SUBÚRBIOS E IDENTIDADES

Transcrição

SUBÚRBIOS E IDENTIDADES
2
TEMA
SUBÚRBIOS E
IDENTIDADES
Um olhar multidisciplinar sobre a história e a cultura do subúrbio
e sua representação na construção do imaginário social brasileiro.
Uma reflexão com base na minissérie Suburbia
Conselho Editorial
Sobre o Globo Universidade
Alice-Maria Reiniger – Globo
Esta publicação é uma iniciativa do Globo
Universidade, área da Globo dedicada ao
relacionamento com o meio acadêmico.
Beatriz Azeredo – UFRJ/Globo
Galeno Amorim – Biblioteca Nacional
Helena Nader – SBPC
Heloisa Buarque de Hollanda – UFRJ
Lucia Araújo – Fundação Roberto Marinho
Luiz Eduardo Soares – Uerj
Maria Adelaide Amaral – Globo
Maria Immacolata Vassallo de Lopes – USP/Obitel
Marialva Barbosa – UFRJ/Intercom
Sérgio Besserman – PUC-RIO
Viviane Mosé – Usina Pensamento/Rádio CBN
Realização
Globo - Comunicação
Sérgio Valente, diretor
Diretoria de Responsabilidade Social
Beatriz Azeredo, diretora; Viridiana Bertolini, gerente;
Viviane Tanner, supervisora
Equipe
Alvaro Marques, Fatima Gonçalves, Gisele Gomes,
Julia Fernandes, Luisa Café, Mariana Israel
e Renata Minami
Diretoria de Produção Editorial
Andrea Doti, diretora; Ariadne Guimarães, supervisora
Redação, pesquisa e edição final
Graziella Beting
Revisão
Ricardo Jensen de Oliveira
Projeto gráfico e editoração
Refinaria Design
Fotografia (seminários)
Renato Velasco e Studio S3X
Pesquisa iconográfica
Thaisi Lima
Capa e desenhos
Pedro Franz
Criado em 1999, o Globo Universidade tem
como missão compartilhar experiências para
somar conhecimento. Para isso, estabelece
parcerias com universidades do Brasil e do
exterior, promove debates e seminários, edita
publicações e dá apoio a pesquisas, contribuindo
para a produção e divulgação científica, além da
formação de futuros profissionais.
A proposta do Caderno Globo Universidade é
disseminar informação e ampliar o alcance dos
encontros presenciais da área, sistematizando
e difundindo o conhecimento gerado. Com
isso, os encontros ganham uma versão perene
para atingir mais leitores e transformar-se em
um documento de consulta em bibliotecas,
universidades e centros de pesquisa.
Disponível na web
http://bit.ly/YJubqS
Caderno Globo Universidade, v. 1, n. 2, mar. 2013 –
Rio de Janeiro, Globo, 2013
Trimestral. ISSN 2316-7432
Tema: Subúrbios e identidades
As opiniões expressas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Todo material incluído nesta
revista tem a autorização dos autores ou de seus representantes legais. Nenhuma parte dos artigos da revista pode ser
reproduzida sem a autorização prévia do Globo Universidade, dos autores ou seus representantes legais.
sumário
Nesta edição............................................................................................................................................................................................................................. 6
Artigos.............................................................................................................................................................................................................................................. 8
Antropologia Regina Celia Reyes Novaes, da USP
qUATRO JOVENS, QUATRO TRAJETÓRIAS.............................................................................................................................................. 10
Geografia Márcio Piñon de Oliveira, da UFF
SOLUÇÕES E ESPERANÇA NAS FRONTEIRAS DA CIDADE........................................................................................................ 18
História João Felipe Pereira Brito, da UFRJ
TRANSFORMAÇÕES E PERMANÊNCIAS SUBURBANAS: O CASO DO BAIRRO BANGU............................... 26
Teatro Marina Henriques Coutinho, da Unirio
O PALCO COMO ESPAÇO PARA A EXPRESSÃO DE UM NOVO DISCURSO............................................................... 34
Linguagem Luiz Eduardo Soares, da Uerj
SUBURBIA E A TRANSCRIAÇÃO DO SUBÚRBIO CARIOCA....................................................................................................... 40
Audiovisual Renato Luiz Pucci Jr., da Universidade Anhembi Morumbi
UMA NOVA EXPERIMENTAÇÃO NA TV BRASILEIRA.......................................................................................................................46
Roteiro Paulo Lins, escritor
CULTURA COMO ARMA DE RESISTÊNCIA................................................................................................................................................ 54
Museu Karen Worcman, do Museu da Pessoa
HISTÓRIA ORAL E A RIQUEZA DOS RELATOS...................................................................................................................................... 58
Pesquisa Maria Immacolata Vassallo de Lopes, da USP
TELEDRAMATURGIA COMO OBJETO DE ESTUDO...........................................................................................................................64
Debate........................................................................................................................................................................................................................................... 68
Entrevistas.................................................................................................................................................................................................................................. 76
Luiz Fernando Carvalho................................................................................................................................................................................. 78
Heloisa Buarque de Hollanda............................................................................................................................................................... 84
Depoimentos Museu da Pessoa..................................................................................................................................................................... 90
ERIKA JANUZA Da escola em Contagem para a Conceição ...................................................................................................................... 92
FABRÍCIO BOLIVEIRA O menino atrás de um “eu”......................................................................................................................................94
ROSA MARYA COLIN Estrada das Lágrimas, número 13 ........................................................................................................................ 96
HAROLDO COSTA Da época em que não havia negro no teatro .......................................................................................................... 98
DANI ORNELLAS Baixada Fluminense, da violência e da poesia .................................................................................................... 100
CRIDEMAR AQUINO A gente fazia teatro sem saber ................................................................................................................................. 102
ANA PÉROLA Gari de dia, dançarina à noite ................................................................................................................................................104
Making of .............................................................................................................................................................................................................................. 106
nesta edição
Uma história de amor e drama social que se passa
na Zona Norte do Rio de Janeiro em meados dos
anos 1990. O seriado Suburbia, idealizado pelo
diretor Luiz Fernando Carvalho e assinado por ele
em coautoria com o escritor Paulo Lins, envolve
aspectos econômicos, geográficos, históricos, sociológicos, filosóficos e literários do subúrbio.
Com o objetivo de ampliar o debate acadêmico e a reflexão multidisciplinar sobre esses
temas, o Globo Universidade realizou o seminário “Suburbia: O indivíduo na construção
do imaginário social”. Foram duas sessões, uma no Rio de Janeiro, mediada pela jornalista
Bianca Ramoneda, na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), no dia 6 de novembro
de 2012, e outra em São Paulo, mediada pelo professor Adilson Citelli, na Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), no dia 13 do mesmo
mês. A minissérie, exibida pela Globo em oito episódios, foi ao ar entre 1º de novembro
e 20 de dezembro de 2012.
Os debates reuniram professores de diversas universidades e áreas do conhecimento. Suas
apresentações estão reproduzidas neste segundo número do Caderno Globo Universidade,
que amplia a discussão sobre os temas abordados e as questões sugeridas pela minissérie.
Os seminários tiveram dois eixos principais: por um lado, as questões ligadas
ao subúrbio, sua história, seu legado cultural, econômico e social e o papel disso na
constituição das identidades – individuais, coletivas e a própria identidade das cidades;
por outro, a criação da série, sua linguagem dramatúrgica, que mistura ficção e realidade,
a representação dos negros e o espaço das periferias na produção cultural brasileira. Além
dos temas apresentados nos seminários, esta edição traz reflexões complementares e
entrevistas exclusivas.
Suburbia narra a trajetória de Conceição, uma menina pobre e analfabeta que deixa
o interior de Minas Gerais em busca de uma vida nova, longe dos fornos de carvão
onde passou a infância. Vai para o Rio de Janeiro e começa a trabalhar como empregada
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Globo/Divulgação
Nesta edição // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Crianças brincam em
quintal de casa no subúrbio
do Rio de Janeiro, em cena
da minissérie
doméstica, até ser acolhida por uma família da Zona Norte. Ali ela se apaixona, faz
amigos, vira estrela dos bailes funk e rainha de bateria de escola de samba.
A série é uma obra de ficção, porém apresentada com linguagem quase documental,
com o objetivo de criar um retrato do subúrbio mais próximo da realidade. Minas Gerais
e vários bairros suburbanos do Rio de Janeiro serviram de cenário para a história, cujas
cenas foram realizadas inteiramente em locações externas, evitando-se os estúdios e as
representações cenográficas.
Com o intuito de enfatizar ainda mais essa relação entre ficção e realidade, foi estabelecida
uma parceria com o Museu da Pessoa, que registrou depoimentos dos atores do elenco
de Suburbia. Profissionais e não profissionais, e em sua maioria negros, os atores foram
selecionados por terem histórias de vida parecidas com as dos personagens que encarnariam
na trama. Os depoimentos trazem esses relatos pessoais e foram gravados em vídeo e
transcritos pela equipe do Museu da Pessoa – um museu virtual e colaborativo que tem
como missão compartilhar histórias de vida e transformá-las em fonte de conhecimento.
Este caderno reproduz esses depoimentos (acesse os links dos vídeos no site do museu).
Além disso, o caderno traz também uma sessão de fotos de making of de Suburbia.
As cenas foram registradas por fotógrafos da agência do programa Imagens do Povo, do
Complexo da Maré, que acompanharam a gravação do seriado. Criado pelo Observatório
das Favelas, o programa é um centro de documentação, pesquisa, formação e inserção de
fotógrafos de comunidades populares no mercado de trabalho.
Boa leitura
7
Rua do subúrbio
em cena da minissérie
Globo/Divulgação
artigos
artigo
UMA NOVA JUVENTUDE PARA ALÉM DAS ESTATÍSTICAS
Iniciativas governamentais e não governamentais surgidas
nos anos 1990 ampliaram o campo de possibilidades para
jovens negros moradores das periferias brasileiras
O que significa ser jovem, negro e viver em uma periferia, subúrbio
ou favela nas diferentes cidades brasileiras hoje? Quais são as
dificuldades enfrentadas e as novas possibilidades que se abrem para
essa geração?
A antropóloga Regina Celia Reyes Novaes relata, no artigo a
seguir, a história de quatro jovens negros de Salvador. Baseada em
entrevistas feitas para a realização de um videodocumentário, a
professora traça o perfil dessa geração que, a despeito de preconceitos e desigualdades, chegou à universidade, luta pelo emprego
qualificado e tem acesso à tecnologia e a um tipo de formação que
seus pais não tiveram.
10
Regina Celia Reyes Novaes // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
ANTROPOLOGIA
QUATRO JOVENS,
QUATRO TRAJETÓRIAS
Regina Celia Reyes Novaes, da USP
Desde que me convidaram a participar desta discussão, fiquei pensando no que significa
hoje a palavra “subúrbio”. “Favela” e/ou “comunidade”? “Periferia” e/ou “subúrbio”? A
antropologia nos ensina a prestar atenção nas palavras. As palavras têm vida, vão mudando
de significados no decorrer do tempo e em diferentes espaços. Nas dinâmicas sociais os
significados de dicionário vão se transformando.
Houve um tempo em que se discutiu muito sobre o uso das palavras “favela” e
“comunidade”. Ouvindo moradores, concluí que essas palavras não deveriam ser vistas como
nomeações excludentes. As duas palavras vieram “de fora”. Foram usadas para estigmatizar
(favela) ou para minorar estigmas (“comunidade” foi introduzida pela Igreja Católica e,
posteriormente, por projetos governamentais). Mas elas foram sendo reapropriadas por
moradores dessas áreas, por diferentes pessoas e por diferentes gerações.
Em pesquisa no Rio de Janeiro, entrevistei jovens que diziam: “Eu falo ‘favela’ para certas
coisas, e ‘comunidade’ para outras”. Esses entrevistados deram vários exemplos do uso que
faziam dessas designações, de maneira bastante criativa, de acordo com diferentes interlocutores
e demandas que levavam a governantes, à mídia ou a mediadores de ONGs.
Ao mesmo tempo, projetos e iniciativas como Favela tem Memória, Museu da Pessoa ou
Central Única das Favelas (Cufa) foram nascendo e trazendo novos conteúdos, novas formas de
apropriação para a oposição favela-asfalto. Nesse contexto, de reafirmação de pertencimento,
“favela”, que era estigma, virou sinal positivo. Virou bandeira, emblema, servindo para
denunciar desigualdades e afirmar potencialidades. De estigma a emblema, a palavra “favela”
se faz presente nas letras de rap, em poemas e contos produzidos nesses espaços. O que não
quer dizer que a palavra “comunidade” tenha sido banida do vocabulário. Apenas quer dizer
que seu uso serve para ocultar ou recobrir totalmente o significado da designação “favela”.
Com efeito, para diferentes gerações modificam-se usos e percepções de palavras e
espaços. No livro da Alba Zaluar A máquina e a revolta,1 há algumas páginas em que ela conta
como chegou a Cidade de Deus, nos anos 1980. Recomendei a leitura a meus alunos que
estavam começando a estudar Antropologia na UFRJ. Quando chegou a hora da discussão,
1
Regina Celia Reyes
Novaes é doutora em
Antropologia Social pela
Universidade de São
Paulo (USP) e professora
aposentada do programa
de pós-graduação em
Sociologia e Antropologia
do Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais da
Universidade Federal do
Rio de Janeiro (IFCS/
UFRJ). Foi secretáriaadjunta da Secretaria
Nacional de Juventude,
presidente do Conselho
Nacional de Juventude,
consultora do Instituto
Brasileiro de Análises
Socioeconômicas (Ibase),
além de ter atuado como
consultora sênior do
Pnud/Nações Unidas
para a realização do
Informe Juventude e
Desenvolvimento Humano
nos países do Mercosul
ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
11
Divulgação
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Regina Celia Reyes Novaes
Cena do filme O rap do
Pequeno Príncipe contra as
almas sebosas, que retrata
periferias brasileiras
vi que a turma não teve, por aquele capítulo introdutório, a mesma deferência antropológica
que eu tinha. A descrição das cuidadosas estratégias da antropóloga para bem “entrar no seu
campo” de estudo causou certo estranhamento, e até certa irritação, em uma parte dos alunos.
“Mas, como? Precisou parar o carro não sei onde? Precisou andar de determinada forma?”.
Percebi, então, que na minha sala de aula havia uma parcela significativa de jovens que tinham
vivido ou ainda viviam em favelas. Aqueles aprendizes de antropólogo que transitavam pelos
dois lugares, pela favela e pelo asfalto, havia chegado à universidade. Eles demonstraram como
não só as palavras, mas também certas “estratégias de pesquisa” são datadas. Transitando com
familiaridade por diferentes espaços, certamente seus estranhamentos serão outros.
E como fica a palavra “periferia”? O termo era pouco usado no Rio de Janeiro antes de o
grupo de rap de São Paulo Racionais MC’s cunharem a inspirada frase “Periferia é periferia
(em qualquer lugar)” [nome de uma das faixas do álbum Sobrevivendo no inferno, de 1997].
A disseminação da palavra “periferia” se evidencia de maneira muito forte no filme O rap
do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas.2 No filme, há uma cena que marca esse primeiro
momento em que se começa a falar em “juventude brasileira da periferia”: os protagonistas
estão sentados em uma laje (creio) e começam a chamar: “Mangueira”, “Rocinha”, “Capão”,
“Retinga” etc., nomeando favelas do Brasil inteiro. Nesse contexto, “periferia” torna-se um
amálgama para identificar determinadas parcelas das juventudes brasileiras.
A palavra “periferia” ganhou vida, se transformou. Seu sinal negativo marcava oposição
ao “centro”, onde se concentram recursos materiais e simbólicos de poder. Com o tempo,
tornou-se não só a afirmação de pertencimento territorial, mas, também, de uma nova
vertente de produção artística e cultural. Na mídia, temos notícias de cooperativas de
produção, de literatura e grupos de skate que usam a palavra “periferia” como emblema
identificador. Fala-se em “estética da periferia”.
2
12
Documentário de Paulo Caldas e Marcelo Luna, 2000.
Regina Celia Reyes Novaes // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
E, finalmente, o que dizer da palavra “subúrbio”? O termo vem do latim suburbium,
que, literalmente, significa subcidade. Escutando Chico Buarque, temos uma apropriação
carioca. Em sua letra “Subúrbio”, em contraposição à cidade bem estabelecida, são citados
bairros bem diferentes entre si, mas que se homogeneízam: “pela cara a tapa”, “pela chapa
quente”, por não ter turista, por não sair nas revistas. No entanto, no Rio de Janeiro, a
designação “subúrbio” também é usada com sinal positivo, com certa nostalgia amorosa,
com uma dose de idealização bucólica. Ou seja, a palavra “subúrbio” não traz consigo uma
oposição/tensão social similar àquela encontrada desde sempre na palavra “favela” e, mais
recentemente, na palavra “periferia”.
Porém, recentemente, em Fortaleza, ouvi um rap em que o jovem autor usava a palavra
“subúrbio”. Nesse caso, a palavra “subúrbio” apareceu como um sinônimo das outras (favela,
comunidade e periferia) usadas para descrever a cartografia social que hierarquiza locais de
moradia. Não tenho informações para afirmar que seu uso esteja crescendo e se modificando no
vocabulário dos raps. Ou se o uso de “subúrbio” revela uma corrente, uma tendência no interior
do diversificado movimento hip hop. Mas pode-se refletir sobre essas e outras possibilidades.
Nesse sentido, acho que é interessante a minissérie Suburbia evocar essa palavra.
Em sua ambivalência poética, Suburbia poderia encontrar um caminho particular para
(re)apresentar trajetórias de jovens negros do Brasil de hoje.
Trajetórias de “jovens de projeto”
A desigualdade e o racismo persistem no Brasil, a situação de violência entre jovens é
alarmante. Mas, nesses últimos tempos, desde os anos 1990, surgiram novas mediações
que contribuíram para um reposicionamento de jovens negros em termos de construção de
identidade e trajetórias de vida. Esses jovens expressam uma parcela da juventude que não
logra estar representada estatisticamente, a quem chamo “jovem de projeto”.
Para exemplificar, retomo aqui informações sobre as trajetórias de vida de quatro jovens
negros baianos, que pude entrevistar para a edição de um videodocumentário intitulado
Uma arvore bonita.3 Carla Akotirene, Elder Santos, Mia Lopes e Diego Alcantara começaram
a trabalhar cedo e combinaram estudo e trabalho. Suas histórias mostram o quanto a ideia
corrente de que há uma grande parcela da “juventude que não trabalha e não estuda” pode
estar referida apenas a um retrato estático de um momento da vida dos jovens de hoje.
Esse diagnóstico não apreende os movimentos das múltiplas entradas e saídas na escola e
no mercado de trabalho pelas quais passa esta geração. Com muito esforço, hoje os quatro
estão na universidade. Para chegar lá, contaram com o apoio de ONGs e de programas
governamentais. O que mais esses jovens têm em comum?
Em todas as quatro histórias, o lugar da mãe é muito destacado. A mãe é o que fixa,
enraíza. Os pais são os que passam ou se mantêm mais distantes... Enquanto os especialistas
falam sobre “famílias desestruturadas”, o que vemos é uma mãe forte, um porto seguro, em
torno da qual há vários modelos de famílias.
3
Uma árvore bonita (Brasil, 2012). Direção de Beto Novaes. Realização: Unirio e Secretaria Nacional de
Juventude.
13
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Regina Celia Reyes Novaes
Outro ponto em comum: ao falarem sobre a escola pública, evidenciam sentimentos
contraditórios de crítica e de reconhecimento, de repulsão e de atração. Todos têm uma
história ruim para contar sobre a escola pública onde estudaram: falam sobre o currículo
distante da realidade, professores desinteressados, baixos salários, falta de infraestrutura etc.
Mas da memória escolar também resgatam momentos de aprendizado, experiências com
teatro, lembram de alguns professores interessantes e interessados que os ajudaram a se
expressar, se valorizar... Falam sobre o direito a uma escola de qualidade e, enquanto essa
escola não se faz realidade, valorizam os certificados escolares como um passaporte para
chegar ao mundo do trabalho.
O mundo do trabalho é um manancial de incertezas. Esses jovens fazem parte de
uma geração – a primeira no Brasil – em que os jovens se empregam abaixo do nível de
escolaridade atingido. Assim como também fazem parte da primeira geração em que os
filhos ensinam os pais, mesmo quando os pais têm mais escolaridade que eles. Isso porque
as novas tecnologias de informação e comunicação fazem parte de sua socialização.
O conhecimento se dá na escola, mas ela não é mais a única fonte de saber. Pode-se
estudar e não conseguir trabalhar; trabalhar e depois estudar, ou participar de um projeto
social e estudar a partir dessa motivação. Assim, abrem-se espaços para trajetórias incomuns,
não lineares, não previsíveis.
Também como ponto comum entre os jovens entrevistados estão as experiências com
os preconceitos. Em suas narrativas, os quatro contam situações em que foram alvo de
discriminação racial. Relatam situações constrangedoras de medo e suspeição baseadas na
cor da pele, mesmo sendo Salvador uma cidade com um número tão significativo de negros.
A tomada de consciência da raça, da “ancestralidade” como gostam de dizer, é sempre citada
como início de um “compromisso” social. Porém – como contam Mia e Diego –, além de
enfrentarem o preconceito pela cor da pele, esses jovens ainda têm de enfrentar outros,
advindos de padrões de beleza, orientação sexual, pertencimento religioso etc. Vejamos um
pouco de suas histórias.
Mia nasceu e foi, pequena, para a “comunidade” (bairro
distante, periferia) onde mora. Seu berço político foi um projeto
EsseS jovens fazem parte de
social da ONG Cipó Comunicação Interativa. Nessa convivência,
uma geração – a primeira no
foi se livrando de preconceitos de gênero, raça, padrão de beleza...
Brasil – em que os jovens se
Estuda Comunicação em uma faculdade particular, com bolsa de
empregam abaixo do nível de
estudos. Hoje ela se define como comunicadora. Ela faz locução
escolaridade atingido
em um programa de rádio e coordena um site que divulga produtos
feitos por mulheres empreendedoras.
Carla já viveu em várias “comunidades” (bairro distante/favela). Conta que tinha
bem interiorizados os preconceitos de classe, gênero e raça até fazer cursinho pré-vestibular na Fundação Steve Biko. Passou no vestibular, fez graduação em Serviço Social na
Universidade Católica e hoje faz mestrado na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Sua
dissertação é sobre a situação de jovens no sistema presidiário. Participa de um programa de
extensão universitária com mulheres marisqueiras que vivem em comunidades tradicionais.
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Elder, ainda adolescente, participou de um programa social do
município (Fundação Casa-Mãe), que tinha sede em sua “comunidade” (bairro pobre/favela/periferia). Conta que, adolescente, foi
“educado” pelo movimento hip hop. Letras do grupo Facção Central foram sua cartilha política. Participou também de um movimento de estudantes do ensino médio contra o preço do transporte
urbano. Hoje, participa do Fórum Nacional de Segurança Pública.
É estudante de Direito, quer ser advogado porque acha que os jovens negros precisam de advogados.
Diego nasceu em uma favela/comunidade considerada das mais
violentas de Salvador. Diz que percebia que “a comunidade estava
devorando a si mesma”, mas encontrou ali mesmo um projeto
social e um mestre de capoeira. Na escola, sofreu preconceitos: “é
negro, é ‘veado’, gosta de teatro”. Depois, no entorno, ingressou
em um Ponto de Cultura (projeto do Ministério da Cultura). Hoje
estuda Artes Cênicas na UFBA. Está envolvido em um projeto de
extensão universitária que se dedica a levar autores clássicos, como
Shakespeare, para as “comunidades”.
Trajetórias excepcionais? Os jovens citados acima experimentam uma ampliação do campo
de possibilidades nas áreas onde moram, que, como vimos acima, são designadas por eles
ora como favelas, ora como periferias, ou bairro distante. Tornaram-se “jovens de projeto” e,
nesse contexto, falam em “comunidade”. Como eles mesmos compreendem suas trajetórias de
“sucesso” em comparação a outros jovens que com eles cresceram?
Eles sabem que fogem à regra. Mas também não querem ser vistos como vencedores
premiados pelo esforço pessoal. Esses jovens não operam com a lógica do “self-made man”.
Enumeram as oportunidades que tiveram e hoje se sentem responsáveis por encontrar
formas para chegar até outros jovens, para deter “o genocídio da juventude negra no Brasil”,
nas palavras de Elder.
Para as Ciências Sociais sempre surge a pergunta: por que uns e não outros? Certa vez
Pierre Bourdieu, conhecido sociólogo francês, comparou as trajetórias individuais com os
diferentes caminhos que podem ser feitos no interior de uma grande rede de um metrô
urbano. Os usuários podem partir de uma mesma estação e fazer transferências diferentes
para pegar os trens para as diversas estações. Mas, o limite das escolhas individuais está na
matriz que conforma a rede, fazendo-a histórica e socialmente determinada.
Certamente, essa matriz (produto histórico) não é imutável. Movimentos sociais, disputas
de poder, mutações em padrões culturais, intervenções de projetos e programas sociais podem
ampliar essa matriz estabelecendo outro contorno, com outros limites que serão explorados pelos
usuários. Nessa perspectiva, as trajetórias de Carla, Mia, Elder e Diego são, a um só tempo,
individuais e coletivas. São trajetórias possíveis, entre outras, no tempo histórico presente.
Ou seja, generalizar a partir de trajetórias individuais, numericamente pouco
representativas, parece ser o equívoco mais óbvio, pois oculta a situação da maioria dos
Divulgação
Regina Celia Reyes Novaes // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Capa do DVD do filme
Uma árvore bonita
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Globo/Divulgação
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Regina Celia Reyes Novaes
Jovens dançam em
baile funk em cena da
minissérie Suburbia
jovens. Por outro lado, desconsiderá-las, por serem singulares e pouco representativas, é
amputar uma parte da realidade presente que se quer conhecer.
Entre os equívocos mais comuns está usar histórias exemplares para enaltecer os projetos
culturais. O que, geralmente, tem um subtexto: “a arte salva”. Como se sabe, desde os anos
1990, há uma tendência de recomendar atividades culturais como fórmula para a prevenção da
violência. “Cabeça vazia, oficina do diabo.” Nessa abordagem, a arte e a cultura não são vistas
como canais de expressão e criatividade e sim, apenas, como um mecanismo de contenção.
Equívocos à parte, em tempos de inocência perdida, as trajetórias aqui apresentadas podem
servir de alerta para a necessidade de compreender melhor como os “projetos” – governamentais
e não governamentais – interferiram no uso das palavras, afetaram trajetórias de jovens negros
no Brasil, introduziram maior diversidade nesses espaços vistos “de fora” como homogêneos.
Ao analisarmos as trajetórias de Mia, Carla, Elder e Diego, podemos pensar que
eles podem ser considerados mediadores “de dentro”, pois estão se apropriando de
conhecimentos, produzindo imagens, construindo narrativas sobre os espaços onde vivem.
Assim como meus alunos de Ciências Sociais, leitores de Alba Zaluar, seus estranhamentos
são outros, compatíveis com as experiências que vivenciam.
Nos anos 1970, na Antropologia, surgiu a famosa provocação de Eunice Durham:4
“observação participante ou participação observante”? Evitando essa confusão de papéis,
alguns abriam mão da “neutralidade científica” e já se declaravam “intelectuais orgânicos”,
“educadores populares”, “a serviço dos movimentos”. Todos falavam em “devolver” o conhecimento aos interessados.
4
DURHAM, Eunice Ribeiro. A reconstituição da realidade. São Paulo: Ática, 1978.
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Regina Celia Reyes Novaes // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
De lá para cá, o que mudou? As identificações continuam. Mas hoje ninguém mais
enfatiza a necessidade de “devolver” resultados de pesquisa. As apropriações são simultâneas.
Já faz muitos anos que os Racionais MC’s usaram os dados do IBGE para fazer um rap
de sucesso. Ninguém precisa “levar informações”. Grupos juvenis sabem se apropriar dos
textos acadêmicos que estão à disposição na grande rede.
Para saber mais:
Favela Tem Memória:
http://bit.ly/Zg6a11
Certamente, não se trata de inviabilizar pesquisas ou de declarar o fim da mediação
externa. Mas é preciso inovar, fazer outras perguntas para poder ampliar o conhecimento a
ser disponibilizado, apropriado.
Jovens negros: novas imagens
Lembro quando as imagens da periferia chegaram à MTV. Transcrevo aqui a reação de
uma jovem antropóloga sobre as primeiras imagens do hip hop na MTV.
“Foi inicialmente como consumidora que presenciei, nas palavras do grupo Pavilhão 9,
‘a tomada, por assalto, do cenário nacional’ do movimento hip hop. Como consumidora
estranhei o deslocamento das imagens e notícias sobre a periferia (desabamento na favela, as
filas para vagas no setor de saúde ou de educação, as rebeliões em penitenciárias, as chacinas,
as ruas sem esgoto, as casas inacabadas...) dos telejornais para as revistas, canais de televisão
e programas especiais que giram em torno do mundo pop. Foi estranho ver na MTV, entre
dois clipes onde predominavam as coloridas roupas da moda fashion, os cabelos coloridos,
os ambientes hiper-reais, ao lado de cenas de alguma favela, negros encapuzados, armas, 111
presos mortos, corredores do Carandiru. A década de 1990 foi invadida pela presença da
periferia para além do lugar onde até então ela estava. O rap, o grafite e o break invadiram
o universo urbano, veiculando-se pelo universo pop.”
CUFA:
http://bit.ly/VnjmjH
Cipó Comunicação
Interativa:
http://bit.ly/12MzR6l
Por diferentes razões que não podemos analisar aqui, a MTV “teve” de incorporar
aquelas imagens que – até então – não faziam parte do chamado universo pop. Passados 20
anos, clipes similares circulam na internet, nos blogs, nos sites, nas redes sociais. Imagens da
periferia são captadas e reproduzidas nos celulares dos moradores locais.
Ou seja, é outro o cenário no qual, em 2012, Suburbia estreou na Globo. As primeiras
imagens, muito negras e poéticas, foram impactantes em um país que – apesar dos avanços
– ainda se enxerga como branco. E a história tem um cenário conhecido. Depois de algumas
aventuras e muitas desventuras, é em uma “comunidade” que a bela heroína Suburbia se instala.
É lá que ela é acolhida por uma família multirreligiosa; se apaixona; convive com a violência do
tráfico de drogas; volta a estudar; trabalha na área de cultura... se identifica, se singulariza.
Pode-se até perguntar por que a TV aberta incorporou esse projeto. Qual seria seu
público potencial? Mesmo sem poder responder a essas indagações, é possível prever que a
minissérie será um marco importante na dramaturgia televisiva brasileira.
Contudo, mesmo sem cobrar “realidade” da criação da ficção, o universo de Suburbia – que
começa nos anos 1990 – parece não dar conta de retratar os territórios onde vivem hoje jovens
com perfis semelhantes. O desafio parece ser encontrar caminhos para reconhecer diferentes
trajetórias juvenis nesses territórios, enriquecendo-os, dificultando a mera reprodução de
percursos previsíveis e de veredictos simplificadores. Afinal, nada será como antes.
17
artigo
SUBÚRBIO CARIOCA, NEM SEMPRE NA PERIFERIA
Bairros localizados nos arredores das metrópoles
constituem os limites da zona urbana. No caso do
Rio de Janeiro, foram ultrapassados pela própria cidade
O conceito de “subúrbio” adquiriu um significado próprio na cidade
do Rio de Janeiro. Ele ultrapassa a etimologia da palavra e o sentido
geográfico do termo e não se refere, necessariamente, a um bairro
localizado longe do centro, nos arrabaldes da cidade. Caracteriza
muito mais uma identidade, uma cultura e uma vida em busca de
possibilidades de mudança. No artigo a seguir, o geógrafo Márcio
Piñon de Oliveira discute o conceito de subúrbio no Rio de Janeiro
e em outras metrópoles do mundo.
18
Márcio Piñon de Oliveira // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
GEOGRAFIA
SOLUÇÕES E
ESPERANÇA NAS
FRONTEIRAS DA CIDADE
Márcio Piñon de Oliveira, da UFF
Neste artigo, abordarei um tema que é muito caro para mim: a pesquisa relacionada à
história e à evolução urbana da cidade do Rio de Janeiro. Vivo mergulhado na geografia
urbana e tenho a cidade do Rio de Janeiro como objeto de pesquisa. Apesar disso, não é
fácil tratar desse tema, por causa do meu envolvimento pessoal com a história da cidade
e do subúrbio.
Sou nascido e criado na Penha, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, marcado
em sua paisagem pela Igreja de Nossa Senhora da Penha, no alto da colina, e pela
fábrica de couro do Curtume Carioca, hoje desativada. Vivi até os 8 anos de idade
do lado da avenida Brasil; dos 8 aos 16 anos, morei no loteamento chamado Bairro
Dourado, do lado da Igreja da Penha e a caminho da Vila Cruzeiro, favela que, nos dias
atuais, juntamente com outras, faz parte de um imenso complexo onde habitam mais
de 200 mil pessoas, o Complexo da Vila Cruzeiro, limítrofe ao outro complexo, o do
morro do Alemão.1
Os subúrbios ferroviários da cidade do Rio de Janeiro foram cortados, desde a segunda
metade do século XIX, por três grandes eixos ferroviários.2 O principal, e mais conhecido
deles, é o da Central do Brasil (antiga E. F. Dom Pedro II), que veio a dar origem aos
bairros do Engenho Novo, Méier, Engenho de Dentro, Cascadura, Madureira, entre
outros. O segundo eixo é o da Ferrovia Leopoldina (antiga E. F. do Norte), que originou
os chamados bairros da Leopoldina, como Bonsucesso, Ramos, Olaria, Penha e Brás de
Pina. O terceiro é o eixo da Linha Auxiliar (E. F. Central do Brasil), que gerou os bairros
de Jacarezinho, Del Castilho, Pilares, Rocha Miranda e Barros Filho.
Desse modo, os subúrbios ferroviários no Rio foram sempre divididos em dois lados,
1
2
Márcio Piñon de Oliveira
é doutor em Geografia
pela Universidade de São
Paulo (USP), com pósdoutorado na École des
Hautes Études en Sciences
Sociales (EHESS, França).
É professor do programa
de pós-graduação em
Geografia da Universidade
Federal Fluminense (UFF)
e coordenador do Núcleo
de Estudos e Pesquisas
Urbanas (Neurb-UFF)
Essa área da cidade ganhou a cena no episódio do assassinato do jornalista investigativo Tim Lopes que, em
2 de junho de 2002, foi à favela da Vila Cruzeiro gravar imagens de um baile funk promovido por traficantes
de drogas, após ter recebido denúncia dos moradores da favela de que no baile acontecia exploração sexual
de adolescentes e venda de drogas. A forma cruel de sua morte não apenas chocou os cariocas como recebeu
destaque da imprensa brasileira e internacional.
Cf. ABREU, Maurício de Almeida. A evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
19
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Márcio Piñon de Oliveira
Tânia Rêgo/ABr
de acordo com a linha do trem,3 à exceção
de Madureira – onde se passa a minissérie
Suburbia –, que tem três lados, por ser
cortado por duas redes ferroviárias: a Central
do Brasil e a Linha Auxiliar. Observando-se
o mapa do município do Rio de Janeiro,
Madureira fica relativamente no centro
geográfico da chamada Zona Norte da
cidade, tanto no eixo norte- sul, como entre
o leste e o oeste.
Plataforma da estação
Madureira, Rio de Janeiro
É importante pensar nessa dimensão
geográfica da cidade e na centralidade do
bairro de Madureira. Não sei se os autores
de Suburbia pensaram nisso quando
escolheram o lugar no qual se desenvolveria
a trama. A propósito, é em Madureira que a
protagonista Conceição será acolhida por uma família amiga. E esta é uma das características
do subúrbio, o acolhimento. O subúrbio não é cosmopolita, ao contrário do que afirma em
texto clássico o sociólogo alemão Georg Simmel, que ressalta a atitude blasé do cosmopolita
da metrópole.4 Eu diria: “Graças a Deus, o subúrbio não é cosmopolita, não é blasé, porque
ele não é indiferente, não é impessoal”. Dificilmente se anda pelas ruas do subúrbio sem que
as pessoas se olhem, se cumprimentem, se reconheçam, mesmo sem conhecer. O subúrbio
é realmente acolhedor e nada urbano no sentido de Simmel.
Mas esse subúrbio a que estamos nos referindo é aquele que os cariocas insistem ainda
em denominar de “subúrbio”, fazendo alusão aos bairros cortados pelas estradas de ferro
na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, isso não quer dizer que esses
bairros sejam, de fato, subúrbios, se assim tomado o conceito na literatura acadêmica que
trata do assunto.5
Na realidade, já faz muito tempo que o subúrbio passou por Madureira, por exemplo.
Hoje, Madureira, assim como os demais bairros ferroviários a que nos referimos, está longe
de ser subúrbio, tal como conceituado na literatura acadêmica, isto é, esse lugar mais distante
da área central da cidade, de habitat disperso, na franja da malha urbana, sub-urbano ou
quase urbano; transição espacial entre o rural e o urbano, de paisagem em permanente
transformação e movimento, acompanhando a expansão da cidade e sua urbanização.
3
Cf. LINS, Antonio José Pedral Sampaio. Ferrovia e segregação espacial no subúrbio: Quintino Bocaiúva,
Rio de Janeiro. In: OLIVEIRA, Márcio Piñon de; FERNANDES, Nelson da Nóbrega (Org.) 150 anos de
subúrbio carioca. Rio de Janeiro: Lamparina; Niterói: EdUFF, p. 138-160.
4
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio G. (Org.). O fenômeno urbano. Rio de
Janeiro: Guanabara, 1987.
5
Cf. MUMFORD, Lewis. O subúrbio – e depois. In: ______. A cidade na história. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965.
20
Márcio Piñon de Oliveira // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Nesse sentido, se tomarmos historicamente o subúrbio no Rio de Janeiro, este já foi
logo ali, nas cercanias ou arrabaldes da cidade – Catumbi, São Cristóvão, Tijuca, Botafogo ou Gávea foram um dia chamados assim.6
Mas no Rio de Janeiro há um conceito específico de subúrbio, o “conceito carioca de
subúrbio”, como indicado desde 1960, pelos trabalhos da geógrafa Maria Therezinha de
Segadas Soares, sobre a cidade do Rio de Janeiro.7 O subúrbio a que ela se refere, na verdade,
já estava em Nova Iguaçu, em Duque de Caxias, em Santa Cruz, muito para além daquilo que
identificamos hoje como subúrbio. Estamos falando de subúrbio como categoria geográfica. É
importante esclarecer e desmistificar o termo, pois, na identificação do que é subúrbio hoje no
Rio de Janeiro, há uma roupagem própria, um estereótipo, e um peso ideológico muito forte.
Rua do morro do Castelo,
que foi demolido para
projeto de reforma urbana
do centro do Rio de
Janeiro, em foto de 1922
Coleção particular
Como ressaltamos, na literatura, o subúrbio é aquele lugar mais distante da área
central, longínquo, que apresenta aquele aspecto de descontinuidade das construções e
de “menos gente ocupando mais terra”.8 Não é exatamente a periferia, porque “periferia”
já nos remete a um outro conceito de forte matiz social, que é muito utilizado em
São Paulo, por exemplo, para identificar aqueles espaços de loteamentos periféricos
de baixa renda.9 Mas, no caso de São
Paulo, a periferia geográfica, da distância
geográfica em relação ao centro, coincide
com a periferia social. No Rio de Janeiro,
não necessariamente. Pode-se dizer que
tanto Méier quanto Madureira ou outros
bairros, do dito “subúrbio carioca” hoje,
reproduzem muito a estrutura de classe da
própria cidade do Rio de Janeiro em seu
conjunto, não sendo espaços homogêneos.
Não são, portanto, necessariamente, a
periferia social da cidade. Ao contrário do
que se possa supor, esses bairros também
têm as suas periferias sociais, que se
espraiam para os morros/favelas e antigos
conjuntos habitacionais que também neles
tomam lugar.
6
EL-KAREH, Almir Chaiban. Quando os subúrbios eram arrabaldes: um passeio pelo Rio de Janeiro e seus
arredores no século XIX. In: OLIVEIRA, Márcio Piñon de; FERNANDES, Nelson da Nóbrega (Org.). 150
anos de subúrbio carioca. Rio de Janeiro: Lamparina; Rio de Janeiro: EdUFF. p. 19-56.
7
SOARES, Maria Therezinha de Segadas. Divisões principais e limites externos do Grande Rio de Janeiro.
Anais da AGB, v. XII (1958-1959), São Paulo, 1960.
8
Idem.
9
Cf. BONDUKI, Nabil; ROLNIK, Raquel. Periferia de São Paulo: reprodução do espaço como expediente
de reprodução da força de trabalho. In: MARICATO, Ermínia. A produção capitalista da casa e da cidade no
Brasil industrial. São Paulo: Alfa-Omega, 1979.
21
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Márcio Piñon de Oliveira
Justasc/Shutterstock
Vista aérea de subúrbio
rico em San Diego,
Califórnia
É muito fácil ver a cidade do Rio de Janeiro como a cidade partida entre Zona Sul e
Zona Norte, e ver o subúrbio como parte constitutiva da chamada Zona Norte e projetar
para ele boa parte da tensão vivida no cotidiano da metrópole. Historicamente vivemos um
paradoxo. No passado, o subúrbio romântico, como na letra da canção “Gente humilde”,
de Garoto, Chico Buarque e Vinicius de Moraes, de “casas simples, com cadeiras na calçada/
e na fachada escrito em cima que é um lar”.10 Nos dias de hoje, espaços fragmentados, de
forte conteúdo sociocultural,11 identificados como parte da representação da cidade, mas
revestidos pela roupagem da violência e insegurança. Mas isso não fez sempre parte dessa
realidade. O racismo, sim, sempre esteve lá – como se vê no romance de Lima Barreto, Clara
dos Anjos, datado do ano da sua morte, 1922, em que o escritor assume um posicionamento
de crítica social muito forte em relação ao racismo.12
A construção da imagem do subúrbio
como lugar de pessoas simplórias,
trabalhadores pobres, não modernos,
precarizados e imersos na violência da
cidade, tal como aparece na minissérie
Suburbia, é muito recente na nossa história
urbana. Vem da década de 1980, a chamada
“década perdida”, e perdura até os dias
de hoje. É, portanto, nessa passagem dos
últimos 30 anos que há a formação daquilo
que passamos a identificar como um
subúrbio violento e refém da ilegalidade
no Rio de Janeiro.
Em outras metrópoles, os subúrbios
não são necessariamente pobres ou
constituídos de lugares precários para
abrigar os pobres. Na América do Norte,
sobretudo, os subúrbios foram ocupados
por uma classe burguesa e mais abastada e que ali foi morar – onde geralmente o custo de
vida é mais elevado, por causa da distância e do preço dos meios de transporte – para ter
outras compensações e amenidades em relação à área central, adensada, com a tensão do
dia a dia, a poluição etc. Outro tipo de subúrbio é aquele que abriga a grande empresa,
a indústria que não cabe mais na zona urbana das cidades e que foi denominado de
company town.
10
“Gente humilde”, composição de Garoto (Aníbal Augusto Sardinha), Vinicius de Moraes e Chico Buarque
de Holanda, 1969.
11
Ver letra da música “Subúrbio”, composição de: Chico Buarque. Com certeza, retrata outro momento da
cidade e de outro subúrbio, bem distinto daquele de “Gente Humilde”.
12
22
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Garnier, 1991 [1ª ed. 1924].
Disponível também em: http://bit.ly/15Gavu5.
Augusto Malta/Coleção particular
Márcio Piñon de Oliveira // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Na França, por exemplo, encontramos tanto o subúrbio pobre quanto o rico, as
denominadas banlieues. Essa colagem entre classe social e subúrbio, identificando o subúrbio
como um lugar não moderno em oposição àquilo que seria a área central, ou a Zona Sul da
cidade moderna, ou o que seria o chique e o não chique, é algo muito particular da cidade
do Rio de Janeiro. Não ocorre exatamente assim em muitas outras metrópoles.
Obras na rua da Carioca,
em 1905. Reformas
forçaram populações
a buscar refúgio nos
subúrbios
Enfim, gostaria de deixar, então, três pontos para a reflexão sobre o papel historicamente
desempenhado pelos subúrbios em nossas cidades.
O primeiro ponto diz respeito ao que entendemos como subúrbio e o que ele representa
na cidade. Referimo-nos ao subúrbio como um lugar de fronteira, como ponto médio,
considerando que há sempre “um dentro” e “um fora” da cidade, tanto geograficamente quanto
do ponto de vista social. Há um dentro e um fora em relação a determinadas representações
sociais projetadas para a cidade e que tendem a se fazer hegemônicas com referência ao que é
aceito ou não, ao que se considera como razoável para ser respeitado naquela sociedade. Nesse
sentido, o subúrbio tem, então, o papel de ser um lugar de fronteira, de ser um dentro e fora
na cidade, um quase, mas, ao mesmo tempo, um espaço-limite e limítrofe da ordem espacial e
das relações sociais. Limite geográfico e limite social; limite entre o legal e o ilegal; entre o que
está dentro das normas, das posturas, das convenções, e o que não as transgride.
Em um segundo ponto, o subúrbio aparece nas cidades – e, neste caso, o Rio de Janeiro
não é uma exceção – como um lugar para onde estas caminham na expansão urbana. Então,
se realizada uma reforma urbana no centro da cidade, isso significa dizer que essa cidade ao se
modernizar vai encontrar outras formas e funções para sua área central, e a população que ali
habitava até então, por exemplo, assim como inúmeras atividades, vai encontrar lugar, quase
compulsoriamente, no subúrbio. Foi isso o que ocorreu no Rio de Janeiro com a reforma de
Pereira Passos, entre 1902 e 1906; ou com a remoção das favelas da Zona Sul, nos anos 1960
e 1970, para lugares periféricos da cidade e que eram, até então, subúrbios – a exemplo dos
conjuntos habitacionais da Cidade de Deus, em Jacarepaguá; da Vila Kennedy, em Bangu; e
da Cidade Alta, em Cordovil.
23
Armazém de Dados/Instituto Pereira Passos, Rio de Janeiro
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Márcio Piñon de Oliveira
Divisão do município do
Rio de Janeiro em Áreas de
Planejamento. AP3 abriga
o que se convencionou
chamar de subúrbio carioca
Nesse sentido, o subúrbio tanto vai abrigar, paradoxalmente, os problemas da cidade,
que serão empurrados para ele, como será, também, solução para as novas indústrias e
empresas que, por não encontrarem mais terrenos na área central, instalam-se no subúrbio,
em lugares disponíveis e em terrenos mais baratos. Se não há mais possibilidade ou
condições de convivência, ou quando se impõe um processo de segregação socioespacial
à cidade pela valorização do espaço e pela elevação do preço dos terrenos – como o que
aconteceu com a remoção das favelas na área da Zona Sul carioca, já assinalada –, o
lugar que essas populações vão encontrar é exatamente o subúrbio. Então, o subúrbio é o
local que acolhe os problemas e, simultaneamente, abriga as suas soluções. Temos muitos
exemplos disso ao longo da história do Rio de Janeiro. O subúrbio é um lugar de projetos,
um lugar de esperanças, que acompanhou e conformou a segregação socioespacial da
metrópole carioca.
Por fim, um terceiro ponto. Já falamos do conceito de subúrbio como um lugar de
fronteira, um lugar para onde caminha a cidade; portanto um lugar que abriga tanto os
problemas como os projetos e soluções, um lugar de esperança; e agora vamos tratar do
conceito de subúrbio como um lugar plástico, em permanente mudança. Isso porque,
historicamente, o subúrbio muda de lugar. Cristalizou-se, no Rio de Janeiro, o subúrbio
carioca como a AP3, a Área de Planejamento nº 3, que abriga 13 regiões administrativas
e 80 bairros e ocupa o polígono que vai da altura de São Cristóvão até Irajá, Madureira
e toda essa região que compõe os bairros da chamada Zona Norte. Mas o subúrbio é
um lugar de permanente transformação e mudança, tanto de mudança territorial como
também na sua paisagem, nas suas formas e nas relações.
O subúrbio está em permanente construção. Basta voltar a um subúrbio depois
de certo tempo sem visitá-lo e observar: pode-se notar que novas casas subiram – até
24
Márcio Piñon de Oliveira // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
mesmo nas áreas de favelas vê-se sempre um novo “puxado”, um anexo, uma nova laje.
O lugar cresce, muda-se a fachada, surgem construções que não existiam antes. Em
relação a determinadas áreas da cidade, os subúrbios estão em permanente construção,
em movimento espacial, social e culturalmente. Porque o movimento de moradores do
subúrbio dentro da cidade é aquele que a faz conhecer mais pessoas e lugares, por terem
de se deslocar para a área central e outras regiões onde há serviços, lazer, centros culturais,
teatro. Nesse sentido, quem vive no subúrbio conhece muito mais, geograficamente, a
cidade, porque tem uma experiência de espaço e tempo bem diferenciada.
Como lugar plástico, de mudança e de transformação permanente da paisagem, o
subúrbio vai aparecer também como lugar múltiplo, como lugar de criação e de tensão.
É pelos projetos pessoais de esperança, de ascensão social e de desejo de crescimento,
quanto de reconhecimento da sociedade, que há um movimento em busca de mudança.
Portanto, mesmo aqueles que ali se criaram saem, mas ficam sempre com o pé no
subúrbio, ou vão procurar outro subúrbio. Podemos tomar o exemplo do compositor
Zeca Pagodinho, que viveu em Irajá, tentou morar na Barra da Tijuca, mas acabou em
Xerém. Por quê? Ele foi em busca daquilo que um dia Irajá já foi, algo entre rural e
urbano, meio bucólico, meio urbano.
Para saber mais:
MARICATO, Ermínia.
A produção capitalista da
casa e da cidade no Brasil
industrial. São Paulo:
Alfa-Omega, 1979
OLIVEIRA,
Márcio Piñon
de; FERNANDES,
Nelson da
Nóbrega (Org.).
150 anos de subúrbio
carioca. Rio de Janeiro:
Lamparina; Niterói:
EdUFF, 2010
Para finalizar, gostaria de dizer que, em qualquer outra cidade – imaginemos uma
metrópole norte-americana –, bairros como a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes
seriam considerados subúrbio, assim como Campo Grande e Santa Cruz. Mas, na
realidade carioca e na forma como se deram a modelagem e a apropriação da categoria
subúrbio na cidade do Rio de Janeiro, ficamos restritos e encaixados na representação de
um subúrbio como lugar de moradia de trabalhadores pobres, de certa precariedade e
ausência de infraestrutura e da relação com o trem. Segundo Nelson Fernandes, ficamos
condenados ao que ele denominou, a partir de uma expressão do sociólogo francês Henri
Lefebvre, de “rapto ideológico da categoria subúrbio” na cidade do Rio de Janeiro,13 uma
vez que, no Rio, o termo “suburbano” acaba assumindo um caráter pejorativo, indicando
“falta de cultura e sofisticação”.
Então, o subúrbio passou; não se encontra mais, hoje, do Como lugar plástico, de
ponto de vista geográfico, da análise do espaço da cidade do Rio mudança e de transformação
de Janeiro, nos lugares a ele atribuído – classicamente, poderíamos permanente da paisagem, o
dizer que ele estaria hoje em Seropédica, Sepetiba, ou para além subúrbio aparece também
disso –, mas continuamos com a representação de subúrbio que como lugar múltiplo, de
criação e de tensão
me parece estar incorporada também na obra Suburbia, a do
“conceito carioca de subúrbio”. Assim, a minissérie trata desse subúrbio que já é muito
mais a representação carioca de subúrbio, estereotipada e pejorativa, do que o subúrbio
geográfico propriamente dito na sua origem. Com certeza, Madureira não é um lugar tão
distante hoje, e nem tem muita coisa de bucólico ou de habitat disperso.
13
Cf. FERNANDES, Nelson da Nóbrega. O rapto ideológico da categoria subúrbio. Rio de Janeiro: 1858 –
1945. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011.
25
Divulgação
artigo
Chegada de fábrica
marcou início da
ocupação da região.
Instalações foram
transformadas em
shopping
DA DEGRADAÇÃO AO ESTIGMA E À RENOVAÇÃO
Bangu nasceu com o crescimento da zona urbana e das
linhas férreas, viveu sua expansão e seu declínio ao longo
do último século e hoje passa por nova fase
Tudo começou com uma linha de trem no século XIX. Depois veio uma
grande fábrica, a primeira fora da zona urbana da cidade. Em seguida,
as modificações do entorno, o surgimento de associações, escolas de
samba e time de futebol. Até que a chegada de uma penitenciária e o
declínio econômico da indústria mudaram radicalmente o perfil do
bairro, que hoje luta para recuperar sua identidade. Bangu, na Zona
Oeste do Rio de Janeiro, é um exemplo de trajetória, surgimento e
transformação dos subúrbios.
O pesquisador João Felipe Pereira Brito apresenta no artigo a
seguir essa história, propondo uma reflexão sobre alguns padrões da
dinâmica socioeconômica dos subúrbios.
26
João Felipe Pereira Brito // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
HISTÓRIA
TRANSFORMAÇÕES
E PERMANÊNCIAS
SUBURBANAS: O CASO
DO BAIRRO BANGU
João Felipe Pereira Brito, da UFRJ
Nos debates promovidos pelo Globo Universidade que antecederam esta edição do
Caderno Globo Universidade, o geógrafo Márcio Piñon de Oliveira fez a seguinte afirmação:
o subúrbio é um lugar de “permanente transformação” onde se abrigam os “problemas e
as soluções da cidade”. Leia mais nas páginas 18 a 25. Seguindo a reflexão de Oliveira,
sugiro que a especificidade das mudanças ocorridas nos subúrbios das cidades com altos
níveis de desigualdade socioeconômica, como o Rio de Janeiro (pois há que se considerar
que há mudanças em qualquer lugar e em qualquer tempo, mas sob diferentes perspectivas),
refere-se ao fato de que esses lugares se transformam quando a cidade demanda grandes
áreas para sua expansão econômica ou para a reformulação de sua infraestrutura produtiva
e de serviços urbanos (indústrias, eixos de transportes, conjuntos habitacionais, centros de
saneamento de água, aterros sanitários, penitenciárias etc.) ou, ainda, quando a cidade precisa
distribuir territorialmente suas mazelas em momentos de crise. Contudo, neste último
caso, penso que os processos de mudança são menos abruptos, ainda que desestruturem
relações e desvalorizem os lugares. A proposta, aqui, é pensar o subúrbio carioca a partir de
transformações no bairro de Bangu e em seu entorno, através dos resultados de uma recente
pesquisa que realizei.1
Na segunda metade do século XIX, com a abertura da estrada de ferro D. Pedro II,
inicia-se um novo processo de expansão urbana do Rio de Janeiro, tomando grandes áreas
da sua então zona rural. Os trens tornam-se, assim, a conexão mais importante entre essa
cidade expandida e o centro. Em Bangu, bairro da atual Zona Oeste da cidade, o processo
1
João Felipe Pereira
Brito é mestre em
Sociologia e Antropologia
pelo Programa de PósGraduação em Sociologia
e Antropologia da
Universidade Federal do
Rio de Janeiro (PPGSAUFRJ) e doutorando em
Sociologia, com ênfase
em Teoria Sociológica
e Sociologia Urbana,
também pelo PPGSA-UFRJ
Ver BRITO, João Felipe Pereira. Terras quentes reinventadas: a criação do bairro Gericinó como parte de
transformações urbanas do bairro Bangu. 2012. 138 p. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia)
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002. Ainda sobre Bangu, recomendo a leitura
de SILVA, Gracilda Alves de Azevedo. Bangu 100 anos: a fábrica e o bairro. Rio de Janeiro: Sabiá Produções
Artísticas, 1989; e OLIVEIRA, Márcio Piñon de. A trajetória de um subúrbio industrial chamado Bangu.
In: OLIVEIRA, Márcio Piñon de; FERNANDES, Nelson da Nóbrega (Org.). 150 anos de subúrbio carioca.
Rio de Janeiro: Lamparina, Faperj; Niterói: EdUFF, 2010.
27
Tomas Somlo/Biblioteca Central do IBGE
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // João Felipe Pereira Brito
Vila operária construída
pela CPIB para abrigar
trabalhadores da fábrica,
em foto de 1958
foi semelhante e se deu a partir do surgimento da Companhia Progresso Industrial do
Brasil (CPIB), que, aproveitando-se da fartura de terras e mananciais a preços baixos
ao lado da linha férrea, a 31 km do centro, construiu sua fábrica de tecidos, a primeira
fora da zona urbana da cidade. Uma estação ferroviária foi erguida ao lado da fábrica em
construção, além de uma vila operária com 95 casas. Nascia, então, a vila proletária com
extensas áreas verdes no entorno que, futuramente, se transformaria num novo bairro
da cidade, descrito pelo jornalista e pesquisador Roberto Assaf como “bairro operário,
estação do futebol e do samba”.2
O bairro de Bangu foi vinculado, durante quase todo o século XX, à sua fábrica e a seus
operários, que fundaram o famoso clube de futebol do lugar e outras tantas instituições
associativas. Por seus tecidos de alta qualidade, exportados para diversos países, pelos milhares
de empregos diretos e indiretos ali gerados, por sua precoce e exemplar urbanização, seus
edifícios e casas de tijolos vermelhos em estilo manchesteriano, o bairro e a CPIB tiveram
a honra de receber sete presidentes da República do Brasil e um presidente da República
francesa. Durante décadas, a marca de tecidos Bangu era exposta em desfiles de moda
realizados no Copacabana Palace, o mais requintado hotel da cidade. Nos gramados, o Bangu
Athletic Club venceu campeonatos, cedeu jogadores à seleção brasileira e é considerado o
primeiro clube de futebol do país a escalar para uma partida um jogador negro, o tecelão
Francisco Carregal, em 1905.
Acrescenta-se às mais significativas referências sobre história local a ascensão, nos anos
1970, da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, bairro vizinho a Bangu,
que se tornou uma das grandes escolas de samba da cidade. A Mocidade Independente foi
cinco vezes campeã do Carnaval do Rio de Janeiro (1979, 1985, 1990, 1991 e 1996), e
naqueles anos era comum os ensaios técnicos da escola ocorrerem nas ruas e praças desses
2
28
Ver ASSAF, Roberto. Bangu: bairro operário, estação do futebol e do samba. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2004.
João Felipe Pereira Brito // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
bairros e também no gramado do Estádio Proletário Guilherme da Silveira, chamado de
“Moça Bonita” e pertencente ao Bangu Athletic Club. Desde os anos 1960, o clube de
futebol e a escola de samba tinham o mesmo “patrono” e financiador, o bicheiro Castor de
Andrade, contraventor que assumiu o posto de “mecenas” esportivo e cultural do bairro
após o afastamento gradativo da CPIB dessas funções.
Todos esses elementos sócio-históricos, avulsos ou combinados, foram apropriados e
transmitidos pelos moradores do bairro nas interações por toda a metrópole, por meio de
símbolos e histórias contadas, caracterizando e disseminando a identidade que os banguenses
têm de si e de seu bairro. A eles, pode-se acrescentar também o “título”, recebido em fins do
século passado, de “bairro mais quente do Rio de Janeiro”.
Região de Bangu antes da
ocupação do bairro
Tomas Somlo/Biblioteca Central do IBGE
Não por coincidência, na época em que a CPIB se aproximava do seu centenário,
celebrado em 1989, e revelava uma decadência incontornável, o bairro recebia a primeira
penitenciária de segurança máxima do Brasil: Laércio da Costa Pellegrino, que ficou
popularmente conhecida no Rio de Janeiro
e no país como “Bangu 1”. A partir de
então, o nome do bairro constantemente
apareceria em manchetes sobre a violência
e a criminalidade da cidade. Bangu 1
foi chamada de “escritório central do
crime organizado”.3 O estigma derivado
da associação do nome do bairro com a
detenção de criminosos fica mais evidente
nos anos 1990, quando novas penitenciárias
de segurança máxima são instaladas nos
arredores de Bangu 1, dando origem a
Bangu 2, Bangu 3 e Bangu 4.
Quando, em 1990, a CPIB é vendida
pelos herdeiros da família Silveira, cuja
história está intimamente vinculada ao
apogeu da fábrica e ao desenvolvimento
do bairro, o centro de Bangu, parte mais antiga do bairro, encontrava-se extremamente
degradado. O patrimônio histórico, incluindo a fábrica, estava em estado de deterioração,
o trânsito era caótico e tornava o calor tão característico ainda mais extenuante, sua avenida
principal transformava-se em uma mal conservada via comercial de pedestres (o Calçadão),
o desemprego era alto e, nas periferias do bairro, ocupadas a partir dos anos 1960 pela venda,
pela CPIB, de suas terras agrícolas, viam-se conjuntos habitacionais, loteamentos e favelas
sem infraestrutura adequada, com poucas oportunidades de renda e aumento constante da
violência em decorrência do tráfico de drogas instalado nessas áreas.
A interpretação que proponho é que, ao perder sua “zeladora”, que o fundou, urbanizou
3
Ver CALDEIRA, César. A política do cárcere duro: Bangu 1. São Paulo em perspectiva. São Paulo,
v. 18 n. 1, jan./mar. 2004. Disponível em: http://bit.ly/XNbu5l.
29
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // João Felipe Pereira Brito
Casas de operários da
fábrica Bangu em registro
da década de 1950
e desenvolveu, a Fábrica Bangu, o bairro não encontrou de imediato nem no Estado nem em
outro interventor qualquer os investimentos necessários para a retomada de seus empregos,
para proteger seu espaço urbano, seus recursos naturais, seu patrimônio e para reerguer sua
autoestima identitária. Dessa forma, os moradores do lugar experimentaram o que o sociólogo
Anthony Giddens chama de “desencaixe”,4 um “descolamento” do tempo e do espaço sociais
e uma perda de confiança nas instituições. Essa ruptura é geralmente dramática e, no campo
das sociabilidades, promove disputas que tendem a gerar, num momento posterior, um novo
ordenamento social – ou reencaixe. A saída da família Silveira do comando da CPIB pode ser
tomada como o ápice desse processo. Contudo, foi preciso esperar uma década a mais para
que se vislumbrasse uma espécie de retomada dos ânimos coletivos em Bangu.
Tomas Somlo/Biblioteca Central do IBGE
No ano de 2004, um projeto de
lei oriundo do Poder Executivo, mas
reivindicado por vereadores cujas bases
eleitorais estão no bairro de Bangu e no seu
entorno, propõe uma solução original para
a questão dos estigmas do bairro e de seus
moradores: a criação de um novo bairro a
partir do desmembramento do território
de Bangu, de maneira que o complexo
penitenciário e outras instituições que ali
se localizavam (aterro sanitário e área de
treinamento militar) e desvalorizavam a
identidade e a propriedade dos banguenses
fossem retirados dos limites oficiais do
tradicional bairro suburbano. O novo bairro,
único no Brasil a possuir esse conjunto de
instituições estigmatizantes, recebeu o nome da serra que lhe é vizinha: Gericinó.5
Apesar de instaladas dentro das delimitações oficiais do bairro de Bangu, em terras
historicamente vinculadas à CPIB, as penitenciárias se situavam em área distante de
seu centro histórico e comercial, num percurso que, em automóvel, dura em torno de
15 minutos. Esse fato explica por que grande parte dos banguenses que vivem no centro
do bairro, nos quarteirões ordenados pela CPIB, nem sequer tinha conhecimento sobre a
localização das penitenciárias, mas ainda assim as rejeitava pela associação constante que
lhes era feita nas interações com pessoas de bairros distantes ou de outras cidades.
4
Ver GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
5
30
De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Bangu tem uma
população de 243.125 pessoas, e Gericinó, de 15.167 pessoas. Destas últimas, aproximadamente 12.000 são
detentos do complexo penitenciário. Ainda não há dados sobre o IDH desses bairros baseados no Censo
2010. Estima-se, porém, que Gericinó terá, em razão da população carcerária, o pior IDH por bairros da
capital. Ao contrário, a tendência é que Bangu melhore sua posição no ranking de IDH dos bairros cariocas
(atualmente está em 96o lugar pelo Censo de 2000).
Tomas Somlo/Biblioteca Central do IBGE
João Felipe Pereira Brito // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Mas por que a ideia de criar este novo bairro justamente naquele momento? E quais
eram as expectativas dos formuladores desse projeto de lei? De acordo com minha pesquisa,
foi um processo de renovação urbana que motivou a criação de Gericinó, especialmente
a iniciativa de transformação da antiga e abandonada fábrica em shopping center. Após
o período de estagnação provocado pelo declínio e pela interrupção da produção têxtil, o
bairro de Bangu passa a ser orientado pela força crescente de seu comércio, cuja associação
representativa – Associação Comercial e Empresarial da Região de Bangu (Acerb) – ajudou
a eleger um de seus mais conhecidos membros ao cargo de subprefeito da região de Bangu,
vereador, deputado estadual e secretário municipal de governo. Esse importante agente
local, como vereador, foi um dos que discursaram na Câmara Municipal em prol da criação
de Gericinó.
Vista parcial da fábrica
Bangu, 1958
Utilizando a demanda da população local por melhorias e ainda as suas queixas quanto
aos estigmas provenientes da localização do complexo penitenciário, as novas lideranças
econômicas e políticas do período pós-fabril trocaram o apoio político à gestão municipal
daquele período por um novo ordenamento do território do bairro, de modo que este
favorecesse novos investimentos privados que pudessem impulsionar ainda mais os setores
comercial, de serviços e imobiliário. Assim, é instalada no bairro uma subprefeitura (em
1997, por iniciativa direta da Acerb); são aprovadas leis para o tombamento da Fábrica
Bangu e para sua transformação em centro comercial (2000 e 2003); é implantado no
bairro o programa de melhorias urbanas Rio-Cidade II (2002); cria-se o bairro de Gericinó
(2004); inaugura-se o shopping center (2007) e sua área, acompanhando a área do Calçadão
e de suas ruas de entorno, é inserida no programa Polos do Rio, sob o nome de Polo
Quadrilátero Comercial de Bangu, um modelo de parceria público-privada elaborado pela
prefeitura com o objetivo de articular, em certos bairros, a oferta de serviços públicos a
determinados investimentos privados semelhantes e associados.
Toda essa história do surgimento e desenvolvimento de Bangu e, consequentemente, da
31
Divulgação
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // João Felipe Pereira Brito
Ruínas de antiga fábrica
foram recuperadas e
transformadas em centro
comercial
criação de Gericinó, revela certas dinâmicas sociais que podem ser encontradas em muitos
bairros do subúrbio carioca. Proponho aqui, então, algumas reflexões acerca de três pontos
que considero sugestivos na busca de alguns “padrões suburbanos de sociabilidade”.
Em primeiro lugar, pode-se chamar a atenção para a dicotomia centro/periferia, que,
ainda que pareça simplista e mereça, sempre que for evocada, qualificações de ordem
empírica, prevalece em grande parte do subúrbio carioca, mas com maior ênfase nos bairros
da Zona Oeste, mais extensos e populosos, como Bangu, Campo Grande e Santa Cruz.
Esses bairros reproduzem em seus territórios modelos de desigualdade e segregação que
estruturam a organização socioespacial da metrópole. Pode-se afirmar, por exemplo, que
Bangu esteve historicamente para o Rio de Janeiro assim como Gericinó está para Bangu:
um lugar cujo distanciamento socioespacial é necessário para que se evitem estigmas ou
desorganização de um arranjo econômico tradicional.
Desenvolvendo-se a partir da estação ferroviária, muitos bairros suburbanos concentraram
em seus centros suas principais instituições públicas e privadas e, portanto, ao longo de sua
história, foram essas as áreas que melhor mantiveram certas tradições e a memória local e
que mais receberam proteção estatal. Foi nesses quarteirões ao redor das estações de trem
que se ergueram as primeiras igrejas e paróquias, as primeiras linhas de lotação e de bondes,
os principais mercados e feiras, os clubes sociais e esportivos, as escolas de samba e blocos
carnavalescos, cinemas, universidades e faculdades, e, mais recentemente, as unidades de
administração municipal, subprefeituras e, por que não, shopping centers.
Um segundo ponto de concordância entre os bairros suburbanos é a existência neles de
diversos limites internos segregadores, que reduzem a circulação, as trocas, o alcance visual
da cidade e desvalorizam ruas e imóveis.6 O principal limite ou barreira socioespacial do
6
32
Por limites entendo as “interrupções lineares na continuidade”, podendo ser também “barreiras mais ou
menos penetráveis que mantêm uma região isolada das outras”. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade.
Lisboa: Edições 70, 1999 [1960], p. 58.
João Felipe Pereira Brito // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
subúrbio carioca são os extensos e altos muros que acompanham as linhas férreas, separando
diversos bairros em dois lados. Em alguns bairros, como Bangu, um dos lados, o núcleo de
povoamento original, tem a primazia de investimentos públicos e concentra historicamente
a elite local. Ainda em Bangu, um pedaço da linha férrea foi retirado em trecho diante
do shopping, possibilitando aos que descem na estação de trem um acesso visual ao
antigo prédio, às luzes e à movimentação das áreas externas do shopping. Se estendida, a
medida maximizaria a visibilidade sobre as pessoas e sobre o conjunto urbano do entorno,
aumentando a segurança e o bem-estar dos transeuntes.
Essa forma de segregação territorial é acompanhada por outros tipos de limites, dentre
os quais se destacam, para os pedestres, as vias atravessadas pelos inúmeros viadutos que
cruzam as linhas férreas da região, que são, em geral, vazias, escuras e perigosas. Também
é possível citar como limites nos bairros suburbanos as fábricas abandonadas, depósitos de
lixo, os muros da Linha 2 do metrô e áreas de uso militar.
Vista aérea do aterro de
Gericinó, área que foi
desmembrada de Bangu
Comlurb/Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/Divulgação
Por fim, pode-se sublinhar entre os
suburbanos uma forte e ativa identidade
de bairro, utilizada estrategicamente para
ampliar o prestígio e a associação a estilos
de vida e a instituições de grande valor
simbólico, como clubes, escolas de samba e
festas religiosas.
Esse apego à identidade de bairro que
propicia tipos específicos de vida urbana, em
que a localidade é de extrema importância
para a apreensão do mundo, não é restrito
ao subúrbio carioca, evidentemente.7
Contudo, especificamente nessa região
da cidade, pode-se observar uma luta
constante dos atores locais por manutenção
e reinvenção dessas identidades de bairro,
seja pelo receio da estigmatização (de uma
identidade de bairro específica ou da própria
identidade suburbana), seja pela chegada
de novos elementos que acompanham as
intervenções públicas e privadas impostas à região. Em Bangu, a chegada do shopping
center dinamizou as relações sociais e acelerou a história do bairro de tal forma que há
quem acredite na aposta do antigo prefeito, de que, no futuro, chamarão as penitenciárias
de Geri 1, Geri 2, Geri 3... livrando o bairro, definitivamente, da desvalorização identitária
causada, ironicamente, pelos serviços prestados à cidade durante toda a sua história de
grandes intervenções e grandes transformações.
7
Para uma melhor compreensão da problemática sobre as identidades de bairro, ver o profícuo estudo de
António Firmino da Costa sobre o bairro de Alfama, em Lisboa. COSTA, António Firmino da. Sociedade
de bairro: dinâmicas sociais da identidade cultural. Oeiras, Portugal: Celta, 1999.
33
artigo
Um elenco com as mais diversas estrelas
A minissérie Suburbia é composta por atores não profissionais
ou estreantes pouco conhecidos na televisão. A escolha foi
proposital, para trazer mais realidade à ficção
Os atores não são conhecidos da mídia. Foram escalados em testes
de seleção, realizados em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, entre
mais de 2 mil candidatos. O diretor Luiz Fernando Carvalho buscou
pessoas cuja trajetória de vida se aproximasse do universo dos
personagens da trama. O elenco traz também artistas de grupos que
atuam como agentes de inclusão e transformação social. São grupos
como Nós do Morro, AfroReggae, Companhia dos Comuns, Tá
na Rua, Teatro Independente, Mulher de Palavra e projetos como
Negro Olhar. A importância de dar voz a esses artistas é comentada,
no artigo a seguir, pela professora Marina Henriques Coutinho, que
desenvolve pesquisas sobre o teatro nas comunidades e favelas.
34
Marina Henriques Coutinho // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
TEATRO
O palco como espaço
para a expressão de
um novo discurso
Marina Henriques Coutinho, da Unirio
Vou iniciar a minha contribuição saudando as palavras de um grande brasileiro, Augusto
Boal. Disse o Boal em um de seus últimos discursos, quando foi nomeado embaixador
mundial do teatro pela Unesco: “Temos a obrigação de inventar outro mundo porque
sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com nossas mãos entrando
em cena na vida e no palco”. O Boal defendeu em seus escritos teóricos, a começar pelo
clássico Teatro do Oprimido, a democratização do teatro, o alcance do teatro aos mais
diversos espaços e grupos sociais, defendeu a ideia de que todos podem fazer teatro, de que
todos podem estar no palco, que este não seria um privilégio apenas de atores formados, e
sobretudo, seguindo a linha do pensamento do alemão Bertolt Brecht, defendeu a noção
do teatro como um espaço para a conscientização, para a formulação de uma crítica sobre
a realidade em busca da transformação. Por isso entrar em cena no palco não é suficiente; é
preciso ir além disso, é preciso estender à vida a motivação para transformar.
Nos meus anos de prática e pesquisa teatral eu tenho me interessado muito em fazer e
também investigar ações teatrais que estejam imbuídas por esses aspectos defendidos pelo
Boal. Pelos eventos artísticos que procuram estar sensíveis à necessidade de abrir brechas,
ou encontrar alternativas, para que a voz de grupos silenciosos ou silenciados possa ser
ouvida, possa ser proferida. Proferida por eles próprios, com a sua versão, sua voz, seu corpo,
histórias contadas a partir de uma perspectiva de dentro para fora, que dispensa mediação.
A pesquisa me permitiu também, e continua permitindo, constatar que, apesar de nós
estarmos vivendo em tempos de “globalização perversa”, como afirma o geógrafo brasileiro
Milton Santos, e, também, como disse o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “tempos
implacáveis, tempos de desengajamento, competição e de desprezo pelos mais fracos”,1
ainda assim a teimosia de muitas ações criativas, corajosas, põe em xeque uma ideologia
fatalista e imobilizante, que tenta nos convencer todos os dias de que nada podemos fazer
sobre a realidade – perversa – em que vivemos.
Esse é o tipo de teatro que tem me interessado, que acontece em inúmeros cantos do país,
1
Marina Henriques
Coutinho é professora e
chefe do Departamento
de Ensino do Teatro da
Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro
(Unirio), doutora em Artes
Cênicas pela Unirio, na
área de Teatro, Educação e
Cultura, atriz e jornalista
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
35
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Marina Henriques Coutinho
na ação de grupos de teatro independentes, de grupos nas periferias, nas favelas, no subúrbio,
incluindo a participação de pessoas comuns, não atores, mas atores também, em espaços fora dos
refletores das salas tradicionais, sem subvenção, mas muito inspirado pela cultura da mudança.
Considerando tudo isso, quando me convidaram para participar desta discussão e eu comecei
a ler os materiais sobre a minissérie Suburbia, senti uma grata surpresa de constatar o interesse da
televisão em se aproximar do universo das camadas populares da nossa sociedade a partir de uma
perspectiva que se empenha em não fazer uma leitura de fora para dentro, mas promover um
canal por meio do qual a voz dessas pessoas possa ser expressa com legitimidade. Está no release:
“A minissérie busca retratar a realidade a partir de um olhar documental, mais próximo do real”.
Agora eu vou fazer um parêntese para entrar em algumas reflexões que eu desenvolvi na
minha tese de doutorado e que talvez possam iluminar essa discussão e estabelecer links com
o assunto da minissérie.
É importante esclarecer que, no caso da minha pesquisa, ela está assumidamente localizada
no território da favela, mas temas como migração, amor, religiosidade, funk, música, festa,
negritude, superação são comuns ao universo do subúrbio e da favela. A minha história com
o teatro e com os jovens da periferia começou no início dos anos 1990, quando eu, bem
jovem, recém-formada em Teatro e em Comunicação, imbuída da sede de mudar o mundo,
criei um projeto de teatro no Complexo da Maré. Essa experiência de dois anos na Maré foi
definitiva, descobri um novo sentido para a minha vida no teatro.
A EXPERIÊNCIA NO COMPLEXO Depois dela, ao longo de dez anos, participei de outras iniciativas,
DA MARÉ FOI DEFINITIVA, DESCOBRI em diferentes espaços do Rio de Janeiro, todas nesse campo que
UM NOVO SENTIDO PARA MINHA se convencionou chamar de “projetos” sociais envolvendo a arte
VIDA NO TEATRO (promovidos pelas organizações não governamentais, fazendo
teatro com jovens).
Não precisou muito tempo para que, além do entusiasmo e afeto que eu dediquei a todas
essas experiências e a todas as pessoas que eu encontrei nesse caminho, eu começasse também
a formular algumas perguntas que, mais tarde, nortearam a pesquisa na universidade: qual
seria o meu papel ou contribuição ali, inserida naquela realidade, tão diferente da minha?
Haveria uma maneira especial de pessoas como eu, artista “de fora” (filha da classe média
carioca, moradora do Leblon), se relacionar com as comunidades? Que fatores teriam
contribuído para a construção de uma imagem que vê a favela como um território à parte
da cidade, nicho da desordem, da carência, da violência? Imagem tão diferente da que
eu enxergava no convívio com aquele espaço e com as pessoas de lá? Quais estratégias
desenvolveram essas comunidades para sobreviver aos problemas estruturais provocados
pela negligência do Estado em garantir às suas populações os bens públicos básicos, como
educação, saúde, segurança? Quis saber por que o contexto da década de 1990 favorecia
um verdadeiro boom do chamado terceiro setor e dos projetos promovidos pelas ONGs,
dos quais eu mesma fazia parte; por que o discurso da “responsabilidade social” ganhou
tanta força nas propagandas das grandes empresas etc. Mas, sobretudo, me indaguei, muitas
vezes, sobre qual deveria ser o papel do teatro ali, qual poderia ser a sua maior contribuição;
que teatro fazer, que teatro colocar em cena?
36
Marina Henriques Coutinho // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Arthur Bispo, Ramon
Francisco, Donatha
Augusto e Wallace Costa,
do grupo Nós do Morro
Globo/Divulgação
Em 2002, após alguns anos de prática, quando ingressei no mestrado da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), o grupo Nós do Morro já era uma referência
entre as práticas artísticas provenientes das comunidades populares da cidade. Na época, o
grupo, que nasceu do resultado do diálogo entre alguns artistas de teatro e jovens moradores
da favela do Vidigal, estava perto de completar 20 anos em plena atividade, a maior parte
desse tempo sem contar com um apoio financeiro estável. O fato de o grupo ter surgido
espontaneamente “dentro” da comunidade e também de ter sobrevivido durante muito tempo
contando apenas com o apoio comunitário eram aspectos que me chamavam atenção. A
história do grupo me atraía talvez por representar um contraponto a algumas experiências que
eu havia vivido nos projetos implementados de “cima para baixo” ou “de fora para dentro”.
Encontrei lá um grupo que criou cena e dramaturgia próprias, para falar à sua comunidade,
transformou os temas do cotidiano da favela em matéria artística, brincou com situações
fantásticas do imaginário “vidigalense”, reverenciou no palco a sua comunidade-mãe. A cena
do Nós do Morro, seja a que revelou o Vidigal como sua personagem protagonista, ou a que
explorou universos distantes, como os de William Shakespeare, trouxe impregnada, no corpo
e na voz dos atores, a “alma vidigalense”. Os processos de criação desenvolvidos pelo Nós
do Morro favoreceram a emersão de uma
cena própria do Vidigal, parida do diálogo
estabelecido entre os artistas e a comunidade.
Constatei no Vidigal a expressão de um
teatro criado pela comunidade. Naquele
momento, o encontro representou para
mim a satisfação de descobrir uma iniciativa
que respondia à dinâmica de que eu estava
à procura: a da comunidade-sujeito. (Além
do Nós do Morro, eu investiguei também a
prática de outros dois grupos, que surgiram
com as mesmas características e que na
época eu considerei que vibravam de acordo
com essa dinâmica da comunidade-sujeito:
a Cia. Marginal e um grupo da Baixada
Fluminense, de Japeri, chamado Código.)
Com isso eu levantei questões centrais para minha tese, que são: quais circunstâncias
favorecem a comunidade/favela para exercer o seu papel como autora dos processos criativos
ou a sua autonomia dentro de um “projeto”; ou que tipo de política estabelecida entre
“agentes externos” e comunidades é capaz de criar uma relação que garanta à comunidade
o seu verdadeiro direito de voz ou, o seu direito de, por meio do teatro, nomear o mundo?
É neste ponto que eu percebo que podemos estabelecer relações mais nítidas entre esta
pesquisa e o assunto da minissérie Suburbia.
Quando eu falo sobre o direito de “por meio do teatro, nomear o mundo”, estou
me referindo a uma premissa da pedagogia freireana. Para Paulo Freire, a colaboração, a
união, a organização e a síntese cultural são elementos que constituem a teoria da ação
37
Globo/AF Rodrigues
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Marina Henriques Coutinho
Alice Coelho, Jennifer
Loiola, Mariana Alves e
Alice Morena interpretam,
respectivamente, Maria
Rosa, Vilma, Regina
e Débora
cultural dialógica, garantem o encontro de sujeitos para a “pronúncia do mundo, para a sua
transformação”. Pronunciar o mundo, ou nomear o mundo, significa devolver ao homem a
sua responsabilidade histórica – o homem como sujeito que elabora o mundo, que emerge
do lugar de mero objeto para assumir o papel de autor crítico e consciente da história.
Ora, o palco pode ser um espaço onde o teatro, por meio da força da narrativa
dramática, estabelece um processo no qual os atores das comunidades se tornam sujeitos
de seu próprio desenvolvimento. O palco como um lugar que favorece a reinvenção da
vida na cena, em que a realidade se transforma em objeto de reflexão e criatividade, um
espaço para a expressão de um novo discurso, de uma outra palavra.
E por que a emersão dessa outra palavra é urgente?
Porque é urgente descolar da imagem da periferia/favela/subúrbio o espectro da anomalia
social ou de “problema”; porque é urgente combater o senso comum que já há longa data
aprisionou a imagem da periferia a um
contexto de desordem e à ideia da carência,
do caos, como nos fala o sociólogo Jailson de
Souza; porque é urgente afirmar que os mais
de cem anos de história das favelas cariocas
são anos de conquistas; em que a capacidade
de luta, a solidariedade, a criatividade dos
moradores renderam soluções, melhorias
na urbanização, moradias, saneamento... e
mostrar, sobretudo, que no espaço da favela/
do subúrbio/periferia sempre se produziu,
como afirma Alba Zaluar: “O que de mais
original se criou culturalmente nesta cidade:
o samba, a escola de samba, o bloco de
carnaval, o pagode do fundo de quintal. [...] Onde se escreveram livros, onde se compõem
versos belíssimos ainda não musicados, onde se montam peças de teatro”.2
O fenômeno teatral que eu persegui, que me interessava como pesquisadora, foi
aquele que, representava, expressava, as classes populares por elas mesmas. Grupos que
contribuíam para a construção de um outro imaginário social sobre esses espaços.
Na internet há um vídeo da escritora africana Chimamanda Adichie chamado O
perigo da história única,3 que está circulando bastante pelo meio universitário, no qual
a autora, em um discurso brilhante, conta como, quando ela começou a escrever, bem
cedo, retratou as personagens conforme havia lido nos livros de história da literatura
ocidental: brancos e de olhos azuis que brincavam na neve e comiam maçã, muito longe
da realidade da Nigéria, mostrando como somos vulneráveis às histórias contadas,
especialmente as crianças. E, quando ela descobriu os livros africanos, percebeu que
2
ALVITO, Marcos; ZALUAR, Alba. Um século de favela. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
3
Link para o vídeo na internet: http://bit.ly/VZFc7s.
38
Marina Henriques Coutinho // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
pessoas como ela também poderiam existir na literatura. Anos mais tarde, quando ela
estava na universidade, nos Estados Unidos, ela percebeu, no discurso de uma colega e
de um professor, que eles sofriam do mal que ela chamou de “perigo da história única”:
eles assimilaram uma história única sobre a África, a África como o lugar de lindos
animais, paisagens, pessoas incompreensíveis, guerras, gente morrendo de pobreza e
aids, incapazes de falar por eles mesmos, e esperando serem salvos por um estrangeiro
branco e gentil – a história única que a literatura ocidental difundiu.
Para saber mais:
Então eu pergunto: e sobre a periferia, o subúrbio e as favelas do Rio de Janeiro,
será que também não assimilamos uma história única? E como ela é disseminada? Que
canais nos fazem crer nela?
COUTINHO,
Marina Henriques.
A favela como palco e
personagem. Petrópolis,
RJ: DP et Alii; Rio de
Janeiro: Faperj, 2012
Quando eu leio os depoimentos no Museu da Pessoa sobre as etapas de criação do
Suburbia, sobre o desejo de oferecer ao espectador a sensação de estar diante de histórias
reais, sobre a inclusão dos negros (90% elenco, salve!), sobre a aproximação da história
de vida dos atores (não atores, aliás) com a história das personagens, a vontade de criar
a “sensação de verdade”, ou quando a Tatiana Tibúrcio afirma que a minissérie “dá a
oportunidade de a gente se representar como é e como queremos ser representados”,
(Ver Debate, pág. 74) eu penso que essa obra está fortemente imbuída pelo desejo de,
por meio da teledramaturgia (assim como nos grupos que pesquisei no teatro), garantir
a expressão dessas vozes, deixar emergir uma outra palavra, ou uma outra história.
Mas o que não podemos perder de vista, ao que devemos estar atentos, é que, ao
produzir ou colaborar ou participar da produção de obras (estejam elas no teatro, na dança,
na música, no cinema ou na televisão); é que, se existe a possibilidade da comunidade/
periferia/subúrbio como sujeito (aquele que profere o seu próprio discurso, que conta a
sua própria história), pode existir também o risco de a comunidade/periferia/subúrbio
como objeto (aquele que parece proferir seu discurso que na verdade não é o seu; trata-se
de uma voz simulada). E que, ao contrário de contribuir para uma mudança de percepção
sobre esses espaços, acaba reforçando os estereótipos ou o estigma.
É preciso assumir a atitude investigativa, perguntadora, de que nos fala Bertolt
Brecht: quem vai contar a história, por quê, como e com que intenções?
BOAL, Augusto.
Teatro do Oprimido e
outras poéticas políticas.
Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira,
1980
FREIRE, Paulo.
Pedagogia do oprimido.
Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987
FREIRE, Paulo.
Ação cultural para a
liberdade e outros escritos.
Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1982
SILVA, Jailson de Souza;
BARBOSA, Jorge Luiz.
Favela, alegria e dor na
cidade. Rio de Janeiro:
Senac Rio, 2005
De minha parte, estive e continuo interessada nas ações que incidem sobre a
estrutura social não como forma de mantê-la como está, mas no sentido de modificá-la.
Em produções artísticas que permitam que os canais da palavra, da imagem e do som
falem com independência, por si próprios, livres da “castração estética” promovida pela
narrativa dominante, que, como nos lembra Augusto Boal em A estética do oprimido,
vulnerabiliza a cidadania obrigando-a “a obedecer mensagens imperativas da mídia, da
cátedra e do palanque, do púlpito e de todos os sargentos”.4 Interessam-me produções
que revelem histórias escondidas, que ainda não tiveram a chance de ser contadas com
a palavra e no corpo de seus verdadeiros sujeitos, alterando a nossa maneira de ver e
compreender o mundo.
4
BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Reflexões errantes sobre o pensamento do ponto de vista estético e
não científico. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
39
Globo/Divulgação
artigo
LUZES E CORES QUE TRANSCENDEM A VÃ SOCIOLOGIA
O compromisso formal articula-se, em Suburbia,
com uma leitura reconstrutiva da sociedade carioca,
representada pela poesia dos criadores da série
O subúrbio que aparece na minissérie criada por Luiz Fernando
Carvalho e Paulo Lins, na opinião do antropólogo e escritor Luiz
Eduardo Soares, exibe uma explosão de alegria, intensidade, luzes
e cores, esbanjando vitalidade. É o triunfo da “fantasia de uma
civilização fraterna e livre nos trópicos”, que nem por isso está livre do
desejo, da violência, da morte e da vingança. Soares analisa, no artigo
a seguir, o rigor estético, a linguagem e a poesia de Suburbia, nas
interpretações que surgem por trás de seu fio narrativo mais evidente.
40
Luiz Eduardo Soares // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
LINGUAGEM
SUBURBIA E A
TRANSCRIAÇÃO DO
SUBÚRBIO CARIOCA1
Luiz Eduardo Soares, da Uerj
Luiz Fernando Carvalho, cuja ousadia estética foi amplamente reconhecida, realizou obras
marcantes no cinema e na TV. O compromisso formal articula-se, na série Suburbia, com uma
leitura reconstrutiva da sociedade carioca, promovendo um resultado soberbo. O roteiro foi
escrito pelo diretor com Paulo Lins e Carla Madeira. Os atores e atrizes, quase todos negros,
são descobertas notáveis, que jogam por música com alguns talentos veteranos.
De Cidade de Deus (1997) a Desde que o samba é samba (2012), Paulo Lins se dedica a
mesclar observação etnográfica com elaboração narrativa ficcional. Sua experiência biográfica
enriquece a etnografia, transmitindo ao olhar reflexivo um sabor testemunhal, ao mesmo
tempo que confere ao testemunho densidade analítica. Por isso, seus escritos são tão ricos
e fortes. Por isso, sua linguagem promove empatia sem perder a acuidade crítica, jamais.
Para identificar algumas características de Suburbia, seria recomendável inscrevê-la
no conjunto da obra de Carvalho. Na impossibilidade de fazê-lo aqui, contento-me em
comparar a nova série com Os Maias (2001),2 na qual a verticalidade combina-se com
moderação, prudência, simetria clássica, harmonia: espaços e tempos compostos na
respiração do Antigo Regime português; um passado vetusto, austero, profundo. Na
narrativa de Eça de Queirós, adaptada com grande sensibilidade por Maria Adelaide
Amaral, calibrada e recriada magnificamente por Carvalho e um plantel de técnicos e atores
brilhantes, a natureza resigna-se, sem desmesuras e desassossegos, domesticada, em um
mundo aristocrático e cultivado, sem arestas.
Porém, a equação deixa um resto e um rastro de cinzas. O resto que resiste à integração harmônica na unidade da equação, o resíduo que sobra da cosmologia plasticamente
1
Luiz Eduardo Soares é
professor da Universidade
do Estado do Rio de
Janeiro (Uerj). Formado
em Literatura, é mestre
em Antropologia e doutor
em Ciência Política, com
pós-doutorado em Filosofia
Política. Tem 20 livros
publicados, entre eles:
Tudo ou Nada: a história do
brasileiro preso em Londres
por associação ao tráfico de
duas toneladas de cocaína
(Nova Fronteira, 2012).
Foi secretário nacional de
Segurança Pública (2003) e
coordenador de Segurança,
Justiça e Cidadania do
Estado do Rio de Janeiro
(1999-2000)
Esta é a versão integral do artigo publicado no Segundo Caderno de O Globo, em 15 de novembro de 2012.
Foi apresentada em seminário realizado na ECA-USP, em 13 de novembro de 2012.
2
Minissérie exibida em 44 capítulos, em 2001, pela Globo, e lançada em DVD em 2004.
41
Globo/Divulgação
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Luiz Eduardo Soares
Cena da minissérie
Os Maias, de 2001, baseada
em texto de Eça de Queirós
construída, o incontido, o impertinente,
a desproporção, o assimétrico, enfim, atua
como um signo excedente, que arrebenta
portas, paredes e regras, e corrói, com a voracidade de traças e ratos, o nobre palacete.
O significante selvagem na cristaleira é o
desejo, sob a forma do sexo, encarnado na
mulher sem travas, infiltrado no sangue das
gerações, inscrito no destino dos homens.
Por isso, a serenidade pastoral é rasgada pela
tragédia, pelo deslocamento dramático de
placas tectônicas, pela dor torrencial, pela
paixão derramada. Não houvesse a arquitetura de Carvalho equilibrado tão minuciosamente o jogo entre os polos antagônicos da ordem (cosmológica, natural, social, linguística) e do excesso (a paixão, a sensualidade, o corpo rompendo máscaras e múltiplas camadas
de vestes suntuosas), a série Os Maias descambaria para um novelão kitsh. Como queríamos
demonstrar: arquitetura é forma.
Em Suburbia, a poesia dos criadores captura a vitalidade da Zona Norte e flagra a urgência
de uma sociedade que ferve no fogo do medo e do desejo, no alvoroço das possibilidades,
na fricção das contradições, longe do olhar bovino da casa-grande, que acha feio o que não
é clichê, que decalca o futuro nos moldes do passado idealizado, que discrimina e não se crê
racista, que ainda sonha o velho sonho americano da prosperidade ilimitada, cujo prazo de
validade esgotou-se até mesmo na matriz.
Quando as cores do subúrbio carioca entram em cena pela primeira vez, no primeiro
episódio de Suburbia, a luz comove antes que se diga uma palavra, derramando Áfricas e
Mississippis imemoriais em nossa mais remota sensibilidade. No segundo episódio, essa
mesma luz invade nossa praia interior como uma onda irresistível de empatia calorosa, aquém
de conceitos e significados. Parece triunfar a fantasia de uma civilização fraterna e livre nos
trópicos, regida por Eros, no embalo de todos os ritmos e sons, credos e cores. Civilização
idealizada da qual sabemos pouco na vida real, embora sua imagem nos interpele. Se os
subúrbios norte-americanos encenaram o paraíso da classe média, que calculava a felicidade
pela métrica fetichista do consumo, os subúrbios cariocas armam palcos para múltiplas
utopias, das mais torpes e redundantes às mais belas e generosas. Nossos subúrbios entram
em cena irradiando a voltagem indomesticável da força vital de seres humanos individuais
e incomparáveis, nas tramas complexas de suas relações. Enigmas e potência estão ali,
portanto, o que cancela ilusões, porque, havendo potência criativa, liberdade e diversidade,
é inevitável que bem e mal estejam presentes, e que seja plausível a hipótese de que o futuro
nasça envenenado – como se poderá atestar sobretudo a partir do terceiro capítulo. Mas a
despeito do veneno, quanta vitalidade.
A intensidade é a chave e o sentido, ainda que indizível. Não pode ser representada. Mas
pode ser evocada, sensibilizando-se o olhar, encharcando a alma do espectador com a luz e
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Luiz Eduardo Soares // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Desde a entrada em cena hipnótica do subúrbio, no primeiro episódio, até a liquidação
das resistências de Vera ao amor entre Cleiton e Conceição, no segundo, a imagem oscila
entre a estridência de um tom metálico e rutilante, hiper-realista, e a suavidade da aquarela
impressionista, quase abstrata, tão forte a impressão de que não há contornos, apenas a emoção
de compartilhar um momento em um território. Como costuma ocorrer na estética rigorosa de
Carvalho, as escolhas não são arbitrárias. Observe-se a chegada da turma agressiva ao baile funk,
no segundo episódio. A estridência das cores
esmaltadas do automóvel, da pintura dos
olhos e dos adereços do figurino de Jéssica: a
realidade superlativa nega a própria solidez e
desmancha no ar. Atente-se para o contraste
visual com a festa na praia. A variação não é
aleatória, assim como é formalmente precisa
a construção dos diálogos e das polifonias.
Um exemplo brilhante é a intervenção da
voz em off de Cleiton, inaugurando um
diálogo confessional com Ceicinha, mas que
soa, inicialmente, como flashback discursivo
convencional, contando a história familiar do
rapaz para explicar seu desejo de vingança. A
edição surpreendente corta a sequência narrativa para o meio da conversa entre os namorados
e redefine o que se viu, emprestando profundidade e dinamismo às cenas finais. A educação
sentimental também é nossa. Em Suburbia, o alfabeto é sensorial.
Antes de chegar à cidade, Conceição, ainda criança, habita a zona rural degradada,
numa família miserável, que sobrevive produzindo carvão, isto é, produzindo a degradação
ambiental e de si mesma. O campo não se opõe à cidade por virtudes idílicas. O único
patrimônio valioso da família são os laços de afeto, além do cavalo branco e cego que o pai
teima em sacrificar, mas acaba salvo pela menina. O animal rosiano vê fundo na escuridão
daqueles tempos e antevê a noite do futuro, mas oferece o garbo fiel de seu galope e abre
caminhos à sua jovem protetora. Ele a leva ao trem que a conduzirá para longe, para depois
das fronteiras do mundo cerrado daquele sertão mineiro, cuja natureza parece a mortalha
de seu povo escasso, e figura como simples arena para o exercício do princípio de corrosão.
A cegueira do cavalo veloz que vê no escuro, e além, remete ao cinema e à TV, com sua
intrínseca ambivalência, exibindo e ocultando, desnudando e mascarando. A cegueira
do animal atua, na trama narrativa, como um oráculo, um alerta e um guia, enquanto
Globo/Divulgação
a abertura do espectro das cores, com suas modulações quentes e suas nuances. Intensidade
também se experimenta quando a música esculpe o tempo, no contraponto da imagem.
Pode também ser evocada, mergulhando-se palavras, regras, conflitos e emoções no piscinão de Ramos, aquele oceano retrátil que, no segundo episódio, verga a flecha do ódio.
A intensidade, por sua ambivalência constitutiva, por sua natural amoralidade, não anula:
dobra códigos morais, disciplina, leis, ritos, fronteiras, corpos e papéis. E o passo já é dança.
A amizade, quase amor. O convívio beira a guerra.
Antropólogo destaca
explosão de emoções
e conflitos em cena de
Suburbia gravada no
piscinão de Ramos
43
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Luiz Eduardo Soares
migramos ao lado da personagem para uma sociedade promissora e cruel, doce e selvagem.
O lugar estrutural do oráculo será ocupado por Mãe Bia, que “lê pensamento”.
A cidade do Rio de Janeiro receberá a protagonista com pedras nas mãos e sangue nos
olhos, as mesmas que ela atira no cavalo para que ele desista de correr ao lado do trem. A
ordem natural das coisas não permite que o cavalo traga o passado e a lógica do sertão para
o futuro que a espera. De sua parte, a cidade não permite que a personagem seja assimilada
antes de submetê-la a um ritual de passagem e ao rosário de escarificações.
Globo/Divulgação
Cena de baile funk, em
Suburbia, onde grupos
rivais se encontram
44
A intervenção maternal de uma intelectual exporá as contradições brasileiras mais
agudas, materializadas na perversa instituição que é o emprego doméstico. A proteção
maternal traz consigo seu avesso. A sombra da generosidade é o cativeiro inconsciente de si.
A marca ostensiva da violência virá com o estupro dentro de casa. O sexo que abre portas
para a mulher belíssima cumpre papel de algoz, bloqueando sua passagem e aniquilando
perspectivas. Não é o sexo a fonte da violência, por óbvio, mas a cultura machista, associada
ao racismo e ao preconceito social. Contudo, sexo remete a natureza, ainda que se realize
no campo da cultura. E a natureza está contaminada pelo princípio da corrosão, desde a
origem carvoeira. A beleza é sempre a iminência da ruína, ainda que seja sublime e aponte
para a redenção. Assim como a sociabilidade arejada e ofuscante do subúrbio, morada de
contradições e antagonismos, cujo destino não se resolve. Permanece aberto à intervenção
de poetas cidadãos e cidadãos poetas.
As contradições revolvem o princípio de realidade, subvertendo expectativas naturalistas.
Na mesma chave, como se estivéssemos ante o efeito lógico da homologia estrutural, a paixão
de Cleiton por Conceição transborda os limites do respeito pela dignidade feminina, por sua
integridade física, por suas referências morais, por sua vontade, convertendo-se em abuso,
violação, tentativa de estupro. O amor se degrada em violência e ressentimento. A delicada teia
de relações afetivas, familiares e comunitárias, tecida ao longo dos primeiros episódios, é rasgada
pelo desatino narcisista de Cleiton, tomado pelo espírito da vendetta. Possuído pela obsessão
de vingar o irmão assassinado, desesperado por perder o amor de Conceição, angustiado por
perder-se de seu próprio caminho, ele assume o comando do tráfico em sua comunidade
e alça voo onipotente ao Olimpo do poder
local – glória rasa e efêmera, embalada por
armas do crime e a embriaguês das drogas.
Exibe sem pudor as joias de seu tesouro, que
inclui nova e exuberante conquista erótica.
Busca provocar ciúme em Ceicinha e inveja
em seus irmãos. Trafega numa zona azul
metálica entre o paraíso lisérgico do delírio
arrogante e as trevas vertiginosas de uma
noite irremediável. Afasta-se dos cálculos
utilitários, das estratégias bélicas, e mergulha
no campo semionírico de fantasias, enquanto
sua mãe prossegue em marcha batida para
o desfiladeiro, enxarcando-se de cachaça.
Luiz Eduardo Soares // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
A remissão à história do cinema abre um
panorama paralelo à trilha da narrativa –
que apenas na aparência era até então linear –, evocando a autonomia da linguagem mítica
e a soberania do imaginário, esferas em que se jogam os jogos decisivos da vida, movendo-se
os espectros da finitude. Os temas que circulam na esfera evocada pelas cenas – cujo realismo
poroso anuncia sua transposição criativa – incluem desejo, violência, morte, vingança, hybris,
a eternidade, o sagrado, a mãe, a mulher, o pai ausente, a construção da masculinidade entre
escombros, humilhações, desigualdades, desamparo, a resistente e persistente fraternidade, e as
asas da liberdade. O subúrbio torna-se palco para a grande tragédia atemporal, encarnada por
personagens prosaicos do tráfico. Por isso, não surpreende que o protagonista morra e renasça das
águas, as mesmas que inundam o barraco da mãe, as mesmas que antecedem o nascimento, no
rompimento da bolsa uterina, as mesmas que, no dilúvio doméstico, afogam a mãe no vício que
a consome e a aprisiona à falta traumática do filho. Renascido e batizado pelo reconhecimento
materno, abençoado pelo privilégio da redenção, herói destinado a reaver o lugar perdido, graças
à dádiva suprema, o perdão da mulher amada: este é Cleiton, de volta à rotina disciplinada do
subúrbio, esse lugar tão intenso e improvável quanto o cosmo homérico.
Globo/Divulgação
O filho que perdeu roubou-lhe o desejo de
viver. Ela parece disposta a beber até morrer.
Cleiton reproduz o destino infausto do irmão,
disputando, assim, o afeto materno. Enfrenta
a polícia em duelo que remete a cenas
memoráveis e icônicas de Glauber Rocha
(Antônio das Mortes circundado pela câmera,
em Deus e o diabo na terra do sol), Ruy Guerra
(o carro dando voltas ao redor de Norma
Benguel nua, na praia noturna e deserta, em
Os cafajestes) e Francis Ford Coppola (em
Rumble fish – O selvagem da motocicleta).
Adereços e maquiagem
da personagem Jéssica
são exemplos de escolhas
estéticas não arbitrárias
do diretor
Tom Jobim dizia que o Brasil não é para principiantes. Luiz Fernando Carvalho e Paulo
Lins nos mostram que o subúrbio não se esgota na crônica jornalística, transcende a vã
sociologia e se comunica com o território épico de fantasias arquetípicas.
Apanhar a complexidade móvel de Suburbia exige olhos bem abertos e ouvidos fechados
aos cantos de sereia do fio narrativo mais evidente. É indispensável identificar o ponto
em que ele se bifurca, conectando-se ao fio terra. Por essa linha somos conduzidos ao
núcleo nervoso do labirinto, cujo sentido se decide pela supremacia da forma, porque é o
rigor estético que articula as múltiplas dimensões, ecoando a tensão insolúvel entre polos
antagônicos e identificando a potência irruptiva subterrânea na cartografia carioca. Em
poucas palavras: o que, na tradição portuguesa que a saga dos Maias representa, era ruptura
da harmonia contida que sustentava a velha ordem aristocrática, aqui, em Suburbia, é ritmo
e linguagem. O excesso incorporado é matriz de nossa sociabilidade popular, perdendo seu
sentido original, portanto, e se convertendo em intensidade, marca e valor culturais que o
rigor estético de Suburbia nos deixa ver e sentir.
45
artigo
DRAMATURGIA, DA ESTETIZAÇÃO AO REALISMO
Tanto o cinema quanto outras artes misturam-se hoje
na criação de produtos audiovisuais de cunho autoral
que inovam a linguagem televisiva
A televisão brasileira tem revelado novas tendências e caminhos da
produção audiovisual nacional. Da denúncia social ao melodrama,
do reality show ao realismo, ela trouxe, nos últimos tempos, obras
que rompem com processos tradicionais, exigem uma nova postura
do telespectador e abrem espaço para novas reflexões.
Renato Luiz Pucci Jr., especialista em Comunicação, analisa, com
base na obra recente do diretor Luiz Fernando Carvalho, esses novos
caminhos da ficção televisiva brasileira.
46
Renato Luiz Pucci Jr. // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
AUDIOVISUAL
UMA NOVA
EXPERIMENTAÇÃO
NA TV BRASILEIRA
Renato Luiz Pucci Jr., da Universidade Anhembi Morumbi
A ficção televisiva brasileira está em rápido processo de transformação, rumo a um paradigma
narrativo e de composição audiovisual imprevisível até há pouco mais de uma década, quando
a crítica e os estudos acadêmicos não davam mostras de que se pudesse distanciar muito do que
até então se fazia. As minisséries dirigidas por Luiz Fernando Carvalho são casos privilegiados
para detectar o processo. Hoje é dia de Maria (2005), A Pedra do Reino (2007) e Capitu (2008)
romperam com o prescrito em manuais de realização televisiva, quase sempre aristotélicos
e narrativamente clássicos. Não que essas minisséries sejam os únicos produtos a destoar,
mas são os frutos mais bem-sucedidos da decantação de experiências e trocas entre televisão,
cinema e outras artes, midiáticas ou não. Em conjunto com produtos de outros realizadores,
inclusive de telenovelas, as minisséries de Luiz Fernando Carvalho abrem possibilidades antes
negligenciadas. Suburbia é mais um passo nesse sentido.
A análise de produtos audiovisuais precisa ter em vista o contexto de produção e a recepção,
mas principalmente não deve partir do pressuposto de que os produtos da televisão sejam
objetos claros e distintos, nem, muito menos, de que sejam similares a gotas d’água despejadas
pela torneira do fluxo televisivo, como Raymond Williams descreveu a produção de TV num
célebre texto dos anos 1970. Tanto a sensação de que o produto já está conhecido, apenas
porque foi visto, quanto a concepção de que tudo se iguala num universo em que o importante
é somente a grade de programação deixam uma lacuna cognitiva que não será preenchida
senão por procedimentos analíticos. O professor Arlindo Machado, que há tempos defende
que a televisão deve ser levada a sério, diz que, para entender melhor o que acontece em todos
os âmbitos da realização televisiva, é preciso fazer análises.1 A partir delas, pode-se procurar
a conexão entre produções particulares e outros contextos, inclusive aquele proposto pela
temática deste caderno.
Renato Luiz Pucci Jr.
é mestre e doutor em
Ciências da Comunicação
pela Universidade de São
Paulo (USP) e professor do
programa de pós-graduação
em Comunicação da
Universidade Anhembi
Morumbi. Desde 2010, é
coordenador do seminário
temático Televisão:
Formas Audiovisuais de
Ficção e Documentário,
na Sociedade Brasileira
de Estudos de Cinema e
Audiovisual (Socine)
Antes mesmo da exibição do segundo capítulo de Suburbia, pontos relevantes foram
levantados, inclusive na imprensa e em blogs. Em particular, interessam certas caracterizações
1
MACHADO, Arlindo; VÉLEZ, Marta L. Questões metodológicas relacionadas com a análise de televisão.
E-Compós, v. 8, 2007. Disponível em: http://bit.ly/YdnFZ3.
47
Divulgação
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Renato Luiz Pucci Jr.
Cena do filme
Lavoura arcaica
em que se afirma que, em Suburbia, Luiz Fernando Carvalho abandonou sua habitual
estilização e se entregou ao realismo.
Não teria sido a primeira grande mudança na produção de Carvalho. Ao menos desde
Lavoura arcaica, o longa-metragem de 2001, houve experiências em diferentes registros
estilísticos. Há quem tudo tente explicar por
meio da figura do autor, seja uma suposta
repetição de temas e de estilo (como se
atribui aos grandes autores do cinema), seja
a alternância dos mesmos componentes
(temas e estilo), porque seria privilégio do
autor mudar quando bem entendesse. Essa
posição não parece muito convincente. Há
tendências de grupo na produção cultural,
não apenas televisiva, e elas podem ser
identificadas e nomeadas. Por esse motivo, é
possível dizer que Lavoura arcaica é um filme
associável ao que foi chamado de art cinema,
por David Bordwell, que identificou, em
filmes como os de Michelangelo Antonioni
e Ingmar Bergman, peculiaridades como a
“ambiguidade controlada”, também presente
em Lavoura arcaica.2
Hoje é dia de Maria é um caso exemplar de televisão pós-modernista, com estetização,
rupturas e, ao mesmo tempo, intensa procura de comunicação com o grande público
por meio da oralidade. Tudo isso era alçado a um patamar inédito em produções pós-modernistas na TV brasileira, para além de realizações de Guel Arraes e Jorge Furtado,
como Cena aberta (2003). Capitu, por sua vez, levou ainda mais adiante o pós-modernismo
experimentado em Hoje é dia de Maria.3
A Pedra do Reino se orientava por estruturas de agressão, isto é, rupturas de expectativas
do público habituado à narração mais tradicional.4 Entre parênteses: ainda assim, A Pedra
do Reino teve um público considerável, uma audiência espantosamente elevada para uma
narrativa de tendência modernista.
Em suma, o longa-metragem e as minisséries possuem traços diferenciados entre si. São
resultado de diferentes propostas estéticas.
2
PUCCI JR., Renato Luiz. Moderna Lavoura Arcaica. Contracampo, Universidade Federal Fluminense,
Niterói, n. 13, p. 95-111, 2. sem. 2005.
3
PUCCI JR., Renato Luiz. Adaptação televisiva e esquemas cognitivos. In: PUCCI JR., R. L.; BORGES,
G.; SOBRINHO, G. A. (Org.). Televisão: formas audiovisuais de ficção e documentário. São Paulo: Socine;
Campinas: Unicamp; Faro: Universidade do Algarve, 2012. p. 35-42. Disponível em: http://bit.ly/Uomz0z.
4
BURCH, Noël. Práxis do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 149-163.
48
Renato Luiz Pucci Jr. // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
A esses títulos, Suburbia traz uma nova mudança de rumo. O que parece mais
interessante, do ponto de vista aqui desenvolvido, é que constitua o produto de duas
tendências ficcionais heterogêneas.
Maria e Conceição
Estatueta de Nossa Senhora
Aparecida, em Suburbia
Globo/Divulgação
Existe muito de Hoje é dia de Maria já no primeiro capítulo de Suburbia. A primeira
imagem, Conceição orando diante do altar caseiro, remonta a cenas da primeira jornada
[primeira temporada da série exibida em 2005], em que Maria fazia o mesmo. A menina
Conceição, o seu irmão e os pais trabalham em fornos de carvão, como as crianças
carvoeiras da segunda jornada de Hoje é dia de Maria. Em Suburbia, a constituição do
espaço dos fornos poderia ter sido baseada nas soluções fake daquela minissérie, o que
não aconteceu; mas também não possui um desenho que pudesse ser chamado de realista.
Em conjunto com a exposição de condições subumanas de vida, há um clima de limbo
naquelas cenas.
O trecho em que o pai traz a égua cega para sacrificá-la é inicialmente enquadrado
pelas frestas de uma parede de madeira, com a câmera oscilante. O que se segue, com a
menina a tentar impedir o pai de dar o tiro, não é um acontecimento trivial. Escuta-se
o animal relinchar e o vento soprando forte, com a poeira e a fuligem se levantando por
todo lado, entre os personagens, em contraste com o céu azul e nuvens brancas. Há planos
curtos, de menos de um segundo, numa edição excepcionalmente rápida. Os personagens
são vistos em câmera baixa, engrandecidos contra o céu. Seguem-se planos de detalhe de
olhos humanos e do olho esbranquiçado
do animal; a luz do sol atravessa o gatilho
da arma e atinge a câmera por uma fração
de segundo. O ambiente está mais próximo
da minissérie Grande sertão: veredas (Walter
Avancini, 1985) ou do filme Estamira
(Marcos Prado, 2006), ambos com cenas
repletas de conotações sobrenaturais,
devido à possível existência do demônio
ou pela mente maravilhosa e perturbada
da protagonista daquele documentário.
No início de Suburbia, o problema social
pode ser concreto, mas a sua configuração
se estabelece em um espaço em que as
coordenadas históricas são apagadas para
dar lugar a uma intensa espiritualização.
A mãe de Conceição é a personagem que faz a mediação entre a vida familiar e o além:
ela reza aos brados pela vida da filha após a explosão num dos fornos; com o terço à mão,
dá a estatueta da santinha à filha.
As cenas do galope da égua, que só enxerga à noite, da explosão (que ocorre com o céu
claro e chuva, ao som de um inexplicável sino) e a da fuga da garota para o Rio de Janeiro
49
Globo/Divulgação
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Renato Luiz Pucci Jr.
Conceição em cena da
lanchonete, no capítulo
inicial da minissérie
(primeiro na égua, depois no trem) são
todas marcadas pela mesma configuração
pouco natural, que remete a histórias
maravilhosas.
O Rio de Janeiro poderia aparecer em
uma composição mais tradicional, pois a
menina deixou aquele espaço fantástico;
não é o que acontece, ao menos a princípio.
Diga-se que, para Conceição, o Rio de
Janeiro é o lugar mítico por excelência, a
cidade do “pão com açúcar”.
Conceição chega em pleno Carnaval,
com gente fantasiada e música dentro do
trem. Na cena em que Conceição toma a
água na lanchonete da estação, persiste o
esquema em que prevalece o fabuloso sobre
o cotidiano: a câmera fica por trás do vidro da lanchonete, e as letras vermelhas nele
pintadas parecem dançar à volta do corpo da menina. Conceição chegou à cidade grande,
como fez Maria no início da segunda jornada, com a diferença de que, em vez de entrar
em uma cidade europeizada dos anos 1920, inclusive com um cenário urbano proveniente
de filmes daquela época, como Metrópolis (Fritz Lang, 1926), Conceição penetra em um
mundo conhecido dos telespectadores.
Rio de Janeiro
A ambientação se modifica quando a história passa às ruas do Rio de Janeiro. Já na
sequência em que as crianças assaltam o casal de turistas, são perseguidas pela polícia e
Conceição é detida injustamente, torna-se visível um traço realista.
Segundo o professor Fernando Andacht, pesquisador de televisão e professor da
Universidade de Ottawa, no Canadá, há três tendências de realismo televisivo:
1) o reality show, que ele entende como um caso de “index-appeal”, o registro minucioso
de reações fisiológicas surgidas na ordem de interação entre os participantes vigiados;
2) o melorrealismo, típico das telenovelas, em que elementos do mundo real são
incrustrados na história, a fim de lhes dar alguma credibilidade;
3) e o telerrealismo, que ele exemplifica com episódios do seriado Cidade dos homens,
em que o tratamento narrativo-estético dos índices de realidade produz um acréscimo de
complexidade geral. Diz o autor que essa tendência exige uma percepção intensa do público,
a classe de apreciação estética usualmente reservada ao cinema de qualidade.5
Andacht acrescenta que, ao contrário do que foi lido em críticas a Cidade dos homens,
5
50
ANDACHT, Fernando. A paisagem dos índices dúbios: Cidade dos homens e o tele-realismo brasileiro
no começo do século XXI. In: BORGES, Gabriela; REIA-BAPTISTA, Vítor (Org.). Discursos e práticas de
qualidade na televisão. Lisboa: Horizonte, 2008. p. 239-256.
não há um déficit de realidade naquelas histórias dos meninos na favela. O efeito de real foi
obtido com a integração homogênea dos índices do dia a dia da favela na trama ficcional. Em
resumo, enquanto o ambiente e a geografia de muitas telenovelas poderiam ser modificados,
sem prejuízo significativo para a história (a novela Avenida Brasil podia ser feita em São
Paulo, por exemplo), trocar por outro ambiente a favela daqueles episódios de Cidade dos
homens destruiria as histórias contadas.
A explicação tem algo da tese de realismo formulada por um dos maiores críticos de
cinema, André Bazin, que prescrevia atores não profissionais, gravações nos próprios locais,
e não em estúdios ou em qualquer lugar, a fim de alcançar o realismo fílmico.6
Em parte, Suburbia adere ao telerrealismo. De fato, é uma novidade nas minisséries de
Luiz Fernando Carvalho.
Não é difícil que venha à mente uma
explicação que consta nos créditos da série:
Paulo Lins, coautor do roteiro.
Duas palavras sobre sua mais célebre
realização: o livro Cidade de Deus. Mesmo
quando da notória polêmica em torno
do filme de Fernando Meirelles, não há
referências de que o Rio de Janeiro do livro
de Paulo Lins teria sido falseado, estetizado
ou cosmetizado. Nele existe uma proposta
de fundo realista, de denúncia social, sem
amenizar nada.
O estilo de Paulo Lins é intenso e
repleto de referências a um universo cruel,
materializado na incalculável quantidade
de choques violentos entre indivíduos e
gangues, em gerações de bandidos e vítimas. É um estado de guerra, que poderia ilustrar
aquele imaginado pelo filósofo Thomas Hobbes, em Leviatã. No mundo ali representado, o
“homem é o lobo do homem”.
A linguagem dos personagens é popular, a partir do conhecimento do autor sobre o meio
representado. Pode-se supor que a força da narração, somada a esse conhecimento da expressividade
do povo e de sua vida, tenha propiciado o sucesso do livro e sua adaptação para o cinema.
Globo/Divulgação
Renato Luiz Pucci Jr. // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Cena da minissérie Cidade
dos homens, analisada por
pesquisador no Canadá
Melodrama e subúrbio
Ressalte-se que não há pura e simples adesão de Suburbia ao telerrealismo.
Teria sido cômodo fazer a história transcorrer na favela, com sua verticalização e
claustrofobia, porque a isso os espectadores estão bem acostumados. Em Suburbia, nas
cenas em Madureira e adjacências, há horizontalidade e espaços amplos nas ruas ou mesmo
6
Bazin, André. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 272-275.
51
Globo/Divulgação
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Renato Luiz Pucci Jr.
Cena da minissérie
Hoje é dia de Maria
no quintal e interior da casa. A linguagem dos personagens lhes é peculiar, assim como
figurinos, mobília, danças. Os atores não se encaixam no atual padrão da Globo. Percebe-se
a busca do raro “minério da autenticidade”, como escreveu Marshall Berman, em Tudo que
é sólido desmancha no ar.
É possível que esses aspectos de Suburbia satisfizessem o cineasta Jean-Luc Godard, que
um dia protestou contra a falta de autenticidade, realismo e verossimilhança do filme Orfeu
do Carnaval (1959). Godard conhecia o Rio de Janeiro e sabia do que falava: deu então
exemplos do que inexistia no filme de Marcel Camus, mas que era comum nas ruas do Rio.7
Não é necessário insistir na problemática da autenticidade, apenas destacar que essa
característica é antitética ao fake, no sentido de explicitamente artificial, característica das
minisséries anteriores de Luiz Fernando Carvalho.
No entanto, ainda que muito atenuado,
o traço artificioso de Hoje é dia de Maria
existe em Suburbia, a começar pelo
tratamento do eixo melodramático. É
clara a intertextualidade de Suburbia com
histórias novecentistas em que a pureza se
encontrava ameaçada de violação sexual.
Só no primeiro capítulo de Suburbia, esse
perigo ocorre duas vezes. Haverá outras,
a par de uma defesa intransigente da
virgindade pela protagonista.
Uma infinidade de elementos discretos
produz um clima especial: a câmera a
espreitar na casa de Vera, mesmo em
uma conversa amigável e sem maiores
consequências; a brincadeira de Conceição com o lustre no quarto, vista pela sombra
na parede e no teto; Jéssica, a falsa loira e seu séquito, logo pela manhã, dançando pela
rua; o caminho de Conceição e Vera para Madureira está todo enfeitado com papelotes
pendurados, numa cena em que não se faz referência ao Carnaval.
Melodrama e denúncia social
O que pode resultar de um encontro entre telerrealismo e melodrama?
Estamos longe da época em que a crítica pautava suas análises e avaliações pelo critério da pureza estética. Um certo modernismo, defendido por Clement Greenberg no âmbito
das artes visuais, é um dos exemplos dessa linha.8 Outro, aquele que advogava que o cinema deveria
se livrar de qualquer influência do teatro, a fim de que prevalecesse o chamado “específico fílmico”.
7
8
52
AMANCIO, Tunico. O Brasil dos gringos. Niterói: Intertexto, 2000. p. 70-71.
GREENBERG, Clement. Rumo a um mais novo Laocoonte. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecilia.
Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p. 45-59.
Note-se que em Luiz Fernando Carvalho
e Paulo Lins já havia em comum a denúncia
social. Apenas para recordar alguns exemplos
quanto ao primeiro, cite-se que em Hoje é dia
de Maria se denunciavam o trabalho infantil
em condições desumanas, o abandono das
crianças de rua na cidade grande, a guerra,
a exploração de impiedosos capitalistas.
Como em Suburbia, essa denúncia surgia
com os elementos do “teatro do bem”, que
é o melodrama, naquela que é uma de suas
principais características: a pedagogia do
sentimento. Bastaria esse ponto para que
Suburbia sofresse ataques da crítica de extração modernista, que tem horror ao melodrama e a
suas implicações femininas e de canalização dos instintos violentos das classes populares.9
Evidentemente, o melodrama tem uma larga história que não se limita ao controle das
classes populares. Veja-se, por exemplo, Rocco e seus irmãos (Luchino Visconti, 1960), com
sua incisiva denúncia de problemas sociais.
Interessa que a conjunção dos elementos apontados leva Suburbia para uma linha muito
específica. O indivíduo melodramático é o sujeito da ação. Em que ambiente ele está? Em
um subúrbio em que os problemas sociais concretos afloram por todos os lados, inclusive
pelo contato com o tráfico de drogas e as gangues.
Conceição, a imigrante que provém do interior mítico do país, sofrerá na carne o ataque
do mal e, com sua atitude firme, tal como Maria na outra minissérie, propiciará (ou pode
propiciar) uma reeducação do espectador. Como em Hoje é dia de Maria, busca-se um
público amplo, que inclua também espectadores acomodados aos seus padrões de beleza
física, de concepção patriarcal acerca dos trabalhadores domésticos, dois pontos de ruptura
de Suburbia em relação ao habitual.
Globo/Divulgação
Renato Luiz Pucci Jr. // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Sonho de Conceição era
conhecer “a cidade do pão
com açúcar”
Uma imagem
Para terminar, uma imagem a fim de sintetizar e talvez esclarecer o que foi exposto.
A astronomia revela que, de tempos em tempos, gigantescos sistemas estelares colidem
entre si. O resultado poderia ser apenas um desastre cósmico, mas também pode ter por
consequência algo diferenciado, um novo fenômeno. Em vista do jogo das forças gravitacionais,
incontáveis sóis, planetas em número que apenas podemos adivinhar, asteroides e cometas,
tudo se rearranja de modo a formar um sistema diferente daqueles que antes existiam.
Guardadas as proporções e sem nenhum sentido apologético na ilustração, é assim que
surge Suburbia.
9
Para uma exposição acerca dos pressupostos elitistas e sexistas dessa parte da crítica, inclusive com o
mea-culpa do autor, ver BURCH, Noël. De la beauté des latrines: pour réhabiliter le sens au cinéma et
ailleurs. Paris: L’Harmattan, 2007.
53
artigo
O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA SÉRIE
Temas como escravidão, participação dos negros na
sociedade, cultura popular, arte e religião foram centrais
para a constituição da trama
Por trás da saga da personagem Conceição, a “Rainha do Subúrbio”,
há muita pesquisa. Foram necessários dois anos de trabalho para
criar um romance e depois transformá-lo em roteiro de seriado,
reunindo uma vasta bagagem formada por pesquisas e estudos
históricos, antropológicos e sociológicos, além de referências de
clássicos da literatura brasileira e estrangeira. Tudo isso para contar
uma história que aborda temas como a escravidão e a resistência por
meio da cultura, da religião e da arte, em uma mistura equilibrada
de realismo e dramaturgia. No artigo a seguir, o escritor Paulo Lins
conta como foi a gênese da obra.
54
Paulo Lins // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
ROTEIRO
CULTURA
COMO ARMA DE
RESISTÊNCIA1
Paulo Lins, escritor
Suburbia é um projeto, acima de tudo, sobre a escravidão e a cultura. Nossa preocupação
é discutir a situação do negro no Brasil hoje, depois de 400 anos de escravidão, 300 de
colonização, e o valor da cultura que os descendentes de escravos criaram e preservaram para
se estabelecerem dentro da sociedade – ainda que lentamente.
A inclusão plena deveria ter ocorrido pelo trabalho nas lavouras, na pecuária, na construção
das cidades ou através do ensino, mas a escola pública – que o negro frequenta – também não
funciona como deveria. A integração se dá pela cultura. Cultura vista não só como entretenimento,
mas como um pilar de sobrevivência de um grupo social. É por meio dela que o negro consegue
se manter unido para encarar todos os desmandos que sofreu e sofre ao longo da história.
Existem vários estudos sobre isso; a universidade começou a trabalhar com esse assunto
há muito mais tempo que o cinema, é pioneira nisso. Alguns exemplos: os trabalhos
sobre política abolicionista do professor Ilmar Rohloff de Mattos, do Departamento de
História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o professor Flávio dos Santos Gomes faz um trabalho
interessante sobre a questão do homem livre, os quilombos, a escravidão. Também na
UFRJ, na Faculdade de Economia, o professor Marcelo Paixão faz diversas pesquisas sobre
a questão do negro e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Há várias dissertações
de mestrado e teses de doutorado sobre esse tema.
Quando comecei, ao lado do diretor Luiz Fernando Carvalho, a elaborar o roteiro de
Suburbia, essas questões foram discutidas, antes mesmo de tocar em cinema, televisão e literatura.
Foram várias conversas sobre o subúrbio de hoje, seus habitantes, e logicamente não se
pode discutir isso sem olhar o passado, sem rever certos pontos que determinaram o sistema
de relações no Brasil. E, como o roteiro se referia igualmente à cultura e à religião, esses
1
Paulo Lins, formado pela
Faculdade de Letras da
Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ),
é escritor e autor do
livro Cidade de Deus
(Companhia das Letras,
1997), que retratou a
realidade das favelas do
Rio de Janeiro e inspirou
o filme dirigido por
Fernando Meirelles.
Escreveu, também, Desde
que o samba é samba
(Planeta, 2012). Foi um
dos roteiristas da série
Cidade dos homens (Globo,
2002-2005) e desenvolveu,
com Luiz Fernando
Carvalho, Suburbia (2012)
Este artigo foi produzido com base nas palestras proferidas nos seminários realizados na PUC-RJ em 6 de
novembro de 2012 e na ECA-USP, em 13 de novembro de 2012.
55
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Paulo Lins
temas também foram discutidos exaustivamente, no sentido de pensar o que é a cultura, o
que é a religião, e seu significado dentro do grupo social representado em nosso trabalho.
O poema “A vida”, de José Lino Grünewald,2 poeta concreto, fala uma coisa muito
simples, que é:
a
vida
c o m i d a
a
vida
b e b i d a
a
vida
dormida
a
vida
ida
É essa vida descrita no poema que nos iguala aos outros animais para nos mantermos
vivos, o resto é ficção, invenção, criação. Até a própria ciência é ficção. E, dentro desse
imaginário, os mais importantes são a arte e a religião. A arte, só para o bem; a religião,
para o bem e para o mal – as guerras religiosas, as matanças nos mostram isso. A arte, não.
A arte é livre, insubstituível. A arte entendida não apenas como entretenimento, mas como
sentimento de um povo.
Para o poeta e crítico literário mexicano Octavio Paz, tudo é substituível, menos a arte.3
Por exemplo: o carro substituiu a carroça, a metralhadora substituiu o arco e flecha, as casas e
apartamentos substituíram as cavernas, mas a Ilíada não substituiu a Odisseia. Macunaíma não
foi substituído por Grande sertão: veredas, assim como Ogum não vai substituir São Jorge, Oxalá
não vai substituir Jesus Cristo. Cada peça de arte tem caminho próprio, assim como todos os
deuses.
Partimos dessa premissa para construir a trama de Suburbia. A personagem Conceição
começa sua vida no trabalho nos fornos de carvão, uma vida sofrida, que se refere à primeira
escravidão. Inicialmente até pensamos em ir lá para trás e mostrar a escravidão de verdade,
de 100, 150 anos atrás, porém vimos que não precisava fazer um trabalho de época. Ela está
aí, continua em boa parte do Brasil.
Quando chega ao Rio de Janeiro, Conceição vai viver a escravidão atual, trabalhando
como babá, empregada doméstica. Em seguida ela se encontra: vai para uma sociedade onde
consegue, depois de tanto tempo, se unir, se reunir para cantar, dançar e ter, acima de tudo,
aconchego familiar. Aquilo que Nietzsche diz, em Demasiado humano, sobre a “alegria de
entender o que o outro quer dizer”. Conceição terá a estabilidade social por meio da cultura,
em Madureira, terra do samba, terra do funk. O que queríamos mostrar em Suburbia era
isto: que a cultura assegura a ascensão social do povo negro e a união em si. Foi o que
discutimos para criar a trajetória da personagem.
Um dos objetivos era mostrar o subúrbio desse jeito que alguns segmentos da sociedade
ainda não viram – e, quando vê o estereótipo, aceita. Por exemplo, no primeiro capítulo
mostramos um casal de estrangeiros – brancos – sendo assaltado, no Rio de Janeiro, por
2
GRÜNEWALD, José Lino. A vida. Poesia concreta. São Paulo: Abril Educação, 1982.
3
PAZ, Octavio. A outra voz. São Paulo: Siciliano, 1993.
56
Paulo Lins // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Não escrevemos Suburbia pensando
em um público específico. O seriado não é
voltado para a nova classe média baixa. A
melhor forma de respeitar o público é não
pensar nele, mas nos poetas, nos escritores
que lemos e tentar dialogar com eles.
O seriado era um projeto que Luiz Fernando Carvalho tinha há mais de dez anos,
inspirado em uma pessoa com quem ele conviveu, que se tornou praticamente sua mãe, e
ele queria desenvolver essa história.
Suburbia fala sobre escravidão, violência, tráfico de armas, de drogas. Não conta
propriamente uma história, faz uma reflexão sobre a sociedade de hoje, nessa trama que se
passa em um subúrbio dos anos 1990.
O seriado partiu de uma pré-escaleta, uma espécie de guia, e a partir dela escrevemos
um romance de quase cem páginas. Uma narrativa literária para elaborar o roteiro. As
personagens em si foram mudando: da pré-escaleta para o romance, do romance para a
outra escaleta, da escaleta para o roteiro, que mudou também na gravação (nunca tinha feito
um trabalho assim com tantas etapas).
O que prevalece nesse projeto é a mulher forte, porque quem mais sofre na sociedade
brasileira é a mulher negra, é a mais discriminada por todos. E, ao mesmo tempo, é quem
segura toda a estrutura familiar numa sociedade como a nossa, matriarcal.
O elenco é quase todo negro. Construímos uma família negra organizada, com a força
da cultura e da religião tomando conta de uma estrutura familiar, a relação do compadrio,
que é muito comum no subúrbio do Rio de Janeiro. A ideia era escrever algo que pudesse ser
discutido não apenas dentro do audiovisual, mas também da Antropologia, da Sociologia e
da própria História.
Suburbia traz a concepção da periferia carioca, onde há uma rede de solidariedade
muito grande, há compadrio, os tios, os avós, os vizinhos – mas também a violência ao
longo de 500 anos. A formação do Brasil é muito dura, para todos os povos. A cultura
vem salvando a gente e, de certa forma, nos unindo, assim como a religião – vista não
como salvação, mas como a união de um povo que acredita no mesmo Deus. A fé como
referência de bondade, caridade. É pela religião que as pessoas também se tornam boas,
humanas, se ajudam e socorrem quando precisam. E, por fim, a arte, para nos unir,
celebrar, nos identificar para poder lutar.
Globo/Divulgação
crianças negras. Se invertêssemos os papéis,
mostrando um estrangeiro negro sendo assaltado por crianças de olhos azuis, certamente
a cena não ficaria verossímil. Como fizemos,
as pessoas veem a cena e aceitam aquilo como
sendo natural. É isto que queremos discutir:
essa naturalidade de pouca reflexão e muito
menos de boa vontade.
Conceição como
empregada doméstica
em Suburbia: escravidão
moderna
57
artigo
UM ACERVO formado pelas MEMÓRIAS
Uma teia social constituída por relatos pessoais. Essa é a
ideia do Museu da Pessoa, instituição virtual e colaborativa
que oferece depoimentos de mais de 15 mil entrevistados
O Museu da Pessoa estabeleceu uma parceria com a equipe de
Suburbia e incluiu em sua base de histórias os depoimentos dos atores
que interpretaram os personagens do seriado. Relatos pessoais que
inspiram usuários e visitantes a também compartilhar seus percursos.
No artigo a seguir, Karen Worcman, fundadora do Museu da Pessoa,
conta como nasceu essa parceria e fala mais sobre sua instituição,
que completa 20 anos baseada no princípio de que “a história de
cada pessoa é o que forma a história de um grupo, de um país, e
isso é o que nos dá o sentido de pertencimento, de identidade, mas
também de diversidade”.
58
Karen Worcman // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
MUSEU
HISTÓRIA ORAL E A
RIQUEZA DOS RELATOS
Karen Worcman, do Museu da Pessoa
O Museu da Pessoa completou 20 anos em 2012. A ideia original surgiu de um projeto
de história oral, Heranças e lembranças: imigrantes judeus no Rio de Janeiro (1986/1991),
que registrou mais de 200 horas de entrevistas com imigrantes judeus de várias partes do
mundo. Minha participação nessa pesquisa como coordenadora da equipe de história oral
me fez refletir sobre a função social dos relatos pessoais. A história de vida é uma das fontes
mais ricas para nos transformarmos e começarmos a ver o mundo com os olhos dos outros.
Aquilo que cada um de nós tem é um jeito próprio de registrar e transformar em memória o
momento histórico que vivemos. E é esta memória que possibilita que cada um de nós crie
as narrativas que formam as histórias de nossas vidas. O conjunto dessas histórias compõe
uma teia social que traduz as múltiplas visões e experiências que formam nossa sociedade.
Depois de 200 horas de gravação com os imigrantes judeus e perceber a profunda
riqueza humana que estava presente no conteúdo que havíamos registrado, comecei a
refletir sobre o fato de existirem museus sobre os mais variados temas e assuntos, mas e
a história das pessoas? Não havia nenhuma instituição para guardar as histórias de vida
das pessoas comuns. Surgiu, assim, o projeto de constituir um museu. Ele partiu dessa
ideia muito simples, de que a história de vida de cada pessoa na sociedade deveria ter
um lugar para ser preservada e ser considerada como patrimônio de um museu. Ainda
não existia nada do tipo no Brasil. Havia, sim, tanto no Brasil quanto em outros países
muitos arquivos de história oral, conservados em universidades e centros de memória.
Desconsiderada como fonte confiável pelos historiadores do século XIX e parte do XX,
a história oral voltava, paulatinamente, a ser reconhecida pela academia desde os anos
1970. O registro de depoimentos orais (e não escritos) foi, inicialmente, um método
amplamente utilizado pelos antropólogos e depois, com muita resistência passou a ser
aceito parcialmente na área de História, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos.
Mas ainda não havia um projeto de museu onde todos esses relatos pudessem ser
considerados peças do acervo. Esse conceito trazia ainda a ideia de que o público fosse,
ao mesmo tempo, visitante, acervo e curador. Isto é, de que cada pessoa pudesse se tornar
parte do acervo e organizar suas próprias exposições.
Karen Worcman é
graduada em História
pela Universidade Federal
Fluminense (UFF), com
mestrado em Linguística
pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ).
É fundadora do Museu
da Pessoa, um museu
virtual e colaborativo de
relatos de vida criado em
1991. Participa de diversos
comitês e conselhos em
sua área de atuação, como
Observatório da Imprensa
e o Center for Digital Story
(Berkeley/USA)
59
Globo/Divulgação
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Karen Worcman
Casa no Rio de Janeiro
onde equipe do Museu da
Pessoa entrevistou atores
de Suburbia
60
Hoje, essa ideia parece natural, pois há mais de 300 milhões de blogs no mundo, dos
quais grande parte é sobre história de pessoas, além de Twitter, Facebook e outros microblogs
e redes sociais. Mas há 20 anos isso soava muito esquisito. Discutia-se quem se interessaria
em ouvir histórias de pessoas comuns e para que isso iria servir. Por outro lado, na era
pré-internet, e não querendo criar uma sede que se tornasse um “museu de cera”, criamos
a ideia de um “museu virtual” que, além de reunir as narrativas, iria distribuí-las em CD-ROMs em máquinas do tipo jukebox, para que os relatos fossem ouvidos em vários tipos de
ambientes públicos. A ideia não era só criar uma fonte diferente de história do Brasil, que
tivesse a perspectiva de todas as pessoas, mas que esses depoimentos voltassem para a própria
sociedade como parte de seu cotidiano, para que pudessem influir em políticas públicas e
em conteúdos de educação e contribuíssem para a transformação cultural e social do país.
Um museu cuja metodologia se tornasse uma ferramenta de construção e apropriação de
nossa memória social. O Museu da Pessoa já nasceu com o foco muito grande no uso social,
além de cultural, e isso era ainda bastante inusitado – tanto no Brasil como fora daqui. A
partir da nossa experiência foram criados museus também nos Estados Unidos, no Canadá,
em Portugal, além de experiências inspiradas na ideia na África e na América latina.
De lá para cá o museu se transformou em um instituto no qual trabalham
permanentemente entre 40 e 60 pessoas. Ele nasceu em São Paulo, e tem um acervo de 15
mil histórias, mais de 70 mil fotos e documentos. São relatos dos mais variados. O museu
sempre trabalhou com projetos: de pessoas, de empresas, de comunidades, além de atuar
hoje formando professores de escolas públicas de todo o país. Tudo isso seguindo um único
princípio: de que a história de cada pessoa forma a história de um grupo, de um país, e isso
é o que nos dá o sentido de pertencimento, de identidade, mas também de diversidade,
porque cada história é altamente singular.
Karen Worcman // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Metodologia básica
O museu foi bastante pioneiro: em 1997 entramos na internet, onde cada pessoa podia
contar sua história de vida. Ao longo do tempo, para que o museu pudesse existir de forma
profissional, fomos criando vários projetos de memória para instituições e empresas, como a
História do São Paulo Futebol Clube, por exemplo, no qual ouvimos da cozinheira do clube
a um de seus principais jogadores, o Raí, para compor sua história. A mesma metodologia foi
transformada para que pudéssemos apoiar diversos grupos sociais a construir suas próprias
histórias. Trabalhamos com quilombos, comunidades e escolas. Ao longo do tempo, o museu
já realizou mais de 200 projetos, editou 50 livros e montou vários centros de memórias com
essa perspectiva. O livro Todo mundo tem uma história pra contar (editora Olhares, 2012),
que celebra nossos 20 anos e traz 20 histórias comentadas por 20 cronistas de todo o Brasil,
apresenta algumas pérolas do acervo que coletamos ao longo de toda essa trajetória.
Ao completarmos 20 anos, entretanto, percebemos como nosso site, pioneiro no uso
da internet, ficou desatualizado – em tempos em que as redes sociais e essa moda de todos
contarem sua história se tornaram uma mania nacional e internacional. Isso nos levou a
questionar o papel do museu hoje. Se, há 20 anos, nossa função era dizer que uma pessoa
comum tinha muito a contar, não só sobre sua história pessoal, mas sobre seu grupo e seu
país, qual é o papel do museu hoje?
A partir desses questionamentos, começamos a fazer um novo portal. A ideia é
reapresentar e reagrupar os conteúdos, mostrando que a instituição, além de ser um museu
de história de vida, aberto a toda e qualquer pessoa da sociedade, é também um lugar
colaborativo onde quem entra para visitar também pode ser o acervo – a Mona Lisa daquele
museu – e ao mesmo tempo seu curador: hoje, em um acervo de 15 mil histórias, cada um
pode fazer a seleção que quiser. Seja uma história só das mulheres; ou das mulheres negras;
das mulheres trabalhadoras; das mulheres da alta sociedade; dos sonhos dos homens que
lutaram na Segunda Guerra etc. O acervo é múltiplo e serve para muitos fins.
O grande foco sempre foi a educação, porque é na escola que se constroem os conceitos de
quem faz parte da história e de quem tem o poder de transformá-la.
Então começamos trabalhando com professores, mostrando como O grande foco sempre foi a
construir a percepção de que a memória está ali, dentro da casa de educação, porque é na escola
cada um. Por isso, a experiência do museu se insere na temática do que se constroem os conceitos
debate sugerido por este Caderno Globo Universidade: a construção de quem faz parte da história e
de quem pode transformá-la
da ideia de um indivíduo, de uma memória social.
Parceria com Suburbia
Ao longo desses 20 anos, também começamos a desenvolver parcerias para dar visibilidade
ao acervo do museu. Porque não adianta só colher e preservar histórias; é preciso distribuir.
E a mídia é muito importante para essa visibilidade. É nesse contexto que se insere a parceria
do Museu da Pessoa com Suburbia.
Quando surgiu essa possibilidade, o que nos chamou a atenção foi o fato de o elenco da
minissérie ser constituído por atores majoritariamente negros e cujas histórias de vida eram
parecidas com as dos personagens que interpretavam.
61
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Karen Worcman
Nessa parceria, o Museu da Pessoa entrou com a metodologia adotada pela instituição
para fazer as pessoas contarem suas histórias, com a captação dos relatos dos atores e
a criação de um site relacionado,1 no qual a história de vida dos atores seria o acervo,
que foi colocado no ar simultaneamente ao lançamento de Suburbia na televisão, em
novembro de 2012.
Outra questão interessante dessa parceria é a interatividade. Hoje muitos programas de
televisão utilizam esse recurso da interação com o público – que vota, participa e escolhe
pelo celular. Partindo do princípio de que o Museu da Pessoa é um instituto de memória,
apresentamos a história dos atores e sugerimos essa interatividade do público, cativando e
mobilizando aqueles que tenham uma realidade similar a contar sua história, que passa,
também, a fazer parte do acervo.
Nós nos mudamos para o local onde estava sendo gravada a minissérie e chamávamos
os atores. Usando a metodologia do museu, gravávamos seus
Selecionamos, dentre nosso depoimentos, nos quais eles não só falavam sobre a participação no
acervo, os principais temas seriado como contavam sua história de vida. Elas foram editadas
abordados no seriado, como em vídeo e transcritas em texto. No site, na parte dedicada a
migração, amor, trabalho Suburbia, ao lado de cada história dos atores, colocamos uma
escravo, cultura negra, samba série “Bastidores”, na qual mostramos as cenas de gravação dessas
entrevistas. Sugerimos também outras histórias do acervo do museu,
de pessoas que, de alguma maneira, têm alguma coisa relacionada com os depoimentos.
Selecionamos, dentre nosso acervo, os principais temas abordados no seriado – como
migração, amor, trabalho escravo, cultura negra, samba. Há muitas histórias sobre isso. A
partir daí, colocamos mensagens como: “Migração fez parte da sua história, da sua família?
Conte a sua trajetória ao Museu da Pessoa”. Qualquer usuário pode se cadastrar e contar sua
narrativa, por texto, vídeo ou fotos. Por exemplo: “O ator Wallace Rocha vendia biscoito
na rua até se envolver com música e dança. Veja a sua trajetória”. Quando o visitante clica,
assiste a um trecho do vídeo e sua transcrição em texto com a história do ator. Ao lado,
sugerimos uma série de histórias relacionadas, narrativas de brasileiros que têm a ver, de
alguma forma, com a história dele. Desde a primeira semana do lançamento já começamos
a receber e a publicar relatos enviados pelos internautas e inspirados nas histórias que estão
vendo ou lendo de Suburbia.
O museu abre a possibilidade de o espectador participar com a sua história e se
compromete a produzir o conteúdo que ficará preservado. Nós nos empenhamos para que
essa história permaneça, seja utilizada tanto em escolas quanto em pesquisas, ou para a
produção de outras fontes de trabalho interessantes. A ideia é provocar o uso de Suburbia
como fonte de inspiração, tanto pelas histórias dos atores como pelas dos telespectadores,
que podem fazer uso do museu para produzir novos conteúdos de memória. Tudo a partir
da ideia de que nossa história nunca está isolada. Somos, e sempre seremos, seres históricos.
Produtores e produtos de uma época, um lugar e um dado contexto social. Ao mesmo
tempo, nós somos completamente singulares, cada um de nós tem um jeito de ver e viver
1
62
Link: http://www.museudapessoa.net/suburbia.
Globo/Divulgação
Karen Worcman // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
a própria experiência. E essa história pessoal transcende nossa persona para nos conectar
com o que temos de universal. Essa é a maneira que propomos para criar uma nova fonte
de conhecimento e reflexão sobre a história do nosso país, uma história contada a partir do
Equipe grava depoimento
utilizando sua metodologia
de registro de relatos
pessoais
microcotidiano e do olhar de cada um.
O Brasil tem uma herança colonial, escravista, escravocrata, que permeia nosso dia a
dia; somos todos escravos dessa herança. Brancos, negros e todos os outros. Isso só muda
quando há transformação e produção de um novo conteúdo de memória. É para isso
que o museu existe. Quando reunimos o telespectador com a sua história e os atores – e
especialmente os atores de Suburbia – com suas histórias de vida, conseguimos mobilizar
para produzir um novo conteúdo e nos empenhamos para que ele seja cada vez mais
utilizado como uma forma de produzir novas memórias no país, onde não só estudos
acadêmicos, mas também as próprias pessoas se sintam produtoras de uma fonte de
memória dessa história que precisamos construir daqui para a frente. A missão do museu
é tornar as histórias de vida uma fonte de conhecimento, conexão e diálogo entre pessoas
e povos de todo o mundo.
Cada um dos atores de Suburbia passou duas ou três horas dando seu depoimento,
contando sua história de vida para a equipe do Museu da Pessoa. A partir da página
92, o Caderno Globo Universidade reproduz alguns desses depoimentos – também
disponíveis no site do Museu da Pessoa –, com a transcrição do texto e um link para o
vídeo com a entrevista.
Museu da Pessoa: http://www.museudapessoa.net
63
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Especial // Maria Immacolata Vassallo de Lopes
PESQUISA
TELEDRAMATURGIA
COMO OBJETO DE ESTUDO
Roberto Ioffel
O seminário “Suburbia: O indivíduo na construção do imaginário social”, realizado na
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), em São Paulo,
no dia 13 de novembro de 2012, celebrou também os 20 anos de existência do Centro
de Estudos de Telenovela (CETVN-ECA-USP). No texto a seguir, Maria Immacolata
Vassallo de Lopes, professora titular da ECA-USP, conta a história desse núcleo que se tornou
referência nacional e internacional na pesquisa da ficção televisiva no Brasil
64
Maria Immacolata Vassallo de Lopes // Especial // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
O Centro de Estudos de Telenovela foi criado em 8 de abril de
1992, com o objetivo de impulsionar a legitimação da teledramaturgia
como objeto de estudo científico. Naquele momento, o nome
era Núcleo de Pesquisa de Telenovela (NPTN) e ele nasceu para
responder à questão: qual é a importância e o sentido de estudar
a teledramaturgia brasileira? Como um fenômeno cultural de
massas, ela intriga cientistas e suscita questionamentos, sejam eles
acadêmicos ou não.
Com a iniciativa do professor José Marques de Melo, então
diretor da Escola de Comunicações e Artes da USP e estudioso
do assunto, o núcleo foi criado e a professora Anamaria Fadul,
primeira coordenadora do NPTN, orientou trabalhos sobre os
processos de produção da ficção televisiva seriada. Em 1994, já
se podia verificar o crescimento de pesquisas acadêmicas sobre o
tema. Nesse mesmo ano, um novo marco, o núcleo recebeu apoio
de agências de fomento (CNPq, Fapesp, Capes) para um projeto
integrado, coordenado pela professora Maria Aparecida Baccega:
“Ficção e realidade: a telenovela no Brasil, o Brasil na telenovela”,
reunindo destacados pesquisadores de universidades de São Paulo.
Também foi criado o Grupo de Trabalho (GT) de Ficção Seriada na
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
(Intercom). Lembramos desses marcos que foram fundamentais
para promover tanto a pesquisa, a informação e a memória da
teledramaturgia brasileira quanto o reconhecimento da telenovela
como importante objeto de pesquisa acadêmica.
A partir do ano 2000, começaram a surgir outras iniciativas
fundamentais para a construção do campo de estudos da ficção
televisiva, passando-se a pesquisar, além da telenovela, outros
formatos – como minissérie, série, seriado, soap opera, unitário
etc. Infelizmente, um incêndio na ECA, em outubro de 2001,
acarretou a perda total do acervo do NPTN. A partir daí, foram
empreendidas parcerias com outras instituições, como a Globo, para
que as atividades do núcleo pudessem continuar, beneficiadas pela
abertura do acervo de documentação da emissora, visitas ao centro
de produção de dramaturgia, além da parceria na realização de
projetos, seminários e eventos. Hoje, o CETVN faz o levantamento
65
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Especial // Maria Immacolata Vassallo de Lopes
de toda a produção científica voltada para a teledramaturgia e abriga
o Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva (Obitel),
que, em parceria com o Globo Universidade, produz e publica o
Anuário Obitel, desde 2007.1
Mais do que ser entretenimento, a telenovela remete a uma
segunda oralidade. A televisão passou a contar histórias na casa das
pessoas, substituindo o hábito de contá-las oralmente ao redor de uma
fogueira. Os Estudos Culturais ingleses foram os primeiros a analisar
o significado da presença da televisão dentro das casas, não mais como
um móvel qualquer, mas como um objeto discursivo, comunicativo
e de afeto. Quando fizemos uma pesquisa etnográfica da recepção
de uma telenovela (A indomada, de Aguinaldo Silva, Globo, 1997),
notamos que em várias casas havia, sobre o móvel da televisão, uma
estatueta de Nossa Senhora Aparecida junto aos retratos de família.
Simulava um verdadeiro altar, em uma exposição que mesclava
capital material (a televisão como objeto de valor) e capital simbólico
(religião e entes queridos).
A telenovela se tornou um gênero nacional, entendendo-se, com
isso, todo o processo de abrasileiramento da teledramaturgia, criando
e reinventando linguagens, estéticas e técnicas de representação e
de produção. Ao longo do tempo, tornou-se, talvez, a narrativa
que melhor representa os brasileiros, uma narrativa da nação.
Nação imaginada, no sentido de Benedict Anderson, em que
os brasileiros se encontram e, juntos, enquanto produtores e
audiência, ajudam a construir a identidade cultural do país. Esse
imaginário é uma criação coletiva. Cada um que assiste a uma
narrativa passa a transformá-la. A produção de significados, como
nos mostra Umberto Eco, não acaba no momento da recepção. Pelo
contrário, novos significados, que podiam nem estar no produto
original, surgem nesse momento, resultado de um processo de
(re)apropriação e de ressignificação das histórias.
Daí que a cultura da telenovela no Brasil se refere não apenas àquilo
que é produzido, ao produto audiovisual. Ela está inserida em um
espaço que é o da cultura, porque o autor é um escritor que narra o seu
1
As versões digitais das publicações podem ser encontradas em http://glo.bo/
WGFj8j.
66
Maria Immacolata Vassallo de Lopes // Especial // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
tempo, assim como o receptor – que recebe e se apropria da narrativa,
acrescenta outros sentidos à história, ao recontá-la. A telenovela é um
produto absolutamente popular que chega a alcançar todos os estratos
sociais da nação em toda a sua diversidade e desigualdade.
Também, como gênero brasileiro, a telenovela tornou-se um recurso
comunicativo e cultural – recurso entendido aqui como competência,
acúmulo de know-how, que pode ser mobilizado para a mudança nos
modos de ser, de perceber, de sentir, de conviver das pessoas e grupos.
A telenovela se torna um recurso comunicativo e cultural por todas
as histórias que conta e pelos problemas da sociedade que trabalha –
ainda mais com a tendência ao realismo, ou melhor, ao naturalismo
nas histórias que conta.
Desde sua origem no folhetim ou no melodrama, a telenovela carrega
em si uma ação pedagógica. Há algo nela que ajuda o telespectador a
viver em uma sociedade em rápida transformação como é a nossa.
Esse potencial é trabalhado pela telenovela. Nesse sentido pode ser
usada como um recurso, ela tem um poder de mobilização – aquilo
que, mesmo inadequadamente, ficou conhecido como merchandising
social. Mobilização pela força do sentimento, ou do docudrama
desenvolvido por meio de um tema bem colocado – como a história
da modelo que ficou tetraplégica, seguindo o cotidiano de uma pessoa
nessa condição; ou da personagem com síndrome de Down; ou ainda
de temas como violência contra a mulher, discriminação de minorias,
homossexualidade, racismo, entre outros.
Enfim, há quase 50 anos, as telenovelas passam mensagem
diária de tolerância, e os autores sabem disso. É a força que a
telenovela tem como recurso, sua característica implícita, e que tem
progressivamente aumentado na sociedade brasileira. Essa é, enfim,
a nossa teledramaturgia. Um patrimônio cultural do país.
Maria Immacolata Vassallo de Lopes é doutora em Ciências da Comunicação pela
Universidade de São Paulo, com pós-doutorado na Universidade de Florença, Itália. É
professora titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e coordenadora do Programa
de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da USP. Coordena o Centro de Estudos de
Telenovela e o Centro de Estudos do Campo da Comunicação da mesma universidade. É
criadora e coordenadora da rede de pesquisa internacional Observatório Ibero-Americano da
Ficção Televisiva (Obitel) e da rede de pesquisa Obitel-Brasil.
67
Globo/Divulgação
debate
Família do subúrbio se reúne para
jantar, em cena de Suburbia
debate
Globo/Divulgação
RACISMO, REALIDADE SOCIAL E FICÇÃO
Sala de estar, em
Suburbia; vista como
nova forma de representar
família negra na televisão
O seminário “Suburbia: O indivíduo na construção do imaginário
social”, promovido pelo Globo Universidade no Rio de Janeiro e em São
Paulo, nos dias 6 e 13 de novembro de 2012, respectivamente, rendeu
vários momentos de discussão, em que comunidade acadêmica, produtores
da série e parte do elenco debateram as questões apresentadas durante as
palestras. A seguir, uma seleção dos principais temas abordados
70
Debate // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Pergunta para Paulo Lins: Qual a importância dessa proliferação de projetos audiovisuais que representam a periferia para uma maior integração dos espaços da cidade?
PL: Eu vou usar uma expressão do Luiz Fernando Carvalho: “Tem de encarar, olhar, para poder mudar”. É isso. É preciso ver o subúrbio sem estereótipos, o subúrbio real. O cinema faz isso, a literatura e o teatro também.
Mas a televisão é, sem dúvida, o veículo de maior acesso, pois atinge mais
pessoas que um filme. É bom encarar esse Brasil, porque muita gente nem
quer vê-lo, conhecê-lo. É preciso ver para poder mudar, para poder tornar
esse país melhor.
Pergunta para Regina Celia Reyes Novaes: Na produção de seriados e telenovelas existe a preocupação de encontrar o ponto de equilíbrio entre abordagem de determinados temas ou apologia deles?
RCRN: É preciso pensar que boa parte dessa produção ocorre nas televisões privadas, e o próprio mercado tem sentidos da história. Eu vejo a
televisão mais ou menos como a questão da vanguarda: ela não pode estar
igual à média porque, se estiver, não precisaríamos dela. Mas também não
pode estar muito longe. Há uma tensão entre as conquistas da sociedade
e o que a televisão mostra. Isso não é automático, mas há dados da sociedade, das lutas sociais, que entram no mercado. Precisamos levar isso em
conta e não pensar como se fossem duas coisas muito distintas. O mundo
do negócio tem sensibilidade, tem possibilidade, assim como as televisões
têm valores e pessoas com valores diferentes. Precisamos pensar esse espaço
como um espaço cheio de contradições, de brechas, que podem ser ocupadas ou não. Quando disse, em minha fala, que “nada será como antes”,
acho que, apesar de toda a genialidade da trajetória do Paulo Lins e do Luiz
Fernando Carvalho, isso não estaria acontecendo se não fosse a sociedade
brasileira, se não fossem as conquistas que estão escritas na nossa história.
Pergunta para Paulo Lins: Sem deixar de reconhecer o avanço conquistado nos últimos anos, gostaria
de perguntar quais as possibilidades de percepção do negro para além da dimensão da pobreza e
outros estereótipos?
PL: Pode-se dizer que hoje há uma inclusão maior. Há uma maior representação do negro, a partir dos anos 1990, em relação à cultura que se
produzia, a arte que se fazia no Brasil nos anos 1980. Era natural trabalhar
isso, a universidade já trabalhava, sobretudo com a questão da violência,
71
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Debate
da criminalidade, na qual o negro está diretamente envolvido, por questões
óbvias. E já havia vários estudos, várias dissertações de mestrado, várias teses
de doutorado sobre isso. Mas, para colocar isso dentro da mídia, para tentar
sair desse estereótipo do pobre na televisão do jeito que é colocado, é preciso
tentar mostrar a vida real. Em Suburbia, fomos buscar o naturalismo. Em
um trabalho que se pede mais político, eu não colocaria uma personagem
“fora do lugar”, para usar uma expressão do crítico literário Roberto Schwarz.
Pergunta para Paulo Lins: Você mostra, em Suburbia, vários momentos de escravidão pelos quais a
personagem passou, inclusive na infância. Você acha que o negro hoje ainda vive a escravidão, ou
todos os pobres e oprimidos, brancos ou de qualquer outra cor, vivem esse mesmo tipo de situação?
PL: A questão não é que tenha oprimido branco, essa não é a questão.
Porque existem pessoas que não são oprimidas e são brancas. Com o negro
é diferente, a maioria dos negros é oprimida. Se você for um pobre branco
ou negro, sendo branco tem condições de ascensão mais garantidas no
mercado de trabalho, em tudo o que é lugar. Inclusive tem menos chance
de ser parado pela polícia, de ser morto. Essa é a questão. A probabilidade
de um negro morrer assassinado é dez vezes maior que a do branco. Um
trabalho do economista Marcelo Paixão, da UFRJ, aponta bem isso. Mas
também existe branco pobre. O problema é que não existe negro rico se
sua ascensão não tiver acontecido pela cultura ou pelo esporte. Há exceções, mas são poucas. A dificuldade é muito grande.
Pergunta para Regina Celia Reyes Novaes: Levando em consideração as representações sociais presentes em Suburbia, ligadas à questão da pobreza, quais as possibilidades de apropriação e reconhecimento dessas imagens por jovens negros da classe média?
RCRN: Muito boa a pergunta, e queria aproveitar para falar sobre a questão das identidades, com um “s” bem grande. Aprendi com as entrevistas
que fiz que a questão da raça é fundamental. Este é um país que teve
escravidão e esse é um marco importante. Mas jovens negros têm muitas
diferenciações entre si. Então, existe a possibilidade de um jovem de classe
média se ver como negro em uma história como essa – mesmo em alguma
situação que ele nunca viveu, por “n” motivos –, por uma identificação ou
até uma diferenciação, e também pelas possibilidades de os jovens negros
assumirem outras identidades. A Mia Lopes, uma das jovens que entrevistei
72
Debate // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
em minha pesquisa, é gordinha. Hoje, a questão da aparência e do mercado
de trabalho restrito faz com que a negra, para conseguir emprego em uma
loja de shopping, por exemplo, precise ser muito bonita e muito magra.
Mia fala uma coisa linda. Conta que, quando assumiu sua cor, deixou de
ser “fofa”. Ser “engraçadinha” era a forma que encontrava para conquistar
as pessoas. Depois de assumir sua identidade negra, resolveu ser mais direta. O Diego, por exemplo, conta que “gostava de teatro e era o gay da
escola”. É importante, portanto, não olhar a juventude negra apenas por
uma parte da sua vida, pois esses jovens são várias coisas ao mesmo tempo
e também se assumem nesse sentido. Por isso, pode ser que a minissérie
produza algum engajamento no jovem de classe média; não é porque ele
tem mais dinheiro que não vai se identificar.
Pergunta para Paulo Lins: Acompanhamos recentemente o debate sobre o suposto racismo em Monteiro Lobato. Qual é sua opinião a respeito? Você acredita que a literatura lobatiana pode formar um
leitor racista? Até que ponto uma obra influencia na formação da cabeça de um leitor?
PL: Eu tenho dois filhos: um branco e um pretinho. Eu não conto as histórias
de Monteiro Lobato para meu filho preto, de 7 anos, porque ele não vai entender. Se ele entendesse, tudo bem. A questão é contar essa história para criança,
porque o pior racismo no Brasil é com a criança, porque ela não sabe que isso
existe. Se eu, com toda a minha compreensão e minha formação, sofro algum
racismo, é diferente. Mas com uma criança é dolorido. Eu não sou contra, sou
a favor de tudo, mas não vou ler essa historinha para meu filho dormir. É como
televisão: não vou fazer uma cena de matança, como poderia fazer no cinema,
em determinado horário. Não é questão de censura, e não é preciso um diretor
vir me dizer isso. É uma questão de bom senso. Você tem de apresentar as cenas para quem vai entender e ter o poder de discernimento. O meu filho de 7
anos não viu Suburbia, eu não deixei. Ele até queria, tentou ficar acordado na
estreia. Só é preciso pensar que Monteiro Lobato é um escritor infantil.
Pergunta para Renato Luiz Pucci: A estetização do subúrbio que se coloca na minissérie é uma tentativa
de aproximação com ambos os públicos, tanto os próprios suburbanos, que vão se ver ali, naquela realidade, como um público de classe A e B, que também pode se interessar, até pela fotografia?
RLP: Possivelmente sim, mas eu já me arrisco a dizer que essa estetização
não é mais privilégio de público de classe alta, porque nós vemos coisas
73
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Debate
parecidas na televisão, até em algumas telenovelas das 21 horas. Claro que nas
produções de Luiz Fernando Carvalho vemos muito mais, mas houve cenas de
A favorita [telenovela de João Emanuel Carneiro exibida na Globo entre 2008
e 2009] que eram estilizadas com um capricho absolutamente fantástico, mesmo em Avenida Brasil [telenovela de João Emanuel Carneiro exibida na Globo
em 2012], no capítulo 150, havia cenas superelaboradas, sem ser algo muito
chapado. O público está mudando, ao menos parte dele, mesmo os mais simples, digamos assim, podem ter acesso e apreciar esse tipo de estetização. Hoje é
dia de Maria teve 36 pontos de audiência, milhões de pessoas; é inacreditável e
é totalmente estilizado. Acho que, para responder à sua pergunta com clareza,
teria de se fazer uma pesquisa de recepção, o que eu não fiz, mas alguém precisa
fazer isso para tirar esse ponto a limpo.
Pergunta para Marina Henriques Coutinho: Por estar tão inserida, tão afetada por esse “discurso
imperativo dos sargentos”, como Augusto Boal costumava dizer, você não acha que a periferia acaba
produzindo a periferia, o subúrbio acaba produzindo representações de si a partir desse próprio discurso imperativo? Ou não, você acha que na verdade tem se construído outras representações?
MHC: Essa é uma ótima pergunta. Vou me remeter ao Paulo Freire, quando ele fala sobre o medo da liberdade, o que sente o oprimido. Ele sente
esse receio de expulsar de dentro de si o opressor porque, na verdade, o
que o Paulo Freire diz é que para verem a superação dessa relação opressor-oprimido, que pode ser representada na relação das pessoas da periferia
e das mensagens imperativas da mídia, as pessoas da periferia precisam
cuspir para fora delas o opressor. E muitas vezes o que acontece é que, por
medo da liberdade, por não alcançarem o que ele chama de “passagem para
conscientização”, elas acabam também se representando da maneira que os
imperativos da mídia esperam que elas se representem. Então, eu acho que
os processos de teatro, em outras áreas, ou na educação, que contribuem
para essa passagem, para essa desalienação, são os processos que vão garantir às classes populares se colocarem com verdade, com legitimidade, e não
como os canais imperativos esperam que elas se coloquem.
Comentário de Tatiana Tibúrcio [que vive a personagem Amelinha em Suburbia]:
Gostaria de fazer uma colocação em cima da pergunta feita pela colega. Eu
acho que a coisa anda mudando, e mudando de maneira muito interessante
74
Debate // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
nesse sentido da autorrepresentação. Sim, acontece de insistirmos em
reproduzir um pensamento, mesmo quando se está tentando fugir dele,
mas Suburbia, a Banda de Teatro Olodum, a Companhia dos Comuns,
no Rio de Janeiro, a Companhia dos Crespos, em São Paulo, a Caixa
Preta, em Minas Gerais, todos esses grupos – que são patrocinados,
têm espetáculos premiados, mas não são conhecidos pela mídia – fazem
algo diferente. De uma forma geral, ainda estamos reproduzindo esse
opressor que está dentro da gente. Aí entra o interesse econômico, ou
social, de manutenção de privilégio, de visão do mundo. Esses grupos
que estão fazendo essa diferença não estão tendo a visibilidade necessária para mostrar que essa mudança e essa diferença existem. A Companhia dos Comuns, por exemplo, foi a primeira companhia, depois de
dez anos, a ser indicada a quatro categorias no Prêmio Shell, com um
trabalho absolutamente original, no que diz respeito a essa representação não correspondente a um imaginário preestabelecido. É preciso
que a gente vá para um veículo como a televisão para que isso seja visto. Suburbia não resolve esse problema, mas dá um passo significativo
nessa mudança. Quando se entra na casa da Mãe Bia, vê-se uma parede
cheia de retratos de família, de gerações. Quando na TV brasileira a
gente viu uma família negra representada dessa forma? Então, esses
detalhes fazem uma diferença imensa no caminho da construção de
um outro imaginário do sujeito negro dentro da sociedade. São esses
pequenos detalhes: quando se traz o jongo em vez do pagodão; quando
se pega um funk de determinado período da história, quando ele era
revolucionário, questionador, como acontece com o rap da periferia de
São Paulo ainda hoje. Isso faz diferença para a identidade desse povo
negro e para a mudança de como o povo branco – e não estou falando de tom de pele, mas de ideologia – nos enxerga, como nos vê, um
caminho para a gente conseguir encontrar uma realidade realmente
igualitária e justa. Muitas vezes se fala de democracia racial, de busca
pela igualdade, mas a igualdade que estamos buscando, com trabalhos
como os dos grupos que citei, é a de direitos, de identidade, de respeito
pela diferença dessas identidades, é uma igualdade de Estado, é uma
igualdade civil. E eu acho que, de uma forma ficcional, de uma forma
alegórica, essa minissérie está trazendo isso para a gente.
75
entrevistas
Conversa ao pé da janela,
em cena de Suburbia
entrevista
LUIZ FERNANDO CARVALHO ANALISA A FUNÇÃO SOCIAL DA DRAMATURGIA
“A TV DEVE COLOCAR
QUESTÕES SOCIAIS, HUMANAS
E CULTURAIS EM PAUTA”
Renato Velasco
Por Ariadne Guimarães
Defensor do diálogo da universidade com a televisão, o cineasta e diretor Luiz Fernando
Carvalho acredita que a reflexão gerada a partir dessa troca serve como um importante
balizador de conhecimento. Em entrevista exclusiva ao Caderno Globo Universidade,
o criador do filme Lavoura arcaica e das séries Suburbia, Os Maias e Hoje é dia de Maria
fala de seu percurso artístico e sua visão sobre temas como a situação dos negros no país,
a periferia, a função social da mídia e a estética buscada em sua obra
78
Luiz Fernando Carvalho // Entrevista // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo Universidade – Mário Pedrosa enten-
e culturais. Já tivemos períodos em que abrimos
dia a crítica de arte como um refazer os passos
mão dessa responsabilidade, mas hoje nos en-
da criação artística ao contrário. Um processo
contramos em meio a uma retomada genuína
de desconstrução do objeto de modo a permi-
do entendimento da ampla função da televisão,
tir leituras que poderiam passar despercebi-
de sua importância no diálogo aberto e franco
das ao próprio artista. O que você pensa des-
com a sociedade, levantando assim o moral do
se processo de discussão da sua obra em um
país, investigando suas questões mais urgentes e
seminário, com a presença de antropólogos,
representativas, recuperando seus subterrâneos
geógrafos, cientistas sociais, entre outros?
históricos, nossa estrutura ancestral, e, conse-
LFC – Esse diálogo da televisão com o meio acadêmico é fundamental. Serve como um baliza-
quentemente, celebrando e expandindo a energia criativa do povo brasileiro.
dor. De um lado estaria a audiência, o público;
GU – Seu mais recente trabalho traz um gran-
do outro extremo, o balizador do conhecimento.
de tema: o subúrbio. Como surgiu o interesse
O público também traz um conhecimento im-
por esse assunto?
portante, até mesmo à medida que a interatividade, a cada dia mais estimulante e estimulada
pelas TVs, colhe respostas de seu público, seu
ponto de vista, sua fala. Mas na relação com o
meio acadêmico se dá uma reflexão capaz de cotejar com outras culturas audiovisuais do mundo, mas, principalmente, me parece capaz de gerar um pensamento sobre o Brasil e sua demanda em relação aos conteúdos que a nossa própria
TV produz. Afinal, que televisão queremos no
LFC – O interesse começou há mais ou menos
uma década, quando me voltei para esse universo. Naquela época avaliava tudo que no subúrbio
havia sido perdido, talvez pelo preço de um progresso inevitável e indesejado, que acabou por
alimentar o subúrbio de uma eterna nostalgia.
Mas inicialmente eu não sabia bem como entrar ali, o que desenvolver... O que me atraía era
exatamente a ideia da cultura popular urbana,
suas formas de associação, de sobrevivência sob
futuro? Em particular, aquela que acredita no
condições muitas vezes precárias, os afetos, uma
entusiasmo para unir, a um só golpe, necessi-
certa dramaturgia do subúrbio que me pareceu
dades aparentemente contraditórias: atender à
sempre mais à flor da pele do que a dramaturgia
audiência, ao comercial, como um veículo que
velada da Zona Sul.
sobrevive desta relação e que tem uma posição
no mercado muito importante, mas que também busca, mais e mais, refletir o país da forma
GU – E quais são os nomes que vêm à mente
quando falamos dessa dramaturgia do subúrbio?
mais abrangente possível, de norte a sul. Temos
LFC – Desde Aluísio Azevedo a Nelson Rodri-
um mar de histórias e precisamos mergulhar
gues, passando, claro, por Dias Gomes. Se tivesse
nele! Continuo acreditando que se faz necessá-
que eleger uma qualidade do autor de Pecado ca-
rio aos verdadeiros artistas e aos especialistas que
pital, seria a de conseguir retratar de forma irre-
trabalham na televisão pensar em uma nova mis-
tocável a representação da imperfeita sociedade
são para ela. Essa nova missão estaria, no meu
brasileira. Mas ali [em Suburbia] também tem
modo de sentir, diretamente ligada à ideia da
muito do Paulo Lins e da Carla Madeira. Fora
brasilidade. Sinceramente, temos condições de
do Rio de Janeiro, tem o Plínio Marcos, com
ser o carro-chefe deste país em termos criativos
seus personagens trafegando sobre a linha tênue
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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Entrevista // Luiz Fernando Carvalho
Luiz Fernando Carvalho
durante gravações
de Suburbia
que separa o real do mítico. Todos os subúrbios
essa estrutura de tribo. Há as ocas. Cada um tem
são um único subúrbio, vejo todas as periferias
a sua, mas as pessoas têm um espaço comum,
se encontrando, articulando os mesmos sistemas
dos ritos, que é o terreirão, espaço de troca de
morais, de sobrevivência e justiça. Refletindo so-
conhecimentos, onde o mundo está, se revela,
bre essas questões, você encontra uma produção
onde não há grandes diferenças, onde todos
de imagens de tremendo valor estético, como é
estão mais ou menos na mesma situação. Em
o caso do Walter Firmo, que me inspirou expli-
suma, há um sentimento democrático espontâ-
citamente. É um conjunto sensorial muito forte,
neo. Isso é uma percepção de um modo de vida
muito vívido, epidérmico, diferentemente da
que certamente em alguns pontos pode ter se
Zona Sul, que me parece sempre emoldurada,
adulterado. Porque a pressão que existe hoje do
enclausurada em sua redoma moral e – por que
consumo, oferecendo outros significados para a
não? –, preconceituosa, preocupada demais com
felicidade, que vai desde comprar determinado
o que o vizinho vai dizer. Ao contrário, o subúr-
carro ou uma bolsa de marca, promove o apa-
bio possui uma rede de proteção não oficial, mas
recimento de um novo suburbano, um sujeito
que é muito visível e real. Enquanto a Zona Sul
híbrido, fruto das contradições do progresso
tem seu cartão da assistência médica, é sócio de
econômico. Em Suburbia, vemos o surgimento
determinado clube, paga caro por uma proteção
da violência através do personagem do Cleiton,
profissional, o subúrbio sobrevive de suas redes
que, por circunstâncias muito particulares, en-
de proteção mais silenciosas: o afeto da família e
tra no crime. Tanto ele quanto Margarida, sua
dos vizinhos, os compadres da rua, da vida inteira,
mãe, são vítimas do novo subúrbio no qual estão
e tudo isso de graça, sem pagar nada.
mergulhados, mas são também as figuras heroi-
Globo/Divulgação
cas da narrativa, especialmente na derrota. Na
ficção essa perda os enobrece. Sua grandiosidade
está no fato de terem se tornado vítimas: valores
tidos como menores, mas puros, destruídos por
outros eticamente menores, vulgares. Tudo isso
aponta os personagens para a consciência dos
valores perdidos, mas também para os valores a
serem recuperados.
GU – Você falou de uma experiência do subúrbio por obras, pela criação. E depois você
teve o momento da gravação, onde você experimentou o subúrbio.
GU – Como se forma essa rede de solidariedade, essa relação de compadrio? E o que guarda
80
LFC – Eu já tinha experimentado o subúrbio na
de diferença dos outros núcleos?
minha primeira infância. Muito do que eu procu-
LFC – No subúrbio, o seu espaço nunca se li-
Mãe Bia, do núcleo principal, do interior da casa,
mita essencialmente à sua casa. Ele se estende
vem da memória dessa primeira infância em que
para a rua em frente, a praça, até mesmo para o
eu tinha um avô caminhoneiro que morava na
quintal do vizinho. Como se o subúrbio tivesse
Piedade. Até os meus 5 anos de idade meu pai ia
rei montar na rua da família do Seu Aloysio e da
Luiz Fernando Carvalho // Entrevista // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
lá todos os fins de semana e me levava. E eu fica-
LFC – O processo de construção da obra não
va jogando bola de meia na rua em frente. Eram
partiu de uma teoria. Não partiu da ideia de fazer
dias especiais esses na Piedade, em que eu podia
um texto com coordenadas antropológicas. Até
ficar solto na rua. O trânsito era escasso, mais de
mesmo porque grande parte das histórias que Su-
bicicletas, de carrocinhas – como as que vendiam
burbia narra são casos reais de uma mulher negra
carne, em que o açougueiro puxava a balança, pe-
que conviveu comigo por praticamente 25 anos
sava a alcatra na sua frente, enrolava num papel
e que foi uma espécie de mãe negra que eu tive.
de pão imenso e a pessoa entrava em casa com
Essa mulher era analfabeta. Foi uma menina que
aquele naco de carne. A minha primeira memória
fugiu, assim como a do seriado, de trabalhos for-
do subúrbio é essa. Depois teve o encontro com
çados, uma relação quase escravocrata no interior
a literatura, que acaba produzindo na gente uma
de Minas Gerais. E aqui no Rio ela foi passando
espécie de saudade do que você não viveu.
por aquelas agruras todas e foi vencendo. Então
GU – Paulo Lins, seu coautor em Suburbia,
trouxe ao seminário a discussão da inserção
dos negros na sociedade pela cultura. Da cultura como “arma de guerra”.
LFC – Sim, nossa resistência ao isolamento que
o racismo até hoje produz deu-se pela cultura. Fazendo Suburbia foi inevitável sentir com
mais densidade um racismo muito sutil atuando
a todo momento, em todos os lugares. O Rio
de Janeiro é uma cidade partida, um apartheid
disfarçado, com resquícios do Segundo Império.
Existem a Zona Norte e a periferia, onde há uma
grande presença de cidadãos negros, e a Zona
Sul, onde essas pessoas são sutilmente excluídas.
Moro perto de um shopping na Zona Sul. Você
entra lá e não vê negros. Você não vê negros
nem trabalhando nas lojas. Evidente, tudo isso
é meticulosamente calculado por um sistema de
valores, de mercado, que, no meu modo de ver,
continua gerando excluídos.
a minha preocupação permanente foi a de fazer uma aproximação com o real de forma mais
epidérmica, menos cenográfica, menos oficial,
menos industrializada, digamos assim. Ao fazer
uma aproximação mais documental, você estaria
arrastando com esse olhar uma série de críticas ao
contexto da sociedade em relação a essas
minorias. E, de uma
forma muito espontânea, acaba incluindo
uma reflexão social
O Rio de Janeiro é uma
cidade partida, um apartheid
disfarçado, com resquícios
do Segundo Império
dentro da dramaturgia, trazendo para o texto uma função social importante: um vínculo. Evidentemente, a televisão
cumpre um importante papel de entretenimento,
mas não pode abandonar sua responsabilidade
maior, sua missão, que é a de ajudar na formação de cidadãos. Suburbia conta uma trajetória
folhetinesca, mas ela não se exime de sublinhar
certas passagens, certas condições desse ser humano excluído. E aí vem toda a questão dos negros,
GU – Milton Santos, geógrafo que dedicou
da família dos negros, de um elenco formado de
parte de sua vida aos estudos da urbanização
negros, de um elenco desconhecido... Uma coisa
do Terceiro Mundo, falou por diversas vezes
é escrever a partir das memórias de alguém que
da “força do lugar”, que, por sua dimensão
você conheceu, outra é quando você começa a
humana, anularia os efeitos perversos da glo-
levantar essa questão na produção, no conceito,
balização. Como você trabalhou esse e outros
na realização da coisa. Você procura uma meni-
conceitos ligados à periferia em sua obra?
na para fazer [a personagem] Conceição e pensa:
81
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Entrevista // Luiz Fernando Carvalho
“Essa atriz tem de vir do povo, porque ela tem
mos alguma verdade em termos de dramaturgia.
de trazer gestos do povo, uma oralidade do povo,
Que indivíduos somos nós? Quem é o brasileiro
uma construção, uma intuição, uma inteligência
hoje? Há outras mídias, outros suportes, inter-
do povo”. São comportamentos muito difíceis e
net... Há uma enorme quantidade de conteú-
delicados de construir artisticamente, e que po-
dos cruzando o país atrás desta resposta. Mas
dem facilmente soar imitativos – algo que Nelson
como a televisão deve se colocar diante disso?
Rodrigues fazia com brilho, determinando um
A televisão deve se colocar como veículo de ex-
conjunto de vocábulos para cada personagem, e
celência, porque é o de maior abrangência, com
que não era repetido na fala de outro. A repre-
a maior experiência, por isso devemos também
sentação dessas especificidades de linguagem é, de
tomar para nós o compromisso de representar
modo geral, pouco vista entre nós. A partir do
as questões fundamentais dos cidadãos. As ques-
momento em que encontramos nossa Conceição,
tões sociais, morais e culturais devem estar em
encontramos também uma síntese de todo esse
pauta com uma urgência jamais vista. Sabendo
pensamento ético e estético da representação do
da dimensão que a televisão alcança em nosso
subúrbio. O encontro com a Conceição detonou
Brasil, tratá-la apenas como diversão me pare-
todo um processo crítico, rigoroso, em busca de
ce bastante contestável. Precisamos de diversão,
um elenco real.
mas também precisamos nos orientar e entender
GU – Durante o seminário em São Paulo, a
antropóloga Regina Celia Reyes Novaes defi-
GU – Das muitas leituras que a crítica fez do
niu Suburbia em uma frase: “Aquela cor na
seu trabalho mais recente, falou-se muito em
TV aberta me faz pensar que nada será como
ruptura, de uma nova experiência estética. O
antes”. Como você entende essa verdade cê-
que Suburbia traz de ruptura, o que traz de
nica e o poder que a arte tem em um canal
continuidade?
gigantesco como a TV aberta?
82
o mundo, o passado, o presente e o futuro.
LFC – Você nunca parte do zero em um novo
LFC – A frase é belíssima, mas acredito, sincera-
trabalho. O novo não vem do novo. O novo vem
mente, que a reflexão está muito mais no campo
da era anterior. Em termos de pintura, da fase
da crítica do desejo do que na realidade, no dia a
anterior do próprio artista, que, na maioria dos
dia da televisão aberta. Talvez essa seja a minha
casos, é um gesto de negação do que foi cria-
constatação final sobre Suburbia. Ainda há mui-
do até então, espécie de continuação ao avesso.
to o que caminhar para chegarmos a transformar
Tudo é perspectiva, movimento. Nada está nas-
essa singela experiência em algo que promova
cendo ali. Se eu for fazer uma reflexão sobre os
uma presença maior deste modo de pensar na
meus últimos dez anos, encontro ali uma ten-
programação da TV. E foi também por isso que
dência muito forte, uma pesquisa com o teatro,
eu chamei o Paulo Lins, numa tentativa de que,
com a ideia da representação, do mundo como
mesmo nesta perspectiva de tempo para mim ain-
representação: Hoje é dia de Maria, A Pedra do
da incerta, essa “cor”, que ainda é uma semente,
Reino, até mesmo Capitu, que foi encenada em
pudesse ser regada por ele, por alguém com vi-
um só lugar, e ainda Os Maias, em que já havia
vência e sensibilidade, abrindo os veios da histó-
uma busca de um espaço operístico com os pés-
ria, remexendo a terra adormecida há anos pelas
-direitos dos cenários, a forma como eu enqua-
ausências, reavivando as memórias para colher-
drava, a luz teatral, a presença da ópera na trilha
Luiz Fernando Carvalho // Entrevista // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo/Divulgação
sonora. Por definição, eu chamaria esse período
de “tetralogia teatral”,1 que vai desde Os Maias
até Capitu, no qual, misturando várias linguagens – teatro, cinema, literatura, folguedos populares, circo, ópera, investiguei esses limites da
representação na televisão, me apoiando nessas
convenções não televisivas, mas acreditando que
a televisão é um mistura de tudo isso. Se você
pegar um programa como o do Chacrinha, por
exemplo, ele é um invento híbrido, de uma potência incrível. Mas eu estava trabalhando com
ficção. Ao pensar Suburbia, de certa forma, sim,
eu já estava fazendo uma autocrítica em relação
àquele período.
GU – Tudo isso em um processo consciente?
LFC – Sim, consciente. O fato é que o realismo em Suburbia, que suporta todo o peso da
história e do social, é, na verdade, um realismo
a ser superado, no sentido de que o real é o que
todos os personagens devem enfrentar como um
obstáculo objetivo, de vida. O peso do real deve
ser sentido a fim de que a luta contra ele também
seja sentida e se torne possível. Por isso, apesar
de toda a minha ênfase em procurar pela ação,
Cleiton ao entrar para o crime só poderão ser
pelo movimento nos bailes funk, por uma famí-
medidas em contraposição ao conformismo de
lia ecumênica, pelo melodrama e sua vivacidade,
outros personagens, assim também o poder e a
o clima do seriado é de fato nostálgico, premo-
força do melodrama só fazem sentido se com-
nitório até, construindo uma espécie de realismo
parados à força inevitável de uma história real,
psíquico em torno de Conceição e Cleiton até
com o poder esmagador do social de que tanto
que alcance, a partir do quarto episódio, uma
Cleiton quanto Conceição foram vítimas. No
terrível conclusão: a sequência do motel até a
fim, é o amor que vence. E o preço pago por
entrada de Cleiton na casa da família de Conceição. Uma sequência decisiva, próxima de uma
explosão, o espocar de emoções que só a realidade, em sua representatividade e em seu poder
inflexível, pode induzir. E, assim como a força
do sacrifício de Conceição e a autodestruição de
1
Os Maias; Hoje é dia de Maria; A Pedra do
Reino e Capitu.
Para o diretor, o “peso do
real deve ser sentido”
essa vitória, a própria aposta de Conceição, é a
atmosfera passional com a qual os personagens
são brindados, envolvendo todos em uma espécie de “fábula irracial” que os atravessa, como
uma contradição em relação à própria realidade
que os cerca, mas também como uma revelação
da condição de força motriz que atua sobre o
subúrbio.
83
entrevista
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA FALA SOBRE AS CULTURAS DA PERIFERIA
“A ENTRADA DE NOVOS SABERES NA
UNIVERSIDADE É UM GOL”
Kiko Cabral
Por Ariadne Guimarães
Ela é uma entusiasta da integração entre a periferia e o meio acadêmico. Heloisa Buarque
de Hollanda, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é coordenadora do
Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ) e responsável pela
Universidade das Quebradas – um curso de extensão universitária que pretende criar um
ambiente de troca de saberes e práticas de criação e produção de conhecimento dentro e fora
da universidade. Em outras palavras, busca aproximar a cultura do subúrbio da produção
acadêmica. E vice-versa
84
Heloisa Buarque de Hollanda // Entrevista // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo Universidade – Periferia, subúrbio, quebrada... De onde vem essa necessidade de uma
nomenclatura de diferenciação?
Heloisa Buarque de Hollanda – Nomear é sempre dificílimo! Nomear a diferença, então, é pior
ainda. Qualquer nome que se disser é inadequado. “Subúrbio” é legal – mais ou menos, na ver-
GU – Desconstrução total.
HBH – Total.
GU – Você acompanha a produção cultural da
periferia há décadas. O que é possível notar de
diferente? Podemos falar em evolução nos níveis de aceitação pela dita cultura oficial?
dade. Pelo menos não é “favela”, não é “periferia”,
HBH – Eu comecei a namorar essa história em
não é “comunidade carente”, o pior de todos.
1993, desde a chacina de Vigário Geral [em 29 de
Isso revela a dificuldade de nomear esse lugar e
agosto de 1993, cerca de 50 homens encapuzados
essas pessoas, porque, de fato, essa necessidade e
invadiram a favela da Zona Norte do Rio de Ja-
esse cuidado são recentes, na medida em que es-
neiro e mataram 21 moradores]. Foi algo marcan-
sas comunidades eram totalmente invisíveis. Na
te, foi quando as pessoas começaram a perceber
hora em que se afirmaram, não tinham um nome
que a violência vinha também das instituições, da
consensual. Na Universidade das Quebradas, dei
polícia, e não só do narcotráfico. Olhou-se para a
uma aula inteira debatendo como deveríamos
favela não com medo, mas com um sentimento
chamar a iniciativa. Foi uma briga! Professores
de proteção. No mesmo ano ocorreu a chacina da
e quebradeiros, ninguém conseguia definir um
Candelária [em 23 de julho, mais de 40 crianças
nome. Tentamos “novas centralidades”, mas não
e adolescentes dormiam diante da igreja da Can-
funcionou. Aí chegamos à ideia de “favela”, que
delária, no centro do Rio, quando cinco homens
seria o nome mais interessante e o menos com-
desceram de um carro, dispararam e mataram
prometido com julgamentos de valor. Não é
oito jovens]. A intelectualidade, os acadêmicos,
“periferia”, porque “periferia” significa exclusão
os artistas não tiveram como ignorar esses casos.
em relação ao centro; “favela” é apenas uma plan-
Foi um escândalo. E esses acontecimentos fizeram
ta, encontrada na primeira de todas as favelas, o
algo interessante: levaram as pessoas até o territó-
morro da Providência. Só que uma menina disse:
rio da favela. Esse deslocamento da classe média
“Mas se eu disser que moro na favela, não arranjo
até a periferia teve um efeito decisivo. Foi nesse
emprego. Pode ser um nome romântico, mas não
contexto que se firmou a ideia da cultura como
serve, estigmatiza”. Essa falta de nome parecia ser
saída, como recurso. O que foi uma faca de dois
igual à invisibilidade dessa cultura e dessa popu-
gumes, na medida em que a cultura da periferia
lação. Nossa história é sintomática nesse sentido:
passou a ser vista como recurso de inclusão, como
até os registros da escravidão foram apagados.
geradora de renda, como alternativa para a vio-
Diante dessa fogueira, optamos por “quebrada”,
lência, mas não como uma estética. O que não
porque é como o hip hop chama esse lugar. É afe-
deixa de ser um olhar fortemente excludente. Eu
tivo e poético, é longe mas fica no horizonte, é
e o [cenógrafo] Gringo Cardia temos um projeto
lá onde o mar bate. Além de ser um nome belo,
chamado Estética da Periferia, cuja proposta é jus-
traz a ideia de “quebrar tudo”, inclusive a ideia de
tamente insistir na força e na natureza dessa esté-
periferia. O substantivo virou um verbo e saímos
tica enquanto tal. Mas até chegarmos a esse pon-
quebrando, literalmente: a universidade, territó-
to passaram-se dez anos. O encontro do centro
rios, palavras. É maravilhoso.
com a cultura da periferia foi muito efervescente.
85
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Entrevista // Heloisa Buarque de Hollanda
A classe média começou a olhar inicialmente
-Artes e de Letras é pequeno. Na faculdade de
procurando entender que universo era aquele,
Sociologia, Antropologia, é enorme. Então, ain-
que gera tanto medo e violência, um olhar mais
da é uma tribo de pretos sendo estudados em seu
voltado para a curiosidade do que propriamente
território pela diferença, e a cultura da periferia
um real interesse sobre a cultura. Por outro lado,
é claramente feita de movimento, fluxos entre
essa é uma estética “glocal”: ela tem fortes cone-
várias estéticas, entre centro e periferia.
xões com o hip hop internacional. Pela internet,
a vida cultural da periferia é fortíssima.
Acho que a diferença entre a situação do começo
GU – O reconhecimento dessa produção pela
cultura oficial ainda é sofrido.
HBH – Ainda é muito problemático. A cultura
tem uma visibilidade grande. Muitos profissio-
da periferia ainda é reconhecida como “objeto da
nais vindos desse meio estão hoje no mercado
sociologia”. Mais do que como arte. Minha pro-
de trabalho. São bons profissionais formados
posta, na Universidade das Quebradas, é colocar
pela Central Única das Favelas (Cufa), Nós do
esses artistas já em meio de carreira na universidade
Morro, ou Observatório de Favelas, que hoje
e aumentar seu repertório cultural – que é o que
trabalham com cinema, teatro, fotografia, de-
falta a eles. A gente dá Antropologia, Filosofia,
sign. Essa articulação com o hip hop também
Literatura, História da Arte, aumentando o esco-
abre um espectro gigantesco, principalmente
po de seu repertório e, por consequência, o poder
no mundo digital, na internet. Eu diria que, de
desse discurso. Além de dar voz à cultura da peri-
1980-90 para cá, o que houve foi uma trajetória
feria enquanto um saber potente, a Universidade
de visibilidade, e não de desenvolvimento cultu-
das Quebradas procura abrir e dar acesso ao saber
ral. O risco é ser visto como uma cultura à parte,
acadêmico para, de alguma forma, criar um espaço
diferente, exótica – que é como o meio acadêmi-
de diálogo possível e eficaz. É o que a gente chama
co ainda tende a ver. O percentual de estudos so-
de ecologia de saberes, esse investimento sistêmico
bre cultura da periferia nas faculdades de Belas-
no compartilhamento de culturas e conhecimento.
Kiko Cabral
e a atual é que hoje essa cultura está na mídia,
86
Heloisa Buarque de Hollanda // Entrevista // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
GU – Suburbia tem um aspecto interessante
essa quinta perna que é trazer a África, a mágica
de ser sobre a periferia e, ao mesmo tempo,
da origem.
um produto cultural da periferia, graças à
participação do Paulo Lins. Como você avalia
esse movimento?
HBH – Esse cruzamento só poderia dar no que
deu: a beleza e a força de Suburbia. Neste caso, em
especial, eu acho interessante porque o Paulo é e
não é da academia. Ele é um pesquisador – porque Cidade de Deus nasce de uma etnografia sobre
violência e Desde que o samba é samba é uma pesquisa, um resgate da história do samba – mas, pelas suas raízes na favela, Paulo traz agregado o valor do testemunho, dá mais chão ao relato. Ainda
que cheio de paixão. E o interessante é que o Luiz
[Fernando Carvalho] também não é um diretor
com um lugar ou dicção muito claros na teledramaturgia. Nele, o narrador dá lugar ao artista do
excesso, da luz, da cor. Eu acho que o trabalho do
Paulo misturado com o do Luiz levou [a minissérie] para a área do mito. Suburbia é a tradução
GU – Um aspecto que se destaca em Suburbia
é a apresentação desse produto sobre a periferia por um veículo de massa, para todo o país.
O que isso traz de novo?
HBH – A telenovela está encampando esse território na sua grade com fervor – é só ser telenoveleiro, como eu, que isso salta aos olhos. Para a
classe média branca, talvez essa chegada da periferia na telinha seja vista como moda – o que é uma
forma de preconceito sutil. Além de achar que
essa “moda” vai persistir por tempo indefinido,
esse tema atrai uma audiência massiva de classes
não tão “brancas” e também da juventude, por
meio da sedução do som e da festa. Mas quero insistir que Suburbia traz um diferencial no conjunto da presença da periferia na TV: ela é uma quase
ópera, um espetáculo erudito, ainda que popular.
GU – Essa sedução do som e da festa a que você
de um mito. Um mito de origem. A linguagem é
se refere é o funk?
de mito aliada a um sentimento que ecoa vozes
HBH – Isso, mais até do que o hip hop. Porque
da África, algo primal. E não é uma história de
o hip hop é a elite in-
subúrbio, é uma história que narra uma trajetória
telectual das favelas.
enorme até a chegada ao subúrbio. O subúrbio
Mas o funk é festa, é
é o lugar onde as vozes se encontram. Um lugar
tribo, é contagiante.
de chegada, um território mágico. Que na mão
Em 1993, fiz um se-
do Luiz tem um tratamento muito diferenciado
minário pouco depois
e oportuno para a periferia. Suburbia é linda por-
do massacre de Vigário
que é uma África que volta transformada, ainda
Geral. Chamava-se Sinais de Turbulência. A ideia
que inteira. O hip hop, de certa forma, percorre
era pensar sobre os desdobramentos dos novos
essa mesma busca de uma África ancestral. O hip
sinais culturais que a periferia estava emitindo.
hop se define por cinco pilares: rap, MCs, grafite,
Participaram o DJ Marlboro, teóricos de estudos
break dance e conhecimento. O conhecimento,
culturais e pesquisadores de hip hop vindos dos
neste caso bastante focado na busca de suas raízes
Estados Unidos e da América Latina, e já contava
africanas, é a quinta perna do hip hop e talvez a
com a presença de futuras lideranças, como [José]
mais vigorosa. Luiz e Paulo realizaram essa quinta
Junior e Écio [Salles, que mais tarde seriam do
perna. Em vez de ficarem sociológicos ali na his-
AfroReggae]. Abriu com um show da [produtora]
tória da Conceição e do subúrbio, eles foram para
Furacão 2000. Foi incrível porque, ao primeiro
Porque o hip hop é a elite
intelectual das favelas.
Mas o funk é festa, é tribo,
é contagiante
87
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Entrevista // Heloisa Buarque de Hollanda
Para saber mais:
Veja matéria exibida
no programa
Globo Universidade
(10/11/2012) sobre
a Universidade das
Quebradas:
http://glo.bo/Y9fUUp
som, todo mundo guardou a bolsa com medo
HBH – Eu acho que a Universidade das Quebra-
de ser assaltado. Foi um susto meio rito de passa-
das é uma militância acadêmica. A universidade
gem entre o asfalto e a favela. Era uma coisa tão
como um todo perdeu seu projeto lá pelos anos
nova... foi incrível ver aquilo dentro da univer-
1960, 1950. Ficou entre um perfil de universi-
sidade. O triste é que até hoje essa cultura ainda
dade crítica e aquela que forma para o mercado
não se consolidou como um fato cultural, ainda
de trabalho. Perdeu seu rumo e eficácia. O retra-
não é uma estética.
to mais triste disso é que ela tende a se ver, pelo
GU – E o que chancela, o que faz a sociedade
identificar, a partir de um momento, um processo cultural como legítimo? O que legitima a
produção cultural?
HBH – Eu acho que a legitimação da produção
cultural passa por milhares de inflexões. É uma
luta entre saberes. Esse é um estudo que eu sempre quis fazer e não tive a oportunidade: o estudo de currículo, o processo quase bélico do reconhecimento de uma nova disciplina na arena
acadêmica. No campo cultural, é a mesma coisa.
Quando surgem uma nova estética e um novo
projeto cultural, há um choque geral. O campo intelectual (ou cultural), já mostrava o velho
Bourdieu, é um campo de alta tensão. Qualquer
energia nova mexe com o sistema todo e às vezes pode gerar curto-circuito... As mulheres, ou
os homossexuais, representam culturas que, nos
anos 1980, tiveram dificuldade para se impor.
Mas, além da força intelectual interpelativa e política desses movimentos, a legitimação passou
também pelo reconhecimento daquele segmento
como nicho de consumo. O papo atual sobre a
potência da classe C também passa por isso, pelo
aumento de seu poder aquisitivo. O que simplifica e limita muito essa conversa, mas não deixa de
ser um fator de visibilidade incontestável.
88
menos nas áreas de Humanas, como um universo autocontido, sem maiores articulações com as
grandes questões contemporâneas e emergenciais.
Sem dúvida a entrada de novas culturas e demandas vai alterar a lógica de saber das universidades,
vai permitir a criação de novas plataformas de
produção, especialmente a plataforma da produção de conhecimento compartilhada. A plataforma do século XXI. O declínio da função central
do especialista diante do novo quadro dos fluxos
e acessos eficientes à informação e aos dados de
todos os tipos abre esse terreno da comunidade de
conhecimento como motor da inovação. O que é
preciso ensinar, o que vai ser novo, é articulação
da informação, é negociar com outro, A com B.
Isso é o ponto de criação, de produção de conhecimento, que hoje anda ocorrendo pelo contágio.
A entrada de novos saberes na universidade, na
medida em que eles são reconhecidos como competentes e não como objetos a serem capacitados,
é um gol para a universidade.
GU – E quais foram os gols que você já viu?
HBH – Eu estou chutando na trave há quatro
anos, mas ainda vou fazer um gol. Esse gol é produzir um conhecimento novo a partir da articulação das periferias e da academia. É o que estamos
tentando fazer como laboratório na Universidade
das Quebradas. É o que acontece nas redes so-
GU – A Universidade das Quebradas oferece
ciais. Pessoas completamente diferentes pensando
uma ponte entre a academia e o subúrbio. Uma
e trabalhando em torno de um objeto, um tema,
troca da produção intramuros, acadêmica, e a
uma conversa, um interesse. Esse modelo, trans-
cultura extramuros, oriunda da chamada peri-
posto para a criação de uma inteligência coletiva,
feria. Quais são os desafios desse diálogo?
como sonhou Pierre Lévy, é bem familiar para as
Heloisa Buarque de Hollanda // Entrevista // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Kiko Cabral
novas gerações e começa a se tornar mais comum
na área de Ciências Exatas, por exemplo. Eles estão sempre chamando artistas para trabalhar. Se
cientistas estão chamando artistas, se a Medicina
busca gente de Humanas para estudar junto, é
porque há a procura de um novo padrão de produção de conhecimento. Acho que a gente está
precisamente nesse momento lindo de virada e
construção de um modelo, de um padrão novo
de pesquisa e de produção de saber.
GU – Estamos falando da construção de pontes entres áreas e realidades diferentes. A Universidade das Quebradas representa essa possibilidade de ligação entre polos distintos?
HBH – É por aí. Mas não é uma ponte, é uma
conexão. Porque a gente tem esse fluxo de lá pra
cá e de cá pra lá. Esse trânsito já existe. O que não
existe é a escuta forte, a procura do entendimento do que o outro está dizendo. Isso poderia ser
chamado também de tradução cultural. O que, se
levado a sério, é uma das tarefas mais difíceis que
temos pela frente. E tem de ser de mão dupla...
No caso da cultura da periferia, ela já é. Não é
uma moda, como querem alguns acadêmicos. Já
é um poder. Então, a universidade vai ter de saber
como trabalhar com isso.
GU – E quais são os rumos da produção cultural dessa periferia? Existe um direção ou movi-
de forças entre elas tem de almejar a equivalência.
E, para isso, a periferia tem de ter pleno acesso ao
repertório da cultura de elite, e vice-versa. Hoje,
um artifício hilário que se colocou é a questão
do erro, a exigência da adequação à norma cul-
mento específico?
ta. Dizem que a periferia não produz literatura
HBH – Eu acho que ela está caminhando rapida-
critor da periferia tenha acesso e saiba acionar a
mente para o centro, para o território da mistu-
norma culta quando lhe interessar. Mas que possa
ra. Outra interpretação seria o fortalecimento de
também ser bilíngue e usar e criar a linguagem
várias centralidades interconectadas, sendo a cul-
como sua arte solicitar. O “erro” pode servir como
tura da periferia um desses centros. Não esqueço
um potente instrumento discriminador disfarça-
de um seminário que organizei há alguns anos,
do pela nobre causa da defesa da literatura e da
quando o [escritor] Ferréz bateu na mesa e disse:
língua nacionais. Do ponto de vista meramente
“Eu tenho direito a Flaubert. Não quero o gueto.
operacional, não há mais problema. É só acionar
Quero arrombar o cânone”. E vai. Ou seja, mes-
o corretor ortográfico do próprio Google que o
mo se tivermos várias centralidades, a distribuição
erro vira nuvem e as diferenças se completam.
porque escreve “errado”. É importante que o es-
89
Globo/Divulgação
depoimentos
Música e dança são frequentes
nas representações da família de
Madureira, em Suburbia
Reprodução
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Depoimento
ERIKA JANUZA
Da escola em Contagem para a Conceição
Minha família toda é de Minas, não tem ninguém de fora. O que sei é que eu surgi e
meus pais se casaram – minha mãe com o barrigão. Minha casa de infância era uma casa
grande, num quarteirão, um quintal grande, um monte de cachorro.
Meu pai tinha uma oficina, ele era mecânico, e a oficina era misturada com a casa.
Minha mãe sempre foi doméstica ou trabalhou em casa de família. Hoje em dia ela trabalha
em escola, a mesma em que eu trabalhava antes de estar aqui. Depois a minha mãe separou
do meu pai, e eu fui morar com a minha avó.
Eu sempre gostei muito de estudar, de ser disciplinadinha. E brincava muito na rua,
de queimada, de amarelinha, essas coisas que hoje em dia a gente quase não vê. Também
adorava brincar de boneca. Minha avó falava que eu ficava dançando com as bonecas. Eu
sempre gostei de imitar comercial de televisão.
Nunca fiz curso de nada, as minhas danças são todas no sentimento. De me puxar para
dançar e eu ir pegando. Um tempo atrás eu fiz uma aula de forró, que é uma base para muita
coisa. Mas foi só; o resto, samba, essas coisas todas, na prática vai pegando. Eu ia em festa,
quando tinha em casa de alguém, mas em boate, não. Era muito raro. E dançava funk e
muito axé, aquelas de dançar todo mundo igual, de passinho. Eu sabia as coreografias todas.
Eu ficava na frente, todo mundo copiava. Sempre gostei de funk.
Eu trabalhei como secretária ou recepcionista, sempre nessa área. Com o passar do
tempo, comecei a fazer desfile. Apesar de ser baixinha, eu fazia uma coisinha aqui, outra
ali, sempre com o sonho de televisão. Com uns 15 anos eu fui atrás, querer saber como é.
Eu comecei a participar de concursos de cidade, garota isso, garota aquilo, e fui. E ganhei
alguns. O primeiro foi Garota Contagem. Era uma coisa meio difícil por ser negra. Eu
sempre senti que o fator da cor dava uma atrapalhada. Senti muito isso na infância, eu sofria
muito por causa do cabelo. Ia pra casa chorando, tinha o maior complexo. Se fosse hoje em
dia, ia falar que era bullying, naquela época ainda não tinha isso.
92
Depoimento // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Eu desfilava na passarela. Tinha eliminatória, eu fui passando e
ganhei. Chorei horrores, porque a pessoa está ali cheia de sonhos e
acha que aquilo vai transformar a vida. Minha família toda foi. Foi
um dos primeiros concursos que o meu pai viu, e das poucas vezes
também que ele teve chance de ver. Saiu foto no jornal, e ele ficava
todo orgulhoso, rodando o bairro e mostrando a fotinho pra todo
mundo. Logo depois ele faleceu.
Para o Rio de Janeiro eu tinha vindo uma vez. Vim com a vontade
de conhecer um baile funk carioca. E eu estava lá na plateia dançando,
e a mulher me chamou, com mais um monte de carioca. Eu dancei
no palco e na hora o povo gritou mais pra mim. A mulher veio falar:
“Você é de onde?”. “Sou de Minas.” Aí ficou todo mundo assim...
Veja depoimento de Erika Januza
para o Museu da Pessoa:
http://bit.ly/14rG5eG
Apresentação da
personagem Conceição:
http://glo.bo/11eweFs
Nessa época eu trabalhava em escritório de advogados, depois fui
trabalhar numa loja, desfilava, vestia roupa para os clientes. E depois
disso fui trabalhar na escola onde estava trabalhando até hoje. Em
Contagem. E eu já nem estava correndo atrás de desfile, concurso.
As pessoas me mandavam e-mail com indicação de alguma coisa e
eu já nem abria mais. Um dia eu estava deletando tudo e resolvi abrir
um: “Precisa-se de negras entre 18 e 24 anos para uma campanha
publicitária”. Só uma foto, não custa nada. Mandei, mas nem fazia
ideia do que era. Aí o rapaz me ligou e falou: “Olha, o pessoal gostou
da sua foto, você pode ir na praça da Liberdade, tal dia, tal hora?”. E
nem estava dentro da faixa etária porque estava com 26 anos. Mas fui
para o teste. Foi superinformal, com uma camerazinha, perguntou meu
nome, o que eu fazia, se eu gostava de funk... Aí fui embora. Depois
que eu tinha conversado, ele falou: “O projeto é uma série da Globo”.
Quando fui fazer o teste, eu dançava e tremia. Voltei para o
meu serviço e não estava conseguindo me concentrar. Comecei
a emagrecer. Quase um mês depois, ele me ligou: “Queria te
informar que você é a nova protagonista da minissérie da Globo”.
Não sei nem explicar. Eu estava na escola, saí da sala da diretora
e estava no meio do recreio, quando olho pra minha mãe: “Mãe,
eu passei no teste”. E aí ficamos nós duas abraçadas no meio do
pátio, uma choradeira.
Há muita coincidência na história da Conceição, a personagem,
com a minha vida. Da história de baile funk, de concurso. Meu
sonho é pisar na Sapucaí, e ela vira rainha de bateria. Eu leio a
história chorando. Um monte de coisa acontecendo igual à minha
vida. Ela fala que quer namorar, noivar, casar, para depois ter filho,
e é justamente o jeito que eu penso. Meu sonho é casar de branco
na igreja. A mistura da minha vida com a vida da personagem.
93
Reprodução
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Depoimento
FABRÍCIO BOLIVEIRA
O menino atrás de um “eu”
Minha mãe é muito pudica, pelo que ela conta, e meu pai é um cara louco, farrista total.
Mas meu pai também faz o cara gente boa, então eu acho que ele conquistou meu avô, que
era um cara difícil, por isso. Casaram-se e foram morar em Brotas [bairro de Salvador]. Eu
nasci em Itapuã e fui pequeno morar em Brotas, que é um bairro enorme.
Meu pai hoje é aposentado, mas foi petroquímico a vida inteira. Trabalhou no Polo
Petroquímico de Camaçari, que é próximo a Salvador. Minha mãe é funcionária pública,
já tinha sido atriz mais jovem. Logo quando casou, parou porque ficou grávida do meu
irmão e depois foi funcionária pública. Ela trabalhou no Iceia, no Teatro Castro Alves, na
Biblioteca Central. A minha história com teatro começa aí, com o trabalho da minha mãe.
Eu sempre gostei de dançar. Então a gente tinha uma turminha no bairro que era de
dançar e jogar vôlei, que era meu vício maior. Com uns 15 anos eu fiz balé clássico, que
a minha mãe me matriculou. Eu fui, achei o máximo! Aí eu comecei a dançar. Tinha
um amigo do meu pai que tocava na Banda Mel, então eu comecei. A dança sempre me
acompanhou na minha história. Com 18, 19 anos, viajava os interiores da Bahia dando aula
de suíngue baiano. Eu tenho esse passado.
No ano em que prestei vestibular, não passei de primeira, eu tentei para Direito. Eu achava
que seria advogado. E até por eu ser um aluno estudioso, de ter notas boas, achava que deveria
ter uma profissão que ganhasse uma grana. Aí tomei pau nas duas universidades públicas
que eu fiz. Fiquei burilando. Uma namorada, Mirela, já tinha me falado: “Fabrício, tu é ator,
garoto; a sua é arte”. E resolvi prestar vestibular de novo no ano seguinte para Teatro, como
primeira opção. Passei para Artes Cênicas em quarto lugar. Quando é coisa que você quer
mesmo, você vai! Tem outros lugares que você aciona, do destino, sei lá! E foi incrível.
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Depoimento // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
No meu primeiro ano da faculdade, eu entrei para um grupo de
teatro que era a Companhia Baiana de Patifaria. Comecei a fazer
Capitães da areia com eles, eu com 19 anos, ganhando R$ 1.000 por
semana naquela época! Falei: “Opa. Então daqui! Está funcionando”.
Desde então eu vivo só fazendo teatro como ator e me sustentando!
Fiz uma campanha eleitoral, uma coisa bizarra, mas foi ótima
porque foi o meu sustento. Depois dessa campanha, eu virei garotopropaganda do cara que ganhou. Aí eu viajava, e foi uma experiência
linda na minha vida. A gente viajava de 15 em 15 dias pelo interior
da Bahia. Daí eu emendei com A máquina, que foi o filme do João
Falcão, e fiz duas peças em Salvador. Depois eu fiz Cidade dos homens
e o teste para Sinhá Moça, e já mandei trazer minha mala para o Rio.
Sou gago desde pequeno. Fiz fono a minha vida inteira. Hoje
consigo diagnosticar isso: medo de falar com as pessoas, de olhar
para as pessoas, muito retraído. A loucura é muito mais psicológica.
Eu comecei a descobrir que tinha a ver com a minha insegurança. E
comecei a sacar que eu precisava respirar e ter calma pra isso. Isso eu
fui descobrindo com a vida. E comecei a perceber que, toda vez que
eu estava em cena, não gaguejava. Eu pensei: “Porque eu penso antes,
sei o texto que eu vou falar, já sei bonitinho o que eu vou falar!”. Então
eu preciso chegar e falar com calma, olhar para a pessoa. Fui descobrir
isso dentro da arte, porque de algum jeito eu fazia personagens e
pessoas. Eu precisava falar tranquilamente, olhando no olho. Então
eu descobri que eu podia fazer isso na vida também.
Veja depoimento de Fabrício Boliveira
para o Museu da Pessoa:
http://bit.ly/VVTrMi
Apresentação do
personagem Cleiton:
http://glo.bo/VvBh7z
Depois da novela eu emendei o Sítio do Picapau Amarelo e A
favorita. Nesses anos eu fui emendando novelas, recomeçando. E
agora Suburbia. Com atores maravilhosos, muita gente nova. Esse
frescor. Meu personagem, o Cleiton, é um cara que não reclama da
vida. Ele soluciona. É um aprendizado pra mim isso, porque ele vai
solucionando a vida sempre, não tem olhar pra trás, não tem nem
desejar tanto à frente. Começa um garoto supertímido, com essa
persona de alguém que perdeu muito. Ele tenta se abrir na vida, só
que a vida vai levando-o pra outro lugar. Ele vai tentando achar que
persona é essa dele. É esse menino atrás de um “eu”. Eu incorporo
essas personas inteiras que eu fui na minha vida. Do garoto gago,
tímido, de aparelho, de óculos, para o garoto já mais bem resolvido,
mais seguro, para o homem com outro comportamento, menos
agressividade, mais observação. Acho que o Cleiton é um pouco
desse mito humano, da saga, dessas fases todas que a gente passa
na vida, de uma construção de uma persona, a construção de uma
identidade. Acho que o Cleiton representa essa saga do humano à
busca do “eu”.
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Reprodução
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Depoimento
Rosa Marya Colin
Estrada das Lágrimas, número 13
Eu me separei de meus pais aos 4 anos. Fiquei até os 8 com a minha avó paterna. Eu sei
que a mãe da minha mãe era caiapó, índia, caçada a laço pelo meu bisavô, que era mascate
e tinha origem árabe. Do meu pai, não sei nada. Meu pai era tintureiro. A minha avó... Eu
me emociono, porque ela era tudo pra mim. E aos 8 anos ela faleceu. Foi a maior tragédia
da minha vida! Depois disso eu fiquei um tempo com a minha tia-madrinha e fui morar
com o meu pai, em São Caetano do Sul [SP], na Estrada das Lágrimas, número 13. E lá foi
outro tormento, porque eu tinha madrastas, meu pai trocava de mulher toda hora. E meu
pai era muito severo, batia muito.
Com 12 anos o Juizado de Menores foi me buscar. Lá as meninas eram as piores.
Delinquentes. Eu não me misturava, então elas me espetavam com agulha, me queimavam
com cigarro. Eles lá viram o meu sofrimento e perguntaram o que eu queria fazer: trabalhar
ou continuar lá. Aí eu fui trabalhar numa casa, de babá. Um dia, a vigilante do Pensionato
Maria Gertrudes ligou: “Rosa, você não quer vir pra cá?”. E para mim foi uma maravilha, a
melhor fase da minha vida, porque lá eu estudei, fiz cursos de cerâmica, botânica, culinária,
bordados. Era um lugar subsidiado pelos Diários Associados, TV Tupi e Radio Difusora.
No Natal os artistas iam lá.
Na esquina tinha a casa da [cantora e apresentadora] Wilma Bentivegna, e, quando ela
vinha chegando em casa, eu subia correndo pro banheiro para cantar, para ver se ela me
descobria. Mas a dona Maria José dizia que eu não podia ser cantora, tinha de ser professora.
Me botou para fazer inglês. Dizia que cantora era vagabunda!
Desde que fui pra São Paulo eu ouvia música. Meu pai ouvia sertaneja. Naquela época,
os negros e os brancos não se misturavam, e o meu pai, onde negro não entrava, ele
entrava. Com um sorriso, a simpatia e o violão. Ele tocava e cantava. E minha mãe casou
com o meu pai para fugir do meu avô porque ela queria ser cantora. Eu já tenho isso no
sangue! Aos 3 anos, a minha mãe me levou ao Tabuleiro da Baiana, um programa que tinha
um concurso de crianças. Eu cantei Chiquita bacana e ganhei o primeiro lugar.
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Depoimento // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
No pensionato, os Diários Associados mandavam para lá os
discos que as rádios não queriam mais. E eu é que tomava conta,
porque era fissurada. Ali eu conheci e aprendi a gostar de música
clássica, conheci o jazz, Maurane, Bessie Smith, Billie Holiday.
Cresci ouvindo Frank Sinatra. Eu ouvia a música e macaqueava o
som, cantando.
Passou um tempo, a diretora disse: “Você vai completar 18
anos. O que você quer fazer da tua vida?”. Falei: “Eu quero
ir embora com a minha mãe”. Eu tinha um imaginário de
mãe padrão. Eu achava que a minha mãe era assim. Até eu me
harmonizar com ela levou um tempo. Cheguei no Rio em 1962 e
a mamãe morava numa casa de cômodos. Foi a primeira bordoada,
porque no pensionato, e mesmo com o meu pai, a gente tinha
uma casa boa. “Meu Deus, eu tenho que sair daqui. O que eu
vou fazer? Eu quero cantar.” Peguei os livros que eu tinha, pedi
um dinheiro para minha mãe, comprei um dicionário da Barsa e
espalhei na vizinhança que eu dava aula de inglês. Eu montava aula
de madrugada, e assim eu acabei aprendendo também. No final da
temporada eu estava com oito alunos.
Veja depoimento de Rosa Marya Colin
para o Museu da Pessoa:
http://bit.ly/XidJPr
Apresentação da
personagem Mãe Bia:
http://glo.bo/Yi5ggh
Eu trabalhava durante a semana e no final da semana ia cantar.
A primeira vez eu fui na Rádio Mayrink Veiga, em um programa
chamado Papel Carbono. Me propus a imitar Angela Maria. Fui
gongada, mas não desisti. No Rossini Pinto, na Rádio Tupi, eu cantei
uma música em inglês e outra em português. O cara gostou e eu
fiquei fazendo o programa dele. Quando acabou, ele me apresentou
para o Jair de Taumaturgo, que me levou para a televisão. Em 1967
fui contratada pela TV Record.
As pessoas me tratavam com muito carinho e muita atenção
porque sabiam de onde eu tinha vindo. Muitas pessoas lindas
apareceram na minha vida, me acolheram, me deram abrigo, amor,
carinho. Por isso que eu digo: o mundo foi e é a minha família. Eu
me considero uma flor nascida do lodo.
Minha primeira experiência no teatro foi em 1968, no Hair. Como
atriz, comecei fazendo televisão com Escrava Anastácia, na TV Manchete
– eu era uma cozinheira na senzala. Comecei a fazer humor com o
Chico Anysio. Fiz Hoje é dia de Maria, o Sítio do Picapau Amarelo.
Agora, no Suburbia, faço a Mãe Bia. Uma mãezona com muito amor,
coração aberto pra receber todos que viessem a sua casa, uma esposa
dedicada. É ecumênica, igualzinho ao brasileiro. Vai na umbanda, reza
o terço, tem uma bíblia em casa, os santos de devoção, uma filha que é
evangélica, um filho que não é de nada, que é ateu, que fala bobagens!
E a casa dela é um esteio. E tem tudo a ver comigo.
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Reprodução
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Depoimento
Haroldo Costa Da época em que não havia negro no teatro
Eu nasci dia 13 de maio, mas meu pai me registrou dia 21 e o escrivão marcou 21. Mas
eu repudio o 21. Eu tinha 2 anos quando minha mãe faleceu, e não tenho maiores detalhes
sobre ela, a não ser que era muito bonita. Meu pai se mudou para Maceió, onde a família
paterna estava. O que marca mesmo, e muito, é o calendário festivo de Maceió. Isso, pra
mim, foi um aprendizado inesquecível porque ali eu via reisados, guerreiros, maracatu,
pastoris, chegança, quilombo, que são todas as danças regionais de Alagoas. Tudo isso, para
uma criança em formação, deixa um resíduo muito grande.
Meu avô achou que eu já estava na idade de voltar para o Rio. Para mim foi um
desencanto. Mas eu vim para o Rio, não tinha outro jeito. E a rua em que a gente morava,
a Joaquim Silva, era realmente muito interessante. Para começar, não tinha edifícios, eram
só casas. E tinha a famosa escadinha da Lapa, que hoje virou obra de arte. E ali era o nosso
playground. No Carnaval tinha um bloco da rua, o meu pai era do bloco, um dos que
ajudavam. Era muito animado.
Estudei no Pedro II, fiz política estudantil, fui presidente do Grêmio Científico e
Literário. E a guerra terminou em 1945 e veio a chamada redemocratização. E eu comecei
a frequentar a UNE, como delegado do Grêmio do Pedro II. E terminei sendo presidente
da Associação Municipal dos Estudantes Secundaristas do Rio de Janeiro e fiz parte da
comissão fundadora da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas.
Alguém deu para o meu pai um panfleto que falava sobre curso de alfabetização de
adultos no Teatro Experimental do Negro, que era dado na UNE. Meu pai me deu esse
panfleto: “Vai lá dar uma força para os demais”. Eu fui. No salão de cima, o curso acontecia.
No salão de baixo, o teatro ensaiava. Um belo dia eu estou lá ajudando a ensinar, e eis que
alguém aparece e me chama para ler o papel de um personagem da peça que estava sendo
montada. O ator não apareceu, e me chamaram para ler o papel. Eu li e fiquei com ele.
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Depoimento // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Era o Peregrino. A peça foi O filho pródigo, de Lúcio Cardoso. Eu
comecei a vivenciar o teatro e fui aprendendo.
O meu pai foi da Frente Negra Brasileira, já tinha militado nessa
área da valorização do negro, da cultura negra, mas ele nunca fez
proselitismo disso comigo. Na verdade eu fui descobrir por acaso.
E o Teatro Experimental do Negro, nessa época, foi uma reação
àquele momento que a gente vivia, teatralmente falando. Nessa
época os teatros funcionavam de terça a domingo, tinha elenco
espalhado pelo Rio de Janeiro todo, companhias... E o que você via?
Não tinha negro em peça nenhuma. Quando tinha era uma coisa
circunstancial, parte do cenário.
Nós fundamos um grupo chamado Grupo dos Novos. A gente
achava que o Teatro Experimental estava muito pesado, só os
clássicos. E a gente queria fazer uma coisa mais sacudida... Eu escrevi
um texto na época, Rapsódia de Ébano, e a gente começou a montar,
a coisa progrediu. Nós mudamos de Grupo dos Novos pra Teatro
Folclórico Brasileiro. Todo mundo autodidata. E o teatro ficou
ideologicamente forte, nós sabíamos o que queríamos, e com isso as
pessoas foram chegando. Quando nós estávamos no Teatro Odeon,
apareceu um cara pra ver o espetáculo, um inglês, empresário, que
estava tomando conhecimento de grupos para o festival de Londres.
E conversou para a gente ir. Mas antes tinha uma grande turnê
pela América do Sul. Inteira. Mudamos o nome para Brasiliana e
viajamos por 25 países pelo mundo inteiro, durante cinco anos. Veja depoimento de Haroldo Costa
para o Museu da Pessoa:
http://bit.ly/WB1QmF
Apresentação do
personagem Seu Aloyso:
http://glo.bo/129mZLN
O Fala, crioulo é um livro que nasceu logo depois da extinção
do AI-5. Porque sempre me incomodou esse papo de democracia
racial, essas coisas que tem oficialmente e que não correspondem
à verdade. Inclusive eu usei a palavra “crioulo” de propósito, para
desmistificar esse negócio. Crioulo não é uma palavra pejorativa;
ao contrário, etimologicamente falando, crioulo é o negro nascido
no Brasil. Eu peguei uma série de pessoas, algumas conhecidas, a
maioria não. Era pra dar um espectro. E saiu o Fala, crioulo.
Eu costumava dizer que, quando tinha o anúncio de uma
novela de época, os atores negros faziam assim: “Opa! Vai ter lugar,
nem que seja no pelourinho!”. Porque normalmente não tem,
é exceção. O juiz, o farmacêutico, o médico negro, é uma coisa
muito distante da realidade, quando a realidade é outra. Então
acho que Suburbia focaliza o que eu chamei de uma fábula inter-racial. Suburbia vai mostrar pela primeira vez, que eu me lembro,
um núcleo de família negra. Em geral tem o negro, mas ninguém
sabe quem é o pai, não tem filho, avô, neto, está solto lá. É um ET.
Esse não. É um núcleo onde tem pai, mãe, genro, filho, neto.
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Reprodução
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Depoimento
Dani Ornellas
Baixada Fluminense, da violência e da poesia
Eu nasci em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro; minha mãe nasceu em Minas, na
cidade do cinema, Cataguases, e meu pai em Campos. O meu pai trabalhava no Ministério
da Saúde, como ascensorista. Depois passou a trabalhar no Banco do Brasil, mas eu não
lembro a função dele. Minha mãe trabalhava como faxineira de escola.
Meu pai teve uma história: uma vez ele foi pra casa almoçar – eu não era nascida ainda,
só meus irmãos – e caiu do ônibus, bateu com a cabeça no meio-fio, perdeu a memória e foi
internado, como louco, em um hospital psiquiátrico. Isso porque levaram os documentos, a
bolsa dele. Ele ficou sumido quase um ano, a família procurando, e ele fazendo tratamento
pesado, de eletrochoque. Ficou internado e dizia: “Eu não sou louco, eu não lembro”. Minha
mãe só o encontrou depois de um ano. Ela voltou a estudar nesse período, e terminou o
segundo grau [ensino médio]. Até que ele recuperou a memória e voltou pra família. Mas
toma remédio até hoje por conta disso. Ele voltou a trabalhar como mestre de obra – meu
pai desenha e constrói casas.
Nossa casa foi mudando. Porque a família foi crescendo e meu pai precisou construir
uma casa, no mesmo quintal, que era um terreno grande. A gente até brincava, chamava
de “quilombo dos Ornellas”, porque morava uma negada, a família inteira. Eu fui a caçula
durante muito tempo, depois a minha mãe adotou uns primos meus. A mãe de dois deles
faleceu, e o meu tio era alcóolatra, bebia muito. Lembro da conversa da minha mãe comigo:
“Olha, tem os primos de vocês, o tio não dá conta, não está tratando bem deles”. E avisou:
“Mas, eles vindo para cá, muita coisa vai mudar. Não vai mais ter iogurte todo dia, não
vai ter roupa nova... Então a gente tem de resolver, se a gente abre mão disso...”. Aí todos
falaram: “Não, é nossa família”.
Meu quintal tinha galinheiro, horta, árvore frutífera. Era o nosso refúgio. O portão ficava
aberto e a gente se frequentava, as pessoas se conheciam. A Baixada Fluminense da minha
infância tinha muita poesia. De poder brincar na rua, de decorar a rua para a Festa Junina,
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Depoimento // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
fazer bandeirinha, enfeitar na Copa do Mundo. Eu não moro lá há
bastante tempo, mas sempre vou para a Baixada para visitar os amigos,
ver quem teve neném. Se tiver festa, é só me convidar que eu vou.
Minha mãe alfabetizou quase o bairro inteiro. Ela era faxineira
de uma escola e um dia uma diretora falou uma coisa que ela não
gostou: “Você nunca vai ser nada. Nunca vai ser mais que isso”. Ah,
falou para a pessoa errada! Ela voltou a estudar, fez faculdade, se
formou em História. Na mesma escola em que era faxineira, entrou
como professora, de primeira à quarta série.
Ela pagou a faculdade dela fazendo bolinho. Chegou para o
dono da faculdade e falou: “Eu passei e queria saber se você pode
me dar uma bolsa”. Ele deu e ela falou: “Ainda não posso pagar”. “O
que você sabe fazer?”, ele perguntou. Ela: “Eu sei cozinhar”. Ele: “Tá
bom, então a partir de hoje você vende as comidas da cantina”. Ela
foi a primeira pessoa da minha família a fazer faculdade.
Eu passava o final de semana com a minhas primas, na casa da
minha tia. “Tem que conhecer o mundo; sua mãe fica dizendo que
você não pode sair, mas você vai sair! Eu vou te levar”, ela dizia.
Minha tia era para frente, total. Tia Elza. Podia me jogar na noite,
era bom. Sexta-feira eu, adolescente, ia embora. De lá ia para
todos os lugares: Copacabana, Irajá, Madureira. Era um universo
muito mágico e muito lúdico de ritmos e cores, de pessoas lindas,
montadas. Negros lindíssimos, com cabelos diferentes, escola de
samba! Eu ia mais para o baile charme, em que tocava funk melody
– ritmo muito parecido com o que toca em Suburbia.
Veja depoimento de Dani Ornellas
para o Museu da Pessoa:
http://bit.ly/14rGLAE
Apresentação da
personagem Vera:
http://glo.bo/Vnxjsn
Quando eu fui para o segundo grau, entrei pela primeira vez na
minha vida em colégio particular. E eu fiz uma peça, na oitava série,
em que eu fazia uma prostituta. E adorei. Aí falei com um primo
meu, que era professor, e ele me levou para a escola Martins Pena. Lá,
me levaram para o Tablado. Aí, quando ia prestar vestibular, falei para
minha mãe: “O que eu quero fazer é teatro”. Lembro que ela falou:
“Se você quer isso, eu não tenho dinheiro para jogar fora. Vai, mas
não quero nunca que você reclame da escolha que está fazendo. Você
é mulher, negra, vive em um país em que as pessoas não têm dinheiro
para comprar comida e você quer trabalhar com cultura?”
Fiz um teste para entrar em Suburbia. Para fazer a Vera, eu tenho que
iluminar muito a minha individualidade, porque ela recebeu a missão
divina de organizar o mundo – e é difícil, eu não tenho essa missão.
Ela é um furacão. Tudo o que ela é, ela é mesmo: já foi prostituta, já foi
ladra, já foi mulher de bandido, agora é evangélica mesmo! Se tivesse
que definir ela, é uma pessoa com sede e fome de viver.
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Reprodução
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Depoimento
CRIDEMAR AQUINO
A gente fazia teatro sem saber
As pessoas ficam me botando vários nomes, elas me chamam de Creidemar, Crildemar,
Crisdemar, Clidemar. Cridemar é fácil. Mas inventam. Eu prefiro Cridemar, foca!
Eu lembro que a minha infância inteira é lá no quintal da minha avó com a molecada
toda, porque a família era muito numerosa. E minha avó ficava em casa o dia inteiro, às
vezes ela lavava roupa para fora, mas a rua inteira acolhia minha avó como uma avó de
todo mundo.
O quintal vivia cheio de moleque, cheio de criança brincando. O pessoal ia para o
trabalho, falava assim: “Dona Maria, passe o olho”. Quando via, o quintal estava lotado
de criança brincando o dia inteiro, aquela coisa toda. Eu lembro muito disso, que a minha
infância naquele quintal foi muito importante, porque a gente fez muita loucura ali. A
gente pegava legume, porque meu avô tinha uma horta no fundo do quintal imensa, linda,
uma horta cultivada com todo carinho, todo amor.
Na infância, lá no quintal, brincando com os moleques, todo mundo lá, a gente fazia
teatrinho sem saber que era teatro. A gente montava cenário, colava sol, lua, pá, botava o
tijolo aqui e ali, fazia de plateia, chamava os moleques na rua pra poder ver a pecinha. Mas
a gente não sabia que aquilo era teatro.
Minha avó por parte de mãe frequentava os terreiros de candomblé. Ela não era da
religião, ela também ia à igreja, e ela fazia as rezas dela lá em casa. Ela cantava uns pontos
que ela trouxe de Minas, que era de jongo, e ninguém sabia da família. Ela cantava assim:
“Pisei na pedra, a pedra balanceou. Pisei na pedra, a pedra balanceou, disse: ‘Levanta, povo,
cativeiro se acabou’. Disse: ‘Levanta, povo, cativeiro se acabou’”. E eu fui saber agora, dez
anos atrás, quando eu comecei a fazer jongo, porque comecei a conhecer mais a cultura
popular brasileira. Aí cantei uma música dentro de casa, minha mãe: “Para de cantar
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Depoimento // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
macumba dentro de casa”. Eu: “Mãe, isso não é macumba não, isso
é jongo”. “A sua avó cantava essas músicas, não sei o quê.” Aí eu:
“Mãe, isso não é macumba não, isso é jongo, ponto de jongo”. Aí
eu fui explicar. “Ih, sua avó cantava isso direto”. Veja depoimento de Cridemar Aquino para o
Museu da Pessoa:
http://bit.ly/11eFxtP
Apresentação do
personagem Moacir:
http://glo.bo/129ptK0
Eu nunca tinha ouvido falar, na minha vida, em maracatu, coco...
sei lá que raio é esse de coco, meu Deus! Ficava assim de bobeira.
E assim, todas essas danças que eu fiz: coco, jongo, maracatu,
embolada, xote, xaxado, todas essas danças e outras, quando eu vou
pra uma viagem, às vezes eu estou lá em Belém do Pará, vejo um
cacuriá, eu falo: “Caramba!”. Há 12 ou 13 anos eu fiz a oficina e
pratico até hoje, porque na minha companhia a gente também foca
nessas danças de matrizes africanas.
Minha família nunca tinha pisado num teatro na vida. Eu nunca
tinha entrado no teatro. Eu entrei numa escola, no GP175, no José
Lins do Rego. Tinha uma professora, que se chama Valéria Monã,
que era uma professora de animação cultural na escola. Pegou um
texto, falou assim: “Leia isso aqui e mais tarde a gente vai trabalhar
esse texto aqui na oficina”. Era um poema do Solano Trindade e
do Pixinguinha chamado “Eu sou negro”. Aí eu não fui à aula. Eu
estava com medo, morri de medo daquilo. Comecei a fazer o curso no Centro Cultural José Bonifácio, lá na
Gamboa, um centro cultural de influência negra, de matriz africana.
Comecei a fazer teatro lá, fiz um mês, duas vezes por semana, sem
minha mãe saber, porque ela não podia saber. Hoje minha mãe vai
ao dentista e leva o flyer meu de espetáculo: “Ah, meu filho está
fazendo um espetáculo”. Fica dando para as pessoas. Eu: “Mãe, para
com isso”. “Não, porque meu filho é artista.”
O personagem de Suburbia não tem nada a ver comigo, a não
ser essa vontade de viver, ele curte a vida como se realmente fosse
o último momento da vida dele. Ele é intenso, o cara. Agora, tem
algumas coisas nele... por exemplo, meu pai era um grande jogador
de sinuca, isso me traz uma lembrança muito gostosa, porque quando
eu pego o taco me lembro do cara, aí isso me dá uma postura, o
cotovelo já levanta, são coisas que são bacanas. E o Moacir tem uma
coisa legal, porque ele gosta de estar junto com a família, e eu gosto de
estar junto com a minha família. Final de semana lá em casa também
tem “panelão”, churrasco. Às vezes a gente está tomando uma cerveja,
daqui a pouco o quintal já está cheio de gente, que o pessoal vai
chegando. E ele também gosta disso, gosta de chamar as pessoas, de
estar próximo, de fazer festa. Essa simpatia é natural dele, não é nada
forçado. Ele não quer aparecer, ele quer estar, quer existir.
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Reprodução
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Depoimento
ANA PÉROLA
Gari de dia, dançarina à noite
A minha mãe sempre trabalhou muito. Ela é cabeleireira, e o dinheiro do cabelo de
hoje já era para comprar alguma coisa para casa, o dinheiro do dia. A gente nunca passou
fome porque minha mãe nunca deixou a peteca cair. O dia em que não aparecia alguma
coisa, vinha a luz, que Deus é muito bom. Quando você acha que as coisas não vão... Opa!
Aparece um cabelo, um cortezinho rapidinho, uma tintura. Ela trabalhava em casa para
poder ficar com a gente. Minha mãe sempre quis mesmo a gente, com muita força. Eu
nasci de seis meses, e todas as pessoas me olhavam e falavam assim: “Esse bichinho aí não
vai vingar não”. E eu estou aqui, fazer o quê?
O subúrbio é um local onde tem pessoas que são próximas, que os vizinhos são como
parentes, que a gente pode ser íntimo com todas. É isso, é você ter mais contato com as
pessoas. É gostoso ser do subúrbio. A minha família é muito engraçada, então a gente conta
nossas histórias, já é o suficiente. Tem bastante comida. Minha tia gosta muito de cozinhar,
e no domingo, se você não comer a comida dela, ela fica louca! Foi ela que me levou para o
samba! Eu tinha 6, 7 anos, só que não podia desfilar, mas eu ia em todos os ensaios. Minha
tia me levava pro Unidos da Ponte, era ótimo. Eu acho que quando você gosta muito de
uma coisa, vê alguém fazendo, acha muito bonito, acaba tentando fazer aquilo de qualquer
forma, e você consegue. É uma verdade que eu tenho para a minha vida! Era uma coisa que
me encantava, o povo sambando pra caramba. Eu ficava lá o tempo todo sambando igual
uma louca. Até hoje, se soltar o pé numa bateria, ta ti cá tá, acabou! Muito gostoso. Quando
a bateria toca, parece que mexe com o seu interior e eu, pelo menos, não consigo ver mais
ninguém na minha frente. Não existe um cansaço físico.
Aí comecei a pedir para minha mãe me levar; eu fui, comecei a pescar mais como as
mulatas faziam e pronto: cada dia que passava eu estava ficando melhor no negócio. E hoje eu
me considero uma profissional do samba, porque faço o samba por amor. Hoje eu estou na
Mocidade como passista e como coordenadora de ala no Império Serrano. A passista tem de
saber sambar bem, ter um corpo legalzinho e ter leveza nos movimentos; demonstrar simpatia,
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Depoimento // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
mostrar alegria, fazer com que as pessoas que olhem pra ela vejam o
que a escola pode oferecer. Você está representando uma escola!
Uma coisa eu tinha certeza: “Eu vou ser dançarina”. Isso sempre.
Conforme foi passando o tempo, todo mundo parece que tem que
ter uma faculdade. Eu já pensei: “Ah, deixa o mundo me levar, a vida
vai me encaminhar pra um caminho certo”! Eu comecei a trabalhar
profissionalmente como dançarina no Plataforma. Eu trabalhava
à noite, dançava vários estilos. Aprendi xaxado, carimbó, danças
típicas do Brasil. Eu adorava estar no palco. Eu precisava, era muito
importante pra mim. Abria a cortina, você está lá!
Eu fiz um concurso de gari, em 2005, só que eles só me chamaram
em 2007. Comecei a trabalhar como gari o dia inteiro e à noite ia
dançar. Acho que fiquei dois anos nessa loucura. Num momento
eu me senti muito exausta, meu corpo não estava aguentando mais.
O primeiro dia como gari o braço dói muito, porque a vassoura
é grande, pesada, você não é acostumada a ficar o dia inteiro só
varrendo. Depois, tudo me divertia: “Vamos varrer essa rua daqui
até lá”. Eu:“Caraca, vamos varrer”. A gente parava, pedia água,
comia alguma coisa, é bom! Fui trabalhar em Irajá, na rua, fiquei
um tempão trabalhando lá, com a equipe de ceifadeira, e tive uma
rua só pra mim.
Veja depoimento de Ana Pérola
para o Museu da Pessoa:
http://bit.ly/WQ1dqw
Apresentação da
personagem Jéssica:
http://glo.bo/14rI0zU
E não tem jeito, estava lá eu pingando, maquiadinha, a hora
que dava a gente dá um jeitinho, olha no vidro do carro: “Opa,
será que eu estou bem?”. Um brinquinho, e se der pra botar um
colar de plástico para não machucar a pele, alguma coisinha assim,
está sempre arrumadinha. Não é porque você é gari que você tem
que andar de qualquer jeito, tem que estar sempre arrumadinha,
sempre bonitinha. Eu trabalhava dentro da prefeitura como gari,
aí quiseram fazer uma reportagem para o jornal, e o rapaz colocou:
“Pérola no lixo”. Eu: “Pô, Pérola no lixo?”. Mas a reportagem ficou
linda, dali por diante as pessoas me chamavam: “Você que é a
Pérola?”. Como eu vou falar que não? As pessoas me chamam de
Ana Pérola até hoje.
Tem muita coisa ao contrário. A Jéssica é a mulher! É a todo-poderosa, ninguém pode ir contra ela. A loira falsa, ela não deixa
a peteca cair, ninguém pode falar alto com ela, ninguém pode ser
mais que ela. A Ana, não, é tranquila; cada um tem o seu espaço,
cada um tem sua verdade. A Jéssica tem que estar com o pelinho
loirinho. Ela vai pra praia, passa o seu descolorante, e isso é coisa
de quê? Suburbano! A Jéssica sempre com o pelinho loirinho, linda,
maravilhosa. Mas ela dança e eu amo.
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Edmilson Lima
making of
SUBURBIA POR TRÁS DAS LENTES
A gravação da série Suburbia foi acompanhada por fotógrafos da agência Imagens do
Povo, do Complexo da Maré. Criado pelo Observatório das Favelas, o programa é um
centro de documentação, pesquisa, formação e inserção de fotógrafos de comunidades
populares no mercado de trabalho. Nas páginas a seguir, as cenas registradas pelos
fotógrafos da agência.
Imagens do Povo: www.imagensdopovo.org.br
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Edmilson Lima
AF Rodrigues
AF Rodrigues
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AF Rodrigues
Edmilson Lima
AF Rodrigues
Edmilson Lima
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AF Rodrigues
Nome do Autor // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
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AF Rodrigues
AF Rodrigues
AF Rodrigues
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Nome do Autor
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