PDF - Jornal Plástico Bolha

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PDF - Jornal Plástico Bolha
plástico bolha
www.jornalplasticobolha.com.br
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Distribuição Gratuita
envolvendo palavras
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O meu irmão João tem uma raiva nos colarinhos
quando for para o trabalho mais velho,
quando tiver que cortar os pulsos às namoradas,
quando não for capaz de degolar com um riso
os pedidos da mãe.
Ano 3 - número 24 - Outubro/novembro de 2008
Hein
z Lan
ger
DESTAQUES
ENTREVISTA COM
Como ainda não tem medo de enfrentar
as maratonas do deserto com uma chave,
ou através dum empréstimo ao banco para a sua casa,
ultrapassa as fileiras de mendigos da rua Augusta
a acenar aos homens sozinhos das prisões
e às rainhas dos mercados,
às gaivotas que voam sem estarem perdidas em cima do mar
ri-se durante horas
dos patos nos laguinhos dos jardins públicos.
Um dia pedir-lhe-ão que se entregue aos poros
com metáforas pendentes a chamá-lo de marinheiro,
a dizer que é preciso que afie as suas facas, sim
os seus dentes de mel terão de se agarrar ao pescoço dos vampiros,
e um dia
será uma barba a inspecionar o telhado de uma casinha de fósforos,
uma voz que se ajoelha face às varizes da mãe,
um nadador salvador de todas as promessas do passado.
Rita Brás
FERnAnDO BOnASSI POR AnDRÉA CARVALHO STARK
NA COLUNA ORÁCULO,
MIRIAM SUTTER COMENTA AS ELEIÇÕES... EM ROMA
FRAnCISCO BOSCO NA COLUNA POR DENTRO DO TOM
POEMAS DE
ALICE SAnT’AnnA, JOAnA PARAnHOS,
SETEnOVOS, LUIZ COELHO, GREGÓRIO DUVIVIER,
LEOnARDO MAROnA & PALOMA ESPÍnOLA
CONTOS DE
RAÏSSA DEGOES, LUCAS VIRIATO, TIAGO MAVIERO,
LEOnARDO VIEIRA & LEO CARnEVALE
BOLHETIM
Chegamos a Brasília
Cartas
Em época de eleições, o Plástico Bolha se dirige
para a capital do país. Como muitos brasileiros
estão indecisos sobre os candidatos, sugerimos
aos nossos leitores votar no Plástico Bolha. A nossa plataforma eleitoral inclui: literatura gratuita
para todos, mais de 40 pontos de atendimento
poético para a população e livre circulação de
pensamentos e idéias. Então, na hora do voto, não
se esqueça do Plástico Bolha, o jornal literário
que está no começo de uma carreira política das
mais promissoras.
Olá, amigos, sou mineiro (de Ponte Nova), mas
resido em Petrópolis/RJ, e em minhas idas à biblioteca aqui da cidade vi este jornal, exposto lá
e, como leitor curioso que sou, peguei logo três
exemplares. Chegando em casa, os pude ler e me
surpreendi de saber que há pessoas que movimentam este tipo de jornal... Com toda a sinceridade, adorei o jornal, a sinceridade que vocês
escrevem... Parabéns pelo trabalho, muitos anos
de vida para o Plástico Bolha, e espero que ele
chegue aqui, em Petrópolis, freqüentemente (por
favor)..... Inté
Alguns pontos de distribuição de Brasília
Mateus Jose
via e-mail
Sebo Virthual Libraria
UNB — SECOM
Açougue Cultural T Bone
Como já contamos em nosso editorial, o jornal
Plástico Bolha acaba de chegar à Internet. A partir de agora, todos podem ter acesso ao conteúdo
dos três anos de publicação literária. Desenvolvido em parceria com a empresa de design Torie, o
site reúne os textos de forma simples, organizados por colunas e autores. Os arquivos em PDF
de todas as edições também podem ser baixados.
Ainda é possível encontrar a lista dos pontos de
distribuição e links para os mais de 250 autores
que já publicaram no jornal. Clique agora e descubra por que o Plástico Bolha é involuntário,
aparentemente insólito e envolve palavras.
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Na Internet
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Café da Rua Oito
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Faculdade das águas Emendadas
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Instituto de Ensino Superior do Centro Oeste
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foto: Isabel Diegues
Faculdade Alvorada FAEFD
EDITORES
COMISSÃO AVALIADORA
Lucas Viriato
Paulo Gravina
Constanza de Córdova
Carlos Andreas
Tomé Lavigne
Nadja Voss
Mauro Rebello
Letícia Simões
Alice Sant’Anna
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Edson Santana
EDITORA ASSISTENTE
Marilena Moraes
CONSELHO EDITORIAL
Luiz Coelho
Gregório Duvivier
Isabel Diegues
Manoela Ferrari
Cristiane Mendes
Rosimery Trindade
Nathanna Alves
Raïssa Degoes
REVISÃO
AGRADECIMENTOS
Marilena Moraes
Rubiane Valério
Rafael Anselmé
Gabriel Matos
COORDENAÇÃO
EQUIPE
Letícia Féres
Priscila Mendes
Gisele Lemos
Aline Miranda
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Helena Ortiz
Rosália Milsztajn
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Lucas Viriato
Márcia Brito
Beatriz Pedras
Mary Viriato
DISTRIBUÍDO no estado do Rio de Janeiro e nas cidades de Belo Horizonte, Vitória e Brasília / TIRAGEM 13.000 / IMPRESSO na CUT Graf
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noite
Francisca
Repara, que todo dia carrega consigo
o seu inexorável ocaso
Cada sol que doravante
flameja tuas iras,
é ilusão de um breu inevitável
Perdi-me então,
nas incertezas de uma noite certa
Quão deserta era a rua,
sentei-me na tua calçada
Ali, uni meus gemidos
aos uivos do cão solitário
E enquanto a mão da noite
lentamente me cegava os olhos,
meu grito ecoava a esmo
no silêncio de tuas palavras
Sem perceber a hora,
a madrugada ia me despojando
o último lampejo de luz delicada
de uma certa manhã de canela
E lá adiante,
no horizonte de sepultados desejos,
descortinava-se o eclipse de minha vida.
Francisca. Dona Chiquinela era seu apelido. Chica quando jovem. Seu rosto não trazia marcas da
jovem Chica que se banhava nos açudes de Malhada Vermelha. Em verdade não se podia precisar
o que ainda Francisca carregava, sua memória nem sempre comparecia. Era comum a velha olhar
para um filho e perguntar seu nome. Ninguém mais se importava. Cuidavam apenas para que não
caísse, ela caminhava com dificuldade e sempre que se levantava uma enfermeira a acompanhava.
Talvez nem fosse de fato uma enfermeira. Uma moça. “Chamem a moça”, gritavam quando Francisca fazia um movimento brusco para se levantar. Ela se movia assim: no rompante. Como estivesse
se soltando de cordas, do laço. Do resto. A família. Ninguém se importava. Só não podiam deixála cair, a preocupação era mais pelo trabalho do que uma queda podia dar, do que com a velha senhora. Dona Chiquinela fora uma matriarca. Mulher sozinha, o marido sempre fora e ela sozinha
numa fazenda do Sertão. Malhada Vermelha. Uma sertaneja sozinha. Ela e os filhos, os meninos.
Os mesmos dos quais hoje ela já não se lembra. Os mesmos que hoje se incomodam com a presença
da velha mãe. Um estorvo em casa. Talvez um asilo. Quem pagaria?
Joana Paranhos
Ninguém se importava. A matriarca hoje reduzida a um saquinho de ossos. Muito magra, a moça
que despertara o desejo e o respeito dos jagunços da fazenda. Hoje já não era quase nada. Nem lembrança ela era. Francisca. Ainda um nome. Tinha seu nome e ele ainda é forte como fora a mulher
no passado. Hoje, um móvel que não cabia na casa. Mas ainda tinha vontade. Francisca ainda estava
viva. Os filhos, os meninos não pareciam ter afeto. Quando houve afeto? As mãos da mulher eram
calejadas, o rosto marcado e talvez o coração nunca tenha podido carregar afeto algum. Os sete filhos
e a casa no meio do nada já eram demais. Pensar em carinho ou ternura seria por demais perigoso.
Era mais seguro não gostar de ninguém, nem do homem, nem dos meninos. Eles, bastava criar. Foi
seu feito. Educou, fez escola e mandou vir uma professora da cidade. O tempo que ficou foi apenas
para ensinar os dois maiores. A moça lhe fazia raiva. Letrada, da cidade. A sertaneja não suportava
a outra, aquela que não poderia ser ela. Os maiores se encarregaram da alfabetização dos outros.
Cresceram e deram para muitas coisas, todos vingaram. Um até virou doutor. Mas na velhice, sim
hoje também, os filhos estão velhos, se mantêm um pouco entorpecidos, uns de calmante, outros de
álcool. Não sustentam o mundo como a mãe pretendia. Não puderam, dela não herdaram a força,
só a secura. A falta de habilidade para um carinho. Uma mão doce que pudesse percorrer a testa
afastando-lhe uma mecha de cabelo mais rebelde. Nada. Todos secos. Todos sempre em silêncio.
A velha olhava com seus olhos de macaquinha. A senilidade traz esse olhar de macaquinho: meio
humano, meio besta. A gente nunca sabe se entende alguma coisa, se tem pensamento por trás ou
é só vista oca. Francisca olhava. Será que havia lamento por seus filhos transformados em parede?
Mas ela não reconhecia ninguém, ou era sua maneira de não estar com eles, de ir embora. A defesa
de Dona Chiquinela. Ela apagou todos eles, os transformou em estranhas sombras da casa. Esqueceu. Francisca guardava ainda a angústia. Talvez fosse seu corpo. Ao entardecer, a angústia vinha
e o corpo queria ir embora. Já não era mais o crepúsculo triste do sertão. Àquela altura já vivia na
cidade, enfiada na casa de algum filho. Eles faziam rodízio, assim não era injusto com ninguém.
Mas, mesmo em meio ao barulho da cidade, a angústia comparecia todas as tardes. O corpo se inquietava e Francisca queria voltar para a casa do pai. Que pai? Como voltar? O destino dela era
apenas esquecer, mas ainda queria voltar. Ainda existia um pai. A velha o procurava ainda. Uma
tarde ela foi cambaleante para a rua, tentava atravessá-la. Dizia que estava indo para casa. A casa
de seu pai. Ninguém gritou pela moça. Francisca partiu, foi embora. Ficou apenas, caído no chão
da rua, o corpo de minha velha avó.
Raïssa Degoes
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Av. Rio Branco, 185 – Subsolo – Ed. Marquês do Herval
Centro – Rio de Janeiro/RJ Tel.: (21) 2533-2237
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PUZZLES
por NASTASSJA SARAMAGO DE A. PUGLIESE
Jean-Paul Sartre: condenado à liberdade — Parte I
“o inferno são os outros” zan e Raymon Aron. Quando Nizan casa, Sartre
e Aron testemunham o ato e lamentam a decisão
Jardim de Luxemburgo, um pequeno apartamen- do amigo. Nenhum dos dois compreende o motivo
to de uma família de classe média. 1905, pouco de vincular o amor à instituição do casamento. Ao
tempo antes da Primeira Guerra Mundial. “O fi m do ano de 1927, Sartre é reprovado no exame
leitor entendeu que eu detesto minha infância e do concurso de agrégation em filosofia. Dizem
tudo aquilo que a me faz lembrar”. Em As Pa- que, por ele ter estilo próprio e linguagem original,
lavras, autobiografia publicada em 1964, Jean- acabou ultrapassando os limites estipulados pela
Paul Sartre narra os doze primeiros anos de sua tradicional da academia francesa. Teve que fazer
vida. Jean-Baptiste Sartre, seu pai, era um oficial a prova de novo e, desta vez, não só passou em
da marinha que morreu quando seu filho tinha primeiro lugar como também esta foi a ocasião
apenas quinze meses. Ainda criança, Jean-Paul em que conheceu Simone de Beauvoir, concorse mostrava ávido leitor e escritor precoce. “Eu rente que conquistou a segunda colocação. Os
nasci da escrita: antes dela havia nada, a não ser dois viveram uma relação inspirada nas letras, em
um jogo de espelhos. Enquanto escritor eu exis- que procuravam transformar a vida em narrativa.
tia...” Sartre tem duas grandes recordações de Partilhavam tudo o que viviam e sentiam o duplo
sua infância: o vínculo com sua mãe e a imersão prazer de escrever suas próprias aventuras e ler
as do outro.
em livros.
Criado por ela, Anne-Marie Schweitzer, os dois
construíram uma relação de cumplicidade decisiva, que fundou a percepção de Sartre sobre
as mulheres. Bon-vivant e sedutor, Sartre foi
símbolo da revolução sexual do pós-guerra e
preconizou a importância do feminino. Ele e Simone de Beauvoir, apelidada carinhosamente de
“Castor”, se entrelaçaram até o fim da vida. Estão
sepultados no mesmo jazigo. Ele, que faleceu em
1980, e ela, seis anos depois. Uma história de amor
controversa, mas acima de tudo, filosófica. JeanPaul não ficou apenas conhecido por sua obra
teórica, mas também pelos efeitos práticos de seu
pensamento. Desafiadores das normas culturais,
os dois viveram — literalmente — a radicalidade
do amor e do pensamento livre. Ela, ícone do
feminismo, e ele, avesso a qualquer rótulo. Os
dois, somas de suas ações, foram duramente criticados: não eram monogâmicos, tinham outros
amantes e, muitas vezes, os “dividiam” — o caso
mais famoso foi o conturbado triângulo amoroso
que os dois sustentaram com Olga Kosakiewicz,
aluna de Simone de Beauvoir. Costumavam dizer
que a relação deles era a mais importante e todas
as outras, meras contingências; mas não se pode
afi rmar que o efeito psíquico dessas empreitadas
era saudável. Mesmo assim, insistiam em dizer
que não havia ciúmes entre eles. Nas palavras de
Beauvoir: “Tínhamos todas as vantagens de uma
vida a dois, sem nenhum dos inconvenientes”. O
casal virou mito.
Sartre foi educado pela sua mãe e instruído pelo
avô, ele se desenvolveu em meio aos livros da biblioteca da família. Formou-se na École Normale
Superieure, onde cultivou amizade com Paul Ni-
¬4∆
dobrou-se em ato criativo. Erigiu-se, em meio aos
cacos de natureza humana, um novo humanismo,
fundado na liberdade pura e nas incongruências
da existência. Sartre inaugura o período da literatura engajada e suscita tanto o entusiasmo
quanto o ódio cego, pois sua luta pela autonomia
era confundida com libertinagem. A essência de
seu pensamento se enraizava no desejo de ser, em
absoluto, o criador de sua própria imagem, para
fugir de toda rigidez e fi xação de sua existência
gerada pelos olhares dos outros. “A luz do outro,
as situações que escapam, a aparição do outro fazem surgir na situação um aspecto que eu jamais
desejei e que me escapa por princípio, porque ela
é ‘para o outro’”.
Mas Sartre ele mesmo cunha para si uma imagem
mítica, e cada escolha que ele faz acaba sendo
vista como exemplo. As regras de vida que ele
Em 1939 Sartre se alistou no exército francês e autenticamente estabeleceu para si tornaram-se
serviu como meteorologista. No ano seguinte ditames comuns nas décadas de 60 e 70. A idéia
foi capturado pelas tropas alemãs e passou nove de não se reconhecer em nenhum papel social, não
meses como prisioneiro de guerra. Foi nesse pe- acreditar no julgamento do outro, nas imagens de
ríodo em que Sartre escreveu sua primeira peça nós refletidas, no aprisionamento que o mundo
de teatro Barionà, fils Du tonnerre, e leu Ser e pode gerar, foram as máximas de Sartre. E foi por
Tempo, de Heidegger. Após ser solto, em razão pura coerência pessoal que ele recusou o Prêmio
de estado de saúde frágil, passou a lecionar no Nobel no ano de 1964, dando o último exemplo
Lycée Pasteur. De volta a Paris, funda o grupo de emancipação, afi rmando mais uma vez seu
Socialismo e Liberdade junto com Merleau-Ponty, princípio de que “o que importa não é o que os
Beauvoir, Jean-Toussaint e outros estudantes da outros fizeram de você, mas o que você faz com
École. Queriam a participação de André Gide e o que os outros fazem de você”.
André Malraux, mas não conseguiram. Isso fez
Sartre desistir do movimento para dedicar-se
exclusivamente à escrita. Ficou grande amigo
de Albert Camus, que era o dono de um jornal
Remorso
chamado Combat. Sartre contribuía ativamente
para o periódico, mas tanto a amizade quanto a
às vezes
participação literária foram prejudicadas quando
um
pingo
Camus abandonou o engajamento e deixou de ser
de vinho
comunista. Mas Sartre mantém sua posição até
esquecido
o fi m sai e milita pela independência da Argélia,
na
mesa
defende o maoísmo e participa, junto com Foudomingo
cault e Deleuze, do movimento estudantil de maio
significa
de 1968, em Paris
a tristeza
mais que
A Segunda Guerra Mundial deixa seqüelas que
o
suicídio
ultrapassam o âmbito político, pois um espírito
daquele ex
de absurdo toma conta dos que viveram os dias
antigo amigo
de conflito. Pessimistas em relação à razão, usaproxeneta.
da friamente como máquina de guerra, vêem-se
imersos em incongruências e despropósitos. Era
Leonardo Marona
preciso algo capaz de salvar a queda da experiência, a realidade despedaçada e a vista em estado
de vertigem. O mundo era sinônimo de desastre,
mas a percepção nauseante do não-sentido des-
MULHERES-DAMAS
por GREGÓRIO DUVIVIER
Safo de Lesbos
seu contorno noturno me transtorna
a pele morna sob a carne mansa
mais macia do que o manto-pêlo
do que o mar na coxa sua língua roxa
inverna mil calores seu biquíni
mini me maltrata mil me estorva
e turva feito burca no calor do rio
mazurca na sanfona odes negras
no baião és foda e fazes falta
nesta terra pouco firme em que você
se vivesse cantaria mpb
Concerto Derradeiro
“Há um arbitrário implícito
nestas ruas estúpidas:
o de que devemos prosseguir”
DIEGO BARRETO IVO,
Do falsário da irreconhecível pintura
Meu grande concerto é um planejamento amargo.
Em cada desvio, meu caminhar se deita
remoendo os outros desvios e o encargo
de não se desviar: há um sonho perfeito.
PARA LER EM VOZ ALTA
por VIVIAN PIZZINGA
Sentada na sala
Ela estava sentada na sala no escuro sabendo de tudo silente cansada na
sala sentada sentindo saudade no escuro silente da sala que mente que é
bela que é doida que é forte na sala sentindo o cheiro de sal na salada sadia
do almoço tardio. Na sala, ela, sozinha, silente, no escuro, pensava em
ciladas... Com medo de tudo no escuro as sombras com medo do nada de
si e do mundo com medo de ter que ouvir que a sala despenca no mundo.
Cilada. Na sala. Sentada. Sozinha. Longínqua. A tarde que é longa cansada
na sala e ela sozinha sensata no mundo. Sem papo sem tato e afago na sala
de cores tão ralas. Lembrando da mala aberta de pó e poeira, na sala vazia.
Ela sozinha silente sedenta santinha. Na sala sangrava de tanto sonhar, de
tanto calar... no escuro.
Na avenida principal, que é perfeitamente
infinita (sendo uma reta ou sendo cíclica),
há sempre o temor da falsa harmonia íntegra,
do falso movimento uniforme que tende
a zero, do suplício ao fim do beco escuro.
Há nas esquinas um convite a Epicuro,
um convite a remoer a onírica estrada
que se afasta em onírico desenrolar,
viva como o desvio da morte em cada andar
cada sangrenta e obscena fenda nos muros.
Marlon Riviero Franco
eu não tenho lugar
muito menos qualquer outra coisa
já morri muitas vezes
em minha sede de quase nada
vagando por aí
como quem atira a esmo num campo vazio
e rumina a palavra solidão
enclausurado em todos estes dias inúteis.
João Ayres
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BOLHAS GERAES
NANOBIOGRAFIAS
eclairton
pai, aposentado. aos 68 anos viajou à cordilheira dos
andes e nunca mais foi visto. após vinte anos retornou
à sua cidade natal: criciúma. morreu aos 100 anos, em
mogi mirim, de onde nunca deveria ter saído.
everildes
poema autobiográfico encontrado
no bolso do vestido de everildes-morta
Versos de Circunstância
Jamais apreciei balas de goma,
Venezianas gôndolas,
Cortes de casimira.
mãe, mulher e amante. nasceu em boa família (mg).
aos 30 anos realizou o sonho de ver a torre eiffel, mas
jamais conseguiu uma bolsa de estudos em alguma
universidade inglesa. nunca foi aprovada no toefl .
ganhava a vida criando quadras, quadrilhas e, com
fazenda chinesa, bolsas usadas a tiracolo. jamais foi
descoberta. morreu aos 80 anos em juazeiro do norte,
dizendo “não sou noel, mas vou para o céu”.
Casei-me com véu,
Cantei com Noel
E quando tive que sambar,
corei.
Imitei Monalisa,
Usei vestido de fita,
Cosi a roupa roída do rei.
Jamais li Macário.
Não jogo baralho
E de rimar,
cansei.
Letícia Féres
Identidade
Minha mãe guardou por muito tempo
a carteira de identidade de sua finada mãe.
A foto, preto e branca, sua assinatura arredondada,
A marca de seu polegar delgado, desvanecente.
O plástico aos poucos cedendo nos cantos
Provas de uma existência primeva, feliz, talvez.
Até que um dia ela cortou a carteira de identidade
Para ficar apenas com a foto.
Deus não pede documentos.
Rafael Silveira
PÃES ANTEPASTOS MASSAS MOLHOS
PIZZAS SALGADOS DOCES TORTAS
Entregas na Gávea e no Leblon / sábados, domingos e feriados
www.ettore.com.br
Av. Armando Lombardi, 800 - lojas C/D. Condado de Cascais, Barra da Tijuca - RJ Tel.: 2493-5611 / 2493-8939
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COnTOS InSÓLITOS
nossos gatos virão, como presas esquivas, persas, roçar seu. Haley? Pronto. Ouça este conselho. Cometa um
as superfícies de madeira polida. Então sonharemos! crime. Vale a pena ser um astro desses. Eu nem podia
Nossas esposas estarão em seus quartos; os cotos das imaginar o quanto é divertido. Antes eu escutava
Para Jason Carneiro
pernas, suspensos dos telhados por cordas e ganchos. Mozart e comia baba de moça. Agora vou ver o sol
Como pode? Não há ninguém aqui para nos acompa- Nossos gatos, esses nunca poderão sonhar. Deram-nos nascer quadrado. Puft!Paft!Puft!Paft! (gargalhadas).
nhar, nossos corpos perfurados por bicos de pássaros de presente, algum dia.
Na verdade só soube ontem que o defunto tinha oito
que sobressaem das paredes. Precisamos ser rápidos,
Leonardo Vieira irmãos. Ele era o caçula. Por isso o apelido? Não sei.
pois de nossas cabeças prolongam-se fios içados pelo
Pelo menos com tanta gente nem vão sentir falta. Não
céu. Nas pontas dos fios há agulhas fi ncadas na pele
tinha televisão na casa deles. Na minha casa sempre
macia do crânio, e assim vamos, como medusas, nostivemos TV, telefone, telegrama, telescópio, teleférisos pés mal tocam o solo, os bailarinos, as bailarinas.
co... Teleférico era no sítio. Foi no sítio que conheci
Não conseguimos nos tocar, por mais que tentemos, e
Maria Fernanda, Maria Eugênia e Maria Priscila. A
assim prosseguimos. Há um cansaço em nossos corpos,
Maria Priscila tinha enfermidades nos ossos. Eugênia
mas o cansaço é o melhor desenho para compormos
dizia que eu não falo coisa com coisa. Nunca entendi
um quadro. Queríamos ser leves, não sentirmos os Confesso. Fui eu que matei. Nunca gostei dele mesmo. o que ela quis dizer com isso. “Coisa com coisa”. Se
músculos tensos depois de longa fadiga; porém, o que Tem um cara aí ganhando a fama. O nome? Acho que ainda fosse coisa com coisa nenhuma, tudo bem. A
nos resta? Há uma mulher com pupilas que brilham é Brown. Mike Brown. Pra mim esse nerd não mata Maria Fernanda era insignificante. Bem sei por que
de maneira exagerada. Um de nós, ao se aproximar nem formiga. Tá certo que o defunto era pequeno. estou aqui. Saturno denuncia crimes. Não imaginei
dela, repara que seus olhos são de vidro. Alguém Andam chamando até o maldito de anão. Conheci na que tivesse um detetive na minha cola. Saturno não
retira uma grande pinça do bolso, abre-a, e consegue escola... Isso mesmo! Estudamos juntos. Já contei? é nome de gente, é nome de cachorro (gargalhadas).
inseri-la, afastando os rebordos de uma das órbitas. A Foi na quinta série. Ele sempre era o último da fila. Moro numa vila de doze casas. Uma grudada na outra.
carne se dilata como borracha, o olho de vidro salta e Cara meio frio. Não tinha muitos amigos. Vivia do Não gostam de mim. Dizem que sou um escorpião do
percorre a rua. Que aconchegante, mostrar-se assim. brilho dos outros. Sem luz própria, sabe? Depois da deserto, um peçonhento. Sou? Não sou, não. Matei
Como seria estuprar essa cavidade no rosto da mulher? formatura, nunca mais o vi. Sumiu! Quer dizer, uma com base em cálculos matemáticos. É ciência. CúmFecundar sua órbita cega. Mas eis que vem um outro vez passou correndo na praça XV. Um jeito esquisito, plices? Não tenho. Talvez os velhos gêmeos da casa
de nós, num carrinho com rodas, arrastando-se com meio fora de órbita. Tentei chamar, mas não deu tem- três. Eles apontaram a direção e ficaram rindo por
dificuldade, aproxima-se da mulher e lhe faz uma po. Não sou doido. Quebro umas velas vez ou outra. trás das cortinas. Alegravam-se ao som da confusão.
mesura. Tem uma mandíbula de platina, aparafusada Louco, não. Tem coisas que só falo na frente do meu Minha avó dizia que eu levava jeito pra show-man.
nas bochechas. Roça a ponta do queixo de metal nos advogado. Nessas horas funciona o tipo estrela. Tenho Antes de morrer, me deu esta roupa pra eu usar nas
sapatos envernizados da dama. Mas o que ele pode os meus direitos. Sou réu primário. Aqui tem chuveiro minhas apresentações. Quando fui intimado a depor,
sentir, o que ela pode sentir? Ele não goza? Percebe-se quente? Não posso tomar banho frio. Tenho um papel peguei pra vestir. É uma ocasião mais que especial.
que sim, pela maneira como o queixo treme freneti- com telefone da minha prima Arlete. Ela é puta aqui Tinha fotógrafo na entrada, microfones, até o pipocamente, como o torso sem braços ou pernas parece na rua de trás. Um dia me falou pra ligar nesse número queiro veio fazer um bico. Fui magnífico na entrevista.
chapinhar na camada de ar morno. Agora tiraram se precisasse. Vai pagar a fiança. Não tô com grana. Primeiro escondi o rosto, depois levantei e olhei pra
seu segundo olho, e ela parece uma mulher cuja visão Que olhar é este? Qualquer um mataria o fi lho da multidão. Muita gente. Escondi o rosto e pensei: E
foi devorada por algum pássaro. Aquele pássaro na mãe. Fui encurralado quando soube que era regente. agora? Levantei a cabeça e dei um sorriso. Um largo
parede fez isso com ela? Na calçada, do outro lado Ele! Absurdo. Não sabia nem dele mesmo. Ia saber sorriso. Foi tanto fl ash que por fi m eu queria um burada rua, passa uma senhora com arames cravados de mim? O infeliz estava na casa cinco. Corri para co negro pra me enfiar. Então gritei. Sou inocente! Sou
no crânio, uma árvore metálica que se perde no céu. o quintal e vi que era o número do vizinho. Na casa inocente! Só pra fazer figura. O repórter perguntou:
Algum tipo de penitência mantém a senhora curvada cinco sob influência de Marte. Nem sei quem é esse tal Você nega o crime? Respondi: Não negarei mais. Fui
pelo peso da coroa de fios de arame. Cavalos trotam de Marte. Só sei que o cara ia me deixar agressivo e eu que matei. O povo vibrou! Nossa, nunca vi tanto
ao longo da calçada, puxando um estrado com rodas violento até o dia doze. Eu ia esperar até o dia doze?! estardalhaço. Meu coração estava a mil. O assassionde uma menina, amarrada em um calhau, olha Peguei a pistola. Invadi sem delicadeza. Sei que vocês nato virou matéria e antimatéria em toda a impressa.
para as nuvens que começam a se adensar. Por trás estão aí! Larga de esconde-esconde. Puxei o gatilho. Quando virei pra entrar na viatura, alguém pediu
das janelas das casas sabemos que todos usam óculos Arma carregada. Virei no corredor dando de cara com uma última palavra. Fui olhando tipo câmera lenta e
escuros. O homem da mandíbula de ferro não desiste a foto de uma gordinha. Era azul de tão obesa. A foto falei: Não se esqueçam de dizer pro Brown que estou
de roçar o sapato da mulher cega. Quanto tempo, tava num quadro enorme preso na parede. A gorda de olho nele. Ninguém leva a fama às minhas custas.
ainda? O que podemos fazer, se não conseguimos não tava bem. Muito ozônio na cabeça. Logo saquei Puft! Paft! Puft! Paft!
um contato que seja, nem um simples aperto de mãos, qual era a deles. Fui até a cozinha. Ninguém por perto.
Tiago Maviero
nem um beijo na face de alguém? Apenas transitamos A geladeira estava aberta. Tinha um bolo assando no
pela rua, alguns dias entre a multidão, outros apenas forno. Voltei para o quintal. Era noite. Não vai ligar
interceptados por essas figuras vagas: a mulher de pra Arlete? De repente, ela traz algo pra eu comer.
olhos de vidro, o homem de queixo de prata, a senhora Tenho jeito de mentiroso? Olha pra mim. Parece que
com a coroa de arame. E do estrado, puxado pelos tô inventando? Estou algemado, senhor policial! Estou
cavalos, a menina exibe a língua, contorce-a, pois preso neste lugar fedido, mal iluminado. E essas pessoacabou de interceptar no vôo um pequeno pássaro, as? Uma mais estranha que a outra. Se um meteoro cai
cujo pescoço mastiga, dilacerando a carne tenra, o aqui, acaba logo com esta história. Cheguei atirando
sangue brotando de sua boquinha pintada. O que nos pra todos os lados. Acertei dois. Um no ombro e ouespera? Quando voltarmos para casa, encontraremos tro na cabeça! Confesso. Foi assim. Puft! Paft! Puft!
nossos gatos de ágata, de pupilas lisas, de frio beijo. Paft! Não tem pra ninguém. Fiz curso superior. Tenho
Ergueremos nossas calças, porque, nesta rua, somos direito a cela especial. Escuta! Policia! Seu nome? Vou
todos coxos. Uma perna sadia, outra de madeira. E anotar. Gostei de você. Não é aluado feito esse amigo
Estórias de Gatos
O homem que matou Plutão
¬7∆
POR DEnTRO DO TOM
por SANTUZA CAMBRAIA NAVES
Entrando na conversa sobre
o fim da canção (4)
Dando continuidade ao debate sobre o “fi m da canção”, abrimos espaço, neste número, para Francisco
Bosco, escritor, letrista e ensaísta, além de doutor em
Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Autor de diversos textos ensaísticos, publicou Da Amizade (Rio de Janeiro: 7Letras, 2003),
Dorival Caymmi (São Paulo, Publifolha, 2006) e
Banalogias (Rio de Janeiro, Objetiva, 2007).
redutível de sentido, numa palavra: canção. Nem
vou entrar no mérito de que já faz tempo que, nos
EUA, o rap se abriu à melodia e perdeu boa parte
de seu teor político (antes sofreu uma lamentável
regressão ideológica). O que importa aqui é assinalar que o rap não é nem mais nem menos canção do
que qualquer outra canção. Sua pujança no Brasil
e no mundo demonstra que não foi a canção que
chegou ao seu acabamento, mas a canção tal como
a conhecemos.
por FRANCISCO BOSCO
nOTAS nO
PLÁSTICO
e distintivo da canção popular brasileira: como talvez nenhuma outra do mundo (à exceção daquela
de língua inglesa), ela mistura oralidade e cultura
escrita, consumo e vanguarda, síncope e música
erudita. O segundo traço fundamental é de nível
formal: desde Noel (desde antes), a canção para nós
se confunde com melodia; e, mesmo que na bossa
nova essa primazia da melodia cantada tenha sido
submetida a uma ampla reconfiguração (em que a
Conhecedor como poucos do processo de compo- harmonia deu um salto experimental, a voz recuou
sição de canções, filho de João Bosco e ele próprio de plano, a síncope foi sintetizada na batida do violetrista, Francisco Bosco faz os seguintes comentá- lão, etc.), ela nunca deixou de ser imprescindível. A
rios sobre o tema proposto:
MPB dos anos 60/70 e o tropicalismo, de maneiras
muito diversas entre si, mantêm-se fiéis a essa tradiA canção: conhecendo, reconhecendo,
ção. A MPB segue o princípio da sofisticação bossa
desconhecendo
novista (diluindo-a às vezes, como soube apontar
em tempo real Augusto de Campos), e o tropicalismo, abertamente filiado à antropofagia, radicaliza
e sistematiza a mistura de códigos.
Como todos sabem, Chico Buarque é um cancionista sofisticado. Emprega as palavras em suas arquiteturas melódico-textuais com grande consciência
da lógica própria da canção. E como todos que não
têm preconceitos fisiológico-culturais igualmente
sabem, Chico Buarque é também um romancista
rigoroso e consciente do fazer ficcional. Não se deve perder isso de vista quando se vai analisar suas
investidas no discurso conceitual: também aí vigora
uma postura de rigor.
É a essa canção que Chico Buarque se refere, e daí
que eu prefi ra usar o termo “acabamento” (em vez
de “fi m”), pois ele encerra as duas dimensões do
problema: acabamento enquanto fi m, e acabamento enquanto realização máxima. Essa canção, sem
dúvida, chegou a seu acabamento: dentro de seus
parâmetros, não há inovações decisivas na produção contemporânea.
por MAURO FERREIRA
Mineira Aline Calixto é contratada
pela Warner
Quando, entretanto, se pensa a canção fora dessas Cantora mineira que vem ganhando projeção no
determinações histórico-formais, é mais do que circuito de samba do Rio de Janeiro (RJ), tendo
evidente que a canção não acabou. Fora dessas feito temporada de três meses numa das mais condeterminações, a canção deve ser pensada em sua corridas casas da Lapa, Carioca da Gema, Aline
defi nição estrutural fundamental: canção é o pôr Calixto já assinou contrato com a gravadora Warem relação de palavra e som, letra e música. Re- ner Music. A intérprete já prepara seu álbum de eslação, por sua vez, não é mera coabitação, mas tréia para o início de 2009. No repertório, haverá
transformação recíproca, de modo a se criar uma músicas inéditas de bambas como Nelson Sargenexperiência híbrida do sentido que é irredutível a to, Moacyr Luz, Paulo César Pinheiro, Monarco
qualquer um de seus elementos formadores (música — que, fã já ardoroso da cantora, deu três sambas
para ela — e Wilson Moreira.
e texto).
Digo isso porque, ao aventar a hipótese de um acabamento da canção neste começo do século XXI,
Chico Buarque determinou formal e historicamente
a canção a que se referia – e, se ignorarmos essa determinação todo o problema perde o foco. Na fala
de Chico Buarque, essa determinação, se manifesta em uma única construção — que se repete três
vezes com mínimas alterações – sempre intercalada
como se fosse um parêntese: “talvez a canção, tal
como a conhecemos, seja um fenômeno do século
Ora, dessa perspectiva, o rap não é uma negação da
20” (grifo meu).
canção, mas, apenas, como Chico Buarque falou, DJ Marlboro entra no Tubo de
Portanto, a canção em questão é a canção tal como uma negação da canção “tal como a conhecemos”. Ensaio do Farofa
a podemos reconhecer na tradição brasileira do O rap — idealmente falando — faz tabula rasa de
século XX. Chico delimita com precisão seu arco harmonia e melodia, e desconhece a síncope. Ele é Grupo revelado em 1998, responsável pela projehistórico-formal: “Noel Rosa formatou essa música uma negação radical da canção popular brasileira ção de Seu Jorge no cenário musical, Farofa Canos anos 30. Ela vigora até os anos 50 e aí vem a tal como a conhecemos tanto do ponto de vista rioca completa 10 anos de carreira às voltas com
bossa nova, que remodela tudo — e pronto”. Para formal quanto cultural-ideológico. Ele nega a sín- o lançamento de um novo álbum, Tubo de Ensaio,
sermos drasticamente sucintos, a canção em questão cope, a harmonia, a tradição — e com isso nega a nas lojas a partir de setembro de 2008. Entre as
tem dois traços fundamentais. O primeiro é antro- mestiçagem, a cordialidade, o encontro, isto é, mais músicas do repertório inédito, há “Rio Batucada”
pológico-cultural: a canção “formatada” por Noel ou menos tudo que a gente conhecia. Mas o rap é e “Trem Mais um Dia”. DJ Marlboro é parceiro do
Rosa é basicamente o samba, um gênero sincrético, ritmo e poesia, isto é, a palavra transformada rit- grupo na faixa “A Feira”. O CD é independente.
resultante de uma multiplicidade de cruzamentos micamente (ou o ritmo transformado verbalmente),
sociais, musicais, semiológicos, tal como mostrou o que significa dizer que é ainda uma linguagem
em detalhes Hermano Vianna em seu O mistério do sincrética, letra e música (ritmo é aí o elemento Para ler mais notas musicais, acesse
samba. Essa multimiscigenação é um traço decisivo musical), que forma uma experiência nova e ir- http://blogdomauroferreira.blogspot.com
¬8∆
MANHATÃ
AMOR AMÉRICA
Sair da tela e ir para o cinema, o nosso galho é em
Manhatã. E se Duchamp depois do urinol virou
profissional em xadrez. Por que não podemos nos
projetar pelos tetos, chão e pela parede? Os paraísos descartáveis somos nós, a TV explode suas
estruturas provisórias na arquitetura do instante.
A nossa casa não passa de um processo mágico;
realmente é bom estar de sunga e pedra na mão
para dar boas vindas ao rio Hudson. Somos todos
arrastados pelos carros, o pássaro acaba de abrir
sua jaula: calamos para casa, assaltados e felizes. Os
santos de Wall Street baixaram aqui no terreiro de
Battery Park na entidade de Leviatã. And the girl
from the Orange County goes walking and when
she passes each one the crowd goes... each day when
she walks through Fifth Avenue she looks straights
ahead not at me... sou um fio telefônico agonizando
pelas veias pré-diluvianas entre cafés noturnos e
armas. Os artesãos da tempestade estão aqui. E se é
para um carro arrasar o meu destino, que seja uma
Ferrari. The last poets observam que ali na Broadway
as deusas passam supersônicas sereias pelos hotéis
nublados. Don’t walk no Apocalipse. Estão presentes
aqui os cafajestes Barretão, Domigos de Oliveira,
Ruy Guerra, Gustavo Dahl, Cacá Diegues, Jabor
and the godfather, Papai Glauber de Xangô. Os
enigmáticos sinais em elétricas guitarras são nossas
asas deltas para o pouso nesses óculos escuros. Os
poetas são os novos índios aqui na Seventh Avenue.
Eclipse nenhum. Ou quase, quase. São 39 horas
da tarde. Naquela adorável hora noturna de Ford
estarão os luxos letais. O velho paralítico continua
sua corrida, me acostumei com vexames. O prazer
de ser vigiado (love ruins everything). As paredes
pulsam. Aqui posso perceber bem tudo respirar como se meu batimento cardíaco controlasse o pulsar
dos tijolos que mais parecem batimentos da casa
que respira pelos tetos de móveis flutuantes com
gás de hélio. Esse foi o balé de tijolos mais bonito
que já vi na vida. Paranóia com brócolis. Paranóia
com brócolis. E se Ginsberg decretou The Fall of
America, eu ouço Lou Reed no banco de trás. NYC
e seus dândis de dendê. Intergaláticos Guggeinheims
aplaudem a orquestração de janelas desperdiçadas,
as auto-estradas de venezianas nos fazem esquecer
as calçadas de vidro. Os afogados de Connecticut
se derretem nas cicatrizes dançantes do Hudson.
Eles são os poemas visuais em expansão fora dos
bolivianos do Park Avenue e seus martinis desolados.
Manhatã, Manhatã! O passageiro da lua Michael
Jackson prepara ilhas teleguiadas para a santa CIA.
Tiroteios em atalhos de plástico, o resto explode. Pindorama Avenue manda um abraço. O acidente faísca
diamantes. E mesmo assim o sorriso é de pressa e de
uma beleza nunca antes imaginada ou conquistada.
E por que não sambar com rock and roll?
A maior cena de amor Americana não é nenhum
beijo de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Não
tem Deborah Kerr nem Gregory Peck, não é aquele
beijo do soldado na enfermeira no fi nal da Segunda
Guerra Mundial. A maior cena de amor Americana
é Jacqueline Kennedy Onassis subindo em desespero
a capota daquele Ford modelo Lincoln para catar
os pedaços explodidos da cabeça de John Fitzgerald
Kennedy. São algumas dezenas de fotogramas da
primeira dama em transe, ensangüentando as mãos
nos miolos daquele 22 de novembro de 1963. Lee
Harvey Oswald matou Kennedy. Dois tiros cirúrgicos, um no pescoço e outro fatal na cabeça. Foi você
mesmo Oswald?! Não! Oswald o teria devorado!
Lee Harvey ex-marine. Até tu Brutus?! É presidente,
quem deu o tiro foi um dos teus... Naquele dia D of
the Big D, Dallas city. Don´t you mess with Texas,
Mr. President. Sempre que vejo um beijo em preto
e branco ou escuto ao longe o Sam tocando de
novo em Casa Blanca, lembro de Dona Jacqueline
ajoelhada no carro, já funerário, atrás do cérebro
espatifado do marido. Amar é ter nas mãos essa
massa cinzenta que pensava a América! Cinzenta
como a Lua que ele queria conquistar. Flicts. É
presidente, naquele 20 de julho de 1969 lembrei de
suas palavras. Um homem na lua. E você, o que teria
pensado Kennedy ao ver na distância aquele foguete
Saturno V cortando os céus como a bala que cortou
o ar até a sua cabeça?! A small trigger for a man’s
finger but a giant blow for a human head! Dona
Jacqueline catando miolos para alimentar mortos
vivos! Miolos! Miolos! Nada é por acaso nessa vida.
Lincoln morreu na sala Ford do teatro Kennedy.
Kennedy morreu num Ford modelo Lincoln. É, nada
é por acaso nessa vida. Sempre que penso no amor
na América penso em Dona Jacqueline ajoelhada,
apavorada, apaixonada, com as mãos empapadas
de sangue, catando a cabeça explodida do marido.
E Pelé disse: Love, Love and Love!
Domingos Guimaraens
Quero te ter em Honolulu
Te beijar em bora-bora
vambora
que eu quero te comer agora
no lugar com o nome mais ridículo possível.
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¬9∆
A Criação do Teatro
Do esquecimento
Baco criou o teatro num sábado sem bacanal.
Esquecer é uma arte que compete aos homens, não
às mulheres. Esquecemos datas importantes, com“Que haja os trágicos”, disse Baco, e houve os trá- promissos marcados com antecedência, pequenos
gicos.
pertences (vide o tio da minha mãe — saiu de carro
“Que haja os cômicos”, disse Baco, e houve os cô- e esqueceu a documentação). Até as coisas que já
fi zemos, como escovar os dentes (quando estamos
micos.
trancando a porta, vem a bendita pergunta: “EscoLindos, fortes e morenos, pois dadivoso era o dedo vei os dentes?”). Aí voltamos, escovamos de novo e
temos um prejuízo mensal de dez reais, já que dentes
do Mestre.
são 25% da sua boca (1).
E disse Baco: “Haja os festivais”, e assim se fez. E
disse Baco: “Que cante o coro”, e cantaram, mais Para Aristóteles, o ato de esquecer está intimamente
de mil. E Baco os abençoou e disse: “Ide, represen- ligado aos movimentos do sangue (2). Nos homens,
tai toda a gente, pois dadivosa é a vontade do vosso esquecer é como se fosse uma partícula da corrente sangüínea. Nossa arte é estimada, as mulheres
Mestre e não faltará vinho para os músicos”.
cantam-na: “Ah! a doce agonia de esquecer / A
Disse Baco: “Façamos o ator à minha imagem”, e lembrar doidamente o que esquecemos…!” (3); os
criou o ator à sua imagem, e o ator estava nu e sem homens enaltecem-na: “Ser consciente é talvez um
culpa, e Baco viu que era um bufão. E disse Baco: esquecimento.” (4)
“Eis que lhe dou o talento e todas as virtudes do ato
de representar. Habitarás os bastidores, camarins e A professora, um dia desses, deu um trabalho pacoquetéis para a classe, terminando a noite no ‘bai- ra a turma. As mulheres esqueceram de fazê-lo?
xo’, bebendo e fumando, até o garçom te expulsar. Pergunte à Aline, à Ana Carolina, à Manoela, à
Jaqueline, à Mariana, à Chiquinha. Já os homens!
No dia seguinte começará tudo de novo”.
Alguns não fi zeram nenhum trabalho. Eu? Esqueci!
Disse o ator: “Merda”. E do seu Senhor recebeu más- Era para entregar quarta, esqueci. Pensei comigo
cara, texto e sapatos de salto alto. E Baco vestiu o “mando na sexta por e-mail”. Lembrei no domingo,
ator com uma túnica — e era noite de estréia.
pensei em fazê-lo na segunda, fi-lo (5) na terça.
Afi
nal, é de esperar que, em algum momento, nós
Ora, o ator, feito à imagem e semelhança de Banos
lembremos. (6)
co, percorreu por todos os caminhos da comédia e
da tragédia, e o povo riu e chorou, e a catarse foi
completa.
Notas:
1 . Listerine
Disse Baco: “Que a audiência aplauda”, e o públi- 2 . O que atribuímos hoje ao cérebro,
co aplaudiu.
Aristóteles atribuía ao coração
3 . Florbela Espanca
“De pé”, pediu o ator, e assim fez Baco.
4 . Fernando Pessoa
E Baco viu que se esquecera de alguém. Disse, en5 . Parte de uma declaração bastante famosa,
tão, Baco: “Crie-se o crítico”, e fez-se o crítico. E
mas eu esqueci quem a fez
o crítico criticou. E, na estréia seguinte, o diretor
6 . Jânio Quadros é o autor da famosa frase.
barrou o crítico.
Realmente lembrei minutos depois de ter escrito.
E, como não podia deixar de acontecer, a festa de
Felipe Gomes
estréia virou um bacanal. E Baco, feliz, pois viu
que sua criação era boa, baqueou até não agüentar
mais.
E foi assim, e assim tem sido por todos os séculos
e séculos.
Cai o pano.
Leo Carnevale
¬ 10 ∆
O terceiro ato.
Eu estava deitado no chão e... tentei levantar. Daí
um gatinho me viu e subiu no meu chinelo. Aquele
era muito querido como inocente malicioso. Era de
uma mulher da qual eu gostava; sua propriedade,
como um livro.
Havia uma gente que se parecia com os microorganismos patogênicos do documentário no local. Eles
sorriam sem ninguém ver, quando, ao mesmo tempo,
o vento da chuva vinha ao meu encontro. Eram, na
verdade, esboços de um não-encontro. Fui caminhar
para esquecer tudo aquilo. E eu continuava a andar
no limiar daquela rua.
Vento, pedras, etéreos... Formigas felizes com seu
trabalho não me notaram. E continuo indo para
meu refúgio. Não passou nenhum carro nem carruagem de parentes seus. Que bom...
Pedaço de ser humano, já estou em casa. Um...
gotinhas de chuva me fazem dormir. Amanhã vou
fazer coisas que não faço todos os dias. Como um
escravo alforriado, pedirei emprego, tomarei banho, estudarei, terei dias de inspiração. Mas ainda
estou com sono... Será que estou dormindo? Deve
ser algum tipo de fadiga... Olhe, digo a mim, é
aquele gatinho novamente. Ele está correndo de um
palhaço de sapatinhos vermelhinhos. Venha aqui,
queridinho, disse ao gatinho. O dia, pequenino,
está tão chatinho...
Paulo Vitor Grossi
DESAFIO POÉTICO
Nesta edição, desafiamos
nossos incansáveis leitores a
escreverem um poema sem
a letra A. Muitos reclamaram
da dificuldade; outros, mais
fanáticos, nem conseguiram
enviar o e-mail para o
jornal, porque resolveram
excluir completamente o A
de suas vidas. Mas alguns
responderam e o resultado
Em versos curtos
Eu digo o que sinto...
Tenho sentimento de vidro
Um muro de Berlim dentro de mim...
Noite de frio
Tempo de outono, inverno...
Brilho do fogo
No silêncio sublime...
Medo do escuro
Vento frio...
Onde sonhei, chorei
Me decepcionei...
Escuto vozes e gritos
Segredo oculto
Mistérios ocultos
Medos ocultos
Desejos ocultos
No fim o silêncio de tudo!
Signo
No oco
dos versos,
entre verbos
e nomes
se esconde,
esquivo
o signo interdito.
Do silêncio imposto
despiu-se,
e insinuou-se,
e gritou-se,
nos interstícios.
Fez-se.
Interdisse-se:
o signo,
o primeiro,
o proibido.
Sem poder dizer
está aí, sem a incontornável
Sexo utópico
vogal. Para a próxima edição,
desejo litúrgico
nos beijos tímidos
em seus olhos límpidos
nos sorrisos íntimos.
o silêncio tórrido
nos verbos implícitos,
meus dedos líricos
no músculo túrgido:
encontro cósmico,
gozo místico.
propomos como Desafio um
poema reciclado ou baseado
em outro poema famoso.
Esperamos que nossos
louváveis leitores não se
Barbara Hansen
incomodem com essa pedra
no meio do caminho.
Irreconhecível
Envie seu Desafio Poético para
Perco-me de mim
ofusco-me
desvio-me do reflexo
ergo um muro
entre mim e o espelho
[email protected]
Priscila Mendes
Henrique Fagundes Carvalho
persiste o brilho
imóvel
de um rosto
silencioso
vestígios de sonhos
inocentes
se escondem nos olhos
do outro eu
que me vê
Solange Firmino
Começo de sem
Sem dizer, um roubo
Roubo sem morte
Morte sem óbito
Óbito sem enterro
Enterro sem defunto
Defunto sem corpo
Corpo de quem?
Corpo de gente
Gente que mente
Mente, ou cérebro
Cérebro sem corpo
Corpo sem membro
Membro sem sexo
Sexo sem gemido
Gemido sem mulher
Mulher sem medo
Medo sem motivo
Motivo de quê?
Motivo de viver
Viver e só morrer...
Carlos Junio
USÊNCI
Foi sem se despedir,
sem bilhete triste
ou último beijo.
Pedro Rabello
Veja outros poemas para esse
Desafio em nosso site:
www.jornalplasticobolha.com.br
¬ 11 ∆
ORÁCULO
por MIRIAM SUTTER
Em tempos de eleição
Corre o ano de 64 a. C. Três candidatos disputam
o consulado: Cícero, orador e político renomado; Caio Antônio, um mero nome para compor
a “chapa”; e Lúcio Catilina, um aristocrata inescrupuloso, famoso por suas falcatruas. O cenário
político, agitado por descontentamentos internos
e sublevações por toda a Itália, descortinava um
futuro nada promissor. A abolição da constituição de Sila era o desejo dos insatisfeitos com a situação sócio-econômica e política, o que poderia
significar a derrubada do sistema republicano. As
leis promulgadas por Sila haviam atingido muitos e poderosos magistrados, que, destituídos de
seus cargos, demandavam novas magistraturas e
pronunciavam-se publicamente contra a injustiça sofrida sob o regime da tirania, ameaçando a
derrubada da constituição. Também os tribunos
da plebe propunham leis no mesmo sentido, visando instaurar uma comissão de decênviros com
plenos poderes em todo o vasto império territorial
romano. Muitos cidadãos importantes eram a favor dessas leis, inclusive o candidato Caio Antônio, que almejava ser um dos decênviros. Catilina
uniu seus esforços aos dos patrícios endividados
e aos de outros insatisfeitos, a fim de garantir para si o cargo de cônsul. A aristocracia senatorial
pressentiu o perigo, e Cícero conseguiu controlar
os votos dos conservadores e notáveis romanos,
derrotando Catilina.
Bom demagogo, Catilina não desistiu. Empenhouse em arregimentar por meio de propostas revolucionárias uma significativa clientela, que lhe
garantiria, no mínimo, sua segurança pessoal durante os Comitia a serem realizados em 62 a. C.
Cícero dedicou-lhe, então, uma perseguição sem
tréguas. Acusado e acuado publicamente, Catilina abandonou Roma em 62 a. C. para aliar-se a
outras forças anti-governamentais, fomentando
abertamente uma rebelião contra o Senado. Cícero reagiu prontamente, a rebelião foi esmagada
e os cúmplices de Catilina em Roma foram executados. Cícero não deixou de valorizar sua ação
em prol da res publica, conferindo à de Catilina
uma importância e alcance talvez excessivos, em
suas célebres Catilinárias. O que aconteceu com
Catilina? Morreu junto aos poucos adeptos que
permaneceram do seu lado, na batalha travada
em Pistóia, Etrúria, contra a força republicana,
liderada por Caio Antônio.
Esse resumo de um episódio da história romana
serve para mostrar que eleições em Roma podiam
¬ 12 ∆
ser bem violentas e implicavam jogos de interesse da plebe. O poder dessa assembléia cresceu à proe poder voltados muitas vezes mais para o âm- porção que aumentou o poder dos seus tribunos,
bito pessoal que para o público e coletivo, pro- chegando a votar a maior parte das leis.
priamente ditos.
Os Comitia — sistema mais exclusivo que inclusiEm Roma as eleições eram anuais. Os cidadãos vo, já que as centúrias dos menos favorecidos jaromanos elegiam os magistrados, que constituí- mais votavam — permitiam arranjos e conchavos,
am o poder executivo de todo o sistema governa- inclusive o suborno, que favoreciam os interesses
mental. A magistratura romana compunha-se de das classes mais abastadas de Roma. Acresça-se a
quatro instâncias funcionais, a saber: os questores isso a expansão territorial que resultava em mais
(quaestor — oficial do tesouro), os edis (aedilis — mão-de-obra escrava e no desemprego cada vez
superintendente administrativo geral), os pretores maior dos cidadãos, aos quais o Estado garantia
(praetor — “ministro” da justiça) e, no topo da a distribuição gratuita do grão (trigo). Para essa
carreira política, os dois cônsules (consul — po- massa de empobrecidos pouco lhe importava o
der executivo central). Qualquer candidato tinha programa do candidato, mas sim a promessa de
de cumprir sucessivamente as etapas, acima men- uma distribuição mais farta de grão — ou então,
a oferta de melhores entretenimentos no teatro
cionadas, do chamado cursus honorum.
ou no circo. Ainda ecoam essa triste situação as
Os magistrados cumpriam o mandato por apenas palavras de Juvenal, escritor do início do século
um ano, e havia uma idade mínima a ser obser- II d. C.:
vada, que ia de 31 anos, para o cargo de questor,
a 43, para o de cônsul. Ao ser eleito questor, por Jam pridem, ex quo suffragia nuli
exemplo, um cidadão automaticamente tornava- vendimus, effudit curas; nam, qui dabat olim
se um membro vitalício do senado e, por conse- imperium, fasces, legiones, omnia, nunc se
guinte, o povo elegia não só magistrados com um continet, atque duas tantum res anxius optat,
ano de mandato, mas também os membros do Panem et circenses. (…)
Senado, instância de poder que de fato orientava
[JUV. Sat. X, 77-81]
e controlava os magistrados.
Há muito, desde quando não vendemos mais os
Esse sistema, no entanto, não era tão democrá- votos (2), diminuíram os cuidados; pois aquele
tico como pode parecer, pois o voto era restrito que outrora oferecia a magistratura, o poder
aos cidadãos romanos, assim classificados por consular, as legiões, tudo enfim, agora sofreia-se
meio do censo, segundo critérios de nascimento, e, ansioso, apenas escolhe [ofertar] duas coisas:
mas também e principalmente de posses. Tripar- pão e espetáculos circenses.
tido em cúrias, centúrias e tribos, o corpo cívico
exercia o poder do voto em assembléias eleitorais, O que lamenta Juvenal? A antiga venalidade rerespectivamente denominadas de Comitia curiata, publicana? Ou a perda da liberdade sob o regime
imperialista, conseqüência da primeira? Eis uma
centuriata e tributa.
voz que merece ser pensada antes de depositar o
As primeiras, Comitia Curiata, de ordem políti- voto na urna.
co-religiosa, eram compostas principalmente por
patrícios e conferiam o imperium aos magistrados eleitos pelas centúrias; as segundas, Comitia
NOTAS:
centuriata, formadas com base nos quadros censitários instituídos por Sérvio Túlio (1), elegiam os (1) Sérvio Túlio, rei de Roma, séc.VI a. C.
magistrados superiores, votavam leis, declarações (2) A Constituição de Sila, ditador em 82 a 79
de guerra e julgavam recursos contra magistra- a. C., proibiu essa prática venal, de hábito até
dos; por fim, os Comitia tributa, que se compu- então.
nha basicamente pela população rural (assim denominadas, segundo a antiga divisão serviana do
povo romano em tribos) e que deram origem às
primeiras assembléias populares (Comitia plebis),
elegiam, por meio de plebiscitos, os tribunos e edis
QUARTO DE DESPEJO
UM LUGAR DE
ESQUECIMENTO:
MORRO DA FAVELA
“A poesia existe nos fatos. Os casebres de
açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob
o azul cabralino, são fatos estéticos”.
Oswald de Andrade,
Manifesto da Poesia Pau-Brasil, 1924.
Numa dessas aulas da faculdade de História que
relatavam o período da República Velha no Rio de
Janeiro, me deparei com o conceito “Lugares de
Memória”, originalmente pensado pelo historiador francês Pierre Nora. A proposta de reflexão na
aula era encontrar, nos dias atuais, monumentos,
lugares e lembranças que remetessem ao período
republicano, a partir de 1889. Na classe surgiram
muitas sugestões, como o desmonte do morro do
Castelo, a Avenida Central (hoje Rio Branco), a
Rua do Ouvidor, a marchinha “Ó Abre-Alas”, de
Chiquinha Gonzaga, a Lapa, as obras de Lima
Barreto e Olavo Bilac, a Tia Ciata, o samba, o
futebol, entre muitas outras opções. Todas essas
memórias citadas, se não são queridas pela população carioca, são lugares de memórias oficiais
do período da primeira República brasileira. Com
todas essas boas lembranças, me ocorreu refletir
um lugar, que teve origem nessa época e é muito
recorrente em meu cotidiano. São as favelas da
cidade do Rio de Janeiro.
Posso afirmar que uma lembrança sepulcral do
período republicano, no despertar do século XX,
foi o início do processo de favelização da cidade
do Rio de Janeiro? A resposta seria positiva se
procurássemos, em toda a cidade, as marcas que
nos deixaram os republicanos daquela época. Os
que saltarão aos nossos olhos serão as pequenas
e amontoadas casas de tijolo e teto de zinco no
alto dos morros da Cidade do Rio de Janeiro. As
avenidas Rio Branco e Beira-mar são construções
desse período e estão inseridas no projeto de lembranças da República Velha, porém essas imagens
não são tão freqüentes como as das favelas cariocas, que seguem a dinâmica geográfica de uma
cidade montanhosa como o Rio de Janeiro. Até
mesmo um passeio pelas principais rotas, em que
a Cidade é vendida para visitantes estrangeiros,
é observada a “incomoda” presença das pobres
comunidades. A onipresença das favelas cariocas
é a marca mais concreta do Brasil-República.
por ROGER ALMEIDA
da cidade. “Pode-se dizer que as favelas tornaramse uma marca da capital federal [no período da
República Velha], em decorrência (não intencional) das tentativas dos republicanos radicais e dos
teóricos do embranquecimento — incluindo-se aí
os membros de várias oligarquias regionais para
torná-la uma cidade européia”, como afirmam Alba Zaular e Marcos Alvito na introdução do livro
Um século de Favela. O prefeito Candido Barata
Ribeiro, em 26 de janeiro de 1893, botou abaixo
o cortiço Cabeça de Porco, que era considerado
o maior da cidade. Francisco Pereira Passos, em
março de 1904, com a demolição de 641 casas,
desalojou quase 3.900 pessoas. Esses projetos de
reforma urbana, especialmente segregacionista,
deram início a um processo de ocupação e povoamento dos morros da cidade. A primeira favela
do Brasil surgiu em 1897, no centro da cidade do
Rio de Janeiro, para abrigar homens, mulheres e
crianças que não faziam parte do projeto progressista dos homens da República.
As reformas urbanas na capital federal marcaram a gestão do prefeito Pereira Passos entre os
anos de 1902 e 1906. A construção da Avenida
Central foi um dos eventos que marcaram o período republicano. Nesses anos, em que a cidade
se transformou num canteiro de obras, foram
erguidas dezenas de monumentos que permaneceriam na memória dos habitantes da cidade
como uma construção dos homens do Brasil
republicano. Contudo, junto da edificação do
boulevard que ligava a região portuária à zona
sul carioca, surgiam os casebres de açafrão e ocre.
O Rio de Janeiro estava sendo construído como
uma nova cidade, moderna, europeizada, capaz
de ser o cartão-postal da recém-criada República.
Contrariando esse ideal, as favelas passaram a
ser vistas como outras cidades, corpos estranhos
dentro da urbe formal.
Esses corpos estranhos não poderiam estar inseridos no projeto republicano que estava sendo
construído na cidade do Rio de Janeiro. O Morro
da Favela, considerado a primeira favela do Brasil,
a partir do ano de 1897 abrigou remanescentes dos
cortiços do centro do Rio, ex-escravos do Vale do
Paraíba e os soldados desamparados da Guerra de
Canudos e todos aqueles que jamais seriam retratados na poesia de Olavo Bilac. A favela erigia-se
como monumento na região da Central do Brasil
em frente à praça da Aclamação (hoje Praça da
República), lugar onde os célebres militares marcharam para proclamar a República brasileira em
A imponência de favelas como a Rocinha, o Can- novembro de 1889. Hoje, conhecemos o antigo
tagalo e o Vidigal transpõe os cartões-postais da Morro da Favela como Favela da Providência, que
Zona Sul carioca e, há pouco mais de um século, ainda pode ser vista atrás da Central do Brasil,
são entraves aos projetos urbanísticos excludente entre os bairros do Santo Cristo e da Gamboa.
O Morro da Favela é a representação do que deveria ser esquecido pelos republicanos da época. Nas
lembranças da República Velha estão catalogadas,
não oficialmente, as favelas do Rio de Janeiro e
do Brasil porque foi a partir desse momento que
se iniciaram as desastrosas políticas urbanísticas
para as cidades. Se hoje nós olharmos, no centro
da cidade, o Morro da Providência, lembraremos
o prefeito Pereira Passos, o presidente Rodrigues
Alves, a República Velha, pois ali se construiu
o avesso de um lugar de memória, um lugar de
esquecimento.
CLIQUE AQUI
http://orwelldiaries.wordpress.com
O site tem o intuito de republicar os diários
pessoais e políticos de George Orwell — de 9
de agosto de 1938 até outubro de 1942 — em
tempo real, exatamente 70 anos depois que o
autor os escreveu. Até os erros de ortografia
foram mantidos; a única novidade é o formato dos diários, como se fossem, originalmente,
um blog do escritor.
http://www.moviemobz.com/mobz
O site MovieMobz promove sessões de cinema para grupos interessados em assistir a
filmes que já saíram de cartaz; além disso, os
cinéfilos podem discutir e comentar os filmes
novos e antigos. Os ingressos para as sessões
custam a partir de seis reais, dependendo do
número de interessados, em salas de cinema
ao longo de várias cidades do Brasil, como
Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Belo
Horizonte e Salvador.
http://adioslounge.blogspot.com
O blog mais recente de Clarah Averbuck conta os detalhes da vida pessoal da autora de
Máquina de Pinball, livro que deu origem ao
filme Nome Próprio. O filme e o livro contam
a história de Camila, um alter-ego da autora,
que escreve e reescreve sua própria vida entre
uma clicada e outra. No blog, o leitor pode
tentar delinear os limites entre ficção e realidade, já que, como diz Clarah, “tudo tinha
mudado, menos o que tinha ficado igual”.
¬ 13 ∆
Faxina Geral
Quando Manuel chegou em casa naquela tarde viu que a empregada havia
feito uma grande faxina em seu quarto. Lúcia, a empregada, trabalhava
na casa de Manuel havia alguns anos, e era excelente empregada. Passava
sempre pelo seu quarto na sua ausência, alinhando e empilhando a bagunça, tirando a poeira, passando um pano no chão.
Contudo, em determinados dias Manuel percebia que o seu quarto havia
recebido uma atenção mais do que especial, e este era um dia como aqueles.
Nessas ocasiões, as mudanças iam além do simples alinhamento de papéis
e arrumar de cama, as coisas realmente mudavam de lugar, coisas novas
sumiam enquanto coisas há muito dadas como desaparecidas reapareciam
— e a limpeza, é claro, era completa.
Mas naquele dia Lúcia tinha exagerado. As paredes estavam incrivelmente mais brancas do que de costume. Sim, as paredes do quarto de Manuel
sempre foram brancas, mas naquele dia elas estavam muitíssimo mais brancas do que o normal, com um brilho todo especial. Caminhando pelo local,
Manuel pôde perceber que a rearrumação dos móveis lhe proporcionara
uma compreensão inteiramente nova da arquitetura do local. Ganhou-se
espaço!
Indo até a estante, ele pôde perceber que certamente Lúcia deveria ter se
confundido um pouco no tirar e colocar dos livros na estante, pois os livros de cinema estavam no local errado e ele não conseguia encontrar seus
livros favoritos. E para que Lúcia havia subido com a caixa de areia do
gato para o quarto?
Sem platéia
eu sei que quando faz noite e tudo em volta se transforma em breu
e silêncio, todos dormindo, essa única janela acesa no prédio, talvez
no bairro, ou mesmo na cidade, eu sei que por trás das paredes
do quarto, por mais que isso soe incompatível, já que por trás das
paredes só há a paisagem, o ar, de modo que por trás das paredes
estaria o mundo inteiro, vago desse jeito, mas então devo dizer entre
as paredes, como se existissem camadas, entende, como se fosse
possível compreender que as paredes não são feitas apenas de uma
fileira, mas de várias que se completam e dão a falsa impressão de
que a espessura é sólida, quando na verdade a espessura da parede
é formada por diversas camadas muito finas que são colocadas
junto-grudadas de modo que é impossível discernir uma da outra,
mas quando faz noite esse papo pouco importa, porque se com a
claridade não podemos conceber as tais camadas, no escuro muito
menos, posto que à noite tudo passa uma sensação de embaçado,
já reparou? as coisas perdem um pouco a nitidez, e você não é mais
que um borrão, essa letra do alfabeto escrita em caligrafia pré-escolar,
um ponto volumoso na cama que sabe: a noite dura demais e o dia
tão pouco, e o tempo é impalpável mas não por isso a gente deixa
de envelhecer, e isto está evidente até na pele, as pequenas dobras,
e eu sei, eu sei que quando escurece você escuta ruídos por trás das
paredes, bichos que falam.
Alice Sant’Anna
Tudo estava tão estranho, Manuel não conseguia encontrar suas coisas... A
faxina mudou o odor do local, ele não se sentia mais em casa ali. Para que
aquele exagero de faxina, para que tanta arrumação? Ah, e de que canto
longínquo da casa ela teria tirado aquele violão? (Manuel não tocava violão.)
Aquilo tudo precisava de uma explicação. Foi até a cozinha e viu Lúcia
na pia, lavando a louça. Assim que ele ia perguntar de onde tirara o violão, teve as palavras interrompidas na garganta com o choque que tomou
com o novo visual da empregada. Lúcia havia feito luzes, estava loira!
Não só loira, como mais gorda, alguns centímetros mais baixa e — meu
Deus, que creme de pele novo será esse? —branca! Em um espaço de tempo curtíssimo, Lúcia embranquecera; simplesmente da noite para o dia!
Ele não conseguiu falar nada. Ela também não, parecia assustada. Olhando
ao redor, Manuel percebeu que tudo estava mudado, aquela cozinha havia sido reformada! Mas aquilo tudo somente começou a deixar Manuel
realmente angustiado quando seu gato rajado passou preto. Saiu correndo
pela porta e pôde ver que a maçaneta fora mudada, e até mesmo as flores
do jardim eram outras.
Paradoxo reloaded
entre nós se instalou um paradoxo, até a metade percorremos só uma
parte de onde residia nossa metade. incompleto, o caminho inteiro,
desde a partida, tornou-se cálculo para lugar algum: uma pedra se
interpôs no ponto de partida. ante interrogações mal-formuladas
os ponteiros se encontraram, em dúvida, entre o relógio e a bússola que me levariam até o lugar marcado. e o teu despertador, que
não é rádio nem relógio, falou baixinho: este atraso não te levará
a lugar algum.
Luiz Coelho
Lucas Viriato
À venda na Livraria Leonardo Da Vinci (Av. Rio Branco 185, Centro) ou no e-mail
Retorno ao Oriente
108 fragmentos de viagem
Novo livro de Lucas Viriato de Medeiros
Em breve.
¬ 14 ∆
Banca da PUC
Tel.: 2512-7109
foto: Roberto Setton
EnTREVISTA
por ANDRÉA CARVALHO STARK
Vivendo de Literatura
FERNANDO BONASSI é escritor por vocação,
paixão e profissão. Escreve roteiros, peças, crônicas,
contos e romances. Escrever é a única coisa que faz
na vida para alimentar o corpo, a alma e a filhinha
de quatro anos. Esse paulista do bairro da Mooca é
filho de operários, estudou em escola pública, não tem
fortuna a herdar e se transformou em um dos nomes
mais interessantes da atual literatura brasileira. Nesse
encontro, conversamos sobre literatura, teatro, cinema,
amor e outros mundos desordenados.
Você vive só do que escreve?
Sim. Talvez eu faça parte da primeira geração no Brasil
que consegue isso. E acho que a literatura brasileira é
pouco ousada e covarde porque os escritores têm relações promíscuas com o Estado, a maior parte deles.
Acho que a falta de ousadia passa também por isso.
Mas também eu reconheço que faço parte de uma
geração de escritores brasileiros que, pela primeira,
vez têm à sua disposição uma indústria cultural. E,
quando eu digo isso, não digo que vivo de livro, mas
sim do meu texto de ficção.
É possível então viver de literatura?
Sim! Existe trabalho. Escrever é algo muito sofisticado.
Você tem uma ligação com o teatro mais visceral do que com o cinema.
Claro, cinema é pra ganhar dinheiro.
Por que, então, você foi fazer faculdade
de cinema? O que você buscava nesse
tipo de formação?
Eu havia assistido a “Hiroshima mon amour”, de Alain
Resnais, roteiro da Marguerite Duras. Aquilo seria impossível de fazer em livro; outra linguagem mesmo. Fui
fazer Cinema querendo provocar esse tipo de incômodo
nas pessoas. Mas, durante a graduação, vi que era uma
roubada, porque não há financiamento pra uma coisa
tão cara. E eu queria fazer algo no qual eu fosse absolutamente senhor de mim, como sou escrevendo livro.
A literatura é exercício de homens e mulheres livres.
Não tem patrão — você faz o que quer e com o que
ou quem se quer... E, especialmente no Brasil, cinema
é muito concentrado; são poucas pessoas que fazem,
pessoas de tendência conservadora. É um cinema babaca, sem nenhuma ousadia. Se você pegar o cinema
argentino ou mexicano, que são países próximos, eles
estão fazendo coisas melhores. O cinema brasileiro é
careta. Eu fiz doze filmes, tenho um currículo bacana,
mas eu não respondo por nenhum deles — exceto “Os
Matadores”, que foi meu primeiro roteiro.
Você chegou a estudar teatro?
Nunca formalmente. Quando comecei a me interessar
por ler, teve um momento em que quis me formar.
Comecei a assistir às provas do final de curso de Artes
Cênicas da USP. No final do curso, eles montam um
texto de forma careta. Ia ver isso pra conhecer os textos
porque tinha preguiça de ler teatro. Achei muito inte-
ressante porque acontecia uma coisa ali que não tinha a
ver com literatura, a coisa física do ator e a troca com o
espectador. Porque é muito solitário escrever literatura.
Fui a um sebo e comprei uns dez livros de uma coleção
chamada Teatro Vivo. E vi como se organizava o texto
na página, como a idéia se distribuía. Foi assim que
comecei a escrever teatro.
Quando você dirige um texto seu,
há um certo estranhamento?
Não acredito na função do diretor. Acho que diretor
não é necessário, não é importante. A necessidade de
um diretor provocou a existência de atores cada vez
mais medíocres que se sujeitam a fazer as piores coisas
porque não têm confiança em si.
Então você pega seu texto e trabalha como?
Eu sento com algumas pessoas inteligentes e digo:
“Como vamos fazer isso, meu caro? Eu escrevi pensando assim”.
Então no teatro você negocia bem
com todas as colaborações.
Eu escrevo sob encomenda. Estou acostumado a escrever um conto para a Folha, com prazos, tamanhos,
verbas. Esse tipo de relação é de negociação. Sou eu
contratado para escrever roteiros de cinema que eu
não quero escrever, sou pago para desenvolver idéias
de outros. A única coisa que não sei fazer é o que o
ator faz. Não quero, tenho vergonha, não entendo
como alguém fica lá repetindo uma mesma coisa a
noite inteira. (risos)
Que ele não escreveu?!
É, que ele não escreveu, por mais bonito que seja.
Isso quando não é ruim, mas tem que fazer porque é
trabalho. Isso não me interessa fazer. Então tudo que
o ator me aporta é sempre uma surpresa. Isso que você chama de negociar é porque eu não faço o que ele
faz. No teatro, com aluguel e contas pagas, podemos
brincar de imaginar do mesmo jeito como você brinca
com sua filha, e eu, com a minha. É a mesma coisa; só
há uma chave um pouco diferente.
Há algum escritor especial em sua formação?
Eu acho que sou formado moralmente por Henry
Miller. Ele dizia que para escrever você tem que se conhecer primeiro. Se você é um covarde, escreva sobre
sua covardia. Não precisa ser corajoso como Hemingway, fazer uma aventura na vida para escrever e no
fim dar um tiro na cabeça. Viva sua vida, se conheça,
viva a plenitude de sua vida criativa e sexual, foda
muito — isso ele falava de forma muito clara. Se tiver
medo de foder, escreva sobre isso, porque também
é importante. Camus, por exemplo, tudo que sei de
política aprendi com ele.
Você tem um livro chamado “O amor é uma
dor feliz”. Por que essa dor é feliz?
Porque dói, ficar grande dói, pergunte pro seu filho.
Vai chegar um dia em que ele não vai querer mais te
ajudar, vai querer te matar e isso será uma dor para
ele e para você, porque não é fácil. O amor é a única
coisa que está na mão da gente. É a única coisa na
nossa vida moderna que as pessoas têm obrigação de
fazer do jeito delas. Amor não estando à sujeição do
trabalho, do tempo, do espaço. As pessoas não amam,
não têm relações amorosas porque não querem ou são
covardes. Acho importante o amor bom... Minha casa
era horrível. Minha mãe fazia um almoço de domingo
e dizia: “É gnocchi”. Meu pai dizia: “É gnocchi”. Meu
irmão: “É gnocchi”. Eu: “É gnocchi”. E comíamos o
gnocchi em silêncio, um tédio horrível. Eles se separaram e cada um é feliz hoje. Minha família precisou ser
extinta para funcionar. Como extintos, somos muito
felizes — não nos vemos, não nos falamos...
Você lançou um livro chamado “As melhores
vibrações” — uma coletânea de suas crônicas
sobre sexo, publicadas na coluna “Macho” da
Folha de São Paulo. Em uma dessas crônicas,
você diz: “Não matarás antigos sentimentos
de amor. Afinal o mundo dá voltas e examantes sempre podem acabar batendo na
sua porta outra vez”. Isso é um machismo
declarado ou é realidade mesmo?
Eu escrevi isso?!
Sim, é um dos itens do decálogo do macho.
Eu nunca escrevi para homem... Leia de novo.
“Não matarás antigos sentimentos de amor...”
Você não pensa isso pra você de certa forma?
Sim... (hesitante) Mas você aqui não estava
escrevendo para um homem?
Não, é o contrário. Quando me chamaram para escrever, eu disse que gostava muito de mulher para falar
mal de mulher.
Mas era pra falar mal?
Não, mas qual é o comportamento do chauvinista? A
coluna era muito chauvinista. Quando me chamaram,
eu disse que ia fazer uma coluna do ponto de vista
de um cara heterossexual que gosta de transar. Para
mim, homens e mulheres são iguais, devem responder
por tudo igualmente. Gosto de foder. Não ia destruir
o objeto do meu amor. Isso certamente é um decálogo
do macho, mas do macho moderno.
Ok, você se saiu bem!
Pra que leio tanto livro na vida?! Para alguma coisa
tem que servir.... (risos)
Andréa Carvalho Stark é formada em Letras e tem mestrado em Teatro. É colunista da revista americana Scene4
— International Magazine of arts & media (www.scene4.
com) e viajante em seu blog A Grinalda (http://agrinalda.
blogspot.com).
¬ 15 ∆
O ROSTO
Como a todos os homens, o tempo me
empresta um rosto. No entanto, dele só
conheço a metade. A outra, são distâncias
e estrelas. A parte conhecida vigia as horas
dissipadas de cada dia. A outra, esconde os
jardins de um império persa, onde, outrora,
o filho de um rei se perdeu.
Durante o sono, as duas metades se juntam.
Então, a casa gira devagar, os lençóis
flutuam como águas calmas e cada objeto
ocupa sem protesto o seu lugar. O sol se
revela, o rosto mais uma vez se separa,
e, com o lado familiar, preparo o café,
enquanto o outro oferece os sonhos da
noite à fome insaciável do esquecimento.
No espelho, me maquio de maneira a
ninguém perceber a metade oculta. Porém,
certa vez, um menino olhou para mim e
riu. Ri também. Quem sabe se não era o
filho do rei. Não sei. Deixei aquele menino
seguir com o meu segredo, tão sem
importância quanto os pequenos peixes
que acompanham a dança da lua
e das marés. O sonho da razão
Não digas nada sobre a ausência enquanto
não se ausentar este dizer inquieto:
dizer a coisa afasta seu encanto
e não dizê-la não a traz mais perto.
Mas ausente das coisas te quiseste
bem antes de nascer, depois de morto
quando o ausente dizer trouxe-lhe a peste
do pensamento ósseo de teu corpo.
Muros fendidos não são muros, são
sombra de casas onde não abrigas
a palavra que falta, o vão perigo
Operando a manhã
Um saco pleno de gemas,
Algo assim como um câncer luminoso,
E um bisturi afia a ponta da sua lâmina sobre a fina pele.
Repente
Amarelo!
Não é preciso nenhum galo
Para anunciar o amanhecer.
da palavra ocultada: proteção
que sob o sol da ausência não te exponha
nesta ruína onde o verbo sonha.
Lucas Matos
Rogerio Luz
Paloma Espínola
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Você não foi o único
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¬ 16 ∆
¬ 17 ∆
a
a
plástico
bolha
plástico bolha
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