tudo é aparente, falso e inverídico. Naquelas, reina a licitude; nestas, impera a fraude. Enfim, enquanto as primeiras vivem sob o manto da verdade, as segundas sobrevivem até o engodo vir a lume. 547 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. 7ª Turma. RESE 2005.71.01.000291-3/RS. Relator: Desembargador Federal Tadaaqui Hirose. Porto Alegre, RS, 31 out. 06, v.u., recurso provido, DJU de 8.11.06, p. 597. 145 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ante todo o exposto, pode-se concluir que: 1. Empresa, empresário e estabelecimento empresarial, embora se encontrem estreitamente correlacionados, são três noções distintas. Empresa é a atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços. Empresário, por sua vez, é o titular da empresa, é quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada. O exercício da empresa, por empresário, é viabilizado por meio de um complexo de bens organizado, denominado estabelecimento empresarial. 2. Em outras palavras, empresa, empresário e estabelecimento empresarial podem ser distinguidos pelos verbos aplicáveis a cada qual: empresa se exercita; empresário se é; estabelecimento empresarial se tem. 3. Em tema de natureza jurídica, empresário é sujeito de direito, é a pessoa que, em caráter profissional, combina os quatro fatores de produção (mão-de-obra, insumos, tecnologia e capital) para explorar uma atividade criadora de riquezas. É, pois, o titular de direitos e de obrigações, personagem que Rubens Requião denominou de titular da empresa. 4. Entendido como um complexo de bens organizado de que dispõe o empresário para o exercício de empresa, ao estabelecimento empresarial só lhe resta mesmo a natureza jurídica de coisa, objeto de direito, que integra o patrimônio do empresário. 5. A empresa, por seu turno, não é sujeito nem objeto de direito, porque ela é a própria atividade de alguém. Daí falar-se que a empresa não existe, porquanto o que existe são o empresário e o estabelecimento empresarial: o primeiro, como sujeito de direito; e o segundo, como objeto. Deste modo, entendida como atividade econômica organizada, a empresa é considerada como uma nova categoria jurídica, constituindo-se, pois, na noção de fato jurídico lato sensu. 6. Quanto à forma que reveste o exercício da empresa, esta pode ser explorada tanto pelo empresário individual quanto pela sociedade empresária. Quanto uma pessoa dispõe, sozinha, dos recursos necessários à implantação da empresa, ela própria se lança ao exercício da atividade econômica sob empresário individual. A sociedade empresária, por sua vez, resulta da união de duas ou mais pessoas, chamadas de empreendedores ou investidores, que celebram contrato de sociedade para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados. 146 7. Inerente a qualquer uma dessas formas de exercício da empresa está o risco. Em razão deste componente indissociável da atividade econômica, poucas pessoas dedicar-se-iam a explorar novas empresas se o insucesso da iniciativa pudesse acarretar a perda de todos os bens pessoais, amealhados ao longo do trabalho de uma vida ou mesmo de gerações. Daí surgirem instrumentos jurídicos aptos a limitar a responsabilidade daqueles propensos ao exercício de empresa. 8. No caso da sociedade empresária, desde a inscrição de seu ato constitutivo (contrato ou estatuto social) no registro próprio, esta transforma-se em um novo ser, em um novo sujeito de direitos e obrigações, estranho à individualidade das pessoas que participaram de sua constituição. Daí concluir-se que a sociedade empresária não se confunde com a pessoa de seus sócios. 9. Além de a sociedade empresária ter existência distinta da dos seus sócios, outro importantíssimo efeito decorrente da sua personalização é o princípio da autonomia patrimonial, porquanto implica a separação patrimonial entre a sociedade empresária e seus membros. Em razão desse princípio, sócios e sociedade empresária possuem patrimônios distintos, inconfundíveis e incomunicáveis, motivo pelo qual, em regra, um não responde pelas obrigações do outro. 10. Fala-se que os sócios não respondem, em regra, pelas obrigações da sociedade empresária, porque, é de evidência natural, há exceções. É o caso, por exemplo, das sociedades ilimitadas, onde todos os sócios respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais, como ocorre nas sociedades em nome coletivo. Exceções à parte, é na sociedade empresária limitada, tipo societário de expressiva utilização, que esse efeito exsurge como característica peculiar. Com efeito, pode-se afirmar que, uma vez integralizado o capital social, os sócios não respondem, com patrimônio próprio, por qualquer outra obrigação da sociedade limitada. 11. Por isso, embora a legislação pátria reconheça a existência de cinco tipos diversos de sociedades empresárias, apenas a sociedade limitada e a sociedade por ações possuem relevância econômica e jurídica, devido, sobretudo, à limitação da responsabilidade dos sócios ou acionistas a eventuais insucessos na exploração de atividade econômica. 12. Em suma, a constituição regular de uma sociedade empresária limitada, com arquivamento do contrato social na Junta Comercial, cria um novo sujeito de direito, com vontade, patrimônio e responsabilidades próprias e autônomas em relação aos seus sócios. A atribuição de personalidade jurídica à sociedade empresária limitada enseja, pois, a separação 147 de patrimônio destinado à exploração de empresa, de maneira que apenas os bens sociais respondem pelas obrigações contraídas em nome da sociedade. 13. Em que pese a sociedade empresária seja dotada de personalidade jurídica própria, o empresário individual não é capaz de criar uma nova pessoa. Enquanto sócios e sociedade empresária são pessoas distintas, com patrimônio e responsabilidades igualmente distintos, o empresário individual não tem personalidade distinta e separada da de seu titular, ao revés, ambos, empresário individual e seu titular, são uma única pessoa, com um único patrimônio, e uma única responsabilidade patrimonial. 14. Dessa forma, enquanto os sócios podem separar parte do seu patrimônio para alocar à sociedade e, assim, limitar suas responsabilidades, o empresário individual responde com todas as forças de seu patrimônio pessoal, capaz de execução, pelas dívidas que assumiu, sejam estas contraídas no exercício de empresa, sejam no âmbito particular e privado da pessoa natural. 15. A transformação do empresário individual em pessoa jurídica, diga-se, é mera ficção do direito tributário, cuja finalidade não é outra senão a de sujeitá-lo ao mesmo tratamento fiscal atribuído àquela. Por conta disso, tanto o empresário individual, pessoa natural, quanto a sociedade empresária, pessoa jurídica, sujeitam-se às mesmas obrigações tributárias, sejam elas principais ou acessórias. Nesse ponto, por questão de justiça e coerência, o tratamento igualitário é digno de aplausos, pois, se tanto um quanto o outro podem explorar uma atividade econômica, nada mais justo que ambos, no exercício dessa atividade, tenham o mesmo tratamento, com as ressalvas, é claro, do disposto no art. 170, inciso IX e no art. 179, ambos da Constituição Federal, que conferem tratamento diferenciado, simplificado e favorecido às microempresas e às empresas de pequeno porte, o que não deixa de ser igualmente justo. 16. Ora, também por questão de justiça e coerência, se o risco de insucesso é inerente à exploração de atividade econômica, razão pela qual justifica-se a limitação da responsabilidade dos sócios ao montante investido na sociedade, identicamente ao empresário individual deve ser facultado o mesmo direito: limitar a sua responsabilidade ao montante investido na empresa. Nesse contexto, se os sócios podem separar parte do seu patrimônio para alocar à sociedade, a fim de limitar suas responsabilidades, ao empresário individual deve ser conferido o mesmo tratamento, sob pena de estar-se infringindo o mais consagrado dos princípios: o da igualdade. 17. Do postulado universal de que “deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades”, o que se vê, aqui, é uma 148 grande contradição: enquanto as microempresas e as empresas de pequeno porte, em regra exploradas pelo empresário individual, têm tratamento prejudicial, no sentido de não se limitar a responsabilidade daquele, as médias e grandes empresas, em regra exploraras pela sociedade empresária limitada ou por ações, têm tratamento favorecido, no sentido de, exatamente, beneficiar os membros dessas sociedades com a limitação de responsabilidade. Frise-se que não se almeja, nem de longe, que o benefício da limitação de responsabilidade conferido aos membros das sociedades empresárias seja suprimido, mas, sim, apenas e tão somente, por questão de justiça, que o mesmo benefício também seja concedido ao empresário individual. 18. No Brasil, em suma, ainda que seja a limitação da responsabilidade uma condição jurídica indispensável à disciplina da atividade econômica, ao contrário do tratamento jurídico dispensado às sociedades empresárias, principalmente às sociedades limitadas e às sociedades por ações, onde os sócios ou acionistas encontram um sistema capaz de limitar os riscos inerentes ao exercício de empresa, porquanto respondem apenas pelo valor das quotas ou ações que se comprometeram, àquele que exerce individualmente a atividade econômica não é conferido qualquer instrumento que permita a limitação da responsabilidade ao montante investido na empresa. 19. Muitos países, conscientes dessa manifesta contradição legal, construíram instrumentos jurídicos aptos a limitar a responsabilidade daquele que decida individualmente exercer empresa, conferindo, assim, tratamento igualitário a todos que decidam explorar atividade econômica organizada de produção e circulação de bens ou serviços. São dois, pois, os instrumentos utilizados por esses países: um personificado e outro não-personificado. 20. A técnica personificada de limitação da responsabilidade do empresário individual, amplamente difundida, aceita e utilizada principalmente por países europeus, é aquela que contempla, desde o momento originário de sua constituição, a sociedade unipessoal limitada. Admite-se, com efeito, a constituição de uma sociedade limitada, com personalidade jurídica própria, por ato de vontade de uma só pessoa. A admissibilidade da sociedade limitada originariamente unipessoal traz consigo a superação da teoria eminentemente contratualista de constituição societária, colocando no centro da discussão sobre o contrato de sociedade, não mais a sua vocação para unificar uma pluralidade de pessoas, mas, sim, o seu caráter organizativo e instrumental: a organização dos quatro fatores de produção (mão-de-obra, insumos, tecnologia e capital) para o exercício da empresa. 149 21. Em que pese o ordenamento jurídico brasileiro não ter admitido a sociedade limitada originariamente unipessoal, ao menos reconheceu, ainda que timidamente, esse caráter organizativo do contrato de sociedade, porquanto admite a unipessoalidade originária tanto na constituição da sociedade subsidiária integral (Lei nº 6.404/76, art. 251) quanto na da empresa pública unipessoal (Decreto-Lei nº 200/67, art. 5º, II), bem como a unipessoalidade incidental temporária (Código Civil, art. 1.033, IV e Lei nº 6.404/76, art. 206, I, ‘d’). 22. Por sua vez, a técnica não-personificada de limitação da responsabilidade do empresário individual, menos difundida, mas aceita, é aquela que permite ao empresário individual destacar uma parte dos bens que compõem o seu patrimônio geral para formar um patrimônio especial, não personificado, afetado ao exercício de empresa. Essa segregação patrimonial reflete no fato de que somente os bens destinados à atividade econômica, que formam o patrimônio especial afetado à empresa, respondem pelas obrigações contraídas nesse âmbito, ou seja, o patrimônio particular do empresário individual não responde por dívidas contraídas no exercício da empresa e os credores desta não concorrem com os credores particulares. 23. Se técnica personificada de limitação da responsabilidade do empresário individual, materializada na sociedade unipessoal limitada, implica na superação da teoria eminentemente contratualista de constituição societária, a técnica não-personificada consiste, igualmente, na superação da teoria clássica que compreende o patrimônio como único e indivisível. Aqui, os princípios da unidade e indivisibilidade do patrimônio não sobrevivem, porque aquela regra geral de que a cada pessoa corresponde um único patrimônio não significa impossibilidade de criação de patrimônios distintos para um mesmo sujeito de direito, em razão de uma finalidade especial, assim denominados patrimônio especiais, desde que tal providência seja obtida pela lei, ou na forma que esta disciplinar. 24. Nem uma, nem tampouco outra. Quer seja pela técnica personificada, com a admissão da sociedade empresária limitada originariamente unipessoal, quer seja pela técnica não-personificada, com a possibilidade de criação de um patrimônio especial afetado à empresa, o ordenamento jurídico brasileiro não possuiu qualquer instrumento apto a limitar a responsabilidade do empresário individual pelos riscos inerentes à exploração de empresa. 25. Sem um instrumento capaz de limitar a responsabilidade ao montante investido na empresa, o expediente utilizado pela pessoa natural do empresário individual, para lograr o mesmo fim, tem sido o de criar, ainda que a contragosto, só para satisfazer a idolatria das formas preconizada pela lei, uma sociedade puramente fictícia, cujo quadro 150 societário é composto por um sócio quase totalitário – a própria pessoa natural do empresário individual – e um sócio de complacência – em regra, pessoas ligadas àquele por íntimos laços afetivos, como, e.g., cônjuge ou filhos –, detentor, na maioria das vezes, de apenas uma quota do capital social. 26. Não obstante filiarem-se alguns à tese da existência de simulação nessas sociedades, porque, a um, o sócio de complacência não adquire status de sócio, bem como porque, a dois, tanto o sócio quase totalitário quanto o sócio de complacência emitem, na criação dessas sociedades, declarações divergentes de suas reais intenções, comprovou-se neste trabalho que as chamadas sociedades fictícias ou de favor não padecem de qualquer vício que lhes atinja o plano da validade, porquanto seus atos constitutivos representam, não negócio simulado e ilícito, mas, sim, negócio jurídico indireto e lícito. 27. Não há negócio simulado, porque na constituição dessas sociedades tanto o sócio quase totalitário quanto o sócio de complacência querem exatamente o que foi celebrado, nada além ou aquém, inexistindo, pois, divergência entre a intenção das partes e suas respectivas declarações. O sócio de complacência, ao integralizar a quota subscrita, demonstra sua efetiva e real intenção de integrar o quadro societário. Afora isso, não se pode presumir que um sócio que assume obrigações e responsabilidades como tal, não tenha intenção de ser efetivamente sócio. Quanto ao sócio quase totalitário, sua declaração exprime, igualmente, sua efetiva e verdadeira intenção: estruturar o controle da sociedade constituída em união com o sócio de complacência de forma quase totalitária e em seu favor. Por aí, conclui-se que tanto aquele quanto este querem o negócio nos exatos e precisos termos em que foi celebrado, de tal forma que a sociedade constituída é real e efetivamente querida por todos. Não fosse isso suficiente, na constituição dessas sociedades também não se encontra a clandestinidade, que é peculiar aos negócios simulados. 28. No mais, o simples fato de o sócio de complacência permanecer alheio à gestão da sociedade não influencia seu status de sócio, porque este pressuposto em nada se relaciona à administração social. É, pois, da titularidade da quota social, da presença no quadro societário, que deriva o status socci. Assim, malgrado sua participação diminuta, o sócio de complacência assume todos os direitos e deveres que cabem àqueles que se encontram na condição de sócio. 29. Não há, também, negócio ilícito, uma vez que não existe, no ordenamento jurídico brasileiro, nenhuma proibição de resultado no tocante (i) à separação patrimonial ou (ii) à limitação de risco do empresário individual. No primeiro caso, concluiuse que criação de um patrimônio especial não foi objeto de proibição de resultado por parte do 151 legislador pátrio. O que se exige, em boa verdade, é apenas que a separação patrimonial seja obtida ao abrigo da lei, ou por meio dos instrumentos por ela franqueados. É exatamente o que ocorre nas sociedades fictícias ou de favor: os sócios valem-se de um instrumento já franqueado pela lei para obter a criação de um novo sujeito de direito, destinado a limitar o risco a que estaria exposto o sócio quase totalitário caso se lançasse à atividade econômica sob empresário individual. Já no segundo caso, concluiu-se que, se a limitação do risco no exercício da empresa fosse digna de proibição pelo ordenamento jurídico pátrio, nada justifica que o legislador a tivesse proibido ao empresário individual e admitido aos sócios, nas sociedades limitadas, bem como aos acionistas, nas sociedades por ações. 30. O que se comprovou, em suma, é que a questão se coloca como pura e simples ausência de meios diretos para se obter a limitação da responsabilidade do empresário individual, que o negócio jurídico indireto vem a suprir temporariamente, até que o legislador pátrio digne-se a tratar da matéria. Assim sendo, enquanto o legislador permanecer inerte, sem conceber um meio direto para a limitação da responsabilidade do empresário individual, quer pelo modelo personificado, quer pelo modelo não-personificado, quer por qualquer outro modelo, dever-se ter por válida a existência das sociedades fictícias ou de favor, como realmente válidas elas são. 31. Por outro lado, restou a advertência no sentido de que a validade das sociedades fictícias ou de favor não podem representar uma espécie de salvo conduto para a perpetração de fraudes contra terceiros. Uma vez manipulada fraudulentamente a pessoa jurídica, mesmo no domínio particular das sociedades fictícias ou de favor, valem os remédios ordinários do direito comum, mormente a desconsideração da personalidade jurídica, de resto aplicável em qualquer hipótese de utilização fraudulenta das formas societárias. 32. Aliás, para testar a validade das sociedades fictícias ou de favor, de forma derradeira, resolveu-se, neste trabalho, comparar estas com aquelas sociedades simuladas fraudulentamente. Viu-se que o negócio simulado no âmbito das sociedades pode se dar em dois momentos distintos: já na sua constituição (simulação da sociedade) ou durante o curso de sua atuação (simulação na sociedade). 33. No primeiro caso, a simulação pode ocorrer de três formas: (i) quando a sociedade não tem por objeto as verdadeiras razões de sua criação, isto é, conquanto constituída com aparência formal, a sociedade nem de longe tem por objeto o exercício de empresa, muito pelo contrário, sua finalidade ou é causar prejuízos a outrem ou é violar disposição de lei; (ii) quando interpostas pessoas simuladas fazem às vezes dos verdadeiros sócios, simulando o quadro societário: os sócios que subscrevem as quotas do capital social 152 não são os verdadeiros sócios, são meros sujeitos decorativos; e (iii) quando as duas formas anteriores somam-se, ou seja, simula-se concomitantemente a existência da empresa e o quadro societário da sociedade. 34. No segundo caso, embora a sociedade seja ab origine constituída por seus verdadeiros sócios, estes, na intenção de se esquivarem das responsabilidades administrativas, patrimoniais, ou penais decorrentes dos atos cometidos no comando da sociedade, transferem tal ônus a terceiros, mediante alteração fraudulenta do contrato social. 35. Daí concluir-se, de forma categórica, que as sociedades fictícias ou de favor não se confundem, de modo algum, com as sociedades simuladas fraudulentamente. Enquanto naquelas sociedades fictícias ou de favor tudo é real, verdadeiro e verídico, nessas sociedades fraudulentamente simuladas tudo é aparente, falso e inverídico. Naquelas, reina a licitude; nestas, impera a fraude. Enfim, enquanto as primeiras vivem sob o manto da verdade, as segundas sobrevivem até o engodo vir a lume. 153 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRÃO, Nelson. Sociedades limitadas. 9. ed. rev. amp. e atual. por Carlos Henrique Abrão. São Paulo: Saraiva, 2005. 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