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Largo da Achada, 9-9a
1100-004 – Lisboa/PT.
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Há muitos anos nasceu uma casa que trazia em si uma vontade
pouco comum às casas. Tinha um espírito viajante, um desejo
inquieto de não ficar parada no mesmo sítio, queria mais que
tudo andar à solta por aí. Acontece que durante a sua construção,
distraidamente, deixaram lá ficar, ao meio dos tijolos, um sonho
de gente. As suas paredes, chão, tecto, cada janela e cada porta
foram feitas, não só por mãos, mas por braços, pernas, corações,
abraços e, sim, por sonhos de pessoas. Habitava nessa casa uma
vontade viva de se mover pelo mundo.
Porém, por mais que tentasse não se desprendia do chão onde
pousou um dia.
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Quando começou a ser um endereço no largo onde se encontra
até hoje, era mais sozinha.
Havia outras vizinhas, mas eram poucas e distantes. E o grande
espaço que existia entre elas fazia-a sentir-se menos aflita por
não ter pernas para se poder mover de um lado para o outro.
Se os sonhos saíssem por algum buraco na parede encontravam
longa relva para rebolar até voltarem para dentro. Se os braços
saíam janela afora, podiam estender-se e acenar a alguém ao
longe. Se pela porta saíam pernas para levar uma carta, eram
muitos os metros que seguiam até encontrar o destino. Se uma
voz de dentro quisesse chamar alguém que passava pela estrada,
era forte o grito que se esticava para chegar aos ouvidos de
quem passava.
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Aos poucos começaram a surgir prédios que eram erguidos não
da vontade de se tornar um lar, mas de uma intenção estranha
de ser ocupado por alguém desconhecido, que não esteve na
construção da futura morada e nem sequer sonhou morar ali.
De repente as casas passaram a ser erguidas sem a vontade e
os sonhos de alguém, ou mesmo sem ninguém para as habitar.
Houve até casa feita sem vontade nenhuma.
E à medida que o tempo foi passando, mais casas feitas por pessoas
começaram a aparecer ao seu redor.
O que a fazia entristecer-se, não por ter companhias mais próximas,
mas por ficar cada vez mais e mais apertada, com menos espaço,
sentindo-se ainda mais agarrada e paralisada. Isso dava-lhe uma
revolta muito grande, tinha fortes desejos de se desmoronar, de
mudar de cor, encolher ou dissolver-se em pó no ar. Parecia-lhe
mal ser uma casa com sonhos naquele aperto, e isso aumentava
ainda mais a sua angústia de querer, ao menos de vez em quando,
mover-se dali.
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Depois de passar anos e anos numa rebeldia sem tamanho, a
tentar sair à solta por aí e a assustar quem lá dentro estivesse,
com ruídos, tremores de angústia por não se poder soltar da
terra, aprendeu, com a ajuda das árvores que estavam ali por
perto e com as pedras que estavam por dentro de suas paredes,
a sabedoria de viajar e conhecer o mundo sem ter patas e sem
dar passos.
Concentrava-se e deixava chegar a si movimentos que vinham
de longe e lhe contavam sempre coisas diferentes.
Percebeu, enfim, que o lugar onde estava nunca era o mesmo,
ainda que não desse um passo à frente ou atrás.
Bastava dedicar-se a ouvir outros movimentos para além de
andar de um lugar para o outro, e com paciência percebeu que
não era preciso deslocar-se do seu chão para encontrar diferentes
histórias.
Havia um cão que de quando em quando buscava uma colher
ou um pé de cadeira e fazia de brinquedo, ou aquela senhora
que trazia prendas e lembranças de outros países, os miúdos
que tiravam tudo do lugar, arrastando os móveis, rearranjando
os quartos e levantando a poeira dos cantos mais esquecidos.
Começou, então, a viajar e a percorrer universos sem deixar o
lugar onde estava.
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Uma das coisas que descobriu desde então, era que quanto menos
sozinha ficasse, quanto mais entradas e saídas acontecessem,
mais coisas conhecia. Apercebeu-se, portanto, de que se tivesse
companhia, mais longas e intensas eram as suas aventuras.
Ela não saía do lugar, pelo menos era o que parecia, e todos os
que nela entravam e saíam vinham por estradas e caminhos,
mais distantes ou mais próximos, subiam, desciam e chegavam
ali. Assim, sempre que a casa recebia alguém, apanhava alguma
novidade trazida de fora, sem nunca deixar de oferecer uma
boa nova que descobria por debaixo da mesa ou dentro de uma
gaveta.
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A intrépida morada começou a ter a mania de não pôr fim
àquele sonho de gente que nela permanecia desde que nasceu
e a fazia ser tão viva e cheia de desejos. Os que lá habitavam
acabavam por aprender que a casa não era um refúgio onde o
mundo acaba. Sempre que alguém saía de lá, levava em si, mesmo
sem saber, um bocado daquela casa, e aos poucos apercebia-se
que a casa não é um lugar fixo, e pode continuar em cada pedra
que se pisa, em cada paisagem que se olha.
A casa pode seguir mundo afora e o mundo pode seguir casa
adentro.
E o mais curioso é que mesmo que um bocado da casa fosse levado
de passeio, ela continuava ali, sem se despedaçar naquelas
andanças.
Por essas e por outras, essa ousada sonhadora não tinha interesse
nenhum em permanecer cheia nem vazia. Queria muito mais do
que ser ocupada. Queria conhecer e trocar histórias com novas
pessoas. Não se deixava esquecer da importância de não estar
presa, e de que as casas mudam, que as pessoas mudam de casa,
e que mexer-se assim também é conhecer o mundo.
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Mudaram os anos, mudaram os moradores e até mesmo a
própria casa. Gostava tanto desses movimentos que passou a
ser um edifício mutante, transformando-se constantemente.
Cada dia, e mesmo hoje, muda sempre de figura e aceita corajosa
cada nova forma que lhe chega.
Com cada novo visual que lhe surge inventa, com ousadia, novas
maneiras de não ser interrompida na sua saga de não deixar de ser
habitada por encontros e histórias diferentes.
Os tijolos vão caindo dia a dia, rachaduras crescem nas paredes,
e o chão afunda-se mais e mais na terra.
Ao mesmo tempo, plantas crescem nas suas frestas.
Os gatos dormem lá a sesta.
E nunca se sente descomposta.
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Resistiu mesmo quando as pessoas passaram a ter medo de lá
dormir.
Taparam as suas portas e janelas, cortaram-na pela metade e
arrancaram-lhe o telhado.
Sabia que era sempre possível seguir sendo casa. Prometia a
si que a força de poder ser habitada era maior que a força de
poder ser abandonada.
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Quem um dia encontrar uma casa assim, não se assuste com as
aparências, não deixe de lá querer entrar, mesmo que as portas
estejam cobertas de cimento. Aproxime-se, toque as paredes,
pise o chão, sente-se e demore-se por um bocado, dê cores à
pintura já gasta. Deixe que as histórias sejam lembradas. Pois
entradas sempre haverá, desde que numa casa se queira estar.
Uma casa nunca quer estar abandonada.
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A casa vive.
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Nome de algumas pessoas que passaram pela Revoada, deixaram e levaram
um bocado da casa mundo a fora e mundo a dentro, não pondo fim a essa
história:
Sara Alexandra Pessoa Ramos
Lídia Filomena Godinho Leal Tomáz
Tasdid Hossain Alif
Inês Geraldes Lopo
Ozório Dju
David Alexandre Gil Pais Realinho
Abeeha Zahid
Giovanna Raíssa Batista Domingos
Rita Quintas Costa
Ricardo Piedade
Arogya Silwal
Bruno Alexandre Lourenço Pessoa
Sónia Santos
Mário Ventura
Fardim Hossain Adid
Daniel Américo Mendes Barros
Catarina Sousa Guerrinha
Rita Mendez
Inês Sofia Marques Malha
Daniela Fernandes de Oliveira
Iria Otero
Isabel da Costa Lima
Elda Nascimento
Luís Bué
Laura Alexandra Almeida Silva
Harmandeep Kaur
Lyncoln Diniz
Malisha Hansana Aluthgama Hewaga
Manoj Pariyar
Joana Louçã
Md. Maruf Uddin
Marco Francisco de Sousa
Adriana Reyes
Minesh Cantilal Maugi
Maria de Campos Stoer
Raúl Marcos
Nuno Sebastião da Costa Pereira Lopes
Maria do Rosário Almeida Silva
Pedro Manuel Domingos
Pedro Correia Alexandre da Silva
Nádia Filipa Silva Sacramento
Sofia Neuparth
Sanjidah Sulaman
Nila Begun Shajan
Luz da Câmara
Carolina Sapage Neves Lima
Petruta-Jessica Otvos
Augusto Ribeiro
Sintia Bhowmick
Shimeizi Jin (Ya Ya)
Suzana Salazar
Ambre Vasconcelos Lisboa Duarte
Vera Quintas Costa
Alex Campos
Ruxanda Oleinic
Arshdeep Singh
Margarida Agostinho
Francisco Paulo Pereira Bandarra
Ana Margarida Sousa Guerrinha
Patrícia Ramos
Gabor Ion Elvis
Andrea-Bianca Sauca
Luís Gerald Fonseca
Garcia Bacar Fati
Azra Jabin
Mira
Gonçalo Daniel Rocha Campos
Filipe Roque Ribeiro
Carolina Fenati
Iona Viorica Fieraru
Camará
Ribão
Larissa Gabrielle Lúcio Gouveia
Inês Moura Fraga Pereira da Costa
Gonçalo Pires
Luís Armando Ganea
Isaac Alexandre Rocha Campos
Thiane Nascimento
Purbina Shahi
João Áleo Camará
Mariana Viana
Raquel Teixeira de Azevedo
Maneesha Sriva
Susana C. Gaspar
Rita Teixeira de Azevedo
Mário Rui Augusto Ferreira,
Camila Jorge
Samuel Francisco Santos Bernardino
Marneza Bibiana Manuel João
Hique Veiga
Umaiya Afrin Arbin
Muhammad Daniyal Zahid
Zornitza Zlatanova
Vânia Sofia Almeida da Cruz
Oscar Zhang Xu
Luannah Jimenes
Malamine Mané
Pedro Miguel Xavier Correia
Filomena M. Gamboa Neves Barbosa
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Agradecimento especial à vizinhança
do Largo da Achada.
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Esse livro nasceu dos encontros da Revoada, trabalho com
pessoas de diferentes idades e tamanhos, em Lisboa, 2013.
Organização: Adriana Reyes, Joana Louçã e Lyncoln Diniz.
Texto: Lyncoln Diniz
Com acompanhamento de Sofia Neuparth
Criação entre a Escola da Madalena e o “Corpo na Escola”, um
projecto do c.e.m – centro em movimento. O c.e.m é financiado
pela DGArtes.
Lisboa 2013.
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