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Livro_fianl.indd 1 24-06-2013 13:32:45 Livro_fianl.indd 2-3 24-06-2013 13:32:45 Largo da Achada, 9-9a 1100-004 – Lisboa/PT. Livro_fianl.indd 4-5 24-06-2013 13:32:45 Há muitos anos nasceu uma casa que trazia em si uma vontade pouco comum às casas. Tinha um espírito viajante, um desejo inquieto de não ficar parada no mesmo sítio, queria mais que tudo andar à solta por aí. Acontece que durante a sua construção, distraidamente, deixaram lá ficar, ao meio dos tijolos, um sonho de gente. As suas paredes, chão, tecto, cada janela e cada porta foram feitas, não só por mãos, mas por braços, pernas, corações, abraços e, sim, por sonhos de pessoas. Habitava nessa casa uma vontade viva de se mover pelo mundo. Porém, por mais que tentasse não se desprendia do chão onde pousou um dia. •6• Livro_fianl.indd 6-7 24-06-2013 13:32:45 Quando começou a ser um endereço no largo onde se encontra até hoje, era mais sozinha. Havia outras vizinhas, mas eram poucas e distantes. E o grande espaço que existia entre elas fazia-a sentir-se menos aflita por não ter pernas para se poder mover de um lado para o outro. Se os sonhos saíssem por algum buraco na parede encontravam longa relva para rebolar até voltarem para dentro. Se os braços saíam janela afora, podiam estender-se e acenar a alguém ao longe. Se pela porta saíam pernas para levar uma carta, eram muitos os metros que seguiam até encontrar o destino. Se uma voz de dentro quisesse chamar alguém que passava pela estrada, era forte o grito que se esticava para chegar aos ouvidos de quem passava. •8• Livro_fianl.indd 8-9 24-06-2013 13:32:45 Aos poucos começaram a surgir prédios que eram erguidos não da vontade de se tornar um lar, mas de uma intenção estranha de ser ocupado por alguém desconhecido, que não esteve na construção da futura morada e nem sequer sonhou morar ali. De repente as casas passaram a ser erguidas sem a vontade e os sonhos de alguém, ou mesmo sem ninguém para as habitar. Houve até casa feita sem vontade nenhuma. E à medida que o tempo foi passando, mais casas feitas por pessoas começaram a aparecer ao seu redor. O que a fazia entristecer-se, não por ter companhias mais próximas, mas por ficar cada vez mais e mais apertada, com menos espaço, sentindo-se ainda mais agarrada e paralisada. Isso dava-lhe uma revolta muito grande, tinha fortes desejos de se desmoronar, de mudar de cor, encolher ou dissolver-se em pó no ar. Parecia-lhe mal ser uma casa com sonhos naquele aperto, e isso aumentava ainda mais a sua angústia de querer, ao menos de vez em quando, mover-se dali. • 10• Livro_fianl.indd 10-11 24-06-2013 13:32:45 Depois de passar anos e anos numa rebeldia sem tamanho, a tentar sair à solta por aí e a assustar quem lá dentro estivesse, com ruídos, tremores de angústia por não se poder soltar da terra, aprendeu, com a ajuda das árvores que estavam ali por perto e com as pedras que estavam por dentro de suas paredes, a sabedoria de viajar e conhecer o mundo sem ter patas e sem dar passos. Concentrava-se e deixava chegar a si movimentos que vinham de longe e lhe contavam sempre coisas diferentes. Percebeu, enfim, que o lugar onde estava nunca era o mesmo, ainda que não desse um passo à frente ou atrás. Bastava dedicar-se a ouvir outros movimentos para além de andar de um lugar para o outro, e com paciência percebeu que não era preciso deslocar-se do seu chão para encontrar diferentes histórias. Havia um cão que de quando em quando buscava uma colher ou um pé de cadeira e fazia de brinquedo, ou aquela senhora que trazia prendas e lembranças de outros países, os miúdos que tiravam tudo do lugar, arrastando os móveis, rearranjando os quartos e levantando a poeira dos cantos mais esquecidos. Começou, então, a viajar e a percorrer universos sem deixar o lugar onde estava. • 12 • Livro_fianl.indd 12-13 24-06-2013 13:32:46 Uma das coisas que descobriu desde então, era que quanto menos sozinha ficasse, quanto mais entradas e saídas acontecessem, mais coisas conhecia. Apercebeu-se, portanto, de que se tivesse companhia, mais longas e intensas eram as suas aventuras. Ela não saía do lugar, pelo menos era o que parecia, e todos os que nela entravam e saíam vinham por estradas e caminhos, mais distantes ou mais próximos, subiam, desciam e chegavam ali. Assim, sempre que a casa recebia alguém, apanhava alguma novidade trazida de fora, sem nunca deixar de oferecer uma boa nova que descobria por debaixo da mesa ou dentro de uma gaveta. • 14 • Livro_fianl.indd 14-15 24-06-2013 13:32:46 A intrépida morada começou a ter a mania de não pôr fim àquele sonho de gente que nela permanecia desde que nasceu e a fazia ser tão viva e cheia de desejos. Os que lá habitavam acabavam por aprender que a casa não era um refúgio onde o mundo acaba. Sempre que alguém saía de lá, levava em si, mesmo sem saber, um bocado daquela casa, e aos poucos apercebia-se que a casa não é um lugar fixo, e pode continuar em cada pedra que se pisa, em cada paisagem que se olha. A casa pode seguir mundo afora e o mundo pode seguir casa adentro. E o mais curioso é que mesmo que um bocado da casa fosse levado de passeio, ela continuava ali, sem se despedaçar naquelas andanças. Por essas e por outras, essa ousada sonhadora não tinha interesse nenhum em permanecer cheia nem vazia. Queria muito mais do que ser ocupada. Queria conhecer e trocar histórias com novas pessoas. Não se deixava esquecer da importância de não estar presa, e de que as casas mudam, que as pessoas mudam de casa, e que mexer-se assim também é conhecer o mundo. • 16 • Livro_fianl.indd 16-17 24-06-2013 13:32:46 Mudaram os anos, mudaram os moradores e até mesmo a própria casa. Gostava tanto desses movimentos que passou a ser um edifício mutante, transformando-se constantemente. Cada dia, e mesmo hoje, muda sempre de figura e aceita corajosa cada nova forma que lhe chega. Com cada novo visual que lhe surge inventa, com ousadia, novas maneiras de não ser interrompida na sua saga de não deixar de ser habitada por encontros e histórias diferentes. Os tijolos vão caindo dia a dia, rachaduras crescem nas paredes, e o chão afunda-se mais e mais na terra. Ao mesmo tempo, plantas crescem nas suas frestas. Os gatos dormem lá a sesta. E nunca se sente descomposta. • 18 • Livro_fianl.indd 18-19 24-06-2013 13:32:46 Resistiu mesmo quando as pessoas passaram a ter medo de lá dormir. Taparam as suas portas e janelas, cortaram-na pela metade e arrancaram-lhe o telhado. Sabia que era sempre possível seguir sendo casa. Prometia a si que a força de poder ser habitada era maior que a força de poder ser abandonada. • 20 • Livro_fianl.indd 20-21 24-06-2013 13:32:46 Quem um dia encontrar uma casa assim, não se assuste com as aparências, não deixe de lá querer entrar, mesmo que as portas estejam cobertas de cimento. Aproxime-se, toque as paredes, pise o chão, sente-se e demore-se por um bocado, dê cores à pintura já gasta. Deixe que as histórias sejam lembradas. Pois entradas sempre haverá, desde que numa casa se queira estar. Uma casa nunca quer estar abandonada. ************** A casa vive. • 22 • Livro_fianl.indd 22-23 24-06-2013 13:32:46 Livro_fianl.indd 24-25 24-06-2013 13:32:46 Nome de algumas pessoas que passaram pela Revoada, deixaram e levaram um bocado da casa mundo a fora e mundo a dentro, não pondo fim a essa história: Sara Alexandra Pessoa Ramos Lídia Filomena Godinho Leal Tomáz Tasdid Hossain Alif Inês Geraldes Lopo Ozório Dju David Alexandre Gil Pais Realinho Abeeha Zahid Giovanna Raíssa Batista Domingos Rita Quintas Costa Ricardo Piedade Arogya Silwal Bruno Alexandre Lourenço Pessoa Sónia Santos Mário Ventura Fardim Hossain Adid Daniel Américo Mendes Barros Catarina Sousa Guerrinha Rita Mendez Inês Sofia Marques Malha Daniela Fernandes de Oliveira Iria Otero Isabel da Costa Lima Elda Nascimento Luís Bué Laura Alexandra Almeida Silva Harmandeep Kaur Lyncoln Diniz Malisha Hansana Aluthgama Hewaga Manoj Pariyar Joana Louçã Md. Maruf Uddin Marco Francisco de Sousa Adriana Reyes Minesh Cantilal Maugi Maria de Campos Stoer Raúl Marcos Nuno Sebastião da Costa Pereira Lopes Maria do Rosário Almeida Silva Pedro Manuel Domingos Pedro Correia Alexandre da Silva Nádia Filipa Silva Sacramento Sofia Neuparth Sanjidah Sulaman Nila Begun Shajan Luz da Câmara Carolina Sapage Neves Lima Petruta-Jessica Otvos Augusto Ribeiro Sintia Bhowmick Shimeizi Jin (Ya Ya) Suzana Salazar Ambre Vasconcelos Lisboa Duarte Vera Quintas Costa Alex Campos Ruxanda Oleinic Arshdeep Singh Margarida Agostinho Francisco Paulo Pereira Bandarra Ana Margarida Sousa Guerrinha Patrícia Ramos Gabor Ion Elvis Andrea-Bianca Sauca Luís Gerald Fonseca Garcia Bacar Fati Azra Jabin Mira Gonçalo Daniel Rocha Campos Filipe Roque Ribeiro Carolina Fenati Iona Viorica Fieraru Camará Ribão Larissa Gabrielle Lúcio Gouveia Inês Moura Fraga Pereira da Costa Gonçalo Pires Luís Armando Ganea Isaac Alexandre Rocha Campos Thiane Nascimento Purbina Shahi João Áleo Camará Mariana Viana Raquel Teixeira de Azevedo Maneesha Sriva Susana C. Gaspar Rita Teixeira de Azevedo Mário Rui Augusto Ferreira, Camila Jorge Samuel Francisco Santos Bernardino Marneza Bibiana Manuel João Hique Veiga Umaiya Afrin Arbin Muhammad Daniyal Zahid Zornitza Zlatanova Vânia Sofia Almeida da Cruz Oscar Zhang Xu Luannah Jimenes Malamine Mané Pedro Miguel Xavier Correia Filomena M. Gamboa Neves Barbosa Livro_fianl.indd 26-27 Agradecimento especial à vizinhança do Largo da Achada. 24-06-2013 13:32:46 Esse livro nasceu dos encontros da Revoada, trabalho com pessoas de diferentes idades e tamanhos, em Lisboa, 2013. Organização: Adriana Reyes, Joana Louçã e Lyncoln Diniz. Texto: Lyncoln Diniz Com acompanhamento de Sofia Neuparth Criação entre a Escola da Madalena e o “Corpo na Escola”, um projecto do c.e.m – centro em movimento. O c.e.m é financiado pela DGArtes. Lisboa 2013. Livro_fianl.indd 28-29 24-06-2013 13:32:46