conflitos de competência civel

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conflitos de competência civel
CONFLITOS DE COMPETÊNCIA
CIVEL
Agravo nº 7138/05-3ª Sec.
Data 16/02/2006
4656 (Boletim Interno nº 24)
COMPETÊNCIA
ACÇÃO ESPECIAL HOSPITALAR
JULGADOS DE PAZ
Sumário
Os julgados de paz não são competentes, em razão da matéria, para conhecer das acções destinadas à
cobrança de créditos por prestação de cuidados de saúde.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
O HOSPITAL .........., SA instaurou acção declarativa de condenação sob a forma
sumaríssima contra E.........., SA, B..........., C.........., D..........., COMPANHIA DE SEGUROS
X.........., SA, F.......... e FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL.
Formulou os seguintes pedidos:
A) Condenar-se a 1ª ré a pagar ao autor a quantia de € 354,13 e os respectivos juros no
montante de € 13,72, acrescida dos juros vincendos à taxa legal até integral pagamento;
B) Ou, caso assim se não entenda, condenar-se o 2º, 3º, 4º e 7º réus no pagamento da
quantia em dívida acrescida dos juros vencidos e vincendos até integral pagamento;
C) Ou ainda condenar-se a 5ª ré no pagamento ao autor da quantia em dívida acrescida dos
juros vencidos e vincendos até integral pagamento;
D) Ou condenar-se ainda o 6º e 7º réus no pagamento ao autor da quantia em dívida,
acrescida dos juros vencidos e vincendos até integral pagamento;
E) Ou ainda condenar-se o 6º, 7º e 8º réus no pagamento da quantia em dívida ao autor,
acrescida dos juros vencidos e vincendos até integral pagamento;
F) Ou ainda condenar-se o 6º, 8º e 9º réus no pagamento da quantia em dívida ao autor,
acrescida dos juros vencidos e vincendos até integral pagamento.
Como fundamento, alegou factos tendentes a demonstrar que prestou assistência a G..........
e H.......... para tratamento das lesões sofridas em consequência de acidente de viação
ocorrido por culpa dos condutores dos veículos de matrícula LX-..-.., conduzido por I..........,
e ..-..-FN, conduzido pelo réu F.......... .
A responsabilidade civil emergente de acidente de viação com o veículo LX encontrava-se
transferida para a ré E.......... mediante contrato de seguro; caso este contrato não fosse
válido e eficaz, são responsáveis pelo pagamento da quantia pedida o réu FGA, o réu
D.........., na qualidade de proprietário do veículo, e os réus B.......... e C..........., na
qualidade de únicos herdeiros do condutor I.........., já falecido.
A responsabilidade civil emergente de acidente de viação com o veículo FN encontrava-se
transferida para a ré Companhia de Seguros X........., SA mediante contrato de seguro; caso
este contrato não fosse válido e eficaz, são responsáveis pelo pagamento da quantia pedida
o réu FGA, o réu F.........., na qualidade de condutor do veículo e os réus J.......... ou
L..........., por um deles ser o proprietário do veículo.
Todos os réus contestaram, com excepção da ré L.......... .
Findos os articulados, foi proferido despacho a convidar as partes a pronunciarem-se sobre a
questão da incompetência do tribunal em razão da hierarquia.
Apenas o autor respondeu, pronunciando-se pela competência do Tribunal de Pequena
Instância Cível em razão de matéria e da hierarquia.
De seguida, foi proferido despacho que julgou o tribunal incompetente, em razão da
hierarquia, para conhecer e decidir a presente acção e, em consequência, absolveu os réus
da instância.
Inconformado, o autor interpôs recurso de agravo, formulando as seguintes
Conclusões
1ª – A presente acção foi interposta no Tribunal de Pequena Instância do Porto. Por
despacho de 22.03.05, o Mº Juiz remeteu os presentes autos para os Julgados de Paz do
Porto, por considerar ser este o tribunal hierarquicamente competente.
2ª – Porém, salvo melhor entendimento, afigura-se ao aqui recorrente que o mesmo não
tem razão.
3ª – O DL 218/99 de 15.06 estabelece um regime especial para a cobrança de dívidas
referentes aos cuidados de saúde prestados pelas instituições e serviços integrados no
Serviço Nacional de Saúde, como se depreende não só do teor do preâmbulo como do
estipulado nos artºs 1º, 2º, 3º, 4º e 5º do citado Diploma legal.
4ª – Por sua vez, a Lei 78/01 de 13.07, no seu artº 9º, regula a competência material dos
Julgados de Paz, sendo-lhes permitido apreciar e decidir nas situações previstas nos nºs 1 e
2 do artº 9º da referida Lei 78/01.
5ª – Consequentemente, todas as acções cuja competência aí se encontre excluída, cujo
valor seja inferior à alçada de primeira instância, serão a contrario sensu da competência dos
Tribunais de Pequena Instância Cível.
6ª – O mencionado normativo legal, na alínea a) do nº 1, refere que estão excluídas do
âmbito da sua competência material, as acções que tenham por objecto prestação
pecuniária, cujo credor originário seja uma pessoa colectiva, requisito este que impende
sobre a aqui recorrente, o que, em nosso entender, implica obrigatoriamente a
incompetência material dos Julgados de Paz.
7ª – As acções propostas ao abrigo do DL 218/99 de 15.06 são acções de dívida, cuja causa
de pedir é complexa, pois se exige o pagamento do custo da prestação de cuidados de
saúde, e destinam-se a efectivar o cumprimento de uma obrigação pecuniária por uma
pessoa colectiva, incluindo-se assim na previsão da al. a) do citado artº 9º; por outro lado,
integram-se também na al. h) do mesmo artigo pois, para se justificar a responsabilidade
dos demandados, é necessário fazer apelo à responsabilidade civil extracontratual.
8ª – Assim, as acções de cobrança de dívidas das Instituições Hospitalares (e outras
integradas no SNS) encontram-se afastadas da competência dos Julgados de Paz pelo nº 1,
al. a) da Lei 78/01.
9ª – Aliás, no mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.05 relativo
ao processo .../2004... THPRT em que o aqui recorrente foi parte como agravante, cuja
decisão se junta e se dá como integralmente reproduzida.
10ª – Acresce que a razão da exclusão deste tipo de acções da competência dos Julgados de
Paz se deve a que nas “…acções de cobrança de dívida das pessoas colectivas, tendo em
conta que estas não visam o lucro económico, não há lugar à justa composição de litígios por
acordo das partes pelo que seria um contra senso inclui-las na competência material dos
julgados de paz” – cfr. Acórdão do STJ de 20.07.05, supra referenciado.
11ª – Pelo exposto, tendo em conta toda a factualidade supra alegada, deve em nossa
opinião considerar-se competente em razão da matéria e da hierarquia o Tribunal de
Pequena Instância Civil, uma vez que os Julgados de Paz são incompetentes em razão da
matéria.
12ª – Acresce ainda que o sucesso de tais demandas fica seriamente comprometido, caso de
considere que a competência em razão da matéria pertence ao Julgado de Paz, uma vez que
impenderá sobre o Hospital a apresentação das testemunhas.
13ª – Não se verificando assim, em nosso entender, a excepção da incompetência em razão
da hierarquia, conforme se decidiu no despacho ora em crise.
14ª – Devendo tal decisão, em nossa opinião, por violação do preceituado nos artºs 6º, nº 1,
8º, 9º, nº 1, h), 12º, nº 2, 62º, 63º e 67º todos da Lei 68/00, ser inteiramente substituída
por uma outra que considere competente em razão da hierarquia o Tribunal de Pequena
Instância do Porto, por consequente incompetência em razão da matéria dos Julgados de Paz
do Porto.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Mº Juiz sustentou o despacho.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II.
*
O recurso é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e
conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o
seu conhecimento oficioso (artºs 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os
recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo
conteúdo do acto recorrido.
No presente recurso, a questão a apreciar é a seguinte:
- Se os julgados de paz são exclusivamente competentes, em razão da matéria, para
conhecer das acções destinadas à cobrança de créditos por prestação de cuidados de saúde.
A Lei 78/01 de 13.07 (Lei de Organização e Funcionamento dos Julgados de Paz) – Diploma
a que pertencem todas as normas adiante citadas em menção de origem – regula a
competência, organização e funcionamento dos julgados de paz e a tramitação dos processos
da sua competência.
A competência dos julgados de paz é exclusiva a acções declarativas (artº 6º, nº 1).
Sobre a competência dos julgados de paz em razão da matéria rege o artº 9º.
A primeira questão que se coloca é a de saber se a competência material dos julgados de
paz é exclusiva, ou seja, se, sendo a causa da competência dos julgados de paz tem a acção
de ali ser proposta obrigatoriamente ou se o demandante tem a faculdade de optar entre o
julgado de paz e o tribunal judicial.
A doutrina tem vindo a pronunciar-se no sentido da competência exclusiva dos julgados de
paz.
Cardona Ferreira [Heinrich Ewald Hörster, “A Parte Geral do Código Civil Português”, 1992,
págs. 335 e 336] refere que, antes de mais, há que atender à ratio legis: se os julgados de
paz tendem a servir a cidadania, um dos modos de o conseguir está em criar alivio na
excessiva sobrecarga dos tribunais judiciais. E, neste particular, para além das necessárias
implementação e divulgação dos julgados de paz, bem como dimensões de competência, é
elemento importante a diferenciação de áreas de intervenção e não concorrência, onde
houver julgados de paz.
O artº 9º, ao prescrever, à luz daquela ratio legis, que os julgados de paz são competentes,
em razão da matéria, para apreciar e decidir as acções que identifica, inculca a ideia de que
aquela competência material é própria, e só própria, dos julgados de paz.
E o artº 67º é determinante neste contexto, ao prescrever que as acções não correrão nos
julgados de paz, ainda que sejam próprias da competência material daqueles, desde que
tenham sido propostas antes da instalação do julgado de paz que, potencialmente, seria
competente; significa, a contrario sensu, que, proposta depois da instalação do julgado de
paz competente, neste devem ser propostas para não haver remessas.
Por seu turno, as disposições dos artºs 41º e 59º, nº 3 que ordenam a remessa dos
processos dos julgados de paz para o for judicial quando seja suscitado um incidente
processual ou tenha sido requerida prova pericial, revelam que a competência dos julgados
de paz é exclusiva no momento da instauração da acção e deixa de o ser quando ocorra uma
daquelas situações (e também quando o valor da causa seja alterado para valor superior à
alçada da 1ª instância).
A acção tem de ser obrigatoriamente interposta nos julgados de paz, não tendo o
demandante o direito de escolher entre aqueles e os tribunais judiciais se, no momento da
interposição, for da competência material dos julgados de paz nos termos do artº 9º, o seu
valor não exceder a alçada do tribunal da 1ª instância (artº 8º) e estiver instalado julgado de
paz territorialmente competente nos termos dos artºs 10º a 14º.
Posteriormente à instauração, as circunstâncias acima referidas fazem cessar a competência
dos julgados de paz.
A este propósito, Joel Timóteo R. Pereira [“Julgados de Paz”, 3ª ed., pág. 55] fala em
“competência semi-exclusiva” dos julgados de paz.
Também a jurisprudência se tem pronunciado de forma unânime no sentido da competência
exclusiva dos julgados de paz no momento em que a acção é proposta. [Acs. do STJ de
04.03.04, desta Relação de 21.02.05 e 08.11.05 e da RL de 05.05.05, todos em
www.dgsi.pt, proc. 03B3646, nºs conv. 37730 e 38489 e proc. 3364/2005-2,
respectivamente]
A presente acção tem o valor de € 367,85 que é inferior à alçada dos tribunais de 1ª
instância - fixada em € 3.740,98 pelo artº 24º da Lei 3/99 de 13.01 (LOFTJ).
Pelo DL 9/04 de 09.01 foi criado o Julgado de Paz do concelho do Porto (artº 1º, al. d),
abrangendo todas as freguesias deste concelho (artº 2º, nº 4), que foi instalado pelo artº 1º
da Portaria 375/04 de 13.04 para entrar em funcionamento em 15.04.04.
A presente acção foi instaurada em 30.07.04.
Sendo o autor uma pessoa colectiva sediada na cidade do Porto, para qualquer acção por ele
instaurada no âmbito da competência material dos julgados de paz, é territorialmente
competente o Julgado de Paz do Porto (artº 14º).
Nada obsta, pois, à competência do Julgado de Paz do Porto para conhecer da presente
acção em função do objecto (artº 6º, nº 1), do valor (artº 8º) e do território (artº 14º), já
que a mesma foi instaurada após a data de entrada em funcionamento do Julgado (cfr. o
citado artº 67º).
Resta averiguar da sua competência material que, a verificar-se, acarretaria a incompetência
em razão da hierarquia do Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto, que funcionaria
como tribunal de 2ª instância (cfr. artº 62º, nº 1).
Nos termos do artº 9º, nº 1, os julgados de paz são competentes para apreciar e decidir,
além do mais:
“a) Acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações, com excepção das que
tenham por objecto prestação pecuniária e de que seja ou tenha sido credor originário uma
pessoa colectiva;
…
h) Acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual;”
A presente acção destina-se à cobrança de uma dívida de um hospital integrado no Serviço
Nacional de Saúde por prestação de cuidados de saúde e foi proposta ao abrigo do regime
específico instituído pelo DL 218/99 de 15.06.
Da leitura tanto do Preâmbulo como dos articulados daquele Diploma, como, por exemplo,
“…neste diploma é, de novo, e como regra geral, consagrada a acção declarativa…”
(Preâmbulo), “nas acções para cobrança das dívidas incumbe ao credor a alegação e prova
do facto gerador da responsabilidade pelos encargos…” (artº 5º), “…poderão exigir das
seguradoras o pagamento dos encargos decorrentes dos cuidados prestados a vítimas de
acidentes de viação…” (artº 9º), conclui-se que as acções como a presente se destinam à
efectivação da responsabilidade civil extracontratual, e, por isso, se enquadram no disposto
na al. h) do nº 1 do artº 9º.
Assim se entendeu no Ac. desta Relação de 21.02.05 [Citado na nota anterior] e ali se
decidiu que, por força desse enquadramento, tais acções são da competência exclusiva dos
julgados de paz.
Daquele Acórdão foi interposto recurso para o STJ e sobre ele recaiu o Ac. daquele Supremo
Tribunal de 05.07.05, junto pelo agravante com as suas alegações (fls. 267 e segs.), [Os
elementos factuais dos dois Acórdãos permitiram-nos extrair esta conclusão]
incompreensivelmente inédito dado o seu inegável interesse.
Este segundo aresto concordou com o enquadramento das acções para cobrança das dívidas
hospitalares na al. h) do nº 1 do artº 9º, pela mesma fundamentação do Acórdão recorrido,
mas entendeu que aquelas acções têm uma causa de pedir complexa: para além de fazerem
apelo à responsabilidade civil extracontratual e, por vezes, à vigência de um contrato de
seguro, para justificar a responsabilidade dos demandados, também respeitam ao
cumprimento de uma obrigação e têm por objecto uma prestação pecuniária de que é
credora uma pessoa colectiva.
Com tal fundamento, concluiu que aquelas acções se enquadram simultaneamente nas als.
a) e h) do nº 1 do artº 9º.
Joel Timóteo R. Pereira [Obra citada, pág. 62] entende igualmente que as acções destinadas
a efectivar a responsabilidade civil por factos ilícitos nos termos dos artºs 483º e seguintes
do CC se enquadram na al. a) do nº 1 do artº 9º.
Aliás, não são apenas as als. a) e h) do nº 1 do artº 9º que se justapõem – para além da al.
h), também algumas das acções previstas nas als. d) (direitos e deveres de condóminos), g)
(arrendamento urbano) e i) (incumprimento contratual) podem igualmente enquadrar-se na
al. a).
A al. a) do nº 1 do artº 9º exclui expressamente da competência dos julgados de paz as
acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações, que tenham por objecto
prestações pecuniárias e de que sejam credoras pessoas colectivas (sendo estes dois
requisitos cumulativos [Cardona Ferreira, “Julgados de Paz – Organização, Competência e
Funcionamento”, 2001, págs. 29 e 30]).
Entendeu-se no Ac. do STJ acima citado que “…a al. h) deve ser interpretada de forma a
harmonizá-la com aquela exclusão, incluindo na competência material dos julgados de paz as
acções que respeitem à responsabilidade contratual e extracontratual, mas que não tenham
por objecto prestação pecuniária de que seja credora pessoa colectiva, face ao princípio da
unidade do sistema jurídico e à presunção de que o legislador consagrou as soluções mais
acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artº 9º, nºs 1 e 3 do
CC)”.
O entendimento expresso naquele aresto encontra acolhimento na asserção de Cardona
Ferreira [Obra e lugar citados na nota anterior] de que “…a alínea a) não significa que as
pessoas colectivas não possam ser partes nos Julgados de Paz. Não podem é entupi-los (…)
com questões pecuniárias (…). Para as questões pecuniárias invocáveis pelas pessoas
colectivas existem os Tribunais Judiciais (…)”.
Os julgados de paz constituem um meio alternativo e um sistema extrajudicial de aplicação
da justiça e estão concebidos e são orientados por princípios de simplicidade, adequação,
informalidade, oralidade e absoluta simplicidade processual (cfr. artº 2º, nº 2).
Visam assim “…servir o direito fundamental à Justiça, face à diversidade e aos aumentos
exponenciais de processos que sobrecarregam o sistema judicial, já de si prejudicado pelo
formalismo e pelo burocratismo generalizado (…) inadequados à diversidade e à quantidade
processuais”. [Cardona Ferreira, obra citada na nota 2, pág. 32]
Mas não de tal forma que logo após a sua instalação fiquem eles, por seu turno,
sobrecarregados e impedidos de exercer as suas fundamentais funções de mediação e de
conciliação.
Daí a razão de ser da exclusão da sua competência das acções para cobrança de créditos de
pessoas colectivas que, como é sabido, constituem uma das principais causas da sobrecarga
dos tribunais judiciais.
Por todas as razões expostas, concordamos com a fundamentação do citado aresto do STJ,
considerando a presente acção excluída da competência material exclusiva dos julgados de
paz, por força do disposto na al. a) do nº 1 do citado artº 9º.
Pelo que cumpre dar provimento ao agravo, declarando competente para a presente acção o
1º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao agravo, revogando-se a decisão
recorrida e em consequência:
- Julga-se o 1º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto competente para
conhecer da presente acção.
Sem custas.
Porto, 16 de Fevereiro de 2006
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Ana Paula Fonseca Lobo
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha
***
Agravo nº 1317/06-3ª Sec.
Data 16/03/2006
4661 (Boletim Interno nº 24)
COMISSÃO ARBITRAL
DESPORTO
COMPETÊNCIA
Sumário
O tribunal civil é o tribunal competente para a acção de impugnação ou anulação da decisão da
Comissão Arbitral Paritária, constituída ao abrigo do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a
Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicado dos Jogadores Profissionais de Futebol (publicado
no BTE nº 33, 1ª Série, de 8/8/99), com fundamento em omissão de pronúncia, por a Comissão Arbitral
não ter conhecido de questão que o ora recorrente diz lhe ter colocado para decidir.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. B………., com domicílio na Rua ………., .., ………. Porto, instaurou com o C………., SAD, com
sede na Rua “……….”, no Porto, alegando que em 06 de Maio de 2005, a Comissão Arbitral
Paritária proferiu acórdão, em acção em que eram partes o autor e ré (e nessa mesma
qualidade), e que esse acórdão é nulo por omissão de pronúncia.
Pede que a procedência da acção e que se anule esse Acórdão da Comissão Arbitral Paritária,
proferido a 06 de Maio de 2005.
A ré contestou a acção, alegando pela inexistência de tal vício do acórdão arbitral, pelo que
pede a improcedência da acção.
Respondeu o autor, concluindo como na petição.
II. Após, em audiência preliminar, foi proferida decisão que julgou o tribunal (Varas Cíveis do
Porto – no caso, a .ª Vara) materialmente incompetente para conhecer do objecto da acção,
atribuindo a competência do tribunal do trabalho, pelo que absolveu a Ré da instância.
III. Inconformado recorre o autor.
Conclui as suas alegações:
1ª) – No caso dos autos, o Agravante intentou uma acção de anulação da decisão proferida
pela Comissão Arbitral Paritária;
2ª) – Para tanto, o Agravante arguiu o vício processual da omissão de pronúncia, previsto na
al. e) do nº 1 do art. 27 da Lei nº 31/86;
3ª) – Apesar do litígio submetido á Comissão Arbitral Paritária emergir do contrato de
trabalho entre Agravante e Agravada, a acção de anulação ora em apreciação não integra
nenhuma das alíneas do art. 85 da Lei 3/99 LOTJ;
4ª) – Ora, os Tribunais do Trabalho constituem uma jurisdição especializada e só dispõem de
competência que a lei taxativamente lhes atribuiu;
5ª) – Daí que, pretendendo o ora Agravante tão somente ver declarada nula, por preterição
de uma formalidade processual essencial, a sentença da Comissão Arbitral Paritária, veio
intentar tal acção no Tribunal Comum, como não poderia deixar de ser;
6ª) – Na verdade, os tribunais do trabalho não sã competentes para conhecer do pedido de
anulação da sentença proferida pela Comissão Arbitral Paritária.
7ª) – Não existindo, assim, qualquer afectação da presente acção de anulação sub júdice
nem a jurisdição especial nem a tribunal de competência especializada, o tribunal
competente em razão da matéria será o tribunal de competência genérica, ou seja, o
Tribunal Cível a quo;
8ª) – A douta sentença recorrida violou o art. 66 do CPC, o art. 77, nº 1, al. a), da LOTJ e
ainda o art. 27, nº 1, da Lei nº 31/86.
Termos em que, na procedência do presente recurso deve a douta sentença recorrida ser
totalmente revogada e, consequentemente, ser declarado competente, para conhecer da
acção de declaração de nulidade, o tribunal Cível recorrido”.
A recorrida não respondeu ao recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
IV. Os factos – os constantes de ponto I e ainda:
O ora recorrente, como profissional de futebol por conta a ora recorrida, peticionou, na
Comissão Arbitral Paritária (Proc. Nº …-CAP/2004), a condenação da aqui recorrida a pagarlhe a importância de € 245.510,13 e juros, referentes a créditos diversos que motivou no ou
na violação do contrato de trabalho (desportivo) que afirma com ela celebrado.
A Comissão Arbitral julgou a acção parcialmente procedente.
É essa decisão que o recorrente pretende ver declarada nula ou anulada no presente
processo.
V. Na economia das conclusões do recurso, cumpre apenas apreciar se o tribunal civil (Varas
Cíveis) da comarca do Porto é o tribunal competente para a acção de impugnação ou
anulação da decisão da Comissão Arbitral Paritária, constituída ao abrigo do Contrato
Colectivo de Trabalho celebrado entre a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicado
dos Jogadores Profissionais de Futebol (publicado no BTE nº 33, 1ª Série, de 8/8/99), com
fundamento em omissão de pronúncia, por a Comissão Arbitral não ter conhecido de questão
que o ora recorrente diz lhe ter colocado para decidir.
A divergência estabelece-se – para a Mma Juíza que proferiu a douta decisão recorrida, a
matéria cai no âmbito da competência dos tribunais do trabalho, enquanto que o recorrente
entende questão cujo conhecimento cabe ao “tribunal de competência genérica, ou seja o
Tribunal Cível” a quo.
Como resulta do petitório, o ora recorrente instaurou, na Comissão Arbitral Paritária (da Liga
Portuguesa de Futebol Profissional) – um tribunal arbitral voluntário legalmente constituído uma acção contra a ora recorrida, pedindo desta o pagamento de diversas quantias
emergentes duma relação de trabalho subordinado (contrato de trabalho desportivo) que
vigorou entre as partes, a SAD recorrida, como entidade empregadora, e o recorrente, como
(trabalhador) futebolista profissional.
Na presente acção, as partes são as mesmas.
O pedido consiste apenas na anulação do acórdão arbitral.
E qual o fundamento do pedido? Não é a relação de trabalho subordinado (desportivo),
embora se pretenda anular uma decisão proferida em matéria dessa natureza. A razão da
acção reside apenas no vício estrutural – vislumbrado pelo ora recorrente – da “sentença”
dos árbitros consistente na omissão de pronúncia.
Cabe ao tribunal conhecer de todas as questões que lhe são submetidas para decisão, salvo
se a resolução de umas prejudicar o conhecimento das demais. Nos termos do artigo 668º/1,
d) do CPC a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que
devesse apreciar.
No domínio da arbitragem a omissão de pronúncia constitui fundamento para a anulação da
decisão dos árbitros (artigo 27º/1.e), da Lei nº 31/96, de 29/08 (Lei da Arbitragem
Voluntária).
Diz o recorrente que a Comissão Arbitral não resolveu todas as questões submetidas a
julgamento e, por essa razão, quer ver anulada a decisão arbitral. O fundamento da acção é,
nessa posição, a omissão de pronúncia (não é assunto do recurso a existência ou não da
omissão alegada). E a decisão arbitral pode ser anulada quando o tribunal deixe de
pronunciar-se sobre questão que devia apreciar.
O poder jurisdicional dos árbitros finda com a notificação do depósito da decisão que pôs
termo ao litígio ou, quando o depósito não tem lugar, com a notificação da decisão às partes
(artigo 25º da Lei nº 31/86). A autonomia do tribunal arbitral cessa com o cumprimento da
missão que lhe foi atribuída pelas partes, não lhe cabendo já sanar as nulidades processuais
de que a sentença por eles proferida padeça. Para esse efeito, impõe-se recorrer ao tribunal
judicial para anular a decisão arbitral.
Vejamos se a matéria é da competência dos tribunais do trabalho, tribunais de competência
especializada, ou cabe nas atribuições dos tribunais cíveis (as Varas Cíveis do Porto, face ao
valor da causa), onde a acção foi instaurada.
Estabelece o artigo 66º que “são da competência do tribunais judiciais as causas que não
sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” e, na ordem judicial, “as leis de organização
judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos
tribunais judiciais dotados de competência especializada” - artigo 67º do CPC. Em regra, a
competência, naqueles tribunais, reside nos tribunais de competência genérica (competência
residual), salvo se a causa estiver, por lei, dentro do âmbito da competência de tribunal de
competência especializada.
Pode haver tribunais de 1ª instância de competência especializada e competência específica.
“Os tribunais de competência especializada conhecem de matéria determinadas,
independentemente da forma de processo aplicável, enquanto os de competência específica
conhecem de matérias determinadas pela espécie de acção ou pela forma de processo
aplicável”(art. 64º/1 e 2, da Lei nº 3/99, de 13/01), independentemente da matéria.
Entre outros, são tribunais de competência especializada os tribunais do trabalho (art.78º/d)
cuja competência, em matéria cível, está definida ou delimitada no artigo 85º, ambos da
citada lei.
Face à diversidade de tribunais na ordem jurídica, impõe-se a definição de critérios para
determinar, em concreto, se um tribunal é competente para julgar a acção, e essa
determinação depende dos termos em que a acção é proposta, do objecto do processo como
configurado pelo autor, face ao pedido, causa de pedir que o fundamenta e concreta acção
que se pretende instaurar.
A competência é a medida de jurisdição de um tribunal. ‘O tribunal é competente para o
julgamento de certa causa quando os critérios determinativos da competência lhe atribuem a
medida de jurisdição que é a suficiente e adequada para essa apreciação’ (M. Teixeira de
Sousa, em A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, 30).
A competência material (concreta) de um tribunal é o poder que lhe é atribuído para julgar
certa causa ou para decidir um pleito, incluído na fracção de jurisdição que lhe compete (cfr.
Manuel de Andrade, Noções de Processo Civil, 1979, pág. 89). É a adstrição a certo tribunal
de certa categoria de processos (Castro Mendes - Direito Processual Civil, AAFDL, 1980,
1/647).
Toda a causa tem um tribunal onde deve ser proposta, determinado segundo os factores
atributivos de competência, que se fixam no momento em que a acção se propõe.
“A competência material dos tribunais civis é aferida por critérios de atribuição positiva e de
competência residual” e segundo o critério de competência residual, incluem-se na
competência dos tribunais civis todas as causas que “não são legalmente atribuídas a
nenhum outro tribunal. Isto é, os tribunais judiciais são os tribunais com competência
material residual (art. 211º, nº 1, da Constituição da Republica Portuguesa; 18º, nº 1, da
LFOTJ) e no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais civis aqueles que possuem
competência residual” (Miguel Teixeira de Sousa, em “A Nova Competência dos Tribunais
Civis”, Edições Lex, 1999, págs.31/32).
A competência do tribunal afere-se, pois, pelo pedido formulado pelo autor, pelo quid
decidendum, conexionado com os respectivos fundamentos; determina-se, essencialmente,
pelo pedido formulado em conexão com a causa porque se pede, ou o direito para que se
pede tutela e o facto ou acto donde emerge esse direito.
Na definição da competência em razão da matéria atende-se ao objecto da causa, à natureza
da relação substancial pleiteada, obedecendo a demarcação da respectiva competência a um
princípio de especialização.
Os tribunais do trabalho são de competência especializada; as matérias da sua competência
estão expressamente definidas (discriminadas) na lei e só lhes compete o conhecimento das
questões especialmente previstas na lei, sendo incompetentes para conhecer de outras
questões não atribuídas.
Se a causa não estiver adstrita a um determinado tribunal, em função da natureza da
matéria em controvérsia, cabe ao tribunal de competência genérica a decisão ou, onde haja
tribunais com competência especializada cível ou de competência específica (cível), a estes
cabe conhecer da questão (cfr. arts. 77º, 94º, 97º e 99º da LOTJ).
Como se disse, aos tribunais do trabalho cabe, entre outras matérias, conhecer das questões
emergentes das relações de trabalho subordinado (artigo 85º, b) da LOTJ).
Ora, a relação em discussão nem emerge de uma relação de trabalho, não consta
especificada no elenco das matérias da competência dos tribunais de trabalho previstas no
artigo 85º da Lei 3/99 e não tem qualquer conexão com relação de trabalho subordinado no
termos da al. o) desse normativo.
As causas de anulação do acórdão arbitral reconduzem-se às previstas no artigo 27º/1 da Lei
31/86, que se reportam à relação processual de arbitragem, e não à relação substantiva aí
pleiteada. Restringem-se às causas previstas nas diversas alíneas dessa disposição, a saber
–
“não ser o litígio de resolução por via arbitral” (a),
“ter sido a decisão proferida por tribunal incompetente ou irregularmente constituído” (b),
não terem sido observados determinados princípios processuais da na arbitragem (igualdade
das partes pleiteantes, respeito pelo direito de defesa, observação do contraditório), com
influência na decisão da causa (c)
não conter a decisão a assinatura dos árbitros ou da maioria dos árbitros, com os votos de
vencido, devidamente identificados, ou não estar a decisão fundamentada (d) e
“ter o tribunal conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento, ou ter deixado
de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar” (e).
Como se verifica da análise das causas previstas, que se prendem apenas com questões de
natureza processual, em nenhuma delas se contem qualquer aspecto relacionado com as
matérias substantivas que poderão estar na base da decisão arbitral.
A essas causas de anulação são alheias as normas de direito substantivo que regulam as
relações de trabalho subordinado ou outras com elas conexas.
Para as questões mencionadas, fundamento da anulação da decisão arbitral, que respeitam
ao funcionamento da arbitragem, não têm os tribunais do trabalho qualquer preparação
específica (ou especial vocação e sensibilidade) que justifique a remessa para a sua esfera
de competência o conhecimento de tais questões.
No caso, ao tribunal apenas foi solicitada a intervenção numa função meramente cassatória
da decisão arbitral; apenas se pede a sua anulação sem qualquer discussão sobre a relação
objecto do litígio laboral, na qual não deve imiscuir-se.
Nada se pede ao tribunal que interfira com o direito substantivo laboral, com os direitos e
deveres recíprocos das partes na relação de trabalho, apenas que se anule, por razões
processuais, a decisão dos árbitros. A intervenção do juiz esgota-se na apreciação da
nulidade invocada, não lhe sendo admitido conhecer de outras questões (cfr. Paula Costa
Silva, Anulação e Recursos da Decisão Arbitral, na ROA, Ano 52, 956 e seguintes).
As questões previstas no citado artigo 27º são questões comuns a qualquer ordem de
jurisdição, nem se relacionam especificamente com as questões que são objecto da decisão
arbitral concreta. Daí que, pelo facto da questão dirimida na Comissão Arbitral Paritária
constituir assunto emergente (no caso) de relação de trabalho subordinado, o fundamento
do pedido de impugnação nenhuma conexão específica tem com essa relação (nem o tribunal
vai desta conhecer), o que exclui a matéria desta causa do âmbito da competência dos
tribunais do trabalho (cfr. Ac. STJ, de 31/03/04, em ITIJ/net, procs. 03S4064).
Os tribunais do trabalho não são materialmente competentes para conhecer das acções de
anulação das decisões arbitrais com fundamento nalguma das causas previstas no artigo 27º
da Lei nº 31/86, cabendo essa competência aos tribunais com competência residual, os de
competência genérica (cfr. Acs. STJ, de 11/10/2001, em ITIJ/net, proc. 01B2417, de
5/12/2002, na CJ/STJ, III, 152, e da RP, de 12/6/2000, sumariado na ITIJ/net, Proc.
0040591).
Na situação, dada o valor da causa e a forma de processo que a acção deve seguir, a
competência para apreciar a questão cabe às Varas Cíveis do Porto (tribunais de
competência específica – artº 96º/1. a), da Lei 3/99), na espécie, à .ª Vara, à qual foi
distribuída.
VI. Pelo exposto, acorda-se neste tribunal da Relação do Porto em dar provimento ao
agravo, revoga-se o douto despacho recorrido e julga-se o tribunal (.ª Vara Cível do Porto)
materialmente competente para preparar e julgar a acção.
Sem custas.
Porto, 16 de Março de 2006
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira
Agravo nº 6710/05-2ª Sec.
Data – 17/01/2006
4664 (Boletim Interno nº 24)
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
Sumário
I- Não é de conhecimento oficioso a incompetência territorial de uma execução que se inicie pela
penhora, sem citação prévia.
II- A excepção da alínea b) do n.º1 do CPC refere-se a decisão do mérito da causa não precedida de
citação.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
Relatório
O Banco B......, SA, com sede na Av. ....., ..., ....º, Lisboa, apresentou requerimento
executivo junto dos Juízos de Execução do Porto, para pagamento de quantia certa, por
dívida comercial decorrente de um contrato para concessão de crédito
contra
C......, residente na Rua ....., n.º ..., ....º, ...., Proença - a – Nova.
A Exequente alegou que o Executado deixou de pagar prestações em débito, pelo que
considerou o contrato incumprido em 2005.03.11, considerando que se encontrava ainda em
dívida a quantia global de € 4.923,97,
Para além do montante de capital em débito a Exequente peticionou também juros
moratórios vencidos, havendo liquidado, a esse título, € 279,42.
Uma vez distribuído o processo, e recebido este pelo Juiz a quem foi adjudicado, lavrou este
de imediato despacho, onde, foi declarada a incompetência territorial do Tribunal para o
prosseguimento dos autos, ordenando a oportuna remessa para os Juízos de Execução da
Comarca de Lisboa, por entender serem estes os Juízos competentes, já que, segundo
sustentou, de acordo com o disposto no art. 94.º-1 do CPC, o Tribunal competente é o do
lugar onde a obrigação deveria ser cumprida (Lisboa), dizendo por outro lado, também, que
podia conhecer oficiosamente dessa matéria uma vez que neste tipo de processos se efectua
primeiro a penhora e só depois se procede à citação do Executado, sustentando estar assim
verificada a situação prevista no art. 110.º-1-b) do CPC, que habilita o Tribunal a conhecer
oficiosamente da competência territorial nessas situações.
O Exequente não se conformou com esta decisão e interpôs recurso.
Este foi admitido como de agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito
suspensivo.
Alegou então o Exequente.
O M.º Juiz sustentou o despacho recorrido.
Remetidos os autos a este Tribunal foi o recurso aceite com a adjectivação e demais
atributos que lhe haviam sido atribuídos na primeira instância.
Correram os vistos legais.
......................
Âmbito do recurso.
A menos que se trate de questões de conhecimento oficioso, o âmbito do recurso é
delimitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, conforme resulta do disposto nos
arts. 684.º-3 e 690.º-1 do CPC
Da respectiva leitura vemos que a questão que se suscita é a de saber se pode o Juiz, num
processo executivo instaurado para obter o pagamento de quantia certa (sem garantia real),
conhecer oficiosamente da questão da competência territorial do Tribunal.
Fundamentação
Os factos a ter em consideração são os já acima apontados.
Importa por isso avançar para a apreciação da questão suscitada.
De acordo com o disposto no art. 110.º -1-b) do CPC
“A incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo Tribunal,
sempre que os autos fornecerem os elementos necessários (...) nos processos cuja decisão
não seja precedida de citação do Requerido.”
Os processos executivos para pagamento de quantia certa começam pela penhora, seguindose-lhe depois a citação do Executado.
No entanto, a decisão a que se refere o preceito (relativamente à qual se tem de apreciar a
prioridade ou não da citação sobre ela), não é a da ordem da penhora, que é uma decisão
intercalar, mas assim a decisão que conheça do mérito da causa.
Ora, o conhecimento do mérito da causa numa execução faz-se apenas na Sentença que
julgue extinto o crédito pelo pagamento ou julgue procedentes eventuais embargos. Essa
decisão (extintiva da execução, por pagamento ou pela procedência de embargos), no
entanto, é sempre posterior à da citação do Executado.
Logo, a apreciação da competência territorial do Tribunal numa execução para pagamento de
quantia certa não é de conhecimento oficioso, porque a citação precede sempre a decisão de
mérito.
Já assim não é nas execuções instauradas para entrega de coisa certa ou quando a dívida
esteja protegida com garantia real, situação em que o art. 110.º-1-a) do CPC manda
conhecer oficiosamente, ao apontar expressamente, entre as respectivas remissões, para o
art. 94.º-2 do CPC, (casos em que o Tribunal competente será o do lugar onde se encontre o
bem ou se situe o bem onerado, devendo nesses casos o Juiz ordenar oficiosamente a
remessa, declarando incompetente em razão do território o Tribunal em que o processo se
encontra).
A que casos se reportará então o art. 110.º-1-b) do CPC?
Em nosso entender, e numa visão imediata, a alguns procedimentos cautelares, em que a
decisão de mérito sobre eles tem de ser tomada antes da citação do Requerido, ora pelo
facto de a lei assim o exigir (caso do arresto, desde que se mostrem preenchidos os
requisitos legais – art. 408.º), ora pela necessidade imperiosa e urgente de que assim deva
ocorrer devido ao perigo de ficar frustrada a utilidade da medida se porventura o Requerido
tiver conhecimento antecipado da diligência (caso de outros procedimentos cautelares).
Em face do exposto, o agravo merece provimento.
Deliberação
No provimento do agravo, revoga-se o despacho recorrido, ordenando-se que o M.º Juiz
proceda à sua substituição por outro e assim venha a dar prosseguimento á execução [No
mesmo sentido do aqui decidido, podemos enunciar, a título exemplificativo, o Ac. deste
Tribunal da Relação de 2004.11.04, proferido no processo 0435755, documento
RP200411040435755, acessível, em versão integral através de www.dgij.pt, tendo como
Relator Coelho da Rocha, e como Adjuntos Saleiro de Abreu e Oliveira Vasconcelos]
Sem custas - art. 2.º-1-g) do CCJ.
Porto, 17 de Janeiro de 2006
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V. C. Teixeira Lopes
Agravo nº 4952/05-5ª Sec.
Data – 23/01/2006
4665 (Boletim Interno nº 24)
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
EXPROPRIAÇÃO
ANULAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário
Os Tribunais Administrativos são os competentes, em razão da matéria, para apreciar acção que o Autor
configura como de reivindicação, formulando pedido indemnizatório, em que é demandado o Instituto de
Estradas de Portugal-IEP – com fundamento na ocupação do prédio reivindicado que fora objecto de
expropriação por utilidade pública, cuja nulidade foi judicialmente declarada.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
No Tribunal Judicial da Comarca de Penafiel, B.......... e mulher C.......... intentaram acção
declarativa de condenação, com processo ordinário, contra o Instituto de Estradas de
Portugal-IEP, pedindo que, julgada procedente a acção, seja o Réu condenado a:
a) Reconhecer os Autores como donos e legítimos proprietários da parcela de terreno
ocupada;
b) Restituí-la, no estado em que se encontrava à data da ocupação ilegal, ou, em alternativa,
restituí-la, indemnizando os Autores por todos os danos patrimoniais que já tiveram e pelo
custo de reposição a liquidar em execução de sentença;
c) Indemnizar os Autores pelos danos patrimoniais que vierem a ter, liquidando-se já na
quantia de € 1993,68;
d) Indemnizar os Autores pelos danos morais na quantia de € 2000;
e) Numa sanção pecuniária compulsória até efectivo cumprimento.
Alegaram, para tal, em resumo, os seguintes fundamentos:
Os Autores são os proprietários de um prédio misto, sito na freguesia de .........., Penafiel,
descrito na Conservatória do Registo Predial competente sob o n.º 00072/051289.
O Réu ocupou uma parcela desse prédio, com 830,95 m2, com a construção de uma estrada,
movimentando terras e destruindo as culturas aí existentes.
Fê-lo ao abrigo de despacho do Secretário de Estado das Obras Públicas, publicado no DR II
Série, n.º 86, de 12/04/2002, que declarou a utilidade pública, com carácter de urgência, da
expropriação da parcela daquele prédio, designada por parcela n.º 12, com a área de 195
m2.
Em 14/08/2002, o Réu tomou posse administrativa da mencionada parcela.
Em 06/08/2003, foi adjudicada judicialmente ao Réu a propriedade da mesma parcela.
Os Autores interpuseram recurso contencioso do referido despacho do Secretário de Estado
das Obras Públicas, tendo o Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 10 de
Fevereiro de 2003, transitado em julgado, declarado a nulidade do dito despacho, nos
termos do art. 15 do DL n.º 93/90, de 19 de Março.
Na sequência de tal acórdão do STA, foram declarados sem efeito todos os termos do
processo de expropriação posteriores á declaração de utilidade pública declarada nula e
extinta a instância por impossibilidade superveniente do seu prosseguimento (decisão do ..º
Juízo do Tribunal Judicial de Penafiel, de 4 de Junho de 2004).
O Réu não restituiu a parcela aos Autores no estado em que se encontrava ao tempo da
posse administrativa, nem propôs o pagamento de qualquer indemnização pelos danos
patrimoniais e não patrimoniais descritos na petição inicial.
Na contestação, o Réu defendeu-se por excepção e por impugnação, pedindo que:
a) Seja considerada procedente a excepção da incompetência absoluta do Tribunal, com as
legais consequências;
b) Se assim não se entender, seja a acção julgada improcedente, com as legais
consequências.
Os Autores replicaram, concluindo como na petição inicial.
No saneador, julgou-se procedente a invocada excepção dilatória da incompetência absoluta
do tribunal judicial, absolvendo-se o Réu da instância.
Inconformados, os Autores interpuseram recurso de agravo de tal decisão, terminando a sua
alegação com estas conclusões:
1.A presente acção é de reivindicação, sendo para a julgar competente o Tribunal comum.
2.Estamos perante o reconhecimento de um direito privado que foi agredido ilicitamente por
uma acção bruta, prepotente da Ré.
3.A decisão recorrida ao julgar competente o Tribunal Administrativo julgou mal, violando o
disposto no art. 66 do CPC.
Contra-alegou o Réu, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
A questão que se coloca, no recurso, consiste em saber qual é o tribunal competente, em
razão da matéria, para o julgamento da presente acção: o tribunal administrativo, como se
decidiu na 1.ª instância, ou, o tribunal comum, como pretendem os Autores.
Na decisão recorrida, considerou-se, no essencial, que, apesar de a acção ter sido
configurada pelos Autores como de reivindicação, o que está em discussão é a posse do Réu,
emergente do acto administrativo da declaração de utilidade pública da parcela identificada
na petição inicial.
Por outro lado, sendo o Réu um instituto público e peticionando-se na acção, também, uma
indemnização baseada na responsabilidade civil extracontratual, a apreciação do litígio
compete aos tribunais administrativos, nos termos do art. 4, n.º 1 al. g) do novo ETAF.
Nas alegações de recurso, defendem os Autores que estão em discussão o reconhecimento
do seu direito de propriedade sobre a parcela de terreno ilegalmente ocupada pelo Réu e a
sua restituição, que são questões de direito privado.
Embora essa ocupação tenha tido origem num acto administrativo de declaração de utilidade
pública, esse acto veio a ser declarado nulo e de nenhum efeito por acórdão do Supremo
Tribunal Administrativo, ou seja, é como se não tivesse existido.
A acção é de reivindicação, cabendo aos tribunais comuns a competência para apreciar quer
o pedido de reivindicação, quer o pedido de indemnização.
A competência material do Tribunal é apreciada, como se sabe, em função do objecto
alegado pelo autor.
À data da propositura da acção (16 de Setembro de 2004), já estava em vigor o novo ETAF
(Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/02, de 19 de
Fevereiro), cujo início de vigência se verificou em 1 de Janeiro de 2004.
Pois bem. Nesta acção, de condenação, são formulados, já o vimos, vários pedidos,
começando pelo reconhecimento do direito de propriedade dos Autores sobre a parcela em
causa, com a consequente restituição da mesma parcela (no estado em que se encontrava à
data da ocupação ou, em alternativa, mediante indemnização pelos danos patrimoniais que
já tiveram e pelo custo de reposição a liquidar em execução de sentença).
Juntam-se os pedidos de indemnização por danos patrimoniais futuros, liquidados já em €
1993,68, o pedido de indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 2000,00.
Pedem-se juros de mora legais. Por fim, a fixação de uma sanção pecuniária compulsória até
efectivo cumprimento.
A acção vem qualificada, na petição inicial, como de reivindicação (art. 1311 do C. Civil).
Inclinamo-nos, porém, para considerar que a verdadeira pretensão ou providência judiciária
requerida pelos Autores (art. 467 do CPC) não é de reivindicação, mas, antes, de
condenação (do Réu) no pagamento de uma indemnização, sendo a questão do direito de
propriedade sobre a parcela em causa suscitada, apenas, como fundamento do pedido de
indemnização. [Nos termos do art. 96, n.º 1 do CPC, “O tribunal competente para a acção é
também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e da questões que o
réu suscite como meio de defesa”.
Referem Lebre de Freitas et alli, in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, p. 169, “Fora
do preceito do n.º 1ficam as questões que o tribunal deva necessariamente considerar, na
lógica do pedido deduzido, a fim de chegar à apreciação deste, isto é, as respeitantes à
causa de pedir (ex.: a validade do contrato cujo cumprimento é pedido). Tendo embora a
mesma natureza de questão prejudicial que a excepção peremptória (…), a competência do
tribunal para delas conhecer é inerente à ligação necessária em que estão com o thema
decidendum (…)”. Cfr., também, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in
Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Volume I, Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais, Anotados, anotação I ao art. 15 (Extensão da competência à
decisão de questões prejudiciais) do CPTA]
Observe-se, com efeito, que, como, aliás, se refere na petição inicial, já foi dada sem efeito a
adjudicação judicial da propriedade sobre a dita parcela ao Réu (tão pouco, na contestação,
se discute o referido direito de propriedade dos Autores).
Por outro lado, o pedido de restituição da parcela (que podemos integrar na forma de
indemnização por restauração natural, ao lado da indemnização por danos patrimoniais e
não patrimoniais [Cfr., p.e. Menezes de Leitão, Direito das Obrigações, Volume I, 4.ª ed., p.
377]) advém, em última análise, da anulação do acto administrativo de declaração de
utilidade pública. [O beneficiário da anulação de um acto administrativo ilegal, podia fazer
valer as pretensões dela emergentes através do chamado processo de execução do julgado,
regulado pelo DL n.º 256-A/77, de 17 de Junho]
Propendemos, assim, para configurar a presente acção como uma acção de responsabilidade
contra a Administração.
Nos termos do art. 211, n.º 1 da CRP, “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em
matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras
ordens judiciais”.
Do mesmo modo, estabelece-se no art. 66 do CPC que: “São da competência dos tribunais
judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Dispõe, por sua vez, o art. 212, n.º 3 da CRP que, “Compete aos tribunais administrativos e
fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os
litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Repetindo-se no art. 1, n.º 1 do novo ETAF: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal
são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo
nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada,
3.ª ed., p. 815),
“Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou
fiscais) (n.º 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as
acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é
titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente administração);
(2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo
direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em
causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio
emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre
relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”.
Observa Vieira de Andrade, in obra citada, p. 55 que:
“Esta questão sobre o que se entende por “relação jurídica administrativa”, sendo fulcral,
devia ser resolvida expressamente pelo legislador. Mas, na falta de uma clarificação
legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do
conceito constitucional de “relação jurídica administrativa”no sentido estrito tradicional de
“relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de
direito privado em que intervém a Administração (…)”.
A verdadeira “pedra de toque” para efeitos de determinação da competência material dos
tribunais administrativos reside, assim, no critério plasmado no art. 212, n.º 2 da Lei
Fundamental (como se afirma no Ac. do STJ de 7-10-2004, de que foi Relator o Ex. m.º Juiz
Conselheiro Ferreira de Almeida, publicado em www.dgsi.pt).
A acção foi, como referimos, intentada contra o Instituto das Estradas de Portugal (IEP),
entretanto, transformado em entidade pública empresarial, com a denominação abreviada de
EP _ Estradas de Portugal, E.P.E. (nos termos do DL n.º 239/2004, de 21 de Dezembro).
Nos termos do disposto no art. 4, n.º 1 al. g) do novo ETAF, compete aos tribunais da
jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
“Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das
pessoas colectivas de direito público, (…)”.
Sustentam Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, in Grandes Linhas da Reforma
do Contencioso Administrativo, 3.ª ed., p. 36, que:
“Compete, assim, à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade
civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se
essa responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de
gestão privada: a distinção deixa de ser relevante, para o efeito de determinar a jurisdição
competente, que passa a ser, em qualquer caso a jurisdição administrativa”. [No sentido de
que o art. 4, n.º 1 al. g) do novo ETAF atribui aos tribunais administrativos todo o
contencioso da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito
público (e não apenas, como até agora acontecia, do contencioso da responsabilidade civil
extracontratual por actos de gestão pública), v, também, Maria João Estorninho, A Reforma
de 2002 e o âmbito da jurisdição administrativa, Cadernos de Justiça Administrativa, 35, p. 3
e ss.; João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 7.ª ed., p. 265. Cfr., também,
Reforma do Contencioso Administrativo, Colectânea de Legislação, do Ministério da Justiça,
p. 13]
Para Vieira de Andrade (obra citada, p. 124), no entanto, a mencionada alínea g) (tal como a
alínea h)), “suscitam a dúvida sobre se também passa a competir à jurisdição administrativa
a apreciação dos litígios que tenham por objecto a responsabilidade das pessoas colectivas
de direito público pelos danos decorrentes da sua actividade de gestão privada _ o que
representaria uma ampliação importante do respectivo âmbito”, defendendo que há-de ser a
jurisprudência a determinar em que medida houve ou não alargamento.
Seja como for, no caso, temos legislação especial.
Com efeito, sob a epígrafe “Jurisdição competente”, dispõe o art. 7 do DL n.º 227/2002, de
30.10 (ainda em vigor á data da proposição da acção) que:
“1-É da competência dos tribunais administrativos o conhecimento dos recursos contenciosos
dos actos de gestão pública dos órgãos do IEP, bem como as acções sobre validade,
interpretação ou execução dos contratos administrativos em que seja parte, ou tendentes à
efectivação da responsabilidade deste Instituto ou dos seus órgãos, emergentes de actos de
gestão pública.
2-O disposto no número anterior não prejudica o conhecimento pelos tribunais comuns das
questões que sejam da sua competência em razão da matéria, designadamente os litígios
decorrentes das relações regidas pelo direito privado nas quais seja parte o IEP”. [Resulta,
por sua vez, do art. 8, n.º 3 al. h) do DL n.º 239/2004, de 21.12, que, para o exercício das
suas atribuições, a EP- Estradas de Portugal, E.P.E., detém poderes, prerrogativas e
obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis quanto
“à responsabilidade civil extracontratual, nos domínios dos actos de gestão pública”]
O que nos remete para a dicotomia “gestão pública/gestão privada”.
São actos de gestão pública “aqueles que, visando a satisfação de interesses colectivos,
realizam fins específicos do Estado ou outro ente público e assentam sobre o jus auctoritatis
da entidade que os pratica, enquanto que da gestão privada serão os actos que, embora
praticados pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas
colectivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de
serem praticados por simples particulares” (Antunes Varela, Das Obrigações em geral, I,
1991, p. 643).
Ora, no caso em apreço, em face dos elementos alegados pelos Autores, estamos, segundo
cremos, perante uma acção tendente à efectivação da responsabilidade do IEP, (pessoa
colectiva de utilidade pública), emergente de actos de gestão pública (na origem da actuação
do Réu esteve um acto administrativo de declaração de utilidade pública, posteriormente
declarado nulo). [Conforme se entendeu no Ac. do STJ de 4 de Outubro de 2005, de que foi
Relator o Ex. m.º Juiz Conselheiro Azevedo Ramos, publicado em www.dgsi.pt:
“_A relação jurídica da expropriação por utilidade pública reveste natureza híbrida: tem um
aspecto que se prende com o direito administrativo e outro que se liga com o direito civil.
_O primeiro é o que se revela nos procedimentos destinados à declaração da utilidade
pública e á sua concretização, até à investidura na posse administrativa.
_Nessa primeira fase, encontramo-nos no domínio das relações jurídicas administrativas”
(pontos I, II, e III do respectivo Sumário)] / [Não nos parece dever entender-se que se
configura uma situação de “via de facto”. Sobre este tema, cfr. Fernando Alves Correia, As
Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, p. 172 e ss. Como aí se refere:
“Não é nada fácil dizer quando é que estamos perante a figura da “via de facto” no âmbito
da propriedade e dos direitos patrimoniais dos particulares. Poderá, contudo, afirmar-se que
aquela se caracteriza não pela prática de um acto expropriatório a que faltam alguns
requisitos de validade, mas sim por um ataque grosseiro à propriedade do particular por
meio de factos onde não se pode encontrar nada que corresponda ao conceito de
expropriação”]
Concluímos, portanto, pela competência do tribunal administrativo para conhecer da
presente acção. [No mesmo sentido, segundo julgamos, Pedro Elias da Costa, in Guia das
Expropriações por Utilidade Pública, 2.ª ed., p.232, quando, em matéria de efeitos da
anulação da D.U.P., refere: “Não obstante ter readquirido a propriedade do bem que
ilegalmente lhe foi subtraído, tem o expropriado direito a uma indemnização que cubra os
danos sofridos em virtude da perturbação do gozo do bem. Para obter a devida indemnização
deverá interpor acção no Tribunal administrativo competente, pedindo indemnização por
responsabilidade da Administração por actos ilícitos”]
Decisão:
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso,
mantendo a decisão recorrida.
Custas pelos agravantes.
Porto, 23 de Janeiro de 2006
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingues
Agravo nº 6949/05-3ª Sec.
Data – 26/01/2006
4666 (Boletim Interno nº 24)
INJUNÇÃO
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO
AQUISIÇÃO
COMPETÊNCIA
Sumário
I- A norma do artigo 9º do DL 32/2003, não exclui do âmbito da aplicação imediata da injunção as
prestações de contratos de execução instantânea vencidas antes da sua entrada em vigor.
II- Quando a aquisição de bens ou serviços é feita pelas entidades públicas referidas no artº 2 do DL
197/99 e obedece a um dos procedimentos previstos neste diploma nomeadamente, o ajuste directo, o
tribunal competente para a resolução dos conflitos é o Tribunal Administrativo
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. B........., Lda, com sede na Rua da ...., ...., Leça da Palmeira, instaurou procedimento de
injunção contra a Câmara Municipal ...... para esta lhe pagar a quantia de € 3.824,24,
referente as mercadorias que lhe vendeu, € juros vencidos de € 1.224,53 e € 89,00 de taxa
de justiça paga.
Alega que respeitam as quantias peticionadas a vendas facturadas até 16/05/2002, com
vencimento a 90 dias da emissão das facturas, a última das quais com a referida data.
Notificada, veio a Câmara Municipal do ...... excepcionar a incompetência do Tribunal em
razão da matéria, alegando que o contrato por ajuste directo ao abrigo do qual as
mercadorias foram vendidas à requerida é um contrato administrativo, nos termos do qual a
Câmara praticou actos de gestão pública para prossecução de interesse público, no âmbito
das atribuições e competências do Município.
A competência para decidir a presente questão cabe aos tribunais administrativos.
Impugna a pretensão da requerente, em relação a duas facturas que, diz, foram anuladas
pela requerente e, consequentemente, não são devidos os juros peticionados.
Conclui a pedir a sua absolvição da instância e, a não se entender assim, a absolvição do
pedido nos termos invocados.
A Requerente respondeu à oposição apresentada, pugnando pela improcedência da
excepcionada incompetência, pela condenação da Câmara a pagar a quantia pedida e, bem
assim, pela condenação desta em multa por litigar de má fé.
Perante a oposição, foi o requerimento de injunção remetido a Tribunal e distribuído como
acção sumária, cujos termos passou a seguir.
II. O Exmo. Senhor Juiz veio a julgar improcedente a excepção de incompetência material do
tribunal para conhecer da matéria dos autos, com o fundamento que não estava em causa a
interpretação ou validade do contrato celebrado, mas apenas a questão da falta de
pagamento e julgando nulo todo o processo, por erro na forma do processo, entendendo
inaplicável o DL 32/03 e, por essa razão, estar inviabilizado o recurso ao processo de
injunção face ao valor do pedido, absolveu a requerida da instância.
III. Inconformada, recorre a requerente que, alegando, conclui:
“1.A forma de processo aplicável determina-se pela lei vigente à data em que a acção é
proposta, de acordo com a regra doa artigo 142º, nº 2, do C.P.C.
2.Assim só não será se existir disposição de carácter especial ou excepcional.
3.A forma constante do artigo 9º do Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro, tem o seu
âmbito de aplicação circunscrito aos contratos de execução continuada ou reiterada.
4.O contrato sub júdice é um contrato de execução instantânea.
5.Em matéria de aplicação d lei no tempo, Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro, não
contém qualquer norma que disponha sobre os contratos de execução instantânea.
6.Inexistindo, por isso, qualquer fundamento que justifique a não aplicação da regra geral
constante do artigo 142º, nº 2, do C.P.C.
7.A interpretação do meritíssimo Juiz a quo carece assim de qualquer apoio gramatical.
8.ou sequer teleológico, porque contraria o próprio espírito do Decreto-Lei 32/2003, de 17 de
Fevereiro, e da Directiva nº 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de
Junho, que aquele transpõe.
9.A decisão do Meritíssimo Juiz a quo violou as normas constantes do artigo 9º do DecretoLei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro, e dos artigos 142º, nº 2, 199º, 493º, nº 2, e 494, al. b),
288º, nº 1. al. b), do C.P.C.
10.devendo, por conseguinte, ser revogada e substituída por outra que aplique o regime do
artigo 142º, nº 2, do C.P.C e considere o procedimento de injunção legalmente admissível,
assim se fazendo a habitual e inteira JUSTIÇA”.
A requerida contra-alegou em defesa do despacho recorrido.
IV. Subordinadamente, recorre a requerida, quanto á decisão que julgou improcedente a
excepção de incompetência material do tribunal.
Nas suas alegações conclui:
“A- A questão que cumpre dirimir é a de saber se o Tribunal Judicial da Comarca de
Matosinhos é competente em razão da matéria para conhecer do objecto da acção.
B- A causa de pedir, nos presentes autos, tal como configurada pela A., decorre de relação
jurídica reportada a um contrato de fornecimento de bens móveis celebrado ao abrigo do
procedimento administrativo pré-contratual – na modalidade de ajuste directo – regulado
pelo Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Julho.
C- Tal contrato ficou obrigatoriamente sujeito, nos termos da lei, ao regime da contratação
pública, relativa à aquisição de bens móveis e serviços, previsto no DL nº 197/99, de 8 de
Junho.
D- Nos termos da al.. e), do nº 1, do artigo 4º do ETAF. Compete aos tribunais da jurisdição
administrativa e fiscal, a apreciação dos litígios que tenham por objecto as “questões
relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de
contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam
submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público”.
E- Em consequência, de harmonia com o disposto nos artigos 101º e segs. Do CPC, verificase a incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal Judicial da Comarca de
Matosinhos, a qual constitui a excepção dilatória prevista na al. a) do art. 494º do CPC, de
conhecimento oficioso ex vi do artº 495º do CPC, e que implica a absolvição da R. da
instância, nos termos dos artigos 105º, 288º, nº 1 al. a) e 493º nº 2, todos do CPC”.
(…)
“Nestes termos, e nos mais de direito e sempre com o mui Douto suprimento de Vossas
Excelências, deverá ser julgada procedente, por provada, a excepção de incompetência
absoluta do Tribunal, conduzindo à absolvição do Réu, ora Recorrente, da instância, o que se
alcançará com a revogação da decisão recorrida, o que se requer, por ser de Direito e de
JUSTIÇA”.
Não houve resposta a estas alegações.
Colhidos os vistos cabe decidir.
V. Os factos são os atrás descritos no relatório, no § I.
VI. Quanto ao recurso da requerente “B..........”.
O processo de injunção foi criado pelo DL 403/94, de 10/12, que no seu artigo 1º
preceituava “considera-se injunção a providência destinada a conferir força executiva ao
requerimento destinado a obter o cumprimento efectivo de obrigações pecuniárias
decorrentes de contrato cujo valor não exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª
instância”.
Com este procedimento visou-se permitir ao credor de uma prestação, que se consubstancie
numa obrigação pecuniária, obter, de forma célere e simplificada, um título executivo,
condição indispensável ao cumprimento coercivo da mesma, e, por outro lado, simplificar e
desburocratizar a actividade jurisdicional, pelo descongestionamento dos tribunais quanto a
pretensões pecuniárias de pequeno montante.
A criação desse procedimento célere, simplificado e desburocratizado assenta no pressuposto
da inexistência de verdadeiro litígio entre o requerente e o requerido, pelo que o recurso
daquele à actuação judicial visava apenas a obtenção de um título executivo para poder
aceder à acção executiva.
E concretiza-se em requerimento de injunção com a pretensão do requerente a que, na falta
de oposição do requerido na sequência de notificação desse requerimento, é aposta, pelo
secretário judicial, a fórmula executória “execute-se» - artigo 5º do citado DL.
Trata-se de uma fase desjurisdicionalizada, em que não intervém o juiz, sem que fiquem
diminuídas as garantias das partes, asseguradas “quer pela via da apresentação obrigatória
dos autos ao juiz quando se verifique oposição do devedor, quer pelo reconhecimento do
direito de reclamação no caso de recusa, por parte do secretário judicial, da aposição da
fórmula executória na injunção”.
Pelo DL 269/98, de 1/9, foi revogado o DL 403/94, mantendo-se o procedimento com a
mesma natureza e semelhantes formalidades. Mas foi ampliada o âmbito de aplicação da
providência. O artigo 7º (do regime jurídico dos procedimentos destinados a exigir o
cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à
alçada do tribunal de 1ª instância, criado elo DL 269/98,) definia como “injunção a
providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o
cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 269/98”, ou
seja, das obrigações pecuniárias de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância.
Esta ampliação das possibilidade de recurso à providência de injunção justifica-se com a
“instauração de acções de baixa densidade que têm crescentemente ocupado os tribunais,
erigidos em órgãos para reconhecimento e cobrança de dívidas por parte dos grandes
utilizadores, está a causar efeitos perversos, que é inadiável contrariar”. Daí que “não
podendo limitar-se o direito de acção, importa que se encarem vias de desjudicialização” de
certo tipo de litígios, no intuito de permitir ao credor de obrigação pecuniária a obtenção,
«de forma célere e simplificada», de um título executivo e descongestionar os tribunais de
elevado número de acções, de baixos montantes, em que apenas se visa o reconhecimento
do crédito e um título executivo e em que, na maior parte das vezes, não seriam
contestadas.
Na mesma senda se publica o DL 32/2003, de 17/2 (que transpôs para a ordem jurídica
interna a Directiva nº 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29/6) que
alarga o âmbito de aplicação do regime da injunção e altera o “regime jurídico dos
procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de
contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância” (aprovado pelo DL
269/98). No artigo 7º deste “regime jurídico” modificado preceitua-se “considera-se injunção
a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o
cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das
obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003,
de 17 de Fevereiro”.
Por sua vez, o artigo 1º deste DL estipula que “o presente diploma transpõe para a ordem
jurídica interna a Directiva n.º 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de
Junho, a qual estabelece medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transacções
comerciais”.
E é definida a transacção comercial como “qualquer transacção entre empresas ou entre
empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou
designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços
contra uma remuneração” – artigo 3º desse DL
Decorre do preâmbulo deste DL que se estabelecem medidas de luta contra os atrasos de
pagamento em todas as transacções comerciais, independentemente de terem sido
estabelecidas entre empresas, ou entre empresas e entidades públicas, tendo em conta que
estas últimas procedem a um considerável volume de pagamentos às empresas. Procura-se
que o credor possa obter um título executivo num prazo máximo de 90 dias sempre que a
dívida não seja impugnada, daí se facilitar ao “credor a obtenção desse título, permitindo-lhe
o recurso à injunção independentemente do valor da dívida”.
Pelo que “o atraso de pagamento em transacções comerciais, nos termos previstos no
presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do
valor da dívida”. (artigo 7º, nº 1, do DL 32/2003)”
O credor que pretenda exigir o cumprimento de (quaisquer) obrigações pecuniárias
emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância, ou das
obrigações emergentes de transacções comerciais delimitadas no artigo 3º do DL 32/2003,
estas independentemente do seu valor, pode recorrer ao processo de injunção para obter um
título executivo.
E com a finalidade de alargar a possibilidade de recurso ao processo de injunção, se publica
o DL 107/2005 (aqui não aplicável) que procede ao alargamento do âmbito de aplicação do
regime jurídico da injunção, que passa a destinar-se a exigir o cumprimento de obrigações
pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada da Relação, actualmente
fixada em (euro) 14963,94”.
Dispõe o nº 2º do artigo 7º do DL 32/2003 que “para valores superiores à alçada do tribunal
de 1.ª instância, a dedução de oposição no processo de injunção determina a remessa dos
autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum”.
Foi o que sucedeu na espécie em apreciação. Sendo o valor (€ 5.048,77) da injunção
superior à alçada do tribunal da 1ª instância e apresentada oposição pela requerida, passou
a seguir os termos do processo sumário de declaração.
A requerida foi absolvida da instância por se julgar nulo todo o processo, dado se entender
que a requerente não podia recorrer ao procedimento injuntivo, vencidas que estavam as
obrigações (que se entenderam emergentes de contratos de execução instantânea), antes da
data da entrada em vigor do DL 32/2003.
Determina no seu artigo 10º, nº 1, “o presente diploma entra em vigor no dia seguinte ao da
sua publicação”. Só ressalva o preceituado nos artigo 7º e 8º que “entram em vigor no 30.º
dia posterior à sua publicação”
Assim, ao 30º dia após a publicação todo o diploma esta em vigor.
Esta “vacatio legis” de 30 dias é justificada pelo facto do credor passar a poder recorrer ao
processo de injunção para obter um título executivo, independentemente do valor da dívida
(emergente de transacção comercial), e assim permitir aos operadores económicos uma
adequação ao novo procedimento.
Decorrida essa “vacatio”, o credor de uma obrigação pecuniária, de qualquer valor,
emergente de transacções comerciais (nos termos do artigo 2º, nº 1, do DL 32/2003) pode
socorrer-se do processo de injunção para obter um título executivo.
Como única excepção, determina o artigo 9º, do mesmo DL, que “o presente diploma aplicase às prestações de contratos de execução continuada ou reiterada que se vençam a partir
da data da sua entrada em vigor”.
A norma, referente à aplicação no tempo desse diploma legal, define o âmbito da excepção,
não havendo motivo para ampliar o campo de aplicação, que contraria o objectivo da criação
do mecanismo legal de obtenção célere de um título executivo e combate ao atraso nos
pagamentos se estendida a “reserva” a situações não contempladas no texto nem no espírito
da lei.
As normas que permitem o recurso á injunção e definem o seu regime têm natureza
processual e são de aplicação imediata.
Estabelece o artigo 142º do CPC:
“1 – A forma dos diversos actos processuais é regulada pela lei que vigore no momento em
que são praticados.
2 - A forma de processo aplicável determina-se pela lei vigente à data em que a acção é
proposta.”
A lei processual é de aplicação imediata.
A forma do processo é a que resultar da lei vigente na data da propositura da acção (nº 2)
Por princípio, a lei só rege para o futuro (artigo 12º, nº 1 (1ª parte) do CC, ficando
salvaguardados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei nova se destina a regular.
Dada a natureza publicista e instrumental das normas processuais, são de aplicação imediata
(salvo se a lei preceituar de modo diferente, quer por disposições transitórias gerais quer por
disposições especiais) [Manuel de Andrade; Noções Elementares de Processo Civil, 1979,
pág. 42; Castro Mendes, Direito Processual Civil I, AAFDL, 1980, 173/174].
Quanto à aplicação do diploma em causa no tempo, da aplicação imediata apenas se
excepciona o preceituado no artigo 9º, pelo que não há que fazer interpretação de modo a
deixar de aplicar o regime estabelecido a situações não contempladas. Podendo surgir
dúvidas sobre a aplicabilidade às obrigações emergentes de contrato de execução continuada
ou reiterada, a lei limita-se esclarecer a situação mandando aplicar o procedimento às
prestações vencidas a partir da sua entrada em vigor.
Aí não estão excepcionadas as obrigações emergentes de contratos de execução instantânea,
vencidas antes da sua entrada em vigor.
Os contratos que estão na base do pedido, segundo se alega, são contratos de compra e
venda, seguramente contratos de execução instantânea. O cumprimento das obrigações
emergentes esgota-se num só momento; a conduta exigível do devedor esgota-se num só
momento, no caso, com o pagamento do preço acordado [Antunes Varela, Das Obrigações
em Geral, 3ª Ed/80, Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I/ 125].
A norma do artigo 9º do DL 32/2003, não exclui do âmbito da aplicação imediata da injunção
as prestações de contratos de execução instantânea vencidas antes da sua entrada em vigor.
A agravante podia recorrer ao processo de injunção regulado pelo DL 269/98, com as
modificações introduzidas pelo DL 32/2003, apesar das obrigações exigidas se terem vencido
antes da data da entrada em vigor deste último e ascenderem a montante superior ao da
alçada do tribunal de 1ª instância.
Por outro lado, nenhuma garantia da requerida se vê diminuída, posto que, após oposição, o
processo passa à esfera judicial, e a seguir os termos do processo comum (artigo 7º, nº 2,
do DL 32/2003), segundo o valor da causa (artigos 461º e 462º do CPC), e a controvérsia a
ser decida pelo juiz. O agravo merece provimento.
VII. Quanto ao recurso subordinado – Câmara Municipal do ....... .
Afirma esta que o tribunal é incompetente para conhecer da demanda, em razão da matéria
discutida.
Na decisão recorrida, o Exmo. Senhor Juiz julgou improcedente a excepcionada
incompetência nos termos “mesmo a aceitar-se que a aquisição dos bens cujo pagamento é
peticionado nos autos pela A. foi realizado através de um ajuste directo (o que a A.
impugna), certo é que nos presente autos não se discute nem a interpretação nem a
validade nem a execução do contrato celebrado com a A. sendo a única questão em causa
nos autos que a R. cumpra a sua prestação” consistente no pagamento do preço dos bens
adquiridos à autora.
Com o devido respeito, permitimo-nos dissentir da conclusão, na medida em que (em
contrato de compra e venda ou de fornecimento de bens ou serviços) o pagamento é ainda
execução do contrato, pelo cumprimento das obrigações dele emergentes para uma das
partes. É verdade que em causa não está a validade ou a interpretação do/s contrato/s
origem dos créditos da agravada, mas não deixa de estar em causa a execução do contrato
(em que se engloba o cumprimento das obrigações assumidas por alguma das partes).
O poder jurisdicional reparte-se entre vários tribunais, sendo a fracção que lhe compete
nesse poder a sua competência, que é, assim, a medida de jurisdição que lhe é atribuída ou
a determinação das causas que lhe tocam e, em concreto, consiste no poder de julgar
determinado pleito. A competência material (concreta) de um tribunal é o poder que lhe é
atribuído para julgar certa causa ou para decidir um pleito, incluído na fracção de jurisdição
que lhe compete [Manuel de Andrade, Noções de Processo Civil, 1979, pág. 89; Castro
Mendes - Direito Processual Civil, AAFDL, 1980, 1/647.]
Toda a causa tem um tribunal onde deve ser proposta, determinado segundo os factores
atributivos de competência, que se fixam no momento em que a acção se propõe.
Nos termos do artigo 66º do CPC, se não houver lei a atribuir a competência a tribunal
especial para conhecer de determinada causa, essa competência cabe aos tribunais judiciais
(também, artigo 211º, nº 1, da CRP). A competência material dos tribunais civis é aferida
por critérios de atribuição positiva e de competência residual e, segundo o critério de
competência residual, incluem-se na competência dos tribunais civis todas as causas que
“não são legalmente atribuídas a nenhum outro tribunal”.
A competência do tribunal é um pressuposto para que o tribunal se ocupe da questão, a
apreciar em concreto, perante cada acção, em ordem a determinar se entre esta e aquele
existe a conexão considerada relevante e decisiva pela lei, atribuindo-lhe o poder para
apreciar a causa [Anselmo de Castro, Processo Civil Declaratório, II, 20].
Não sendo a causa proposta no tribunal com competência para a matéria, verifica-se
incompetência absoluta, a falta de um pressuposto processual resultante do facto da acção
ter sido instaurada num tribunal quando, pela matéria a decidir, devia ter sito proposta
noutro tribunal.
A competência do tribunal afere-se essencialmente pelo pedido formulado pelo autor, pelo
quid decidendum, conexionado com os respectivos fundamentos; determina-se pelo pedido
formulado em conexão com a causa porque se pede, ou o direito para que se pede tutela e o
facto ou acto donde emerge esse direito.
Na acção pede a requerente o pagamento de determinada quantia, como preço da venda de
mercadorias, do seu comércio, à requerida (Câmara Municipal do ......).
Quer a ré que, no caso, a lei atribui a competência a outra ordem de tribunais – os
administrativos – que não aos tribunais judiciais.
Nos termos dos artigos 2.º e 3º do DL 32/2003, o diploma aplica-se a todos os pagamentos
efectuados como remunerações de transacções comerciais, sejam as entidades envolvidas
privadas ou públicas. «Transacção comercial» é qualquer transacção entre empresas ou
entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou
designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços
contra uma remuneração. E decorre o artigo 2º, nº 1, da Directiva 2000/35/CE (transposta
por esse DL), que entidade pública é qualquer autoridade ou entidade pública contratante no
quadro dos concursos públicos [Refira-se que o DL 32/03, de 17/2, abrange todas as
entidades, públicas e privadas, e, segundo a actual lei de processo nos tribunais
administrativos, não se vê nenhum obstáculo a que, por um lado, um título executivo (que
pode consistir no requerimento de injunção a que seja conferida força executiva) dê lugar a
execução no tribunal administrativo e, por outro, que o requerimento de injunção não possa
ser apresentado nas secretarias desses tribunais, para lhe ser conferida força executiva, com
a tramitação subsequente própria de processo nesses tribunais. Ver Salvador da Costa, A
Injunção e as Conexas Acção e Execução, 4ª Ed., pág. 168]
Nos termos do nº 1 do artigo 4º do Estatuto do Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado
pela Lei nº 13/2002, de 19/2, na redacção dada pela Lei nº 107-D/2003, de 31/12) - quanto
á jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais – que compete aos tribunais da jurisdição
administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
(…)
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e
execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que
admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de
direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível
de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de
direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de
contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um
concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente
submetido a um regime substantivo de direito público;
(…).
Pelo DL 197/99, que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 97/52/CE, de
8/6, é aprovado o novo regime jurídico de realização de despesas públicas e da contratação
pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e serviços, prevendo-se as matérias
comuns a todas as aquisições, desde as regras relativas à realização de despesas até às
normas sobre celebração de contratos, passando pelas noções comuns aos diversos
procedimentos e sua regulamentação. Diploma esse aplicável às autarquias locais (al. d) do
artigo 2º), natureza que tem a agravante.
Quanto à aquisição de bens pelas entidades mencionadas no artigo 2º desse DL, pode
obedecer a um dos procedimentos previstos nesse diploma legal, referidos no seu artigo 78º,
entre eles o ajuste directo (al. f) e nº 7), que não carece de consulta a vários fornecedores
de bens, desde que o valor destes se enquadre nos limites definidos no artigo 81º, nº 2 e 3,
desse DL, diploma que reveste a natureza de lei administrativa.
Sendo a aquisição dos bens, cujo pagamento do preço a A. requer, feita por um dos
procedimentos previsto, maxime ajuste directo, existe lei específica que submete os
contratos, ou que admite que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado
por normas de direito público (as do mencionado DL).
Na realidade do alegado pela R., o conhecimento da matéria suscitada na causa compete ao
foro administrativo.
Porém, a autora impugna os factos alegados pela ré (items 11º a 13 da resposta, no respeita
à fundamentação da excepção, nomeadamente o que concerne ao procedimento (ajuste
directo) adoptado para a aquisição dos bens, a que se reporta o preço cujo pagamento é
exigido.
E cabe à ré a prova dos fundamentos da excepção.
Perante a impugnação dos factos alegados com essa finalidade, não se dispõe da
factualidade bastante para se concluir que o negócio que subjaz á demanda não se trata de
mera compra e venda sujeita ao regime do direito privado (arts. 405º e 874º do CC) e não
de contrato sujeito a procedimento regulado no mencionado DL 197/99, pelo que o
conhecimento da competência terá de ser precedido da realização das diligências de
instrução necessárias à averiguação da situação de facto (arts. 712º, 4, e 749 do CPC) e, a
final, ser, então, conhecida a matéria da excepção.
VIII. Pelo exposto, acorda-se nesta Relação do Porto:
a) dando-se provimento ao agravo interposto pela requerente/autora, revoga-se o despacho
recorrido quanto ao erro na forma do processo, devendo este prosseguir por inexistir
inadequação processual;
b) anular o despacho que julgou improcedente a excepção de incompetência do tribunal
recorrido, ordenando-se o prosseguimento do processo para averiguação dos factos
referentes a essa excepção, nos termos da fundamentação.
Custas do agravo da autora pela agravada (ré).
Custas do agravo da ré a fixar a final.
Porto, 26 de Janeiro de 2006
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira
Agravo nº 256/06-2ª Sec.
Data – 31/01/2006
4667 (Boletim Interno nº 24)
COMPETÊNCIA
TRIBUNAL DE PEQUENA INSTÂNCIA
JULGADOS DE PAZ
Sumário
Para as acções de cobrança de Dívidas Hospitalares de valor inferior à alçada do tribunal de 1.ª Instância
é competente o Tribunal de Pequena Instância e não os Julgados de Paz.
ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
B.........., S. A. com sede no Porto, requereu no Tribunal de Pequena Instância do Porto
(averbado ao ..º Juízo/.ª Secção) acção com processo sumaríssimo contra Companhia de
Seguros X.........., S. A. e Y.........., S. A., pedindo a condenação dos réus a pagar-lhe a
quantia de €238,15, acrescida de €28,99 de juros vencidos e vincendos à taxa legal até
integral pagamento, sendo este o valor dos serviços prestados a sinistrado de acidente de
viação, cuja responsabilidade cabe a segurado das rés.
Procedeu-se a citação prévia, precedendo a distribuição e foi ordenada a remessa dos autos
aos Julgados de Paz do Porto, por se considerarem estes o Tribunal Competente, atento o
disposto nos artigos 6º n.º 1, 8º, 9º n.º 1 al. h), 12º n.º 2, 62º, 63º e 67º, todos da Lei n.º
78/2001 de 13/7 e Portaria n.º 375/2004 de 13/04.
Logo que notificado do despacho exarado na 1.ª página que considerou competente os
Julgados de Paz, veio o autor interpor o presente recurso de agravo.
Entretanto, com processado disperso pelo Tribunal de 1.ª instância, ao qual o autor se
dirigia, e aos Juízos de Paz, para onde o processo foi remetido, estes designaram sessão de
Pré-Mediação e declararam o despacho do Tribunal de Pequena Instância irrecorrível.
Alertado pelo autor, o Julgado de Paz entende como “lapso” o seu anterior despacho e acaba
por devolver os autos ao Tribunal de Pequena Instância, onde o recurso acaba por ser
recebido.
Nas suas alegações o agravante formula as seguintes conclusões:
1.ª- A presente acção foi interposta no Tribunal de Pequena Instância do Porto, que por
despacho de 22 de Março de 2005, o processo foi remetido para os Julgados de Paz do Porto,
por se considerar este o Tribunal hierarquicamente competente.
2.ª- Porém, salvo melhor entendimento, afigura-se ao aqui recorrente que o mesmo não tem
razão.
3.ª- O D.L. 218/99, de 15 de Junho, estabelece um regime especial para a cobrança de
dívidas referentes aos cuidados de saúde prestados pelas instituições e serviços integrados
no Serviço Nacional de Saúde, como se depreende, não só do teor do preâmbulo, como do
estipulado nos arts. 1°, 2°, 3°, 4º e 5° do citado Diploma Legal.
4.ª- Por sua vez, a Lei 78/2001 de 13 de Julho no seu art. 9° regula a competência material
dos Julgados de Paz, sendo-lhes permitido, apreciar e decidir nas situações previstas no n.º
1 e 2 do art. 9° da referida Lei 78/2001.
5.ª- Consequentemente, todas as acções, cuja competência não se encontre regulada em lei
especial, que aí não se estejam previstas e cujo valor seja inferior à alçada da relação de
primeira instância, serão "à contrário senso" da competência dos tribunais de Pequena
Instância Cível.
6.ª- O mencionado normativo legal, na alínea a) do n.º 1, refere que estão excluídas do
âmbito da sua competência material as acções que tenham por objecto prestação pecuniária,
cujo credor originário seja uma pessoa colectiva, requisito este que impende sobre o aqui
recorrente, o que em nosso entender implica, obrigatoriamente, a incompetência material
dos Julgados de Paz do Porto.
7.ª- As acções propostas ao abrigo do D.L. 218/99 de 15/6 são acções de dívida, cuja causa
de pedir é o custo da prestação de cuidados de saúde e destinam-se a efectivar o
cumprimento de uma obrigação pecuniária, não podendo ser integradas na h) n.º 1 da supra
mencionada lei 78/2001, uma vez que o recorrente é uma pessoa colectiva.
8.ª- Porquanto o D.L. 218/99 de 15 de Junho regulamenta um regime específico para as
acções de cobrança de dividas das Instituições Hospitalares (e outras integradas no SNS),
porém afastada a competência dos Julgados de Paz, pelo nº 1 a) da Lei 78/01, para as
apreciar e decidir e, não se encontrando expressamente atribuída por qualquer outra
disposição da referida lei a sua competência material afigura-se-nos, estar excluída do
âmbito da mesma.
9.ª- Não se verificando assim, em nosso entender, a excepção da incompetência em razão
da hierarquia, conforme se decidiu no despacho ora em crise.
10.ª- Devendo tal decisão, por violação do preceituado nos artigos 6º n.º 1, 8º, 9º n.º 1 h),
12, n.º 2, 62º, 63º e 67º da Lei 78/2001 ser inteiramente substituída opor outra que
considere competente, em razão da hierarquia, o Tribunal de Pequena Instância do Porto,
por consequente incompetência em razão da matéria dos Julgados de Paz do Porto.
Pugna pelo provimento do agravo, mantendo-se a competência do Tribunal de Pequena
Instância do Porto.
O despacho foi tabelarmente mantido e colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir, sendo que a questão suscitada (arts. 684.º n.º3 e 690.º n.º1 do CPC) é a de
saber qual o Tribunal competente em razão da matéria para uma acção de cobrança de
dívida hospitalar de valor inferior à alçada do Tribunal de 1.ª instância: se o Tribunal de
Pequena Instância, se os Julgados de Paz.
Isto porque no art. 9º do DL. n.º 78/2001 de 13 de Julho, que fixa a competência em razão
da matéria dos Julgados de Paz, determina que estes são competentes para apreciar e
decidir:
a) – Acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações, com excepção das que
tenham por objecto prestações pecuniária e de que seja ou tenha sido credor originário uma
pessoa colectiva;
h) - Acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual.
*
A questão não é nova e foi objecto de apreciação pelos tribunais superiores.
Com efeito o Acórdão de 21 de Fevereiro de 2005, proferido no processo 7289/2004- 5.ª
Secção negou provimento ao agravo do despacho proferido no processo n.º
5874/04.3THPRT, do 1.º Juízo, 1.ª Secção do Tribunal de Pequena Instância do Porto,
considerando-se assim que seria competente para tais acções os Julgados de Paz.
Para assim se decidir, escreveu-se no mesmo Acórdão:
“Ora, para o agravante a acção por si intentada, proposta ao abrigo do DL n.º 218/99 de
15/6, que regulamenta um regime específico para as acções de cobrança de dívidas
hospitalares, deve ser classificada e integrada na al. a), como fazendo parte da excepção aí
prevista, ou seja, como acção cujo objecto é a prestação pecuniária, sendo o credor
originário uma pessoas colectiva.
Para o tribunal recorrido e como se infere do despacho de sustentação, entende que a
presente acção destina-se a exigir o pagamento de uma indemnização por serviços prestados
a uma vítima de acidente de viação, ocorrido por culpa exclusiva do condutor do veículo
segurado na ré, donde se estar na presença de uma acção que se destina à efectivação da
responsabilidade civil por factos ilícitos, isto é, à responsabilidade civil extracontratual, donde
integrável na al. h) do art. 9º do citado DL.
Vejamos como responder à questão de se saber se este tipo de acções, com valor não
excede a alçada do tribunal de 1ª instância (art. 8), serão da competência dos Julgados de
Paz ou do Tribunal de Pequena Instância Cível.
Para Cardona Ferreira, Julgados de Paz, Organização, Competência e Funcionamento, pág.
29, reconhecidamente o criador destes tribunais, considera o artigo 9º e a competência
material que estabelece, como fundamental, dado que tipifica, em exclusividade, a
competência material destes Julgados de Paz.
Quanto à al. a) do art. 9º esclarece que não significa que as pessoas colectivas possam ser
partes em Julgados de Paz, atento o art. 37º do mesmo diploma.
Relativamente à al. h) considera que se pode aqui abranger as acções declarativas
emergentes de danos causados por veículos.
Também Joel Timóteo Ramos Pereira, Julgados de Paz, Organização, Trâmites e Formulário,
pág. 56 e segs. considera que a competência material fixada no art. 9º é exclusiva aquando
da instauração da acção, sendo obrigatória a interposição nos julgados de paz, uma vez que
a parte não tem a faculdade de escolher entre a instauração de Julgado de Paz ou Tribunal
Judicial.
Refere e exemplifica ainda que, se porventura, uma acção descrita no art. 9º for instaurada
no Tribunal Judicial de Primeira Instância, ocorrerá violação do art. 211º da Constituição e
art. 66º do CPC.
Para João Miguel Galhardo Coelho, Julgados de Paz e Mediação de Conflitos, Âncora Editora,
pág. 27, considera que os Julgados de Paz são competentes para apreciar e decidir as acções
que tenham por objecto a responsabilidade civil contratual e extracontratual, sendo que nas
matérias que são da sua competência a jurisdição é exclusiva e, como tal, obrigatória.
Os Julgados de paz podem ser considerados como uma nova categoria de tribunais
destinados essencialmente a causas de menor valor e grau de dificuldade, exclusivo a acções
declarativas, mas concebidos a permitir a participação cívica dos interessados, estimulando a
justa composição dos litígios, sendo que os seus procedimentos estão concebidos e
orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta
economia processual – artigos 1º, 2º e 6º do DL n.º 78/2001 -.
Ora, atento os ensinamentos acima expostos e da leitura tanto do preâmbulo como do
conjunto dos articulados do DL n.º 218/99 de 15/6, como por exemplo «... neste diploma é,
de novo, e como regra geral, consagrada a acção declarativa ....», art. 5º «nas acções para
cobrança das dívidas incumbe ao credor a alegação e prova do facto gerador da
responsabilidade pelos encargos ....», Secção III, Dívidas resultantes de acidentes de viação,
art. 9 «......................................................., poderão exigir das seguradoras o
pagamento dos encargos decorrentes dos cuidados prestados a vitimas de acidentes de
viação ..................................», somos levados a concluir que se está perante uma acção
que respeita à responsabilidade civil extracontratual e como tal, integrável na al. h) do art.
9º do DL n.º 78/2001.
E sendo-o, então, serão competentes, materialmente e de forma exclusiva, para apreciar e
decidir este tipo de acções, os Julgados de Paz, desde que verificada a condição do art. 8º
(valor a não exceder a alçada do tribunal de 1ª instância).
Portanto, os artigos 8º e 9º fixam os limites de valor e materiais a serem tratados e
decididos pelos Julgados de Paz, fixando, em exclusividade, as acções declarativas a serem
por estes julgadas.
Assim, as dívidas hospitalares, como acções declarativas que respeitam à responsabilidade
civil extracontratual, desde que de valor que não exceda a alçada do tribunal de 1ª instância,
serão da competência material dos Julgados de Paz.
Daí que, se a parte, pretende que seja resolvida e decidida uma situação integrável em tais
normativos (8º e 9º), terá de instaurar a acção, forçosamente, nos Julgados de Paz.
Se instaurado noutro tribunal deverão ser usados os artigos 494º al. a) e 102º n.º 1 do CPC.
Como no caso presente o processo foi remetido, antes da distribuição, para o Julgado de Paz,
materialmente competente para o apreciar e decidir, e foi por este aceite tal competência,
deverá aí prosseguir a sua normal tramitação.”
Interposto recurso para o STJ desta decisão, o processo veio aí a ter o n.º 2024/05, da 6.ª
secção, tendo sido decidido por Acórdão de 5 de Julho de 2005,acabando o agravo por ser
provido, fixando-se a competência no Tribunal de Pequena Instância.
Aí se deixou escrito: “Ora, dos ensinamentos acima expostos e da leitura, tanto do
preâmbulo como do conjunto dos articulados do DL 218/99 de 15/6, como por exemplo “...
neste diploma é, de novo, e como regra geral consagrada a acção declarativa...”, art. 5º
“nas acções para cobrança das dívidas incumbe ao credor a alegação e prova do facto
gerador da responsabilidade pelos encargos...”, Sec. III, Dívidas resultantes de acidentes de
viação, art. 9º “......, poderão exigir das seguradoras o pagamento dos encargos decorrentes
dos cuidados prestados a vítimas de acidentes de viação......”, somos levados a concluir que
estamos perante uma acção que respeita ao cumprimento de obrigações, que tenham por
objecto prestação pecuniária e de que é credora a pessoa colectiva, ainda que se faça apelo
à responsabilidade civil extracontratual e à vigência de um contrato seguro, para justificar a
responsabilidade da demandada, tal como integrável nas al. a) e h) do art. 9º do DL n.º
78/2001.
Tendo esta acção uma causa de pedir complexa, mas não deixando de ser uma acção para
cobrança de dívida hospitalar, deparamos com a interessante situação de al. a) do citado art.
9º a excluir da competência dos Julgados de Paz, enquanto a al. h) a integraria no âmbito
dessa mesma competência.
Caso a referida al. a) se limitasse a não incluir na sua previsão as acções deste tipo, não
teríamos dúvidas em corroborar as conclusões das instâncias, porque caberiam na citada al.
h).
No entanto, aquela al. a) expressamente exclui da competência dos Julgados de Paz as
acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações, que tenham por objecto
prestação pecuniária e de que sejam credoras pessoas colectivas, como acontece no caso em
análise.
Assim, a al. h) deve ser interpretada de forma a harmoniza-la com aquela exclusão,
incluindo na competência material dos Julgados de Paz as acções que respeitem à
responsabilidade contratual e extracontratual, mas que não tenham por objecto prestação
pecuniária de que seja credora pessoa colectiva, face ao princípio da unidade do sistema
jurídico e à presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube
exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9° n° 1 e nº 3 do CC).
Cremos que a razão dá exclusão daquele tipo de acções da competência dos Julgados de Paz
reside no facto de estes estarem vocacionados para permitir a participação cívica dos
interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes.
Nas acções para cobrança de dívidas das pessoas colectivas, tendo em conta que estas não
visam o lucro económico, não há lugar à justa composição dos litígios por acordo das partes,
pelo que seria um contra senso inclui-las na competência material dos Julgados de Paz (art.
157º do CC).
Nos termos expostos, decide-se conceder provimento ao agravo, revogando-se o acórdão
recorrido e declarando-se competente para a presente acção o .° Juízo .ª Secção da Pequena
Instância Cível do Porto.”
Daqui se conclui que a situação dos autos se enquadra na alínea a) do art. 9º. do DL. n.º
78/2001 de 13 de Julho, tratando-se, pois, de obrigação pecuniária em que o credor
originário é pessoa colectiva.
Logo a competência é atribuída ao Tribunal de Pequena Instância do Porto, , concretamente
ao 1º. Juízo, 1ª Secção.
DECISÃO:
Nestes termos se decide revogar o despacho em causa, prosseguindo os autos os legais
termos no 1º. Juízo do Tribunal de Pequena Instância do Porto.
Sem Custas.
Porto, 31 de Janeiro de 2006
Cândido Pelágio Castro de Lemos
Alberto de Jesus Sobrinho
Mário de Sousa Cruz
Agravo nº 6934/05-2ª Sec.
Data – 07/02/2006
4668 (Boletim Interno nº 24)
CONTRATO DE TRABALHO
GERENTE
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário
A acção intentada pelo Gerente da sociedade contra esta pedindo indemnização por incumprimento do
contrato ou por despedimento, é da competência do tribunal comum e não do Tribunal do Trabalho.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO
B.......... intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia, a presente acção
com processo sumário contra:
- C.........., Lda, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de Euros 4.191,16,
acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efectivo pagamento.
Alegou, para tanto, em resumo, que, em 4 de Setembro de 2003, foi nomeado gerente da
sociedade Ré, funções que exerceu até ao dia 28 de Fevereiro de 2004, data em que
renunciou a tal cargo; foi convencionado que a Ré pagaria ao Autor, como contraprestação
pelo exercício das suas funções, o montante de Euros 620,00 mensais; sucede que a Ré
jamais pagou ao Autor a contraprestação acordada; interpelada a Ré, por várias formas,
para pagar os montantes em dívida, a mesma vem protelando tal pagamento.
Regularmente citada, a Ré não contestou.
Verteu-se, seguidamente, nos autos despacho que declarou o Tribunal Judicial da Comarca
de Vila Nova de Gaia incompetente, em razão da matéria, para conhecer da questão dos
autos e, consequentemente, absolveu a Ré da instância.
Inconformado com o assim decidido, interpôs o Autor recurso para este Tribunal, o qual foi
admitido como de agravo, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Alegou, oportunamente, o agravante, o qual finalizou a sua alegação com inúmeras e
prolixas conclusões, nas quais defende a competência material do Tribunal “a quo” para os
termos da presente acção.
Não foi apresentada contra-alegação.
O M.º Juiz do Tribunal “a quo” sustentou o despacho recorrido, mantendo-o integralmente.
...............
As conclusões dos recorrentes delimitam o âmbito do recurso, conforme se extrai do disposto
nos artºs 684º, n.º 3, e 690º, n.º 1, do C. de Proc. Civil.
De acordo com as apresentadas conclusões, a questão a decidir por este Tribunal é apenas a
de saber se o Tribunal “a quo” é competente em razão da matéria para conhecer dos
presentes autos.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
...............
OS FACTOS E O DIREITO
Os factos a ter em consideração para a decisão do agravo são apenas os que emergem do
relatório supra, para os quais se remete.
O despacho recorrido defendeu que a competência material para os termos da presente
demanda pertence aos tribunais do trabalho. Para tanto, louvou-se no seguinte raciocínio:
“Na presente acção, o Autor alega que a Ré não efectuou o pagamento dos créditos
remuneratórios e pede a condenação desta a pagar-lhe determinada quantia com
fundamento nesse incumprimento.
Assim, atenta a tutela jurisdicional pretendida pelo Autor é manifesta a incompetência deste
tribunal, em razão da matéria, sendo competente o tribunal do trabalho para dirimir o
litígio”.
Se bem entendemos o despacho recorrido, o mesmo fez assentar o seu juízo de
incompetência no simples facto de o Autor pretender da Ré, com a presente acção, o
pagamento de “créditos remuneratórios”, querendo certamente dizer, sem o afirmar,
todavia, que Autor e Ré, segundo o alegado, estavam vinculados por um contrato de
trabalho subordinado. Mas, salvo o divido respeito, não acompanhamos tal entendimento.
A competência do tribunal em razão da matéria fixa-se em face da natureza da relação
material em debate, segundo a versão apresentada pelo autor/requerente em juízo (v. Ac.
deste Relação de 5/1/93, B.M.J. n.º 423º, 593, e da R. de Coimbra de 16/2/77, C.J., 1977,
1º, 27).
De acordo com o disposto no artº 211º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, “os
tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição
em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas”.
“São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra
ordem jurisdicional” (artº 66º do C.P.C. e 18º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13/1, Lei de
Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais).
Resulta destes preceitos que os tribunais comuns gozam de uma competência genérica ou
residual, de modo que lhes cabe a competência sempre que ela não seja atribuída a outras
ordens jurídicas (v. Ac. do S.T.J. de 3/2/87, B.M.J. n.º 364º, 591, e doutrina aí citada).
Cabe, por isso, averiguar se a competência para os termos da presente acção cabe aos
tribunais do trabalho. Se não couber a estes, dúvidas não subsistem de que a mesma caberá
ao tribunal comum, no caso, o Tribunal “a quo”.
A competência material dos tribunais do trabalho mostra-se delimitada pelo artº 85º da
citada Lei nº 3/99. Nos termos das respectivas alíneas b) e f), únicas que aqui importa
considerar e que foram invocadas no despacho recorrido, compete aos tribunais do trabalho
conhecer, em matéria cível, “das questões emergentes de relações de trabalho subordinado
e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho”; e “das
questões emergentes de contratos equiparados por lei aos de trabalho”.
Afigura-se-nos por demais evidente que o contrato ajuizado não é equiparado por lei aos de
trabalho nem o despacho recorrido o afirma.
Os contratos equiparados aos de trabalho são aqueles que “tenham por objecto a prestação
de trabalho, sem subordinação jurídica, sempre que o trabalhador deva considerar-se na
dependência económica do beneficiário da actividade” (artº 13º do Código do Trabalho,
aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/8).
Como ensinava Monteiro Fernandes (Noções Fundamentais de Direito do Trabalho, vol. 1º,
4ª ed., 56), há relações de trabalho formalmente autónomo que, todavia, colocam o
trabalhador em posição de dependência (e de carência) materialmente próxima da que
caracteriza o assalariado típico. Já as aflorámos, de resto: trata-se daquelas em que o
trabalhador se mostra economicamente dependente do beneficiário do produto.
Estas situações (ou algumas delas) eram descritas no artº 2º do anterior regime jurídico do
contrato individual de trabalho (vulgarmente designado LCT), anexo ao Dec. Lei nº 49 408,
de 24/11/69:
a) A do «trabalho realizado no domicílio ou em estabelecimento do trabalhador»;
b) Aquela em que o trabalhador «compra as matérias primas e fornece por certo preço ao
vendedor delas o produto acabado».
Ora, o gerente de uma sociedade não tem afinidade alguma com estes contratos
equiparados por lei aos de trabalho.
Mas será de considerar tal contrato como um verdadeiro contrato de trabalho?
Segundo a definição da referida LCT (seu artº 1º), «contrato de trabalho é aquele pelo qual
uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual
a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta».
Este conceito veio a ser praticamente decalcado para o artº 10º do actual Código do
Trabalho, segundo o qual «contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga,
mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, sob a autoridade
e direcção destas».
A única diferença na redacção destes preceitos, despida de qualquer interesse prático, reside
na inserção da expressão «ou outras» naquele artº 10º.
Os elementos caracterizadores do contrato individual de trabalho, de acordo com aquela
definição legal, são dois: a retribuição e a subordinação jurídica.
Deixando de lado a retribuição, que não oferece dúvidas de maior e, de resto, é comum a
muitos contratos, fixemo-nos na subordinação jurídica.
Como refere Monteiro Fernandes (ob. cit., 43), a subordinação jurídica consiste numa relação
de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face
às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo
contrato e das normas que o regem.
A subordinação jurídica implica um dever de obediência para o trabalhador. O trabalhador
deve «obedecer à entidade patronal em tudo o que respeite à execução e disciplina do
trabalho, salvo na medida em que as ordens e instruções daquela se mostrarem contrárias
aos seus direitos e garantias» (ob. cit., 47).
Como escreveu também Abílio Neto (Direito do Trabalho, B.M.J. (Suplemento), 1979, 171), a
subordinação jurídica é de todo o ponto compatível com a autonomia técnica (caso dos
advogados, médicos, engenheiros, etc.), e nem sequer está indissoluvelmente ligada à
dependência económica, na medida em que esta pode existir sem aquela (v.g., trabalhador
autónomo que produz em exclusivo para uma dada organização empresarial) e vice-versa
(v.g., trabalhador subordinado para quem a retribuição não constitui o único, nem o principal
meio de subsistência).
Mas já não haverá subordinação jurídica se não houver um dever de obediência, rudimentar
que seja, e se o beneficiário do trabalho não gozar de um certo poder disciplinar, por mais
ténue que se apresente.
Como já dissemos, e é entendimento que se nos afigura unânime da jurisprudência, a
competência do tribunal em razão da matéria fixa-se em face da natureza da relação
material em debate, segundo a versão apresentada pelo autor/requerente em juízo.
Mas, perante o alegado na petição inicial, não se vislumbra no contrato celebrado entre
Autor e Ré o menor traço de subordinação jurídica.
O Autor foi nomeado gerente da sociedade Ré que, conforme emerge dos documentos
juntos, é uma sociedade por quotas. O Autor exerceu essas funções de gerente durante
determinado tempo, sendo certo que foi acordado que a Ré lhe pagaria determinado
montante, como contraprestação pelo exercício daquelas funções.
Deste modo, não podendo, perante o alegado na petição inicial, afirmar-se que o contrato
ajuizado é um verdadeiro contrato individual de trabalho, com as características supra
apontadas, nem tão pouco um contrato equiparado por lei aos de trabalho, não cabe aos
tribunais do trabalho, ao invés do afirmado no despacho recorrido, a competência para os
termos da presente acção. Essa competência cabe, por isso, aos tribunais comuns.
Procedem, assim, as conclusões da alegação do agravante, pelo que o despacho recorrido
tem de ser revogado, a fim de os autos prosseguirem no Tribunal “ a quo”.
...............
DECISÃO
Nos termos expostos, decide-se conceder provimento ao agravo e, em consequência,
revoga-se o despacho recorrido, o qual se substitui por outro que declara o Tribunal
recorrido competente em razão da matéria para os termos da presente acção.
Sem custas (artº 2º, nº 1, al. g), do C.C.J.).
Porto, 7 de Fevereiro de 2006
Emídio José da Costa
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso
Agravo nº 6713/05-5ª Sec.
Data – 13/02/2006
4669 (Boletim Interno nº 24)
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
Sumário
I- O Tribunal comum é incompetente, em razão da matéria, para apreciar um procedimento cautelar
inominado, em que um particular pede ao Tribunal que condene a “Ren-Rede Eléctrica Nacional, S.A.” –
concessionária do serviço público de energia eléctrica – a abster-se de entrar, aceder, transitar,
implantar ou construir ou fazer quaisquer obras nos seus prédios, seja a que título for, sem ter sido feita
a respectiva expropriação, ou acautelados os meios legais que permitam tais actos, sendo que a REN
pretendia, alegadamente, implantar uma linha de alta tensão eléctrica que atravessaria prédios da
requerente cautelar.
II– A providência requerida e os fundamentos invocados inserem-se no âmbito das reclamações
previstas no art. 4° do Dec. Lei n°181/70, de 28/4, que têm a ver, directamente, com a relação jurídicoadministrativa a constituir ou constituída, prévia ao estabelecimento do direito a indemnização, por
expropriação, ou constituição de servidão administrativa por utilidade pública.
III– Tal competência material radica na jurisdição administrativa.
Acordam neste Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório:
No ...º Juízo do Tribunal Judicial de Lamego, sob o nº ..../05.4TBLMG, foram instaurados uns
autos de procedimento cautelar não especificado, por B......., Ldª, contra C........., S.A., em
que se formula o seguinte pedido:
«Nos termos expostos deve deferir-se ao requerido e intimar-se a requerida a abster-se de
entrar, aceder, transitar, implantar ou construir ou fazer quaisquer obras nos prédios dos
autos, seja a que título for, sem ter sido feita a respectiva expropriação, ou acautelados os
meios legais que permitam tais actos».
Fundamenta tal pedido, alegando, em essência e síntese, que:
- A requerente é dona e possuidora de vários prédios mistos e rústicos, devidamente
identificados no artigo 1º do requerimento inicial;
- A requerida projectou e pretende levar a cabo a implantação de uma linha eléctrica de
muito alta tensão que atravessa estes prédios;
- Tal projecto inviabiliza a utilização, por parte da requerente, de tais prédios, quer para a
exploração agrícola com árvores de médio porte quer para a implantação de construções
urbanas;
- O empreendimento da requerida ocupa particularmente os terrenos denominados ‘D.......’,
mas com extensões e apoios previstos para os outros terrenos;
- Tal empreendimento irá inviabilizar a concretização de projecto imobiliário e turístico da
requerente, para aquela zona, que foi já objecto de parecer e decisão favorável das
entidades competentes e envolve investimentos muitíssimo elevados, com os inerentes e
previsíveis proveitos;
- O funcionamento da própria requerente ficará inviabilizado, na medida em que os terrenos
sobrantes, atravessados a meio pela referida linha, ficam directamente inutilizados e
fraccionados, tornando a exploração agrícola não rentável;
- A requerente tem ao seu serviço, directa e indirectamente, cerca de 40 trabalhadores, que
perante a inviabilidade do seu empreendimento vão ficar no desemprego;
- A requerida começou já a limpar e demarcar os terrenos para construção das sapatas para
implantação dos postos, em terrenos próximos, alguns dos quais com uma área de base de
15 metros por 15 metros;
- É possível o afastamento da linha para local onde caso menor dano.
Conclui pela procedência do requerido.
*
A requerida deduziu oposição em que, em essência e síntese, alega que:
- Vai construir a linha ‘Bodiosa-Valdigem’ a 400Kv, que passará sobre terrenos que admite
serem da requerente;
- Nessas propriedades será instalado um poste, com o nº 104 e que ocupará uma área de
36,82 m2, sendo que o comprimento total das linhas sobre a dita propriedade é de 662
metros;
- A constituição e construção das linhas está autorizada pelo Ministério da Economia e tem
parecer favorável do Instituto do Ambiente;
- As condições actuais da topografia do terreno conjugadas com a altura das árvores e com a
distância dos cabos ao solo, obrigam a que se estabeleça uma faixa de protecção, com o
consequente abate de árvores, numa área de 11.250 m2;
- Tendo em conta a topografia do terreno e o projecto licenciado, será possível construir até
uma altura máxima entre 12 e 24 metros, já considerando a distância de segurança de 6
metros;
- À data do licenciamento da linha, bem como na fase de consulta pública, que decorreu de 9
de Fevereiro a 2 de Abril de 2004, não constava na C.M. de Tarouca qualquer projecto de
licenciamento do projecto turístico invocado;
- A instalação da linha não interfere minimamente com a actividade agropecuária existente,
desde logo, porque, na zona de pasto, a altura das linhas é de 30 metros;
- Da instalação da linha não resultarão os riscos referidos pela requerente relativamente a
radiações e campos electromagnéticos, já que a sua construção respeitará os níveis de
segurança estabelecidos legalmente;
- A requerida apenas deu início aos trabalhos nos prédios em que houve já acordo com os
respectivos proprietários.
Conclui pela improcedência da providência requerida.
*
Produzida a prova oferecida, proferiu-se decisão quanto à matéria de facto alegada e, bem
assim, se apreciaram os pressupostos processuais, em função do que se proferiu a seguinte
decisão:
«... Atento todo o acima exposto, e ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 101º,
102º, nº 1, 288º, nº 1, al. e), 493º, nº 1 e 2, 494º, alínea a), todos do Código de Processo
Civil, e 4º, alíneas a), d) e f) do ETAF, declaro o presente tribunal incompetente em razão da
matéria, e, em consequência, absolvo a requerida da instância. ...».
*
Não se conformando com tal decisão, dela a requerente interpôs recurso de agravo e, tendo
alegado, formulou as seguintes conclusões:
1ª - Salvo o devido respeito existe, na decisão recorrida, quanto à matéria de direito,
interpretação errónea dos arts. 4º, nº 1 al. a) e d) do ETAF e 66º do CPC e arts. 1º e 4º do
Dec. Lei nº 181/70 e art. 54º, nº 1 e 2 do C.Exp. e quanto à matéria de facto, erro notório
na apreciação da prova, designadamente da prova documental constante dos autos e
mormente da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento.
2ª - No que respeita à matéria de direito, andou mal o Mmº Juiz a quo, na medida em que o
proprietário que queira discutir a atribuição de indemnização decorrente do sacrifício que lhe
é imposto pela ocupação do seu prédio pelo estabelecimento de linhas de muito alta tensão,
deve fazê-lo nos tribunais comuns, nos termos do art. 66º do CPC.
3ª - O pedido de intimação da requerida para se abster de ocupar os prédios da requerente,
nos presentes autos, insere-se no âmbito de um processo indemnizatório e tem por
fundamento a existência de ilegalidade praticada pela requerida.
4ª - De todo o modo, sempre o TAF seria materialmente incompetente para conhecer de
uma providência cautelar intentada pelo proprietário de um prédio em que seja pedido que a
REN seja intimada a abster-se de ocupar, sem que esta tenha dado cumprimento ao disposto
nos arts. 1º e 4º do Dec. Lei nº 181/70.
5ª - A servidão administrativa não pode ser imposta quando falta o requisito da audiência do
interessado para apresentar a reclamação, designadamente por excessiva amplitude ou
onerosidade.
6ª - O conhecimento das irregularidades, praticadas no processo administrativo, está
cometido ao juiz de direito da comarca da situação dos bens, por analogia com o disposto no
art. 54º nº 1 e 2 do C.Exp..
7ª - No que concerne à fixação da matéria de facto não provada, entende a recorrente terem
sido mal julgados os factos incluídos nos arts. 1º, 8º, 9º, 11º, 13º, 14º, 17º, 18º e 22º, do
requerimento inicial.
8ª - Consequentemente deve alterar-se a resposta aos factos incluídos nos arts. 1º, 8º, 9º,
11º, 13º, 14º, 17º, 18º e 22º, do requerimento inicial, que deverão ser considerados
provados.
9ª - Assim, não se entendendo, na decisão de facto e de direito violou-se o estabelecido nas
citadas disposições legais referidas na conclusão 1ª.
*
A requerida apresentou contra-alegações em que, em essência e síntese, pugna pela
manutenção do decidido.
*
Mostram-se colhidos os vistos legais, cumprindo decidir.
Assim:
*
2. Conhecendo do recurso (agravo):
2.1 – Dos factos:
Com relevância para o conhecimento do recurso, tem-se que foram alegados os factos
constantes do requerimento inicial e da oposição deduzida, respectivamente, pela requerente
e requerida, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
2.2 – Dos fundamentos do recurso:
De acordo com as conclusões formuladas, as quais delimitam o objecto do recurso – cfr.
arts. 684º, nº 3 e 690º do CPCivil, temos que a questão a resolver é a de saber se a
competência, em razão da matéria, para conhecer da pretensão formulada pela requerente
cabe ao tribunal comum ou ao tribunal administrativo.
É certo que a agravante impugna, também, a decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância
quanto á matéria de facto, pretendendo ver a mesma alterada, designadamente no que se
refere aos factos incluídos nos artigos 1º, 8º, 9º, 11º, 13º, 14º, 17º, 18º e 22º (cfr.
conclusão 8ª das alegações de recurso).
Tal impugnação justificar-se-ia em função da decisão que, por mero acréscimo (como resulta
da decisão impugnada), foi proferida quanto ao mérito da providência e após o tribunal de 1ª
instância se ter considerado incompetente, em razão da matéria, para conhecer da
providência cautelar requerida.
Porém, sem questionar da bondade da intenção e da pretendida economia que lhe subjaz, a
decisão de mérito proferida apenas servirá como argumento para o convencimento das
partes e por excesso, que já não como uma verdadeira decisão de mérito, porquanto, tendo
o tribunal recorrido se considerado incompetente para conhecer em razão da matéria,
vedado lhe estava a prolação de uma decisão com tal objecto – mérito da providência
requerida – cfr. arts. 101º, 105º, nº 1, 493º, nº 2 e 494º, al. a) do CPCivil.
Posto isto, analisemos, então, a única questão que, face à decisão proferida e impugnada,
podia ter sido suscitada – incompetência em razão da matéria, e, consequentemente, pode
ser conhecida.
Entendeu-se, na decisão sob recurso, que o tribunal comum, face à relação material tal como
emerge dos articulados apresentados pelas partes, era incompetente, em razão da matéria,
para conhecer da providência requerida, sendo que, para tanto, o era o tribunal
administrativo.
Será que assim é? Vejamos.
Como resulta do requerimento inicial apresentado, a requerente pretende que a requerida
seja intimada «...a abster-se de entrar, aceder, transitar, implantar ou construir ou fazer
quaisquer obras nos prédios dos autos, seja a que título for, sem ter sido feita a respectiva
expropriação, ou acautelados os meios legais que permitam tais actos», tendo, para tanto,
alegado que é dono e legítima possuidora de vários prédios, pretendendo a requerida, que já
projectou, levar a cabo a implantação de uma linha eléctrica de muito alta tensão que
atravessa tais prédios, o que inviabilizará a utilização, por parte da requerente, dos mesmos,
quer para a exploração agrícola quer para a implantação de construções urbanas, na medida
em que, por virtude da condução de electricidade a muito alta tensão, a existência destas
linhas cria campos eléctricos de baixa frequência que penetram no corpo humano ou animal,
facto que é preocupante para as populações sujeitas a tais efeitos
Mais invoca que a implantação daquela linha de transporte de electricidade, tal como está
projectada, ocupará particularmente os terrenos denominados ‘Monte do Ladário’, mas com
extensões e apoios previstos para os outros terrenos, e irá inviabilizar a realização do
projecto imobiliário e turístico da requerente para aquela zona, que já obteve parecer prévio
favorável da Câmara Municipal de Tarouca e envolve investimentos muitíssimo elevados,
com os inerentes e previsíveis proveitos, e, bem assim, inviabilizará o funcionamento da
própria requerente, tornando a exploração não rentável, sendo que esta tem ao seu serviço,
directa e indirectamente, cerca de 40 trabalhadores que vão ficar no desemprego.
Invoca, por fim, que a requerida já começou, em terrenos próximos, a proceder à limpeza
dos terrenos para construção das sapatas para implantação dos postes, sendo que costuma
entrar nos prédios de forma abusiva, isto é, sem consulta ou negociação prévia com os
donos dos terrenos que atravessa, quando é certo que a requerente não dará autorização a
não ser que seja expropriada a totalidade dos referidos prédios e não apenas a zona onde
passa a linha, para além de que, no seu entender, se impunha o afastamento da linha para
local onde cause menor dano.
Da factualidade acabada de referir, haver-se-á de concluir que a providência requerida –
intimação da requerida para que se abstenha de entrar, aceder, transitar, implantar ou fazer
quaisquer obras nos prédios dos autos, seja a que título for – visa obstar a que pela
requerida seja praticado qualquer acto jurídico-material que se insira na constituição de
servidão administrativa (ou qualquer outro direito ou ónus) sobre os prédios da requerente,
com fundamento em ilegalidade (ou inexistência) do acto administrativo que o consentiria,
pois não foi consultada e/ou ouvida (cfr. artigos 22º, 23º e 29º do requerimento inicial), e,
bem assim, por excessiva onerosidade que dela resultaria para a requerente (cfr. artigos 4º
a 16º do requerimento inicial).
A requerida é concessionária do serviço público de transporte de energia eléctrica,
porquanto, como resulta do disposto no art. 16º, nº 2 do Dec. Lei nº 185/95, de 27/7
(diploma este alterado pelo art. 4º do Dec. Lei nº 56/97, de 14/3), a concessão «…é exercida
em regime de serviço público, sendo as suas actividades consideradas, para todos os efeitos
de utilidade pública» - cfr., ainda, art. 3º daquele diploma legal e Base IV das ‘Bases da
concessão da Rede Nacional de Transporte de Energia Eléctrica’, publicadas em anexo ao
mesmo.
Sucede que, nos termos do disposto no art. 51º do Dec. Lei nº 43335, de 19.11.1960, a
declaração de utilidade pública confere ao concessionário, entre outros, o direito de
«atravessar prédios particulares com canais, condutas, caminhos de circulação necessários à
exploração, condutores subterrâneos e linhas aéreas, e montar nesses prédios os
necessários apoios», sem embargo de esse direito, como se dispõe no § 1º do mesmo
normativo, só poder ser exercido «…quando o concessionário tiver obtido a necessária
licença de estabelecimento da instalação respectiva e sempre com as restrições impostas
pelos regulamentos de segurança e pelo Regulamento de Licenças para Instalações
Eléctricas, aprovado pelo Dec. Lei nº 26852, de 30.7.1936» (cfr., ainda, Bases XII e XIII das
‘Bases da concessão da Rede nacional de Transporte de Energia Eléctrica’).
Por sua vez, no art. 1º, nº 1 do Dec. Lei nº 181/70, de 28.4.1970, dispõe-se que «Sempre
que a constituição de uma servidão administrativa exija a prática de um acto da
Administração, deverá este ser precedido de aviso público e ser facultada a audiência aos
interessados», designadamente para que estes possam apresentar as suas reclamações que,
nos termos do disposto no art. 4º do mesmo diploma legal, podem ter por objecto «… a
ilegalidade ou inutilidade da constituição ou alteração da servidão ou a sua excessiva
amplitude ou onerosidade».
Do regime jurídico-legal exposto, resulta que a actividade da requerida, no que concerne
designadamente à instalação de linhas para transporte de energia eléctrica, se deve ter por
inserida numa actividade de cariz ou natureza administrativa, precedida de acto
administrativo de atribuição de licença, relativamente ao que se impõe a audição dos
interessados, designadamente, os que possam ser afectados nos seus direitos pela
implantação dos projectos de instalação de linhas eléctricas para transporte de energia
eléctrica.
Ora, a providência requerida e os fundamentos invocados inserem-se abertamente no âmbito
das reclamações previstas no art. 4º do Dec. Lei nº 181/70, de 28/4, as quais têm a ver
directamente com a relação jurídico-administrativa a constituir ou constituída, prévia ao
estabelecimento do direito a indemnização por expropriação ou constituição de servidão
administrativa por utilidade pública.
Daí que se não possa, como pretende a recorrente, defender a aplicação do disposto no art.
54º, nº 1 do CE99 (Lei nº 168/99, de 18/9), porquanto a reclamação aí prevista tem a ver
com as irregularidades cometidas na primeira fase do processo expropriativo, de cariz
administrativo e natureza procedimental, com vista à constituição e realização da arbitragem
para fixação da indemnização devida pela expropriação ou constituição de servidão
administrativa, sendo-lhe prévia a declaração de utilidade pública a ser concretizada por acto
administrativo, cujos vícios devem ser suscitados na jurisdição administrativa, com a
excepção da sua caducidade que pode ser requerida perante o tribunal competente para
conhecer do recurso da decisão arbitral (portanto, o tribunal comum) – cfr. art 13º, nº 4 do
CE99.
Assim, os vícios do acto administrativo a concretizar, como pressuposto da actividade de
utilidade pública a realizar pela requerida, resultantes dos fundamentos de facto invocados
pela requerente (inexistência, falta de audição do interessado, excessiva amplitude e/ou
onerosidade), tendo a ver com a relação administrativa propriamente dita, são de
conhecimento da jurisdição administrativa que não do tribunal comum; efectivamente, como
refere Jonatas E. M. Machado [‘In’ Breves Considerações em torno do âmbito da justiça
administrativa. Reforma da Justiça Administrativa, Boletim da Faculdade de Direito /
Universidade de Coimbra, Studia Juridica 86, Colloquia 15, 2005, pág. 93;]
«A doutrina entende que devem ser consideradas relações jurídicas administrativas as
relações interpessoais e interadministrativas em que de um dos lados da relação se encontre
uma entidade pública, ou uma entidade privada dotada de prerrogativas de autoridade
pública, tendo como objecto a prossecução do interesse público, de acordo com as normas
de direito administrativo. ...».
Assim, a competência em razão da matéria, no caso ‘sub judice’, cabe aos tribunais
administrativos por força do disposto no artº 4º , nº 1, al. d) do ETAF, aprovado pela Lei nº
13/2002, de 19/2, rectificada pela Declaração de Rectificação nº 14/2002, de 20/3 e alterada
pela Lei nº 4-A/2003, de 19/2 e Lei nº 107-D/2003, de 31/12 – (cfr., ainda e por mero
acréscimo, os arts. 37º, nº 2 , als. c) e d), e 112º, nº 2, al. f) do CPTA); a propósito do art.
4º, nº 1, al. d) do ETAF, com relevância para a questão que nos ocupa, afirma Jonatas E. M.
Machado [Ob. cit., pág. 107;] que «Nos termos do artigo 4º/1/b)/c)/d) do ETAF, a justiça
administrativa compreende um controlo de legalidade por acção, ou seja, da dimensão
negativa da legalidade. Em causa está a garantia da prevalência da lei, da coerência interna
do ordenamento jurídico e das posições jurídicas legalmente tuteladas dos particulares. ...
Este controlo começa por abranger, em primeiro lugar, as normas e demais actos jurídicos
emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito
administrativo, bem como por sujeitos privados, designadamente concessionários, no
exercício de poderes administrativos. ...».
Porém, mesmo a considerar-se que a actuação da requerida se insere no domínio da mera
responsabilidade civil extracontratual, por ameaça ou concretização de violação do direito de
propriedade privada (da requerente), sempre a competência seria dos tribunais
administrativos, por força do disposto no art. 4º, nº 1, als. a) e i) do ETAF, conjugado esta
última alínea com o disposto nos arts. 3º e 16º, nº 2 do Dec. Lei nº 185/95, de 2/7 e 51º do
Dec. Lei nº 43335, de 19.11.1960, na medida em que nenhum particular pode ser afectado,
com limitação ou oneração, no seu direito de propriedade por actuação da administração ou
sujeitos privados, cuja actuação geradora de responsabilidade se insira no exercício de
actividade administrativa atribuída, sem que seja precedida da observância do respectivo
procedimento administrativo, por forma a garantir a legalidade daquela, ouvindo-se, no
mínimo, os interessados e permitindo que, por estes, seja deduzida a defesa consentânea e
oportuna dos seus direitos legalmente (até com garantia constitucional) acautelados.
No que se refere à competência dos tribunais administrativos para conhecer da
responsabilidade civil extracontratual enunciada na al. i) do art. 4º do ETAF, afirma J. C.
Vieira de Andrade [A Justiça Administrativa (Lições), 7ª ed., pág. 125] que «... a alínea i)
limita o conhecimento pelos tribunais administrativos da acção de responsabilidade de
sujeitos privados – entre os quais parecem estar incluídos os entes privados de acção
pública’ (os ‘falsos privados’) e os privados que exerçam poderes públicos, designadamente
os concessionários – em função da aplicabilidade do regime substantivo respectivo de
responsabilidade de direito público. ...» [Cfr., no mesmo sentido, Diogo Freitas do Amaral e
Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do contencioso administrativo, 3ª ed.
revista e actualizada, págs. 34 a 39], deixando, em nota, referido expressamente que
«...talvez se deva presumir a aplicabilidade do regime substantivo de direito público pelo
menos relativamente à responsabilidade pelo exercício de poderes públicos por
concessionários ...» [Ob. cit., nota 189, pág. 125].
A tudo quanto se deixa exposto é irrelevante a manutenção da competência do tribunal
comum para o conhecimento do processo de expropriação e irregularidades ou vícios
ocorridos na sua primeira fase - constituição, funcionamento e realização da arbitragem -,
ainda que de carácter administrativo e natureza procedimental mas posterior à declaração de
utilidade pública, e, bem assim, da caducidade da declaração de utilidade pública, por
atribuição específica da lei – cfr. Lei nº 168/99, de 18/9, tanto mais que esta se insere num
momento posterior à concretização do acto administrativo de que resulta a afectação do bem
ao prosseguimento de fim de interesse público e tem a ver, essencialmente, com a fixação
da indemnização devida em consequência daquela.
Assim, a decisão recorrida não merece reparo, impondo-se a improcedência do recurso
interposto pela requerente.
*
3. Decisão:
Nos termos supra expostos, acorda-se em:
a) - negar provimento ao agravo, mantendo-se a decisão recorrida;
b) - condenar a agravantes nas custas do recurso.
*
Porto, 13 de Fevereiro de 2006
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale
António Manuel Martins Lopes
Agravo nº 376/06-3ª Sec.
Data – 16/02/2006
4670 (Boletim Interno nº 24)
COMPETÊNCIA
JULGADOS DE PAZ
Sumário
Inclui-se na competência material dos julgados de paz as acções que respeitem à responsabilidade
contratual e extracontratual, mas que não tenham por objecto prestação pecuniária de que seja credora
pessoa colectiva.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO.
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Moimenta da Beira, “B......, S.A.” instaurou, em 2 de
Maio de 2005, a presente acção declarativa com forma de processo sumaríssimo, contra
C.........., pedindo a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de 1.514,05 Euros, acrescida de
juros de mora à taxa aplicável aos créditos das empresas comerciais, desde a interpelação
até integral pagamento, computando os vencidos em 32,52 Euros.
Alega para tanto, em síntese, que no exercício da sua actividade seguradora, celebrou com o
R. um contrato de seguro do ramo automóvel, através do qual assumiu a responsabilidade
civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ..-..-DQ, veículo esse que interveio
num acidente de viação, que descreve, e cuja culpa imputa ao R. e em consequência do qual
teve de indemnizar o outro veículo interveniente no acidente, R. que conduzia o DQ com
uma taxa de alcoolémia de 0,62 g/litro, pelo que lhe assiste direito de regresso pelo
montante que pagou.
2. Contestou o R. impugnando os factos articulados pela A., designadamente no que se
refere à culpa que ela lhe atribui na produção do acidente e à existência de nexo de
causalidade entre a taxa de alcoolémia e o acidente, concluindo pela sua absolvição do
pedido.
3. Conclusos os autos, foi proferido despacho que, declarando incompetente em razão da
matéria o Tribunal de Moimenta da Beira para apreciar o litígio, por considerar
exclusivamente competente o julgado de paz que abrange o concelho, absolveu o R. da
instância.
4. Inconformada, agravou a A. tendo, nas pertinentes alegações, formulado as seguintes
conclusões:
a): A ora Recorrente interpôs no Tribunal Judicial de Moimenta da Beira uma acção
declarativa de condenação, sob a forma sumaríssima, contra o Réu C....., visando a
condenação deste no pagamento dos montantes despendidos para a regularização de um
sinistro ocorrido na Estrada Municipal, nº 514, em Pêra Velha, concelho e comarca de
Moimenta da Beira, no dia 12 de Maio de 2004.
b): Os factos que fundamentam o pedido da Recorrente têm por base um acidente de viação,
no qual o ora Recorrido foi o único responsável e causador, em virtude de na altura do
acidente conduzir sob o efeito de álcool, em clara violação dos ditames preceituados no
Código da Estrada.
c): O pedido formulado pela Recorrente, fundamenta-se no direito de exigir o reembolso das
quantias despendidas, nos termos da al. d) do artº 19º do Decreto Lei nº 522/85, de 31 de
Dezembro, e da al. d) do artº 25º da Apólice Uniforme de Seguro Automóvel.
d): Proferida decisão pelo Tribunal a quo, veio o mesmo considerar-se incompetente para
julgar o litígio, considerando, para o efeito, que em virtude do concelho de Moimenta da
Beira estar abrangido pela jurisdição de um Julgado de Paz, seria esta jurisdição – e não a
jurisdição comum – exclusivamente competente para decidir do mesmo.
e): Entendeu o Mmº Juiz do Tribunal a quo, na sentença que ora se recorre, existir uma
competência exclusiva por parte dos Julgados de Paz, para conhecer e decidir dos litígios que
se insiram nos parâmetros da Lei 78/2001, de 13 de Julho.
f): Ora, estabelece o diploma supra citado, nos seus artºs 6º, nº 1, 8º e 9º, que os Julgados
de Paz têm competência exclusiva no âmbito do processo declarativo, sendo-lhes vedado o
procedimento executivo.
g): Mas tal não significa que a competência para conhecer de acções declarativas exclua a
competência dos Tribunais Judiciais.
h): Por sua vez, o artº 8º da Lei 78/2001 de 13 de Julho, esclarece que os Julgados de Paz
só podem conhecer de causas de valor igual ou inferior a metade da alçada do Tribunal de 1ª
instância, não lhes atribuindo qualquer competência exclusiva.
i): O artº 9º do referido diploma legal, sob a epígrafe “em razão da matéria”, não pretende
referir que, nos casos especificados nas suas alíneas, apenas e só os Julgados de Paz sejam
competentes para conhecer e decidir, mas antes que estes podem, no caso de opção das
partes, conhecer e decidir sobre as matérias aí descriminadas, apenas e só quanto a estas.
j): Trata-se de um preceito limitativo da competência em razão da matéria e não atributivo
de competência exclusiva dos Julgados de Paz.
k): Acresce ainda que, do artº 12º, nº 2, da Lei 78/2001 de 13 de Julho, não se pode,
igualmente, concluir que, em relação às acções destinadas a efectivar responsabilidade civil
contratual ou extracontratual, seja exclusivamente competente o julgado de paz do lugar
onde ocorreu o acto.
l): Com efeito, da supra mencionada disposição legal apenas se pode inferir que, caso se
tenha optado, nas situações acima mencionadas, por intentar a acção num Julgado de Paz,
será competente o do lugar onde ocorreu o acto e não que esta jurisdição seja
exclusivamente competente para dirimir tal litígio.
m): Quanto ao conhecimento da incompetência dos julgados de paz esta é de conhecimento
oficioso podendo ser suscitada por qualquer das partes, tal como resulta da leitura e
conjugação dos artºs 7º e 41º da Lei 78/2001 de 13 de Julho, sendo que estes artigos em
nada se referem à existência de uma competência exclusiva por parte destes tal como refere
a douta decisão proferida pelo tribunal a quo.
n): Os julgados de paz foram criados sob a égide dos princípios da simplicidade, adequação,
informalidade, oralidade, celeridade e absoluta economia processual, consubstanciando para
o cidadão um meio alternativo à via judicial para a resolução dos pequenos diferendos da
vida quotidiana, não tendo qualquer objectivo de retirar competências aos Tribunais
Judiciais.
o): O espírito do diploma que instaurou os Julgados de Paz, a Lei 78/2001, é no sentido de
criar uma justiça alternativa e complementar e não exclusiva e obrigatória.
p): Desta forma, em nada é ferido o artº 211º da Constituição da República Portuguesa,
quando se intenta uma acção no competente Tribunal Judicial, quando a mesma área de
jurisdição esteja abrangida também pela jurisdição de um Julgado de Paz, devido à natureza
alternativa e complementar dos mesmos.
q): Não pode, assim, a Recorrente concordar com a argumentação plasmada na sentença
ora recorrida.
r): Nestes termos, só pode a Recorrente concluir pugnando pela procedência do recurso de
agravo cuja subida ora se motiva e, consequentemente, pela necessária revogação da
decisão que ora se recorre, sendo ordenada a admissão da acção declarativa sumaríssima de
condenação, considerando-se consequentemente o Tribunal a quo como competente para
julgar o litígio dos autos.
5. Não foram oferecidas contra-alegações e foi proferido despacho de sustentação.
6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO.
1. Os factos a considerar provados, com relevância para a decisão, são os que constam do
presente relatório.
2. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do
recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser
que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil), que
neles se apreciam questões, e não razões, e que não visam criar decisões sobre matéria
nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, as questões suscitadas
no presente agravo são as de saber se os Julgados de Paz são exclusivamente competentes
em razão da matéria para conhecer das acções a que a lei lhe atribui competência e se a
presente acção se integra nessa competência exclusiva.
A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles
se fracciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos
tribunais, cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, págs. 88 e
89.
Desta definição, podemos passar para uma classificação de competência, a qual em sentido
abstracto ou quantitativo, será a medida da sua jurisdição, ou seja a fracção do poder
jurisdicional que lhe é atribuída, ou, a determinação das causas que lhe cabem; em sentido
concreto ou qualitativo, será a susceptibilidade de exercício pelo tribunal da sua jurisdição
para a apreciação de uma certa causa, cfr. Manuel de Andrade, ibidem, e Miguel Teixeira de
Sousa, A Competência e Incompetência dos Tribunais Comuns, pág. 7.
Assim, a incompetência será a «insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada
causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe
concederem a medida da jurisdição suficiente para essa apreciação. Infere-se da lei a
existência de três tipos de incompetência jurisdicional: a incompetência absoluta, a
incompetência relativa e a preterição do tribunal arbitral.», cfr Miguel Teixeira de Sousa,
Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 128.
Entre a incompetência absoluta figura a incompetência em razão da matéria.
Dispõe o artº 66º do CPCivil (em consonância com o artigo 211º da CRP «Os tribunais
judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas
as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais»), cuja formulação é textualmente
reafirmada no nº 1 do artº 18º da Lei nº 3/99, de 13/01 (Lei de Organização e
Funcionamento dos Tribunais Judiciais – LOFTJ), que «São da competência dos tribunais
judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».
Por sua vez, estipula o artigo 67º do mesmo diploma legal que «As leis de organização
judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos
tribunais judiciais dotados de competência especializada».
Nos termos do artº 6º, nº 1 da Lei 78/2001, de 13 de Julho (Lei de Organização e
Funcionamento dos Julgados de Paz), «A competência dos julgados de paz é exclusiva a
acções declarativas», acrescentando o artº 8º que eles têm competência para questões cujo
valor não exceda a alçada do tribunal de 1ª instância, alçada essa que é actualmente – artº
24º, nº 1, da LOFTJ – de 3.740,98 Euros.
A competência em razão da matéria dos julgados de paz é fixada no artº 9º da citada Lei
78/2001.
Tendo o DL nº 9/2004, de 9 de Janeiro, criado o Julgado de Paz dos Concelhos de Tarouca,
Armamar, Castro Daire, Lamego, Moimenta da Beira e Resende, com circunscrição territorial
em todas as freguesias desses concelhos – artºs 1º, al. f), e 2º, nº 6 -, o qual foi declarado
instalado a 8 de Março de 2004 – artº 1º da Portaria nº 192/2004, de 28 de Fevereiro -, a
primeira questão que se coloca é a de saber se a competência dos julgados de paz é
exclusiva, ou seja, se, sendo a causa da competência dos julgados de paz, tem a acção de aí
ser proposta obrigatoriamente ou se o demandante tem a faculdade de optar entre o julgado
de paz e o tribunal judicial.
A doutrina tem vindo a pronunciar-se no sentido da competência exclusiva dos julgados de
paz.
Assim, Cardona Ferreira (como se escreve no Ac. deste Tribunal de 21/02/2005, Proc.
0457289, www.dgsi.pt., reconhecidamente o criador destes tribunais), Justiça de Paz,
Julgados de Paz, 2005, pág. 57 e segs., refere que, antes de mais há que atender à ratio
legis: se os julgados de paz tendem a servir a cidadania, um dos modos de o conseguir está
em criar alívio da excessiva sobrecarga dos tribunais judiciais. E, neste particular, para além
da necessária implementação e divulgação dos julgados de paz, bem como das dimensões de
competência, é elemento importante a diferenciação de áreas de intervenção e não
concorrência, onde houver julgados de paz.
O artº 9º, ao prescrever, à luz da referida ratio legis, que os julgados de paz são
competentes, em razão da matéria, para apreciar e decidir as acções que identifica, inculca a
ideia de que aquela competência material é própria, e só própria, dos julgados de paz.
E o artº 67 é determinante neste contexto, ao estabelecer que as acções não correrão nos
julgados de paz, ainda que sejam próprias da competência material daqueles, desde que
tenham sido propostas antes da instalação dos julgados de paz que, potencialmente, seria
competente, o que significa, a contrario sensu, que, propostas depois da instalação do
julgado de paz competente, neste devem ser propostas para não haver remessas.
Por sua vez, as disposições dos artºs 41º e 59º, nº 3, que ordenam a remessa dos processos
dos julgados de paz para o foro judicial quando seja suscitado um incidente processual ou
tenha sido requerida prova pericial, revelam que a competência dos julgados de paz é
exclusiva no momento da instauração da acção e deixa de o ser quando ocorra uma daquelas
situações.
A acção tem de ser obrigatoriamente interposta nos julgados de paz, não tendo o
demandante o direito de escolher entre aqueles e os tribunais judiciais se, no momento da
interposição, for da competência material dos julgados de paz, nos termos do artº 9º, o seu
valor não exceder a alçada do tribunal de 1ª instância (artº 8º) e estiver instalado julgado de
paz territorialmente competente nos termos dos artºs 10º a 14º.
No mesmo sentido se pronuncia Joel Timóteo Ramos Pereira, Julgados de Paz – Organização,
Trâmites e Formulários”, 2ª ed., pág. 57, que advoga que a competência material fixada no
art. 9º é exclusiva aquando da instauração da acção, sendo obrigatória a interposição nos
julgados de paz, uma vez que a parte não tem a faculdade de escolher entre a instauração
no Julgado de Paz ou no Tribunal Judicial.
Mais acrescenta que, se porventura, uma acção descrita no artº 9º for instaurada no Tribunal
Judicial de Primeira Instância, ocorrerá violação dos artºs 211º da Constituição e 66º do
CPC.
Também João Miguel Galhardo Coelho, Julgados de Paz e Mediação de Conflitos, Âncora
Editora, pág. 27, considera que os Julgados de Paz são competentes para apreciar e decidir
as acções que tenham por objecto a responsabilidade civil contratual e extracontratual,
sendo que nas matérias que são da sua competência a jurisdição é exclusiva e, como tal,
obrigatória.
Finalmente, e ainda no sentido da exclusividade da competência material dos julgados de
paz para apreciar e decidir as acções declarativas para as quais a lei lhe atribui competência,
se tem pronunciado a jurisprudência – cfr. Acs. deste Tribunal de 8/11/2005, Proc. 0525540,
e do STJ de 4/03/2004 (embora de forma colateral), Proc. 03B3646, ambos em
www.dgsi.pt., e do STJ de 5/7/2005, Proc. 2024/05-6 (inédito).
A presente acção tem valor inferior à alçada dos tribunais de primeira instância e foi
instaurada depois da instalação do Julgado de Paz dos Concelhos de Tarouca, Armamar,
Castro Daire, Lamego, Moimenta da Beira e Resende, não obstando à competência desse
Julgado de Paz para conhecer do litígio em razão do objecto (artº 6º, nº 1), do valor (artº
8º) e do território (artº 12º), importando averiguar da sua competência em razão da
matéria.
Dispõe o artº 9º, nº 1, da citada Lei nº 78/2001, que os julgados de paz são competentes
para apreciar e decidir, entre outras, as:
“a) acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações, com excepção das que
tenham por objecto prestação pecuniária e de que seja ou tenha sido credor originário uma
pessoa colectiva;
…
h) acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual.”
Na presente acção, instaurada ao abrigo do disposto no artº 19º, al. c) do DL nº 522/85, de
31/12, e em que a demandante (seguradora) pretende exercer direito de regresso sobre o
demandado (seu segurado) pelo montante indemnizatório que pagou a terceiro em
consequência de acidente de viação em que ele interveio, conduzindo com uma taxa de
alcoolémia superior à legalmente admitida, estamos perante uma causa de pedir complexa
respeitante à responsabilidade civil contratual (contrato de seguro) e extracontratual (facto
ilícito), mas não deixa de ser também uma acção que respeita ao cumprimento de obrigação
pecuniária, que tem por objecto prestação pecuniária de que é credora pessoa colectiva.
Ou seja, enquanto a al. a) a exclui da competência dos julgados de paz, a al. h) integrá-la-ia
no âmbito dessa mesma competência.
Mas, como se entendeu no referido aresto do STJ de 5/7/2005, a al. h) deve ser interpretada
de forma a harmonizá-la com a exclusão constante da al. a), incluindo na competência
material dos julgados de paz as acções que respeitem à responsabilidade contratual e
extracontratual, mas que não tenham por objecto prestação pecuniária de que seja credora
pessoa colectiva, face ao princípio da unidade do sistema jurídico e à presunção de que o
legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em
termos adequados (artº 9º, nºs 1 e 3 do CC).
Este entendimento pode também ser extraído da afirmação de Cardona Ferreira, obra e lugar
citados, de que a al. a) não significa que as pessoas colectivas não possam ser partes nos
julgados de paz; não podem é “… entupi-los (…) com questões pecuniárias …” já que para
essas questões existem os tribunais judiciais.
Acrescenta o mesmo autor, pág. 32, que os julgados de paz visam servir o direito
fundamental à Justiça, face à diversidade e aos aumentos exponenciais de processos que
sobrecarregam o sistema judicial, já de si prejudicado pelo formalismo e pelo burocratismo
generalizado, inadequado à diversidade e à quantidade processuais.
Mas não de tal forma que, logo após a sua instalação, fiquem sobrecarregados e impedidos
de exercer as suas fundamentais funções de mediação e de conciliação.
Daí a razão de ser da exclusão da sua competência das acções para cobrança de créditos de
pessoas colectivas que, como se sabe, constituem uma das principais causas da sobrecarga
dos tribunais judiciais.
Por outro lado, julga-se que a razão da exclusão do tipo de acções em causa da competência
dos julgados de paz reside no facto de eles estarem vocacionados para permitir a
participação cívica dos cidadãos e para estimular a justa composição dos litígios por acordo
das partes, constituindo os julgados de paz um meio alternativo e um sistema extrajudicial
de aplicação da justiça, estando concebidos e orientados por princípios de simplicidade,
adequação, informalidade, oralidade e absoluta simplicidade processual (artº 2º, nº 2).
Merece, pois, provimento o agravo.
III. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do
Porto em julgar procedente o agravo, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se
competente para conhecer da acção o Tribunal da Comarca de Moimenta da Beira.
*
Sem custas.
*
Porto, 16 de Fevereiro de 2006
António do Amaral Ferreira
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Ana Paula Fonseca Lobo
Agravo nº 6933/05-5ª Sec.
Data – 20/02/2006
4671 (Boletim Interno nº 24)
INSOLVÊNCIA
PESSOA SINGULAR
COMPETÊNCIA MATERIAL
EMPRESA
Sumário
Tendo sido requerida a declaração de insolvência do requerido, enquanto pessoa singular, e nada
resultando dos autos acerca da identidade das partes, da pretensão formulada e dos fundamentos
invocados, que justifique a conclusão de que se está perante uma “massa insolvente (que) integre
empresa”, há que concluir que é o Tribunal Cível o competente, em razão da matéria, para conhecer do
processo de insolvência, e não o Tribunal de Comércio, que a vê excluída por força do disposto no art.
89º, nº1, al. a) da LOTJ, com a redacção introduzida pelo art. 8º do Dec. Lei nº53/2004, de 18 de
Março.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório:
No .º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ..../05.. TBVNG, O Ministério
Público requereu declaração de insolvência de B.........., para o que alegou, em essência e
síntese, o seguinte:
- O requerido é contribuinte fiscal nº ......... e encontra-se colectado para efeitos fiscais na
actividade de ‘Comércio por grosso de Sucatas e de Desperdícios Metálicos’, desde 3.2.1992;
- O requerido não se encontra inscrito como comerciante em nome individual;
- O requerido foi executado em vários processos de execução fiscal, pendentes no Serviço de
Finanças de Gaia ., referentes a dívidas fiscais de IRS, IVA e Coimas fiscais, no total de €
20.044.523,51;
- O requerido não aderiu a nenhum plano de regularização das dívidas fiscais;
- No âmbito das referidas execuções fiscais, foram as dívidas declaradas em falhas, por não
ter sido possível penhorar bens suficientes para garantir o pagamento das mesmas;
- Ao requerido não são conhecidos quaisquer bens móveis ou imóveis, nem qualquer
património ou rendimentos, que permitam satisfazer as dívidas já vencidas;
Conclui-se pela procedência da acção.
*
Na oposição apresentada, o requerido, além do mais, excepciona a incompetência, em razão
da matéria, do tribunal comum para conhecer da acção, alegando que:
- Se encontra inscrito junto da administração fiscal como empresário em nome individual
para exercício da actividade comercial de ‘comércio por grosso de sucatas e de desperdícios
metálicos, como resulta do documento nº 1 junto com o requerimento inicial;
- Subjacentes aos presentes autos estão, além do mais, indicados valores a título de IVA,
sendo que só são sujeitos passivos de IVA, para efeitos das liquidações propostas e descritas
pela requerente, precisamente os empresários em nome individual;
- Na declaração modelo 3, apresentada pelo requerido neste mesmo ano, para efeitos de IRS
do ano de 2004, identificou-se como empresário em nome individual, sujeito ao regime
simplificado de tributação;
Conclui, pela procedência da invocada excepção de incompetência.
*
Foi elaborado despacho em que se conheceu da invocada excepção de incompetência em
razão da matéria, no qual se proferiu a seguinte decisão:
«… Em conclusão: o requerido e a sua eventual massa insolvente abrange uma empresa, em
nome individual, de acordo com o critério amplo de definição de empresa acima mencionado
pelo que o presente tribunal não é competente materialmente para a sua tramitação.
Pelo exposto, julga-se o presente tribunal incompetente em razão da matéria – artigos 89º,
nº 1, al. a), da LOTJ e 5º do CIRE e, em consequência, absolve-se o requerido da instância.
…»
*
Não se conformando com o que, assim, veio a ser decidido, o Ministério Público interpôs
recurso e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:
1ª - Conforme dispõe o art. 89º, nº 1, alínea a) da Lei nº 3/99, de 13/01 (LOTJ) – na
redacção dada pelo artigo 8º do Decreto Lei nº 53/2004, de 18/3, que institui o CIRE – o
Tribunal de Comércio é competente para preparar e julgar o processo de insolvência se o
devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa;
2ª - Por seu turno o artigo 5º do CIRE, estabelece que se considera uma empresa «toda a
organização de capital e trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica»;
3ª - Para efeitos de determinar a competência do Tribunal de Comércio, isto é, para saber se
a amassa insolvente integra uma empresa, deverá o insolvente pessoa singular estar inscrito
e registado como comerciante na Conservatória do Registo Comercial;
4ª - Se o insolvente pessoa singular não está inscrito como comerciante, a competência
material para conhecer e julgar a acção está atribuída ao tribunal de competência genérica e
não ao Tribunal de Comércio;
Mesmo que assim não se entenda,
5ª - Não pode concluir-se que o insolvente é titular de uma empresa, apenas por que está
colectado pela Administração Fiscal, como exercendo o ‘Comércio por Grosso de Sucatas e
Met.’, sem estar inscrito como tal na Conservatória do Registo Comercial;
6ª - O insolvente não tem qualquer património conhecido, não tem qualquer organização de
capital e trabalho destinada ao exercício da actividade;
7ª - O requerido exerce em nome individual a actividade de comerciante de sucatas, sem
instalações próprias, sem pessoal, sem veículos e sem contas abertas em instituições
bancárias;
8ª - Não existe por isso, evidenciada nos autos qualquer ‘empresa’ de que o requerido seja
titular;
9ª - Consequentemente, a competência material deve ser atribuída aos Juízos Cíveis do
Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia e não Tribunal de Comércio.
*
O requerido apresentou contra-alegações em que, em essência e síntese, pugna pela
manutenção do decidido.
*
Mostram-se colhidos os vistos legais, cumprindo decidir.
Assim:
*
2. Conhecendo do recurso (agravo):
2.1 – Dos factos assentes:
Com relevância para o conhecimento do recurso, temos que as partes alegaram os factos
constantes do requerimento inicial e oposição, cujo teor se dá aqui por reproduzido e foi
sucintamente exposto, na parte pertinente à questão suscitada pelo recurso, no item
anterior.
2.2 – Dos fundamentos do recurso:
De acordo com as conclusões formuladas, as quais delimitam o objecto do recurso – cfr.
arts. 684º, nº 3 e 690º do CPCivil, temos que a questão é apenas uma, como seja, a de
saber se o tribunal competente para conhecer da acção (do pedido) é o tribunal comum
(cível) ou o tribunal de comércio.
Vejamos.
A questão suscitada, sem colocar em causa a competência dos tribunais judiciais, situa-se
abertamente no âmbito da competência dos tribunais judiciais, em razão da matéria, tendo
em conta a sua especialização, ou melhor, ela resume-se em saber se o tribunal de
comércio, enquanto tribunal de competência especializada (cfr. art. 78º, al. e) da Lei nº
3/99, de 13/1 (de ora em diante designada apenas por LOTJ) é o competente para conhecer
da presente acção.
A propósito da competência dos ‘tribunais de competência especializada’, dispõe-se no art.
67º do CPCivil que «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em
razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência
especializada», pelo que estes apenas serão competentes para conhecer das acções que
nesses diplomas se lhes mostrem atribuídas, sem o que serão do âmbito de outro tribunal,
se previsto expressamente, ou, residualmente, ao tribunal de competência genérica ou cível
– cfr arts. 77º, nº 1, al. a) e 94º da LOTJ.
Atentemos, então, no que na LOTJ se prevê quanto à competência dos tribunais de comércio
para conhecer das acções de insolvência.
Ora, dispõe-se no art. 89º, nº 1, al. a) da LOTJ, com a alteração introduzida pelo art. 8º do
Dec. Lei nº 53/2004, de 18/3, que os tribunais de comércio passaram a ser competentes tão
só para conhecer do processo de insolvência «… se o devedor for uma sociedade comercial
ou a massa insolvente integrar uma empresa».
Estamos, assim, face ao que anteriormente se dispunha em tal matéria, perante uma
redução da competência dos tribunais de comércio, quiçá tornando-a mais consentânea com
o objectivo específico da criação desta ordem de tribunais, a que corresponde, no dizer de
Catarina Serra [O Novo Regime Português da Insolvência (Uma Introdução), pág. 19], uma
«…especialização dos tribunais de acordo com a qualidade do devedor. Os tribunais de
comércio passam a ter uma competência circunscrita aos processos de insolvência em que o
devedor é uma sociedade comercial ou a massa insolvente integra uma empresa … e os
tribunais comuns ou de competência genérica ficam com a competência residual, ou seja,
para os restantes processos de insolvência. …» (sublinhado nosso)
Será que, face a tal dispositivo legal, é de integrar o conhecimento da presente acção na
competência, em razão da matéria, dos tribunais de comércio?
Antes de mais, convirá não perder de vista que, como ensinava Manuel A. Domingues de
Andrade [Noções Elementares de Processo Civil, pág. 91], «…A competência do tribunal … . É
ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do
Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais
deviam ser as partes e os termos da pretensão. Mesmo quando a lei, não se atendo pura e
simplesmente aos termos em que a acção está deduzida, requer a indagação de uma
circunstância extrínseca …, é através desses termos que há-de saber-se qual o ponto a
indagar».
Desde logo, sendo o requerido uma pessoa singular, sem esquecer a pretensão formulada e
os fundamentos invocados, fácil é de concluir que se impõe o afastamento da hipótese de o
tribunal de comércio poder ser competente para conhecer da presente acção de insolvência
com base em que se possa estar perante uma sociedade comercial.
Diga-se, aliás, que nenhuma das partes defende ou pretende que o requerido seja ou possa
ser tido como uma sociedade comercial e, bem assim, que por essa razão deva ser
considerada ou analisada a questão da competência, em razão da matéria, para conhecer da
presente acção – tribunal comum (cível) ou tribunal de comércio.
Resta, assim, verificar se a situação dos autos é compaginável com a segunda parte do
citado normativo (art. 89º, nº 1, al. a) da LOTJ), isto é, se a competência do ‘tribunal de
comércio’ pode ser fixada em função do que aí se dispõe - «a massa insolvente integrar uma
empresa».
Afigura-se-nos que à fixação de uma tal competência obsta, desde logo, a pretensão
formulada e a identidade do requerido e, bem assim, os fundamentos invocados.
Efectivamente, tal como resulta do requerimento inicial, o requerente pretende a declaração
de insolvência de uma pessoa singular e com fundamento em dívidas cuja responsabilidade
cabe, substancialmente e na maior parte, ao requerido enquanto pessoa singular – v.g.
imposto referente a IRS e no valor de € 10.810.562,07 (num valor global de dívidas de €
20.044.523,01) –, porquanto se trata abertamente de um imposto sobre o rendimento de
pessoas singulares – cfr. art. 1º do CIRS, ainda que possa ser tido como proveniente de
actividades empresariais, mas sempre não podendo ser imputável num património autónomo
e distinto do devedor (pessoa singular) identificado.
Acresce que os restantes montantes em dívida, invocados pelo requerente como
justificadores da pedida declaração de insolvência, por IVA e de coimas aplicadas não
constituem dívidas que apenas por empresas (ou patrimónios autónomos) possam ser
contraídas, portanto, de que apenas estas possam ser sujeito passivo; efectivamente, desde
logo e no que concerne ao IVA, incidindo sobre operações que envolvam uma actividade
comercial e/ou industrial, não é susceptível de apenas pelas empresas ou patrimónios
autónomos ser devido, pois tais operações, sujeitas a tributação por IVA, podem ser
realizadas por pessoas singulares e, consequentemente, estas se encontrarem obrigadas ao
seu pagamento – vg. arts. 1º a 7º do CIVA.
Tal raciocínio é de manter no que concerne a dívidas por aplicação de coimas, isto é, delas
podem ser sujeitos passivos as pessoas singulares, para além de outros, incluindo,
obviamente, as empresas.
Assim, da identidade do requerido, da pretensão formulada e, bem assim, dos fundamentos
invocados, outra conclusão não é possível extrair que não seja a de que estamos perante um
pedido de declaração de insolvência de uma pessoa singular, pelo que, sem embargo de a
competência do tribunal de comércio abranger o processo de insolvência quando a massa
insolvente integre uma empresa, nela se não poderá incluir, por excluída, competência para
conhecer de processo de insolvência de pessoa singular.
Pretende, todavia, o requerido que se encontra inscrito na Administração Fiscal como
empresário em nome individual, e, considerando que apenas os empresários em nome
individual serão sujeitos passivos de IVA, para efeito das liquidações propostas e descritas
pela requerente, deve considerar-se verificada a hipótese prevista na segunda parte da al. a)
do nº 1 da LOTJ, isto é, que estamos perante uma massa insolvente que integrará uma
empresa, cabendo aos tribunais de comércio a competência para conhecer do respectivo
processo de insolvência.
Apesar de, face ao já exposto, se nos afigurar como insustentável a pretensão do requerido,
não deixaremos de nos pronunciar, ainda que por mero acréscimo e sucintamente, sobre as
razões aduzidas pelo requerido, designadamente, saber se a situação dos autos é susceptível
de configurar uma ‘massa insolvente (que) integre uma empresa’.
Não há dúvida que, de acordo com o disposto no art. 5º do CIRE, considera-se empresa «…
toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade
económica», noção esta muito próxima da referida por J. M. Coutinho de Abreu [Curso de
Direito Comercial, vol. I, 3ª ed., pág. 234], que considera que «… a empresa ou
estabelecimento comercial (em sentido objectivo) é uma unidade jurídica fundada em
organização de meios que constitui um instrumento de exercício relativamente estável e
autónomo de uma actividade comercial».
Temos, assim, que à noção de empresa, consagrada no mencionado normativo legal, subjaz
a existência de uma organização de meios (de capital e de trabalho), em suma, um
património autónomo visando a prossecução de uma actividade económica (comercial ou
industrial), isto é, um património autónomo afecto ao desenvolvimento ou exercício dessa
actividade e por forma a permitir uma ligação estável e directa (ou, até, exclusiva) entre
esses dois elementos – organização de capital e de trabalho (património) e exercício de
actividade económica.
Aliás, isso mesmo resulta do ‘preâmbulo não publicado do decreto-lei que aprova o Código’
[Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Ministério da Justiça, GPLP, Coimbra
Editora, pág. 210] (CIRE), já que, aí, se deixou expresso, a propósito dos sujeitos passivos
para efeito de insolvência, que «… Aí se tem como critério mais relevante para este efeito,
não o da personalidade jurídica, mas o da existência de autonomia patrimonial, o qual
permite considerar como sujeitos passivos (também designados por ‘devedor’ ou
‘insolvente’), designadamente, sociedades comerciais e outras pessoas colectivas ainda em
processo de constituição, o estabelecimento individual de responsabilidade limitada, as
associações sem personalidade jurídica, e ‘quaisquer outros patrimónios autónomos’. Neste
quadro, a mera empresa, enquanto tal, se não dotada de autonomia patrimonial, não é
considerada sujeito passivo, mas antes o seu titular» (sublinhado nosso).
Sucede que dos autos nada resulta que nos permita concluir pela existência de um
património autónomo afecto pelo requerido à actividade económica (comercial) por si
desenvolvida, porquanto só este pode ser considerado massa insolvente integrante de
empresa e susceptível de ser sujeito passivo de um processo de insolvência distinto do seu
titular, como nos deixa claro Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda [Código de
Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, vol. I, pág. 64 e 65], em anotação ao art.
2º do CIRE: «… Tem-se, então, em consideração o facto de existir uma massa patrimonial
afecta à satisfação de fins específicos, autonomizáveis do titular ou titulares, o que, por sua
vez, fundamenta a existência de uma panóplia mais ou menos vasta de direitos e obrigações,
julgada merecedora de um tratamento como que personificado. / Isto não significa, reparese a imunidade à declaração de insolvência das pessoas a cuja esfera, em última análise, as
situações em causa são recondutíveis, as quais podem ser afectadas por consequências de
vária ordem (cfr., v.g., os arts. 6º, 82º, nº 2, als. a) e b), 186º, 188º e 189º). Em todo o
caso, a insolvência propriamente dita incide então directamente sobre as realidades
identificadas nas als. b) e seguintes do art. 2º e só indirectamente ou mediatamente sobre
os sujeitos a elas ligados. …».
Efectivamente, da simples declaração fiscal de exercício de uma determinada actividade
comercial e, bem assim, da sujeição a IVA, não resulta, desde logo e sem mais, como resulta
do já supra exposto, que se esteja perante uma ‘massa insolvente’ autónoma e susceptível
de ser tida como sujeito passivo de processo de insolvência e, consequentemente, determine
o afastamento do seu titular como sujeito passivo deste.
Assim, tendo sido requerida a declaração de insolvência do requerido, enquanto pessoa
singular, e nada resultando dos autos, isto é, da identidade das partes, da pretensão
formulada e dos fundamentos invocados, que justifique a conclusão de que se está perante
uma ‘massa insolvente (que) integre empresa’, temos que é o tribunal cível o competente,
em razão da matéria, para conhecer do processo de insolvência do requerido, que já não o
tribunal de comércio que a vê excluída por força do disposto no art. 89º, nº1, al. a) da LOTJ,
com a redacção introduzida pelo art. 8º do Dec. Lei nº 53/2004, de 18 de Março.
*
3. Decisão:
Nos termos supra expostos, acorda-se em:
a) – conceder provimento ao agravo e, consequentemente, revogar a decisão recorrida,
considerando-se competente para conhecer do processo de insolvência em causa o tribunal
recorrido, que deverá ordenar o prosseguimento dos autos;
b) – custas do recurso pelo agravado.
*
Porto, 20 de Fevereiro de 2006
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale
António Manuel Martins Lopes
Conflito Competência nº 6837/05-2ª Sec.
Data – 21/02/2006
4672 (Boletim Interno nº 24)
APOIO JUDICIÁRIO
RECURSO
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário
I - Competente para a impugnação judicial da decisão administrativa sobre apoio judiciário é o Tribunal
competente para a causa a que o apoio se destina.
II - Sendo esta da jurisdição fiscal do Porto, não é viável a aplicação desta regra, atribuindo-se então a
competência aos juízos cíveis (art. 99 da Lei 3/99 de 13 de Janeiro).
ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
B.........., com os sinais dos autos, vem solicitar a resolução de um conflito negativo de
competência entre os Juízes do 2.º Juízo Cível, 2.ª Secção, do Porto e do 2.º Juízo do
Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto, os quais se atribuem mutuamente a
competência, negando a própria, para conhecerem da impugnação judicial da decisão da
Segurança Social do Porto sobre o pedido de apoio judicial daquele, a fim de deduzir
oposição num processo de execução fiscal, com o valor de €129.507,86.
Ouvidas as entidades em conflito, apenas o Snr. Juiz do Tribunal de Pequena Instância se
pronunciou em defesa da sua anterior posição.
O M.º P.º elaborou douto parecer em que defende que a competência deve ser atribuída à
2.ª Secção do 2.º Juízo Cível.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Em causa, pois, a competência para decidir da impugnação judicial de decisão administrativa
sobre apoio judiciário, proferida pelo ISSS do Porto, para oposição em processo de
competência de tribunal fiscal.
Os despachos que deram origem ao presente processo transitaram em julgado e ambos os
Tribunais se situam na área do Distrito Judicial do Porto.
O direito.
A primeira questão será a de encontrar a lei aplicável.
O último diploma sobre apoio judiciário é a Lei 34/2004 de 29/07, cujo início de vigência foi
determinado para o dia 1 de Setembro de 2004 (art. 51.º).
Segundo o n.º2 dessa disposição, esta lei será aplicável aos processos iniciados após a sua
vigência, ou seja, após 1 de Setembro de 2004.
Tendo o pedido de apoio judiciário dado entrada no ISSS do Porto em data posterior a
1/9/04, é este o diploma aplicável e não a revogada Lei 30-E/2000 de 20 de Dezembro.
Segundo o art. 28.º aplicável, o Tribunal competente para a impugnação judicial é o tribunal
da comarca em que está sediado o serviço da Segurança Social que apreciou o pedido (se for
na pendência da acção, o tribunal desta). Sempre, pois, o Tribunal do Porto.
Acrescenta o n.º2 que “nas comarcas onde existem Tribunais de competência especializada
ou de competência específica, a impugnação deve respeitar as respectivas regras de
competência”.
Apela-se, assim, à competência para conhecer da causa conexa com o pedido de apoio
judiciário (ver Salvador da Costa in Apoio Judiciário, 5.ª edição, pág. 186 e Acórdão desta
Relação de 14/6/2005, processo 2233/05- 2.ª Secção – Durval Morais).
Acontecendo que a causa conexa é da competência da jurisdição fiscal e tratando-se aqui da
competência jurisdicional, não é viável a aplicação deste normativo, exactamente por se
tratar de protecção jurídica atinente a causa da competência de ordens de tribunais
integrados em ordens diversas as ordem judicial.
Assim, a impugnação da decisão administrativa do ISSS só pode inserir-se no disposto no
art.99.º da Lei 3/99 de 13 de Janeiro, pois que nas comarcas em que há órgãos jurisdicionais
de competência específica, são os juízos Cíveis os tribunais competentes para preparem e
julgarem os processos de natureza cível que não sejam da competência das varas cíveis e
dos juízos de pequena instância cível (competência residual ou remanescente).
Ao retirar-se a menção de “irrecorrível” na disposição actual (art. 28.º) e constante do art.
29 da Lei 30-E/2000, também se retirou a hipótese de aplicação do art. 101.º da Lei 3/99,
que poderia justificar a atribuição da competência ao Tribunal de Pequena Instância Cível.
DECISÃO:
Nestes termos se decide atribuir a competência para julgar a presente impugnação da
decisão administrativa de apoio judiciário à 2.ª Secção do 2.º Juízo Cível do Porto.
Sem custas.
Porto, 21 de Fevereiro de 2006
Cândido Pelágio Castro de Lemos
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Agravo nº 647/06-3ª Sec.
Data – 23/02/2006
4673 (Boletim Interno nº 24)
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
COMPETÊNCIA
Sumário
I - Ao pretender que o seu património foi atingido por um acto do Estado, um Autor não está a invocar
qualquer situação de direito privado em que tenha tido intervenção um ente público.
II - O que a A. pretende discutir nestes autos é uma relação jurídica Tributária em que o Estado actua
com jus imperii, no exercício das suas funções de liquidar e cobrar impostos, subtraídas, por lei ao
conhecimento de qualquer tribunal comum, por ser matéria de exclusiva competência dos Tribunais
Tributários.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
B.........., casada, contribuinte nº ........., residente no .........., .........., .........., interpôs o
presente recurso de agravo da decisão proferida em 7 de Novembro de 2005, nos autos de
acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma ordinária por ela
intentada contra o Estado Português, por considerar o Tribunal recorrido competente, em
razão da matéria, para conhecer dos pedidos que formulou na acção, tendo, para esse efeito
formulado, a final da sua alegação, as seguintes conclusões:
1- Está provado nos autos que os prédios da Recorrente, identificados nos artºs. 2 a 5 da
petição, foram objecto de registo de uma hipoteca legal em favor da Administração Fiscal,
em garantia do pagamento de dívidas tributárias de que a Recorrente seria responsável
subsidiária.
2- A Recorrente alegou, e os autos comprovam-no, que quando soube do registo das
hipotecas nunca a A.F. tinha revertido contra ela qualquer execução fiscal, e que essa
reversão só lhe foi notificada no decurso desta acção.
3- Está também provado nos autos que a A.F. reverteu a dívida contra a Recorrente pelo
facto dela ser casada, em regime de comunhão de adquiridos, com o gerente de uma
sociedade comercial, e que, sendo este responsável subsidiário pelas dívidas tributárias
daquela sociedade, por reversão contra si da execução instaurada contra a sociedade, essas
dívidas também revertiam contra a Recorrente, pois, no entender da A.F., os actos do
marido eram actos de comércio, e assim comunicáveis ao seu cônjuge.
4- A constituição e registo da hipoteca é legal porque foram feitos antes da prática do acto
de reversão, e essa ilegalidade não é sanável por este acto, ostensivamente ilegal, porque a
responsabilidade do marido da Recorrente é uma responsabilidade delitual ou extrajudicial.
5- Sendo certo que a Recorrente deve defender-se nos tribunais administrativos e fiscais do
acto que a constitui ilegalmente devedora, não é menos certo que é nos tribunais comuns
que ela deve defender os seus direitos de propriedade, ainda que ofendidos pela A. Pública,
tal como seria nos tribunais comuns que deveria defender a sua vida e liberdade se fossem,
postas em perigo por actos da A.P..
6- A douta decisão recorrida confundiu o instrumento da violação com o direito violado.
7- Ora, o direito violado tem a natureza de direito absoluto, e, como tal, a sua tutela efectiva
faz se nos tribunais comuns.
8- Como foram violadas as disposições em que se louva, bem como as consagradas nos
artºs. 62º. da CRP, 1311º. e segs. e 1276º. e segts. e 1691º d) do CC, bem como os artºs.
2º.2 e 462º. do CPC, o douto despacho recorrido deve ser revogado, prosseguindo os autos
os seus termos.
Foram apresentadas contra-alegações onde o Magistrado do Ministério Público defende a
manutenção da sentença recorrida.
Em causa neste recurso está a definição de qual o Tribunal competente, em razão da
matéria, para conhecer dos pedidos formulados pela A. tendo a decisão recorrida
considerado para o efeito incompetente o Tribunal comum.
A competência judiciária em razão da matéria é de ordem pública, e, só pode decorrer da lei,
tendo sido estabelecida em função da natureza da matéria sub judice e atribuída ao tribunal
que estiver mais vocacionado para dela conhecer, com vista à melhor prestação da qualidade
da justiça. Reveste-se, tal definição de um interesse público fundamental, pelo que
preterição das regras que a determinam, nos termos do disposto no artigo 101.º do Código
de Processo Civil é sancionada com a incompetência absoluta do tribunal.
A organização judiciária portuguesa, na sua visão constitucional, artº 209º, integra,
fundamentalmente, três categorias de tribunais:
- Constitucional,
- Tribunais Comuns,
- Tribunais Administrativos e Fiscais.
O artigo 211º da Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976, Revista pelas
Leis Constitucionais n.ºs 1/82, de 30 de Setembro, 1/89, de 8 de Julho, 1/92, de 25 de
Novembro, 1/97, de 20 de Setembro e 1/2001, de 12 de Dezembro estabelece no seu
CAPÍTULO II, sob a epígrafe Organização dos tribunais, o seguinte, relativamente à
jurisdição comum:
Artigo 211.º
(Competência e especialização dos tribunais judiciais)
1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem
jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
O artigo 212º, diz, quanto à ordem administrativa e Fiscal:
«Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos
contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais».
Em sintonia com o preceito constitucional, o artigo 18º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de
Janeiro, Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, vem confirmar que
«são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra
ordem jurisdicional».
A jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe
atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
O art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na linha do que estatui a
Constituição, no preceito anteriormente reproduzido, dispõe que:
«Artigo 4.º
Âmbito da jurisdição
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que
tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou
fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito
administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas
colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem
como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da
invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por
quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à
Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos
privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e
execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que
admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de
direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível
de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de
direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que
as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo
por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, nos termos da lei, bem
como a resultante do funcionamento da administração da justiça;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e
demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o
regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito
público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no
âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promoção da prevenção, da cessação ou da perseguição judicial de infracções cometidas
por entidades públicas contra valores e bens constitucionalmente protegidos como a saúde
pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o
património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que
não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.
2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação
de litígios que tenham por objecto a impugnação de:
a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa
e fiscal;
c) Actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal e à
execução das respectivas decisões.
3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais
pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de
regresso;
b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do
Supremo Tribunal de Justiça;
c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior
da Magistratura e pelo seu Presidente;
d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, que não
conferem a qualidade de agente administrativo, ainda que uma das partes seja uma pessoa
colectiva de direito público».
A competência dos tribunais, seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da
providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto
donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos
subjectivos (identidade das partes) é aferida em função dos termos em que a acção é
proposta, ou seja, pelo pedido do autor, ou, nas palavras de REDENTI – “afere-se pelo quid
disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”.
«A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da
procedência da acção MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979,
não havendo, para tanto que averiguar quais deviam ser as partes e os termos da pretensão
formulada em juízo.
Tendo em conta a doutrina, a jurisprudência e as referidas normas delimitadoras da
jurisdição administrativa e fiscal e da jurisdição dos tribunais judiciais, para decidir se
incumbe aos tribunais administrativos e fiscais ou aos tribunais judiciais o conhecimento da
presente acção, importa caracterizar a relação estabelecida entre a A. e o R., tal como por
ela configurada a relação material controvertida na petição inicial.
Alega a A. que o Estado requereu a inscrição no registo de cada um dos prédios que a A.
considera como seus de uma hipoteca para garantia de créditos fiscais de Imposto sobre o
valor acrescentado relativo aos anos de 2001 e 2002, coima fiscal do ano de 2003 e
respectivos juros e custas. Alega ainda a aquisição originária e derivada do direito de
propriedade sobre os referidos bens imóveis e a circunstância de nunca ter sido sujeito
passivo da liquidação de Imposto sobre o valor acrescentado ou de qualquer procedimento
tributário ou contra-ordenacional. Mais adiante vem a mencionar que foi contra ela revertida
uma execução fiscal, invocando a sua qualidade de gerente de uma sociedade, qualidade que
a A. também discute nesta acção.
Considera ainda a A. que o registo da hipoteca é ilegal e invoca os variados prejuízos para si
decorrentes da dita situação ilegal.
Do que se alega na petição inicial e sem necessidade até de qualquer confirmação nos
documentos apresentados nos autos fica de imediato a saber-se que, num processo de
execução fiscal – em concreto o processo 1830 de 2002, o Chefe do Serviço de Finanças de
.......... determinou a constituição de uma hipoteca legal a favor da Fazenda Nacional sobre
os bens imóveis indicados pela A., ao abrigo do disposto no artº 195º nº 1 do Código de
Procedimento e Processo Tributário, por se mostrar em cobrança coerciva um determinado
montante de dívidas fiscais.
O processo de execução fiscal é instaurado pelo Serviço de Finanças para cobrança coerciva
de dívidas fiscais e, nesse processo, ao abrigo de diversas disposições de direito tributário
pode a execução reverter contra pessoa diversa do devedor originário, posto que reunidos os
requisitos legais.
Para se ser responsável pelo pagamento de uma dívida de Imposto sobre o valor
acrescentado não é necessário que se seja sujeito passivo de Imposto sobre o valor
acrescentado, bastando que se deva assumir pessoalmente a responsabilidade pelo
pagamento de uma dívida com essa origem na qualidade de responsável solidário ou
subsidiário.
Quando as dívidas exequendas resultarem da actividade comercial de um dos cônjuges,
essas dívidas são da responsabilidade de ambos os cônjuges, impondo-se, neste caso a
citação do cônjuge que ainda não estava na execução, não para requerer a separação de
bens, mas para efectuar o respectivo pagamento e, bem assim, para, querendo, deduzir
oposição, e requerer pagamento em prestações ou dação em pagamento, no prazo legal.
Assim, a A. sabe, como passaria a saber logo que consultado o registo predial, se não tivesse
antes sido informada pela Administração Tributária que estão em causa dívidas fiscais que
haverá que regularizar.
Saber se a hipoteca foi ou não bem ordenada é questão a discutir em sede de execução
fiscal, perante o Chefe do Serviço de Finanças onde corre a execução, em processo de
reclamação que, eventualmente, caso a decisão venha a ser desfavorável à A. lhe dará
direito de recolocar a questão, desta vez perante o Tribunal Tributário, mas em recurso
interposto da decisão que o Chefe do Serviço de Finanças haja proferido no processo de
execução fiscal sobre essa matéria.
Tanto basta para saber que a A. ao pretender que o seu património foi atingido por um acto
do Estado, não está a invocar qualquer situação de direito privado em que tenha tido
intervenção um ente público. O que a A. pretende discutir nestes autos é uma relação
jurídica Tributária em que o Estado actua com jus imperii, no exercício das suas funções de
liquidar e cobrar impostos, subtraídas, por lei ao conhecimento de qualquer tribunal comum,
por ser matéria de exclusiva competência dos Tribunais Tributários.
Naturalmente que uma hipoteca constituída sobre um imóvel da A. afecta o seu património,
mas desta constatação não resulta que está em causa uma relação jurídica de direito
privado.
Nestes termos, a decisão da 1ª instância não merece qualquer reparo.
Deliberação:
Acorda-se, em vista do exposto, nesta Relação, em julgar e improcedente o recurso e, em
consequência confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Porto, 23 de Fevereiro de 2006
Ana Paula Fonseca Lobo
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha
Estevão Vaz Saleiro de Abreu
Agravo nº 5604/05-3ª Sec.
Data – 23/02/2006
4674 (Boletim Interno nº 24)
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
COMPETÊNCIA
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO
Sumário
Ocupar um terreno de um particular, sem qualquer título, seja o ocupador o Estado, uma Autarquia,
uma empresa pública ou privada, ou um simples cidadão, será sempre uma ofensa ao direito de
propriedade dos particulares, a defender junto dos Tribunais comuns, por serem estes os competentes a
dirimir tais conflitos.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
B….., L.dª, com sede na ….., nº …, ..º, d.tº, Porto e C….., L.dª, com sede na Rua …., nº …,
…. esqª, Porto, interpuseram o presente recurso de agravo da decisão de 7 de Abril de 2005,
que ordenou o desentranhamento da réplica de fls. 418 e segs. dos autos e absolveu os RR
da instância, por considerar que a matéria em discussão no presente processo “é da
exclusiva competência dos Tribunais Administrativos”, proferida nos autos de acção
declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma ordinária por elas intentada
contra o Estado Português, o Município do Porto e a D…., S.A., esta com sede na Rua …., E…,
F….., Porto por considerarem o Tribunal recorrido competente, em razão da matéria, para
conhecer dos pedidos que formularam na acção, e manifestamente admissível a réplica,
tendo, para esse efeito formulado, a final da sua alegação, as seguintes conclusões:
1ª. O art. 502º do CPC prevê claramente a admissibilidade da réplica para responder a
excepções e a questões novas, bem como para contestar o pedido reconvencional – cfr.
texto nºs. 1 e 2;
2ª. O articulado apresentado pelas AA, em 2004.12.16 respeita apenas à contestação do R.
Estado Português, na qual não foi deduzido pedido reconvencional, pelo que este articulado
tinha que ser apresentado no prazo de 15 dias (v. art. 502º/3 do CPC) – cfr. texto nºs. 2 e
3;
3ª. O articulado apresentado pelas AA, em 2005.01.14, respeita apenas à contestação dos
RR Município do Porto e D….., SA., na qual foram invocadas questões e excepções diversas
das que constam da contestação do R. Estado Português, tendo sido ainda deduzido pedido
reconvencional, pelo que o articulado das AA poderia ser apresentado no prazo de 30 dias (v.
art. 502º/3 do CPC) – cfr. texto nºs. 2 e 3;
4ª. Os articulados apresentados pelas AA constituem substancialmente uma única réplica,
formalizada em duas peças diferentes, para permitir o respectivo confronto com cada uma
das contestações apresentadas e assegurar o exercício do contraditório (v. art. 3º do CPC) –
cfr. texto nºs. 2 e 3;
5ª. O articulado apresentado pelas AA, em 2005.01.14, é assim claramente admissível, pelo
que nunca poderia ser considerado nulo e desentranhado, tendo a douta sentença recorrida
violado frontalmente os arts. 3º, 201º e 502º do CPC – cfr. texto nºs. 2 e 3;
6ª. Na apreciação da questão da determinação do tribunal competente em razão de matéria
para a apreciação do presente processo deverá atender-se, em primeira linha, aos termos do
pedido e causa de pedir formulados na petição inicial (v. art. 66º do CPC) – cfr. texto nºs. 4
e 5;
7ª. Na presente acção, as AA e ora recorrentes invocam e pretendem ver reconhecido o seu
direito de propriedade sobre parcelas de terreno ocupadas pelos RR, sem qualquer título,
bem como ser ressarcidas pelos prejuízos resultantes da ocupação ilícita dos seus terrenos
(v. arts. 501º e 1304º a 1310º do C. Civil; cfr. art. 62º da CRP), não tendo invocado a
existência de qualquer relação jurídico-administrativa (v. art. 212º/3 da CRP) ou a aplicação
de normas materialmente administrativas – cfr. texto nº. 6;
8ª. A circunstância de a lesão dos direitos privados das ora recorrentes ter sido provocada
pela actuação dos RR – Estado Português, Município do Porto e D…., SA, que são pessoas
colectivas públicas -, não determina por si só a incompetência dos tribunais comuns, pois os
tribunais administrativos não dispõem de competências jurisdicionais para dirimir questões
de direito privado, não estando em causa, no caso em análise, a violação de normas
materialmente administrativas (v. art. 212º da CRP e art. 4º do ETAF) – cfr. texto nº. 7;
9ª. A tutela jurisdicional da ofensa de direitos reais de natureza privada, como é o caso do
direito de propriedade das ora recorrentes (v. art. 62º da CRP e art. 1305º do C. Civil), sem
que tenha sido imputada qualquer violação de normas materialmente administrativas, não
integra a resolução de qualquer litígio emergente de relação jurídico-administrativa (v. art.
212º/3 da CRP; cfr. art. 4º do ETAF), mas simples questão de direito privado – cfr. texto nº.
8;
10ª.Não existe qualquer norma de direito público ou materialmente administrativo que,
independentemente de prévio acto expropriativo (v. art. 62º da CRP; cfr. arts. 1º e segs. do
CE 91 e do CE 99), atribua poderes de autoridade a entidades públicas ou privadas para
invadirem e ocuparem terrenos privados – sem qualquer autorização ou pagamento de
indemnização – e neles proceder à realização de obras de construção de um edifício, de um
viaduto e respectivos acessos, pelo que no caso sub judice não está em causa qualquer acto
de gestão pública (v. art. 212º/3 da CRP) – cfr. texto nºs. 9 a 10;
11ª.Os Tribunais Comuns são competentes para apreciar e decidir a presente acção, tendo a
douta sentença recorrida violado frontalmente os arts. 66º, 73º e 96º do CPC, o art. 4º do
ETAF e o art. 262º da CRP – cfr. texto nºs. 4 a 11.
Concluiu considerando que deverá ser concedido provimento ao presente recurso,
revogando-se a douta sentença recorrida.
Foram apresentadas contra-alegações pelas entidades recorridas onde o Magistrado do
Ministério Público defende a manutenção da decisão recorrida e as demais recorridas
entendem que a mesma se pode manter quanto à decisão sobre a competência do Tribunal,
não tendo sido interposto recurso do despacho que mandou desentranhar a réplica.
Duas questões foram colocadas como objecto do recurso:
1- Admissibilidade da Réplica
2- Competência material do Tribunal Cível para conhecer da acção.
Por a segunda questão enunciada poder vir a tornar inútil a decisão que haja de se proferir
quando à primeira, passaremos a conhecer da questão da competência do Tribunal comum
ou do Tribunal Administrativo para a presente acção.
A competência judiciária em razão da matéria é de ordem pública, e, só pode decorrer da lei,
tendo sido estabelecida em função da natureza da matéria sub judice e atribuída ao tribunal
que estiver mais vocacionado para dela conhecer, com vista à melhor prestação da qualidade
da justiça. Reveste-se, tal definição de um interesse público fundamental, pelo que a
preterição das regras que a determinam, nos termos do disposto no artigo 101.º do Código
de Processo Civil é sancionada com a incompetência absoluta do tribunal.
A organização judiciária portuguesa, na sua visão constitucional, artº 211º, integra,
fundamentalmente, três categorias de tribunais:
- Constitucional,
- Tribunais Comuns,
- Tribunais Administrativos e Fiscais.
A Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976, Revista pelas Leis
Constitucionais n.ºs 1/82, de 30 de Setembro, 1/89, de 8 de Julho, 1/92, de 25 de
Novembro, 1/97, de 20 de Setembro e 1/2001, de 12 de Dezembro estabelece no seu
CAPÍTULO II, sob a epígrafe Organização dos tribunais, o seguinte:
Artigo 209.º
(Categorias de tribunais)
1. Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais:
a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância;
b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais;
c) O Tribunal de Contas.
2. Podem existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz.
3. A lei determina os casos e as formas em que os tribunais previstos nos números
anteriores se podem constituir, separada ou conjuntamente, em tribunais de conflitos.
4. Sem prejuízo do disposto quanto aos tribunais militares, é proibida a existência de
tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes.
Artigo 210.º
(Supremo Tribunal de Justiça e instâncias)
1. O Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais,
sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional.
2. O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça é eleito pelos respectivos juízes.
3. Os tribunais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca, aos quais se
equiparam os referidos no n.º 2 do artigo seguinte.
4. Os tribunais de segunda instância são, em regra, os tribunais da Relação.
5. O Supremo Tribunal de Justiça funcionará como tribunal de instância nos casos que a lei
determinar.
Artigo 211.º
(Competência e especialização dos tribunais judiciais)
1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem
jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
2. Na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais
especializados para o julgamento de matérias determinadas.
3. Da composição dos tribunais de qualquer instância que julguem crimes de natureza
estritamente militar fazem parte um ou mais juízes militares, nos termos da lei.
4. Os tribunais da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça podem funcionar em secções
especializadas.
Artigo 212.º
(Tribunais administrativos e fiscais)
1. O Supremo Tribunal Administrativo é o órgão superior da hierarquia dos tribunais
administrativos e fiscais, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional.
2. O Presidente do Supremo Tribunal Administrativo é eleito de entre e pelos respectivos
juízes.
3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos
contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais.
Em sintonia com o preceito constitucional, o artigo 18º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de
Janeiro, Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, vem confirmar que
«são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra
ordem jurisdicional».
A jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe
atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
O art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na linha do que estatui a
Constituição, no preceito anteriormente reproduzido, dispõe:
Artigo 4.º
Âmbito da jurisdição
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que
tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou
fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito
administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas
colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem
como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da
invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por
quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à
Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos
privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e
execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que
admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de
direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível
de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de
direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que
as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo
por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, nos termos da lei, bem
como a resultante do funcionamento da administração da justiça;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e
demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o
regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito
público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no
âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promoção da prevenção, da cessação ou da perseguição judicial de infracções cometidas
por entidades públicas contra valores e bens constitucionalmente protegidos como a saúde
pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o
património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que
não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.
2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação
de litígios que tenham por objecto a impugnação de:
a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa
e fiscal;
c) Actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal e à
execução das respectivas decisões.
3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais
pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de
regresso;
b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do
Supremo Tribunal de Justiça;
c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior
da Magistratura e pelo seu Presidente;
d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, que não
conferem a qualidade de agente administrativo, ainda que uma das partes seja uma pessoa
colectiva de direito público.
A competência dos tribunais, seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da
providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto
donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos
subjectivos (identidade das partes) é aferida em função dos termos em que a acção é
proposta, ou seja, pelo pedido do autor, ou, nas palavras de REDENTI – “afere-se pelo quid
disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”.
«A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da
procedência da acção” in MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil,
1979, não havendo, para tanto que averiguar quais deviam ser as partes e os termos da
pretensão formulada em juízo.
Tendo em conta a doutrina, a jurisprudência e as referidas normas delimitadoras da
jurisdição administrativa e fiscal e da jurisdição dos tribunais judiciais, para decidir se
incumbe aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais o conhecimento da presente
acção, importa caracterizar a relação estabelecida entre a AA.. e R.R., tal como por elas
configurada a relação material controvertida na petição inicial.
As A.A., ora recorrentes invocaram o seu direito de propriedade sobre parcelas de terreno
que dizem terem sido ocupadas pelos RR, sem qualquer título, pelo que pretendem ser
ressarcidas pelos prejuízos resultantes da ocupação ilícita dos seus terrenos através da
condenação dos RR a, nomeadamente:
a) Reconhecerem seu o direito de propriedade sobre as áreas indicadas nos arts. 45º e segs.
da p.i. e restituírem-lhes os referidos imóveis, livres e devolutos e no estado em que se
encontravam à data da sua ilegal e ilícita ocupação ou, no caso de a restituição ou entrega
dos prédios não ser possível, a pagarem a indemnização correspondente ao valor actual dos
prédios ocupados;
b) Pagarem as quantias actualizadas correspondentes aos danos provocados nas áreas não
expropriadas dos prédios em causa, nomeadamente os resultantes da sua ocupação, desde
2000.05.15, e as desvalorizações e encargos resultantes de servidões e restrições
administrativas;
c) Pagarem a quantia correspondente aos juros que se venceriam sobre o produto da venda
das áreas não expropriadas dos imóveis em causa, actualizada desde 2000.05.15 (v.
petitório);
d) Pagarem o valor correspondente aos lucros cessantes, prejuízos e encargos indicados nos
arts. 53º a 58º, 72º a 74º e 80º a 101º da petição inicial (v. petitório).
e) A condenação das R.R. a pagarem ainda despesas judiciais e extrajudiciais suportadas
pelas A.A., em virtude do presente litígio.
f) Juros de mora contabilizados sobre as quantias peticionadas desde a citação até efectivo
pagamento.
Sendo certo que na petição se referem frequentemente actuações de pelo menos duas das
rés em que estas tiveram intervenção na sua veste de entidades públicas, fazendo uso dos
poderes que lhes foram conferidos por lei para o exercício das suas funções públicas,
discutindo-se lateralmente a bondade de despachos que conferiram e indeferiram aprovação
de pedidos de informação prévia, decisões sobre requerimentos de aditamentos a esses
pedidos, pareceres dos serviços técnicos municipais, despachos de revogação de decisões
adoptadas pela Câmara Municipal, vendas em hasta pública promovidas pelo Município,
despachos de órgãos do Município que indeferiram pedidos de licenciamento de obras ilegais
por falta de fundamentação, a sua referência só pode compreender-se na tentativa de as
A.A. explanarem a sua versão global sobre os acontecimentos que geraram o conflito que
colocaram perante o Tribunal.
No essencial referem as A.A. que são proprietárias de certos imóveis que foram ocupados
pelas R.R., sem qualquer título, sem autorização das A.A. e que essa ocupação lhes causou
prejuízos.
Indicar quais os prejuízos, na medida em que eles se alicerçam fundamentalmente na
capacidade edificativa dos imóveis que as A.A. sempre pretenderam utilizar, traz sempre à
contenda diversos procedimentos administrativos relativos ao urbanismo, pela simples razão
que não é possível fazer qualquer edificação no território nacional sem que o ente autárquico
o autorize.
Sem sombra de dúvida que o que está em causa nos pedidos formulados em a), b) e c) da
petição inicial é a definição do direito de propriedade das A.A. sobre os imóveis que
indicaram como sendo pertença sua, e a indemnização pelos prejuízos causados pelas R.R..
Os prejuízos invocados são de diversa ordem e decorrem por um lado de parte dos imóveis
estarem ocupados com uma construção, pedindo as A.A. que esses prédios lhes sejam
entregues livres e desonerados, e, por outro da consideração de que essa entrega não será
possível por causa da construção neles efectuada, construção que prejudica também os
autores porque deu causa a uma considerável diminuição do valor dos terrenos das A.A. que
não foram ocupados mas que lhe são adjacentes. Todas estas questões são questões de
direito privado, a resolver segundo as regras do direito privado cuja aplicação a entes
públicas não está afastada por lei.
Ocupar um terreno de um particular, sem qualquer título, seja o ocupador o Estado, uma
Autarquia, uma empresa pública ou privada, ou um simples cidadão, será sempre uma
ofensa ao direito de propriedade dos particulares, a defender junto dos Tribunais comuns,
por serem estes os competentes a dirimir tais conflitos.
A actuação pública de uma entidade não ocorre apenas porque se trate de uma actuação
levada a cabo por um ente público. Quer o Estado quer as Autarquias dispõem de um
domínio privado e podem, de facto, praticar actos que sejam exclusivamente regulados pelo
direito privado.
O Profº Vaz Serra, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 103, pág. 350 e 351,
considerando que a distinção deve atender à circunstância de o acto se integrar ou não numa
actividade de direito público da pessoa colectiva pública, estabelece essa distinção da forma
seguinte: “se ele (o acto) se compreende nunca actividade de direito privado da pessoa
colectiva pública, da mesma natureza da actividade de direito privado desenvolvida por um
particular, o caso é de acto praticado no domínio dos actos de gestão privada; se, pelo
contrário, o acto é praticado no exercício de um poder público, isto é, na realização de
funções públicas, mas não nas formas e para a realização de interesses de direito civil, o
caso é de acto praticado no domínio dos actos de gestão pública .
O Prof.º Antunes Varela, definia como actos de gestão privada aqueles em que o Estado ou
pessoa colectiva pública intervêm como um simples particular, despido do seu poder público,
in Das Obrigações em Geral, 2ª ed., vol. 1, pág. 523.
O Profº Marcelo Caetano definia a gestão pública como a actividade da Administração
regulada por normas que confiram poderes de autoridade para a prossecução de interesses
públicos, disciplinem o seu exercício ou organizem os meios necessários para esse efeito
(Manual de Direito Administrativo, tomo II, 10ª ed., pág. 1198) e considerava como gestão
privada a actividade desenvolvida pela Administração no exercício da sua capacidade de
direito privado, procedendo como qualquer outra pessoa no uso das faculdades conferidas
por esse direito, ou seja, pelo direito civil ou comercial (obra citada, tomo 1, pág. 431).
Não se desconhece que a Reforma do Novo Contencioso Administrativo pretendeu estender a
competência da jurisdição administrativa a algumas questões que anteriormente lhe estavam
vedadas, nem que algumas posições doutrinárias, vieram já tomar partido e considerar que
os Tribunais Administrativos serão competentes para conhecer de todas as questões relativas
à responsabilidade civil extracontratual de qualquer entidade pública seja ela emergente de
uma relação jurídica de direito público ou de direito privado.
Não estão ainda debatidas estas questões, pelo menos de forma pública e suficiente ao nível
da jurisprudência que permitam estabelecer que efectivamente o legislador do Etaf
pretendeu, pelo menos em matéria de responsabilidade civil extracontratual converter os
Tribunais Administrativos nos Tribunais privativos de quem desempenha funções públicas
quer essa responsabilidade tenha algo a ver, pouco, ou nada com esse desempenho de
funções.
No limite esta interpretação levará a uma alteração completa da definição da competência
material dos Tribunais em função do objecto do processo para a deslocar para a qualidade
das partes que titulam a relação material controvertida. Ou seja, com esta interpretação, em
sede de responsabilidade civil extracontratual, mesmo que esteja em causa apenas uma
questão de direito privado, os Tribunais comuns conhecerão das questões entre os
particulares, excepto se uma das partes exercer qualquer função pública, porque isso
implicará que só perante o Tribunal Administrativo se poderá colocar a questão, mesmo que
os factos geradores dessa responsabilidade nada tenham a ver com o exercício de funções
públicas.
Admitindo-se que da especialização possa resultar algum melhor conhecimento das matérias,
não se compreende como da qualidade dos intervenientes processuais – entes que
desempenham funções públicas versus entes particulares – alheada em absoluto dos
conteúdos a discutir, possa resultar a definição da competência material dos Tribunais, pelo
menos numa interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa, sob pena de se
estabelecer que os Tribunais Administrativos, dotados além do mais de um corpo privativo
de juízes, recrutados de forma diversa daquela em que o são os juízes da Magistratura
Judicial comum, e em que é factor preferencial o exercício anterior de cargos
administrativos, são os únicos onde podem ser demandados os cidadãos que exerçam
qualquer cargo público.
Por se tratar da norma primária de legislação, e dado o texto do artº 212, nº 3 da
Constituição da República Portuguesa – Compete aos tribunais administrativos e fiscais o
julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios
emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais – sempre a interpretação de
todas as disposições do art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais terá que
ser conforme à Constituição da República Portuguesa, nessa medida se limitando a
competência dos Tribunais Administrativos apenas aos litígios emergentes das relações
jurídicas administrativas.
Por ter sido amplamente debatida quer na doutrina quer na jurisprudência a questão de que
a violação do direito de propriedade de um particular por uma actuação abusiva de outrem,
seja ente público ou privado é questão da competência material dos Tribunais comuns,
dispensamo-nos de fazer sobre essa questão qualquer outra referência.
Porém, a complexa questão colocada pelas A.A. perante o Tribunal, não parece de tão fácil
solução se nos reportarmos ao pedido formulado em d) – Pagarem o valor correspondente
aos lucros cessantes, prejuízos e encargos indicados nos autos. 53º A 58º, 72º a 74º e 80º a
101º da petição inicial (v. petitório)-.
Os artigos 53º a 56º, 71, 72, 73 referem-se concretamente a prejuízos sofridos com a
ocupação abusiva, pelo que a eles se aplicam integralmente as considerações anteriores.
Porém os artigos 57º, 58º e 74º já se reportam a um contrato promessa de permuta de
imóveis celebrado, ao que supomos, verbalmente entre o Presidente da Câmara Municipal e
as A.A. segundo o qual estas se comprometeram a adquirir diversos imóveis em que a
Câmara Municipal tinha interesse, aquela se comprometida a receber esses imóveis e em
troca dar às A.A. outros imóveis com uma capacidade edificativa garantida. Neste negócio,
que as A.A. invocam ter cumprido e que a Câmara Municipal não terá cumprido, já a
entidade R. se apresenta a contratar invocando as virtualidades do exercício das suas
funções públicas pois garante a entrega de terrenos com uma edificabilidade garantida de 82
110m2.
Não sendo impossível que um particular celebrasse este contrato e depois obtivesse junto do
Município licença de construção para um imóvel que garantisse aquela edificabilidade, já nos
parece que nesta situação está bastante mais configurada uma relação jurídica
administrativa em que o ente público se compromete a realizar uma prestação que carece de
uma autorização urbanística que ao próprio contratante, ou, pelo menos ao órgão a que
preside compete conceder ou indeferir, pelo que tal contrato poderá ser uma promessa de
deferimento de uma licença de construção ainda que a mesma não haja sequer sido
requerida.
Do mesmo modo o pedido de indemnização pelos danos mencionados nos artigos 80º a 101º
da petição inicial porque originados pelo ilegal desenvolvimento de diversos procedimentos
administrativos e nas acções judiciais que se seguiram para reagir contra essas ilegalidades,
será matéria da competência dos Tribunais administrativos.
Em conclusão, o Tribunal Cível é competente em razão da matéria para o conhecimento da
generalidade dos pedidos formulados pelas A.A., com excepção do pedido de indemnização
pelos danos que alega ter sofrido em consequência dos factos constantes dos artigos 57º,
58º, 74º, 80º a 101º da petição inicial causados.
Os pedidos de juros e de pagamento de despesas e honorários são da competência do
Tribunal comum na medida em que sejam dependência dos outros pedidos para
conhecimento dos quais seja aquele Tribunal competente, nos termos antes definidos.
Passemos pois a analisar a questão do despacho que ordenou o desentranhamento da
réplica.
Antecedendo a decisão que veio a julgar incompetente o Tribunal, em razão da matéria, para
conhecimento da acção, numa decisão onde as partes se não encontram totalmente
identificadas, escreveu o Sr.º Juiz de 1ª instância o seguinte:
“Autos de processo ordinário nº 5181/04
Desentranhe e remeta ao apresentante o articulado de fls 418 (2ª réplica) já que o nosso
ordenamento processual civil só contempla um articulado réplica, artº 502 nº 1 do CPC e
201º do mesmo diploma.
d.n. “
As partes do processo, como decorre dos seus termos posteriores foram “notificadas da
sentença”, com cópia de fls. 442 a 445, dos autos.
As A.A. em 19 de Abril de 2005, apresentaram em juízo um requerimento onde indicam
pretender recorrer dessa sentença.
Este recurso foi admitido, com efeito suspensivo em 10 de Maio de 2005.
Nessa mesma data a secretaria elabora documento de notificação às recorrentes do
despacho que admite o recurso e da remessa da réplica – “cujo duplicado se junta, a qual foi
mandada desentranhar por sentença de fls. 442”.
Em 23 de Maio de 2005, as A.A. vieram oferecer de novo a réplica que receberam indicando
que, tendo sido admitido o recurso da decisão que ordenou o seu desentranhamento, o
Tribunal da Relação teria que analisar o teor desse articulado para decidir o recurso, nada
tendo sido decidido a este propósito, posteriormente.
Foram juntas as alegações de recurso e as contra-alegações e a fls. 552, e, no que a esta
questão respeita foi proferido o seguinte despacho:
“Reclamação dos A.A. a fls. 457:
Pretendem os A.A. que seja dado sem efeito, o acto da secretaria consistente no
desentranhamento e remessa à parte do articulado como foi decidido por despacho judicial a
fls. 442 1ª parte, invocando para o efeito que tal despacho foi agravado com efeito
suspensivo.
Decidindo:
Não se me afigura fundada a reclamação.
Ao menos no entendimento que fiz da interposição de recurso da parte este foi restrito à
sentença que julgou a incompetência material do tribunal, entendimento que colhe da letra
do próprio requerimento da parte.
Daí que, desatendo, a reclamação, porquanto o despacho em causa transitou.
Custas do incidente com t.j. mínima.(…)”
Este despacho foi notificado às partes e remetidos os autos a este Tribunal.
Como se verifica das contra-alegações do Estado, representado nos autos pelo Magistrado do
Ministério Público, este réu considerou que o recorrente recorreu quer da decisão que
ordenou o desentranhamento da réplica, quer da decisão que declarou a incompetência
material do Tribunal.
Posição diversa foi assumida pelas duas outras rés.
A decisão de fls. 442 a 445 desdobra-se em duas decisões, uma relativamente à
inadmissibilidade da réplica, outra relativamente à excepção dilatória de incompetência
absoluta do Tribunal que, considerando esta procedente declarou a absolvição da instância
das R.R..
Tais decisões encontram-se previstas no Capítulo II do subtítulo I do do Título II do Livro III
do Código de Processo Civil pelo que estamos em sede de audiência preliminar em processo
ordinário, sob a forma ordinária.
Tais decisões serão, actualmente, em regra, as primeiras a ser proferidas pelo juiz, neste
tipo de processos pois, o processo só lhe será concluso findos os articulados.
Findos os articulados abre-se a fase da audiência preliminar destinada, entre outras coisas a
facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra
apreciar excepções dilatórias – artº 508º-A, nº1, b), do Código de Processo Civil.
Apesar de o não mencionar, admite-se que o Srº Juiz da 1ª Instância tenha entendido que se
verificava a situação prevista na alínea b) do nº 1 do artº 508º-B do Código de Processo
Civil, quer porque a mesma não foi efectuada, quer porque a causa se afigura complexa
desaconselhando a opção da alínea a) do mesmo preceito.
Assim, o Sr. Juiz avançou, ao que se entende, para o despacho saneador, tendo dado
cumprimento ao disposto no nº 1 a) do artº 510º do Código de Processo Civil. Ao fazê-lo,
quer se entenda que proferiu uma só decisão que englobou a questão da inadmissibilidade
da réplica e conheceu da competência do Tribunal, quer se entenda que proferiu duas
decisões distintas uma para cada uma dessas questões, dada a separação gráfica de ambas
– por espaço em branco – o certo é que em caso algum o Srº Juiz proferiu uma sentença.
Com efeito, estabelece o artº 510º nº 3 do Código de Processo Civil que “ no caso previsto
na alínea a) do nº 1, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às
questões concretamente apreciadas; na hipótese prevista na alínea b), fica tendo, para todos
os efeitos, o valor de sentença”, sendo certo que é o seguinte o texto dessa alínea b) :
“b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir,
sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidas deduzidos
ou de alguma excepção peremptória”.
Ou seja, o despacho saneador é sempre e só um despacho que, no caso mencionado na
alínea b) do nº 1, fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença.
Assim sendo, como é, ao ser interposto recurso de uma sentença que não existia, nem
sequer existia um despacho com valor de sentença, pelo menos ao abrigo do disposto no
artº 266º do Código de Processo Civil – Princípio da Cooperação – qualquer dedução ou
redução do objecto do recurso a parte daquele despacho teria que ser precedida de um
esclarecimento para se saber de que recorriam então as A.A..
Admite-se que esta é a versão extrema do formalismo, numa leitura mais que inoperacional
do Código de Processo Civil quase vocacionada não a resolver conflitos mas esgrimir
argumentos formais.
A secretaria notificou, por cópia as A.A. das duas decisões, conjuntamente, chamando-lhes
sentença. O recurso foi interposto chamando às decisões sentença, a réplica foi devolvida às
A.A. com fundamento no cumprimento da sentença que a mandou desentranhar, e a
reclamação apresentada quanto a esse desentranhamento foi desatendida por o Srº Juiz ter
entendido que a interposição do recurso fora restrito à sentença que julgou a incompetência
material do tribunal; muitas “sentenças” para uma sentença inexistente, convenhamos…
Creio que a única interpretação possível do que se passou nos autos, como de resto resulta
claramente das alegações de recurso apresentadas em juízo e já se poderia ter retirado da
reclamação apresentada em 23 de Maio foi que as A.A. receberam um despacho com o qual
não concordavam, que era passível de recurso e decidiram dele interpor recurso. Não
restringiram o recurso a nenhuma das partes decisórias nem da letra do requerimento de
interposição de recurso é possível retirar qualquer restrição.
Nos termos do disposto no artº 681º, nº 3 do Código de Processo Civil a aceitação tácita da
decisão é a que deriva da prática de qualquer facto incompatível com a vontade de recorrer,
não se descortinando qual pudesse ser esse facto, na situação em análise.
Os recursos interpõem-se por meio de requerimento dirigido ao Tribunal que proferiu a
decisão recorrida e no qual se indique a espécie de recurso interposto, artº 687º nº 1 do
Código de Processo Civil, devendo ser ainda indicado o fundamento do recurso em variadas
situações ali previstas mas sem aplicação à presente situação. Tais requisitos mostram-se
preenchidos, não parecendo de nenhum sentido mencionar que as recorrentes apenas
recorrem de parte do que se decidiu, sem que tenham restringido o objecto de recurso a
qualquer parte do despacho que lhes foi notificado.
Passemos pois à análise da admissibilidade da réplica.
Também esta questão se reveste de alguma bizarria e mostra-se ancorada numa visão do
processo onde a todo o custo se pretende que apenas se discuta a questão de fundo se
forem transpostas todas as barreiras formais, possíveis e imagináveis, esquecendo que o
processo desempenha unicamente a função de tornar operacional a colocação de uma
pretensão em juízo, com vista à solução justa de um litígio, em conformidade da lei.
O que está verdadeiramente em causa não é saber se a réplica é admissível porque todos os
intervenientes processuais aceitam que o seja. Um dos R.R. defendeu-se por excepção a que
responderam as A.A. os outros defenderam-se por excepção e deduziram pedido
reconvencional sobre os quais as A.A. do mesmo modo se pronunciaram na réplica, em
obediência ao disposto no artº 502º do Código de Processo Civil .
O que aconteceu foi que o prazo de contestação do Magistrado do Ministério Público em 8 de
Novembro de 2004 foi prorrogado por 30 dias.
Os R.R. Município do Porto e E...... deduziram excepções e pedido reconvencional na
contestação, havendo este articulado sido apresentado em 15 de Novembro de 2004,
ignorando-se como foi notificada às A.A. A esta contestação responderam as A.A. em 14 de
Janeiro de 2005.
A contestação do Magistrado do Ministério Público foi apresentada em 25 de Novembro de
2005. A esta contestação responderam as A.A. em 16 de Dezembro de 2004.
Havia nos autos vários R.R. e, por força do disposto no artº 502º, nº 3 do Código de
Processo Civil o prazo para apresentação da réplica relativamente à contestação apresentada
pelo Estado era menor que o prazo para apresentação da réplica relativamente às outras
contestações.
Não existe relativamente à réplica uma disposição igual à do artigo 486º, nº 2 do Código de
Processo Civil para a contestação em caso de existirem vários R.R. estando o artº 502º do
Código de Processo Civil configurado apenas para a situação de existência ou de um réu, ou
de uma pluralidade de R.R. adoptarem a mesma posição isto é todos contestarem só por
impugnação, todos deduzirem só excepções ou todos deduzirem pedido reconvencional. Não
está expressamente prevista a situação que se apresenta nos autos.
A forma adoptada pelas A.A. para responderem às contestações apresentadas não está
proibida por lei e parece até uma forma engenhosa de usar os seus direitos processuais em
estrito respeito pelos prazos legais estabelecidos para o efeito, precavendo-se da situação,
sempre possível, de o Tribunal entender que o disposto no artº 486º nº 2 do Código de
Processo Civil não tem aplicação a outros articulados para além da contestação.
Tão pouco se descortina no Código de Processo Civil que esteja o A. impedido de apresentar
duas réplicas na presente situação. O que não poderá é apresentar uma resposta à tréplica
que é coisa diversa.
Tendo ambas as réplicas sido apresentadas dentro do prazo fixado para o efeito, também se
não mostra indiciado qualquer critério legal que permita escolher entre uma delas para a
desconsiderar.
Não está sequer suscitada a questão de se entender que as A.A. ao apresentarem a 2ª
réplica pretenderam retirar a primeira porque cada uma delas vem expressamente
direccionada a uma diferente contestação.
Deste modo, o despacho recorrido terá que ser revogado e substituído por outro que admita
o articulado mandado desentranhar.
Deliberação:
Acorda-se, em vista do exposto, nesta Relação, em conceder parcial provimento ao recurso e
revogar as duas decisões recorridas que deverão ser substituídas por outras uma que admita
a junção aos autos da 2ª réplica e outra que declare a competência do Tribunal Cível para
conhecimentos dos pedidos supra indicados, e incompetente em razão da matéria para
conhecimento dos restantes - pedido de indemnização pelos danos que alega ter sofrido em
consequência dos factos constantes dos artigos 57º, 58º, 74º, 80º a 101º da petição inicial prosseguindo o processo os seus termos normais.
As custas serão definidas a final.
Porto, 23 de Março de 2006
Ana Paula Fonseca Lobo
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha
Estêvão Vaz Saleiro de Abreu
Agravo nº 639/06-3ª Sec.
Data – 02/03/2006
4675 (Boletim Interno nº 24)
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
Sumário
I- A alínea b) do nº 1 do artº 110º do CPC -- que permite o conhecimento oficioso da questão da
competência em razão do território -- destina-se a acautelar casos excepcionais (mais excepcionais,
ainda, face à agora muito ampla previsão da alínea a)) em que um processo cognitivo (um processo em
que haja uma questão controvertida a apreciar) seja decidido antes da citação da contraparte - daí a lei
falar em decisão.
II- Assim, nessa alínea b) - tal, aliás, como na alínea a) -- não se compreendem as execuções que vêm
reguladas no artº 94º, nº1 CPC (designadamente as execuções para pagamento de quantia certa).
III- Por isso, em tais processos executivos está vedado ao tribunal conhecer oficiosamente da aludida
incompetência relativa.
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO:
No ..º Juízo, ..ª Secção, dos Juízos de execução do Porto, foi instaurada pelo Banco B.....,
SA, Execução Comum contra C..... e D....., tendo nesse processo sido proferido despacho a
declarar a incompetência territorial daquele tribunal e ordenar a remessa dos autos para o
Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
Desse despacho veio o Exequente interpor recurso de agravo, terminando as suas alegações
com as seguintes
CONCLUSÕES:
“1. A presente execução funda-se num documento particular dotado de força executiva.
2. De acordo com o actual regime da acção executiva, esta execução não comporta despacho
liminar nem citação prévia, devendo começar pela penhora de bens dos Executados, sob
iniciativa do agente de execução [arts. 812º-A.1.d) e 832º.1 do CPC].
3. Atenta a natureza da obrigação exequenda e a espécie de título executivo, o tribunal
territorialmente competente, em abstracto, seria o do lugar do cumprimento da obrigação
(art. 94º.1 do CPC), o que corresponde, no caso, ao domicílio do credor/exequente (art.
774º do CC).
4. Independentemente disso, visto que esta execução não comporta despacho liminar nem
citação prévia, a secretaria só poderia fazer o processo liminarmente concluso ao Senhor Juiz
à luz do previsto no nº 3 do art. 812º-A, em articulação com o disposto nas alíneas b) e c)
do nº 2 (casos de indeferimento liminar) e com o disposto no nº 4 (casos de convite ao
aperfeiçoamento) do art. 812º.
5. No caso vertente, a questão suscitada (eventual incompetência territorial) não
corresponde nem a motivos de indeferimento liminar, nem a motivos de convite ao
aperfeiçoamento.
6. Por isso, neste contexto, a apresentação dos autos a despacho e a prolação do próprio
despacho constituem a prática de um acto que a lei não prevê, ou seja, constituem uma
irregularidade que consubstancia uma nulidade, nulidade que se invoca para os efeitos do
art. 201º do CPC, com consequente anulação do processado.
7. Sem prejuízo do que antecede, a pretensa incompetência territorial por violação do
disposto no art. 94º.1 do CPC não é de conhecimento oficioso, razão pela qual não podia o
Senhor Juiz tê-la decretado por sua iniciativa.
8. O caso dos autos, ainda que existisse tal incompetência territorial, não está obviamente
previsto nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 110º do CPC, nem é enquadrável na respectiva
alínea b).
9. Esta alínea b) destina-se a acautelar casos excepcionais [cada vez mais excepcionais, face
à agora muito ampla previsão da alínea a)] em que um processo cognitivo, isto é, um
processo em que haja uma questão controvertida a apreciar, seja decidido - daí a lei falar
em decisão - antes da citação da contraparte.
10. Neste tipo de casos, aí sim, dado que a contraparte só chega ao processo depois de
proferida a decisão, compete ao juiz controlar oficiosamente a competência territorial, até
para garantir o respeito pelo princípio do juiz natural.
11. Numa acção executiva, o facto de a penhora ser feita antes da citação do executado não
significa que aí tenha sido tomada qualquer decisão, sendo certo que, na formulação legal,
uma providência executiva (penhora) não é equiparável a decisão.
12. Para as garantias do executado, e no âmbito do art. 94º.1 do CPC, é indiferente que a
penhora, feita antes da sua citação, seja realizada à luz de tribunal territorialmente
eventualmente incompetente.
13. Ao executado é bastante, assim que for citado, poder arguir a eventual incompetência
territorial e obter a remessa do processo para outro tribunal, no qual se irão praticar os actos
executivo subsequentes, bem assim decidir todas as questões que venham a ser suscitadas.
14. Mas tal remessa não afectará a penhora que já tenha sido feita no primitivo tribunal, na
exacta medida em que a remessa dos autos baseada na incompetência territorial apenas
implica que estes sejam transferidos no estado em que se encontram, nenhum processado
se anulando.
15. O que só confirma ser imprópria e inadequada a consideração liminar e oficiosa de
eventual incompetência territorial decorrente da violação do art. 94º.1 do CPC, devendo essa
questão ficar entregue à iniciativa do executado, assim que for citado, tanto mais que
legislador já cuidou de prever os casos de incompetência territorial executiva oficiosa [arts.
90º.1 e 94º.2 ex vi do art. 110º.1 .a) do CPC] .
16. Em face do exposto, temos que o despacho recorrido violou o disposto nos arts. 94º.1,
110º.1, 201º, 812º e 812º-A do CPC, impondo-se ou a anulação do processado, em virtude
da nulidade invocada, com o consequente prosseguimento da instância para penhora de
bens, ou a revogação do despacho e declaração de que inexiste a incompetência territorial
suscitada no mesmo.”
Não foram apresentadas contra-alegações e o Mmº Juiz a quo sustentou o despacho
recorrido.
Foram colhidos os vistos.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II. 1. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não
podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam
de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado
pelo conteúdo do acto recorrido,
a questão central a resolver consiste em saber se o Sr. Juiz a quo podia conhecer
oficiosamente da incompetência territorial do Tribunal da Comarca do Porto (Juízos de
Execução) para o conhecimento dos presentes autos.
II. 2. OS FACTOS:
Os supra relatados, bem assim os seguintes:
- Na presente execução -- para pagamento de quantia certa -- o título executivo é um
documento particular, assinado pelos devedores intitulado “contrato de crédito pessoal ”.
- O despacho recorrido é do seguinte teor:
“Verifica-se que o título executivo que acompanha o requerimento executivo constitui
contrato no qual se estabelece, na cláusula 15ª, a competência territorial do tribunal da
comarca de Lisboa para os termos da presente execução.
Sucede que na presente execução, porque a decisão não é precedida de citação do requerido
(vide Lebre de Freitas, In Código de Processo Civil Anotado, v.l, 203), sendo aplicável a regra
enunciada na alínea b) do nº 1 do artigo 110º do Código do Processo Civil, não é permitido o
afastamento convencional das regras de competência em razão do território (parte final do
nº 1 do artigo 100º do Código do Processo Civil).
Consequentemente, estando em causa, como nos autos, o cumprimento de uma obrigação
pecuniária emergente de contrato, será territorialmente competente para a acção o tribunal
do lugar onde a obrigação deva ser cumprida – nº 1 do citado artigo 94º do Código do
Processo Civil.
Na falta de indicação especial, a obrigação pecuniária deverá ser cumprida no domicílio do
credor à data do cumprimento - artigo 774º do Código Civil.
No caso em análise, e como se refere na procuração que consta de fls 13, o exequente tem a
sua sede em Lisboa.
Conclui-se, pois, atento o teor do título executivo, que a comarca do Porto não é a
competente para os termos da presente execução, antes o sendo a comarca de Lisboa.
Porque, como se disse, no caso em apreço é de conhecimento oficioso a excepção de
incompetência territorial, deve determinar-se a remessa dos autos ao tribunal competente.
Pelo exposto, declara-se este tribunal territorialmente incompetente, determinando-se a
oportuna remessa dos autos ao tribunal referido (artigos 108º, 110º, e 111º, do Código do
Processo Civil).”
III. O DIREITO:
Apreciemos, então, a questão supra referida, suscitada pela agravante nas suas doutas
alegações:
Não temos quaisquer dúvidas em afirmar, desde já, que assiste toda a razão à agravante.
Aliás - como nas alegações recursórias vem anotado--, a questão já foi apreciada em vários
arestos e, segundo cremos, decidida (e bem) no sentido propugnado pela agravante
A justificação vem bem explicitada nas alegações que quase nos apetecia limitarmo-nos a
remeter para elas.
De facto, a posição que entendemos correcta - aquela sustentada pela agravante - foi
defendida, entre outros, nos acórdãos desta Relação, de 25.11.2004 (Des. Ataíde da Neves),
10.10.2005 (Des. Macedo Domingues - proc. nº 4441/05) e 05.12.2005 (Des. Sousa
Lameira).
Assim, a nossa argumentação não poderá fugir muito da vertida naqueles arestos, antes pelo
contrário, já que a mesma nos parece de todo adequada e correcta.
Não há dúvida que a obrigação emergente do título dado à execução é de natureza
pecuniária. E na clª 15ª do mesmo título estabeleceu-se que para os termos da presente
execução era o tribunal da comarca de Lisboa.
Ora, tratando-se de obrigação pecuniária emergente de contrato, resultaria do artº 94º, nº1
do CC que para a acção ara competente o tribunal onde a obrigação deva ser cumprida. E na
falta de indicação especial a tal respeito, tal cumprimento é o domicílio do credor à data do
cumprimento (artº 774º do CC)-- o qual é em Lisboa, como se fez constar do documento de
fls. 13.
Assim sendo, mais não houvesse, teríamos que a competência para a execução seria, de
facto, do tribunal de Lisboa.
A questão, porém, a dilucidar consiste em saber se podia o Mmo Juiz a quo conhecer
oficiosamente da incompetência territorial, como conheceu.
Gira, assim, a questão à volta do artº 110º do CPC, que contempla os casos em que é
possível o conhecimento oficioso da incompetência relativa.
Entendeu o tribunal recorrido que tal conhecimento oficioso era possível, por se enquadrar
na previsão da al. b) do nº 1 desse artº 110º: entendendo que “na presente execução, a
decisão não é precedida de citação do requerido”, apressadamente concluiu que se aplicava
tal alínea e, como tal, que os Juízos de Execução do Porto eram incompetentes para o
prosseguimento dos autos executivos.
Sem qualquer razão, porém.
Dispõe o artº 110º do CPC:
“(Conhecimento oficioso da incompetência relativa)
1. A incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal,
sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, nos casos seguintes:
a) Nas causas a que se referem os artigos 73º, 74º, nº 2, 82º, 83º, 88º, 89º, 90º, nº 1, e
94º, nº 2;
b) Nos processos cuja decisão não seja precedida de citação do requerido;
c) Nas causas que, por lei, devam correr como dependência de outro processo.
2. A incompetência em razão do valor da causa ou da forma de processo aplicável é sempre
do conhecimento oficioso do tribunal, seja qual for a acção em que se suscite.
3. O juiz deve suscitar e decidir a questão da incompetência até ao despacho saneador,
podendo a decisão ser incluída neste sempre que o tribunal se julgue competente; não
havendo lugar a saneador, pode a questão ser suscitada até à prolação do primeiro despacho
subsequente ao termo dos articulados, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
4. No caso previsto no nº 2, a incompetência do tribunal singular, por o julgamento da causa
competir a tribunal colectivo, pode ser suscitada pelas partes ou oficiosamente conhecida até
ao encerramento da audiência de discussão e julgamento. “
Há que ver, no fundo, e só, se na citada alínea b) do nº 1 do artº 110º CPC - que permite o
conhecimento oficioso da (in)competência em razão do território-- se compreende as
execuções que vêm reguladas no artº 94º, nº1 CPC ( designadamente as execuções para
pagamento de quantia certa, como a sub judice).
É claro que não.
Como vimos, na citada alínea prevêem-se “os processos cuja decisão não seja precedida de
citação do requerido”.
Ora, tal como é defendido nas doutas alegações da agravante, não se descortina que espécie
de decisão é tomada na execução antes da citação dos Executados.
O que há que fazer é providenciar para que o Solicitador de Execução avance com a penhora
dos bens - sendo que o acto determinativo da penhora é uma mera decisão interlecutória,
sem qualquer autonomia ou conteúdo condenatório
Quando na citada alínea - ou noutros pontos da lei adjectiva civil - se fala em “decisão”,
está-se (obviamente) a referir à resolução de uma questão controvertida colocada à
consideração do tribunal. Ou seja, “decisão” corresponde ao epílogo de um processo
destinado a resolver um conflito de interesses (Lebre de Freitas, Comentário ao Código de
Processo Civil, vol. II, pág. 7).
Ou, na definição contida no “Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora”, p.412, decisão
é uma “resolução após discussão ou exame prévio”, uma deliberação, enfim uma “sentença”
- o que, de todo, está fora do processo executivo, maxime atenta a fase em que se encontra,
pois aqui não há lugar a qualquer “sentença”, vista esta como uma “resposta directa do
tribunal às pretensões das partes”, incidindo sobre o mérito do pedido que o autor (ou
réu/reconvinte) dirige ao Juiz (A. Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de
Processo Civil, p. 648).
Aqui poderia haver, quando muito, um mero despacho interlocutório, um despacho
meramente formal. Mas não é, de todo, nesse sentido que na citada al. b) do nº 1 do artº
110º do CPC se fala em “decisão”.
Como se escreveu no Ac. desta Relação, de 10 de Outubro de 2005, (Processo n.º 4441/05),
“quando a lei fala em processos cuja decisão seja precedida de citação do requerido quer
referir-se àqueles casos em que é formulada uma pretensão cuja procedência está
dependente da realização de uma prévia averiguação ainda que sumária, que
necessariamente irá culminar na prolação duma decisão acerca da viabilidade de tal
pretensão”.
Assim sendo, é claro que até se deturparia o sentido técnico do agente de execução supor
que, numa acção executiva como a presente, havia lugar a “decisão” antes da citação do
executado.
A referência à “decisão” na citada alínea, tem a ver com a preocupação que sempre teve o
legislador em impedir que um processo de carácter cognitivo - aquele por via do qual se vai
decidir uma questão controvertida, ainda que a título cautelar - fosse decidido por um
tribunal incompetente em razão do território, em clara violação do juiz natural. Aqui, sim, se
compreende a aludida preocupação legislativa, pois seria inútil ao requerido arguir a
incompetência territorial se só fosse citado depois… da decisão! Daí que o legislador tivesse a
preocupação de conceder ao juiz o poder-- e dever-- de controlar oficiosamente a
competência do tribunal.
Tal não ocorre na acção executiva, pois esta em si considerada não é um processo cognitivo
[Isto, porém, sem embargo de ser possível o enxerto de processos cognitivos ( enxertos
declarativos) na sua tramitação. Só que esses enxertos ou aparecem por iniciativa do
executado ou implicam logo a sua citação para a execução ( ver. Artº 804º-2 CPC). Pelo que
não será por aqui que se há-de verificar o conhecimento oficioso da eventual violação do artº
94º do CPC.
Sobre este tema dos enxertos declarativos na execução, ver Paulo Pimenta, Acções e
incidentes declarativos na dependência da execução, in A Reforma da acção executiva, vol.
II, Themis- revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano V, nº9, 2004, págs. 55 e segs].
Aqui, o que o executado não quererá é ver os seus bens penhorados. Mas, sendo-o, pouco
importa que sejam no tribunal A ou B, não se almejando que por o serem por um tribunal
incompetente as suas garantias sejam afectadas ou postas em causa.
Assim sendo, assiste inteira razão à agravante quando diz que “estando feita a penhora, ela
deve naturalmente manter-se, ainda que venha ser arguida a incompetência territorial e
ainda que os autos sejam remetidos para outro tribunal.
Remetem-se os autos, mas não ficam sem efeito as providências executivas (v.g. penhoras)
entretanto realizadas”.
Portanto, parece obvio que os processos executivos não cabem no âmbito da citada alínea b)
do artigo 110 do CPC.
E no que tange ao o artigo 94 n.º 1 do CPC, trazido igualmente à colação no despacho
recorrido, parece claro que tal normativo não rege para a questão que ora nos ocupa, isto é,
sobre o conhecimento oficioso da incompetência nas execuções. Apenas e só contém uma
regra geral sobre a competência territorial nos processos executivos.
E veja-se que, se no artº 110º do CPC se refere o artº 94º, nº 2, já não é feita referência ao
nº 1 deste mesmo preceito, donde também por aqui se concluir que não abrange as
execuções neste previstas - como o caso da sub judice (execução para pagamento de
quantia certa).
Escusadas são, portanto, mais considerações para se concluir que não podia o tribunal a quo
conhecer ex officio da incompetência territorial do tribunal. Só a podia conhecer caso fosse
suscitada nos autos. Mas não foi.
CONCLUINDO:
- A alínea b) do nº 1 do artº 110º do CPC-- que permite o conhecimento oficioso da questão
da competência em razão do território-- destina-se a acautelar casos excepcionais (mais
excepcionais, ainda, face à agora muito ampla previsão da alínea a)) em que um processo
cognitivo (um processo em que haja uma questão controvertida a apreciar) seja decidido
antes da citação da contraparte - daí a lei falar em decisão.
- Assim, nessa alínea b) - tal, aliás, como na alínea a) -- não se compreendem as execuções
que vêm reguladas no artº 94º, nº1 CPC (designadamente as execuções para pagamento de
quantia certa).
- Por isso, em tais processos executivos está vedado ao tribunal conhecer oficiosamente da
aludida incompetência relativa.
IV. DECISÃO:
Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em
conceder provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido que deverá ser
substituído por outro a ordenar o prosseguimento dos autos de execução.
Porto, 02 de Março de 2006
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
Agravo nº 221/06-5ª Sec.
Data – 06/03/2006
4676 (Boletim Interno nº 24)
COMPETÊNCIA MATERIAL
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
AUTARQUIA
RELAÇÃO JURÍDICA
Sumário
I - Estando em causa, na perspectiva dos demandantes uma questão de responsabilidade civil
extracontratual dos demandados – um Município e uma Junta de Freguesia – consubstanciada na
alegada violação culposa de direitos reais (água e servidão de aqueduto) em consequência de obra
pública (hidráulica) realizada por aquelas entidades, no âmbito da sua competência legal
(administrativa) é competente, em razão da matéria, a jurisdição administrativa.
II - No actual ETAF, contrariamente ao estatuído no anterior - art. 4º, nº1, al. f) - não estão excluídos
da jurisdição administrativa os recursos e acções que tenham por objecto questões de direito privado,
ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público.
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
1- RELATÓRIO
B.......... e marido C.......... com os sinais dos autos, intentaram a presente acção declarativa
de condenação, sob a forma de processo sumário, contra o Município .........., e a Freguesia
.........., do mesmo concelho, pedindo:
a) o reconhecimento da propriedade sobre os prédios, a água e levada a que aludem os arts.
5º, 7º e 9º, todos da P.I.;
b) o reconhecimento de uma servidão sobre essa mesma água;
c) o reconhecimento de que as obras levadas a cabo pelas rés impediram o acesso de tal
água aos prédios dos AA;
d) a condenação na reparação de tais construções por forma a permitir a livre passagem e
usufruição das águas.
Alegaram, em síntese, os factos atinentes ao seu domínio e direito de servidão e a violação
dos seus direitos originada pela obra efectuada pelas Rés, em 2003. Com essa obra as
demandadas pretendiam beneficiar a passagem hidráulica existente na Rua .........., ..........,
por forma a permitir, subterraneamente sob tal rua, o escoamento das águas pluviais. Para o
efeito, as Rés colocaram uma tubagem em betão a ligar a linha da água (dos AA) à levada
existente a Jusante. Contudo, tal obra originou um rebaixamento do leito do ribeiro em cerca
de um metro, o que implicou igualmente que a água aqui em causa passasse a transitar no
local cerca um metro abaixo do seu percurso normal, ficando os AA. privados da mesma.
Citadas, as Rés contestaram, excepcionando, além do mais, a incompetência deste tribunal,
em razão da matéria, para conhecer da presente acção, sendo competente o tribunal
administrativo.
Os autores apresentaram réplica.
**
Pronunciando-se sobre a invocada excepção dilatória, no despacho saneador, o julgador a
quo, ponderando que “Ou seja, ao efectuar tal obra, as RR agiram dentro do âmbito das
respectivas competências, porquanto a beneficiação de passagens hidráulicas cabe sob a sua
jurisdição, não sendo legalmente possível a um qualquer particular diligenciar pela sua
concretização. E, se assim é, necessário se toma concluir que as RR, ao efectuaram tal obra,
praticaram um acto de gestão pública por decorrer de um poder de imperium que lhes foi
atribuído”.
Em face do exposto, decidiu “se julga verificada a excepção de incompetência absoluta do
presente tribunal, em razão da matéria, para conhecer dos presentes autos e,
consequentemente, se absolvem as RR da instância - arts. 493º n.º 2, 494º n.º 1, al. a),
101º, 102º e 105º, todos do C.P.C.”.
**
Inconformados, os autores agravaram daquela decisão, tendo, nas suas alegações,
formulado as seguintes conclusões:
1ª- No presente processo, os AA. pedem a condenação do Município ........... e da Freguesia
da .......... a reconhecer que eles AA. são donos de determinados prédios, água e levada,
que fizeram obras que violam esse direito de propriedade e pedem a condenação dessas
autarquias a restituírem aos AA. os seus direitos assim perturbados, sem deduzirem
qualquer pedido indemnizatório, em sede de responsabilidade civil extracontratual, única
hipótese em que a sindicabilidade dos actos imputados às autarquias devia ser afecta aos
tribunais administrativos (art°. 4º n° 1, 81 do ETAF).
2ª- O despacho saneador recorrido julgou o tribunal comum incompetente em razão da
matéria para conhecer desses pedidos por entender que eles pressupõem a avaliação de
actos de gestão pública e a responsabilidade civil extracontratual das autarquias.
3ª- Crê-se que erradamente se decidiu, e o tribunal comum é competente para apreciar
esses pedidos, porquanto:
a) a competência dos tribunais administrativos depende da qualidade do autor do acto, e
cumulativamente, do tipo concreto da jurisdição que se visa actuar, da natureza do pedido
formulado, da análise da estrutura da relação jurídica controvertida (Cfr. entre muitos, o Ac.
Rel. de Coimbra de 2/3/1977 in Col. Jur. 1977,2°, pág. 253);
b) os pedidos em questão não implicam que o tribunal comum venha a sindicar a
responsabilidade civil extra-contratual das autarquias, ou o exercício de poderes públicos ou
a apreciar os pressupostos determinantes de qualquer decisão administrativa, visto que
apenas se há-de pronunciar - como se lhe pediu - sobre questões de puro direito privado.
4°- Pelo exposto, o despacho saneador recorrido julgando o tribunal comum incompetente
em razão da matéria para apreciar os pedidos formulados fez errada aplicação da lei e não
deve manter-se (violando o art°. 4° n° 18) do ETAF, os artºs. 66° e 67° do Código de
Processo Civil e o art°. 18° da LOFTJ).
Na resposta às alegações o agravado sustenta o acerto da decisão.
**
O julgador a quo sustentou a decisão.
**
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2- FUNDAMENTAÇÃO
2.1- OS FACTOS E O DIREITO APLICÁVEL
O objecto do recurso é balizado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo
este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de
conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 690º, nº 1 e 3, do C.P.Civil.
A matéria de facto a ter em conta, no que releva, é a que se antes deixou referida.
Nos arts. 211º, nº 1, e 212º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, estabelece-se a
competência dos tribunais judiciais e administrativos.
Tem-se entendido, na doutrina e na jurisprudência, que a competência do tribunal se afere,
por regra, pelos termos em que a acção foi proposta e pelo pedido do autor (v. g. o Ac. STJ,
CJ/STJ, 1997, I, 125). Preferimos, no entanto, na abordagem da competência material do
tribunal, o ajuizado no acórdão desta Relação, de 07/11/2000 (CJ, 2000, V, 184), no sentido
de que a competência material depende do thema decidendum concatenado com a causa de
pedir.
Nos termos do art. 66º, do CPC, são da competência dos tribunais judiciais as causas que
não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, designadamente à jurisdição administrativa
e fiscal que é exercida pelos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo DL nº Leis nº/s 13/2002, de 19/02,
alterada pelas Leis nº/s 4-A/2003, de 19/02 e 107-D/2003, de 31/12, em vigor desde
01/01/2004.
Não cabendo uma causa na competência de outro tribunal será a mesma da competência
(residual) do tribunal comum (artº 18º, nº 1, da Lei nº 3/99, de 13/01 e Acs. STJ, BMJ,
320º/390 e 364º/591).
Estatui-se no art. 1º, nº 1, do ETAF, que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal
são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo,
nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
No artº 4º do ETAF, estabelece-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal.
No actual ETAF, contrariamente ao estatuído no anterior (artº 4º, nº 1, al f)) não estão
excluídos da jurisdição administrativa os recursos e acções que tenham por objecto questões
de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público.
A propósito, refira-se o opinado pelos Profs. Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de
Almeida (Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª Ed., págs.
34/35):...“Nas propostas de lei que o Governo apresentou à Assembleia da República, foi
assumido o propósito de pôr termo a essas dificuldades” (suscitadas pela delimitação do
âmbito da jurisdição administrativa em matéria de responsabilidade civil e de contratos),
“consagrando um critério claro e objectivo de delimitação nestes dois domínios. A exemplo
do que, como vimos, acabou por suceder em matéria ambiental, o critério em que as
propostas se basearam foi o critério objectivo da natureza da entidade demandada: sempre
que o litígio envolvesse uma entidade pública, por lhe ser imputável o facto gerador do dano
ou por ela ser uma das partes no contrato, esse litígio deveria ser submetido à apreciação
dos tribunais administrativos. Propunha-se, assim, que a jurisdição administrativa passasse a
ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que
envolvessem pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber
se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito
privado... (...) Em defesa desta solução, sustentava-se na Exposição de Motivos do ETAF
que, se a Constituição faz assentar a definição do âmbito da jurisdição administrativa num
critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, a
verdade é que ela “não erige esse critério num dogma”, porquanto “não estabelece uma
reserva material absoluta”. Por conseguinte, “a existência de um modelo típico e de um
núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa
liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos
quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre
o direito público e o direito privado” (...) O art. 4º do ETAF só veio a consagrar, no essencial,
estas propostas no domínio da responsabilidade civil extracontratual. Já não no que toca aos
litígios emergentes de relações contratuais”...
Ensina Freitas do Amaral (Direito Administrativo, vol. III, p. 439) que a relação jurídico
administrativa é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse
público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres
públicos aos particulares perante a Administração.
Na definição de J.C. Vieira de Andrade (“A Justiça Administrativa” – Lições, 3ª Ed., 2000,
págs. 79), as relações jurídicas administrativas são “aquelas em que um dos sujeitos, pelo
menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público,
actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
Actos de gestão pública são os praticados pela Administração no exercício duma actividade
regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para o prosseguimento do interesse
público, discipline o seu exercício e organize os meios necessários para o efeito.
Para o Prof. A. Varela (RLJ, 124º/59) "actividades de gestão pública são todas aquelas em
que se reflecte o poder de soberania próprio da pessoa colectiva pública e em cujo regime
jurídico transparece, consequentemente, o nexo de subordinação existente entre os sujeitos
da relação, característico do direito público". Acrescenta ainda que "simplesmente, nem
todos os actos que integram gestão pública representam o exercício imediato do jus imperii
ou reflectem directamente o poder de soberania do próprio Estado e das demais pessoas
colectivas. Essencial para que seja considerada de gestão pública é que a actividade do
Estado (ou de qualquer outra entidade pública) se destine a realizar um fim típico ou
específico dele, com meios ou instrumentos também próprios do agente".
Em princípio, só interessa à justiça administrativa as relações administrativas públicas, as
reguladas por normas de direito administrativo, aquelas em que um dos sujeitos, pelo
menos, actue na veste de autoridade pública, munido de um poder de imperium, com vista à
realização do interesse público legalmente definido (citado Ac. RP, de 07/11/2000, que
seguimos de perto).
Por outro lado, será de gestão privada a actividade em que a pessoa colectiva, despida do
poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os
actos respeitam e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia
proceder o particular com submissão às normas de direito privado (BMJ 311º/195).
Feitas estas breves considerações de natureza normativa, doutrinal e jurisprudencial,
importaria saber se, em face do teor da petição, a relação jurídica estabelecida entre as
partes, designadamente pelas Rés, se reconduz à actividade de um serviço público
administrativo.
Aceita-se o ajuizado na decisão recorrida no sentido de que, no caso em apreço, ao
efectuarem a obra, “as Rés agiram dentro do âmbito das respectivas competências,
porquanto a beneficiação de passagens hidráulicas cabe sob a sua jurisdição, não sendo
legalmente possível a um qualquer particular diligenciar pela sua concretização”.
Trata-se, assim, de um acto de gestão pública.
A questão (gestão pública/gestão privada) seria relevante caso a acção tivesse sido
instaurada antes de 01/01/2004, data da entrada em vigor do novo ETAF, como vimos.
Com efeito, no termos do estatuído na al. g), do citado art. 4º, nº 1, do ETAF em vigor,
compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que
tenham nomeadamente por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a
responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a
resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.
A partir da entrada em vigor da citada lei, todas as acções por responsabilidade civil
extracontratual das pessoas colectivas de direito público são da competência dos tribunais
administrativos.
Aliás, das “Linhas Gerais da Reforma do Contencioso Administrativo” (cfr. Reforma do
Contencioso Administrativo, Colectânea de Legislação, Ministério da Justiça, pág. 13), deduzse explicitamente que tenha sido esse um dos objectivos da reforma, pois aí se deixa
expressa a seguinte afirmação: «... o ETAF também atribui competência aos tribunais da
jurisdição administrativa para apreciarem todos os pedidos indemnizatórios fundados em
responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas públicas, eliminando o actual
critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido,
causador de grandes incertezas na determinação do tribunal competente...» .
É essa a doutrina defendida por Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida (ob. cit.,
pág. 36):”Compete, assim, à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de
responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da
questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de
uma actuação de gestão privada: a distinção deixa de ser relevante, para o efeito de
determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição
administrativa”.
Ora, no caso, atento o alegado na petição, está em causa uma questão de responsabilidade
civil extracontratual das demandadas, a saber, a violação danosa dos alegados direitos reais
(água e servidão de aqueduto) dos demandantes, que pretendem a reparação ou
reconstituição dos mesmos (ver arts. 483º, nº 1, 562º, 1305º, 1315º e 1547º, do CC), em
consequência da obra pública (hidráulica) realizada pelas Rés, no âmbito da sua competência
legal (administrativa).
Em suma, pensamos que o despacho recorrido não merece censura, se bem que a
fundamentação vertida neste acórdão, no sentido do reconhecimento da competência
material do foro administrativo para conhecer desta acção, não seja inteiramente coincidente
com a motivação adoptada na decisão da 1ª instância.
Improcedem, assim, as conclusões do recurso.
3- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em negar provimento ao agravo,
confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos agravantes.
Porto, 6 de Março de 2006
Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingues
José António Sousa Lameira
Agravo nº 367/06-3ª Sec.
Data – 16/02/2006
4684 (Boletim Interno nº 24)
INSOLVÊNCIA
EMPRESA
COMPETÊNCIA
Sumário
A detenção de uma quota numa sociedade comercial por quotas por parte de uma pessoa singular cuja
insolvência foi requerida, não implique a integração pela massa patrimonial do insolvente da sociedade
mas, e apenas, da respectiva quota.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
A B.........., S.A. intentou a presente acção especial de insolvência contra C.........., pedindo
que se declare a insolvência do requerido, com as legais consequências.
Alegou, resumidamente, que o requerido é sócio de duas sociedades por quotas e no
exercício da sua actividade comercial contraiu múltiplas dívidas que não pagou.
Nomeadamente, aceitou quatro letras, respectivamente, de 3.500.000$00, com vencimento
em 28.2.1993, de 3.000.000$00, com vencimento em 31.3.1993, de 800.000$00 e de
400.000$00, com vencimento em 15.5.1993, que não foram pagas.
Também avalizou uma livrança de 2.500.000$00, vencida em 31.1.1993, igualmente não
paga.
Nas execuções que correm contra o requerido e outros, por causa das enunciadas dívidas,
foram nomeados à penhora bens imóveis, móveis e direitos, sendo que quando se tentou o
registo da penhora dos imóveis já os mesmos haviam sido transmitidos para terceiros; e
quanto aos móveis e direitos, os mesmos não tinham expressão económica, pelo que a
requerente não recebeu nada.
Há insuficiência ou inexistência de bens penhoráveis e o requerido não dispõe de meios que
lhe permitam cumprir as suas obrigações.
Também as quotas sociais que detém nas duas sociedades por quotas não têm qualquer
valor, encontrando-se as mesmas fora de actividade.
II.
Foi proferido nos Juízos Cíveis do Porto despacho que considerou que os autos eram da
competência do tribunal do comércio, por via do disposto no art. 89.º/1-a) da Lei 3/99, de
13.1, na redacção do DL 53/2004, de 18.3, pelo que julgou os tribunais cíveis incompetentes
em razão da matéria, absolvendo o R. da instância.
III.
Recorreu a B......, S.A., concluindo como segue a sua alegação:
1.º. O património conhecido do recorrido é constituído por duas quotas: uma de
7.000.000$00 na sociedade D.........., Lda e outra de 375.000$00 na sociedade E..........,
Lda.
2.º. Estas sociedades encontram-se inactivas, não tendo, por isso, as suas quotas qualquer
valor comercial relevante.
3.º. A massa insolvente seria constituída pelas quotas acima descritas.
4.º. O art. 5.º do CIRE define empresa como “toda a organização de capital e de trabalho
destinada ao exercício de qualquer actividade económica”.
5.º. Ora, a simples participação no capital social de uma sociedade (quota) não integra o
conceito de empresa definido no CIRE, pelo que a massa insolvente do recorrido não
integraria qualquer empresa.
6.º. Logo, o disposto na al. a) do n.º 1 do art. 89.º da Lei 3/99, de 13.1 (redacção do DL
53/2004, de 18.3) não tem aplicação ao caso concreto, sendo, por isso, competente para
preparar e julgar a presente acção o tribunal cível, à luz do disposto no art. 7.º do CIRE.
Pede a revogação do despacho.
O Sr. Juiz sustentou o decidido.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Os factos com interesse são os que supra se deixaram referidos.
IV.
A única questão suscitada é da competência do tribunal cível para conhecer desta acção.
Na sua versão anterior, o art. 89.º/1-a) da Lei 3/99, de 13.1 dispunha que «Compete aos
tribunais de comércio preparar e julgar: Os processos especiais de recuperação da empresa
e de falência».
No entanto, com o DL 53/2004, de 18.3, que aprovou o Código da Insolvência e da
Recuperação de Empresas, foi alterada a mencionada norma que, de acordo com o art. 8.º
do referido diploma, passou a ter a seguinte redacção:
«Compete aos tribunais do comércio preparar e julgar: O processo de insolvência se o
devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa».
Segundo Carvalho Fernandes e João Labareda, Cód. Da Insolvência e da Recuperação de
Empresas Anotado, I, Quid Júris, pág. 45, a alteração em causa envolve dois aspectos
diferentes: para harmonizar com o novo código, em vez de «processos especiais de
recuperação da empresa e de falência», passou a dizer-se «processos de insolvência»; para
além disso, a competência dos tribunais de comércio restringiu-se aos processos em que o
devedor seja uma sociedade comercial ou na massa insolvente se abranja uma empresa,
pois, quanto aos demais, correm nos tribunais de competência genérica.
Torna-se, por conseguinte, necessário apurar se na massa insolvente se abrange uma
empresa, porquanto a primeira hipótese está excluída por o devedor não ser uma sociedade
comercial.
A resposta tem de buscar-se na p.i., para saber em que termos a acção foi proposta.
A acção foi proposta contra o requerido e é a declaração de insolvência do mesmo que a A.
pretende.
No art. 14.º da p.i. escreve a demandante que «O requerido não tem qualquer património
além da quota de Esc. 7.000.000$00 na D.........., Lda e da quota de Esc. 375.000$00 na
sociedade E.........., Lda, sociedades estas que nem sequer se encontram em actividade, não
tendo aquelas quotas qualquer valor».
No despacho agravado considerou-se que a massa insolvente integrava uma empresa, daí
que se julgasse o respectivo tribunal cível incompetente em razão da matéria.
A agravante tem entendimento diverso, consistente em a titularidade pelo requerido de duas
quotas societárias, uma em cada uma das indicadas sociedades, não caber da previsão da
norma.
Em abono da sua tese esgrime com o art. 5.º do CIRE, que dá a seguinte noção de empresa:
«Para efeitos deste Código, considera-se empresa toda a organização de capital e de
trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica».
A mera análise literal do preceito permite concluir, como o fazem os autores citados, o.c.,
pág. 81, que a noção nele dada reveste índole eminentemente pragmática, válida apenas no
âmbito desse Código, sem que necessariamente lhe deva ser imputada outra pretensão ou
alcance jus-científico.
Na pág. 82, refere-se na mesma obra, que para que a empresa deva ser tida em conta, com
os efeitos que lhe estão ligados pela lei, basta que integre a massa patrimonial de uma
qualquer das entidades consideradas no art. 2.º, relativamente à qual, por iniciativa própria,
ou por requerimento de outros legitimados, é aberto um processo de insolvência.
O art. 2.º/1 enumera os sujeitos passivos da declaração de insolvência, que tanto podem ser
pessoas singulares como colectivas (al. a)), como sociedades comerciais (1.ª parte da al.
e)).
Posto isto, há que assentar se as sociedades mencionadas, nas quais o requerido possui uma
quota, integram ou não a massa patrimonial dos seus bens.
E a conclusão há-de ser negativa, pois que ele não é dono das empresas mas sócio-gerente
da D.........., Lda – cfr. certidão de fls. 31 – e da E.........., Lda – cfr. certidão de fls. 35.
A requerente não está a invocar um crédito social, mas um crédito pessoal sobre o
requerido, sem que se esteja perante sociedades unipessoais por quotas – art. 270.º-A e ss.
do CSC.
O n.º 3 do art. 197.º do mesmo diploma legal, estabelece que «Só o património social
responde para com os credores pelas dívidas da sociedade, salvo o disposto no artigo
seguinte».
Por aqui se vê que se não confunde o património social com o património pessoal do sócio.
Com efeito, as sociedades gozam de personalidade jurídica – art. 5.º - assim como de
capacidade – art. 6.º, ambos do mesmo diploma.
Daí que a detenção de uma quota numa sociedade comercial por quotas por parte de uma
pessoa singular cuja insolvência foi requerida, não implique a integração pela massa
patrimonial do insolvente da sociedade mas, e apenas, da respectiva quota.
Face ao exposto, dando provimento ao agravo, revoga-se o despacho em crise e determinase a sua substituição por outro que considere o tribunal cível competente e mande
prosseguir os autos.
Sem custas.
Porto, 16 de Fevereiro de 2006
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira
Agravo nº 818/06-5ª Sec.
Data – 03/04/2006
4786 (Boletim Interno nº 25)
COMPETÊNCIA MATERIAL
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
RATIFICAÇÃO
EMBARGO DE OBRA NOVA
MUNICÍPIO
Sumário
Compete à jurisdição administrativa – art. 4º, nº1, al. g) do ETAF: - o julgamento das questões que
tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público
pelos danos decorrentes da sua actividade de gestão pública;
- o julgamento das questões que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual das
pessoas colectivas de direito público pelos danos decorrentes da sua actividade de gestão privada;
- o julgamento das questões relativas à responsabilidade civil extracontratual pelos danos resultantes do
exercício da função jurisdicional e legislativa.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
B………. intentou, em 7-11-05, no Tribunal Judicial de Castro Daire, providência cautelar com
vista à ratificação de embargo de obra nova, contra o MUNICÍPIO DE CASTRO DAIRE.
Alega que o requerido, com a realização de obras que está a levar a cabo, designadamente o
alargamento de passeios, ocupou cerca de 10 m2 do prédio de que é proprietária.
Em despacho liminar decidiu-se ser o tribunal comum incompetente, em razão da matéria,
para conhecer do pedido, pelo que foi indeferido o procedimento requerido.
Inconformada, a requerente interpôs recurso.
Concluiu assim:
-o recorrido invadiu, através de funcionários seus ou de seu mando, a propriedade da
recorrente, nele tendo feito um muro de suporte no passeio que anda a construir junto à
estrada;
-este acto do recorrido não foi precedido de qualquer deliberação da sua Câmara;
-tal actuação violou o direito de propriedade da recorrente, o que constitui crime;
-para decidir esta actuação do recorrido o tribunal competente é o comum;
-por tal motivo é este o tribunal competente para apreciar o pedido formulado na presente
providência cautelar de ratificação de embargo de obra nova;
-foi violado o disposto nas disposições legais citadas no despacho recorrido.
*
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
*
Questão a decidir: tribunal competente, em razão da matéria, para apreciar a providência
requerida.
*
*
Matéria de facto relevante alegada:
-a requerente é dona de um prédio urbano, com 120 m2, sito no Bairro ………., Castro Daire,
descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº00988/190592;
-o requerido anda a fazer obras de melhoramento na vila de Castro Daire, inclusive o
alargamento de passeios e o calcetamento dos mesmos;
-junto àquele seu prédio, e na parte em que este confina pelo nascente com a Estrada
Nacional, o requerido alargou o passeio que se situa de permeio;
-tendo entrado naquele prédio da requerente;
-nele construiu um muro de betão;
-soterrando o muro em pedra que lá existia, de suporte ao anterior;
-sem qualquer autorização da requerente;
-o que lhe ocupa cerca de 10 m2 daquela sua propriedade.
*
*
Nos termos do disposto no art.1º, nº1, do ETAF, aprovado pela Lei nº13/02 de 19/2, “os
tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os orgãos de soberania com competência
para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais”. Sobre o conceito de relação jurídica administrativa veja-se, entre
outros, Vieira de Andrade in A Justiça Administrativa, 62.
Esta cláusula geral é, em parte, concretizada pela enumeração positiva e negativa constante
do art.4º daquele diploma legal. Mas aquela enumeração positiva também atribui, noutra
parte, competências, além das referidas naquela cláusula, assim como a enumeração
negativa também restringe competências, além das referidas na mesma cláusula- Vieira de
Andrade, ob. cit., 117.
E dispõe o art.4º, nº1, al. g), da referida Lei nº13/02, na referida enumeração positiva, que
compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que
tenham nomeadamente por objecto “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a
responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a
resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”.
Escreveu-se, a este propósito, in Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo,
de Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, pág. 34, que “nas propostas de lei que o Governo
apresentou à Assembleia da República, foi assumido o propósito de pôr termo a essas
dificuldades, consagrando um critério claro e objectivo de delimitação nestes dois domínios.
A exemplo do que, como vimos, acabou por suceder em matéria ambiental, o critério em que
as propostas se basearam foi o critério objectivo da natureza da entidade demandada:
sempre que o litígio envolvesse uma entidade pública, por lhe ser imputável o facto gerador
do dano ou por ela ser uma das partes no contrato, esse litígio deveria ser submetido à
apreciação dos tribunais administrativos. Propunha-se, assim, que a jurisdição administrativa
passasse a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil
que envolvessem pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de
saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de
direito privado...Em defesa desta posição sustentava-se na Exposição de Motivos do ETAF
que, se a Constituição faz assentar a definição do âmbito da jurisdição administrativa num
critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, a
verdade é que ela “não erige esse critério num dogma” porquanto “não estabelece uma
reserva material absoluta”. Por conseguinte, “a existência de um modelo típico e de um
núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa
liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos
quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre
o direito público e o direito privado”...O art.4º do ETAF só veio a consagrar, no essencial,
estas propostas no domínio da responsabilidade civil extracontratual. Já não no que toca aos
litígios emergentes de relações contratuais...”.
E a fls 62 da mesma obra escreveu-se: “pese embora o reconhecimento do princípio de que
os tribunais administrativos já podiam, até aqui, conceder providências cautelares não
especificadas, recorrendo para o efeito, à aplicação subsidiária do CPC, a verdade é que, na
prática, a tutela cautelar no contencioso administrativo português continuou, até hoje, a
centrar-se essencialmente no instituto da suspensão da eficácia dos actos administrativos
que, como é sabido, padece de evidentes insuficiências...O CPTA, nesta matéria, estabelece,
no art.112º, que os tribunais administrativos passam a poder adoptar toda e qualquer
providência cautelar, antecipatória ou conservatória, que se mostre adequada a assegurar a
utilidade da sentença a proferir num processo principal- com o que se limita, de resto, a dar
cumprimento ao que, neste preciso sentido, determina o art.268º da CRP”.
Em consonância com este elemento histórico, há o facto de ter desaparecido a referência
constante do art.4º, al. f), do antigo ETAF que excluía da jurisdição dos tribunais
administrativos e fiscais o julgamento das “questões de direito privado, ainda que qualquer
das partes seja pessoa de direito público”.
Ora, conjugando a interpretação literal do art.4º, nº1, al. g), do ETAF, o elemento histórico
acima referido, bem como a eliminação da referência acima citada, conclui-se que compete à
jurisdição administrativa, nos termos daquela disposição legal:
-o julgamento das questões que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual
das pessoas colectivas de direito público pelos danos decorrentes da sua actividade de
gestão pública;
-o julgamento das questões que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual
das pessoas colectivas de direito público pelos danos decorrentes da sua actividade de
gestão privada;
-o julgamento das questões relativas à responsabilidade civil extracontratual pelos danos
resultantes do exercício da função jurisdicional e legislativa.
Assim, estando em causa nesta providência uma questão de responsabilidade civil
extracontratual imputada ao Município de Castro Daire- alegada realização de obras que
lesam o direito de propriedade da requerente- é competente para a apreciação da mesma a
jurisdição administrativa, sendo irrelevante a existência, ou não, de deliberação camarária
para o efeito.
Pelo que é de manter a decisão recorrida.
*
*
Acorda-se, em face do exposto, em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão
recorrida.
Custas pela recorrente.
Porto, 3 de Abril de 2006
Abílio Sá Gonçalves Costa
António Augusto Pinto dos Santos Carvalho
Baltazar Marques Peixoto
Agravo nº 6277/05-2ª Sec.
Data – 04/04/2006
4791 (Boletim Interno nº 25)
TRIBUNAL COMPETENTE
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Sumário
Na sua actual redacção, o art. 74.º n.º1 do CPC, determina a competência territorial das acções de
apreciação da validade da resolução dos contratos e de condenação em obrigações dela decorrentes, ao
contrário da redacção antecedente.
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I. RELATÓRIO
“B………., Lda.”, com sede em ………., ………., Paços de Ferreira, propôs no Tribunal Judicial de
Paços de Ferreira, acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum
ordinário, contra “C………., S.A.”, com sede em ………., ………., Coimbra, pedindo que:
a) seja declarada legítima a resolução do contrato efectuada pela Autora;
b) seja a Ré condenada no pagamento à Autora da quantia global de € 53.331,00;
c) seja a Ré condenada no pagamento à Autora de juros de mora calculados à taxa legal
anual de 12% desde a citação da Ré até integral e efectivo pagamento.
Para tanto, alegou a Autora que:
- Em 9 de Maio de 1997 a Autora e a Ré celebraram um contrato verbal, por tempo
indeterminado, segundo o qual a Autora assumiria a qualidade de agente distribuidor, em
exclusividade para a Zona Norte do País, dos produtos representados e importados pela Ré.
- Como contrapartida financeira, a Ré obrigou-se a pagar-lhe uma comissão anual
correspondente a 5% sobre o valor das vendas promovidas por si em cada ano, sendo que o
pagamento dessa comissão teria lugar no 1º trimestre do ano subsequente àquele a que
respeitassem as vendas, através da emissão de uma nota de crédito a favor da Autora.
- Até meados de Agosto de 2003, o contrato foi sendo cumprido por ambas as partes.
- Violando o contrato que tinha celebrado com a Autora, a Ré passou a vender os seus
produtos directamente aos clientes angariados pela Autora na zona norte do país, praticando
preços mais baixos e condições de pagamento mais vantajosas para os compradores.
- Além disso, a Ré começou a colocar entraves ao cumprimento dos pedidos de encomendas
efectuadas pela Autora.
- Por isso, a Autora procedeu à resolução do contrato através de carta registada com aviso
de recepção enviada à Ré em 31.04.2004.
- A Autora auferia uma remuneração média anual de € 8.889,00, na qual se computa a
indemnização pelo não cumprimento do contrato.
- Tendo em conta essa remuneração, deve ainda ser atribuída à Autora uma indemnização
de clientela no valor de € 44.445,00, de acordo com o estabelecido nos arts. 32º, n.º 2 e 33º
do DL 178/86, de 3 de Julho, com a redacção do DL 118/83, de 13 de Abril.
Na contestação a Ré suscitou as seguintes questões:
A. A incompetência territorial do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira;
B. A ineptidão da petição inicial.
C. A litispendência.
No que concerne à questão da incompetência territorial – única que aqui interessa como
mais adiante se verá – a Ré defende que o tribunal competente para a acção é o da Vara
Mista de Coimbra, referindo que tal decorre da regra geral plasmada no art. 85º do CPC,
segundo a qual o tribunal competente para a acção é o do domicílio do Réu. Mas – prossegue
– mesmo que se entenda ser aplicável o art. 74º, ainda assim a acção teria de ser proposta
no Tribunal de Coimbra, uma vez que é esse o lugar onde a eventual obrigação deveria ser
cumprida.
A Autora, na réplica, insiste que o tribunal competente é o de Paços de Ferreira.
No despacho saneador a Mmª Juiz julgou improcedente a excepção da incompetência
territorial, julgando também improcedente a demais defesa por excepção articulada pela Ré
(ineptidão da petição inicial e litispendência).
A Ré interpôs recurso do despacho saneador.
O recurso foi admitido como de agravo, com subida imediata e em separado no que respeita
à questão da incompetência territorial e com subida diferida em relação às outras duas
questões apreciadas no saneador.
Ao presente recurso de agravo foi atribuído efeito meramente devolutivo – v. fls. 98/99.
Nas alegações do agravo relativas à incompetência territorial do Tribunal Judicial de Paços de
Ferreira, a agravante formula as seguintes conclusões:
1. Ao contrário do decidido no despacho em crise, o tribunal competente para a acção não é
o Tribunal Judicial da Comarca de Paços de Ferreira, mas sim o Tribunal da Vara Mista de
Coimbra. Com efeito,
2. Por um lado, a agravada na sua p.i. formula pedidos, tais como o da legitimidade da
resolução do contrato em questão e o da indemnização, pedidos esses decorrentes daquele
contrato, que constituem, portanto, obrigação de indemnização e não obrigação pecuniária.
3. Consequentemente, o Tribunal do domicílio da agravante, ou seja, o de Coimbra, é o
competente, já que a acção deveria, além do já referido, ser cumprida em Coimbra, nos
termos do art. 74º do CPC. E
4. Por outro lado, como a própria recorrida afirma no art. 6º da sua p.i., o local de
cumprimento da obrigação era Coimbra, o que expressa, de forma inequívoca, a sua vontade
quanto ao lugar do cumprimento da obrigação.
Sem prescindir:
5. Acresce que, não estando em causa uma obrigação pecuniária, e não tendo sido
estipulado o lugar do cumprimento, a prestação deve ser efectuada no domicílio do devedor,
isto é, da agravante, atento o disposto no art. 772º do CC, pelo que, portanto, não pode
aplicar-se o art. 774º desse Código, sendo o Tribunal competente o de Coimbra.
6. Finalmente, considerando o principal e primeiro pedido deduzido pela agravada – o da
legitimidade da resolução do contrato – estamos perante uma acção de apreciação e, por
conseguinte, dado o estipulado no art. 86º do CPC é competente para a acção o Tribunal da
sede da agravante, ou seja, o de Coimbra.
7. Deste modo, o despacho recorrido violou o disposto nos arts. 74º e 86º do CPC, 772º e
774º do CC, pelo que deverá ser revogado, e julgada procedente a excepção da
incompetência relativa do tribunal, com a consequente remessa do processo ao Tribunal da
Vara Mista de Coimbra, por ser o competente.
A agravada não contra-alegou.
A fls. 31, a Mmª Juiz sustentou o despacho recorrido.
Foram colhidos os vistos legais.
*
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente – arts. 684º, n.º 3 e
690º do CPC – a única questão em debate é a de saber qual o tribunal competente para a
demanda.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos que interessam à decisão do recurso são os que constam do antecedente relatório.
O DIREITO
A competência territorial do tribunal afere-se pelo “quid disputatum”.
É, portanto, o pedido do demandante que determina a competência territorial do tribunal.
No caso vertente, a Autora pede, em primeira linha, que se declare legítima a resolução do
contrato de agência que verbalmente celebrara com a Ré.
Tratando-se – como se trata – de um contrato bilateral, a lei prevê, no art. 801º, n.º 2, do
CC, que o contraente adimplente formule pedido de indemnização derivado do
incumprimento, pedido esse que se cumula ao pedido principal de resolução do contrato.
Foi isso o que a Autora fez.
De facto, além de pedir a declaração de que a resolução contratual foi legítima, a Autora
deduziu contra a Ré um pedido de indemnização pelo incumprimento desse contrato e pela
perda de clientela, além dos respectivos juros de mora.
Mas o pedido de declaração da validade da resolução do contrato figura como pedido
principal, uma vez que a sua eventual improcedência dita o insucesso dos restantes pedidos.
Por isso é que o art. 87º, n.º 3, do CPC determina que quando se cumulem pedidos entre os
quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a acção ser proposta no
tribunal competente para a apreciação do pedido principal.
Antes da reforma de processo civil operada pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, a
doutrina e a jurisprudência entendiam, a uma voz, que nas acções em que se formulasse tal
pedido a competência territorial era determinada pela regra geral do art. 85º, n.º 1, do CPC.
O tribunal competente seria o do domicílio do réu – v. Anselmo de Castro, “Direito Processual
Civil Declaratório”, Vol. II, pág. 61 e Ac. desta Relação de 19.10.1999,no processo n.º
9720890, em www.dgsi.pt
Tal entendimento radicava na inexistência de previsão legal específica sobre a matéria e na
inaplicabilidade do art. 74º (na redacção então vigente) porquanto o estabelecido nesta
norma apenas comportava as acções de exigência do cumprimento de obrigações e de
indemnização pelo não cumprimento.
Porém, o art. 74º, n.º 1, na actual configuração, preceitua o seguinte:
“A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não
cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de
cumprimento será proposta, à escolha do credor, no tribunal do lugar em que a obrigação
deva ser cumprida ou no tribunal do domicílio do réu”.
Como observa Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pág. 146, no dito
preceito incluem-se, agora, as acções de apreciação da validade da resolução e de
condenação em obrigações dela decorrentes.
Portanto, o credor pode escolher o tribunal onde irá propor a acção, dentro dessas duas
opções: o tribunal onde a obrigação deva ser cumprida ou o tribunal do domicílio do réu – v.
Ac. desta Relação de 13.03.2000, no processo n.º 0050071, em www.dgsi.pt.
O domicílio da Ré é em Coimbra e já vimos que a Autora não escolheu esse tribunal para a
demanda.
Qual será então o tribunal onde deve ser cumprida a obrigação decorrente da resolução do
contrato?
Sobre tal matéria a Autora nada alegou na petição inicial (o art. 6º da p.i. nada indica de
concreto, ao contrário do que afirma a recorrente) e é também verdade que nada foi
convencionado sobre esse ponto (pelo menos, segundo a própria alegação da Autora, dado
que se trata de um contrato verbal). Por outro lado, o diploma que, numa primeira
abordagem, parece regular o contrato em questão (DL 178/86), também não dá qualquer
contributo para a resolução do problema.
Teremos, então, de recorrer às regras supletivas do CC.
O pedido principal, formulado sob da alínea a) do petitório, é – como se viu – de simples
reconhecimento judicial da validade da resolução contratual já comunicada pela Autora à Ré,
pois, como se sabe, a resolução do contrato opera independentemente do processo, salvo os
casos em que a lei exige a sua efectivação por via judicial (art. 436º, n.º 1, do CC).
Mas a Autora, em consequência do incumprimento contratual da Ré que originou a resolução
do contrato, reclama desta o pagamento de uma indemnização – cfr. al. b) do petitório.
A obrigação de indemnização é uma obrigação pecuniária, já que tem por objecto certa
quantia em dinheiro.
Assim, de acordo com a norma do art. 774º do CC, a respectiva prestação deve ser
efectuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do seu cumprimento.
Como o domicílio do credor é em Paços de Ferreira, não há a mínima dúvida de que é o
tribunal dessa cidade o territorialmente competente para a acção em causa.
*
III. DECISÃO
Em conformidade com o que se deixou exposto, nega-se provimento ao agravo, mantendose o despacho recorrido.
*
Custas pela agravante.
*
Porto, 4 de Abril de 2006
Henrique Luís de Brito Araújo
Afonso Henrique Cabral Ferreira
Alziro Antunes Cardoso
Agravo nº 1866/06-3ª Sec.
Data – 20/04/2006
4796 (Boletim Interno nº 25)
INTERDIÇÃO
ACÇÃO ESPECIAL
COMPETÊNCIA
Sumário
São os seguintes os procedimentos de competência relativamente à acção especial de interdição:
1.º. Deve a mesma ser interposta nos juízos cíveis, por poder acontecer que, por falta de oposição, se
não perspective a intervenção do tribunal colectivo;
2.º. Havendo contestação, seguem-se os demais articulados previstos para o processo ordinário e,
findos os mesmos, a acção será remetida às varas para posterior desenvolvimento;
3.º. Não havendo contestação e fornecendo o interrogatório e o exame do arguido elementos
suficientes, será o juiz singular (juízos cíveis) a decretar imediatamente a interdição;
4.º. Não havendo contestação, mas não fornecendo o interrogatório e exame elementos suficientes, por
imposição do n.º 2 do art. 952.º, conjugado com o n.º 5 do art. 646.º, os autos serão remetidos às
varas, para que o juiz respectivo presida ao desenvolvimento posterior dos autos.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
O M.ºP.º intentou nas Varas Cíveis do Porto acção com processo especial para interdição por
anomalia psíquica contra B………., pedindo se decrete a interdição da requerida, com todas as
consequências legais.
II.
Procedeu-se à publicação de anúncios e determinou-se a citação da requerida, mediante
contacto pessoal com a mesma.
O oficial de justiça lavrou a certidão negativa de fls. 33, após ter constatado a incapacidade
da requerida para receber a citação.
III.
Foi nomeado curador provisório à requerida, o qual foi citado para, querendo, em
representação da mesma, contestar a acção.
Não foi oferecida contestação.
IV.
O Sr. Juiz proferiu despacho em que declarou incompetente a 6.ª Vara Cível para a
tramitação e subsequente decisão da acção, considerando que essa competência cabe aos
Juízos Cíveis do Porto.
V.
O M.ºP.º recorreu, concluindo como segue a sua alegação:
1.º. Do teor do disposto nos art.s 17.º da LOFTJ (Lei 3/99, de 13.1) e 62.º/2 do CPC, resulta
que no âmbito da actual lei orgânica dos tribunais judiciais, a competência em função da
forma do processo não é um critério determinativo da competência jurisdicional, já que
aquele preceito lhe não faz qualquer referência.
2.º. Posto isto, cumpre averiguar se o processo especial de interdição por anomalia psíquica
é da competência das varas cíveis, pois se o não for, então é da competência dos juízos
cíveis, atento o disposto no art. 99.º da LOFTJ.
3.º. Às varas cíveis compete, no que agora nos interessa, a preparação e julgamento das
acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do Tribunal da Relação em que a lei
preveja a intervenção do tribunal colectivo – cfr. art. 97.º/1-a) da LOFTJ.
4.º. Não se exige, pois, a efectiva intervenção do tribunal colectivo, sendo suficiente a mera
previsibilidade, possibilidade ou probabilidade desse tribunal ser chamado a intervir.
5.º. Também não se exige que as acções sejam declarativas comuns, logo, as acções
declarativas cíveis especiais (nelas se incluindo as acções de interdição) que tenham valor
superior à alçada da Relação e em que a lei preveja a mera possibilidade de intervenção do
tribunal colectivo são da competência originária das varas cíveis.
6.º. A presente acção, apesar de seguir a forma de processo especial e se regular pelas
disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns, e no que nestas não
estiver prevenido, pelas disposições do processo ordinário, é uma acção declarativa cível de
valor superior à alçada da Relação – cfr. art.s 138.º a 151.º do CC e 312.º do CPC, já que é
uma acção sobre o estado das pessoas e, por isso, excede o valor da alçada da Relação – e
em que a lei prevê a possibilidade de intervenção do tribunal colectivo – cfr. art.s 952.º/2 e
646.º/1 do CPC.
7.º. Portanto, ab initio, a competência para preparar e julgar as acções especiais de
interdição é das varas cíveis e não dos juízos cíveis.
8.º. Por isso, não há aqui lugar à aplicação do n.º 4 do art. 97.º da LOFTJ, ao contrário do
defendido pelo Sr. Juiz, o qual se aplica àqueles processos que originariamente não eram da
competência das varas, nomeadamente, porque o seu regime jurídico processual é muito
específico, como acontece, por exemplo, com o processo de expropriação, que tem uma fase
administrativa (até ser interposto recurso da arbitragem) e uma fase judicial, nesta se
prevendo a intervenção do tribunal colectivo (cfr. art.s 58.º e 60.º do CExp. Aprovado pela
Lei 168/99, de 18/9), independentemente do valor, a requerimento dos expropriados ou do
expropriante.
9.º. Assim, ao julgar incompetente a vara, o despacho em recurso violou as normas contidas
nos art.s 97.º/1-a) e 99.º da Lei 3/99, de 13.1, 138.º a 151.º do CC, 312.º, 952.º/2 e
646.º/1 do CPC.
10.º. Deve ser substituído por outro que considere competentes as varas cíveis para
conhecer da presente acção especial de interdição, no caso a 6.ª Vara Cível do Porto, 2.ª
secção, à qual foi distribuída.
O Sr. Juiz sustentou o seu despacho.
VI.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Os factos com interesse são os que se deixam supra relatados.
A questão colocada é a de saber se é competente para o prosseguimento dos autos a 6.ª
Vara Cível ou os juízos cíveis.
VII.
Segundo a posição assumida no despacho impugnado, a acção devia ter sido intentada nos
juízos cíveis, porque na altura da sua interposição ainda não se sabia se ia ou não ser
contestada, e só perante a existência de contestação é que o n.º 2 do art. 952.º do CPC
prevê que se sigam os termos do processo ordinário, posteriores aos articulados.
Concordamos com este entendimento.
Não deixa de causar alguma estranheza que uma acção desta natureza possa ser decidida
fora do formalismo do processo ordinário, dado que não estamos perante uma acção
qualquer, mas perante uma acção de estado, cujo melindre é manifesto, porquanto se vai
cercear o exercício de direitos a determinada pessoa, em virtude de se encontrar afectada de
anomalia do foro psicológico.
Por conseguinte, tendo como suporte o disposto no art. 948.º do CPC, a lei adjectiva encerra
a ideia de que a acção se equipara a uma acção ordinária, porquanto dispõe este preceito
que «À contestação, quando a haja, seguir-se-ão os demais articulados admitidos em
processo ordinário».
Todavia, o desenvolvimento da acção como ordinária só acontece quando haja contestação,
primeiro através do oferecimento dos articulados admitidos nessa forma de processo (art.
948.º), depois mediante a prática dos termos do processo ordinário, posteriores aos
articulados (art. 952.º/2).
No caso inverso, isto é, não havendo contestação, após o interrogatório (art. 950.º) e o
exame pericial (art. 951.º), se estes fornecerem elementos suficientes, pode o juiz decretar
imediatamente a interdição (n.º 1 do art. 952.º).
Quer dizer que, para se decretar imediatamente a interdição, não basta que a acção não
tenha sido contestada, sendo ainda necessário que o interrogatório e o exame forneçam
elementos suficientes. O que aponta para uma evidência relativamente à necessidade da
interdição, que dispensa um formalismo mais rigoroso, nomeadamente por atribuição da
competência a um tribunal pensado para formas de processo mais solenes, relacionadas com
a complexidade dos litígios que lhe são submetidos.
Portanto, a competência inicial para estas acções, dado que só a partir da fase da
contestação se tem a certeza sobre se se vai ou não seguir a forma de processo ordinária,
com possibilidade de intervenção do tribunal colectivo, parece dever ser atribuída aos juízos
cíveis, por força do disposto nos art.s 94.º e 99.º da LOFTJ.
Torna-se, no entanto, necessário tratar a outra hipótese prevista no art. 952.º/2.
Já falámos da possibilidade de decretação imediata da interdição, quando a acção não tenha
sido contestada e haja elementos suficientes nesse sentido fornecidos pelo interrogatório e o
exame do requerido.
Que sucederá quando assim não seja, isto é, quando não tenha sido deduzida oposição, mas
aqueles apontados elementos não sejam determinantes da interdição sem sombra de
dúvida?
Impõe o n.º 2 do art. 952.º que se sigam os termos do processo ordinário posteriores aos
articulados.
Ora, se nesta hipótese de falta de contestação, não é admissível a intervenção do colectivo
(art. 646.º/1 do CPC), não é menos verdade que o julgamento da matéria de facto e a
prolação da sentença final incumbem ao juiz que a ele deveria presidir, se a sua intervenção
tivesse tido lugar (n.º 5 do art. 646.º).
Assim, também nesta hipótese – de impossibilidade de prolação imediata de decisão após a
realização do interrogatório e do exame, por falta de elementos suficientes fornecidos por
estes – o processo será remetido às varas, para que o juiz que seria o competente para
presidir ao colectivo dirija a instrução, faça o julgamento e profira a sentença final.
Podemos, pois, assentar nos seguintes procedimentos de competência relativamente à acção
especial de interdição:
1.º. Deve a mesma ser interposta nos juízos cíveis, por poder acontecer que, por falta de
oposição, se não perspective a intervenção do tribunal colectivo;
2.º. Havendo contestação, seguem-se os demais articulados previstos para o processo
ordinário e, findos os mesmos, a acção será remetida às varas para posterior
desenvolvimento;
3.º. Não havendo contestação e fornecendo o interrogatório e o exame do arguido elementos
suficientes, será o juiz singular (juízos cíveis) a decretar imediatamente a interdição;
4.º. Não havendo contestação, mas não fornecendo o interrogatório e exame elementos
suficientes, por imposição do n.º 2 do art. 952.º, conjugado com o n.º 5 do art. 646.º, os
autos serão remetidos às varas, para que o juiz respectivo presida ao desenvolvimento
posterior dos autos.
No caso em análise, a competência para a realização da prova preliminar a que se refere o
art. 949.º (interrogatório e exame referidos nos art.s 950.º e 951.º) é dos juízos cíveis, após
o que se verá se essa competência se mantém ou se passará a ser das varas.
Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo e confirma-se o despacho em crise.
Sem custas.
Porto, 20 de Abril de 2006
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira
Agravo nº 2189/06-3ª Sec.
Data – 08/06/2006
4839 (Boletim Interno nº 25)
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Sumário
I - São normas de competência internacional aquelas que atribuem a um conjunto de tribunais de um
Estado o complexo de poderes para o exercício da função jurisdicional em situações transnacionais.
II - Vigoram na ordem jurídica portuguesa normas de fonte interna e normas de fonte supraestadual.
III - Destas, destacam-se, como fonte comunitária e com relevo para o caso dos autos, o Regulamento
(CE) nº 44/2001, de 22.12.2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de
decisões em matéria civil e comercial, que entrou em vigor em 1.3.2002, substituindo entre os Estados
Membros da EU (com excepção da Dinamarca) a Convenção de Bruxelas de 1968.
IV - O Regulamento é directamente aplicável a todos os Estados Membros, em conformidade com o
Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (arts. 1º, 68º e 76º e, em Portugal, o art. 8º da CRP) e
prevalece perante as normas reguladoras da competência internacional previstas nos arts. 65º, 65ºA,
99º, 1094º e 1102º do CPC.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
B………. residente na Rua ………., n° .., Vila do Conde, veio instaurar acção, com processo
ordinário, contra C………., com sede em ………., ………., ………, França.
Pediu que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 38.250,00, acrescida de juros de
mora.
Como fundamento, alegou, em síntese, que é industrial de construção civil e celebrou com a
ré um contrato de empreitada, da arte de carpintaria, consistente no fornecimento da
madeira, aplicação de portas, janelas e 400 m2 de soalho; a ré obrigou-se, ainda, a suportar
todas as despesas relativas a transportes, materiais e alojamento dos trabalhadores. Ora, o
A. emitiu a factura relativa ao soalho fornecido, no montante de € 84.000,00, mas a ré
apenas pagou a quantia de 63.450,00; o autor apresentou também à ré a nota de despesas
referentes a transportes, alojamento, assentamento do soalho e outros materiais, no valor
de € 17.700,00, que a ré se recusa a pagar, apesar de não ter reclamado dos trabalhos, nem
dos materiais.
A ré contestou, confirmando a celebração do referido contrato. Invocou, todavia, a
incompetência dos tribunais portugueses para julgar a acção, alegando que no referido
contrato, celebrado por escrito, foi estipulado que o foro competente para discutir qualquer
litígio emergente do contrato é o de Toulon (França), com renúncia a qualquer outro.
No saneador, considerou-se que o referido pacto privativo de jurisdição apenas versa sobre
litígios resultantes da interpretação do contrato, o que não é, no caso, o objecto do processo,
uma vez que neste está em questão o incumprimento do contrato face ao alegado não
pagamento do preço.
Assim, com base no disposto nos arts. 74º do CPC e 777º do CC e por ter sido essa a opção
do autor, decidiu-se que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para
julgar a acção.
Discordando desta decisão, dela interpôs recurso a ré, de agravo, tendo apresentado as
seguintes
Conclusões:
1. O despacho recorrido não se encontra em conformidade com o disposto no Código de
Processo Civil no que diz respeito às regras da competência internacional nem, tão pouco,
com o disposto na Convenção de Bruxelas de 1968 sobre a mesma matéria.
2. Veio a Recorrente alegar a incompetência do Tribunal "a quo" na medida em que a acção
deveria ter sido intentada nos Tribunais Franceses, mais especificamente, no Tribunal de
Toulon.
3. Fê-lo, com base, principalmente, num pacto de jurisdição que foi assinado pelas partes
acordando que, em caso de litígio relacionado com o contrato que serviu de base à relação
controvertida, este seria dirimido nesse referido Tribunal.
4. Não estando preenchidos nenhum dos requisitos previstos nas alíneas do nº 1 do artigo
65° do CPC, nem do art. 65°-A do CPC, significa que não é atribuída competência
internacional aos Tribunais Portugueses.
5. No litígio privado internacional as normas da Convenção de Bruxelas de 27.09.1968
respeitantes à Competência Internacional, prevalecem sobre as normas do Código de
Processo Civil.
6. O que significa, na sua generalidade, que prevalecerá sempre o acordado em qualquer
pacto de jurisdição realizado entre as partes e, tal é, precisamente, o pretendido e alegado
pela aqui Recorrente. Mas, mesmo na legislação interna, tal está perfeitamente assegurado
pelo vertido no art. 86° do CPC, quando é referido que sendo a Ré uma sociedade, terá que
ser demandada no Tribunal do foro da sua sede, o que não aconteceu.
7. O pacto realizado está em cumprimento total dos requisitos do art. 99° do CPC,
inclusivamente, foi feito de forma expressa e inequívoca.
8. O que resulta na incompetência do Tribunal "a quo". Tal incompetência será relativa, pelo
exposto na última parte do art. 101° do CPC, pelo que haverá, assim, uma remissão para os
arts. 108° e seguintes do mesmo diploma. Assim, deveria o Tribunal "a quo", após a Ré ter
alegado a excepção de incompetência, ter remetido para o Tribunal competente, sendo que
este é um dos efeitos da declaração de incompetência relativa do Tribunal.
9. Diz o art. 109° do CPC, ditando o regime de arguição da incompetência que, após o Réu
ter invocado a excepção de incompetência do Tribunal, tem o Autor que responder ao
mesmo e oferecer provas. E o Autor respondeu alegando que o pacto havia sido substituído
por outro posterior mas, ao contrário da Ré, o Autor não apresentou prova do alegado.
10. Assim, permanecerá o primeiro, aliás único, pacto de jurisdição efectuado.
11. Ao contrário do que foi dito no despacho recorrido, não pode o Autor escolher entre o
foro do cumprimento da obrigação e o do domicílio do Réu, uma vez que houve um pacto de
jurisdição que não pode ser afastado, posteriormente, por vontade unilateral de uma das
partes. O que significa que o Autor teria, pura e simplesmente, que cumprir o pacto de
jurisdição e intentar a acção nos tribunais franceses, mais precisamente, no de Toulon.
13. Ao não entender assim, violou, o despacho recorrido, entre outros, o preceituado na
Convenção de Bruxelas de 1968 sobre competência internacional, bem como o previsto no
Regulamento Comunitário nº 44/01 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 sobre o
assunto e, ainda os arts. 65°, 65°-A, 74°, 86°, 99°, 101 ° e 109° do Código de Processo
Civil, pelo que, deve o despacho ora recorrido ser declarado nulo e, consequentemente, ser o
Tribunal "a quo" declarado incompetente.
O autor contra-alegou, concluindo pelo não provimento do agravo.
O Sr. Juiz sustentou tabelarmente a sua decisão.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II.
Questões a resolver:
Trata-se apenas de decidir se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes
para conhecerem da acção.
III.
Os factos a considerar na apreciação do recurso são os que constam do relatório precedente
e, bem assim, que, do contrato escrito celebrado entre as partes, consta a cláusula VI deste
teor:
O foro competente para dirimir qualquer litígio resultante da interpretação do presente
contrato é o de Toulon (França), com renúncia expressa a qualquer outro.
IV.
A competência do tribunal constitui um pressuposto processual, sendo assim um dos
elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido
formulado, concedendo ou indeferindo a pretensão deduzida [Antunes Varela, Manual do
Processo Civil, 98].
Como qualquer outro pressuposto processual, a competência é aferida em relação ao objecto
apresentado pelo autor [Teixeira de Sousa, A Competência e a Incompetência dos Tribunais
Comuns, 3ª ed., 139.
Como ensinava Manuel de Andrade [Noções Elementares de Processo Civil, 90 e 91], para
decidir qual das normas corresponde a cada um dos “índices” de competência, deve olhar-se
aos termos em que foi posta a acção – seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza
da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou
acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus
elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal não depende, pois,
da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a
identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os
respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos
dessa pretensão.
São normas de competência internacional aquelas que atribuem a um conjunto de tribunais
de um Estado o complexo de poderes para o exercício da função jurisdicional em situações
transnacionais.
Vigoram na ordem jurídica portuguesa normas de fonte interna e normas de fonte
supraestadual.
Destas, destacam-se, como fonte comunitária e com relevo para o caso dos autos, o
Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22.12.2000 (adiante designado apenas por Regulamento),
relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria
civil e comercial, que entrou em vigor em 1.3.2002, substituindo entre os Estados Membros
da EU (com excepção da Dinamarca) a Convenção de Bruxelas de 1968.
O Regulamento é directamente aplicável a todos os Estados Membros, em conformidade com
o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (arts. 1º, 68º e 76º e, em Portugal, o art. 8º
da CRP) e prevalece perante as normas reguladoras da competência internacional previstas
nos arts. 65º, 65ºA, 99º, 1094º e 1102º do CPC [Cfr., entre outros, os Acs. do STJ de
12.2.2004, de 29.6.2005 e de 16.2.2006, em www.dgsi.pt - procs. 04B128, 05B2219 e
05B4294, respectivamente – e o Ac. do STJ de 3.3.2005, CJ STJ XIII, 1, 103]. Aliás, a actual
redacção do art. 65º nº 1 (introduzida pelo DL 38/2003, de 8/3) já ressalva o que se acha
estabelecido em tratados, convenções e regulamentos comunitários.
O regime interno é, assim, apenas aplicável fora da esfera de aplicação do Regulamento ou
quando este para aí remeta, isto é:
- nas matérias civis excluídas do âmbito material de aplicação do Regulamento (estado,
capacidade das pessoas singulares, regimes matrimoniais, falências, etc.);
- nas matérias incluídas no âmbito material de aplicação do Regulamento, mas que não
sejam abrangidas por uma competência exclusiva legal ou convencional, quando o requerido
não tiver domicílio no território de um Estado Contratante Membro (arts. 4º nº 1, 22º e 23º
do Regulamento) [Cfr. Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. III, 188; D. Moura
Vicente, A Competência Internacional no CPC revisto, em Aspectos do Novo Processo Civil,
78; Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 101].
Nos termos do Regulamento, em regra é competente o tribunal do domicílio do réu. Com
efeito, segundo dispõe o art. 2º nº 1, sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as
pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas,
independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.
Concorrem com a regra do domicílio do réu, os critérios especiais de competência legal
estabelecidos na secção II do capítulo II.
Assim, nos termos do art. 5º, uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro
pode ser demandada noutro Estado-Membro:
1.a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a
obrigação em questão;
b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de
cumprimento da obrigação em questão será:
- no caso de venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os
bens foram ou devam ser entregues;
- no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do
contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.
Saliente-se que, como refere Lima Pinheiro [Ob. Cit., 83 e 84], relativamente a dois tipos
contratuais da maior importância – a venda de bens e a prestação de serviços – o
Regulamento veio introduzir uma dita “definição autónoma” do lugar de cumprimento das
obrigações contratuais. Bem vistas as coisas, não se trata de uma verdadeira definição
autónoma do lugar de cumprimento, mas de estabelecer que só releva, na venda de bens, o
lugar de cumprimento da obrigação de entrega e, na prestação de serviços, o lugar de
cumprimento da obrigação do prestador de serviços. Assim, é irrelevante o lugar de
cumprimento da obrigação de pagamento do preço dos bens ou dos serviços, mesmo que o
pedido se fundamente nessa obrigação.
Prevê ainda o Regulamento os casos de competência exclusiva (art. 22º) e de extensão de
competência através de pactos de jurisdição (art. 23º).
Nos termos do art. 60º as sociedades comerciais têm domicílio no lugar que tiverem a sua
sede social, a sua administração central ou o seu estabelecimento principal.
As consequências da declaração de incompetência do tribunal são as fixadas no direito
processual de cada Estado [Cfr. Lima Pinheiro, Ob. Cit., 149].
A violação das normas de competência internacional constitui excepção dilatória, de
conhecimento oficioso (incompetência absoluta) – arts. 101º e 102º nº 1 do CPC.
Note-se, porém, que o Regulamento só impõe que o juiz de um Estado-Membro se declare
oficiosamente incompetente nas situações previstas [Cfr. Gonçalves Proença, Direito
Internacional Privado – Conflitos de Jurisdição ..., 2ª ed., 82]:
- no art. 25º - quando, perante ele, tiver sido proposta, a título principal, uma acção
relativamente à qual tenha competência exclusiva um tribunal de outro Estado-Membro, por
força do art. 22º; e
- no art. 26º nº 1 – quando o requerido, domiciliado no território de um Estado-Membro, for
demandado perante um tribunal de outro Estado-Membro e não compareça, e a competência
deste tribunal não resulte das disposições do Regulamento.
No caso, a questão da competência, assente no pacto de jurisdição constante do clausulado
acordado entre autor e ré, foi correctamente decidida no despacho recorrido.
Com efeito, restringindo-se esse pacto a qualquer litígio resultante da interpretação do
contrato, parece evidente a exclusão da sua aplicação à situação sub judice, que respeita
apenas ao alegado incumprimento do contrato pela ré, decorrente do não pagamento do
preço estipulado.
Está em causa, na verdade, um contrato de empreitada, celebrado entre um português
(melhor, um residente em Portugal – cfr. art. 2º nºs. 1 e 2) e uma sociedade com sede
social em França, pedindo o autor a condenação da ré no pagamento de quantias relativas
ao preço e a outra obrigações assumidas no contrato.
Não se suscita, pois, qualquer questão que tenha a ver com a interpretação do contrato,
estando apenas em causa o alegado incumprimento de obrigações assumidas pela ré.
Afigura-se-nos, porém, que a arguição de incompetência por parte da ré não se limita ao
pacto de jurisdição referido.
Com efeito, na contestação, a ré começa por invocar genericamente, mas de modo
relevante, a incompetência do Tribunal português, afirmando que o tribunal competente é o
de Toulon (França) – art. 3º - aludindo, de seguida, aos termos do contrato de empreitada
celebrado com o autor; depois (art. 7º) transcreveu (incorrectamente) a clª VI relativa ao
pacto de jurisdição, só então invocando a incompetência decorrente do mesmo.
Mostra-se assim relevantemente suscitada a incompetência internacional do tribunal de Vila
do Conde.
Incompetência que, no caso, decorre claramente da regra geral prevista no art. 2º nº 1 do
Regulamento, uma vez que a sede social da ré se situa em França. Concorre no mesmo
sentido o regra especial prevista no art. 5º nº 1 a), parte final, pois estamos em presença de
um contrato de empreitada (prestação de serviços), situando-se em França o lugar do
cumprimento da obrigação, aferida, nos termos ali especificados, pelo lugar onde, nos
termos do contrato, os serviços foram ou deviam ser prestados.
Procedem, por conseguinte, as conclusões do recurso.
V.
Em face do exposto, decide-se dar provimento ao agravo, revogando-se a decisão recorrida
e, em consequência:
- declara-se o Tribunal Judicial de Vila do Conde incompetente internacionalmente para
conhecer da acção;
- absolve-se a ré da instância.
Custas pelo agravado.
Porto, 8 de Junho de 2006
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
Agravo nº 3377/06-2ª Sec.
Data – 27/06/2006
4864 (Boletim Interno nº 25)
COMPETÊNCIA
JULGADOS DE PAZ
Sumário
I - O art. 9.º da lei n.º78/2001 que estabelece a competência dos julgados de paz em razão da matéria,
é taxativo, encontrando-se a competência tipificada em exclusividade.
II - Se a competência pertencer, assim, ao Julgado de Paz, não pode a acção ser proposta no Tribunal
de Pequena Instância, impondo-se a absolvição da instância.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
B………., Ld.ª”, com sede na Rua ………., n.º .., ……….,
instaurou acção declarativa de condenação com a forma de processo sumaríssimo, no
Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto,
contra
1) C……… SA, com sede na Rua ………., n.º .., Lisboa e
2) D………., Ld.ª, com sede na Rua ………., …, ………., ……….,
pedindo
- a condenação solidária dos RR. ao pagamento da quantia de € 1.017,09, acrescida de juros
vincendos contados desde a petição (2005.02.24) até efectivo e integral pagamento sobre o
capital de € 999,60.
Para o efeito alegou a prestação de serviços à 2.ª Ré, que esta só parcialmente veio a pagar,
e o facto de o 1.º R. se ter recusado a pagar um Cheque emitido pela segunda R. sobre
conta existente em balcão do primeiro R., considerando revogada a ordem para pagamento,
por falta ou vício de vontade, quando ainda não tinham decorrido os oito dias para a sua
apresentação, em alegada violação do art. 32.º da LUC.
Contestaram os RR.
O M.º Juiz do Tribunal de Pequena Instância Cível lavrou no entanto um despacho onde
considerando que se estava perante um pedido de indemnização decorrente de
responsabilidade civil contratual e extra-contratual, julgou incompetente aquele Tribunal, em
razão da hierarquia, indicando como competentes os Julgados de Paz da Comarca, invocando
para o efeito os arts. 6.º-1, 8.º, 9.º-1-h), 62.º-1, 63.º e 67.º, todos da Lei n.º 78/2001, de
13 de Julho, e a Portaria n.º 375/2004, de 13 de Abril, através dos quais se concluía ser
aquele Tribunal absolutamente incompetente para o efeito, em razão da hierarquia, pelo que
veio a absolver os RR. da instância, invocando os arts. 105.º-1, 288.º-1-a) e 494.º-a) e
495.º do CPC.
A A. requereu esclarecimento/reforma da decisão, dizendo que pretendia submeter a
questão a um Tribunal, onde tem a garantia de o pleito ser julgado por Magistrados judiciais
e não percorrer a via da desjudicialização da Justiça através dos Julgados de Paz.
E assim, sem embargo de a lei reconhecer competência aos Julgados de Paz para se
pronunciarem sobre determinadas matérias que a lei prevê e que as partes pretendam
submeter-lhe, essa competência não pode ser considerada exclusiva nem obrigatória, sob
pena da violação do princípio da reserva dos Juízes, princípio este inviolável para se poder
afirmar estar-se perante um Tribunal.
Para o caso de não ser atendido o pedido de reforma, desde logo considerava interposto
recurso.
O M.º Juiz sustentou que a competência dos Julgados de Paz é exclusiva e obrigatória quanto
às matérias elencadas no art. 9.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, pelo que manteve a
decisão no que respeita à questão da incompetência, vindo então a admitir o recurso como
agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Apresentou então alegações de recurso.
O M.º Juiz manteve o despacho recorrido.
Remetidos os autos a este Tribunal foi o recurso aceite com a adjectivação e demais
atributos que lhe haviam sido atribuídos na primeira instância.
Correram os vistos legais.
.....................................
II. Âmbito do recurso
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é através das conclusões apresentadas
pelo recorrente nas suas alegações de recurso que este condensa as razões e indica as
questões que pretende ver tratadas.- arts. 684.º-3 e 690.º-1 do CPC.
Daí que tenha natural relevância que se proceda a essa transcrição:
“(...) CONCLUSÕES:
1.ª - Ao intentar a presente acção a Recorrente pretendeu fazer valer os seus direitos pelo
recurso aos Tribunais e não pretendeu não seguir a via da desjudicialização da Justiça, via
esta que é a escolhida quando uma acção dá entrada nos Julgados de Paz.
2.ª - Todo o "aligeiramento processual" só faz sentido nos casos em que as partes litigantes
queiram fugir ao formalismo do Tribunal (e nesse sentido, desjudicializar a questão).
3.ª - O que nunca foi o caso da Recorrente, mais a mais discutindo-se nestes autos uma
questão particularmente sensível, que é da responsabilidade de uma instituição bancária na
aceitação de ordens de revogação de cheques, o que pressupõe uma especial sensibilidade
jurídica por parte do julgador, atendendo às questões tratadas e aos conhecimentos técnicos
que são necessários.
4.ª - Esta sensibilidade jurídica encontra a Recorrente no Tribunal com toda a certeza e igual
segurança não tem quanto a encontrar num Julgado de Paz.
5.ª - Os Julgados de Paz não cabem dentro do elenco de Tribunais que o art. 209° da
Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra como existentes.
6.ª - Os Julgado de Paz não são constituídos por Magistrados, no sentido em que os
Tribunais de 1.ª e 2.ª Instância e o Supremo Tribunal de Justiça (conferir, por exemplo, os
arts. 23° e 24°, n° 2, al. a) da Lei n° 78/01)
7.ª - Por fim, um outro exemplo de que os Julgados de Paz não são Tribunais é o facto de,
numa acção com valor superior a metade da alçada do Tribunal de 1.ª Instância, poder a
decisão ser impugnada por via de recurso para o Tribunal de Comarca ou de competência
específica (cfr. art. 62° da Lei n° 78/01).
8.ª - Por mais equiparações que haja entre os Julgados de Paz e os Tribunais, a verdade é
que os Julgados de Paz não são Tribunais.
9.ª - São antes a concretização da possibilidade que a própria CRP abre no art. 202°, n° 4,
ou seja, é a institucionalização legal de um instrumento(s) e formas de composição não
jurisdicional de conflitos.
10.ª - Por outro lado, a CRP garante aos cidadãos o acesso aos Tribunais para a resolução
dos litígios, concretamente, o Acesso ao Direito previsto no art. 20°, n° 1 da CRP.
11.ª - Qualquer interpretação que seja dada à Lei n° 78/01 de 13 de Julho que vá no sentido
da competência exclusiva e obrigatória dos Julgados de Paz em qualquer matéria, retirandoa do âmbito dos Tribunais é inconstitucional, por violação do art. 20°, n° 1 da Constituição
da República Portuguesa.
12.ª - Pelo que a única interpretação constitucionalmente aceitável é a que vá no sentido do
recurso aos Julgados de Paz ser facultativa para quem intenta a acção.
13.ª - O Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto é competente para julgar a presente
acção.
14.ª - Acresce que o art. 9°, n° 1, al. a) da Lei 78/2001, de 13 de Julho, exclui da
competência dos Julgados de Paz as acções destinadas a efectivar o cumprimento de
obrigações que tenham por objecto prestação pecuniária e de que seja ou tenha sido credor
originário uma pessoa colectiva.
15.ª - O que é manifestamente o caso.
16.ª - Assim sendo, os Julgados de Paz do Porto sempre não teriam competências para
apreciar a presente acção declarativa.
17.ª - Ao decidir como decidiu o Tribunal "a quo" violou o disposto nos arts. 20°, 202° e
209° da Constituição da República Portuguesa, 2°, n° 1 e n° 2 e 9°, n° 1, al. h) da Lei
78/2001, de 13 de Julho.
Termos em que deverá ser dado provimento ao presente Recurso de Agravo, substituindo-se
a Sentença recorrida por Acórdão que determine a competência do Tribunal de Pequena
Instância Cível do Porto para apreciar a acção intentada pela Recorrente e ordene o
prosseguimento dos autos.
Assim se fará JUSTIÇA.”
........................
Da leitura de tais conclusões vemos que nos estão colocadas três questões:
a) determinar se os Julgados de Paz se integram na categoria de Tribunais
b) se as competências que a lei prevê para os Julgados de Paz são impositivas, afastando a
competência dos Tribunais nas respectivas áreas, em razão da hierarquia
c) se o presente pleito se integra entre as competências dos Julgados de Paz
........................
III. Fundamentação
Os factos a ter em consideração são os já constantes do Relatório.
Importa por isso avançar para o conhecimento do recurso.
Assim:
III-A) Quanto a saber se os Julgados de Paz se integram entre as categorias de Tribunais
O art. 209.º da Constituição (na redacção actual- Lei Constitucional 1/2005, de 12 de
Agosto, contemplando já a 7.ª Revisão), a respeito da organização dos Tribunais enuncia no
seu n.º 1, que,
“Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de Tribunais:
a) O Supremo Tribunal da Justiça e os Tribunais Judiciais de primeira e segunda instância;
b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais Tribunais Administrativos e Fiscais;
c) O Tribunal de Contas.
No n.º 2 desse mesmo artigo enuncia, no entanto, que
“Podem existir Tribunais Marítimos, Tribunais Arbitrais e Julgados de Paz”.
Ao incluir no n.º 2 do art. 209.º os Juízos de Paz, a lei constitucional admite que a estes
órgãos é atribuída a natureza de Tribunais.
Estes Tribunais, no entanto, não se confundem com os Tribunais Judiciais.
Os Tribunais Judiciais são os únicos a que o art. 215.º da Constituição se refere como sendo
formados por um corpo único de Juízes, absolutamente independentes e apenas sujeitos à
lei, regendo-se por um só estatuto.
Os Juízes dos Julgados de Paz têm uma estrutura de recrutamento, fiscalização e condições
para o exercício do cargo notoriamente diferentes da dos magistrados judiciais.- art.s 25.º e
65.º
Mas isso não quer dizer que não sejam Tribunais, até porque outros órgãos a que a lei
constitucional enquadra como Tribunais não são necessariamente compostos por Magistrados
Judiciais (v.g. Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas) e outros mesmos, expressamente
os excluem (Tribunais Arbitrais).
Os julgados de Paz foram criados, por outro lado, tendo como vocação a participação cívica
dos interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes, e
foram concebidos e orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade,
oralidade e absoluta economia processual – art. 2.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho,
tendo em vista promover a desjudicialização dos conflitos.
As suas decisões, no entanto, não são arbitrárias, pois que os Juízes dos Julgados de Paz,
embora actuando mais informalmente no âmbito do processo, proferem as suas decisões
aplicando a lei ou a equidade, e as suas sentenças valem como as proferidas por Tribunais
de 1.ª instância.- arts.26.º e 61.º
Ora, a própria lei constitucional, depois de prescrever art. 202.º -1 que
“Os Tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a Justiça em
nome do povo”,
e depois de admitir no art. 209.º-2 da Constituição a possível criação de Julgados de Paz
entre os órgãos considerados como Tribunais (como já citamos),
refere no número 4 daquele artigo 202.º que:
“A lei poderá institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de
conflitos.
Donde, até por essa vertente, se imponha o reconhecimento de que têm acolhimento
constitucional os Julgados de Paz, como órgãos de aproximação dos cidadãos ao Direito, na
medida em que, de um modo menos formal, a lei atribui aos Juízes de Paz poderes para
proferir decisões sobre determinadas matérias que o legislador explicita no art. 9.º da Lei n.º
78/2001, de 13 de Julho.
Esta lei permite ainda que haja possibilidade de recurso das decisões em causa quando o
valor da acção ultrapasse metade da alçada do Tribunal de Comarca – art. 62.º, e, mais
importante que isso, enuncia no art. 41.º que se porventura suscitarem as partes um
incidente processual, o Juiz de Paz remete o processo para o Tribunal Judicial competente,
para que siga os seus termos, sendo aproveitados os actos processuais já praticados.
E o mesmo acontece quando for requerida prova pericial-art. 59.º- pois, nesse caso, também
será remetido ao Tribunal Judicial competente.
Não é portanto um argumento convincente, salvo o devido respeito, que as decisões
proferidas nos Julgados de Paz, inviabilizam o acesso ao Direito e a uma tutela jurisdicional
efectiva, princípio consagrado no art. 20.º da Constituição
III-B) Quanto à natureza obrigatória ou facultativa da submissão de pleitos a Julgados de
Paz, nas matérias relativamente às quais a lei lhes reconheça competência
O art. 9.º da Lei n.º 78/2001 estabelece a competência dos julgados de paz em razão da
matéria.
É certo que a referida lei não refere se essa competência é exclusiva ou paralela à dos
Tribunais judiciais, maxime aos Juízos de Pequena Instância, nalgumas matérias
sobreponíveis.
No entanto, se tivermos em conta que um dos objectivos foi o de promover a solução rápida
dos litígios, com recurso à participação cívica dos interessados e à mediação,
descongestionando os Tribunais Judiciais de matérias que em princípio são simples, não faria
qualquer sentido nem traria qualquer utilidade a sua criação se porventura não fosse
exclusiva a sua competência material no campo de actuação que a lei lhes atribuiu.
A segurança jurídica dos cidadãos não se encontra, como vimos, posta em risco, quer porque
a referida Lei impõe, designadamente nos seus arts. 41.º e 59.º a remessa do processo para
o Tribunal judicial competente, em caso de incidentes ou prova pericial, como por outro lado
assegura a possibilidade de recurso das decisões proferidas em processo cujo valor seja
superior a metade da alçada do Tribunal de primeira instância – art. 62.º
Entendemos por isso que a competência em relação à matéria, definida no art. 9.º da Lei
78/2001, de 13/07, se encontra tipificada em exclusividade.
É este aliás o entendimento dos diversos juristas com obras publicadas sobre esta temática,
designadamente Cardona Ferreira [Julgados de Paz, Organização, Competência e
Funcionamento”, pg. 29], Joel Timóteo Ramos Pereira [Julgados de Paz, Organização,
Trâmites e Formulário, pgs. 56 e ss] e João Miguel Galhardo Coelho [Julgados de Paz e
Mediação de Conflitos, pg. 27], de que nos dá conta o Ac. do STJ de 5 de Julho de 2005,
proc. 2024/05 (Salreta Pereira, Fernandes Magalhães e Azevedo Ramos), publicado na CJ,
Acs. do STJ, ano XIII, pg. 154, que acolheu esta doutrina.
III-C) Quanto à determinação de aos Julgados de Paz ser atribuída competência para o
presente pleito
Entendeu o M.º Juiz do Tribunal de Pequena Instância do Porto que o competente para a
acção seria o Julgado de Paz do Porto, uma vez que se mostra criado e instalado o Julgado
de Paz do Porto, e dado que a presente acção se enquadra naquelas que se destinam a
apreciar e decidir sobre responsabilidade civil contratual e extracontratual, inserindo-se
portanto no art. 9.º, n.º1, al. h) da Lei 78/2001, de 13 de Julho.
Entende a agravante que não, em virtude de ser pessoa colectiva (sociedade) e apresentarse a presente acção como destinada ao cumprimento de obrigações que tenham por objecto
prestação pecuniária e de que seja ou tenha sido credor originário uma pessoa colectiva,
como alegadamente seria o caso.
Ora, analisando os pedidos formulados e as respectivas causas de pedir, inclinamo-nos mais
para aderir à posição sustentada pelo M.º Juiz na decisão recorrida.
Mas mesmo admitindo que possa ser duvidoso o enquadramento legal tecido no despacho
recorrido – o que por hipótese de raciocínio admitimos, mas que mesmo assim
equacionamos porque no Direito não há verdades absolutas nem tudo se pinta a preto e
branco -, e mesmo que viéssemos a conceder que o enquadramneto legal não era o da
alínea h) [(acções que respeitem a responsabilidade civil contratual e extracontratual)] mas
sim o da alínea a) do n.º1 do art. 9.º [acções destinadas a efectivar o cumprimento de
obrigações....], como a agravante pretende, a conclusão a que chegaríamos seria
precisamente a mesma:
Na verdade, o art. 9.º, n.º1, al. a) exclui da competência dos Julgados de Paz as acções
destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações quando o credor originário seja uma
pessoa colectiva.
Ora, no âmbito das pessoas colectivas ficam as associações que não tenham por fim o lucro
económico dos associados, as fundações de interesse social e ainda as sociedades quando a
analogia das situações o justifiquem.- art 157.º do CC.
Mas no âmbito do cumprimento de obrigações pecuniárias relativas a uma sociedade
comercial não consegue ver-se como possa invocar-se a analogia com as associações ou
fundações de interesse social por forma a que possam as sociedades comerciais enquadrarse no mesmo estatuto de excepção daquelas, já que o escopo do lucro prosseguido pelas
sociedades comerciais estabelece um afastamento radical daquelas, na medida em que nas
associações ou fundações de interesse social o escopo do lucro se encontra arredado,
faltando-lhe assim, neste domínio a base indispensável para o recurso à analogia
Daí que, de uma forma ou de outra, sempre teríamos de concluir que, por haver Julgados de
Paz do Porto e se enquadrar naqueles casos aos quais a lei lhes atribui competência material
e que não excedem a alçada do Tribunal de Comarca, sempre teria de ser proposta esta nos
Julgados de Paz, sem embargo de não poder evitar-se que, no decurso desta, e mercê de
vicissitudes que possam vir a ocorrer, poder vir a acção a acabar noutro Tribunal, ora por via
de um qualquer incidente processual (art.41.º) ora por nela vir a ser requerida prova pericial
(art. 59.º-3), como acima deixamos dito.
Uma batalha perdida não significa necessariamente o fim da guerra...
Mas, no contexto da interposição da acção logo junto dos Tribunais de Pequena Instância do
Porto, com preterição dos Juízos de Paz do Porto em matéria relativamente aos quais a lei
lhes atribuiu competência material, não temos dúvidas em afirmar que o agravo terá de ser
negado.
A acção teria, pelo menos, de começar por aí.
................................
IV. Deliberação
Na negação do agravo, mantém-se a douta decisão recorrida.
Custas pela agravante.
Porto, 27 de Junho de 2006
Mário de Sousa Cruz
Maria Teresa Montenegro V. C. Teixeira Lopes
Emídio José da Costa
Agravo nº 3119/06-3ª Sec.
Data – 29/06/2006
4866 (Boletim Interno nº 25)
COMPETÊNCIA
UNIÃO DE FACTO
ALIMENTOS
Sumário
O tribunal competente para conhecer de acção em que se pede alimentos a uma herança é o tribunal do
domicílio do credor.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO.
B………., residente na Rua ………., n.º .., Porto,
veio intentar acção, sob a forma ordinária, contra
“Caixa Geral de Aposentações”, com sede na ………., n.º …, Lisboa,
pretendendo a condenação desta última a pagar-lhe mensalmente a pensão que lhe for
devida, em face da impossibilidade da herança deixada por C………., que foi beneficiário da
Ré, suportar a prestação de alimentos de que carecia.
Para o efeito e em síntese, alegou a Autora já ter sido reconhecida como herdeira hábil, com
direito a receber alimentos, da herança do referido C………., com quem havia vivido em
economia comum, como se marido e mulher fossem, durante mais de dois anos antes da
morte daquele, não dispondo de meios suficientes para prover ao seu sustento, nem
existindo familiares seus com possibilidades de arcarem para o seus sustento, assim se
verificando todas as condicionantes legais para beneficiar de pensão de sobrevivência
prevista no domínio do Estatuto do Funcionalismo Público.
Citada a Ré para os termos da acção, veio apresentar contestação em que, além do mais,
arguiu a excepção de incompetência relativa do tribunal, em razão do território, para
conhecer do litígio, posto dever considerar-se competente para o efeito o tribunal da sua
sede, em obediência à regra geral constante dos arts. 85, n.º 1 e 86, n.º 2, ambos do CPC,
ou seja, as Varas Cíveis de Lisboa.
A Autora replicou, rejeitando a procedência da dita excepção, dado à situação em discussão
nos autos ser aplicável a norma constante do art. 74, n.º 1, do CPC, por estar em causa o
cumprimento de uma obrigação de que se reclama credora, sendo ela de natureza
pecuniária, assim lhe estando facultado a introdução da lide no tribunal correspondente ao
local onde aquela devia ser cumprida, no caso as Varas Cíveis do Porto, área da sua
residência.
Findos os articulados, foi tomada posição quanto ao mencionado incidente de incompetência
relativa, decidindo-se que os tribunais competentes, em razão do território, para conhecer do
litígio eram as Varas Cíveis de Lisboa e não as do Porto, onde aquele foi intentado pela
Autora.
Inconformada com o decidido no aspecto em referência, interpôs recurso de agravo a
Autora, tendo apresentado alegações em que concluiu pela revogação de tal decisão,
devendo julgar-se competente para conhecer da acção o tribunal (Vara Cível do Porto)
recorrido.
A Ré não respondeu a tais alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre tomar conhecimento do mérito do agravo, sendo que a
instância mantém a sua validade.
2. FUNDAMENTAÇÃO.
O circunstancialismo a reter para o conhecimento do mérito do recurso vem já enunciado no
relatório supra, pelo que nos dispensamos aqui de o repetir, mas podendo reconduzir-se ao
teor da pretensão deduzida em juízo pela Autora e respectiva fundamentação, conforme o
acima também explicitado.
Face aos termos em que vem delineado o recurso e às respectivas conclusões, o seu objecto
circunscreve-se à questão única de saber se as Varas Cíveis do Porto têm competência, em
razão do território, para conhecer do litígio instaurado pela agravante/autora.
No âmbito dessa problemática expendeu-se na decisão impugnada – justificando-se a
atribuição da competência às Varas Cíveis de Lisboa, por isso se julgando incompetentes
para o efeito as Varas Cíveis do Porto – que para aquilatar da competência territorial devia
atender-se aos termos em que a acção vinha proposta e, não estando em causa o
cumprimento de uma obrigação “ex contractu” (art. 74, n.º 1, do CPC) ou qualquer uma das
restantes situações aludidas no citado normativo, impunha-se o recurso à norma geral que
remetia essa competência para o tribunal do domicílio do Réu, no caso o correspondente
tribunal da área de Lisboa, sede da Ré, chamando-se à colação as disposições conjugadas
dos arts. 85, n.º 1 e 86, n.º 2, do CPC.
Estaríamos, assim, diante de situação a impor o recurso à norma geral ou supletiva
decorrente daqueles últimos normativos, por as demais normas processuais reguladoras da
fixação de tal competência não cobrirem o caso em discussão.
Outra é a tese da impugnante, para quem a acção por si intentada tem em vista exigir o
cumprimento de uma obrigação – pensão de sobrevivência da responsabilidade da
Segurança Social, de natureza pecuniária – por isso tendo inteira aplicação a previsão
constante do n.º 1, do citado art. 74, o qual lhe facultava a instauração da acção no tribunal
da área da sua residência, onde aquela prestação devia ser cumprida.
Vejamos, então, se é de atender à pretensão da agravante.
Em termos mais genéricos, a competência do tribunal para conhecer de determinado litígio
há-de determinar-se pelo pedido nele formulado, sendo que, no aspecto mais específico da
competência territorial, releva, entre o mais, um factor decisivo de conexão, tal qual decorre
dos normativos processuais que regulam tal matéria (arts. 73 a 89 para as acções
declarativas) – v., neste aspecto, Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo
Civil”, ed. 1976, pág. 91 e A. Varela, Bezerra e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2.ª ed.,
pág. 216.
E esse factor de conexão varia em função do tipo de acção intentada – daí falar-se, por
exemplo, no foro real, por estar em causa o local da situação dos bens; o foro obrigacional,
por estar em causa, entre o mais, o cumprimento duma obrigação – pelo que, no
seguimento do já referido, interessará aquilatar da pretensão deduzida em juízo, recorrendo,
se necessário, ao fundamento que lhe subjaz.
Atentos os diferentes argumentos utilizados nas teses em confronto – a defendida no
despacho agravado e a esgrimida pela recorrente – parece que o ponto determinante para a
solução diferenciada proposta para a problemática que vimos analisando se situa na origem
da obrigação que subjaz à pretensão deduzida em juízo.
Com efeito, em ordem a fixar a competência territorial, o tribunal “a quo”, afastou a
aplicação do prescrito no art. 74, n.º 1, do CPC, fazendo cair a situação na previsão geral
que decorre do arts. 85, n.º 1 e 86, n.º 2, do CPC – foro do Réu – por a obrigação que a
agravante/autora veio exigir não resultar de contrato, só às obrigações que tenham a sua
fonte em tal negócio jurídico podendo aplicar-se aquele primeiro normativo, o que não
sucedida na situação em discussão nos autos, sempre tendo presente que à economia
daquele primeiro preceito subjazia uma obrigação de natureza contratual.
A interpretação restritiva que vem dada ao citado preceito, parecendo a mais consentânea
com a sua própria letra, afigura-se-nos ser demasiado redutora, quanto é certo dele não
resultarem excluídas as obrigações decorrentes directamente da lei, como o será aquela cujo
cumprimento vem peticionado, sem que tal represente a violação dos princípios
interpretativos previstos no art. 9 do CC.
Temos, assim, como adquirido que as obrigações a que alude o citado normativo (art. 74, º
1 do CC) têm uma abrangência que não se fica apenas pelas que resultam “ex contractu”,
nelas devendo incluir-se as de natureza pecuniária que decorrem da própria lei, sentido este
mais amplo que não deixa de ter algum apoio na economia daquele preceito.
Aliás, parece ser neste enquadramento que se situa a jurisprudência que se vem
pronunciando relativamente à problemática da competência territorial, quando confrontada
com situações atinentes a obrigações alimentícias, defendendo estar-se diante de obrigações
pecuniárias, nessa medida atribuindo tal competência ao tribunal do domicílio do credor – v.,
por todos, o Ac. da RC, de 17.6.86, in CJ/86, tomo 3, pág. 73.
É claro que a defesa desta tese para o caso de que nos ocupamos tem em vista os termos
em que o pedido vem formulado – condenação da Ré no pagamento da aludida prestação
(pensão) de sobrevivência, entendia como uma verdadeira obrigação alimentícia para suprir
dificuldades económicas do beneficiário e na medida em que não podem ser ultrapassadas
pelos obrigados legais (parentes próximos) à prestação de alimentos – pois que mais
problemática seria acolher idêntica posição, se estivéssemos diante de acção a qualificar
como de simples apreciação, para a qual, na ausência de norma específica, seria competente
o tribunal do foro do Réu.
Contudo e como acima referimos, devendo aquilatar-se tal competência em função do pedido
formulado e estando em causa uma obrigação de natureza pecuniária, pode a respectiva
acção ser proposta no tribunal do lugar onde aquela deve ser cumprida, ou seja, do lugar do
domicílio do credor (art. 774 do CC).
A solução assim encontrada vai em sentido oposto ao decidido, partindo do pressuposto que
em causa está uma obrigação de natureza alimentícia e pecuniária, o que também vem
considerado na decisão impugnada, apenas se divergindo quanto à origem das obrigações a
que se alude no citado normativo (n.º1, do art. 74 do CPC), já que deste último não serão de
afastar as que, como no caso presente, tendo a aludida natureza, decorrem da própria lei.
Equivale o explicitado a considerar o tribunal “a quo” competente, em razão do território,
para conhecer do objecto do litígio que a presente acção encerra, sempre tendo presente os
termos em que a respectiva pretensão vem deduzida e já acima assinalados.
3. CONCLUSÃO.
Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao agravo e, nessa medida, revogandose o despacho recorrido, julga-se o tribunal “a quo” competente em razão do território para
conhecer da presente acção.
Custas a cargo da agravada.
Porto, 29 de Junho de 2006
Mário Manuel Baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Conflito de Competência nº 3145/06-3ª Sec.
Data – 14/09/2006
4967 (Boletim Interno nº 26)
COMPETÊNCIA
APOIO JUDICIÁRIO
IMPUGNAÇÃO
Sumário
Compete aos juizes civeis e não aos juizos de pequena instância cível o conhecimento da impugnação
judicial de decisão administrativa atinente a pedido de concessão de apoio judiciário.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO.
O Ministério Público junto deste Tribunal veio requerer a resolução do conflito negativo de
competência suscitado entre
os Srs. Juízes da ….ª secção do ….º Juízo Cível do Porto e da ….ª secção do ….º Juízo de
Pequena Instância Cível do Porto,
os quais se atribuem mutuamente a competência, negando a própria, para os termos da
impugnação judicial de decisão administrativa relativa a pedido de concessão de apoio
judiciário,
em que é Requerente e impugnante B…….., com os sinais dos autos.
Dando seguimento ao pedido de resolução de tal conflito, foram ouvidos, ao abrigo do
disposto no art. 118 do CPC, os Srs. Magistrados em referência, apenas o Sr. Juiz daquele
Juízo de Pequena Instância Cível tendo respondido para defender a incompetência desse
Juízo para conhecer da mencionada impugnação, cabendo a mesma aos Juízos Cíveis do
Porto.
O M.º P.º, através da Exma. Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, emitiu parecer no sentido da
competência dever ser atribuída ao aludido Juízo Cível.
Corridos os vistos legais, cumpre dirimir o conflito em causa, sendo que a instância mantém
a sua validade.
2. FUNDAMENTAÇÃO.
Para a concretização dessa tarefa importará relevar o quadro circunstancial que se passa a
indicar:
- A identificada B……, em 3.5.2005, formulou junto do “Instituto de Solidariedade e
Segurança Social do Porto” pedido de concessão de apoio judiciário, com a finalidade de
propor acção judicial condenatória contra “C…….”, indicando para a mesma o valor
compreendido entre 7.500 euros e 15.000 euros;
- Tal pretensão mereceu daquela entidade decisão parcialmente procedente, o que motivou a
sua impugnação judicial por parte da referida B……..;
- Remetido o processo administrativo aos Juízos Cíveis do Porto, onde inicialmente foi
distribuído, veio a ser proferido despacho pelo Exmo. Sr. Juiz do ….º Juízo, ….ª secção a
considerar competentes para conhecer dessa impugnação os Juízos de Pequena Instância
Cível, por entender nomeadamente que a decisão a tomar quanto à mesma (impugnação)
não era susceptível de recurso;
- Transitada tal decisão, foram os autos enviados aos Juízos de Pequena Instância Cível do
Porto, onde, por sua vez, o Exmo. Sr. Juiz do ….º Juízo, ….ª secção veio a considerar
incompetentes aqueles Juízos para apreciação da aludia impugnação, sendo competentes
para o efeito os Juízos Cíveis do Porto, posto a estes competir conhecer da causa conexa
com o pedido de apoio judiciário formulado.
Face ao quadro descrito, a questão que se coloca consiste em saber a quem cabe o
conhecimento da impugnação judicial de decisão administrativa atinente a pedido de
concessão de apoio judiciário, mais precisamente, no caso em análise, se aos Juízos Cíveis
do Porto, se aos Juízos de Pequena Instância Cível do Porto.
Numa primeira observação, não se levantarão dúvidas que o regime aplicável ao apoio
judiciário solicitado é o introduzido pela Lei n.º 34/04, de 29.7, entrada em vigor a 1.9.04,
sendo que aquele (pedido) foi deduzido pela identificada interessada após a data atrás
referida – v. arts. 51 e 53 da cit. Lei.
E, nos termos do art. 28 dessa Lei, a competência “para conhecer e decidir a impugnação
cabe ao tribunal em que está sediado o serviço de segurança social que apreciou o pedido de
protecção jurídica, ou, caso o pedido tenha sido formulado na pendência da acção, o tribunal
em que esta se encontra pendente” (n.º 1);
sendo que,
“nas comarcas onde existam tribunais judiciais de competência especializada ou de
competência específica, a impugnação deve respeitar as respectivas regras de competência”
(n.º2).
Situando-se a problemática que importa analisar no âmbito da competência em razão da
matéria, o legislador em ordem a fixá-la apela também a elementos de conexão de natureza
processual.
Assim, numa primeira vertente, é atribuída a competência para conhecer da aludida
impugnação judicial ao tribunal de comarca em que está sediado o serviço de segurança
social que apreciou o pedido de protecção jurídica ou, para a hipótese dele ter sido deduzido
na pendência da acção, ao tribunal da causa.
Numa segunda vertente e para a hipótese de os serviços de segurança social que proferiram
a respectiva decisão impugnada estarem sediados em comarca em que existam tribunais de
competência especializada ou órgãos jurisdicionais de competência específica, dever-se-á
obedecer, relativamente à instauração da impugnação, às correspondentes normas de
competência.
Equivale a dizer para esta última vertente – pluralidade de tribunais de competência
especializada ou específica – que a competência para apreciação da impugnação judicial é
definida pela competência para conhecer da causa conexa com o pedido de apoio judiciário.
Assim é que, existindo na área da comarca onde foi proferida a mencionada decisão
administrativa pluralidade de órgãos jurisdicionais de competência específica, a competência
para conhecer da sua impugnação caberá ao órgão jurisdicional que seja competente para o
conhecimento da acção a que se reporta o pedido de protecção jurídica.
Nessa medida, como escreve Salvador da Costa, a competência para conhecer da
impugnação dilui-se, conforme as situações, pelos vários tribunais da ordem judicial – v. g.,
varas cíveis, varas criminais, juízo cíveis, juízos de pequena instância cível, ou seja, pelos
vários tribunais de competência especializada ou específica – in “O Apoio Judiciário”, 5.ª ed.,
pág. 186.
Ora, no caso em presença, a respectiva interessada – B…… – solicitou apoio judiciário tendo
em vista beneficiar de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos para
acção condenatória de natureza cível que pretende intentar, cujo valor em princípio não
ultrapassará o da alçada do tribunal da Relação, mas será superior à de 1.ª instância.
Por outro lado, compete aos juízos cíveis preparar e julgar os processos de natureza cível
que não sejam da competência das varas cíveis e dos juízos de pequena instância cível (art.
99 da LOFTJ).
Dentro deste quadro e em face dos elementos que instruem os presentes autos, a
competência para conhecer da acção a intentar pela requerente do apoio judiciário caberá
aos juízos cíveis, já não a outro tribunal de competência específica, como seja os juízos de
pequena instância cível.
Definida a competência para a apreciação da causa a instaurar, delimitado estará também
qual o tribunal competente para conhecer e decidir a impugnação da aludida decisão
administrativa, seguindo o critério definidor que referimos e colhe apoio no n.º 2, do art. 28
da LAJ.
Tal constatação não é abalada pela circunstância da decisão que aprecie a impugnação
judicial não ser passível de recurso para a Relação – como entendemos que assim seja, aliás
no seguimento da posição também defendida pelo aut. na ob. cits., pág. 183 – posto o
elemento definidor da competência para a apreciação daquela impugnação ter como ponto
de referência a causa a intentar e não a natureza do processo de impugnação judicial de
decisão administrativa, não sendo neste concreto aspecto de chamar à colação o disposto no
art. 101 da LOFTJ.
Equivale o que se vem expondo a considerar competente para conhecer da mencionada
impugnação judicial os Juízos Cíveis do Porto, afastando no caso em análise essa
competência dos Juízos de Pequena Instância Cível do Porto.
3. CONCLUSÃO.
Pelo exposto, resolvendo o presente conflito, decide-se deferir a competência para conhecer
do recurso de impugnação da decisão administrativa relativa a protecção jurídica à 2.ª
secção do 3.º Juízo Cível do Porto.
Sem custas.
Porto, 14 de Setembro de 2006
Mário Manuel baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Apelação/Agravo nº 1306/06-5ª Sec.
Data – 02/10/2006
4995 (Boletim Interno nº 26)
MARCAS
VIOLAÇÃO
TRIBUNAL COMPETENTE
COMPETÊNCIA MATERIAL
Sumário
Se a causa de pedir invocada pelos AA. versa, essencialmente, sobre a violação de um direito privativo
que se arrogam – o direito à marca – a competência em razão da matéria compete, no caso, ao Tribunal
de Comércio de Vila Nova de Gaia e não às Varas Cíveis do Porto.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
No Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, B……., S.P.A., C……., Lda. e D……., SA
intentaram acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra E…….., Lda,
pedindo que:
a) Seja ordenada a imediata apreensão e destruição de todos os artigos ópticos de marca
F…… que se encontrem na instalações da Ré, quer na sua sede – Av. …….., …., …..º, sala …,
Porto, quer no seu salão de exposição sito na R. ……, ….., Porto;
b) Seja ordenada a proibição de comercialização, em Portugal, pela Ré, de artigos ópticos da
marca Police não produzidos pela legítima titular da marca em Portugal;
c) Seja ordenado o encerramento do site www……..pt;
d) Seja a Ré obrigada a abster-se de vender directamente ao público os “restos” das
colecções das marcas Rolling, Police, Vogart, Etro, Martini, Charme, La Perla, Dr Hi – Tech,
Lozza, Fila Old Ttaly que ainda tenha em stock, como se fossem actuais, abaixo do preço de
custo ou com redução de preço;
e) Seja a Ré obrigada a abster-se de, no exercício da sua actividade e por qualquer meio,
fazer referência ao nome da primeira Autora, bem como a reproduzir os sinais distintivos da
terceira Autora;
f)Seja a Ré condenada a pagar á primeira Autora, uma indemnização equivalente à
contrapartida decorrente da não entrada no património desta Autora do preço de uma licença
de exploração da marca Police para Portugal, a liquidar em execução de sentença.
Alegaram para tanto, os fundamentos seguintes:
De facto:
1.º
A B…… S.P.A. é a sociedade mãe do grupo B….., que constitui um dos principais grupos
ópticos internacionais.
2.º
As empresas do grupo B…… fabricam, exportam e comercializam artigos ópticos de marcas
de que o próprio grupo é titular, isto é, registadas em seu nome nos principais mercados
internacionais, incluindo Portugal. É o caso das marcas POLICE, STING, ROLLING e LOZZA,
3.º
Bem como de marcas fabricadas e comercializadas ao abrigo de Licenças de Exploração de
Marca. É o caso das marcas FENDI, FILA, ETRO, LA PERLA, ONYX, CELINE, LOEWE,
GIVENCHY e PRADA.
4º
A F……, Lda é uma empresa portuguesa que se dedica à importação e venda por grosso de
artigos ópticos fornecendo, desta forma, os retalhistas que, por sua vez, vendem esses
produtos ao consumidor final.
5º
Esta empresa é, actualmente, por via de um contrato de distribuição comercial celebrado
com o grupo B….., o distribuidor para o mercado português dos produtos produzidos por este
grupo.
6.º
A D…… S.A., por seu turno, adquire, por grosso, produtos ópticos que revende directamente
aos consumidores finais, através da numerosa cadeia de lojas que possui: 131 em Espanha e
10 em Portugal.
7.º
Em Fevereiro de 2000, esta cadeia de lojas foi adquirida em 100% pelo grupo B……, no
âmbito de uma política de expansão na área da comercialização directa, desenvolvida por
este grupo.
8º
No que respeita ao mercado português, a comercialização e distribuição dos produtos
produzidos pelo grupo B…… estão organizadas da seguinte forma: F……, Lda importa os
produtos fabricados por aquele grupo italiano e posteriormente procede à sua distribuição
pelos diversos retalhistas, que, por sua vez, os revendem directamente ao consumidor final.
9º
A Ré é uma empresa portuguesa constituída em 06/09/1990, que logrou obter o registo de
uma firma que, como se pode constatar, reproduz integralmente a firma da Autora D…….
S.A.
10.º
Não obstante a marca internacional “D…….” nº 483246 se encontrar validamente registada
no nosso país (extensão a Portugal) desde 08/03/1985, em nome desta Autora.
11º
O que acarreta a anulabilidade da firma da Ré, por confundível com o sinal daquela Autora
anteriormente registado.
12º
No entanto, como em 13/02/97, a D…… S.A. renunciou à referida marca internacional, a Ré
convenceu-se que tal renuncia sanava a anulabilidade do seu registo,
13º
Por outro lado, desconhecia a concessão à D……, S.A. da marca comunitária nº 573592, cujo
depósito foi efectuado em 10/07/97, mas com efeitos a partir de 15/01/97, por haver sido
reivindicada a prioridade de um pedido de registo anteriormente feito, naquela data, para a
mesma marca em Espanha - o que retira àquela renuncia qualquer efeito útil, porque
aquando dessa renuncia, a denominação D…… já se encontrava protegida em Portugal pela
Marca Comunitária.
14.º
Por isso, intentou uma acção de anulação da marca internacional nº483246 cuja extensão foi
novamente registada em Portugal em 14/02/97 e da firma da D…… S.A. - Sucursal em
Portugal registada em 1998.
15.º
Ao que a D……. S.A. respondeu com um pedido de reconvenção peticionando a anulação da
firma da Ré.
16.º
Mas este facto, e só este, constitui já objecto de processo judicial próprio que corre termos
na …ª Vara Cível de Lisboa, …ª secção, Proc. nº …./99.
17º
Apenas se refere aqui, para explicar a identidade das firmas da Autora D…… S.A., que
desenvolve a sua actividade em Espanha desde 1964 e está presente no mercado português
desde a década de 80, e da Ré, constituída em 1990, e o carácter parasitário do decalque.
a marca police
18º
A B……. é, como se disse, titular, entre outras, da marca internacional POLICE, registada em
Portugal sob o nº 502 734, para assinalar produtos da classe 9 (óculos e suas partes), sendo
que, a extensão desta marca internacional está igualmente registada em nome da B…… nos
seguintes países: Alemanha, Áustria, Benelux, Egipto, França, Suiça e, obviamente, em
Itália.
19.º
No entanto, em Espanha a marca POLICE encontra-se registada em nome de uma empresa
espanhola denominada “G……., S.A,” totalmente independente da B……, quer do ponto de
vista jurídico quer económico.
20º
Por isso a B…… ou qualquer das empresas que integram o seu grupo económico, não
exporta, distribui ou comercializa, em Espanha, produtos da marca POLICE, por si
produzidos.
21º
Caso contrário estariam a ser violados os direitos de propriedade industrial da referida G…… .
22.º
No entanto, já o inverso não acontece,
23º
Porque a Ré está a importar e a comercializar em Portugal óculos marcados com a
designação POLICE, não produzidos pela B……, ou por terceiro com o seu consentimento, que
é a legítima titular desta marca em Portugal.
24º
Mas sim pela referida G……, que é, como se viu, uma entidade jurídica e economicamente
independente da G….. .
25º
Este facto está a causar à B…… prejuízos, que se traduzem, por um lado no desvio de
clientela - com a consequente quebra nas vendas.
26º
Porque só a B……., ou terceiros por ela autorizados, pode produzir, distribuir e comercializar,
em Portugal, óculos desta marca.
27º
Ou seja, a mais-valia do seu negócio, relativamente aos seus concorrentes resulta
precisamente desta exclusividade conferida pelo registo.
28º
O que significa que, sendo-lhe retirada ilegalmente essa exclusividade – fazendo-se tábua
rasa dos direitos de propriedade industrial –, vê afectado o núcleo essencial da sua
actividade.
29.º
E por outro, na depreciação do valor económico da própria marca,
30.º
Que perde a sua capacidade distintiva, porque passam a existir no mercado produtos
idênticos, de origens diferentes, marcados com o mesmo sinal.
31.º
Correndo o seu legítimo titular o risco de lhe ser imputada a inferior qualidade de produtos
não produzidos por si, mas assinalados com uma marca idêntica e por isso confundível com a
sua.
2.2. concorrência desleal
32.º
A Ré tem como objecto “o comércio por grosso, importação e exportação de artigos de
óptica”, ou seja, não faz parte do seu objecto a comercialização directa ao público, sendo por
isso formalmente uma concorrente da Autora F……, Lda, encontrando-se ambas ao nível da
distribuição.
33.º
O sócio maioritário da Ré, H……, é também sócio maioritário das seguintes empresas:
I……, Lda, que tem como objecto “comércio por grosso, importação e exportação de artigos
de óptica”;
J……., Lda, que tem como objecto “comércio, importação e exportação de artigos de óptica,
aparelhos de precisão e fotografia”;
Que, juntamente com a Ré, formam o autodenominado “L…….”.
34.º
Até 15.12.00 o grupo L……, primeiro através da J…… e depois através da I……, manteve
relações comerciais com a B…… S.p.A, com base num contrato de distribuição comercial
celebrado entre ambas, por via do qual aquelas empresas adquiriam por grosso à B…… os
produtos produzidos por esta, os quais revendiam aos diversos retalhistas a operar no
mercado português.
35.º
Contudo, em 15.12.00, a I…… rescindiu unilateralmente o contrato de distribuição com a
B…… S.p.A. (então denominada M….., s.r.l).
36.º
E, para além de não ter pago um conjunto de fornecimentos, no valor de EUR 697.547,19,
feitos pela B……, que se viu obrigada a intentar a competente acção de cobrança - que se
encontra a correr termos na ….ª Vara Cível do Porto, …ª Secção, proc. nº …../2001.
37.º
Ainda ameaçou a B……., em atitude de represália, de vender os produtos que conservou em
seu poder a preço de custo conforme melhor resulta do fax que, em 22/01/2001, lhe dirigiu.
38.º
Recentemente as Autoras constaram que a Ré não só concretizou as suas ameaças, como foi
mais além.
39.º
Assim, como forma de escoar o seu stock, constituído, principalmente, por "restos" de
colecções dos anos de 1998, 1999 e 2000, fugiu aos circuitos tradicionais de comercialização
e às normas que regulam as vendas em saldo e liquidação,
40.º
E, usando um site Internet, no qual integrou, por decalque, o conjunto gráfico-figurativo
existente nas lojas da D……., S.A. e fazendo referência ao nome da B….. sem que para tal
esteja autorizada.
41.º
Passou a vender directamente ao público e a um preço único de 25 euros, as marcas
produzidas, distribuídos e comercializados pelas Autoras, como verdadeiros artigos de feira.
42.º
Criando em Portugal um verdadeiro mercado negro de artigos ópticos.
43.º
Do teor do referido site destacamos as seguintes menções:
Vendemos lotes de 50 peças (armações e óculos de sol) das marcas aqui representadas
[ROLLING, POLICE, VOGART, ETRO, FENDI, MARTINI, CHARME, LA PERLA, DR HI - TECH,
LOZZA, FILA, OLD ITALY] a 1.250 euros cada lote.
Não perca a oportunidade de adquirir peças de origem actuais fabricadas pela M……, s.r.l. Grupo B….., ……, ITÀLIA
Preço único 25 euros
(sublinhado nosso)
44.º
As Autoras nada teriam a opor ao escoamento do stock da Ré não fosse:
45.º
A utilização abusiva do conjunto gráfico-figurativo da D……., S.A.;
46.º
A referência não autorizada ao nome da B……. S.p.A;
47.º
A venda directa ao público, vedada pelo seu objecto social que é o comércio por grosso,
importação e exportação de artigos de óptica;
48.º
A venda de produtos depreciados como se fossem actuais;
9.º
A venda de produtos a abaixo do preço de custo:
50.º
Porque, tendo em conta que 1 € é o contravalor de 1936,27 LIRAS ITL (taxa fixa de
conversão), todos os produtos adquiridos por um preço superior a 48.406,75 LIRAS ITL
(contravalor de € 25), deduzidos dos respectivos descontos de quantidade ou outros, estão a
ser vendidos a baixo do preço de custo - em violação do disposto no Decreto-Lei nº 370/93,
de 29/10.
51.º
Na verdade, estão a ser vendidos nestas condições os produtos constantes das seguintes
facturas que titularam a aquisição destes bens pela Ré:
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
nº
nº
nº
nº
nº
nº
nº
nº
nº
nº
425/C3 - Doc. nº15
609/A3 - Doc. nº29
332/E3 - Doc. nº 16
486/C3 - Doc. nº 30
332/E3 - Doc. nº 17
262/A3 - Doc. nº 31
177/E3 - Doc. nº 18
158/E3 - Doc. nº32
338/A3 - Doc. nº19
213/E3 - Doc. nº 33
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
Fact.
52.º
nº 259/E3 - Doc. nº20º
nº 599/E3 - Doc. nº34
nº 562/A3 - Doc. nº21º
nº 599/E3 - Doc. nº35
nº 1172/A3 - Doc. nº22
nº1254/A3 -Doc. nº36
nº 1172/A3 - Doc. nº23
nº 625/E3 - Doc. nº37
nº 1190/A3 - Doc. nº24
nº 631/C3 - Doc. nº38
nº 1190/A3 - Doc. nº 25
nº 694/E3 - Doc. nº39
nº 1380/A3 - Doc. nº26
nº 279/A3 - Doc. nº40
nº 83/A3 - Doc. nº27º
nº 514/A3 - Doc. nº41
nº 83/A3 - Doc. nº28
nº 995/A3 - Doc. nº42
Quanto aos demais artigos, estão a ser vendidos com redução de preço, porque, quando
actuais, eram vendidos pela Ré, a preços, pelo menos, duas e três vezes mais elevados do
que os 25 euros agora praticados.
53.º
Sem que, da oferta de venda, constem:
- os elementos suficientes para que os consumidores possam ajuizar da natureza dos bens
em causa;
- a data do início da oferta e o período da sua duração;
- a referência aos preços anteriormente praticados para os mesmos produtos e a
percentagem da redução.
Na verdade,
54.º
A imagem da D…… S.A. e o nome da B……, S.p.A. estão a ser indevidamente utilizados pela
Ré e os preços praticados no aludido site estão a perverter de forma flagrante as regras do
mercado.
55.º
A situação é de tal forma gravosa e assumiu proporções tais, que os consumidores se vêm
dirigindo, cada vez mais, às lojas da D….., S.A. solicitando a venda dos produtos anunciados
no site em causa, nas condições e preços aí referidos.
56.º
Tanto assim é, que a D….., S.A. se viu obrigada a emitir um comunicado na imprensa
explicando aos seus consumidores a inexistência de qualquer relação entre as suas lojas e o
referido site, demarcando-se de qualquer responsabilidade pelos produtos aí anunciados.
57.º
Note-se, a título de exemplo, que as marcas vendidas pela Ré no referido site, são
comercializadas no mercado a preços duas, três, quatro e cinco vezes mais elevados, do que
os praticados pela Ré no dito site.
58.º
Com o aludido anúncio a D……, S.A. pretendeu esclarecer os seus clientes de que não era
responsável por este site e, portanto, não se responsabilizava pelo seu conteúdo.
59.º
A Ré, incapaz de justificar os seus actos nas instâncias devidas, recorreu a meios torpes para
atingir o bom nome e o prestígio da D…… S.A.,
60.º
Fazendo publicar na Imprensa o anúncio que se junto como doc. nº 44.
61.º
No qual são atribuídos à D….. S.A., factos absolutamente falsos e são formulados juízos
ofensivos do seu bom-nome, credibilidade e prestígio comerciais.
62.º
É, nomeadamente, o caso do trecho em que se refere que A empresa espanhola D….. S.A.
apresentando-se, falsamente, aos olhos do público como titular de diversas marcas
internacionais de óculos (…)
63.º
Ora, em lado nenhum do anúncio publicado pela D….. S.A. se diz que esta empresa é a
titular de quaisquer marcas.
64.º
Na verdade, a D….., S.A. só comercializa produtos com autorização dos fabricantes e
titulares das referidas marcas, pelo que lhe foi imputada uma actuação conscientemente
falsa, com o único propósito de manchar o seu nome comercial.
65.º
Mais, tal afirmação nunca poderia ter sido feita porque quem fabrica e produz as aludidas
marcas é a B…… S.p.A, que é, como se disse, a sociedade mãe do grupo de empresas em
que está integrada a D….., S.A..
66.º
Assim, a Ré acusou, na praça pública, a D……, S.A. de estar a usar marcas ilegalmente,
67.º
Ou seja, acusa (falsamente) esta Autora da prática de um crime, p.p. pelo art. 264º do CPI.
68º
Continua o referido anúncio: (…) pôs a circular através de anúncios na imprensa, a calúnia
de que os óculos vendidos pela E……, Lda (…) não seriam autênticos, mas sim contrafacção
das respectivas marcas registadas e, por isso, venda ilegal.
69º
Tal afirmação é também rotundamente falsa, pois em momento algum se faz referência à
E……, Lda, nem ao facto dos artigos serem ou não contrafeitos,
70º
Diz-se sim, que a venda é ilegal, porque viola as regras da concorrência e atento o decalque
do conjunto gráfico-nominativo de que a D……, S.A. é a legítima titular.
71º
Por último, e mais recentemente, a Ré pôs a circular, entre os agentes económicos do sector
óptico, o fax que se junta como doc. nº 45 - o próprio subscritor destas linhas foi brindado
com a recepção deste documento.
72.º
Onde, de forma descontextualizada, alardeia - numa clara instrumentalização dos tribunais -,
o desfecho da providência que antecedeu a presente acção.
73.º
Com o único intuito de incutir no mercado a ideia falsa de que aquela decisão lhe reconhece
o direito de importar e comercializar em Portugal produtos contrafeitos.
74.º
Quando é exactamente o contrário que resulta da decisão.
75.º
Na verdade é o próprio tribunal que reconhece que o direito à marca POLICE de que a B….. é
titular se encontra ameaçado.
76.º
Este facto, demonstra por si só, os princípios que pautam o exercício da actividade da Ré e a
sua forma de estar no mercado.
77º
Resulta evidente, dos factos acima descritos, que as referências não autorizadas a sinais
alheios, a venda directa ao público, a venda de produtos depreciados como se fossem
actuais, a venda de produtos abaixo do preço de custo e a venda com redução de preço sem
a observância dos requisitos legais, são factos susceptíveis de proporcionar à Ré a
angariação efectiva de clientela à custa do desvio ilegal da clientela das Autoras.
78º
Bem como, afectar gravemente o seu bom nome e reputação comerciais, que demoram anos
a ser conquistados e um par de dias a ruir.
79.º
Sendo certo que a confusão causada nos consumidores, que se vêm dirigindo às lojas da
D……, SA reclamando a compra dos artigos anunciados no site nas condições e preço aí
anunciados, constitui só por si um dano efectivo.
80.º
Pois, a proibição da concorrência desleal tem por finalidade disciplinar as actividades
susceptíveis de ocasionar um prejuízo causado pela confusão com os produtos, os serviços
ou o crédito de uma empresa concorrente.
De direito
2. A violação do direito à marca
81º
Pelas razões de direito que a seguir se expõem, pretendem as Autoras, com a presente
acção, a cessação imediata dos actos contrários às normas da leal concorrência, descritos
em 2.2..
82º
Trata-se pois, de uma acção que a doutrina tem classificado como inibitória ou de cessação.
Assim sendo,
83º
Nos termos do art. 167º nº 1 do CPI: “Aquele que adopta certa marca para distinguir os
produtos ou serviços de uma actividade económica ou profissional gozará da propriedade e
do exclusivo dela desde que satisfaça as prescrições legais, designadamente a relativa ao
registo”
84º
Com efeito, “O titular do direito à marca adquire o direito de a usar, em exclusivo – direito
esse que comporta assim, um círculo de permissão e outro de proibição -, nos produtos
indicados no seu pedido de registo, pelo que terceiro não pode registar nem usar a marca
igual ou confundível para os mesmos produtos ou para produtos com afinidade
merceológica”. Ac. STJ de 02/04/98, in www.dgsi.pt, nº convencional JSTJ00034746.
85º
Trata-se de um direito sobre um bem imaterial – um sinal –, que tem por conteúdo a
exploração económica exclusiva desse sinal, com vista a distinguir a proveniência
empresarial de determinado produto ou serviço.
86º
Tal conteúdo concretiza-se, em primeira linha, na possibilidade do titular apôr essa marca
nos produtos a que se destina - função distintiva da marca -, mas também na faculdade de
se opor à sua utilização por terceiros – carácter da exclusividade.
87º
O que significa, conforme o acórdão supra citado, que um terceiro não poderá utilizar o sinal
que constitua a marca de outrem em termos de lesar o correspondente direito.
88º
A questão que se coloca nos presentes autos, é pois, a de saber se a B……., enquanto titular
da marca em Portugal, se pode opor à importação e comercialização em Portugal de
produtos idênticos, assinalados com a mesma marca, mas fabricados em Espanha por um
terceiro estranho ao grupo B…… .
89º
A resposta a esta questão há muito que foi dada pelo Tribunal de Justiça das Comunidades
que, desde 1976, em Acórdãos sucessivos, tem vindo a reconhecer - em sede de reenvio
prejudicial -, o direito do titular da marca se opor à importação e comercialização de
produtos idênticos, assinalados com a mesma marca, mas colocados no mercado por um
terceiro jurídica e economicamente independente desse titular.
90º
Por isso não resistimos a citar a conclusão do Acórdão TERRAPIN/TERRANOVA de
22/06/1976, (Proc. nº 119/75), que reza assim:
91º
"É compatível com as disposições do Tratado da CEE, relativas à livre circulação de
mercadorias, que uma empresa estabelecida num Estado membro, titular de uma marca
registada nos termos da legislação desse estado, possa impedir a importação de produtos de
uma empresa estabelecida noutro Estado membro, cujo nome, titulado segundo a legislação
desse Estado, dê origem a uma confusão com a marca registada da primeira empresa, desde
que não existam acordos, entre ambas, restritivos da concorrência e não hajam quaisquer
laços, legais ou económicos, entre as empresas e que os respectivos direitos sobre a marca
tenham nascido independentes um do outro".
92.º
Bem como do Acórdão proferido pelo mesmo tribunal no caso HAG II de 17/10/1990 (Proc.
nº C-10/89), cujo ponto 16 do seu sumário transmite o seguinte:
93.º
"Com efeito a função da marca ficaria comprometida se o titular do direito não pudesse
exercer a faculdade que a legislação nacional lhe confere de se opor à importação do produto
similar com uma denominação susceptível de confusão com a sua própria marca, pois nesse
caso os consumidores não teriam a possibilidade de identificar com certeza a origem do
produto que exibe a marca e ao titular do direito de marca podia vir a ser imputada a má
qualidade de um produto pelo qual não seria de forma alguma responsável."
94.º
Mas, estranhamente, esta jurisprudência ainda não foi assimilada - ao arrepio da lei nacional
e comunitária -, por alguns tribunais portugueses.
95.º
Assim, numa decisão inédita - em que se colocava exactamente a mesma questão, à
excepção da identidade da Ré, que era naquele caso a "N……, S.A. -, o Tribunal da Relação
de Lisboa veio negar à B…… o direito de se opor à importação e comercialização em Portugal,
por esta empresa, dos óculos produzidos pelo dita G…… .
96.º
Esta decisão que veio, infelizmente, a ser considerada como um case study, ensinado nas
faculdades de direito e comentado pela doutrina, como um bom exemplo da confusão que
paira na mente de alguns juristas, sobre conceitos como: Princípio da Territorialidade das
Marcas, Princípio do Esgotamento do Direito à Marca, Importações Paralelas, Contrafacção e
Princípio da Livre Circulação de Bens e Mercadorias no Mercado Comum,
97º
Tem sido invocado pela Ré - nomeadamente fê-lo na providência cautelar que antecedeu a
presente acção -, para legitimar a sua conduta prevaricadora.
98º
Ora, este aresto foi largamente comentado pela doutrina, a cujas considerações iremos
lançar mão, porque valem ipsis verbis para o presente caso.
99º
Com efeito, o Tribunal da Relação de Lisboa, baseado numa interpretação, no mínimo, sui
generis do art. 208º do Código da Propriedade Industrial e socorrendo-se da opinião
alegadamente defendida pela doutrina - neste caso por Pedro Sousa e Silva, na sua obra
Direito Comunitário e Propriedade Industrial -, considerou estar-se perante um caso de
importações paralelas, o que determinaria o esgotamento do direito de exclusivo do titular
da marca, a B……,
100.º
Que por isso, careceria de qualquer legitimidade para se opor a tais importações, bem como
à sua comercialização em Portugal.
101.º
O autor citado, perante tão equivoca e inusitada interpretação do referido dispositivo legal e
a deturpação das suas palavras, sentiu necessidade de vir comentar o Acórdão em apreço, e
fê-lo nos seguintes termos:
102º
O recente acórdão da Relação de Lisboa, teve artes de decidir de modo diametralmente
oposto ao que impunham os princípios e as normas, nacionais e comunitárias, com a
particularidade bizarra de o fazer invocando, como apoio doutrinário, uma obra do autor
destas linhas em que este tentava – pelos vistos malogradamente – defender justamente o
contrário daquilo que foi decidido - Direito Industrial, Almedina, Vol. II, pág. 251.
103.º
Desde logo porque, e continuamos a citar Pedro Sousa e Silva, não faz sentido sublinhar,
como fez a Relação, que os óculos espanhóis tinham sido legalmente fabricados, ao abrigo
de uma marca registada, e posteriormente comercializados com autorização do titular da
marca espanhola. Dizer isso, é ignorar o princípio da territorialidade dos direitos de
propriedade industrial e esquecer o carácter territorial dos direitos de marca: as marcas de
registo nacional, aqui em causa, só conferem protecção dentro dos limites do território do
Estado que as concede. (in, ob. cit. p.253)
104º
Pelo que, a marca portuguesa e a espanhola não são uma mesma e só marca, mas sim duas
marcas independentes, pertencentes a empresas diversas, sem qualquer ligação entre si. E o
facto de os dois sinais serem iguais ou parecidos não torna igual a proveniência dos
produtos, nem torna estes produtos iguais, com a mesma qualidade e características.
105.º
Ou seja, existem de facto, duas marcas idênticas mas em dois países distintos e
pertencentes a dois titulares também distintos.
106.º
Assim, os óculos POLICE produzidos e comercializados pela B…… só podem ser
comercializados no território português, e em regime de exclusividade, e os óculos POLICE
produzidos e comercializados pela “G…….”, só podem ser comercializados por esta ou por
alguém com o seu consentimento no mercado espanhol.
107º
Como escreve o autor que temos acompanhado, à luz da lei portuguesa, estes óculos
espanhóis não podem beneficiar de qualquer legitimação, pois não foram fabricados ao
abrigo da marca registada em Portugal, nem comercializados com autorização do titular da
marca portuguesa. Face à lei portuguesa, são produtos contrafeitos, cuja importação e
comercialização pode ser impedida pelo titular do registo português. (ob. cit. pág. 253)
(sublinhado nosso).
108º
Mas o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que tendo os ditos óculos espanhóis sido
comprados à “G……”, em Espanha, onde a mesma é a legítima titular da marca, se estava
perante um caso de esgotamento do direito industrial nos termos do art. 208º do CPI.
109º
Segundo o qual os direitos conferidos pelo registo da marca não permitem ao seu titular
proibir o uso desta para produtos comercializados na Comunidade sob essa marca pelo
titular ou com o seu consentimento.
110º
Donde a primeira conclusão que se deve retirar é, salvo o devido respeito, o completo
desfasamento entre a norma invocada e a situação em apreço.
111º
Porque, como acentuadamente indica Pedro Sousa e Silva, o esgotamento do direito à
marca, nos termos do transcrito art. 208º do CPI, acontece apenas quando essa introdução
no comércio seja imputável ao titular da marca no país em que a questão da licitude se
coloca, i.e., ao titular da marca no país da importação. Ou seja, só haverá esgotamento do
direito do titular da marca portuguesa se a colocação do produto no mercado estrangeiro foi
efectuada por si próprio, ou por alguém que tenha agido com o seu consentimento (in ob.
cit. pp. 253-254 sublinhados originais).
112.º
Ora, não foi a B…… quem colocou os óculos em questão no mercado, foi uma Sociedade
espanhola intitulada “G…….” que os colocou no mercado espanhol, o único onde tem
legitimidade para o fazer. Foi a Ré quem os importou para Portugal e os revende no mercado
português sem o consentimento da B……., a legítima titular da marca POLICE em Portugal.
113º
Pelo que, não se está aqui, de forma alguma, perante um caso de importação paralela e
muito menos de esgotamento do direito à marca, nos termos do art. 208º do CPI.
114.º
Para que não restem dúvidas leia-se, pela última vez, Pedro Sousa e Silva, quando afirma
que é isto aliás que resulta de uma leitura atenta do artigo 208º/1 do CPI: o esgotamento
abrange unicamente os produtos comercializados pelo titular ou com o seu consentimento. E
o “titular” de que a lei fala é, obviamente, o titular do registo da marca em Portugal. Ao
considerar que a colocação de um produto no mercado, feita pelo titular da marca
espanhola, esgotava o direito relativo à marca portuguesa, a Relação fez uma leitura errada
desta disposição, invocando a despropósito a regra do esgotamento e o princípio comunitário
da livre circulação de mercadorias, em que tal regra assenta. Quando estão em causa
titulares independentes de marcas iguais ou confundíveis, não há esgotamento, e prevalece
o direito de marcas, cedendo nesse caso a liberdade de circulação de mercadorias, tal como
se previa expressamente no art. 36º do Tratado de Roma (in ob. e p. cit. sublinhados
originais).
115.º
Donde a conclusão, óbvia, já por demais escrita, é que os óculos em questão são mercadoria
contrafeita e a sua importação e comercialização constituem uma violação do direito à marca
POLICE de que a B…… é titular em Portugal.
Isto posto,
116.º
A consequência imediata da violação do direito à marca é a cessação dessa violação.
117.º
Mas, havendo danos, é pacífico, na doutrina e na jurisprudência, que sobre o responsável
pela violação incide uma obrigação de indemnizar o titular pelos prejuízos causados com a
sua conduta.
118.º
Estes prejuízos traduzem-se, no caso concreto, como se disse, por um lado, no desvio de
clientela, - com a consequente quebra nas vendas -, e por outro na depreciação do valor
económico da marca.
119.º
Neste tipo de danos, assume especial relevo o problema da quantificação, pois o desvio de
clientela só poderá ser concebido como o dano concreto decorrente da violação do direito à
marca se se puderem identificar os consumidores que se transferiram de um concorrente
para outro na sequência da violação.
120.º
Apesar de tudo, e por forma a contornar esta tarefa quase impossível, a jurisprudência e a
doutrina, nos casos de violação do direito à marca, vêm considerando que o prejuízo, nestes
casos, é pelo menos igual ao valor de uma licença de exploração da marca violada para o
território onde ocorreu a violação.
121.º
Neste sentido pronunciou-se recentemente o Tribunal da Relação do Porto da seguinte
forma: Condenado o arguido por crimes de contrafacção, imitação de marca e concorrência
desleal, tem o titular do direito de utilização e comercialização da marca o direito a receber
do arguido o valor equivalente à contrapartida decorrente da não entrada no seu património
do "preço" da autorização para o seu uso. Ac. da RP de 13/03/2002, in www.dgsi.pt, nº
convencional JTRP00034160.
122.º
Sucede que, a B……. não dispõe, actualmente, de elementos que lhe permitam determinar o
valor de uma licença de exploração da marca POLICE para Portugal, devendo tal valor ser
determinado mediante uma avaliação a realizar por peritos,
123.º
Pelo que, atenta a impossibilidade de, nesta data, se determinar o valor da indemnização
devida a esta Autora, a liquidação da mesma deverá ser relegada para execução de
sentença.
3. a concorrência desleal
124º
O art. 260º do CPI proíbe a prática de qualquer acto de concorrência contrário às normas e
usos honestos de qualquer ramo de actividade (..).”
125º
Portanto, são requisitos da concorrência desleal a prática de um acto de concorrência e a
inconformidade desse acto com as normas e usos honestos de qualquer ramo de actividade.
(Ac. da RP de 10/07/97, in www.dgsi.pt, nº convencional JTRP00021145) (sublinhado
nosso).
126º
A conduta da Ré, traduzida nos actos acima cronicados, preenche na íntegra estes dois
requisitos.
Senão vejamos,
1) a prática de um acto de concorrência
127º
Só é acto de concorrência aquele que tem repercussões sobre o mercado, influenciando
directa ou indirectamente a clientela, ou seja, é aquele que é idóneo a atribuir, em termos
de clientela, posições vantajosas no mercado.
128º
Pelo que, a concorrência só pode ser apreciada em concreto, pois o que interessa é saber se
a actividade de um agente económico atinge ou não a actividade de outro, através da
disputa da mesma clientela.
129º
Assim sendo, para se estar perante um acto de concorrência é necessário existir um certa
proximidade entre as actividades desenvolvidas pelos sujeitos económicos em causa.
130º
Ora, neste caso, a Ré desenvolve a sua actividade no mesmo ramo de mercado das Autoras
ou seja, o sector óptico - mais concretamente da F……, Lda e da D…… S.A. -, porque, como
se alegou, vende os produtos que anuncia não só aos retalhistas – como a F……, Lda -, mas
também ao público em geral – como a D…… S.A..
131º
Estas Autoras e a Ré disputam assim a mesma clientela, o mesmo é dizer, são concorrentes.
2) a inconformidade desses actos com as normas e usos honestos de qualquer ramo de
actividade
132º
As normas a que o citado artigo 260º do CPI faz referência, não são normas jurídicas, caso
contrário, existiria concorrência ilícita e não desleal, mas sim normas constantes de códigos
de conduta, elaborados, com crescente frequência, por diversas associações profissionais,
traduzindo uma manifestação da autonomia privada.
133º
Por outro lado, os usos honestos, a que este dispositivo igualmente alude, também não são
os usos jurídicos. Se assim fosse, não teria sentido o seu qualificativo como honestos.
134º
São sim comportamentos sociais, ou melhor, padrões de conduta, de carácter ético.
135º
Somos assim levados para o conceito ético, para a consciência ética do comerciante médio,
pois o que está em causa é, fundamentalmente, a correcção profissional no exercício de
determinada actividade.
136.º
Atento o que ficou dito, não pode deixar de considerar-se que:
137.º
Quer a venda de produtos contrafeitos,
138º
Quer a venda, directamente ao público, através do site www……..pt, de "restos" de colecções
das marcas ROLLING, POLICE, VOGART, ETRO, FENDI, MARTINI, CHARME, LA PERLA, DR HI
- TECH, LOZZA, FILA OLD ITALY relativas aos anos de 1998, 1999 e 2000, como se fossem
actuais, abaixo do preço de custo ou com redução de preço fazendo referência não
autorizada ao nome da primeira Autora e decalcando sinais distintivos da terceira Autora,
139º
Repugnam e agridem a consciência ética de qualquer comerciante médio, ou melhor,
140º
São contrários as normas e usos honestos deste ramo actividade
Porque:
141º
A violação do direito à marca não afecta só o seu titular, mas todos os intervenientes na
cadeia de distribuição e comercialização dos produtos dessa marca, nos quais se incluem as
2ª e 3ª Autoras.
142º
Que adquirem produtos originais para revenda, pagando o respectivo preço, que é
necessariamente mais elevado do que o dos produtos contrafeitos, repercutindo-se no preço
final e, consequentemente, no volume de clientela – sofrendo, por isso, com a actuação
ilícita da Ré um rude golpe na sua actividade comercial.
143.º
A venda directa feita por grossistas - vedada pelo seu objecto social -, permite-lhes praticar
preços muito mais baixos que os retalhistas, na medida em que absorvem a margem de
lucro que caberia a estes.
144º
A venda de produtos depreciados, como se fossem actuais, cria a falsa impressão no público
de que as colecções fabricadas, distribuídas e comercializadas, respectivamente, pelas
Autoras, essas sim actuais, são as mesmas a que se faz referência no site.
145º
A venda abaixo do preço de custo é proibida pelo Decreto-Lei nº 370/93, de 29 de
Novembro, por constituir um factor impeditivo da sã concorrência
146.º
A venda com redução de preço, fora dos períodos estabelecidos por lei, sem a indicação dos
elementos suficientes para que os consumidores possam ajuizar da natureza dos bens em
causa, sem a referência à data do início da oferta e o período da sua duração, sem a menção
dos preços anteriormente praticados para os mesmos produtos e a percentagem da redução,
viola o disposto nos arts. 2º, 3º e 4º do Decreto-Lei .nº 253/86, de 25 de Agosto, que para
além da protecção dos consumidores visa também a protecção da concorrência e do
mercado.
147.º
O decalque, pela Ré, dos sinais distintivos da D……, S.A., com vista a criar confusão no
público e a apropriar-se do prestígio desta Autora, as falsas afirmações nos meios de
comunicação social, as referências não autorizadas ao grupo B……, com vista a criar a ilusão
da existência de relações comerciais com esta empresa, afectam gravemente o bom nome e
reputação comercial das Autoras, mormente da B….. e da D….. S.A..
148º
Se um consumidor depara com um site na Internet do teor daquele que está aqui em causa
e no dia seguinte, enquanto passeia num qualquer centro comercial, depara com a montra
da D……, S.A., a primeira justificação que encontra para a disparidade de preços anunciados,
para produtos aparentemente iguais – é a falta de seriedade da D…… S.A..
149º
Estes actos põe, assim, em causa o interesse protegido pelas regras da leal concorrência que
é acima de tudo garantir a preservação de uma estrutura de mercado caracterizado por ser
um mercado aberto, no qual as modificações da oferta e da procura se reflictam nos preços,
a produção e a venda não sejam artificialmente limitadas e a liberdade de escolha dos
fornecedores, compradores e consumidores não seja posta em causa.
No entanto,
150º
Para além dos requisitos que ficaram expostos e segundo o trecho inicial do proémio do art.
260º (quem, com intenção de causar prejuízo a outrem ou de alcançar para si ou para
terceiro um benefício ilegítimo…), a concorrência desleal seria ainda caracterizada por uma
particular intenção do agente.
151.º
Este tipo de menção está ligado à construção de tipos penais. Funciona nestes como um
elemento subjectivo da ilicitude e, mais precisamente, como um dolo específico.
152.º
É verdade que o art. 260º contém um tipo penal, cujo preenchimento depende da verificação
destes elementos subjectivos, no entanto quando se faz a transposição para o civil, os
elementos subjectivos da ilicitude deixam de relevar, surgindo a concorrência desleal não
como um estado mas como uma acção.
Ou seja,
153.º
A concorrência desleal como tipo legal de crime exige o preenchimento do elemento
subjectivo da ilicitude, enquanto que a concorrência desleal como ilícito civil se basta com a
violação das normas e usos honestos de qualquer ramo de actividade.
154º
Apesar de tudo, embora irrelevante para a procedência da presente acção, não podemos
deixar de referir que, atendendo à abundância de factos lesivos dos direitos e interesses das
Autoras e à forma sistemática como a Ré os tem posto em prática, outra coisa não a moveu
senão a intenção consciente de causar prejuízos às Autoras e locupletar-se às suas custas.
155.º
Quanto à verificação do prejuízo a situação é diversa porque, quer no ilícito penal quer no
civil, basta a idoneidade da conduta contrária às normas e usos honestos para causar dano,
não sendo necessária a verificação efectiva desse dano
156º
Ou seja, no crime de concorrência desleal basta a simples idoneidade do acto para atrair
clientela alheia, bastando uma probabilidade de dano e não sendo necessário o dano
efectivo. Ac. da RP de 29/06/94, inwww.dgsi.pt, nº convencional JTRP00012187.
157º
O mesmo se passando no plano civil em que, a proibição da concorrência desleal tem por
finalidade disciplinar as actividades susceptíveis de ocasionar um prejuízo causado pela
confusão com os produtos, os serviços ou o crédito de uma empresa concorrente, não sendo
essencial que do acto de concorrência tenha resultado uma angariação efectiva de clientela:
basta a possibilidade de vir a atingir tal objectivo Ac. STJ de 12/12/96, in www.dgsi.pt, nº
convencional JSTJ00033423. (sublinhado nosso).
158º
É, assim, pacífico na doutrina e na jurisprudência, que não é condição essencial que o acto
de concorrência atinja o fim visado, isto é, a angariação efectiva de clientela, bastando,
apenas a possibilidade de atingir esse fim..
159º
No caso em espécie, resulta das regras da experiência comum, que a utilização abusiva e
referências não autorizadas a sinais alheios, a venda directa ao público, a venda de produtos
depreciados como se fossem actuais, a venda de produtos abaixo do preço de custo e a
venda com redução de preço sem a observância dos requisitos legais, são factos
necessariamente idóneos e susceptíveis de causar às Autoras graves prejuízos que se
traduzem prima facie no desvio de clientes - sob uma perspectiva patrimonial -, e na ofensa
ao seu bom nome e reputação comerciais – sob uma perspectiva moral.
Isto posto,
160º
Estão preenchidos os pressupostos legais para que a presente acção proceda, pois a
exigência de abstenção dos actos desconformes com as normas da leal concorrência surge
como a consequência primária que ordem jurídica pretende assegurar.
Citada, a Ré não contestou, tendo sido considerados confessados os factos articulados pelos
Autores, nos termos do art. 484, n.º 1 do CPC.
As Autoras apresentaram as suas alegações.
Seguidamente, foi proferida decisão, pela qual, se declarou o Tribunal de Comércio
incompetente, em razão da matéria, e competentes as Varas Cíveis do Porto, absolvendo-se
a Ré da instância.
Desta decisão, interpuseram as Autoras recurso de agravo e, alegando, concluíram:
1.Vem o recurso interposto da aliás douta sentença, nos termos da qual, o Tribunal de
Comércio de Vila Nova de Gaia se declarou incompetente em razão da matéria e, em
consequência, absolveu a ré da instância, nos termos do art. 150, n.º 1 do CPC.
2.Nos termos da sentença recorrida, a norma constante da al. f) do n.º 1 do art. 89 da LOTJ
não deve ser interpretada no sentido de incluir na competência dos tribunais de comércio
todas as acções sobre concorrência desleal.
3.De acordo ainda com a sentença em crise, o caso dos autos configura, incontestavelmente,
um caso de concorrência desleal, pelo que o Tribunal de Comércio não é o competente para
conhecer da acção principal mas sim as Varas Cíveis do Porto.
4. O legislador ao elaborar a LOFTJ e ao atribuir competência ao tribunal do comércio para o
julgamento das acções em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial em
qualquer das suas modalidades previstas no Código do Propriedade Industrial fê-lo em
termos gerais e amplos, não fazendo qualquer sentido restringir a aplicação da f) do n. 1 do
artigo 89 LOFTJ unicamente aos direitos privativos da propriedade industrial;
5. A remissão que a LOFTJ faz para o CPI é genérica;
6. Acresce que ao lançar-se mão de uma interpretação restritiva tal como a que sustentou a
sentença recorrida faz-nos cair num contra-senso, na medida em que nos termos da mesma
disposição é aos tribunais do comércio quem cabe sindicar as decisões proferidas pelo
Conselho da concorrência que na sua maioria, como se sabe, versam sobre matéria atinente
à concorrência desleal;
7. É assim nos tribunais do comércio que devem ser intentadas as acções por concorrência
desleal, porquanto, a sua repressão integra a propriedade industrial, nos precisos termos do
artigo l do respectivo código;
8. Por todo o exposto não deveria o Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia ter-se
declarado materialmente incompetente e, em consequência, ter absolvido a Ré da instância;
9. Ainda que assim não se entenda sempre deveria o Tribunal ter decidido de maneira
diferente;
10. A jurisprudência dominante vai no sentido de que os tribunais de comércio não são
incompetentes em razão da matéria para apreciar e julgar questões relativas à concorrência
desleal "tout court", por não se tratar de um direito da propriedade industrial, um direito
privativo;
11. No caso dos autos a questão essencial trazida pelas Autoras, ora recorrentes, foi:
a) que fosse ordenada a imediata apreensão e destruição de todos os artigos ópticos da
marca POLICE que se encontrem nas instalações da Ré;
b) que fosse ordenada a proibição de comercialização, em Portugal, pela Ré, de artigos
ópticos da marca POLICE não produzidos pela legitima titular da marca em Portugal;
c) que fosse ordenado o encerramento do site www……..pt:
d) ser a Ré obrigada a abster-se de vender directamente ao público os "restos" das colecções
das marcas ROLLING, POLICE, VOGART, ETRO, FENDI, MARTINI, CHARME, LA PERLA, DR HITECH, LOZZA, FILA OLD ITALY, ainda que tenha em stock, como se fossem actuais, abaixo
do preço de custo ou com redução de preço;
e) ser a Ré obrigada a abster-se de, no exercício da sua actividade e por qualquer meio,
fazer referência ao nome da primeira Autora, bem como reproduzir os sinais distintivos da
terceira Autora;
f) ser a Ré condenada a pagar à primeira Autora B…… S.P.A. uma indemnização equivalente
à contrapartida decorrente da não entrada no património desta Autora do preço de uma
licença de exploração da marca POLICE para Portugal, a liquidar em sede de execução de
sentença
12. Isto é, o pedido consistia, exactamente, na cessação imediata dos actos contrários à leal
concorrência levados a cabo pela Ré, que se traduzem numa clara e inequívoca violação do
direito à marca;
13. A prática dos actos de concorrência desleal levados a cabo pela Ré surge como
consequência da violação de um dos direitos privativos da propriedade industrial, mormente,
o direito à marca;
14. Ora, quando a violação de direitos privativos se traduz em actos de concorrência desleal,
são os tribunais de comércio competentes para o julgamento dessas mesmas questões;
15. No caso patente a questão essencial discutida é a violação do direito à marca, isto é,
saber se a Autora B……, enquanto titular de uma marca em Portugal se pode opor à
importação e comercialização em Portugal de produtos idênticos, assinalados com a mesma
marca, mas fabricados em Espanha por terceiro sem nenhuma relação com a B……;
16. O que leva a que não possa ser afastada a competência do Tribunal de Comércio de Vila
Nova de Gaia para a resolução da presente contenda;
17. O douto acórdão recorrido, viola, pois, inequivocamente, por erro de interpretação e
aplicação o disposto no artigo 89, n. 1 f) da LOFTJ.
Não houve contra-alegações.
Foi emitido despacho tabelar de sustentação.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (arts. 684,
n.º 3 e 690, n.º 1 do CPC).
A questão que temos de decidir, neste recurso, é a de saber qual o tribunal competente, em
razão da matéria, para preparar e julgar a presente acção:
As Varas Cíveis do Porto (tribunal de competência específica), como foi decidido na 1.ª
instância, ou o Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia (tribunal de competência
especializada), como defendem as Autoras?
Na decisão recorrida, considerou-se que, por se tratar de uma acção cuja causa de pedir
versa sobre actos de concorrência desleal, a competência para a sua preparação e
julgamento não cabe ao Tribunal de Comércio, mas sim às Varas Cíveis, em face do disposto
no art. 89, n.º 1 al. f) da Lei 3/99, de 13 de Janeiro LOFTJ (Lei de Organização e
Funcionamento dos Tribunais Judiciais), preceito que não deve ser interpretado de forma a
incluir no seu âmbito as acções de concorrência desleal.
Defendem as Recorrentes, pelo contrário, que o referido preceito não deve ser interpretado
de forma a restringir a sua aplicação aos chamados direitos privativos da propriedade
industrial, abrangendo, também, as acções fundadas em concorrência desleal.
De qualquer modo, na presente acção, a questão essencial que se discute é a da violação do
direito á marca, pelo que, não poderia ser afastada a competência do Tribunal de Comércio
para a sua resolução.
Como é sabido, a competência jurisdicional (a competência é a medida de jurisdição de um
tribunal) é aferida em relação ao objecto apresentado pelo autor. [Cfr, por todos, Miguel
Teixeira de Sousa, A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, Lex 1994, p.31 e ss.]
O nexo de competência fixa-se no momento da propositura da acção, sendo irrelevantes as
modificações de facto que ocorram posteriormente (art. 22, n.º 1 da LOFTJ).
Os tribunais judiciais de 1.ª instância são, consoante a matéria das causas que lhe são
atribuídas, independentemente da forma de processo aplicável, tribunais de competência
genérica e tribunais de competência especializada, conhecendo estes de matérias
determinadas. Há, ainda, tribunais de competência específica, aos quais compete,
designadamente, conhecer de matérias determinadas pela espécie de acção ou pela forma
de processo aplicável (arts. 66, 67 e 69 do CPC e 64, 77, 78 e ss. e 96 e ss. da LOFTJ).
Os tribunais de comércio são tribunais de competência especializada (art. 78, al. e) da
LOFTJ).
A sua competência está definida no art. 89 da LOFTJ, estabelecendo-se no seu n.º 1, al. f),
que compete aos tribunais de comércio preparar e julgar:
“As acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em
qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial”.
Não se desconhece a controvérsia que tem existido à volta da interpretação desta norma,
discutindo-se se as acções fundadas em concorrência desleal são ou não da competência dos
tribunais de comércio.
À data da entrada em vigor da LOFTJ, vigorava o Código de Propriedade Industrial de 1995
(aprovado pelo DL 16/95, de 24/01).
Era ainda este Código de Propriedade Industrial que vigorava no momento da entrada da
presente acção no Tribunal recorrido (17/06/2003). [O novo Código da Propriedade
Industrial foi aprovado pelo DL 36/2003, de 5 de Março, tendo entrado em vigor no dia 1 de
Julho de 2003.]
Estabelecia-se no art. 1 deste Código que:
“A propriedade industrial desempenha a função social de garantir a lealdade da concorrência
pela atribuição de direitos privativos no âmbito do presente diploma, bem como pela
repressão da concorrência desleal”.
Questionava-se o Prof. Oliveira Ascensão, [Concorrência Desleal, Almedina, 2002, p. 266] se
as acções que tenham por causa de pedir a concorrência desleal ficavam incluídas na
competência dos tribunais de comércio, escrevendo:
“Só o poderiam estar por força do n.º 1 f. As outras previsões não lhes respeitam: inseremse no domínio dos direitos privativos.
Será a concorrência desleal uma acção cuja causa de pedir verse sobre propriedade
industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial?
A concorrência desleal é prevista no Código da Propriedade Industrial. Mas não é, ela
própria, propriedade industrial, é antes sanção de formas anómalas de concorrência. Como
tal escapa á previsão do n.º 1 f.
Não poderá sustentar-se uma aplicação por analogia. Para além das dificuldades gerais da
admissão da analogia neste domínio, não há analogia entre o litígio sobre um direito
privativo e a impugnação por concorrência desleal. Isso resulta exuberantemente da
diferença de natureza das duas figuras.
Concluímos assim que, fosse ou não essa a intenção do legislador, a concorrência desleal
ficou excluída da competência dos tribunais de comércio”. [Claro que, continuava o mesmo
Autor, “Com isto se criam outros problemas.
Com grande frequência, o autor numa acção invoca lesão de um direito privativo e a
concorrência desleal, cumulativa ou subsidiariamente.
Como proceder, então, uma vez que só a lesão do direito privativo está sujeita à
competência do tribunal de comércio?
Mas aqui temos apenas uma manifestação de dificuldades gerais, relativas à extensão da
competência dos tribunais de competência especializada. Pelo que nos abstemos de
examinar este ponto”.]
O Dr. Carlos Olavo sustentava, porém, uma posição diferente.
Escrevia este Autor, em estudo datado de 14 de Janeiro de 2001, [Cfr. Revista da Ordem dos
Advogados Ano 61, Janeiro 2001, p. 193 e ss. O mesmo estudo foi publicado também em
Direito Industrial vol. II, p. 113 e ss.] reportando-se ao art. 89, n.º 1 al. f) da LOFTJ, que:
“A lei tem em vista, ainda que com terminologia pouco rigorosa, todas as espécies de acções
declarativas, em contraposição ás acções executivas.
Abrange assim as acções de simples apreciação, as de condenação e as constitutivas.
Destas acções, as mais frequentes são as por infracção contra a propriedade industrial.
No que toca às acções por infracção contra a propriedade industrial, podem-se pretender
actuar, por via delas, cumulativamente ou não, três pretensões:
a pretensão á abstenção da conduta lesiva;
a pretensão à cessação da conduta lesiva e eliminação dos resultados da ilicitude praticada;
a pretensão á indemnização pelos danos sofridos.
Desta sorte, se a acção tiver por objecto qualquer das mencionadas pretensões (à abstenção
de uma conduta lesiva, à cessação de uma conduta lesiva, à eliminação dos resultados da
ilicitude praticada, e à reparação dos danos sofridos), deve ser proposta em tribunal de
comércio, desde que se reporte a qualquer das modalidades de propriedade industrial
previstas no respectivo Código.
É também no tribunal de comércio que deve ser intentada uma acção por concorrência
desleal, porquanto a repressão da concorrência desleal integra a propriedade industrial, nos
precisos termos do artigo 1 do respectivo Código”.
Acrescentando, mais à frente, que:
“A competência dos tribunais de comércio abrange ainda as acções que tenham causa de
pedir complexa, desde que um dos elementos dessa causa de pedir verse sobre propriedade
industrial. É o caso por exemplo, de questão emergente de contrato de licença de marca.
É ainda o caso de acção por enriquecimento sem causa, por facto atinente a uma das
modalidades de propriedade industrial previstas no Código”.
Esta discussão subsiste, na vigência do Código da Propriedade Industrial de 2003, cujo art. 1
estabelece que:
“A propriedade industrial desempenha a função de garantir a lealdade da concorrência, pela
atribuição de direitos privativos sobre os diversos processos técnicos de produção e
desenvolvimento da riqueza”.
Na linha da doutrina defendida pelo Prof. Oliveira Ascensão, no Ac. do STJ de 6 de Julho de
2004, publicado na CJ Acs. STJ Ano XII, Tomo II, p. 131, entendeu-se que:
“I - São realidades distintas, por um lado, a defesa dos vários sinais distintivos do comércio,
que constitui uma protecção específica conferida ao respectivo titular, e, por outro, a
proibição da concorrência desleal que, com maior amplitude, desempenha uma função de
protecção complementar daquela e cujas normas têm por escopo a tutela d empresa do
industrial ou do comerciante.
II - Por conseguinte, sem prejuízo de existirem claros pontos de encontro entre o direito
industrial e a concorrência desleal, o instituto da concorrência desleal é um instituto
autónomo, podendo afirmar-se que a concorrência desleal não é, ela própria, propriedade
industrial, é antes sanção de formas anómalas de concorrência.
III - Não integra a previsão da al. f) do n.º 1 do art. 89 da LOFTJ, que atribui aos tribunais
de comércio a competência para as acções em que a causa d pedir verse sobre propriedade
industrial, uma acção em que a causa de pedir verse sobre actos de concorrência desleal.
IV - É da competência do tribunal cível e não do tribunal de comércio uma acção de
indemnização que tem como causa de pedir a prática de acto ilícitos praticados por terceiros,
como violação das regras de concorrência, pautados por deslealdade e abuso de posição
qualificada na empresa lesada, com desvio de funcionários para outras empresas, actos de
confusão no mercado e utilização de informação confidencial” (Sumário). [No mesmo
sentido, decidiram os Acs. da RL de 13-07-2005 (processo 6680/2005-6) e de 15-12-2005
(processo 11244/2005-6), ambos publicados em www.dgsi.pt.
Em sentido oposto, Ac. da RL de 22 de Março de 2001, CJ Ano XXVI; Tomo II, p. 85.0]
Ora, esta decisão do Supremo foi objecto de criticas desencontradas.
Contestou-a o Dr. Carlos Olavo. [Na ROA Ano 65, Junho 2005, p. 109.
Do mesmo Autor, v., ainda, Introdução ao Direito Industrial, Direito Industrial, vol. IV, p.
155 e ss.; Propriedade Industrial, volume I, 2.ª ed.; Protecção Jurídica do Titular da Marca,
revista do CEJ, 1.º semestre 2006/ número 4, p. 203 e ss.]
Segundo este Autor, o legislador quis unificar, em termos jurisdicionais, o contencioso da
propriedade industrial, integrando nele quer a disciplina dos direitos privativos, quer a
concorrência desleal.
“Embora a repressão da concorrência desleal e a protecção das várias categorias de direitos
privativos constituam figuras autónomas, trata-se de autonomia mitigada.
Em termos substanciais, a própria lei portuguesa impõe uma visão unitária dessas duas
figuras.
Essa visão unitária, ou pensamento fundamental unificador, justifica-se plenamente tendo
em atenção a função comum à disciplina dos direitos privativos e à repressão da
concorrência desleal”.
Acrescendo não haver dúvidas de que, no estado actual do nosso sistema jurídico, “a
repressão da concorrência desleal não tem autonomia formal relativamente à propriedade
industrial, encontrando-se as suas normas vazadas no Código da Propriedade Industrial”.
Concluindo que:
“Actualmente, pode-se considerar pacífico o entendimento segundo o qual a protecção contra
os actos de concorrência desleal tem, no nosso direito, um tratamento jurídico distinto da
protecção dos direitos privativos da propriedade industrial.
Mas isso não significa que se trate de distintos ramos de direito.
Menos significa pôr em causa a unidade fundamental do contencioso da propriedade
industrial, que, por variadas e legítimas razões, o legislador quis preservar”.
O referido Acórdão do Supremo mereceu, porém, a concordância do Prof. Lebre de Freitas.
[ROA Ano 65, Dezembro de 2005, p. 763.]
Visando “determinar se a causa de pedir em que se funda um pedido de indemnização
baseado em acto de concorrência desleal que não importe violação de direito privativo
protegido pelo Código da Propriedade Industrial (CPI) versa, para o efeito do referido art. 89
LOFTJ, sobre propriedade industrial”, tratou este Autor de analisar o problema, considerando
a sucessão no tempo do CPI de 1995 e do de 2003, tendo em conta que vigorava o primeiro
à data da entrada em vigor da LOFTJ.
Escreve o Autor ser, actualmente, pacífico que a concorrência desleal constitui um instituto
autónomo.
“Esta autonomia encontra-se hoje reconhecida no CPI de 2003, de cujo art. 1 desapareceu a
referência à concorrência desleal, constante do CPI de 1995, ainda na linha da versão de
1925 do art. 1-2 da Convenção da União de Paris.
Tal não significa que entre direitos privativos e concorrência desleal não existam zonas em
que os institutos são secantes (…); mas a legislação actual aponta, finalmente, para a recusa
duma íntima ligação entre o instituto da concorrência desleal e os direitos privativos da
propriedade industrial”.
O Autor defende, no entanto, “que já era assim ao tempo do CPI de 1995 e que tal resulta
da diferente natureza dos dois institutos”.
Sendo certo que “os direitos privativos da propriedade industrial e a repressão da
concorrência desleal desempenham funções distintas, na medida em que através dos
primeiros se procura proteger a utilização exclusiva de determinados bens incorpóreos,
enquanto através da repressão da concorrência desleal se pretende sancionar a violação de
deveres a observar na concorrência entre os vários agentes económicos”.
Escrevendo, adiante:
“Verificado que as normas de repressão da concorrência desleal têm autonomia perante as
que regem os direitos privativos da propriedade industrial e exercem função diversa destas,
a sujeição à mesma competência das acções fundadas na violação destes e da de
concorrência desleal não corresponde a um imperativo de coerência lógica, pelo que o
legislador estava livre de, como em França, atribuir a tribunais materialmente diferenciados
a competência para uma e outra”.
Tendo sido essa a clara opção do legislador português de 1999.
Procedendo à interpretação da norma do art. 89, n.º 1 al. f) da LOFTJ, o mesmo Autor
sustenta, então, que “o termo modalidade, referido à propriedade industrial, aponta no
sentido de se reportar aos diferentes direitos que dela são privativos, modos distintos de ser
do direito de propriedade industrial: a marca, a insígnia, o logótipo, etc. constituem bens
incorpóreos distintos e sobre eles se constituem diferentes direitos (quanto ao objecto e
também quanto ao modo de aquisição e ao registo), todos eles de propriedade industrial. A
propriedade industrial terá, portanto, nesta acepção literal, tantas modalidades quantos os
tipos de direito privativo de que trata o Código da Propriedade Industrial.
Na sua versão de 1995, o Código não conhecia o termo “modalidades”, sendo, no seu art. 61, s vários tipos de direitos privativos designados por “categorias”. Mas o termo modalidade
da propriedade industrial, tal como a LOFTJ o emprega, comporta o mesmo sentido do termo
categoria de direito privativo” (confirmando esta interpretação literal, quer um elemento
histórico, quer um elemento sistemático).
E em seguida:
“O novo CPI é, pois, expresso ao qualificar como modalidades da propriedade industrial os
vários tipos de direito privativo, e não estes em geral (como uma modalidade) e a
concorrência desleal (como outra modalidade). Coexistindo com o art. 89-1-f LOFTJ, que
mantém a sua redacção, este novo preceito constitui interpretação autêntica do termo
modalidade neste utilizado”.
Concluindo, nestes termos:
“Bem andaram, pois, os Tribunais Superiores, em qualquer das decisões inicialmente
referidas, ao entender que a acção de indemnização fundada em factos ilícitos integradores
da previsão da norma penal do art. 317 CPI (anterior art. 260) e, como tal, constitutivos, por
ia do art. 483-1 CC, do dever de indemnizar, não integra a situação do art. 89-1-f LOFTJ,
não sendo da competência do tribunal de comércio, pelo que se mantém a competência
material genérica do tribunal cível”. [Sobre propriedade industrial e concorrência desleal, em
geral, v. também, entre outros, Jorge Patrício Paul, Breve Análise do regime da concorrência
desleal no novo Código da Propriedade Industrial, Regulação e Concorrência, p. 107 e ss.;
Luís M. Couto Gonçalves, Manual de Direito Industrial; Adalberto Costa, Regime legal da
Concorrência; José Mota Maia, Propriedade Industrial, volume I.; Adelaide Menezes Leitão,
Estudo de Direito Privado sobre a Cláusula Geral da Concorrência Desleal; Pupo Correia,
Direito Comercial, Direito da Empresa, 9.ª ed., p. 297 e ss.]
Cremos, em todo o caso, que o problema a que nos acabamos de referir (o de saber se a
acção cível, fundada em actos de concorrência desleal que não importem violação de direito
privativo protegido pelo CPI, versa, para o efeito do referido no art. 89, n.º 1, al. f) da
LOFTJ, sobre propriedade industrial) cuja solução, em face do direito constituído, se nos
afigura duvidosa [No sentido de que a competência para a apreciação e julgamento das
causas de natureza civil cujo pedido ou causa de pedir verse sobre concorrência desleal,
independentemente de uma qualquer violação de direitos privativos, cabe aos tribunais de
comércio, pronunciou-se, recentemente, Nuno Filipe Moraes Esteves Fernando Bastos,
Tribunais de Comércio e concorrência desleal, Lisboa 2005 (relatório de mestrado
apresentado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa)] não é, verdadeiramente, o
que se coloca, nesta acção.
Com efeito.
Se atentarmos na estrutura do objecto do processo, (envolvida pelo causa de pedir e pelo
pedido, tal como se encontram deduzidos na petição inicial), vemos que a presente acção se
configura, basicamente, como uma acção de cessação de uma situação de violação do direito
à marca, intentada nos termos do art. 207 CPI de 1995 (a que corresponde o art. 258 do
actual CPI), ainda que, nela, confluam elementos de concorrência desleal, como os que se
aludem nos arts. 32 e ss. da petição (cfr. art. 260, corpo e als. a), b) e c) do CPI de 1995, a
que corresponde o art. 317, corpo e als. a), b) e c) do CPI actual). [Sob a epígrafe “Direitos
conferidos pelo registo”, preceitua o art. 207 do CPI que:
“O registo da marca confere ao seu titular o direito de impedir a terceiros, sem o seu
consentimento, o uso, na sua actividade económica, de qualquer sinal idêntico ou
confundível com essa marca para produtos ou serviços idênticos, ou afins para aqueles aos
quais aquele foi registada, ou que, em consequência da identidade ou semelhança ente
sinais ou da afinidade dos produtos ou serviços, cria, no espírito do consumidor, um risco de
confusão que compreenda o risco de associação entre o sinal e a marca”.] / [Informa Oliveira
ascensão, obra citada, p. 260, que se fala hoje de “acção inibitória” para abranger as várias
categorias de pretensões de proibição]
Invocando-se o direito de “propriedade e exclusivo da marca” (cfr. art. 167 do CPI de 1995,
a que corresponde o art. 224, n.º 1 do CPI de 2003), formulam-se vários pedidos, visando a
cessação e proibição da actividade violadora do direito à marca imputada à Ré (v. als. a), b),
c), d) e e) da conclusão da petição inicial).
Sendo certo que a questão fundamental que desde logo se equaciona é a de saber se a
Autora B……, SPA (fabricante italiano), enquanto titular do registo internacional da marca
“Police” para óculos de sol, que se encontra registada em vários países, entre os quais,
Portugal, onde são comercializados, se pode opor à importação e comercialização, de
produtos idênticos com a mesma marca, fabricados em Espanha, por uma empresa,
totalmente independente da referida Autora, quer do ponto de vista jurídico, quer
económico. [Sobre esta questão, Pedro Sousa e Silva, “Esgotamento” do Direito Industrial e
as “Importações Paralelas”, Direito Industrial, vol. II, p. 233 e ss.] / [Sobre o conteúdo do
direito à marca, v., entre outros, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. I, 4.ª
ed., p. 379 e ss.; António Côrte-Real Cruz, O Conteúdo e Extensão do Direito à Marca: A
Marca de Grande Prestígio, Direito Industrial, vol. I, p. 79 e ss]
Com a alegada violação do direito á marca, relaciona-se, por sua vez, directamente, o pedido
de indemnização (a liquidar em execução de sentença), deduzido ao abrigo do disposto no
art. 483, n.º 1 do Cód. Civil (v. al. e) da conclusão da petição inicial).
Ora, versando a acção, essencialmente, sobre a violação de um direito privativo - o direito à
marca -, a competência para a sua apreciação e julgamento compete ao tribunal de
comércio, em face do disposto no art. 89, n.º 1 al. f) da LOFTJ.
Decisão:
Acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, que
deverá ser substituída por outra que julgue competente, em razão da matéria, para preparar
e julgar a presente acção, o Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia.
Custas pela parte vencida.
Porto, 2 de Outubro de 2006
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingos
Agravo nº 4621/06-3ª Sec.
Data – 12/10/2006
5003 (Boletim Interno nº 26)
COMPETÊNCIA
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL DO TRABALHO
Sumário
Estando a cedência da habitação relacionada com a prestação do trabalho, ao menos no que respeita ao
trabalho suplementar, como contrapartida deste, a obrigação da restituição de uma cave ocupada, por
via da cessação das funções que justificavam a atribuição de residência, é uma questão que emerge de
uma relação de trabalho subordinado.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. B……….., com sede na rua ……, …., Lousada, instaurou acção declarativa sumária contra
C……….. e esposa D………., residentes na rua dos ……, ……, ……, Lousada, pedindo que:
a) seja reconhecido que por contrato de comodato a Autora cedeu gratuitamente ao Réu
marido o gozo temporário da cave do imóvel (onde se localiza a sede dos bombeiros) sito na
Rua …….., ….., inscrito na matriz urbana no artigo 543;
b) seja reconhecido que essa cedência tinha por fim exclusivo o cumprimento, por parte do
Réu marido, das tarefas referidas nos artigos 6º a 9º da petição que lhe estavam cometidas;
c) seja reconhecido que vai para cinco anos, face à estruturação dos serviços da Autora, que
o Réu marido deixou de executar estas tarefas e por isso deixou de existir a razão de ser do
comodato;
d) sejam os RR condenados a restituírem à autora a cave do prédio identificado no artigo 1º
da petição, livre de pessoas e coisas e
e) mesmo que se entenda que não foi determinado o uso do imóvel, devem igualmente ser
condenados os Réus a restituí-o à Autora, livre de pessoas e coisas.
Os RR contestaram e excepcionaram a incompetência material do tribunal, pois que –
alegam – a autora configura a sua relação com os RR como emergente de um contrato de
trabalho que a liga ao réu marido e subsidiariamente à esposa, no qual foi convencionado
que os RR e restante família residiriam na cave do identificado prédio.
Dizem que jamais existiu qualquer comodato entre a autora e os réus e, mesmo que
existisse o comodato alegado pela autora, resulta de acordo entre a autora e o réu marido
estabelecido no âmbito do contrato de trabalho junto aos autos.
Pedem a procedência da suscitada excepção de incompetência material do tribunal judicial
de Lousada e a improcedência da acção.
A autora respondeu, insistindo na celebração de um comodato com o réu, ao abrigo do qual
lhe foi cedida, para residência, a mencionada cave e que essa cedência nada tem a ver com
a remuneração do réu, concluindo a pedir a improcedência da excepcionada incompetência.
II. Em douto despacho subsequente, o Senhor Juiz julgou procedente a excepção de
incompetência material do tribunal, por entender que o conhecimento da matéria litigada
cabe ao tribunal do trabalho, e absolveu os RR da instância.
III. Inconformada com o douto despacho, dele agrava a autora que, alegando, conclui:
“1 – Na versão da apelante a cedência de habitação gratuita aos apelados ficou sujeito ao
regime de comodato e não se enquadra no contrato de trabalho celebrado entre apelante e o
apelado marido
2 – Esta versão deverá ser discutida em audiência de discussão e julgamento.
3 – Violou o douto despacho recorrido o disposto no artigo 511º do C.P.C. entre outros
Termos em deve revogar-se o douto despacho recorrido e substituído por outro que mande
fixar a base instrutória nos termos do art. 511º do C.P.C.”
Os agravados não responderam ao recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
IV. Face às conclusões de recurso, que delimitam o seu objecto (arts. 684º/3 e 690º/1 do
CPC), não se mostra clara a pretensão da recorrente (e as partes têm o dever de ser claras
nas pretensões que formulam) – parece que não teve em atenção o despacho de que
recorreu. Nele julgou-se o tribunal judicial de Lousada incompetente em razão da matéria e
foi por essa razão que os RR foram absolvidos da instância.
Não se vê, pois, no despacho recorrido violação do disposto no artigo 511º do CPC, violação
que só uma deficiente leitura da norma permite afirmá-la. A selecção da matéria de facto –
assunto sobre que versa esse normativo – nada tem que ver com a competência ou
incompetência do tribunal.
Por outro lado, nem este tribunal de recurso, na espécie e nesta fase, tem que ordenar se
fixe a base instrutória. Quanto muito pode ordenar o prosseguimento do processo por não
verificação da excepcionada e julgada incompetência. Até porque, afastada essa excepção,
não fica assente que outras não ocorram ou não existam outras questões a obstar ao
prosseguimento da lide.
Não está em causa a justificação ou injustificação da selecção da matéria de facto – como
aconteceria se o tribunal conhecesse de mérito com factos controvertidos e necessários a
essa decisão – mas a competência ou incompetência do tribunal para dirimir o conflito.
Dado o teor do despacho de que se recorre, a pretensão da recorrente de se estar perante –
como causa de pedir – um comodato e não um contrato de trabalho, como se entendeu na
douta decisão recorrida e que determinou o julgamento de incompetência, e de
prosseguimento do processo, é de considerar que a recorrente põe em causa o acerto da
decisão pela incompetência pelo que, nessa base, se passa a conhecer do recurso com esse
objecto – se o tribunal recorrido é/não é incompetente para conhecer da questão submetida
a juízo.
V. Os factos a atender são os que se mencionam em I bem como a alegação da recorrente
na petição de que se destaca:
a) a autora é dona do prédio mencionado no artigo 1 da petição em que se situa a cave em
que o agravo e esposa residem.
b) o réu é trabalhador da autora, desde 1980, exercendo as funções de motorista por conta
desta.
c) Na data da celebração do contrato de trabalho entre a autora e o réu marido foi
convencionado que este e a família passariam a residir na cave do prédio urbano referido no
artigo 1º da petição.
d) Tratar-se-ia de uma cedência gratuita, mediante a qual a Autora entregou ao Réu marido
e à sua família a cave do imóvel, para que este se servisse dele, com a obrigação de o
restituir.
e) Nessa data ficou ainda convencionado entre Autora e o Réu marido que este, em virtude
da concessão da habitação ficaria obrigado a atender as chamadas telefónica, dando-lhe
imediato seguimento, desde as 22 horas até às 08 horas, fazendo as conduções sempre que
estivesse disponível (artigo 6º da petição).
f) Em virtude do contrato de trabalho que foi celebrado, o Réu marido ficou obrigado a
cumprir um horário das 08 horas às 24 horas, com o intervalo de uma hora para o almoço e
jantar (artigo 8º da petição).
g) O Réu marido ficou ainda obrigado a assegurar todo o serviço nocturno e neste caso, na
sua ausência, ficaria o telefone à responsabilidade da sua esposa que toca a sirene sempre
que necessário (artigo 9º da petição).
h) A cedência gratuita da casa ao réu marido e à sua família foi feita com o fim de
possibilitar a este o cumprimento das obrigações referidas nos artigos 6º, 7º e 8º.
i) Em virtude da reestruturação dos seus serviços que implicou a abertura do seu quartel
durante 24 horas por dia, a autora teve de admitir pessoal para exercer as funções
cometidas ao réu, das 22 horas às 08 horas.
j) Pelo que, desde há cerca de 5 anos, deixou o Réu marido de prestar à autora os serviços
referidos em 6º, 7º, 8º e 9º da petição, passando a exercer exclusivamente as funções de
motorista durante oito horas por dia, não mais atendendo uma chamada telefónica entre as
22 horas e as 08 horas (artigos 20º, 21º e 22º da petição).
l) Apesar de interpelados, por diversas vezes, para procederem à entrega do imóvel à
autora, os RR recusam devolver a cave do prédio e continuam a nela residir de forma
gratuita, sendo inclusivamente a autora que suporta o pagamento da água, luz e telefone
(artigos 24, 32 e 34 da petição.
m) Não foi convencionado prazo para a entrega da mencionada cave do prédio á autora.
V. A autora/agravante instaura a acção apelando a um “comodato” (se bem que defina – no
plano factual - seus contornos de forma obscura e contraditória).
Por outro lado, afirma que existe uma relação de trabalho subordinado (bem clara) entre as
partes, que está além dessa outra relação por aquela não condicionada.
Os RR excepcionaram a incompetência do tribunal por, dizem, “a autora configura a sua
relação com os RR como emergente de um contrato de trabalho” “que a liga ao R. marido e
subsidiariamente à esposa” pelo que para conhecer de questões emergente de relações de
trabalho (nos termos do artigo 85º da LOFTJ) são competentes os tribunais do trabalho.
É de lei que para conhecer de questões emergentes de relações de trabalho subordinado, a
competência é exclusiva dos tribunais do trabalho. Já se desconhece a existência de
contratos de trabalho que liguem o empregador ao trabalhador e “subsidiariamente” o
cônjuge deste.
No douto despacho recorrido entendeu-se que “o que está em causa nos presentes autos é a
cessação de funções por parte do R que justificavam a utilização por parte deste da casa
situada na sede da autora, é em síntese uma irredutibilidade do salário.
Disto resulta que a questão em apreço tem estrita conexão com o contrato de trabalho (cuja
cópia se encontra junta aos autos a fls. 9)”, daí que o tribunal do trabalho é “o competente
para apreciar todos os conflitos sobrevindos entre as partes no decurso da execução do
contrato de trabalho junto aos autos”.
O poder jurisdicional é repartido entre os vários tribunais, sendo a fracção que lhe compete
nesse poder a sua competência, como a medida de jurisdição que lhe é atribuída ou a
determinação das causas que lhe tocam e, em concreto, consiste no poder de julgar
determinado pleito. A competência material (concreta) de um tribunal é o poder que lhe é
atribuído para julgar certa causa ou para decidir um pleito, incluído na fracção de jurisdição
que lhe compete [Manuel de Andrade, Noções de Processo Civil, 1979, pág. 89]; é a medida
de jurisdição atribuída a um tribunal [Castro Mendes - Direito Processual Civil, AAFDL, 1980,
1/647.], de modo que toda a causa tem um tribunal onde deve ser proposta, determinado
segundo os factores atributivos de competência, que se fixam no momento em que a acção
se propõe.
Causa não atribuída por lei a tribunal especial é da competência dos tribunais judiciais[Artigo
66º do CPC], que têm uma competência material residual e, no âmbito dos tribunais
judiciais, são os tribunais civis aqueles que possuem competência residual.
A distribuição das diversas matérias incluídas na competência dos vários tribunais obedece a
um princípio de especialização. Na definição da competência em razão da matéria deve
atender-se ao objecto da causa, à natureza da relação substancial pleiteada, obedecendo a
demarcação da respectiva competência, como se disse, a um princípio de especialização.
A competência do tribunal é um pressuposto para que o tribunal se ocupe da questão, a
apreciar em concreto, perante cada acção, em ordem a determinar se entre esta e aquele
existe a conexão considerada relevante e decisiva pela lei, atribuindo-lhe o poder para
apreciar a causa [Anselmo de Castro, Proc. Civil Declaratório, II, 20].
Se a causa não for proposta no tribunal com competência para a matéria, verifica-se falta
desse pressuposto para o tribunal conhecer da questão que determina a incompetência
absoluta, a falta de um pressuposto processual resultante do facto da acção ter sido
instaurada num tribunal quando, pela matéria a decidir, devia ter sito proposta noutro
tribunal.
A competência do tribunal afere-se pelo pedido formulado pelo autor, pelo quid decidendum,
conexionado com os respectivos fundamentos; determina-se, essencialmente, pelo pedido
formulado em conexão com a causa porque se pede, ou o direito para que se pede tutela e o
facto ou acto donde emerge esse direito. Tudo isso nos termos, e apenas nos termos
afirmados pelo autor.
Daí que para aferir da competência ou incompetência do tribunal importa apenas atender ao
que o autor alega e pede, ao modo como configura a acção, à relação pleiteada como a
desenha o autor, sendo irrelevante para o efeito o que o réu alegue quanto á definição dessa
relação.
Os tribunais do trabalho são tribunais de competência especializada (art. 78º, d), da Lei nº
3/99, de 13/01, estando o âmbito da sua competência, fixado no artigo 85º desse Lei, em
matéria cível, o conhecimento “das questões emergentes de relação de trabalho subordinado
e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho” (al. b).
A recorrente, na petição, pretende fundamentar o pedido de restituição da cave que os
agravados ocupam em contrato comodato para o que diz:
a) o réu marido é trabalhador da autora desde 1980,
b) exerce actualmente as funções correspondentes á categoria de motorista.
c) Na data da celebração do contrato de trabalho entre a autora e o réu marido, ficou
convencionado que este e a sua família passariam a residir na cave do prédio urbano referido
no artigo 1º.
d) Tratar-se-ia de uma cedência gratuita, mediante a qual a autora entregou ao réu marido e
à sua família a cave do imóvel referido no artigo 1º, para que este se servisse dele, com a
obrigação de a restituir.
Que entre a agravante e o agravado existe um contrato de trabalho subordinado (desde
1980) é questão sem discussão entre as partes. O agravado exercia, entre outras, as
funções de motorista, como continuar a exercer, sob a direcção de fiscalização da agravante
(artigo 1º da LCT, aprovada pelo DL 49408, de 24/11/1969, entretanto substituída pelo
Código do Trabalho, aprovado pela Lei 9/2003, de 27/8, que, no seu artigo 10º mantém o
conceito de contrato de trabalho).
Para caracterizar o alegado comodato, a autora limita-se a afirmar o referido em c) e d),
nesta al. a noção legal de comodato (artigo 1129º do CC).
Trata-se de um contrato real quoad constitutionem pelo qual é facultado ao comodatário o
uso temporário de uma coisa, do que logo resulta a obrigação de restituição. O que
caracteriza este contrato é a sua natureza gratuita; por via dele, o comodatário não fica
onerado com qualquer obrigação que seja contrapartida da atribuição efectuada pelo
comodante, ainda que pelo contrato lhe sejam impostos certos encargos, e cujo
incumprimento pode justificar a resolução por justa causa. Mas entre estes encargos e a
atribuição do benefício ao comodatário não existe uma relação de interdependência ou
reciprocidade. É a gratuitidade do empréstimo da coisa que caracteriza o comodato. Assenta
em razões de mera cortesia, cuja causa é um mero favor ou gentileza, e cuja função social é
o cómodo ou proveito do comodatário; é celebrado apenas em seu benefício ou no seu
interesse, para cómodo e proveito do beneficiário da atribuição gratuita, para que este use a
coisa e a restitua (eadem rem) quando lhe for exigida ou no termo do prazo acordado.
Afigura-se claro que não é essa a situação dos autos. A autora não aporta ao processo factos
que permitam a qualificação da relação como de comodato. Ela mesma alega de forma
peremptória a negar tal instituto (mesmo que não existisse entre as partes uma relação de
trabalho subordinado).
A cedência da cave, para morada do réu e sua família, não é gratuita. Antes a contrapartida
(sempre segundo a alegação da autora) da prestação de diversos “serviços” a prestar (e,
pelo menos, relacionados com as suas funções laborais) – de grande responsabilidade e forte
incómodo (serviços ou trabalhos a exercer no período nocturno), como sejam as tarefas
descritas nos arts. 6 a 9 da petição (conforme afirmação expressa da autora (arts. 11 e 20
da petição). O réu, “em virtude da concessão da habitação ficaria obrigado” (sic) a atender
as chamadas telefónicas, dando-lhes imediato seguimento, desde as 22 horas às 08 horas,
fazendo as conduções sempre que disponível, ficou obrigado a assegurar o serviço nocturno
incluindo o tocar a sirene, e ficou obrigado a sempre que necessário e alternadamente,
substituir na central o seu responsável, de acordo como seu horário (items 6, 8 e 9 da
petição).
E alegado em 7 da petição que “em virtude do contrato de trabalho que foi celebrado, o réu
marido ficou obrigado a cumprir um horário das 08 horas às 24 horas, com intervalo de uma
hora para o almoço e jantar” e em 11 da petição continua que “a cedência gratuita da casa
ao Réu marido e à sua família foi feita com o fim de possibilitar a este o cumprimento das
obrigações referidas nos artigos 6º, 7º e 8º” (em que parecem se incluir as funções
inerentes à sua categoria profissional, como trabalhador subordinado da autora). Entre a
atribuição da habitação e a prestação dos serviços (ou do trabalho) mencionados, por parte
do réu, existe um nexo de correspectividade ou de reciprocidade, sendo a prestação dos
serviços a causa da atribuição da habitação. E é mesmo a cessação da necessidade e
prestação desses serviços a causa da pretensão de restituição do imóvel.
O facto da autora falar em comodato, não vincula o tribunal a essa qualificação jurídica. Ora,
perante a factualidade alegada, não é de concluir pela celebração de um comodato que
tivesse por objecto a cave ocupada pelos réus. Daí que, como a mesma diz, o motivo porque
a autora entende falecer razão aos réus para continuarem a ocupar o imóvel (não é a
pretensão de fazer cessar o comodato, celebrado sem prazo, mas) é a cessação do exercício
ou desempenho das funções que lhe foram cometidas, principalmente no período nocturno,
das 22 horas às 08 horas.
A atribuição da casa tem a ver com o desempenho profissional do réu, pelo menos no que
concerne ao trabalho para além do período normal de trabalho (ou das funções que
integravam a sua categoria profissional) fixado no contrato escrito, quiçá configurável como
trabalho suplementar. A atribuição da casa funciona como uma compensação (em espécie)
de tais serviços, que quando prestados ao abrigo de uma relação de trabalho tinha
permissão legal na norma do artigo 82º/2 da LCT (já citada).
Estando a cedência da habitação relacionada com a prestação do trabalho pelo réu, ao
menos no que respeita ao trabalho suplementar, como contrapartida deste, a obrigação da
restituição da cave ocupada, por via da cessação das funções que justificavam a atribuição
de residência, é uma questão que emerge de uma relação de trabalho subordinado.
Portanto, da competência do tribunal do trabalho.
O tribunal de competência genérica, onde a acção foi proposta, é materialmente
incompetente para dirimir o conflito, do que decorre a bem decidida absolvição dos RR da
instância (arts. 101º e 105º do CPC).
O despacho recorrido não merece censura.
VI. Pelo exposto, acorda-se neste tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao
agravo e manter o despacho recorrido.
Custas pela agravante.
Porto, 12 de Outubro de 2006
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira
Agravo nº 4770/06-3ª Sec.
Data – 12/10/2006
5004 (Boletim Interno nº 26)
COMPETÊNCIA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
RESPONSABILIDADE CIVIL
Sumário
I- Apesar da reforma do contencioso administrativo ter alargado o âmbito da jurisdição administrativa,
deixando a al. g) do nº1 do artº 4º do novo ETAF (Lei nº 13/2002, de 19.02 com subsequentes
alterações) de fazer qualquer referência aos actos de gestão pública, continua a não ser indiferente que
as “questões” ali referidas sejam regidas por um regime de direito público ou de direito privado.
II. Pelo contrário, continua a ter interesse a qualificação do acto lesivo das “pessoas colectivas de direito
publico”. Pelo que, sendo demandadas com base na responsabilidade civil extracontratual, continuam a
ser demandadas na jurisdição administrativa apenas no caso de o acto lesivo dos interesses do terceiro
demandante ser qualificado como acto de gestão pública - devendo, ao invés, tal demanda ocorrer nos
tribunais comuns no caso de tal acto ser qualificado como de gestão privada--,
III- primeiro, porque a letra da lei (als. g) e h) daquele artº 4º do ETAF) não basta para afastar este
entendimento, pois para tal deveria o legislador mencionar, de forma expressa e clara, que a jurisdição
dos tribunais administrativos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas,
órgãos, funcionários ou agentes, era “indiscutível” independentemente da possível qualificação do acto
lesivo dos interesses de terceiro como de gestão pública ou de gestão privada;
IV- segundo, porque não há motivos para privilegiar a incidência do mero factor subjectivo para a
determinação da competência neste domínio - também isso não resulta, pelo menos de forma clara, da
lei.
V- E não sendo clara a competência da jurisdição administrativa para apreciação dos litígios que tenham
por objecto a responsabilidade extracontratual de tais pessoas pelos danos decorrentes da sua
actividade de gestão… privada, não pode deixar de valer a regra geral da competência residual dos
tribunais judiciais comuns.
VI- Por outro lado, sendo a competência material do tribunal dependente, sempre, do thema
decidendum, aferido pelo pedido do autor, concatenado com a causa de pedir, não cabendo uma causa
na competência de outro Tribunal, ela é da competência do Tribunal Comum.
VII- Ao proferir palavras ofensivas da “honra e dignidade”, bem assim do “crédito e bom nome pessoais
e profissionais” dos autores, a pessoa colectiva, seu órgão ou agente, passa a agir como qualquer
particular que agride outrem nos mesmos valores. Pelo que a reacção contra essa ofensa tem que
ocorrer nos tribunais judiciais comuns. É que a ofensa ao direito de personalidade não cabe nas
atribuições daqueles; não pode tal acto ofensivo daquela honra e dignidade de terceiro integrar a
competência de um agente administrativo; não pode ser considerado, afinal, um acto…. administrativo.
VIII- Como tal, declarar aquela ofensa do direito dos particulares, com a consequente obrigação de
indemnizar e decorrente liquidação dos danos sofridos, é uma actividade jurisdicional típica dos tribunais
comuns, de direito civil material e de processo civil, pelo que cabe a estes, e não à jurisdição
administrativa, a competência para aferir da responsabilidade civil extracontratual.
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO:
Na ..ª Vara Cível do Porto (..ª Secção), os Drs. B……… e C……. instauraram contra o Prof. Dr.
D……., Ministro da Saúde em funções, acção declarativa de condenação sob a forma
ordinária, pedindo a condenação do réu a pagar a cada um dos AA uma indemnização no
valor de € 10.000,00 e juros de mora, bem assim a retratar-se perante os autores com a
publicação de um anúncio na imprensa.
Para tal, invocam excertos do discurso proferido pelo réu na cerimónia de posse do Conselho
de Administração do E……., no Porto, na qualidade de Ministro da Saúde, discurso esse que
entendem ter sido ofensivo da honra, dignidade, crédito e bom nome pessoal e profissional
dos AA, do que pretendem ser ressarcidos.
Contestou o Réu, excepcionando a incompetência material do tribunal, entendendo que a
competência para a apreciação do pedido pertence aos tribunais administrativos e não aos
tribunais judiciais.
Foi proferido despacho a julgar improcedente a deduzida excepção da incompetência
material, por se entender ser competente o tribunal judicial (a quo) para a apreciação da
questão de mérito suscitada nos autos.
Inconformado com este despacho, dele recorreu o réu, apresentando alegações que remata
com as seguintes
CONCLUSÕES:
“Iª. A decisão recorrida incorre em erro de julgamento, no sentido da alínea b) e da alínea c)
do artigo 690° do Código do Processo Civil, já que, sem fundamento legalmente atendível,
recusa a aplicação das alíneas g) e h) do n° 1 do artigo 4° do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais.
IIª. Se tivesse procedido a uma aplicação adequada das alíneas g) e h) do n° 1 do artigo 49
do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Mmo. Tribunal teria concluído que o
conhecimento da presente questão de responsabilidade civil extracontratual cabia aos
tribunais administrativos e não aos tribunais judiciais.
IIIª. O legislador do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais manifestou
expressamente a intenção de que no novo regime o âmbito da jurisdição dos tribunais
administrativos se estendesse à apreciação de todos os litígios respeitantes à questão da
responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, seus órgãos e
agentes. O legislador pretendeu essa solução normativa.
IVª. Por outro lado, é manifesto que se pretendeu alterar o regime, mesmo do ponto de vista
literal, já a referência a actos de gestão pública que anteriormente delimitava o âmbito da
jurisdição administrativa desapareceu do novo Estatuto.
Vª. A generalidade da doutrina vem assumindo que, na sequência do novo Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais, os tribunais administrativos são competentes para
conhecer todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de
direito público, seus órgãos e agentes, independentemente de saber se tais questões se
regem por um regime de direito público ou de direito privado, assim se devendo interpretar
o facto de a alínea g) do n° 1 do artigo 4° do ETAF ter deixado de fazer qualquer alusão aos
actos de gestão pública.
VIª. De acordo com a interpretação que o Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal
Administrativo e a doutrina vêm fazendo, o nº 3 do artigo 212° da Constituição não impede
que o legislador atribua aos tribunais administrativos o conhecimento de litígios não
emergentes de relações jurídicas-administrativas e a outras categorias de tribunais o
conhecimento de alguns litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
VIIª. Assim, as alíneas g) e h) do nº 1 do artigo 4º do estatuto dos Tribunais Administrativos
e Fiscais não são inconstitucionais por violação do nº3 do artigo 212° da Constituição.
VIIIª No caso em julgamento, o comportamento supostamente lesivo insere-se numa
actividade manifestamente pública (o acto de posse do conselho de administração de um
hospital EPE); os poderes para conferir a posse foram atribuídos ao Ministro da Saúde por
disposições de direito administrativo; e até os próprios autores se encontravam na cerimónia
de posse na qualidade de titulares cessantes de uma relação jurídico-administrativa
(anteriores membros do conselho de administração). Ou seja, tudo indícios de publicidade.
IXª. O facto dos autores invocarem um direito de natureza privada supostamente lesado não
releva para a delimitação do âmbito da jurisdição.
Xª. O próprio Tribunal de Conflitos tem jurisprudência anterior à entrada em vigor da
reforma do contencioso administrativo, qualificando situações idênticas à dos autos como
relevando da jurisdição administrativa.
XIª Deve ser concedido efeito suspensivo ao presente agravo já que a continuação do
processo é susceptível de causar prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação ao agravante.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando a decisão
recorrida e substituindo-a por outra que declare os tribunais judiciais materialmente
incompetentes para conhecer das pretensões formuladas pelos autores, assim se fazendo a
usual
Justiça”.
Contra-alegaram os AA, pugnando pela manutenção do despacho recorrido.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir, sendo que a instância mantém a sua validade.
II . FUNDAMENTAÇÃO
II. 1. OS FACTOS:
A factualidade a ter em conta é, essencialmente, a supra referida que ora nos dispensamos
de repetir.
II. 2. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não
podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam
de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado
pelo conteúdo do acto recorrido,
a questão suscitada pelo agravante restringe-se à procedência da excepção invocada pelos
réus de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal judicial (no caso as Varas
Cíveis do Porto) para conhecer do pedido formulado contra si, por entenderem que a
competência, para o efeito, pertence apenas e só ao Tribunal Administrativo.
Ou seja, pretende-se saber se o pedido indemnizatório decorrente da (invocada)
responsabilidade civil extracontratual do Réu - por alegada ofensa à dignidade, bom nome e
brio profissional dos Autores - pode ser apreciado e decidido no tribunal comum, ou, ao
invés, se tal apreciação é da competência dos tribunais administrativos.
Quid juris?
Segundo o art. 209º da CRP, “1.- Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes
categorias de Tribunais:
a)- O Supremo Tribunal de Justiça e os Tribunais Judiciais de primeira e de segunda
instância:;
b)- O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais;
c) O tribunal de contas.”.
Por sua vez, o art. 212º, nº3 daquela Lei Fundamental diz que «compete aos Tribunais
Administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por
objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Na base da repartição da competência está o princípio da especialização, reservando para
órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito (A. Varela,
Manual Proc. Civil, pág. 194, 195 e 207).
"Ex vi" da anterior lei ordinária do art. 51º-1 h), ETAF (Dec. Lei nº 129/84. de 27.4, alterado
pelo Dec. Lei nº 228/96, de 29.11) «compete aos Tribunais Administrativos de Círculo,
conhecer das acções sobre a responsabilidade civil extracontratual dos demais entes públicos
e dos titulares dos seus órgãos e agentes, por prejuízos decorrentes de actos de gestão
pública, incluindo acções de regresso».
Por sua vez, o seu (ainda anterior) art. 4º, nº1, al. f), definindo os limites desta jurisdição,
dizia que estavam excluídos da jurisdição administrativa e fiscal, os recursos e as acções que
tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa
de direito público.
O conhecimento destas questões é que cabe aos Tribunais Judiciais, porque “ex vi" art. 211,
nº1, da CRP; 18º, nº1, LOFTJ; e 66º, CPC , são os Tribunais comuns em matéria cível e
criminal que exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Dito de outra forma, tais acções caem na competência residual dos tribunais judiciais, pois
que, segundo os artsº 18º da Lei nº 3/99, de 13.01 e já citado artº 66º do CPC, são da
competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem
jurisdicional.
Assim sendo, a verem-se as coisa à luz do anterior ETAF, logo ressalta que teríamos,
essencialmente, de averiguar se a responsabilidade que os autores assacam ao agravado
estava no âmbito da gestão pública (citado art. 51º do ETAF) ou privada (seu art. 4º).
Esta era, à luz do anterior ETAF, de facto, a questão central,-- e, então, entendendo-se que
estava em causa nesta demanda uma conduta ou omissão do Réu/agravante por acto de
gestão pública, era o Tribunal Administrativo respectivo o competente para conhecer do
mérito da causa; não o estando, a competência pertenceria ao Tribunal judicial (Comum) -in casu, as Varas Cíveis do Porto.
As coisas, porém, mudaram com o novo ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de
Fevereiro [Rectificada pela Declaração de Rectificação nº 14/2002, de 20 de Março e alterada
pelo artº 1º da Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, e pelo artº 1º da Lei nº 107-D/2003, de
31 de Dezembro, que a republicou em anexo ( artº 3º)].
E, atenta a data da prática dos facto, logo se vê ser aplicável ao caso sub judice a nova
redacção do ETAF.
O que significa, desde logo - e em primeiro lugar – que para se distinguir o âmbito de
competência dos tribunais administrativos dos tribunais judiciais comuns, parece ter deixado
de ter interesse a tão discutida questão da qualificação entre actos de gestão pública e/ou
privada.
Haverá, agora, então que recorrer apenas aos critérios que vêm plasmados, quer na lei
ordinária (o aludido ETAF na actual redacção), quer, obviamente, na Constituição (cit. nº 3
do artº 212º).
Vejamos, porém, melhor este último aspecto.
Como bem anota o agravante, a reforma do contencioso administrativo alargou a jurisdição
administrativa.
Efectivamente, dispõe o actual artº 4º do ETAF que compete aos tribunais da jurisdição
administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
“g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade extracontratual das
pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função
jurisdicional e da função legislativa” - alteração decorrente da Lei nº 107-D/2003, de 31.12;
“h)- Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e
demais servidores públicos”.
Comparando a anterior redacção, parece (cfr. citada al. g)) ter pretendido o legislador
cometer aos tribunais administrativos a apreciação e decisão de todas as questões em que
esteja em causa a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas públicas,
independentemente de emergirem de actos de gestão pública ou de actos de gestão privada.
Parece - repete-se -- que foi essa a intenção ou pretensão do legislador.
Com efeito, como refere o Prof. Dr. Mário Aroso de Almeida - principal redactor do texto do
novo ETAF--, in O Novo Regime do Processo dos Tribunais Administrativos, Almedina, 2003,
pág. 85--, “Compete à jurisdição administrativa apreciar toda e qualquer questão de
responsabilidade civil extracontratual emergente de actuação de órgãos da Administração
Pública. É o que claramente decorre do artº 4º, nº1, al. g), do ETAF, [……………].”.
A questão que se põe, porém, é saber se, apesar de a aludida al. g) do nº1 do artº 4º do
ETAF ter deixado de fazer qualquer referência aos actos de gestão pública, tal significa que
já não importa que as “questões” ali referidas sejam regidas por um regime de direito
público ou de direito privado.
Não cremos, porém, que tal seja indiferente, desde logo porque a aludida alínea não prima,
de forma alguma, pela clareza neste domínio. Antes nos parece que continua a ter interesse
a qualificação do acto lesivo das aludidas “pessoas colectivas”, as quais, portanto, sendo
demandadas com base na responsabilidade civil extracontratual, continuam a ser
demandadas na jurisdição administrativa apenas no caso de o acto lesivo dos interesses do
terceiro demandante ser qualificado como acto de gestão pública - devendo, ao invés, tal
demanda ocorrer nos tribunais comuns no caso de tal acto ser qualificado como de gestão
privada.
Com efeito, a letra da lei (aludida al. h) não basta para afastar este entendimento, pois para
tal deveria o legislador ser mais cuidadoso na alteração, mencionando, de forma expressa e
clara - até pelo facto de terem corrido rios de tinta à volta da aludida questão gestão
pública/gestão privada -- que a jurisdição dos tribunais administrativos era “indiscutível”
independentemente da possível qualificação do acto lesivo dos interesses de terceiro como
de gestão pública ou de gestão privada.
Não o disse - repete-se! E não o dizendo, não se vê razões para tal entendimento, metendo
as situações…. no “mesmo saco”.
Não parece correcto, por outro lado, aceitar-se privilegiar a incidência do mero factor
subjectivo para a determinação da competência no domínio que ora nos ocupa. Isto é, não
basta, para a determinação da aludida competência, que seja pública a personalidade da
entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de
órgãos ou servidores públicos [Assim nos permitindo discordar - obviamente com o devido
respeito-- do entendimento do Prof. Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo,
I, Editora Lex, Lisboa, 2005, 714].
Tal não resulta, pelo menos de forma clara da lei e não se almejam razões válidas que o
imponham.
Nesta senda está, v.g., o entendimento do Prof. Dr. Vieira de Andrade, A Justiça
Administrativa (Lições), 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, pp. 123-124 - citado, aliás, pelo
agravante--, que expressa algumas reservas relativamente à solução que “boa parte da
doutrina” tem dado à pergunta sobre se também passa a competir à jurisdição
administrativa a apreciação dos litígios que tenham por objecto a responsabilidade das
pessoas colectivas de direito público pelos danos decorrentes da sua actividade de gestão
privada.
Este Ilustre Professor chama à atenção o facto de que, ao contrário do que acontece com a
função política e legislativa, “não é expressamente afirmado pelo preceito” que os tribunais
administrativos passam a ser competentes para conhecer da responsabilidade das pessoas
colectivas públicas por actos de gestão privada. E acrescenta que “em seu abono” - deste
alargamento de competência da jurisdição administrativa, entenda-se - “apenas se pode
esgrimir com o elemento histórico” - o qual, como ali bem se ressalta, “não é decisivo” --“e
com a circunstância de o ETAF deixar de excluir expressamente o conhecimento das
questões de direito privado - um argumento que provaria demais”. E acrescenta o mesmo
autor que “em sentido contrário poderia argumentar-se precisamente com a cláusula geral
do artº 1º, interpretada em termos estritos, que constituiria a regra delimitadora do âmbito
da jurisdição administrativa - na dúvida, valeria a regra geral de competência, carecendo as
adições de serem expressamente determinadas”—sublinhado nosso [Sobre esta matéria,
cremos ser relevante citar o Ac. da Rel. do Porto, de 23.02.2006, in www.dgsi.pt, citado no
despacho recorrido, onde se escreveu:
“Não se desconhece que a Reforma do Novo Contencioso Administrativo pretendeu estender
a competência da jurisdição administrativa a algumas questões que anteriormente lhe
estavam vedadas, nem que algumas posições doutrinárias, vieram já tomar partido e
considerar que os Tribunais Administrativos serão competentes para conhecer de todas as
questões relativas à responsabilidade civil extracontratual de qualquer entidade pública seja
ela emergente de uma relação jurídica de direito público ou de direito privado.
Não estão ainda debatidas estas questões, pelo menos de forma pública e suficiente ao nível
da jurisprudência que permitam estabelecer que efectivamente o legislador do Etaf
pretendeu, pelo menos em matéria de responsabilidade civil extracontratual converter os
Tribunais Administrativos nos Tribunais privativos de quem desempenha funções públicas
quer essa responsabilidade tenha algo a ver, pouco, ou nada com esse desempenho de
funções.
No limite esta interpretação levará a uma alteração completa da definição da competência
material dos Tribunais em função do objecto do processo para a deslocar para a qualidade
das partes que titulam a relação material controvertida. Ou seja, com esta interpretação, em
sede de responsabilidade civil extracontratual, mesmo que esteja em causa apenas uma
questão de direito privado, os Tribunais comuns conhecerão das questões entre os
particulares, excepto se uma das partes exercer qualquer função pública, porque isso
implicará que só perante o Tribunal Administrativo se poderá colocar a questão, mesmo que
os factos geradores dessa responsabilidade nada tenham a ver com o exercício de funções
públicas.
Admitindo-se que da especialização possa resultar algum melhor conhecimento das matérias,
não se compreende como da qualidade dos intervenientes processuais – entes que
desempenham funções públicas versus entes particulares – alheada em absoluto dos
conteúdos a discutir, possa resultar a definição da competência material dos Tribunais, pelo
menos numa interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa, sob pena de se
estabelecer que os Tribunais Administrativos, dotados além do mais de um corpo privativo
de juízes, recrutados de forma diversa daquela em que o são os juízes da Magistratura
Judicial comum, e em que é factor preferencial o exercício anterior de cargos
administrativos, são os únicos onde podem ser demandados os cidadãos que exerçam
qualquer cargo público.
Por se tratar da norma primária de legislação, e dado o texto do artº 212, nº 3 da
Constituição da República Portuguesa – Compete aos tribunais administrativos e fiscais o
julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios
emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais – sempre a interpretação de
todas as disposições do art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais terá que
ser conforme à Constituição da República Portuguesa, nessa medida se limitando a
competência dos Tribunais Administrativos apenas aos litígios emergentes das relações
jurídicas administrativas”.]
Do explanado se conclui, portanto, que, apesar da alteração do ETAF referida supra, continua
a não ser indiferente a qualificação dos actos das pessoas colectivas de direito público - tal
como dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes.
Ou seja, não aceitamos como líquido que com o novo ETAF tenha passado, sem mais, a
competir à jurisdição administrativa a apreciação dos litígios que tenham por objecto a
responsabilidade extracontratual de tais pessoas pelos danos decorrentes da sua actividade
de gestão… privada.
Pelo contrário, continuamos a entender que a qualificação (como de gestão pública ou
privada) dos actos por elas praticados (e de seus órgãos, funcionários ou agentes) continua
a ser da maior relevância para a questão que ora nos ocupa (competência da jurisdição
administrativa ou da jurisdição comum para a apreciação da responsabilidade civil
extracontratual).
Repete-se: a lei não foi (não é) clara a tal respeito. E não o sendo, não pode deixar de valer
a regra geral da competência residual dos tribunais judiciais comuns.
Assim - com o devido respeito, obviamente - permitimo-nos discordar do entendimento do
agravante - de que “o que releva é que as questões relativas a responsabilidade civil
extracontratual das pessoas colectivas, dos seus órgãos e dos seus agentes, são julgadas
pelos tribunais administrativos, sem necessidade de considerações sobre a natureza da
actividade desenvolvida”.
Atento o explanado, dir-se-á que muito se tem escrito, na doutrina e jurisprudência, sobre a
distinção entre acto de gestão pública e acto de gestão privada, podendo-se aqui citar
inúmeros arestos onde se procura fazer tal distinção - o que se tornaria monótono, sendo,
porém, desnecessário.
Cremos, porém, que se gerou uma base de consenso na nossa doutrina e jurisprudência,
quanto à citada distinção, podendo afirmar-se que as ideias básicas consensuais a tal
respeito são estas:
- Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no
exercício de um poder público, ou seja, no exercício de uma função pública, sob o domínio de
normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de
coerção;
- Actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em
que esta aparece despida do poder público (o ius imperii), e, portanto, numa posição de
paridade com o particular ou os particulares a que os actos respeitam, e, daí, nas mesmas
condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com inteira
submissão às normas do direito privado.
No entanto, esta ideia de nos actos de gestão pública haver a submissão às mesmas regras
que vigorariam para o caso de serem praticados por meros particulares tem de ser entendida
dando atenção à verdadeira realidade que pretende exprimir, pois a sua formulação pode
prestar-se com alguma facilidade a uma menos correcta interpretação e conduzir a
resultados que ultrapassam aquilo que a ideia realmente deseja traduzir.
Mais expressivamente, diremos que o acto é de gestão pública se for “praticado no exercício
de um poder público, isto é, na realização de uma função pública para os fins de direito
público da pessoa colectiva; isto é, regidos pelo direito público e, consequentemente, por
normas que atribuem à pessoa colectiva pública poderes de autoridade (“ius imperii”) para
tais fins” (Vaz Serra, Rev. Leg. Jur., ano 110, 315; Ac. STJ de 19.03.1998, agravo nº
800/97), independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção ou de
regras técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas (Ac.
Trib. de Conflitos de 12.05.1999, AD STA, nº 455, XXXVIII, pág. 1459; Ac. STA, de
30.10.83, BMJ 331-587; Ac. STA de 05.12.1989, proc. nº 25 858, DR (Ap) de 30.12.94, pág.
6 939).
Acto de gestão privada é, ao invés, aquele que for praticado no quadro de uma actuação nos
termos do Direito Privado, despido de “auctoritatis”, isto é, numa posição de paridade com
os particulares, sujeito às mesmas regras que vigoram para a hipótese de esse acto ser
praticado por estes, no desenvolvimento de uma actividade exclusivamente sob a égide do
Direito Privado (Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, II, ed. brasileira, pág.
1311 e segs.. Ainda, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 9ª ed., pág. 671).
Diga-se, desde já, que, segundo cremos, a entrega, aos tribunais administrativos, da
competência para conhecer dos pedidos de indemnização formulados à Administração por
danos causados por actos dos seus órgãos e agentes, emergentes de actos de gestão
pública, radica na presunção de que aqueles órgãos judiciários se encontram melhor
preparados para a apreciação de tais litígios, resultante da sua especialização.
O que leva a concluir que a atribuição de tal competência assenta na presunção de uma
certa conexão das matérias aí a decidir com a organização e o funcionamento dos serviços
públicos, ou com o conhecimento de relações jurídico-administrativas, e, ao mesmo tempo,
na assunção pela Administração, naqueles casos, da sua veste de poder público, para a
realização de uma função pública (Marcelo Caetano, Manual cit., Tomo II, pág. 1198, e Vaz
Serra, Revista de Leg. e Jur., Ano 103º, págs. 348 e 349).
No entanto, porém, esta conclusão tão só respeita à justificação da solução legal,
abstractamente considerada, não servindo para definir - pelo que supra já se disse --, em
cada caso concreto, a jurisdição competente, pela natureza das normas ou pelas razões que
a decisão do litígio irá pôr em causa.
Sem embargo de todo o explanado supra, por outro lado, não se pode olvidar que, como é
sabido, a competência material do tribunal depende, sempre, do thema decidendum
concatenado com a causa de pedir, ou seja, do quid disputatum (quid decidendum, em
antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum).
Ou seja, existe uniformidade no sentido em que a competência se afere pelo pedido do autor
e que, não cabendo uma causa na competência de outro Tribunal, ela é da competência do
Tribunal Comum (ver Ac. do STJ de 3/2/87 in BMJ, 364.º-591 e 596 e doutrina aí indicada e
Bol. M.J. 459-449 ).
Escreve MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, que a
competência do tribunal não depende da legitimidade das partes nem da procedência da
acção, não havendo, para tanto, que averiguar quais deviam ser as partes e os termos da
pretensão formulada em juízo.
Portanto a competência que ora nos ocupa - tal como ocorre com qualquer outro pressuposto
processual - afere-se em face da natureza da relação jurídica material em litígio, tal como a
apresenta o autor na demanda.
Importa, assim, ver se a conduta do réu/agravante que integra a causa de pedir, tal como a
configuram os autores na acção, se integra, ou não, no supra aludido conceito de acto de
gestão pública. Ou melhor, há que ver se a responsabilidade assacada ao réu/agravante, em
face da factualidade alegada na petição inicial como causa de pedir da demanda, se insere
no quadro ou âmbito da gestão privada ou da gestão pública.
Cremos que se insere no âmbito da gestão privada.
Efectivamente, face à factualidade alegada pelos agravados/ autores na acção ordinária
instaurada contra o ora agravante para alicerçar o seu pedido, vemos que este é
consubstanciado na prática de danos de natureza não patrimonial, emergentes das
declarações prestadas pelo réu aquando da cerimónia da tomada de posse do novo Conselho
de Administração do Hospital E…… (Porto), o qual - segundo se alega na petição inicial --,
“na presença de largas dezenas de pessoas [….], e de muitos jornalistas da imprensa escrita,
radiofónica e televisiva”, “quis criticar” a gestão anterior exercida pelos autores, imputandolhes, “aquando do desempenho dos respectivos cargos, comportamentos negocistas” e “de
clientelismo”, alem do mais que na petição vem referido, o que tudo é entendido pelos
autores como ofensivo da sua “honra e dignidade e no seu crédito e bom nome pessoais e
profissionais”.
Trata-se - repete-se, no entender dos autores/agravados -- de situação que, “ face ao
previsto nos arts. 70º/1, 483º e 484º do Código Civil e no artº 26º da Constituição da
República Portuguesa, constitui os autores no direito a serem ressarcidos e compensados por
esses prejuízos”, bem assim no direito de verem o réu a retratar-se perante os autores,
publicando na imprensa anúncio nesse sentido.
Ora, parece, com efeito, que esses actos (declarações) praticados pelo agravante - a serem
despidos de fundamento no que aos autores respeita, obviamente, o que, naturalmente, só
na acção ordinária será apurado--, porque violadores do direito de personalidade ((ut, em
especial, o cit. artº 70º do CC) e geradores da alegada obrigação de indemnizar se não
integram em qualquer relação jurídica administrativa, regulada pelo direito público, mesmo
que ocorridos aquando da prolação, pelo Sr. Ministro da Saúde, do referido discurso de posse
do novo Conselho de Administração supra referido.
Com o devido respeito por diferente opinião, parece que nunca poderia considerar-se a
referida actuação como acto de gestão pública.
A gestão publica pressupõe uma actuação correspondente ao exercício do poder da
autoridade e exige que os meios utilizados sejam adequados ao prosseguimento das
atribuições conferidas por lei ao agente.
Ora, in casu, o agravante, ao proferir palavras ofensivas - no parecer dos autores, entendase -- da “honra e dignidade”, bem assim “no crédito e bom nome pessoais e profissionais”
dos agravados”, passa a agir como qualquer particular que agride outrem nos mesmos
valores. E, assim, a reacção contra essa ofensa tem que ser demandada nos tribunais
judiciais comuns por (como ficou acima demonstrado) não haver jurisdição especial (ver o
Bol. M.J. 364-603).
Da mesma forma que “Uma coisa é proceder à abertura de uma estrada, expropriando os
terrenos necessários à sua implantação e realizando por administração directa ou por
empreitada, a obra, e outra é invadir prédio alheio, terraplenar e causar danos, sem
autorização dos donos ou prévia expropriação”(Ac. STJ/Col. Jur. STJ, 94-I-114), também
uma coisa é dar posse aos elementos do novo Conselho de Administração do Hospital, com
todo o ritual que isso possa acarretar (discurso do empossante, etc.), e outra - bem
diferente -- é invadir a esfera pessoal de outrem, aquilo que, porventura, lhe é mais querido,
a sua honra e dignidade e o seu crédito e brio pessoal e profissional.
Esta ofensa ao direito de personalidade não cabe - não pode caber -- nas atribuições de uma
pessoa colectiva de direito público, ou nos seus órgãos e agentes; não pode tal acto ofensivo
daquela honra e dignidade de terceiro integrar a competência de um agente administrativo;
não pode ser considerado, afinal, um acto…. administrativo.
O direito dos AA que estes invocam na petição inicial da acção como ofendido é um direito
privado e não um direito ou uma garantia de natureza publicista.
Sobre a matéria, ver, designadamente - embora em situações não de todo semelhantes - o
que decidiu o nosso Supremo Tribunal nos Agravo nsº 2516/01, Ac. de 27.9.2001-6ª Secção
e 2948/01, Ac. de 27.11.01-1ª Sec.
Portanto, os actos (declarações alegadamente ofensivas) do agravante que provocaram os
peticionados danos aos agravados não parece poder dizer-se terem sido praticados no
âmbito duma gestão pública, nos termos que supra a configurámos.
Estamos tão só e apenas perante uma actuação que qualquer pessoa, pública ou privada,
singular ou colectiva, na sua gestão comum, pode praticar, em violação de normas
exclusivamente de direito privado. O que requer, por consequência, tratamento diferente,
maxime em sede da competência material do Tribunal.
Assim, também, razão parece terem os agravados quando referem que “o acto concreto
gerador de responsabilidade civil extracontratual, apesar de praticado durante o exercício
das suas funções” - do agravado - “ de titular de órgão público e por causa delas, não é mais
do que uma acto meramente pessoal”; bem assim que “o réu, aproveitando-se da sua
qualidade de titular de um órgão público proferiu palavras ofensivas e injuriosas, sem que tal
constitua, como é óbvio, um acto inerente às funções por ele ocupadas”.
E com igual razão rematam : “Nem de outra forma se poderia entender sob pena de
estarmos a incluir nas funções de titular de órgão público os actos de calúnia e difamação
para com os cidadãos”(arts. 28º a 31º das contra-alegações) [Sobre actos funcionais e actos
pessoais, veja-se, designadamente, os Ac.s do STJ, de 21.11.2001 e 16.10.2002, publicados
no site www.dgsi.pt.]
Declarar a ofensa do direito dos particulares sobre a sua honra e dignidade, ou o seu bom
nome, com a consequente obrigação de indemnizar e decorrente liquidação dos danos
sofridos, é uma actividade jurisdicional típica dos tribunais comuns, de direito civil material e
de processo civil.
Estamos, por isso, em face de uma causa de pedir que se traduz numa actividade que se
desenvolveu no âmbito e pelas formas próprias do direito privado; tal como temos um
pedido que, por sua vez, também é fundamentado exclusivamente em regras de direito
privado (ut artº 75º da petição inicial).[Sobre a matéria cremos ser de especial relevo o Ac.
do STJ, de 20.10.2005, in www.dgsi.pt, onde se escreveu:
“O verdadeiro distinguit - para efeitos da apreciação/avaliação de um certo acto, ou facto,
causador de prejuízos a terceiros (particulares) numa ou noutra das aludidas categorias
(gestão privada / gestão pública) reside em saber se as concretas condutas alegadamente
ilícitas e danosas se enquadram numa actividade regulada por normas comuns de direito
privado (civil ou comercial) ou antes numa actividade disciplinada por normas de direito
público administrativo.
[…………] do que se trata é de uma actividade, acto, comportamento ou conduta, vista da
perspectiva de um lesado (terceiro) particular, cuja avaliação, para efeitos do apuramento da
respectiva responsabilidade civil é regulada por normas de direito privado que não por
normas, princípios e critérios de direito público.
Ora, a uma tal apreciação/avaliação não subjaz qualquer relação jurídico-administrativa,
uma relação jurídica regulada pelo direito público, mas uma mera relação jurídico-privada,
como tal regulada pelo direito privado.
Rege, neste domínio, o princípio de que os tribunais de jurisdição ordinária, na circunstância
os tribunais cíveis, são os tribunais-regra por força da delimitação negativa do nº 1 do art.
18º da LOFTJ e do art. 66º do C.Proc.Civil, nos termos dos quais "são da competência dos
tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional".
Trata-se, no fundo, da apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual
estabelecidos nos artigos 483º e seguintes do C. Civil.
Reconduz-se, pois, a questão central a decidir sobre uma relação jurídica de direito privado
(actividade por sua natureza potencialmente geradora de danos), como tal regulada pelas
normas e princípios do direito civil comum, sem embargo de, a montante, na fase da
construção e, ulteriormente, no exercício dos seus poderes de fiscalização nela haver
intervindo - na sua veste de publica autorictas - uma empresa pública (a recorrente).
É, em suma, uma "questão de direito privado" aquela que as partes submeteram à
apreciação do tribunal, ainda que uma das entidades putativamente responsáveis, isto é uma
das "partes" alegadamente responsável seja uma pessoa de direito público, para utilizar a
expressão contemplada na al. f) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Questão essa que deve ser aferida por normas, princípios e critérios próprios do direito
privado, e, como tal, a respectiva apreciação encontrar-se-á, por sua própria natureza,
arredada da jurisdição especial dos tribunais administrativos.
O entendimento que vimos de expor tem, aliás, sido sufragado maioritariamente pelo
Supremo, que, em situações similares, tem declarado a competência dos tribunais comuns,
que não dos administrativos. ]“
Posto isto, e considerando que:
Não estando expressamente excluídas da jurisdição administrativa as questões de direito
privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público;
as causas que não sejam atribuídas por lei a alguma jurisdição especial são da competência
do tribunal judicial comum (a competência residual tem consagração no art. 213º, nº1 da
Constituição; arts.13.º, 14.º e 56.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais e arts. 66.º e 67.º
do CPC.);
não sendo atribuída expressa e claramente ( como explanado supra) a outra jurisdição o
conhecimento da matéria objecto desta demanda,
a conclusão a extrair é que no caso sub judice a competência material para o conhecimento
do mérito da causa não pertence ao Tribunal Administrativo, antes pertence ao Tribunal “a
quo”, ou seja, às Varas Cíveis do Porto.
Claudicam, por isso, as conclusões das alegações do agravante.
CONCLUINDO:
Apesar da reforma do contencioso administrativo ter alargado o âmbito da jurisdição
administrativa, deixando a al. g) do nº1 do artº 4º do novo ETAF (Lei nº 13/2002, de 19.02
com subsequentes alterações) de fazer qualquer referência aos actos de gestão pública,
continua a não ser indiferente que as “questões” ali referidas sejam regidas por um regime
de direito público ou de direito privado.
Pelo contrário, continua a ter interesse a qualificação do acto lesivo das “pessoas colectivas
de direito publico”. Pelo que, sendo demandadas com base na responsabilidade civil
extracontratual, continuam a ser demandadas na jurisdição administrativa apenas no caso
de o acto lesivo dos interesses do terceiro demandante ser qualificado como acto de gestão
pública - devendo, ao invés, tal demanda ocorrer nos tribunais comuns no caso de tal acto
ser qualificado como de gestão privada--,
primeiro, porque a letra da lei (als. g) e h) daquele artº 4º do ETAF) não basta para afastar
este entendimento, pois para tal deveria o legislador mencionar, de forma expressa e clara,
que a jurisdição dos tribunais administrativos no âmbito da responsabilidade civil
extracontratual das pessoas colectivas, órgãos, funcionários ou agentes, era “indiscutível”
independentemente da possível qualificação do acto lesivo dos interesses de terceiro como
de gestão pública ou de gestão privada;
segundo, porque não há motivos para privilegiar a incidência do mero factor subjectivo para
a determinação da competência neste domínio - também isso não resulta, pelo menos de
forma clara, da lei.
E não sendo clara a competência da jurisdição administrativa para apreciação dos litígios que
tenham por objecto a responsabilidade extracontratual de tais pessoas pelos danos
decorrentes da sua actividade de gestão… privada, não pode deixar de valer a regra geral da
competência residual dos tribunais judiciais comuns.
Por outro lado, sendo a competência material do tribunal dependente, sempre, do thema
decidendum, aferido pelo pedido do autor, concatenado com a causa de pedir, não cabendo
uma causa na competência de outro Tribunal, ela é da competência do Tribunal Comum.
Ao proferir palavras ofensivas da “honra e dignidade”, bem assim do “crédito e bom nome
pessoais e profissionais” dos autores, a pessoa colectiva, seu órgão ou agente, passa a agir
como qualquer particular que agride outrem nos mesmos valores. Pelo que a reacção contra
essa ofensa tem que ocorrer nos tribunais judiciais comuns. É que a ofensa ao direito de
personalidade não cabe nas atribuições daqueles; não pode tal acto ofensivo daquela honra e
dignidade de terceiro integrar a competência de um agente administrativo; não pode ser
considerado, afinal, um acto…. administrativo.
Como tal, declarar aquela ofensa do direito dos particulares, com a consequente obrigação
de indemnizar e decorrente liquidação dos danos sofridos, é uma actividade jurisdicional
típica dos tribunais comuns, de direito civil material e de processo civil, pelo que cabe a
estes, e não à jurisdição administrativa, a competência para aferir da responsabilidade civil
extracontratual.
III. DECISÃO:
Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em negar
provimento ao agravo, mantendo o despacho recorrido.
Sem custas, por o Agravante delas estar isento.
Porto, 12 de Outubro de 2006
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
Agravo nº 5117/06-2ª Sec.
Data – 17/10/2006
5009 (Boletim Interno nº 26)
ARROLAMENTO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Sumário
Os Tribunais Portugueses são internacionalmente incompetentes para decretar o arrolamento de bens
existentes no Brasil ou proceder à sua partilha.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO
B………. instaurou, no Tribunal de Família e Menores da Comarca de Matosinhos, o presente
procedimento cautelar de arrolamento contra o seu marido:
- C………., pedindo que fosse decretado o arrolamento de vários bens do casal, que identifica,
alguns sitos em Portugal e outros sitos no Brasil.
Alegou, para tanto, em resumo, que é casada com o requerido, de quem está separada
desde Novembro de 2005; que o requerido sempre disse que se a requerente o abandonasse
procederia de imediato à delapidação de todos os bens do casal.
Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas, após o que se fixaram os factos tidos
como provados e, com base neles, se decretou o arrolamento dos bens do casal no tocante
aos bens existentes em Portugal.
Relativamente aos bens sitos no Brasil, considerou-se ser o Tribunal “a quo”
internacionalmente incompetente para decretar o requerido arrolamento.
Inconformada com esta parte da decisão, dela interpôs a requerente recurso para este
Tribunal, o qual foi admitido como de agravo e efeito meramente devolutivo.
Alegou, oportunamente, a agravante, a qual finalizou a sua alegação com as seguintes
conclusões:
1ª – “Assim, e fruto daquilo que foi exposto na providência cautelar de arrolamento, os bens
que compõem o património do casal estão dispersos por Portugal e pelo Brasil;
2ª – A Meritíssima Juiz “ad quo” decretou muito bem a providência com o âmbito
determinado aos bens que se encontram em Portugal, não devendo ter declarado a
incompetência do Tribunal Português para decretar a providência no Brasil;
3ª – A Recorrente, interpôs a providência cautelar de arrolamento em Portugal, por constituir
para ela o único meio admissível, de defender os seus interesses, designadamente do seu
património;
4ª – A Recorrente viu-se forçada a abandonar o Brasil, não tendo quaisquer condições para
continuar lá e consequentemente para iniciar lá a defesa dos seus interesses;
5ª – É bem evidente, que para além de parte dos bens que estão no Brasil, existem outros
pontos de contacto com a ordem jurídica portuguesa, designadamente a naturalidade da
Requerente e do Requerido, que é idêntica, são ambos portugueses, com o casamento
celebrado em Portugal;
6ª – Para além do mais, ela tem domicílio em Portugal e ele até à bem pouco tempo apesar
de residir no Brasil, tinha também domicílio em Portugal;
7ª – Desta forma era o tribunal competente internacionalmente para decidir o pleito;
8ª – Ora, ao julgar parcialmente improcedente o decretamento do arrolamento deduzido
pelas Recorrente, com fundamento na não consideração pelo Tribunal da 1ª Instância, dos
factos demonstrativos da impossibilidade de a mesma tornar efectivo o seu direito, a não ser
por meio de acção proposta em território português (al. d) do nº 1 do artº 65º do C.P.C.), a
decisão da 1ª instância, ora recorrida, violou o disposto no artigo 668º nº 1, al. d) do C.P.C.;
9ª – Também O artº 660º, 2 impõe ao tribunal que resolva as questões que as partes
submetam à sua apreciação;
10ª – Em consequência disso, deve a douta decisão ser revogada, considerando-se a acção
provada e procedente, com as legais consequências, por se considerar que a douta decisão
do Tribunal “ad quo” violou o correcto entendimento de tais preceitos legais”.
Não foi apresentada contra-alegação.
O M.º Juiz do Tribunal “a quo” sustentou tabelarmente o despacho recorrido.
...............
As conclusões dos recorrentes delimitam o âmbito do recurso, conforme se extrai do disposto
nos artºs 684º, n.º 3, e 690º, n.º 1, do C. de Proc. Civil.
De acordo com as apresentadas conclusões, a questão a decidir por este Tribunal é apenas a
de saber se o Tribunal de Família e Menores da Comarca de Matosinhos é internacionalmente
competente para decretar o arrolamento de bens sitos no Brasil.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
...............
OS FACTOS
Na decisão recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:
1º - Requerente e requerido contraíram matrimónio em 12 de Outubro de 1968;
2º - Sem convenção antenupcial;
3º - Consequentemente, no regime de comunhão de adquiridos;
4º - O casal encontra-se separado de facto desde final de 2005, altura em que a requerente
abandonou o Brasil e regressou a Portugal;
5º - O casal possui vasto património e bens móveis no Brasil;
6º - Existem alguns bens móveis no interior do apartamento identificado na al. a) de fls. 25;
7º - O casal possui contas bancárias em Portugal e no Brasil.
...............
O DIREITO
A questão que cumpre dilucidar é somente a de saber se o Tribunal de Família e Menores de
Matosinhos é internacionalmente competente para decretar o arresto de bens,
designadamente bens imóveis, sitos no Brasil.
O despacho recorrido respondeu negativamente a esta questão, considerando ser aquele
tribunal incompetente para o efeito. A agravante pugna, na sua alegação de recurso, pelo
entendimento contrário. Mas, salvo o devido respeito, sem convencer. Vejamos.
A competência internacional dos tribunais portugueses depende, como emana do artº 65º do
C. de Proc. Civil, da verificação de alguma das seguintes circunstâncias:
a) Ter o réu ou algum dos réus domicílio em território português, salvo tratando-se de
acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis sitos em país estrangeiro;
b) Dever a acção ser proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial
estabelecidas na lei portuguesa;
c) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção,
ou algum dos factos que a integram;
d) Não poder o direito invocado tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em
território português, ou constituir para o autor dificuldade apreciável a sua propositura no
estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja algum
elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (a redacção desta alínea foi introduzida
pelo Dec. Lei nº 38/2003, de 8/3).
As três primeiras alíneas não se aplicam ao caso concreto, como a própria agravante
reconhece no corpo da sua alegação (vide fls. 105). A alínea a), pela simples razão de que a
própria requerente/agravante dá como residência do requerido a cidade do ………., no Brasil,
embora referindo que o mesmo também reside em Matosinhos, o que se torna de difícil
concretização. O facto de o casal ter uma casa em Matosinhos não equivale a terem ambos
os cônjuges aí também residência. De resto, estando em causa o gozo de bens imóveis sito
no Brasil, afastava a aplicação da referida alínea a).
As alíneas b) e c) também não se aplicam ao caso dos autos, já que a acção não tem de ser
proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei
portuguesa e não se alega nenhum facto que sirva de causa de pedir na acção que tenha
sido praticado em território português.
Ao invés, a própria agravante alegou que, fruto das graves agressões físicas perpetradas
pelo requerido, decidiu abandonar por sua própria iniciativa o lar conjugal (artº 2º da p.i.). E
“foi por isso que, e fruto da tomada de posição supra mencionada, a Requerente abandonou
o Brasil, e voltou para Portugal, lá deixando grande parte dos bens que constituem o
património comum do casal” (artº 5º da p.i.). Por isso, segundo a alegação da própria
agravante, tanto as agressões de que foi alvo, como o abandono do lar conjugal ocorreram
no Brasil.
Mas será que é aplicável ao caso a hipótese da al. d), que consagra o chamado princípio da
necessidade – os tribunais portugueses passam a ter competência internacional quando o
direito não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em tribunais
portugueses.
Como escreveu o Prof. Alberto dos Reis (Comentário, vol. 1º, 2ª ed., 139), este “é um caso
excepcional e subsidiário de competência, por meio do qual se tem em vista evitar que o
direito fique sem garantia judiciária”.
O princípio da necessidade, segundo o qual, como se disse, os tribunais portugueses têm
competência internacional quando o direito não possa tornar-se efectivo senão por meio de
uma acção proposta em tribunais portugueses, é de entender no sentido não só de abarcar a
impossibilidade jurídica (por inexistência do tribunal competente para dirimir o litígio em face
das regras de competência internacional dos diversos países) como a impossibilidade prática
(derivada de factos anómalos impeditivos do funcionamento da jurisdição competente) –
vide Ac. da R. de Coimbra de 3/5/1988, C.J., 1988, 3º, 60. Essa impossibilidade tem de ser
absoluta, não bastando a maior ou menor dificuldade em intentar a acção (Ac. da R. de
Lisboa de 23/5/1978, C.J., 1978, 3º, 953).
Ora, lendo a petição inicial da ora agravante, em lugar algum se alega a descrita
impossibilidade jurídica ou prática de a acção poder ser intentada nos tribunais do Brasil.
Somente em sede de alegação recursiva vem a agravante dizer não ter condições para iniciar
no Brasil a defesa dos seus interesses. Mas não se entende muito bem em que se traduz
essa falta de condições. Se é falta de condições materiais, o que é contrariado pela própria
alegação quanto ao acervo dos bens do casal objecto do arrolamento, ou se é falta de
vontade e por lhe ser mais conveniente recorrer aos tribunais portugueses.
De resto, os recursos são, como é sabido, meios de obter a reforma das decisões dos
tribunais inferiores e não vias jurisdicionais para alcançar decisões novas, como resulta,
entre outros, do disposto nos artºs 676º, n.º 1, 680º, n.º 1, e 690º, todos do C. de Proc.
Civil (v., por todos, neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 4/10/95, B.M.J. n.º 450º, 492).
É de concluir, pois, que não está preenchida, no caso presente, a hipótese da al. d) do citado
artº 65º, pelo que o Tribunal “a quo” não tem competência internacional para ordenar o
requerido arrolamento de bens sitos no Brasil.
Foi neste sentido o Ac. da R. de Lisboa de 01/02/1983 (sumariado no B.M.J. nº 331, 595),
segundo o qual “conjugando os artºs 65º, nº 1, al. a), e 77º, nº 2, alínea a), ambos do
Código de processo Civil, é de concluir que só em relação aos bens situados em Portugal, o
Tribunal português tem competência internacional para a sua partilha e, consequentemente,
para o seu arrolamento”.
O despacho recorrido, ao declarar-se internacionalmente incompetente para ordenar o
arrolamento de bens sitos no Brasil, não merece censura alguma, sendo certo que o Tribunal
“a quo” conheceu desta questão e de outras não tinha de conhecer, pelo que não enferma o
mesmo de nenhuma nulidade, designadamente a da al. d) do nº 1 do artº 668º do C. de
Proc. Civil.
Improcedem, assim, as conclusões da alegação da agravante, pelo que o despacho recorrido
tem de se manter.
...............
DECISÃO
Nos termos expostos, decide-se negar provimento ao agravo e, em consequência, mantémse o despacho recorrido.
Custas pela agravante.
Porto, 17 de Outubro de 2006
Emídio José da Costa
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso
Agravo nº 4776/06-5ª Sec.
Data – 06/11/2006
5030 (Boletim Interno nº 26)
COMPETÊNCIA MATERIAL
ACÇÃO ESPECIAL
INTERDIÇÃO
JUÍZO CÍVEL
Sumário
As Varas cíveis e não os juízos são quem tem competência material, desde a propositura da acção, para
preparar e julgar acção especial de interdição.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I
– Relatório
O MINISTÉRIO PÚBLICO
Instaurou na .ª Vara Cível da Comarca do Porto acção especial de interdição de:
B……….
Foi proferida decisão julgando procedente a excepção de incompetência em razão da
estrutura.
Não se conformando com aquela decisão, dela agravou o Ministério Público, formulando as
seguintes “CONCLUSÕES”:
1ª - Compete às Varas cíveis preparar e julgar as acções declarativas cíveis de valor superior
à alçada do Tribunal da Relação, em que a lei preveja a intervenção do colectivo
2ª - Ora a lei não faz depender a atribuição da competência às Varas cíveis para conhecerem
das acções de interdição de qualquer requerimento para intervenção do Tribunal colectivo,
bastando-se com a mera “previsão” ou possibilidade de tal intervenção;
3ª - Pelo que a competência em razão da estrutura para o efeito é originariamente das Varas
cíveis, sendo certo que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta, sendo
irrelevantes as modificações de facto, que ocorram “a posteriori”;
4ª - A acção de interdição, embora especial, é uma acção declarativa (constitutiva), a qual
se regula pelas disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns;
5ª - Além de que, mesmo não havendo necessidade de realização de audiência de discussão
e julgamento para vir a ser decretada a interdição, a tramitação não deixa de ser a do
processo ordinário;
6ª - Ao declarar-se incompetente o Tribunal “a quo” para apreciar e julgar a subjacente
acção de interdição, ficaram postos em causa as normas legais determinantes da
competência material e estrutural específicas designadamente dos artºs. 22º - 1, 97º – 1 –
a) e 4 da LOTJ (Lei 3/99, de 13/01), e dos artºs. 4º - 1 e 2 – c), e dos arts. 463º - 1 e 952º
- 1 e 2 do C.Pr.Civil;
7ª - Não se verifica assim a excepção de incompetência, declarada pelo Tribunal comarcão
de competência específica recorrido, por legalmente irrelevante;
8ª - Devendo o despacho em crise ser alterado por outro, que venha a determinar a
recepção da acção de interdição proposta pelo M.º P.º nesta Vara cível e correspondente
secção a que foi distribuída.
II
- FUNDAMENTAÇÃO
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
Nos termos do art.º 684º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é limitado
e definido pelas conclusões da alegação do recorrente.
No presente recurso discute-se apenas a questão de saber se as varas cíveis são
competentes para conhecerem da acção especial de interdição.
A acção de interdição segue a forma de processo especial regulado nos artºs 944º e segs. do
Código de Processo Civil.
Essa acção segue os termos do processo ordinário caso haja contestação.
Caso contrário, na falta de contestação, procede-se ao interrogatório do requerido, a exame
pericial e é proferida sentença.
Nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 97º do Código de Processo Civil, compete às varas
cíveis a “preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada
do tribunal de relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo”.
Por seu turno, aos juízos cíveis compete “preparar e julgar os processos de natureza cível
que não sejam de competência das varas cíveis e dos juízos de pequena instância cível.”.
Por força do disposto no art.º 646º n.º 1, do Código de Processo Civil, só há lugar à
intervenção do tribunal colectivo quando ambas as partes o tiver requerido e fora dos casos
previsto no n.º 2 do mesmo preceito legal.
Com efeito, nas próprias acções ordinárias a intervenção do tribunal colectivo é meramente
potencial e não efectiva, na medida em que depende da vontade das partes.
Seguimos aqui o entendimento ao Acórdão da Relação de Lisboa de 21-03-2006 no sentido
de que “A competência originária é das varas e não dos juízos. Com efeito, salvo melhor
opinião (tratando-se, como se trata, de uma acção cível de valor superior à alçada do
tribunal da relação) não se exige a efectiva intervenção do tribunal colectivo, sendo
suficiente a mera previsibilidade, possibilidade ou probabilidade desse tribunal ser chamado
a intervir. E não nos parece que se justifique que a acção seja proposta nos juízos cíveis,
sendo depois remetida para as varas nos casos em que houver lugar a julgamento, quando é
certo que, em teoria, este sempre poderá ter lugar.” (in http://www.dgsi.pt – Processo
2064/2006-7, Relator Desembargador Pimentel Marcos, também seguido por esta Relação
no acórdão de 3-10-2006 – Processo 0622720, Relator Desembargador Henrique Araújo).
Deste modo, consideramos que a competência para preparar e julgar desde o seu início a
acção de interdição são as varas cíveis e não os juízos cíveis como decidiu o tribunal a quo.
Em face do exposto, o agravo merece provimento.
IV
– Decisão
Em face de todo o exposto, acorda-se conceder provimento ao recurso de agravo, e, em
consequência, revoga-se o despacho recorrido e ordena-se que tribunal a quo o substitua por
outro que declare a competência da .ª vara cível do Porto para conhecer a presente acção
especial de interdição.
Sem custas.
Porto, 6 de Novembro de 2006
Jorge Manuel Vilaça Nunes
Abílio Sá Gonçalves Costa
António Augusto Pinto dos Santos Carvalho
Conflito de Competência nº 4635/06-3ª Sec.
Data – 09/11/2006
5034 (Boletim Interno nº 26)
PROTECÇÃO DA CRIANÇA
PROCESSO
RESIDÊNCIA
COMPETÊNCIA
Sumário
I - Para os efeitos do artigo 79º/4 da Lei 147/99, a mudança de “residência” forçada e efémera, em
execução da medida de protecção imposta não é subsumível a esse preceito para operar a alteração da
competência do tribunal para prosseguir com o processo de promoção e continuar a controlar a medida
de promoção que aplicou.
II - E, como regra, o tribunal competente para aplicar a medida é o da sua residência na data da
instauração do processo e continua a sê-lo para controlar a execução dessa medida, salvo a excepção
prevista nesse normativo.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1) Pelo Ministério Público junto deste tribunal da Relação do Porto foi requerida a resolução
do conflito negativo de competência entre os M.mos Juízes do .º Juízo de competência cível
do tribunal judicial de Vila do Conde e o .º Juízo do tribunal judicial da Póvoa de Varzim, os
quais se atribuem mutuamente competência, negando a própria, para a prossecução do
processo de promoção e protecção nº…./04.0TBVCD, relativo aos menores B………., C………. e
D………., todos E………, processo esse iniciado no referido .º juízo cível.
Alega que ambas as decisões dos Senhores Juízes transitaram em julgado, tornando-se
necessário resolver o conflito por este tribunal da Relação.
Foram ouvidos os Exmos Magistrados em referência.
Ambos vieram dizer não pretender usar “da faculdade de resposta”.
A Exma Senhora Procuradora-Geral Adjunta entende, no seu douto parecer, que a
competência deve ser atribuída ao .º Juízo Cível da Tribunal de Vila do Conde.
Corridos os vistos legais, cumpre resolver.
II) Resulta dos elementos destes autos que:
1) O processo de promoção e protecção nº …./04, em referência, iniciou-se nos juízos cíveis
do tribunal judicial da comarca de Vila do Conde, por a residência dos menores (com os pais)
se situar em Vila do Conde.
2) Em 15/01/05, em relação aos menores (identificados em I), por esse tribunal foi decidida
a medida de promoção e protecção de apoio junto do avô materno, residente na área da
comarca da Póvoa de Varzim.
3) Posteriormente, em 28/12/05, pelo mesmo tribunal (.º Juízo Cível de Vila do Conde) foi
determinada a manutenção dessa medida de promoção e protecção pois mais seis meses.
4) Após, em 28/03/06, ainda pelo mesmo tribunal, foi prorrogada por seis meses a medida
de promoção de apoio junto do avô materno.
5) Mais foi, então e nessa mesma data, decidido “atendendo a que os menores se encontram
a residir com o avô na comarca da Póvoa de Varzim, o que sucede há mais de um ano, e ao
abrigo do disposto no art. 79º nº 4 da citada Lei n 147/99, deixou este tribunal de ser
territorialmente competente para tramitar os presentes autos.
Termos em que, apôs trânsito, deverão os autos ser remetidos ao Tribunal Judicial da
comarca da Póvoa d Varzim, por ser a territorialmente competente”.
6) Remetido o processo ao tribunal Judicial da Póvoa da Varzim, foi, pelo Senhor Juiz do .º
Juízo desse tribunal, decidido “declara-se este Tribunal territorialmente incompetente para a
tramitação do presente processo, declarando-se territorialmente competente para o efeito o
.º Juízo Cível do tribunal Judicial da Comarca de Vila do Conde.”
III) Estatui o artigo 79º da Lei 147/99, de 1/9 – Lei de Protecção de Crianças e Jovens em
Perigo – que define a competência territorial do tribunal para a aplicação das medidas de
promoção de direitos e protecção das crianças e jovens em perigo:
1 – É competente para a aplicação das medidas de promoção e protecção (…) o tribunal da
área da residência da criança ou do jovem no momento em que é (…) instaurado o processo
judicial.
(…)
4 – Se, após a aplicação da medida, a criança ou o jovem mudar de residência por período
superior a três meses, o processo é remetido (…) ao tribunal da área da nova residência.
1) Residindo os identificados menores em Vila do Conde quando se iniciou o processo, o
tribunal competente para a aplicação das medidas de protecção, como aconteceu na espécie,
é o tribunal judicial de Vila do Conde (nº 1 desse preceito). E nesse tribunal continuou o
processo e foi esse tribunal que acompanhou a execução da medida aplicada, tendo,
inclusive, prorrogado por diversos períodos de tempo (de seis meses) a medida aplicada
(arts. 59º/2 e 60º da referida Lei).
É ao tribunal que aplica a medida de promoção e protecção que cabe dirigir e controlar a sua
execução que pode, no interesse da criança e jovem (o que prevalece nestes processos), ser
modificada e é necessariamente revista, pelo menos, de seis em seis meses (artigo 62º/1).
Em consequência da medida de apoio junto do avô, aplicada pelo tribunal (.º Juízo Cível) de
Vila do Conde, os menores passaram a viver com aquele pelo período de seis meses, período
esse prorrogado por decisões (do mesmo tribunal) de 28/12/05 e 28/3/06 (sem que antes, o
.º Juízo do tribunal de Vila do Conde suscitasse questão alguma de competência).
Quando foi aplicada a medida de promoção e protecção, os menores residiam com os pais
em Vila do Conde.
Por força dessa decisão que aplicou aos menores a medida de apoio junto do avô, passaram
estes a viver com o avô, na área da comarca da Póvoa de Varzim, por período superior a três
meses, mesmo superior a um ano.
É perante essa situação, e face ao que dispõe o citado artigo 79º/4 da Lei 147/99, que se
coloca a questão de saber se os menores mudaram de residência que determine alteração do
tribunal competente para prossecução do processo.
Para o Juiz do .º Juízo Cível de Vila do Conde, o facto dos menores viveram há mais de três
meses na Póvoa da Varzim, determina a competência do tribunal dessa área e a perda de
competência daquele.
Diversamente, entende o Juiz do .º Juízo do tribunal da Póvoa de Varzim, que a excepção à
imodificabilidade da competência do tribunal, prevista no citado artigo 79º/4, não opera pelo
facto da criança ou jovem ser deslocado da área de Vila do Conde por efeito da execução da
medida de protecção aplicada.
O conflito, na espécie surgido, versa sobre uma questão de competência territorial
(competência relativa), como logo indica a norma em causa. Não está em causa a afectação
de determinada matéria a tribunais com especificidades próprias, com reserva material para
julgar certa causa ou para decidir um pleito, determinada segundo os factores atributivos de
competência, dominados pelo princípio da especialização.
Ambos os tribunais teriam competência material para a prossecução do processo, para
conhecer da matéria nele em causa, para aplicar as medidas de promoção e protecção e
controlar a sua execução.
O que está em causa é, como se afirma no Ac. do STJ, de 05/12/2002[1], “determinar a
competência territorial (ratione loci) para o prosseguimento do processo” e, concretamente,
de apurar se a colocação dos menores “em local situado fora da área territorial de
competência do tribunal que tal determinou e a sua permanência aí por mais de 3 meses
pode, ou não, considerar-se, para esse efeito, mudança de residência por mais de três
meses nos termos do n. 4 do art. 79 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo”.
De facto, não está em causa a competência do tribunal para julgar certos pleitos, dirimir
determinada espécie de conflitos, conforme a natureza dos assuntos versados, que
demandem tribunais com preparação técnica e sensibilidade adequadas.
E, adianta-se que, para os efeitos do artigo 79º/4 da Lei 147/99, a mudança de “residência”
forçada e efémera, em execução da medida de protecção imposta não é subsumível a esse
preceito para operar a alteração da competência do tribunal para prosseguir com o processo
de promoção e continuar a controlar a medida de promoção que aplicou.
E, como regra, o tribunal competente para aplicar a medida é o da sua residência na data da
instauração do processo e continua a sê-lo para controlar a execução dessa medida, salvo a
excepção prevista nesse normativo. Para essa regra, entende o legislador que é o tribunal do
local da residência da criança ou do jovem em perigo, no momento em que essa situação é
denunciada, o ‘mais apto para a avaliação da situação e a escolha da medida, e que a
flutuação do processo, ao sabor das mudanças de residência do menor, seria prejudicial para
a justeza e eficácia das decisões[2].
E se a colocação do menor (em estabelecimento, em família de acolhimento ou junto de
familiar) em local diferente daquele que era o da sua residência habitual, implica uma
mudança de residência, desde que com estabilidade e continuidade, não significa que essa
modificação por efeito da medida aplicada produza uma modificação do tribunal competente
para a prossecução do processo.
Essa mudança de residência, por efeito da execução da medida aplicada, não produz efeitos
na competência do tribunal. Nessa situação, aquele (tribunal) que aplicou a medida continua
a ter competência para o processo, para dirigir e controlar a execução da medida, para a
rever (pelo menos, de seis em seis meses) ou operar as necessárias e convenientes
alterações das mesmas ou determinar a sua cessação, conforme o demande o superior
interesse da criança e jovem em perigo.
Deste modo não é o local onde o menor é colocado, por via da aplicação de uma medida de
protecção, de ‘modo efémero ou ocasional’ que importa para alterar a competência do
tribunal. “Não constitui modificação de facto atendível”, para efeitos do nº 4, do artigo 79º,
da Lei 147/99, 01/09, “a permanência em local onde o menor esteja enquanto esteja a ser
executada a medida”.
O local da residência do menor é aquele onde tem o centro da sua vida organizada, com
estabilidade. ‘O local da residência do menor é aquele onde ele se encontra com
permanência e continuidade, que não o lugar em que no concreto momento ocasionalmente
se encontre’[3]]. A modificação da competência tem a ver com a mudança voluntária da
residência, com carácter duradouro, o que se não verifica na situação em que esse mudança
‘decorre necessária e exclusivamente da medida de protecção aplicada pelo juiz e está
sujeita a revisão’[4], que pode determinar nova ou novas deslocações do menor para local
diferente daquele onde inicialmente foi colocado, com as inconvenientes sucessivas
flutuações do processo ‘prejudiciais para a justeza e eficácia das decisões’[5].
Daí que o facto dos identificados menores passarem a residir na área da comarca da Póvoa
de Varzim por força da aplicação da medida não determina alteração da competência do
tribunal que se mantém naquele que aplicou a medida de protecção, para acompanhar a sua
execução, alterá-la ou fazê-la cessar. E, na espécie, naturalmente que a competência
continuaria no .º Juízo Cível do tribunal da comarca de Vila do Conde.
2) Sucede que se está perante um conflito aparente. Afirmou-se que a questão é de
incompetência territorial, portando, uma incompetência relativa do tribunal (artigo 108º do
CPC). Ora, atento o disposto no artigo 111º/2 do mesmo código, a decisão sobre a
competência “transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência,
mesmo que esta tenha sido oficiosamente suscitada” (como aconteceu na espécie).
Proferida decisão que julga o tribunal incompetente, transitada em julgado essa decisão,
forma-se caso julgado e torna-se vinculativa para o tribunal ao qual é remetido o processo,
ficando-lhe vedado voltar a apreciar essa questão (com qualquer fundamento). Portanto que
a decisão proferida pelo .º Juízo Cível de Vila do Conde, uma vez que transitou em julgado,
impunha-se ao tribunal para o processo foi remetido – no caso o .º Juízo do tribunal da
Póvoa de Varzim, que não podia reapreciar a questão, antes acatar a decisão daquele, sob
pena de violar o caso julgado que se formou.
Assim, embora para continuar a prossecução do processo de promoção e protecção,
continuasse a ser territorialmente competente o tribunal onde a situação foi denunciada (no,
caso, o .º Juízo Cível de Vila do Conde), face ao trânsito em julgado da decisão por este
proferida quanto á questão da incompetência territorial, a competência ficou definitivamente
fixada no tribunal judicial da Póvoa de Varzim (in casu, o .º Juízo), que ficou vinculado à
‘decisão do tribunal remetente’, atento o preceituado nos arts. 111º/2 e 675º/2 do CPC.
IV) Face ao que se acorda neste tribunal da Relação do Porto em atribuir a competência para
a prossecução do processo identificado em I) ao Exmo Senhor Juiz do .º Juízo do tribunal
judicial da comarca da Povoa de Varzim.
Sem custas.
Porto, 9 de Novembro de 2006
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira
_______________________________
[1] Em ITIJ/net, proc. 02B3054,
[2] Ac. STJ, de 11/06/2002, em ITIJ/net, proc. 02B1357.
[3] Ac. STJ de 21/05/02, em ITIJ/net, proc. 02A1181.
[4] Ac. STJ, de 22/02/05, em ITIJ/net, proc. 04A4287.
[5] citado Ac. STJ, de 11/06/2002
Conflito de Competência nº 5867/06-2ª Sec.
Data – 14/11/2006
5049 (Boletim Interno nº 26)
COMPETÊNCIA
JULGADOS DE PAZ
Sumário
É excluída a competência dos Julgados de Paz nas acções de cobrança de dívida de cuidados de saúde
prestados por pessoa colectiva, como seja o Hospital de Santo António, EPE.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
Relatório
O Hospital Geral de Santo António, EPE, com sede no Largo Prof. Abel Salazar, Porto,
instaurou junto do Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto uma acção sob a forma
sumarísssima,
contra
Companhia B…………., SA,
pedindo
- a condenação desta a pagar ao A. a quantia de € 2.226,43 e juros vencidos no montante
de € 242,92, acrescida de juros vincendos à taxa legal até integral pagamento.
Para o efeito alegou a prestação de cuidados de saúde prestados a C………., no período de 18
a 25 de Fevereiro de 2003 e consulta externa no dia 11 de Março do mesmo ano, em
consequência de ter sido vítima de acidente de viação, causado por culpa do condutor do
veículo de matrícula -..-..-LS, D……..., que circulava com o conhecimento e autorização de
sua proprietária E………, e cuja responsabilidade civil decorrente da circulação do citado
veículo se encontrava transferida por esta, para a Ré, através de contrato de seguro cuja
apólice foi devidamente identificada.
A Ré contestou, impugnando a versão do acidente e concluindo pela improcedência da acção
e sua absolvição.
O M.º Juiz sustentou no entanto que a competência para apreciar a causa seria do Julgado
de Paz do Porto, pelo que se declarou incompetente e determinou que, após o trânsito fosse
o processo remetido ao referido Julgado de Paz.
O A. não se conformou, pelo que interpôs recurso, que foi admitido como de agravo, com
subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Alegou então o Hospital Geral de Santo António.
O M.º Juiz sustentou o despacho recorrido.
Remetidos os autos a este Tribunal foi o recurso aceite com a adjectivação e demais
atributos que lhe haviam sido atribuídos na primeira instância. Correram os vistos legais.
..............................
Âmbito do recurso
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é através das conclusões apresentadas
pelo recorrente nas suas alegações de recurso que este indica as questões que pretende ver
tratadas. Daí que tenha natural relevância que se proceda à respectiva transcrição:
“CONCLUSÕES:
A presente acção foi interposta no Tribunal de Pequena Instancia do Porto e por despacho de
22.03.2005, o Mm.o Juiz, remeteu os presentes autos, para os Julgados de Paz do Porto, por
considerar, ser este o Tribunal hierarquicamente competente.
Porém, salvo melhor entendimento, afigura-se ao aqui recorrente que o mesmo não tem
razão.
O D.L. 218/99, de 15 de Junho, estabelece um regime especial para a cobrança de dívidas
referentes aos cuidados de saúde prestados pelas instituições e serviços integrados no
Serviço Nacional de Saúde, como se depreende, não só do teor do preâmbulo, como do
estipulado nos art.s, 1°, 2°, 3°,4° e 5° do citado Diploma Legal.
Por sua vez, a Lei 78/2001 de 13 de Julho no seu art.º 9° regula a competência material dos
Julgados de Paz, sendo-lhes permitido, apreciar e decidir nas situações previstas no n. 1 e 2
do art.º 9° da referida Lei 78/2001,
Consequentemente, todas acções, cuja competência ai se encontre excluída, cujo valor, seja
inferior à alçada da relação de primeira instância, serão" a contrario sensu" da competência
dos tribunais de Pequena Instância Cível.
O mencionado normativo legal, na alínea a) do n.º 1, refere que estão excluídas do âmbito
da sua competência material, as acções, que tenham por objecto, prestação pecuniária, cujo
credor originário seja uma pessoa colectiva, requisito este, que impende sobre o aqui
recorrente, o que em nosso entender, implica obrigatoriamente, a incompetência material
dos Julgados de Paz do Porto.
As acções propostas ao abrigo do D. L. 218/99 de 15.6 são acções de dívida, cuja causa de
pedir é complexa pois exige-se o pagamento do custo da prestação de cuidados de saúde, e
destinam-se a efectivar o cumprimento de uma obrigação pecuniária, por uma pessoa
colectiva, incluindo-se assim, na previsão da alínea a) do citado art. 9°, por outro lado
integram-se também, na alínea h) do mesmo artigo pois, para se justificar a
responsabilidade dos demandados, é necessário fazer apelo à responsabilidade civil
extracontratual.
Assim, as acções de cobrança de dividas, das Instituições Hospitalares (e outras integradas
no SNS), encontram-se afastadas da competência dos Julgados de Paz, pelo n.º 1- a) da Lei
78/01,
Aliás, no mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2005 relativo
ao processo 5874/2004.03 THPRT em que o aqui recorrente foi parte como agravante, cuja
decisão se junta e se dá por integralmente reproduzida (doc 1 ).
Acresce que, a razão da exclusão deste tipo de acções da competência dos Julgados de Paz
se deve a que nas" .... acções de cobrança de dívida das pessoas colectivas, tendo em conta
que estas não visam o lucro económico, não há lugar à justa composição de litígios por
acordo das partes pelo que seria um contra senso incluí-las na competência material dos
Julgados de Paz ." cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2005, supra
referenciando.
Pelo exposto, tendo em conta toda a factualidade supra alegada, deve em nossa opinião
considerar-se competente em função da matéria e da hierarquia o Tribunal de Pequena
Instancia Civil, uma vez que os Julgados de Paz são incompetentes em razão da matéria.
Acresce ainda, que o sucesso de tais demandas fica seriamente comprometido, caso se
considere que a competência em razão da matéria pertence ao Julgado de Paz, uma vez que
impenderá sobre o Hospital a apresentação das testemunhas.
Não se verificando assim, em nosso entender, a excepção da incompetência em razão da
hierarquia, conforme se decidiu no despacho ora em crise
Devendo tal decisão, em nossa opinião, por violação, do preceituado nos art.s 6.º-1, 8°, 9°1-h), 12°-2, 62°, 63° e 67.º todos da Lei 78/200 ser inteiramente substituída por uma outra
que considere competente em razão da hierarquia, o Tribunal de Pequena Instancia do Porto,
por consequente incompetência em razão da matéria dos Julgados de Paz do Porto.
Termos em que (...) revogando o despacho recorrido e substituindo-o por um outro, que
considere competente em razão da hierarquia o Tribunal de Pequena Instancia Cível do
Porto, farão como sempre
Justiça”
....................................
Como pode ver-se da leitura das conclusões transcritas, a única questão que se levanta é a
de determinar a quem é conferida legalmente, em primeira linha, a competência para, na
Comarca do Porto, julgar as acções cujo valor não exceda a alçada do Tribunal de 1.ª
instância que sejam destinadas a cobrança de dívidas hospitalares ou de cuidados de saúde,
decorrentes de acidente de viação, e cujo montante em causa não excede a alçada do
Tribunal de Comarca:
aos Tribunais de Pequena Instância
ou aos Julgados de Paz?
........................
Fundamentação
Os factos a ter em consideração são os já constantes do Relatório
A questão colocada já tem sido várias vezes tratada neste Tribunal e pelo menos uma vez –
tanto quanto conhecemos - já teve o STJ a oportunidade de se pronunciar sobre essa
matéria.(1)
Tem-se vindo a sustentar que a competência material para conhecer das acções destinadas a
efectivar a responsabilidade civil pelos tratamentos e cuidados de saúde e que sejam
emergentes de acidente de viação, quando a entidade credora prestadora desses cuidados
seja uma pessoa colectiva, se encontra subtraída aos Julgados de Paz, uma vez que se tem
entendido que o respectivo enquadramento legal se encaixa na situação especial prevista na
segunda parte do art. 9.º-a) do DL n.º 78/2001, de 13 de Julho - limitativa da competência
dos Julgados de Paz - e não propriamente na alínea h) do mesmo artigo, de conteúdo mais
genérico.
É esse também o nosso entendimento.
Na verdade, muito embora a alínea h) do art. 9.º do DL n.º 78/2001, de 13 de Julho, preveja
que os Julgados de Paz são competentes para as acções que respeitem à responsabilidade
civil contratual e extracontratual, e a alínea a) do mesmo artigo lhe atribua, por via de regra,
a competência para as acções destinadas à efectivação de cumprimentos de obrigações, há
que notar que a segunda parte da referida alínea a) abre uma explícita excepção.
Como se pode ver da segunda parte dessa alínea a) do art. 9.º do DL citado, houve da parte
do legislador a preocupação de explicitamente excluir da competência dos Julgados de Paz o
conhecimento das acções destinadas à efectivação do cumprimento de obrigações
pecuniárias quando a entidade credora seja uma pessoa que por natureza não prossiga o
lucro, ou seja, quando a entidade credora tenha a natureza de pessoa colectiva, no sentido
de pessoa moral.
Para os casos em que o credor seja pessoa colectiva (no sentido de pessoa moral) (2), e em
que a obrigação cuja efectivação se pretende tenha valor pecuniário determinado que não se
enquadre no lucro económico dos associados) (como é o caso do custo ou apenas
comparticipação nos tratamentos e cuidados de saúde dos Hospitais públicos), vale portanto
a norma excepcional, concreta, que excluiu do campo da competência material, os Julgados
de Paz.- art. 9.º-3 do CC, e que o legislador entendeu dever merecer tratamento
diferenciado.
Atendendo às razões subjacentes que levaram a criar os Julgados de Paz (Lei n.º 78/2001,
de 13/07), bem como ao diploma que contempla as cobranças de dívidas por cuidados de
saúde (DL n.º 218/99, de 15/06) podemos concluir que foi intenção do legislador diferenciar
o estatuto e a forma de recurso ao direito e tratamento jurisdicional de algumas relações
jurídicas em que uma das partes prossiga um fim moral, quer pelo facto de não ser
necessário inundar os Juízos de Paz com acções cuja perspectiva de litígio não tenham
assentado em lucro económico ou cuja solução, para ser justa, não exija, por via de regra,
transacção ou acordo das partes.
Assim, sendo o Hospital de Santo António uma dessas entidades (pessoas colectivas), e
inserindo-se o seu pedido no pagamento dos custos de cuidados de saúde que prestou, de
valor pecuniário determinado, sem que nele esteja ou tivesse pretendido ver alargado ou
prosseguido com qualquer intuito lucrativo, será aplicável ao caso a parte dispositiva especial
da 2.ª parte da alínea a) desse mesmo artigo 9.º do DL n.º 78/2001, que, no caso concreto,
tem como consequência colocar logo na primeira linha de conhecimento da questão, o
Tribunal de Pequena Instância do Porto, e não o Juízo de Paz.
O agravo deve por isso obter provimento.
...............................
Deliberação
No provimento do agravo, revoga-se o despacho recorrido, declarando-se como material e
hierarquicamente competente para conhecer desde logo a acção em presença o Tribunal de
Pequena Instância do Porto.
Sem custas.
Porto, 14 de Novembro de 2006
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V. C. Teixeira Lopes
______________________
(1) A título exemplificativo pode consultar-se o Ac. do STJ de 2005.07.05, no agravo n.º
2024/05-6.ª (Salreta Pereira, Fernandes Magalhães e Ramos), cuja cópia foi junta aos autos
pelo agravante, assim como o Ac. desta Relação de 2006.02.16, no agravo 7138/05, da 3.ª
secção (Deolinda Varão, Ana Paula Lobo e Coelho da Rocha), um e outro disponibilizados in
www.dgsi.pt/jstj e www.dgsi.pt/jtrp, respectivamente.
(2) Por exemplo, associações que não visem especificamente e como objectivo principal o
lucro económico dos associados, fundações de interesse social, instituições públicas que não
visem o lucro económico, ou instituições particulares de solidariedade social.
Agravo nº 6174/06-2ª Sec.
Data – 05/12/2006
5070 (Boletim Interno nº 26)
JULGADOS DE PAZ
COMPETÊNCIA
Sumário
I- Sendo a competência dos tribunais judiciais residual, a competência exclusiva dos julgados de paz
significa que as matérias para as quais a lei lhes atribui a competência não podem ser apreciadas por
outro tribunal.
II- Excluída a competência do julgado por ter sido requerida uma perícia, mesmo que a mesma venha a
ser indeferida no Tribunal Judicial, não poderão os autos retornar ao julgado. Perdeu a competência, não
volta a adquiri-la.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
B………. residente na R. ………., nº…, ….-… Porto demandou no Julgado de Paz do Porto
C………., S.A. com sede na R. ………., nº…, ………. ….-… Porto pedindo a sua condenação a
pagar-lhe a quantia de 3.015,23 correspondente a 93 mensalidades.
Alega que cedeu o prédio, sito na R. .........., …, Porto, sua propriedade, à ré “C………., S.A.”
que o usou até Julho de 2005, mediante o pagamento da verba mensal de 6500$00.
A ré não pagou.
Contestou a demanda impugnando os factos articulados pela demandante.
Alega que nunca utilizou o referido prédio, nem celebrou qualquer contrato com a autora.
Na audiência de julgamento foi requerida a junção aos autos de vários documentos. O Sr.
Juiz de Paz considerou que era necessário tempo para estudo designou nova data para
julgamento.
A demandada veio juntar requerimento de prova solicitando, além do mais, prova pericial
aos factos nºs 6, 9 e 10 da contestação.
Por despacho de fls. 161 o Sr. Juiz declarou cessada a competência do Julgado de Paz e ao
abrigo do disposto no art.59º, nº 3 da Lei 78/2001, de 13 de Julho, ordenou a remessa ao
Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto.
Por despacho de fls.166, o MMº Juiz do Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto
indeferiu a perícia à escrita da ré por entender que está em causa averiguar da existência ou
não do contrato de arrendamento sendo irrelevante saber se esta utilizou ou não o prédio
conforme o objecto da perícia solicitada. Acrescenta o despacho que quanto aos consumos
de água e electricidade a demandada pode fazer a prova por documento.
Por fim o MMº Juiz ordenou a devolução dos autos ao Julgado de Paz.
Deste despacho interpôs recurso admitido e aceite como agravo.
*
Conclui nas suas alegações:
1° - Em 31/08/2005, o requerente B………. deu entrada, no Julgado de Paz do Porto, de uma
petição alegando ser proprietário de um prédio e que a agravante usou esse prédio, desde a
data da sua constituição, em 11 de Novembro de 1997, até Julho de 2005, como escritório
de representação, onde era recebida correspondência oficial e comercial, tendo, na altura,
acordado com a agravante o pagamento mensal da quantia de 32,42 euros.
2º - A agravante apresentou a sua contestação onde refutou toda a matéria alegada e
alegou factos tendentes à improcedência do pedido.
3° - As partes apresentaram os seus meios de prova sendo que a agravante requereu a
PROVA PERICIAL.
4° - Sobre o seu requerimento de prova, foi proferido o seguinte DESPACHO:
"F/s. 158:
Foi requerida prova pericial: cessa a competência do Julgado de Paz do Porto. Nos termos do
art.° 59.° n.° 3 da Lei n.° 78/2001, de 13 de Julho, remeta ao Tribunal de Pequena Instância
Cível do Porto. Notifique."
5° - Remetidos os autos ao Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto, foi por este
proferido o douto despacho ora em crise.
6° - É sobre a decisão que ordena a devolução dos autos ao Julgado de Paz do Porto que a
agravante não se conforma e por isso leva à apreciação de V. Exas..
7° - A competência para determinada acção determina-se pela causa de pedir e pedido
formulado pelo autor.
8° - Ou seja, a competência do Tribunal em razão da matéria fixa-se em face da natureza da
relação material apresentada em juízo pelo autor.
9° - O Autor desta acção alegou factos que, juridicamente, se qualificam no âmbito de um
Contrato de Arrendamento para Comércio ou Indústria e terminou formulando o pedido de
condenação da agravante ao pagamento da quantia de 3.015,23 euros.
10° - Analisadas as regras de competência em razão do objecto, do valor, da matéria e do
território dos Julgados de Paz, admitimos que, no momento da instauração da acção, o
Julgado de Paz do Porto era competente para julgar a apreciar esta acção.
11° - Segundo J. O. Cardona Ferreira, "Julgados de Paz, Organização, Competência e
Funcionamento", Coimbra Editora, pág. 29, a competência material que o artigo-99estabelece é fundamental e tipifica, em exclusividade, a competência material dos Julgados
de Paz.
12° - Já Joel Timóteo Ramos Pereira, "Julgados de Paz, Organização, Trâmites e Formulário",
pág. 56 e segs., considera que a competência material fixada no art. 9° é exclusiva aquando
da instauração da acção, sendo obrigatória a interposição nos julgados de paz, uma vez que
a parte não tem a faculdade de escolher entre a instauração de Julgado de Paz ou Tribunal
Judicial.
13° - E, este Tribunal da Relação do Porto, seguindo a posição deste último autor, no
Acórdão de 08-11-2005, in www.dgsi.pt. referiu isso mesmo dizendo "A competência
material fixada no art. 9° do D.L. n.° 78/2001 de 13 de Julho é exclusiva aquando da
instauração da acção, sendo obrigatório a interposição nos julgados de paz uma vez que a
parte não tem a faculdade de escolher entre estes e o tribunal judicial."
14° - Mas a controvérsia nestes autos surge não no momento da instauração da acção mas
sim já na pendência da mesma.
15° - É que a agravante aquando da apresentação dos seus meios de prova, requereu a
PROVA PERICIAL.
16° - Nos termos do n.° 3 do artigo 59° da Lei n.° 78/2001, de 13 de Julho, "Requerida a
prova pericial, cessa a competência do julgado de paz, remetendo-se os autos ao tribunal
competente para aí prosseguirem os seus termos, com aproveitamento dos actos já
praticados."
17° - Não obstante a competência inicial do Julgado de Paz do Porto para decidir a acção,
este por despacho de fls. 158, TRANSITADO EM JULGADO, decidiu que CESSOU A SUA
COMPETÊNCIA.
18°- Pelo que, o Julgado de Paz do Porto declarou-se INCOMPETENTE para conhecer o
processo e, nessa medida, ordenou a remessa dos autos ao tribunal COMPETENTE, o
Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto.
19° - O Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto conheceu do mérito do requerimento
da prova pericial.
20° - Desde logo, ao fazê-lo, este Tribunal, implicitamente, declarou-se COMPETENTE para
apreciar a matéria dos autos.
21° - E o Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto é competente nos termos do artigo
66°, 68°, 70° e 74° do C.P.C..
22° - Não obstante, após a decisão de mérito sobre a admissibilidade da prova pericial, este
Tribunal ordenou a devolução dos autos ao Julgado de Paz do Porto.
23° - Entendemos que o processo devia prosseguir no Tribunal de Pequena Instância Cível
do Porto já que este assumiu a competência para o julgar e o Julgado de Paz do Porto
declarou cessada a sua competência.
24° - Por outro lado, nos termos do n.° 3 do artigo 59° da Lei n.° 78/2001, de 13 de Julho,
os autos devem permanecem no Tribunal para onde são remetidos para prosseguirem os
seus termos, com aproveitamento dos actos já praticados.
25° - A própria letra da lei indica que o processo prossegue no Tribunal para onde foi
remetido, independentemente da decisão que recair sobre a admissibilidade da prova pericial
requerida.
26° - Da letra da lei não se extrai a conclusão de que o processo só se mantém no Tribunal
para onde foi remetido se a prova pericial for admitida.
27° - Como já dissemos, o Julgado de Paz possui competência exclusiva para conhecer da
acção mas apenas no momento da instauração da acção.
28° - Posteriormente, a competência pode ser transferida para outro Tribunal.
29° - A Procuradoria-Geral da República, no seu Parecer n.° 10/2005, de 17 de Agosto de
2005, chama a atenção para o facto de a ideia de exclusividade não ser pacífica pois, por
exemplo, a mesma está arredada em duas normas do diploma, sendo elas os artigos 41° e
59°, n.° 3.
30° - Tal Parecer refere que tais normas favorecem a tese de que a competência dos
julgados de paz é alternativa dos tribunais judiciais, pelo que os processos devem transitar
para estes sempre que sejam suscitados incidentes processuais que o processo próprio
daqueles não comporte ou seja requerida prova pericial.
31° - E esclarece, também, Joel Timóteo Ramos Pereira, Juiz de Direito, in "Alargamento dos
Julgados de Paz", Pareceres, www.asjp.pt. que "Na verdade, os Julgados de Paz não
constituem apenas meios alternativos de resolução de litígios, na medida em que lhes está
atribuída competência (semi-) exclusiva, verificando-se certos pressupostos de competência.
Na verdade, a competência dos julgados de paz em razão da matéria está plasmada no art.°
9.° da U P e atento o disposto no art.° 211° da Constituição e no art.° 66.° do CPC, a
competência dos julgados de paz nessas matérias é semi-exclusiva, na justa medida em que
a exclusividade é condicional:
- A competência dos julgados de paz nas matérias estatuídas no art.° 9.° da LJP, cujo valor
não exceda a alçada do Tribunal de Primeira Instância é exclusiva aquando da instauração da
acção, sendo obrigatória a interposição da providência nos julgados de paz, não tendo a
parte a faculdade de escolher entre a instauração no julgado de paz e no Tribunal Judicial, na
medida em que a competência deste é apenas quando a competência não pertença a outra
ordem de jurisdição;
- Ainda que a competência seja exclusiva, de início, deixa de o ser a partir do momento em
que seja alterado o valor da causa para valor superior à alçada do Tribunal Judicial de
Primeira Instância, ou se/a suscitado um incidente da instância (art.° 41.° LJP) que implique
a remessa do processo ao Tribunal Judicial." (O sublinhado é nosso).
32° - Ou seja, os Julgados de Paz têm competência material exclusiva mas no momento da
instauração da acção.
33° - Posteriormente, os Julgados de Paz podem perder a competência que detinha por via
do surgimento de um incidente ou da apresentação por alguma das partes de um
requerimento para realização da prova pericial.
34° - E quanto se requer a prova pericial, refere ainda Joel Timóteo Ramos Pereira, Juiz de
Direito, in "Alargamento dos Julgados de Paz", Pareceres, www.asjp.pt. que "É injustificável
a manobra utilizada por uma parte para a remessa do processo ao Tribunal Judicial, apenas
porque requer a realização de perícia. Com efeito, no actuai estádio da disposição legal, a
simples formulação de requerimento para realização de perícia, implica a remessa
automática do processo para o Tribunal Judicial de Primeira Instância (art.° 59°, n.° 3 da
LJP), independentemente se a realização da perícia requerida é admissível, pertinente ou
conveniente, assim como independentemente da apreciação pelo Juiz de Paz do objecto da
perícia requerida. Sendo o processo remetido ao Tribunal Judicial de Primeira Instância,
ainda que o Juiz de Direito indefira a realização da perícia, o processo continua a ser
tramitado no Tribunal Judicial, assim deturpando o princípio da sujeição desse processo ao
Julgado de Paz." (O sublinhado e negrito é nosso)
35° - Actualmente, a letra da Lei é clara e outro sentido não podia ter senão o de que, sendo
o processo remetido ao Tribunal Judicial de Primeira Instância, ainda que o Juiz de Direito
indefira a realização da perícia, o processo continua a ser tramitado no Tribunal Judicial.
36° - Ao estatuir que basta ser requerida a prova pericial para cessar a competência do
Julgado de Paz, pretendeu o Legislador retirar ao Juiz de paz o poder para decidir do mérito
desse requerimento e do consequente prosseguimento dos autos.
37° - Sendo requerida a prova pericial, esse processo seria subtraído ao Julgados de Paz por
não se coadunarem com o espírito e princípios que presidiram aquando da sua criação, entre
eles, o de simplicidade e rapidez.
38º - E o "processo deve manter-se no Tribunal Judicial de Primeira Instância pois voltando
ao Julgado de Paz sempre poderia requerer-se, novamente, â prova pericial e, por não poder
apreciar do mérito desse requerimento, cessava a sua competência sendo o processo, outra
vez, remetido ao Tribunal Judicial competente.
39° - Já que ao Julgado de Paz, quando requerida a prova pericial, só lhe é permitido cessar
a sua competência e enviá-lo ao Tribunal Judicial competente.
40° - Mas assim sim estaríamos a consagrar uma regra provocadora de morosidade com a
qual este tipo de processos não podia pactuar.
41° - Por assim poder ser é que Joel Timóteo Ramos Pereira, Juiz de Direito, in "Alargamento
dos Julgados de Paz", Pareceres, www.asip.pt.. sugere a alteração da lei dizendo que
"Deverá, assim, ser alterado o referido preceito, apenas sendo admissível a remessa do
processo ao Tribunal Judicial de Primeira Instância se a perícia for admitida pelo Juiz de Paz,
mediante o controlo dos seus pressupostos de realização, mediante despacho passível de
recurso pela parte contrária, de forma a evitar-se a prática de expedientes meramente
dilatórios.
42° - De qualquer forma, actualmente, a letra e ratio da norma tal qual se encontra prevista
é no sentido de que, sendo o processo remetido ao Tribunal Judicial de Primeira Instância,
ainda que o Juiz de Direito indefira a realização da perícia, o processo continua a ser
tramitado no Tribunal Judicial.
43° - Detendo, também, competência para julgar, não podia o Tribunal de Pequena Instância
Cível do Porto ordenar a devolução do processo ao Julgado de Paz do Porto quando este já se
declarou incompetente.
44º - Desta forma entendemos ser o Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto o
competente para julgar da matéria dos presentes autos.
45° - Ao decidir como decidiu, foram violados os artigos artigo 41° e 59° da Lei n.° 78/2001,
de 13 de Julho e do artigo 66°, 68°, 70° e 74° do C.P.C..
Termos em que, revogando-se o douto despacho recorrido e proferindo-se Acórdão que
declare competente o Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto, ordenando aí o
prosseguimento dos autos.
*
Circunscrito, em principio, o objecto do recurso pelas conclusões das alegações (art. 684º nº
3 e 690º nºs 1 e 3 do C.P.C. a questão resume-se em saber:
1) Se a competência exclusiva dos julgados de paz ocorre só na data da propositura da
acção.
2) Se requerida a prova pericial nos julgados de Paz e tendo sido declarada cessada a sua
competência ao abrigo do art. 59º nº 3 da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho (L.J.P.) ocorre
conversão desta competência para o tribunal judicial.
3) Ou, se indeferido o requerimento de prova pericial, após remessa ao tribunal judicial
competente pode, de novo remeter-se os autos ao Julgado, reatando este a competência.
O DIREITO.
A Lei 78/2001, 13 de Julho (L.J.P.) consagrou os Julgados de Paz regulando a sua
competência, organização, funcionamento e tramitação.
Os Julgados de Paz estão previstos na nossa lei fundamental. Dispõe o art.209º nº1 da
C.R.P. que «podem existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz». Estes
não pertencem, todavia, à categoria dos tribunais judicias uma vez que não estão contidos
no nº 1 deste preceito.
Os seus princípios orientadores estão previstos no art.2º, 2º que dispõe «os procedimentos
nos julgados de paz estão concebidos e são orientados por princípios de simplicidade,
adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual»- ex. destes princípios
são os arts. 43º, 2 e 3 e 38º 1 e 2.
«Os julgados de Paz são estruturas de mediação e conciliação, em alternativa aos tribunais
comuns, mas cujas, decisões, à semelhança das decisões dos tribunais arbitrais, têm a
mesma força legal dos tribunais de 1ª instância»- Joel Timóteo Ramos Pereira, Julgados de
Paz, Organização Trâmites e Formulários», pág. 35 (conf. Art.61º do diploma em análise).
De acordo com o art. 6º, 1 «a competência dos julgados de paz é exclusiva a acções
declarativas» e «têm competência para questões cujo valor não exceda a alçada do tribunal
de 1ª instância» (art.8º).
A competência em razão da matéria está prevista no art. 9º-conjunto de acções que
englobam, o incumprimento de contratos e obrigações, direitos sobre móveis e imóveis,
responsabilidade civil contratual e extracontratual, arrendamento urbano, exceptuando as
acções de despejo.
Não queremos deixar de salientar, a propósito deste preceito, o que dispõe o art.9º nº 1 a),
são da competência dos julgados de paz «acções destinadas a efectivar o cumprimento de
obrigações, com excepção das que tenham por objecto prestações pecuniárias e de que seja
ou tenha sido credor originário uma pessoa colectiva».
Segundo Lúcia Dias Vargas «a intenção desta excepção foi prevenir a “colonização”dos
julgados de paz por parte das entidades que constituem os clientes mais assíduos dos
tribunais judicias, isto é, as empresas que propõem acções de cobrança» - Julgados de Paz e
Mediação. Uma nova face da justiça, pág. 125.
A competência territorial é fixada por regras gerais e específicas conforme prevêem os
arts.11º a 14º.
A competência material fixada neste preceito é exclusiva aquando da instauração da acção,
sendo obrigatória sua propositura nos Julgados de Paz. Esta competência exclusiva decorre
do art. 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, Lei nº 3/99, de
13.01 (L.O.F.T.J.) que estabelece a competência dos tribunais judiciais nas “…causas que
não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Os julgados de paz são outra ordem jurisdicional conforme se infere do art. 209º,2 de
Constituição da República Portuguesa, já referido, e art.211º nº1 desta Lei Fundamental e
art. 66º do C.P.C..
Sendo, por isso, a competência dos tribunais judiciais residual, a competência exclusiva dos
julgados significa que as matérias para as quais a lei lhes atribui competência não podem ser
apreciadas por outro tribunal.
Revertemos, agora, ao caso dos autos.
Os julgados de paz do Porto são competentes para conhecer do pedido a que respeita o
presente processo, arts. 9º, nº1 i) e 14º da L.J.P..
Requerida prova pericial pela ré, C………., S.A., o Sr. Juiz de paz ordenou a remessa dos
autos ao Tribunal de Pequena Instância cível do Porto.
Neste tribunal após apreciação e indeferimento da requerida prova pericial, foi ordenado, por
sua vez, e, de novo, a remessa dos autos ao julgado de paz.
Entende a recorrente que uma vez ordenada a remessa ao tribunal judicial, o julgado de paz
deixa de ser competente.
Vejamos.
Na senda da simplicidade processual, atrás referida, os julgados de paz não são competentes
para apreciar incidentes suscitados nos autos como decorre do art. 41º da L.J.P, «suscitando
as partes um incidente processual o juiz de paz remete o processo para o tribunal judicial
competente, para que siga os seus termos, sendo aproveitados os actos processuais já
praticados», (conf.art.39º e 44º).
No mesmo enfiamento o art. 59º, 3 do diploma em causa dispõe «requerida a prova pericial,
cessa a competência do julgado de paz, remetendo-se os auto ao tribunal competente para
aí prosseguirem os seus termos, com aproveitamento dos actos já praticados».
O objectivo destes normativos é evitar actos dilatórios, não compagináveis com os referidos
princípios de celeridade e simplicidade.
Ora, da análise destes preceitos podemos concluir, que o juiz de paz não tem poder de
avaliar os requerimentos das partes e decidir da sua oportunidade e legalidade, isto é, não
tem um controlo prévio dos pressupostos respectivos.
O requerimento para realização de perícia (ou qualquer incidente previsto nos arts.302º a
380ºdo C.P.C.) implica a remessa automática do processo para o tribunal judicial de 1ª
instância.
Significa isto que este requerimento, por si só, independentemente de vir a ser ou não
admitido, faz cessar a competência dos julgados de paz.
Este tribunal perde a sua competência, não podendo, por isso, e no caso de indeferimento do
incidente ou perícia remeter-se o processo, de novo, para que os autos prossigam os seus
termos, reatando o julgado de paz a sua competência.
A própria lei refere que os autos prosseguem os seus termos, com aproveitamento dos actos
já praticados, mas frise-se, no tribunal competente.
E, este tribunal é o que seria competente se não existisse o julgado de paz.
Estes tribunais tiveram como objecto a dejudicialização de certas causas pelo que se as
partes suscitarem estes incidentes convertem a competência dos julgados de paz na
competência dos tribunais judiciais, iludindo, ao fim e ao cabo, a finalidade para que foram
criados. Daí que Joel Timóteo Ramos Pereira na sua obra “Julgados de Paz, organização,
Trâmites e Formulários” defende que urge alterar estes dispositivos no sentido do juiz de paz
ter um controle prévio sobre tais requerimentos.
Daqui se infere também que a competência exclusiva se verifica, como supra referimos, no
momento da propositura da acção, e não, já, no decurso do processo.
Em conclusão, com o requerimento a solicitar a perícia a ré “C………., S.A.” fez com que o
julgado de paz perdesse a sua competência. Competência que Cardona Ferreira denomina
como competência funcional, “Julgados de Paz Organização e Funcionamento, pág. 58.
Atento o exposto, e na procedência das alegações dá-se provimento ao agravo e revoga-se o
despacho recorrido.
Custas pela autora.
Porto, 5 de Dezembro de 2006
Maria das Dores Eiró de Araújo
Anabela Dias da Silva
Albino de Lemos Jorge
Agravo nº 7020/06-3ª Sec.
Data – 18/01/2007
5179 (Boletim Interno nº 27)
COMPETÊNCIA MATERIAL
DIREITO DE PROPRIEDADE
VIOLAÇÃO
JUNTA DE FREGUESIA
ACTO DE GESTÃO PRIVADA
ACTO DE GESTÃO PÚBLICA
RELAÇÃO JURÍDICA ADMINISTRATIVA
Sumário
A violação do direito de propriedade de um particular por uma actuação abusiva de outrem, seja ente
público ou privado é questão da competência material dos Tribunais comuns.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
JUNTA de FREGUESIA de B………., interpôs o presente recurso de agravo da decisão supra
referida, que declarou a competência do Tribunal Judicial de Mirandela para conhecer dos
pedidos formulados por C………. e seu cônjuge, D.......... de reconhecimento dos A.A. como
donos e legítimos proprietários de um prédio rústico, sito no ………., ………., identificado no
artº 1º da petição inicial, de declaração de não ser esse imóvel atravessado por qualquer
caminho público com as características referidas na mesma petição inicial e de condenação
da R., aqui recorrente a reconhecer o mencionado direito dos A.A. e abster-se de qualquer
acto, obra, trabalho ou serviço no referido prédio, e no pagamento de indemnização pelos
danos já causados aos A.A., por considerar que a matéria em discussão no presente
processo “é da exclusiva competência dos Tribunais Administrativos”, visto estar em causa a
responsabilidade civil extra contratual de uma Junta de Freguesia.
Apresentou as seguintes conclusões de recurso:
1 - É interposto o presente recurso porquanto a Ré, FREGUESIA DE B………., pessoa colectiva
de direito público, não concorda que este litígio seja submetido à apreciação do Tribunal
comum.
2 - Sendo certo que os Autores pretendem obter uma indemnização pelos prejuízos
alegadamente sofridos, em resultado da actuação da Ré FREGUESIA DE B………. .
3 - A qual, alegadamente, invadiu uma propriedade dos Autores, ao proceder à reabertura e
limpeza de um caminho vicinal existente naquele local e que liga as aldeias de ………. e de
………. e provocou aos Autores danos de ordem patrimonial e moral.
4 - Que os Autores computam em € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros).
5 - O que a faria incorrer em responsabilidade civil extracontratual.
6 - A Ré, contestou por excepção e por impugnação.
7 - Excepcionando a Ré veio alegar a incompetência material do Tribunal Comum para julgar
o presente pleito.
8-- Alegando que, como se trata de uma acção em que se pretende obter o ressarcimento
dos prejuízos resultantes de actos da Ré, que a fariam incorrer em responsabilidade civil
extracontratual, o litígio deveria ter sido submetido à apreciação do Tribunal Administrativo
competente para o efeito e não do Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela.
9 - Sendo que nos termos do DI, 325/2003 de 29/12 seria competente para julgar o
presente litígio o Tribunal Administrativo de Círculo de Mirandela, conforme mapa anexo ao
referido Decreto-lei.
10 - Tudo isto porque são da competência dos Tribunais Administrativos as acções tendentes
a efectivar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público,
nas quais se incluem as Freguesias.
11 - Conforme consta da alínea g) do artigo 4º do ETAF.
12 - Ora os Autores intentaram a presente acção sumária no Tribunal Comum, o qual é, do
ponto de vista da Ré, absolutamente incompetente em razão da matéria.
13 - Pelo que, face ao disposto nos artigos 66, 101, 102 e 105 do Código de Processo Civil,
deve ser declarada a absolvição da Ré, Freguesia de B………., da instância, de acordo com o
disposto no artigo 105 do C.P.C..
14- Uma vez que a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a
incompetência absoluta do Tribunal.
15 - Assim, no entender da Ré, FREGUESIA DE B………., deveria ser declarada a
incompetência absoluta em razão da matéria do ilustre Tribunal Judicial de Mirandela para
apreciar a presente acção, com a cominação legal do artigo288 nº1, alínea a) e 493, nº 2 do
C.P.C., ou seja, absolvição da Ré da instância.
16 - Porém, conforme douta decisão de folhas 55 e seguintes, o douto Tribunal "a quo",
decidiu julgar improcedente a excepção da incompetência absoluta do tribunal comum,
invocada pela Ré, estribando-se, em suma, nos seguintes argumentos:
a) Os actos de gestão pública são praticados no exercício de uma função pública para os fins
dos interesses públicos da pessoa colectiva, isto é, os referidos pelo direito público e,
consequentemente, por normas que atribuem à pessoa colectiva poderes de autoridade (ius
imperii), são actos de gestão privada os praticados por órgão ou agente fora do exercício de
uma função pública, ou dentro dela, para um fim estranho à função pública.
b) Nos termos do art. 51 do ETAF, aprovado pelo DL 129/84 de 27/04, compete aos
Tribunais Administrativos de Círculo conhecer das acções sobre a responsabilidade civil do
estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos
decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso.
c) Por sua vez, nos termos do art. 40 nº 1 al. f) estão excluídas da jurisdição administrativa
as acções que tenham por objecto questões de direito privado e ainda que qualquer das
partes seja pessoa colectiva de direito público.
17 - De seguida e como é habitual, a douta decisão proferida faz referência à doutrina do
saudoso e ilustre Prof. Manuel de Andrade, explanada no livro, Noções Elementares de
Processo Civil, de 1956, pág. 89.
18 - E continua com uma referência jurisprudencial:
O Acórdão da Relação do Porto de 7 de Novembro de 2000, (CJ 2000, V, pág. 89), cujo
sumário o douto Tribunal quo" entendeu por bem transcrever.
19 - Porém tal douta decisão baseia os seus pressupostos num normativo legal que foi
revogado pela Lei nº 13/2002, que entrou em vigor em 31/01/2003, um ano após a sua
publicação, que ocorreu em 31/01/2002.
20- E também nos parece que a doutrina citada, do Prof. Manuel de Andrade, não mereceu
acolhimento no actual ETAF.
21 - O mesmo se dirá do excelente Ac. RP de 7 de Novembro de 2000, citado, o qual, fez a
aplicação da legislação existente à data, ou seja, o anterior ETAF, aprovado pelo DL 129/84
de 27/04.
22 - Sendo que, caso estivesse em vigor o diploma em que o douto Tribunal "a quo" se
baseia para indeferir a excepção de incompetência, poderia defender-se que a jurisdição
aplicável seria a dos tribunais comuns.
23 - E isto porquanto o artigo 40, do anterior ETAF (DL 129/84) que delimita o âmbito da
jurisdição administrativa e fiscal, tem uma redacção pela negativa, excluindo desta jurisdição
as acções que tenham por objecto:
f) Questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público;
24 - Pelo que, talvez fosse enquadrável o presente litígio no âmbito da jurisdição comum no
caso de estar em vigor o Decreto-Lei nº 129/84 de 27 de Abril que aprovou o anterior ETAF.
25 - Porém, à data dos factos, que ocorreram em 18/03/2005, como alegam os Autores, já
este diploma tinha sido revogado e substituído pelo actual ETAF, aprovado pela Lei no
13/2002, que entrou em vigor um ano após a sua publicação, que ocorreu em 31/01/2002.
26 - A acção foi proposta 13/01/2006.
27 - E, o artigo 4º, do actual ETAF, aprovado pela lei nº13/2002, de 19 de Fevereiro, já
limita, agora curiosamente pela positiva (nº 1) e também pela negativa (nºs 2 e 3), o âmbito
da jurisdição administrativa e fiscal.
28 - Cremos e não temos dúvida alguma que, esta alteração da técnica legislativa (no ETAF
revogado: delimitação pela negativa, no ETAF actual pela positiva e também pela negativa)
significa que o legislador pretendeu entregar à justiça administrativa e fiscal, uma área de
intervenção significativamente maior e eliminar ao máximo problemas de conflitos de
jurisdição.
29 - Pois, o actual ETAF atribui competência aos tribunais da jurisdição administrativa para
apreciarem todos os pedidos indemnizatórios fundados em responsabilidade extracontratual
das pessoas colectivas públicas, eliminando o critério anterior, delimitador da natureza
pública ou privada do acto de gestão que gerava o pedido, causador de grandes incertezas
na determinação do tribunal competente.
30 - Assim agora temos que no Artigo 4, nº 1, do ETAF as alíneas g) e h) têm o seguinte
teor:
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual
das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função
jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares dos órgãos, funcionários e demais
servidores públicos.
31 - E também o art. 44, sobre a competência dos tribunais administrativos de círculo, refere
no nº 1, que:
Compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer, em primeira instância, de todos
os processos do âmbito da jurisdição administrativa, com excepção daqueles cuja
competência em primeiro grau de jurisdição, esteja reservada aos tribunais superiores e da
apreciação dos pedidos que nestes processos sejam cumulados.
32 - Também as alterações se reflectiram a nível do direito adjectivo.
33 - Enquanto o anterior LPTA, aprovado pelo DL 267/85 de 16/07 e revogado pela Lei nº
15/2002 de 22/02, que aprovou o actual CPTA, apenas referia nos seus artigos 71 e 72:
Artigo 71 - aborda somente os prazos de prescrição dos direitos;
Artigo 72 - debruça-se sobre a tramitação processos.
34 - O actual CPTA, no artigo 37, diz-nos que seguem a forma de acção administrativa
comum "os processos que tenham por objecto litígios relativos a: 2 [...] f) Responsabilidade
civil das pessoas colectivas, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou
agentes, incluindo acções de regresso;"
35 - Assim cremos que se infere que o legislador alargou o âmbito da jurisdição
administrativa, e o actual ETAF atribui competência aos tribunais da jurisdição administrativa
para apreciar todos os pedidos indemnizatórios fundados em responsabilidade civil
extracontratual das pessoas colectivas, como é o caso da aqui Ré, FREGUESIA DE B………. .
36 - Ao mesmo tempo a actual legislação eliminou o anterior critério que tradicionalmente
delimitava a natureza pública ou privada do acto de que emanava o pedido e que gerava
incerteza na determinação e escolha da jurisdição competente.
37 - E pode acentuar-se, embora sem interesse para o caso que, a actual legislação, vai
ainda mais longe e alarga o âmbito da jurisdição administrativa aos litígios em que
intervenham na qualidade de Réus ou Requeridos sujeitos privados, submetidos ao regime
da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelo exercício da função administrativa,
de acordo com o disposto na lei substantiva.
Concluiu considerando que deverá ser concedido provimento ao presente recurso,
revogando-se a douta sentença recorrida.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Uma questão foi colocada como objecto do recurso:
1- Competência material do Tribunal Cível para conhecer da acção.
A competência judiciária em razão da matéria é de ordem pública, e, só pode decorrer da lei,
tendo sido estabelecida em função da natureza da matéria sub judice e atribuída ao tribunal
que estiver mais vocacionado para dela conhecer, com vista à melhor prestação da qualidade
da justiça. Reveste-se, tal definição de um interesse público fundamental, pelo que a
preterição das regras que a determinam, nos termos do disposto no artigo 101.º do Código
de Processo Civil é sancionada com a incompetência absoluta do tribunal.
A organização judiciária portuguesa, na sua visão constitucional, artº 211º, integra,
fundamentalmente, três categorias de tribunais:
- Constitucional,
- Tribunais Comuns,
- Tribunais Administrativos e Fiscais.
A Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976, Revista pelas Leis
Constitucionais n.ºs 1/82, de 30 de Setembro, 1/89, de 8 de Julho, 1/92, de 25 de
Novembro, 1/97, de 20 de Setembro e 1/2001, de 12 de Dezembro estabelece no seu
CAPÍTULO II, sob a epígrafe Organização dos tribunais, o seguinte:
Artigo 209.º
(Categorias de tribunais)
1. Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais:
a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância;
b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais;
c) O Tribunal de Contas.
2. Podem existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz.
3. A lei determina os casos e as formas em que os tribunais previstos nos números
anteriores se podem constituir, separada ou conjuntamente, em tribunais de conflitos.
4. Sem prejuízo do disposto quanto aos tribunais militares, é proibida a existência de
tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes.
Artigo 210.º
(Supremo Tribunal de Justiça e instâncias)
1. O Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais,
sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional.
2. O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça é eleito pelos respectivos juízes.
3. Os tribunais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca, aos quais se
equiparam os referidos no n.º 2 do artigo seguinte.
4. Os tribunais de segunda instância são, em regra, os tribunais da Relação.
5. O Supremo Tribunal de Justiça funcionará como tribunal de instância nos casos que a lei
determinar.
Artigo 211.º
(Competência e especialização dos tribunais judiciais)
1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem
jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
2. Na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais
especializados para o julgamento de matérias determinadas.
3. Da composição dos tribunais de qualquer instância que julguem crimes de natureza
estritamente militar fazem parte um ou mais juízes militares, nos termos da lei.
4. Os tribunais da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça podem funcionar em secções
especializadas.
Artigo 212.º
(Tribunais administrativos e fiscais)
1. O Supremo Tribunal Administrativo é o órgão superior da hierarquia dos tribunais
administrativos e fiscais, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional.
2. O Presidente do Supremo Tribunal Administrativo é eleito de entre e pelos respectivos
juízes.
3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos
contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais.
Em sintonia com o preceito constitucional, o artigo 18º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de
Janeiro, Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, vem confirmar que
«são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra
ordem jurisdicional».
A jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe
atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
O art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na linha do que estatui a
Constituição, no preceito anteriormente reproduzido, dispõe:
Artigo 4.º
Âmbito da jurisdição
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que
tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou
fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito
administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas
colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem
como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da
invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por
quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à
Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos
privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e
execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que
admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de
direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível
de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de
direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que
as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo
por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, nos termos da lei, bem
como a resultante do funcionamento da administração da justiça;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e
demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o
regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito
público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no
âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promoção da prevenção, da cessação ou da perseguição judicial de infracções cometidas
por entidades públicas contra valores e bens constitucionalmente protegidos como a saúde
pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o
património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que
não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.
2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação
de litígios que tenham por objecto a impugnação de:
a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa
e fiscal;
c) Actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal e à
execução das respectivas decisões.
3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais
pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de
regresso;
b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do
Supremo Tribunal de Justiça;
c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior
da Magistratura e pelo seu Presidente;
d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, que não
conferem a qualidade de agente administrativo, ainda que uma das partes seja uma pessoa
colectiva de direito público.
A competência dos tribunais, seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da
providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto
donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos
subjectivos (identidade das partes) é aferida em função dos termos em que a acção é
proposta, ou seja, pelo pedido do autor, ou, nas palavras de REDENTI – “afere-se pelo quid
disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”.
«A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da
procedência da acção” in MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil,
1979, não havendo, para tanto que averiguar quais deviam ser as partes e os termos da
pretensão formulada em juízo.
Tendo em conta a doutrina, a jurisprudência e as referidas normas delimitadoras da
jurisdição administrativa e fiscal e da jurisdição dos tribunais judiciais, para decidir se
incumbe aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais o conhecimento da presente
acção, importa caracterizar a relação estabelecida entre os AA. e Ré, tal como configurada a
relação material controvertida na petição inicial.
Os A.A., ora recorridos invocaram o seu direito de propriedade sobre um imóvel que dizem
ter sido ocupado abusivamente pela Ré, sem qualquer título, pelo que pretendem ser
ressarcidos pelos prejuízos resultantes da ocupação ilícita do seu prédio através da
condenação da Ré a, nomeadamente:
a) Reconhecer seu o direito de propriedade sobre o imóvel;
b) Abster-se de praticar actos que perturbem o exercício pleno do referido direito de
propriedade;
c) Pagar as quantias correspondentes aos danos provocados;
Face aos pedidos e à causa de pedir verificamos estar perante uma acção de reivindicação
normal em que o perturbador è uma Junta de freguesia. A relação material controvertido
está configurada na petição inicial como uma relação jurídica de direito privado a dirimir por
aplicação de normas de direito privado.
Mesmo analisada a contestação, não alega a ré que a sua actuação é feita, por exemplo, em
cumprimento de um preceito legal, de uma declaração de utilidade pública ou mesmo de
uma deliberação da Assembleia de Freguesia. Não faz qualquer tentativa de deslocar o
objecto de litígio para uma área que suscite sequer qualquer questão de confronto entre o
direito público e o direito privado.
Refere tão só a sua qualidade de ente público, pretendendo fazer uma interpretação
reducionista das normas actualmente constantes do actual contencioso administrativo,
interpretadas de molde que seja conferido aos entes públicos, apenas por o serem e,
independentemente do objecto do litígio um foro especial, o foro administrativo.
Bem certo que nesta acção, contrariamente ao entendido na decisão recorrida, porque
entrada em juízo em 2006, não tem qualquer aplicação o revogado Etaf, nem a Lei de
Processo nos Tribunais Administrativos. Bem certo que é doutrinariamente antiquada a
dicotomia de actos de gestão pública e actos de gestão privada que até há bem pouco tempo
delineava a área de jurisdição dos Tribunais comuns face aos Tribunais Administrativos.
A estes autos aplica-se o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais constante da Lei
n.º 13/2002, de 19.02 que revogou o Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, de que se citou
acima o artº 4º, tendo ainda em atenção o que consta do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, constante da Lei n.º 15/2002, de 22.02, que aprovou o Código de Processo
nos Tribunais Administrativos e revogou o Decreto-Lei nº. 267/85, de 16 de Julho.
No essencial referem os A.A. que são proprietários de certo imóvel que foi ocupado pela
R.R., sem qualquer título, sem autorização dos A.A. e que essa ocupação lhes causou
prejuízos.
Sem sombra de dúvida que o que está em causa nos pedidos formulados na petição inicial é
a definição do direito de propriedade dos A.A. sobre um imóvel que indicaram como sendo
pertença sua, e a indemnização pelos prejuízos causados pelas Ré. Todas estas questões são
questões de direito privado, a resolver segundo as regras do direito privado cuja aplicação a
entes públicas não está afastada por lei.
Ocupar um terreno de um particular, sem qualquer título, seja o ocupador o Estado, uma
Autarquia, uma empresa pública ou privada, ou um simples cidadão, será sempre uma
ofensa ao direito de propriedade dos particulares, a defender junto dos Tribunais comuns,
por serem estes os competentes a dirimir tais conflitos.
A actuação pública de uma entidade não ocorre apenas porque se trate de uma actuação
levada a cabo por um ente público. Quer o Estado quer as Autarquias dispõem de um
domínio privado e podem, de facto, praticar actos que sejam exclusivamente regulados pelo
direito privado.
O Profº Vaz Serra, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 103, pág. 350 e 351,
considerando que a distinção deve atender à circunstância de o acto se integrar ou não numa
actividade de direito público da pessoa colectiva pública, estabelece essa distinção da forma
seguinte: “se ele (o acto) se compreende nunca actividade de direito privado da pessoa
colectiva pública, da mesma natureza da actividade de direito privado desenvolvida por um
particular, o caso é de acto praticado no domínio dos actos de gestão privada; se, pelo
contrário, o acto é praticado no exercício de um poder público, isto é, na realização de
funções públicas, mas não nas formas e para a realização de interesses de direito civil, o
caso é de acto praticado no domínio dos actos de gestão pública.
O Prof.º Antunes Varela, definia como actos de gestão privada aqueles em que o Estado ou
pessoa colectiva pública intervêm como um simples particular, despido do seu poder público,
in Das Obrigações em Geral, 2ª ed., vol. 1, pág. 523.
O Profº Marcelo Caetano definia a gestão pública como a actividade da Administração
regulada por normas que confiram poderes de autoridade para a prossecução de interesses
públicos, disciplinem o seu exercício ou organizem os meios necessários para esse efeito
(Manual de Direito Administrativo, tomo II, 10ª ed., pág. 1198) e considerava como gestão
privada a actividade desenvolvida pela Administração no exercício da sua capacidade de
direito privado, procedendo como qualquer outra pessoa no uso das faculdades conferidas
por esse direito, ou seja, pelo direito civil ou comercial (obra citada, tomo 1, pág. 431).
Não se desconhece que a Reforma do Novo Contencioso Administrativo pretendeu estender a
competência da jurisdição administrativa a algumas questões que anteriormente lhe estavam
vedadas, nem que algumas posições doutrinárias, vieram já tomar partido e considerar que
os Tribunais Administrativos serão competentes para conhecer de todas as questões relativas
à responsabilidade civil extracontratual de qualquer entidade pública seja ela emergente de
uma relação jurídica de direito público ou de direito privado.
Não estão ainda debatidas estas questões, pelo menos de forma pública e suficiente ao nível
da jurisprudência que permitam estabelecer que efectivamente o legislador do Etaf
pretendeu, pelo menos em matéria de responsabilidade civil extracontratual converter os
Tribunais Administrativos nos Tribunais privativos de quem desempenha funções públicas
quer essa responsabilidade tenha algo a ver, pouco, ou nada com esse desempenho de
funções.
No limite esta interpretação levará a uma alteração completa da definição da competência
material dos Tribunais em função do objecto do processo para a deslocar para a qualidade
das partes que titulam a relação material controvertida. Ou seja, com esta interpretação, em
sede de responsabilidade civil extracontratual, mesmo que esteja em causa apenas uma
questão de direito privado, os Tribunais comuns conhecerão das questões entre os
particulares, excepto se uma das partes exercer qualquer função pública, porque isso
implicará que só perante o Tribunal Administrativo se poderá colocar a questão, mesmo que
os factos geradores dessa responsabilidade nada tenham a ver com o exercício de funções
públicas.
Admitindo-se que da especialização possa resultar algum melhor conhecimento das matérias,
não se compreende como da qualidade dos intervenientes processuais – entes que
desempenham funções públicas versus entes particulares – alheada em absoluto dos
conteúdos a discutir, possa resultar a definição da competência material dos Tribunais, pelo
menos numa interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa, sob pena de se
estabelecer que os Tribunais Administrativos, dotados além do mais de um corpo privativo
de juízes, recrutados de forma diversa daquela em que o são os juízes da Magistratura
Judicial comum, e em que é factor preferencial o exercício anterior de cargos
administrativos, são os únicos onde podem ser demandados os cidadãos que exerçam
qualquer cargo público.
Por se tratar da norma primária de legislação, e dado o texto do artº 212, nº 3 da
Constituição da República Portuguesa – Compete aos tribunais administrativos e fiscais o
julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios
emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais – sempre a interpretação de
todas as disposições do art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais terá que
ser conforme à Constituição da República Portuguesa, nessa medida se limitando a
competência dos Tribunais Administrativos apenas aos litígios emergentes das relações
jurídicas administrativas. Nestes autos não está minimamente configurada qualquer relação
jurídica a administrativa, sendo certo que nas últimas décadas do sec. XX o legislador
nacional sempre se tem debatido pela extinção de foros especiais em razão das da
identidade dos intervenientes processuais.
Por ter sido amplamente debatida quer na doutrina quer na jurisprudência a questão de que
a violação do direito de propriedade de um particular por uma actuação abusiva de outrem,
seja ente público ou privado é questão da competência material dos Tribunais comuns,
dispensamo-nos de fazer sobre essa questão qualquer outra referência.
Em conclusão, o Tribunal Judicial de Mirandela é competente em razão da matéria para o
conhecimento dos pedidos formulados pelos A.A..
Decisão:
Acorda-se, em vista do exposto, nesta Relação, em negar provimento ao recurso e confirmar
a decisão recorrida.
As custas serão definidas a final.
Porto, de Janeiro de 2007
Ana Paula Fonseca Lobo
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Manuel Lopes Madeira Pinto
Agravo nº 6587/06-5ª Sec.
Data – 31/01/2007
5186 (Boletim Interno nº 27)
COMPETÊNCIA MATERIAL
ACÇÃO ESPECIAL DE INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSIQUICA
VARAS CIVEIS
JUIZOS CIVEIS
TRIBUNAL COLECTIVO
Sumário
I - Sendo a acção especial de interdição por anomalia psíquica uma acção cível de valor superior à
alçada do tribunal da Relação, não se exige a efectiva intervenção do tribunal colectivo, sendo suficiente
a mera previsibilidade, possibilidade ou probabilidade desse tribunal ser chamado a intervir.
II - A competência material para apreciação e julgamento de tal acção compete às Varas Cíveis e não
aos Juízos Cíveis.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
O Ministério Publico intentou nas Varas Cíveis do Porto, acção com processo especial para
interdição de anomalia psíquica.
Foi proferido despacho julgando incompetente para a referida acção as varas cíveis.
Deste despacho interpôs o Ministério público o presente recurso de Agravo.
São as seguintes as conclusões de recurso apresentadas:
1. Do teor do disposto nos artigos 17º da LOFTJ (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro) e 62º, n.º 2
do Código de Processo Civil, resulta que, no âmbito da actual lei orgânica dos tribunais
judiciais a competência em função da forma do processo não é um critério determinativo da
competência jurisdicional, já que o art.º 17º da LOFTJ não lhe faz qualquer referência.
2. Posto isto, cumpre averiguar se o processo especial de interdição por anomalia psíquica é
da competência das varas cíveis, pois se o não for então é da competência dos juízos cíveis,
atento o disposto no art.º 99º da LOFTJ.
3. Às varas cíveis compete, no que agora nos interessa, a preparação e julgamento das
acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da relação em que a lei
preveja a intervenção do tribunal colectivo - cfr. art.º 97º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 3/99, de
13 de Janeiro.
4. Não se exige, pois, a efectiva intervenção do tribunal colectivo, sendo suficiente a mera
previsibilidade, possibilidade ou probabilidade desse tribunal ser chamado a intervir.
5. Também, não se exige que as acções sejam declarativas comuns, logo as acções
declarativas cíveis especiais (nelas se incluindo as acções de interdição) que tenham valor
superior à alçada da relação e em que a lei preveja a mera possibilidade de intervenção do
tribunal colectivo são da competência originária das varas cíveis.
6. A presente acção, apesar de seguir a forma de processo especial e se regular pelas
disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns, e no que nestas não
estiver prevenido, pelas disposições do processo ordinário, é uma acção declarativa cível de
valor superior à alçada da relação - cfr. artigos 138º a 151º do Código Civil e 312º do Código
de Processo Civil, já que é uma acção sobre o estado das pessoas e, por isso, excede o valor
da alçada da relação -, e em que a lei prevê a possibilidade de intervenção do tribunal
colectivo - cfr. artigos 952º, n.º 2 e 646º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil.
7. Portanto, ab initio, a competência para preparar e julgar as acções especiais de interdição
é das varas e não dos juízos cíveis.
8. Por isso, não há aqui lugar à aplicação do n.º 4 do artigo 97º da LOFTJ, ao contrário do
defendido pela Mmª. Juíza, o qual se aplica àqueles processos em que originariamente não
eram da competência das varas, nomeadamente, porque o seu regime jurídico processual é
muito específico, como acontece, por exemplo, com o processo de expropriação, que tem
uma fase administrativa (até ser interposto recurso de arbitragem) e uma fase judicial, nesta
se prevendo a intervenção do tribunal colectivo (cfr. art.ºs 58º e 60º do CE, aprovado pela
Lei n.º 168/99, de 18/9), independentemente do valor, a requerimento dos expropriados ou
do expropriante.
9. Assim, ao julgar-se incompetente, o douto despacho em recurso violou as normas
contidas nos art.ºs 97º, n.º1, al. a) e 99º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, 138º a 151º do
Código Civil, 312º, 952º, n.º 2 e 646º, n.º 1, estes do Código de Processo Civil.
10. Deve, pois, ser revogado e substituído por outro que considere competentes as varas
cíveis para conhecer da presente acção especial de interdição, no caso, a .ª vara cível do
Porto, .º secção à qual foi distribuída.
Foi proferido despacho mantendo a decisão recorrida.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
A única questão que se coloca consiste em saber se para a preparação e julgamento de uma
acção especial de interdição por anomalia psíquica são competentes (na comarca do Porto)
os juízos cíveis ou as varas cíveis.
Nos termos do artigo 17º da LOFTJ (da qual serão todos os que forem citados sem indicação
doutra origem), na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais
segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território. “A lei de processo determina o
tribunal em que a acção deve ser instaurada em face do valor da causa” (artº 20º).
No entanto, estabelece o nº 1 do artigo 62º do CPC que a competência dos tribunais
judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis
de organização e pelas disposições deste código.
Remete-se, assim, para as leis da organização judiciária como fonte reguladora da
competência dos tribunais judiciais, a par do CPC.
Todavia, o seu nº 2 determina que na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes
tribunais segundo a matéria, a hierarquia judiciária, o valor da causa, a forma de processo
aplicável e o território.
Assim, há que concluir que, no âmbito da actual lei orgânica, a competência em função da
forma de processo não é um critério determinativo da competência jurisdicional. Por outro
lado, estabelece o artigo 68º do CPC que as leis de organização judiciária determinam quais
as causas que, pelo valor ou pela forma de processo aplicável, se inserem na competência
dos tribunais singulares e dos tribunais colectivos, estabelecendo este código os casos em
que às partes é lícito prescindir da intervenção do colectivo.
Dado que, nos termos do artigo 68º do CPC, a lei processual não define, em função do valor
da causa, qualquer tribunal onde ela deva ser instaurada, há que concluir que a remissão
realizada pelo artigo 20º da LOFTJ para aquela lei não tem sentido. Há que efectuar, por
isso, uma interpretação ab-rogatória do artigo 20º da LOFTJ e concluir que o critério do valor
da causa não se destina a aferir a competência jurisdicional.
Ora, como determina o nº 1 artigo 64º, pode haver tribunais de 1ª instância de competência
especializada e de competência específica.
“Os tribunais de competência específica conhecem de matérias determinadas em função da
forma de processo aplicável...” (64º, nº 2).
Os tribunais de 1ª instância funcionam, consoante os casos, para julgamento da matéria de
facto, como tribunal singular, como tribunal colectivo ou como tribunal de júri.
Aos juízos de competência especializada cível compete a preparação e o julgamento dos
processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais. E como determina o artigo 99º
compete aos juízos cíveis preparar e julgar os processos de natureza cível que não seja de
competência das varas e dos juízos de pequena instância cível.
Trata-se, portanto, de competência específica residual.
Daí que seja necessário averiguar se a competência em causa cabe às varas. Se assim não
for, a competência será dos juízos. Dispõe o artigo 97º da LOTJ que compete às Varas
Cíveis:
a) a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do
tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo;
b) Exercer as demais competências conferidas por lei.
2 ...
3. São remetidos às varas cíveis os processos pendentes nos juízos cíveis em que se
verifique alteração do valor susceptível de determinar a sua competência.4. São ainda
remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam
originariamente da sua competência, ou certidão das necessárias peças processuais, nos
casos em que a lei preveja, em determinada fase da sua tramitação, a intervenção do
tribunal colectivo.
5....
c)
Compete, pois, às varas cíveis, nomeadamente, a preparação e julgamento das acções
declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da relação em que a lei preveja a
intervenção do tribunal colectivo. É, pois, necessária a verificação cumulativa destes dois
requisitos: a acção declarativa ter valor superior à alçada da relação e a lei prever a
possibilidade de intervenção do tribunal colectivo.
E são remetidos às varas cíveis os processos pendentes nos juízos cíveis em que se verifique
alteração do valor susceptível de determinar a sua competência. Portanto, se num processo
da competência dos juízos em razão do valor este for alterado para a competência das varas,
para aí será remetido o processo.
E são ainda remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos
que não sejam originariamente da sua competência, ou certidão das necessárias peças
processuais, nos casos em que a lei preveja, em determinada fase da sua tramitação, a
intervenção do tribunal colectivo. Como é sabido, o julgamento das acções em processo
ordinário com a intervenção do colectivo tem sofrido várias alterações (artº 646º do CPC):
desde uma fase em que a regra era a intervenção do colectivo ate ao sistema actual em que
este apenas intervém quando for requerido pelas partes (DL nº 182/00, de 10.08).
Estabelece agora o nº 1 do artigo 646º que a discussão e julgamento da causa são feitos
com intervenção do tribunal colectivo, se ambas as partes assim o tiverem requerido. Tratase de uma acção que segue a forma de processo especial (artigos 944 a 958º do CPC). Nos
termos do artigo 463º do CPC “o processo sumário e os processos especiais regulam-se
pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerias e comuns; em tudo quanto
não estiver prevenido numas e noutras, observar-se-á o que se acha estabelecido para o
processo ordinário”. Em relação ao processo ordinário verificam-se algumas alterações
significativas nas acções de interdição. Todavia, na parte que agora interessa, estabelece o
artigo 952º:
1. Se o interrogatório e o exame do requerido fornecerem elementos suficientes e a acção
não tiver sido contestada, pode o juiz decretar imediatamente a interdição ou inabilitação.
2. Nos restantes casos, seguir-se-ão os termos do processo ordinário, posteriores aos
articulados.
Portanto, findos os articulados e o exame, se a acção tiver sido contestada, ou o processo
não oferecer elementos suficientes, a acção prosseguirá segundo as regras do processo
ordinário.
Como é óbvio, até esta fase não intervém o tribunal colectivo. Mas o mesmo sucede nas
acções ordinárias até à fase de julgamento. E nestas poderá nem haver intervenção do
colectivo. Só haverá se ambas as partes o requererem. E há mesmo casos em que não é
admissível a intervenção do colectivo (artº 646º, nº 2). E nem por isso se põe em causa a
competência das varas para a sua preparação e julgamento.
E tendo em consideração que se trata de uma acção declarativa cível de valor superior à
alçada do tribunal da Relação e em que se prevê a intervenção do colectivo, os tribunais
competentes para a preparação e julgamento são as varas cíveis, ainda que, por virtude de o
réu não oferecer a sua defesa, não haja efectivamente lugar à intervenção daquele tribunal.
É que não nos parece estarmos perante um caso em que seja aplicável o nº 4 do artigo 97º,
ou seja: são remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos
que não sejam originariamente da sua competência.
A competência originárias é das varas e não dos juízos. Com efeito tratando-se, como se
trata, de uma acção cível de valor superior à alçada do tribunal da relação não se exige a
efectiva intervenção do tribunal colectivo, sendo suficiente a mera previsibilidade,
possibilidade ou probabilidade desse tribunal ser chamado a intervir. E não nos parece que
se justifique que a acção seja proposta nos juízos cíveis, sendo depois remetida para as
varas nos casos em que houver lugar a julgamento, quando é certo que, em teoria, este
sempre poderá ter lugar. Para tanto basta que a acção seja contestada ou o interrogatório e
o exame não forneçam os elementos necessários para que a interdição ou a inabilitação
sejam desde logo decretadas.
Concluímos, assim, no sentido de que os tribunais competentes para conhecer dos processos
especiais de interdição são, no Porto, são as varas cíveis.
DECISÃO
Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao agravo, revogando-se o despacho
recorrido, o qual deve ser substituído por outro, que considere competentes as Varas Cíveis
para conhecer da presente acção especial de interdição no caso a ….ª a Vara Cível à qual foi
distribuída.
Sem custas.
Porto, 31 de Janeiro de 2007
Maria do Rosário Marinho Ferreira Barbosa
Abílio Sá Gonçalves Costa
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho
Conflito Negativo de Competência nº 6614/06-3ª Sec.
Data – 31/01/2007
5187 (Boletim Interno nº 27)
PEDIDO DE APOIO JUDICIÁRIO
INDEFERIMENTO
SEGURANÇA SOCIAL
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário
Se o requerente de apoio judiciário vê parcialmente indeferida, administrativamente pela Segurança
Social a sua pretensão, destinando-se tal benefício a evitar o pagamento de custas de acção de despejo
a intentar, com o valor de € 356,00, a jurisdição competente para apreciar o recurso que interpôs de tal
decisão é, “in casu”, a dos Juízos Cíveis da comarca do Porto e não a dos Tribunais de Pequena Instância
Cível.
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto
O Ministério Público junto deste Tribunal veio requerer a resolução do conflito negativo de
competência suscitado entre os Senhores Juízes do …º Juízo de Pequena Instância Cível do
Porto e do …º Juízo, …ª Secção dos Juízos Cíveis do Porto, os quais se atribuem mutuamente
a competência, negando a própria, para os termos da impugnação judicial de decisão
administrativa relativa a pedido de concessão de apoio judiciário, em que é Requerente
B………….., tendo esta em vista a instauração de acção de despejo.
Dando seguimento ao pedido de resolução de tal conflito, foram ouvidos, ao abrigo do
disposto no art. 118º do CPC, os Senhores Magistrados em referência, apenas o Sr. Juiz
daquele …º Juízo Cível se vindo a pronunciar, em defesa da incompetência desse Juízo para
conhecer da mencionada impugnação.
O M.º P.º, através da Exma. Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, emitiu parecer no sentido da
competência dever ser atribuída ao aludido Juízo Cível.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Apontemos as questões objecto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é
balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de
matérias que naquelas se não encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu
conhecimento oficioso (art. 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos
não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo
do acto recorrido.
Importará, para o efeito, reter os seguintes elementos que resultam dos autos:
- A identificada requerente, em Julho de 2005, formulou junto do Instituto de Solidariedade e
Segurança Social do Porto o pedido de concessão de apoio judiciário, com a finalidade de
propor acção judicial de despejo, indicando para a mesma o valor de € 356.
- Tal pretensão mereceu daquela entidade decisão de concessão de pagamento faseado de
taxa de justiça e dos demais encargos com o processo.
- Esta decisão foi alvo de impugnação judicial por parte da requerente, sendo o respectivo
processo administrativo remetido aos Juízos Cíveis do Porto, onde inicialmente foi
distribuído, veio a ser proferido despacho pelo Exmo. Senhor Juiz da ..ª Secção do ..º Juízo,
considerando competentes para conhecer dessa impugnação os Juízos de Pequena Instância
Cível, por entender nomeadamente que a decisão a tomar quanto à mesma (impugnação)
não era susceptível de recurso ordinário;
- Transitada tal decisão, foram os autos enviados aos Juízos de Pequena Instância Cível do
Porto, onde, por sua vez, o Exmo. Sr. Juiz do ..º Juízo veio a considerar incompetentes
aqueles Juízos para apreciação da impugnação em causa, sendo competentes para o efeito
os Juízos Cíveis do Porto, em virtude de a estes competir conhecer da acção de despejo
conexa com o pedido de apoio judiciário formulado.
Face ao quadro descrito, a questão que se coloca consiste em saber a quem cabe o
conhecimento da impugnação judicial de decisão administrativa atinente a pedido de
concessão de apoio judiciário, mais precisamente, no caso em análise, se aos Juízos Cíveis
do Porto, se aos Juízos de Pequena Instância Cível do Porto.
Na nossa tarefa decisória, iremos adoptar, por plena concordância, a posição assumida no
Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, desta mesma Secção, de 14 de Setembro de
2006, processo nº 0633145, nº convencional JTRP00039451, in www.dgsi.pt.
Considerando a data da dedução do pedido por parte da interessada, não restam dúvidas de
que ao caso vertente é aplicável o regime de apoio judiciário introduzido pela Lei n.º 34/04,
de 29.7, entrada em vigor a 1.9.04.
Nos termos do nº 1 do art. 28 de tal diploma, a competência “para conhecer e decidir a
impugnação cabe ao tribunal em que está sediado o serviço de segurança social que apreciou
o pedido de protecção jurídica, ou, caso o pedido tenha sido formulado na pendência da
acção, o tribunal em que esta se encontra pendente”, acrescendo que, segundo o nº 2, “nas
comarcas onde existam tribunais judiciais de competência especializada ou de competência
específica, a impugnação deve respeitar as respectivas regras de competência”.
Situando-se a problemática que importa analisar no âmbito da competência em razão da
matéria, o legislador em ordem a fixá-la apela também a elementos de conexão de natureza
processual.
Assim, numa primeira vertente, é atribuída a competência para conhecer da aludida
impugnação judicial ao tribunal de comarca em que está sediado o serviço de segurança
social que apreciou o pedido de protecção jurídica ou, para a hipótese dele ter sido deduzido
na pendência da acção, ao tribunal da causa.
Numa segunda vertente, para a hipótese de os serviços de segurança social que proferiram a
respectiva decisão impugnada estarem sediados em comarca em que existam tribunais de
competência especializada ou órgãos jurisdicionais de competência específica, dever-se-á
obedecer, relativamente à instauração da impugnação, às correspondentes normas de
competência.
Equivale isto a dizer, nesta última vertente, que a competência para apreciação da
impugnação judicial é definida pela competência para conhecer da causa conexa com o
pedido de apoio judiciário.
Assim é que, existindo na área da comarca onde foi proferida a mencionada decisão
administrativa pluralidade de órgãos jurisdicionais de competência específica, a competência
para conhecer da sua impugnação caberá ao órgão jurisdicional que seja competente para o
conhecimento da acção a que se reporta o pedido de protecção jurídica.
Nessa medida, como escreve Salvador da Costa, a competência para conhecer da
impugnação dilui-se, conforme as situações, pelos vários tribunais da ordem judicial – v. g.,
varas cíveis, varas criminais, juízo cíveis, juízos de pequena instância cível, ou seja, pelos
vários tribunais de competência especializada ou específica – in “O Apoio Judiciário”, 5.ª ed.,
pág. 186.
Ora, no caso em presença, a requerente B………….. solicitou apoio judiciário tendo em vista
beneficiar de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos para acção
condenatória de natureza cível, de despejo, que pretende intentar, a que atribuiu o valor de
€ 356.
Por outro lado, compete aos juízos cíveis preparar e julgar os processos de natureza cível
que não sejam da competência das varas cíveis e dos juízos de pequena instância cível (art.
99º da LOFTJ).
Dentro deste quadro e em face dos elementos que instruem os presentes autos, a
competência para conhecer da acção a intentar pela requerente do apoio judiciário caberá
aos juízos cíveis, já não a outro tribunal de competência específica, como seja os juízos de
pequena instância cível.
Definida a competência para a apreciação da causa a instaurar, delimitado estará também
qual o tribunal competente para conhecer e decidir a impugnação da aludida decisão
administrativa, seguindo o critério definidor que referimos e colhe apoio no n.º 2 do art. 28
da LAJ.
Tal constatação não é abalada pela circunstância de a decisão que aprecie a impugnação
judicial não ser passível de recurso para a Relação, uma vez que o elemento definidor da
competência para a apreciação daquela impugnação ter como ponto de referência a causa a
intentar e não a natureza do processo de impugnação judicial de decisão administrativa, não
sendo neste concreto aspecto de chamar à colação o disposto no art. 101 da LOFTJ.
Equivale o exposto a considerar competente para conhecer da mencionada impugnação
judicial os Juízos Cíveis do Porto, afastando no caso em análise essa competência dos Juízos
de Pequena Instância Cível do Porto.
DECISÃO
Pelo exposto, resolvendo o presente conflito, decide-se deferir a competência para conhecer
do recurso de impugnação da decisão administrativa relativa a protecção jurídica à ….ª
secção do ….º Juízo Cível do Porto.
Sem custas.
Porto, 31 de Janeiro de 2007
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira
Manuel José Pires Capelo
Agravo nº 6180/06-5ª Sec.
Data 12/02/2007
5200 (Boletim Interno nº 27)
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL CÍVEL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
VIOLAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
Sumário
A partir da entrada em vigor do ETAF (aprovado pela Lei nº13/2002, de 19/02, alterada pelas Leis nº4A/2003, de 19/02 e 107-D/2003, de 31/12, em vigor desde 01/01/2004, todas as acções por
responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público são da competência dos
tribunais administrativos.
1. Acordam nesta secção cível os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
2. B………., Ldª, intentaram no tribunal judicial de vila do Conde acção declarativa de
condenação, com processo ordinário contra C………., SA e D………., SA, pedindo a condenação
solidárias das rés a pagar-lhe a quantia de € 193,950,00 e juros legais a contar da citação.
2.1 Funda tal pedido pelo facto de ser dona e proprietária do prédio misto denominado
“E……….”, com área de 9.000m2, descrito na Conservatória do Registo predial de Vila do
Conde o qual constitui, conforme o Plano Director Municipal, zona industrial, e ter sido
concedida às RR. a concessão do lanço de auto-estrada entre ………. e ………., sendo a
servidão non aedificandi para instalações de carácter industrial de 70 metros a contra dos
limites da plataforma da auto-estrada.
2.2 Mais alega que a auto-estrada está construída e passa a norte do prédio da autora,
sendo que a linha de servidão non aedificandi encontra-se marcada na planta e abrange uma
área de 2 783 metros quadrados, sendo que a A. destinava tal área a expansão do edifício
fabril; privada da sua aptidão para a construção industrial, tal área não tem qualquer valor.
2.3 Peticiona, pois, a indemnização pela minimização do valor provocada pela servidão non
aedificandi, sendo tal perda de valor, na sua perspectiva, indemnizável.
2.4 A R. C………., SA contestou, defendendo-se põe excepção e por impugnação. Na réplica a
A suscitou o incidente de intervenção principal provocada de EP- Estradas de Portugal, EPE, a
qual foi admitida.
2.5 Citada, apresentou contestação defendendo-se por excepção e por impugnação.
2.6 A A. replicou.
2.7 Por despacho proferido a fls. 178 a 179 verso, foram as partes convidadas sobre a
excepção de competência em razão da matéria deste tribunal para dirimir o pleito.
2.8 As partes respeitaram tal convite, tendo-se pronunciado nos autos a fls. 182 e seguintes.
Assim, a R. ESTRADAS DE PORTUGAL, E.P.E”, pronunciou-se no sentido de ser oficiosamente
conhecida e declarada a excepção dilatória de incompetência material do presente tribunal
(vide fls. 182 e 183 dos autos).
Por seu turno, a A. refutou tal entendimento, referindo que, por se tratar de relação civil,
não resultante de qualquer contrato é de manter a situação aqui em apreço sujeita á
jurisdição civil, como, de longa data, se tem entendido.
2.9 Foi proferido despacho, a fls.203 a 208, que julgou procedente a excepção de
incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria absolveu as RR. da instância.
3. A A. interpôs o presente recurso de agravo de tal despacho.
São as seguintes as conclusões de recurso apresentadas:
1. Tal indemnização é encarada no âmbito do direito de propriedade e dos fenómenos O
regime regra da atribuição da competência material é ao tribunal comum, só se atribuindo ao
tribunal administrativo quando a lei o determina (arts. 211.º n.º 1 da CRP e art.º 66 do
CPC).
2. A constituição de servidão “non aedificando”, por força do acto expropriativo tem que ser
encarado no âmbito do Código das Expropriações (sic. Art.º 8.º e 1.º do CE)
3. A justa indemnização a pagar aos proprietários lesados pela constituição de servidão “non
aedificando”, é efectuada nos termos do Código das Expropriações (art.º 1.º do CE).
4. O Código das Expropriações constitui lei especial, sujeita ao foro comum, não revogada
pelo art.º 8.º da Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro, que aprovou a ETAF, quanto ao foro
competente.
5. A al. g) do n.º 1 do ETAF é uma disposição de “banda larga”, que, sem vontade
expressamente manifestada deve ser interpretada em consonância com o art.º 1 do mesmo
diploma e 212 n.º 3 da CRP, como sendo apenas de aplicar às relações administrativas.
6. A responsabilidade em apreço é objectiva ou legal, não derivada de acto de gestão pública
ou privada da administração ou ente público, mas directamente da lei, pelo que, por falta de
lei que disponha diferentemente, está sujeita ao foro comum.
7. A responsabilidade aqui em apreço não é imposta a qualquer ente público, mas à
expropriante, seja pública ou privada.
8. A responsabilidade atrás mencionado não é imposta ao obrigado com base num princípio
de culpa, nem no exercício de qualquer competência, pública ou privada, mas no âmbito da
violação ou minimização do direito de propriedade, que constitui relação jurídico – privada.
9. Expropriativos, sujeitos ao foro comum.
4. COLHIDOS OS VISTOS CUMPRE APRECIAR E DECIDIR.
Nos termos do disposto nos art. 684, nº3 e 4 e 690, nº1, do CPC o objecto do recurso
delimita-se, em princípio, pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento das
questões de que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art. 660, ex vi do artº
713, nº2, do mesmo diploma legal.
Os factos a ter em consideração são os anteriormente enunciados em 2.1, 2.2 e 2.3.
Nos arts. 211º, nº 1, e 212º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, estabelece-se a
competência dos tribunais judiciais e administrativos.
Tem-se entendido, na doutrina e na jurisprudência, que a competência do tribunal se afere,
por regra, pelos termos em que a acção foi proposta e pelo pedido do autor (v. g. o Ac. STJ,
CJ/STJ, 1997, I, 125). Preferimos, no entanto, na abordagem da competência material do
tribunal, o ajuizado no acórdão desta Relação, de 07/11/2000 (CJ, 2000, V, 184), no sentido
de que a competência material depende do thema decidendum concatenado com a causa de
pedir.
Nos termos do art. 66º, do CPC, são da competência dos tribunais judiciais as causas que
não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, designadamente à jurisdição administrativa
e fiscal que é exercida pelos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo DL nº Leis nº/s 13/2002, de 19/02,
alterada pelas Leis nº/s 4-A/2003, de 19/02 e 107-D/2003, de 31/12, em vigor desde
01/01/2004.
Não cabendo uma causa na competência de outro tribunal será a mesma da competência
(residual) do tribunal comum (artº 18º, nº 1, da Lei nº 3/99, de 13/01 e Acs. STJ, BMJ,
320º/390 e 364º/591). Estatui-se no art. 1º, nº 1, do ETAF, que “Os tribunais da jurisdição
administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a
justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e
fiscais”.
No artº 4º do ETAF, estabelece-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal.
No actual ETAF, contrariamente ao estatuído no anterior (artº 4º, nº 1, al f)) não estão
excluídos da jurisdição administrativa os recursos e acções que tenham por objecto questões
de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público.
A este propósito, refira-se a opinião de Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida
(Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª Ed., págs. 34/35):...“Nas
propostas de lei que o Governo apresentou à Assembleia da República, foi assumido o
propósito de pôr termo a essas dificuldades” (suscitadas pela delimitação do âmbito da
jurisdição administrativa em matéria de responsabilidade civil e de contratos), “consagrando
um critério claro e objectivo de delimitação nestes dois domínios. A exemplo do que, como
vimos, acabou por suceder em matéria ambiental, o critério em que as propostas se
basearam foi o critério objectivo da natureza da entidade demandada: sempre que o litígio
envolvesse uma entidade pública, por lhe ser imputável o facto gerador do dano ou por ela
ser uma das partes no contrato, esse litígio deveria ser submetido à apreciação dos tribunais
administrativos. Propunha-se, assim, que a jurisdição administrativa passasse a ser
competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que
envolvessem pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber
se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito
privado... (...) Em defesa desta solução, sustentava-se na Exposição de Motivos do ETAF
que, se a Constituição faz assentar a definição do âmbito da jurisdição administrativa num
critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, a
verdade é que ela “não erige esse critério num dogma”, porquanto “não estabelece uma
reserva material absoluta”. Por conseguinte, “a existência de um modelo típico e de um
núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa
liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos
quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre
o direito público e o direito privado” (...) O art. 4º do ETAF só veio a consagrar, no essencial,
estas propostas no domínio da responsabilidade civil extracontratual. Já não no que toca aos
litígios emergentes de relações contratuais”...
Refere Freitas do Amaral (Direito Administrativo, vol. III, p. 439) que a relação jurídico
administrativa é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse
público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres
públicos aos particulares perante a Administração.
Como define J.C. Vieira de Andrade (“A Justiça Administrativa” – Lições, 3ª Ed., 2000, págs.
79), as relações jurídicas administrativas são “aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos,
é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público,
actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
Actos de gestão pública são os praticados pela Administração no exercício duma actividade
regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para o prosseguimento do interesse
público, discipline o seu exercício e organize os meios necessários para o efeito. Para o Prof.
A. Varela (RLJ, 124º/59) "actividades de gestão pública são todas aquelas em que se reflecte
o poder de soberania próprio da pessoa colectiva pública e em cujo regime jurídico
transparece, consequentemente, o nexo de subordinação existente entre os sujeitos da
relação, característico do direito público". Acrescenta ainda que "simplesmente, nem todos
os actos que integram gestão pública representam o exercício imediato do jus imperii ou
reflectem directamente o poder de soberania do próprio Estado e das demais pessoas
colectivas. Essencial para que seja considerada de gestão pública é que a actividade do
Estado (ou de qualquer outra entidade pública) se destine a realizar um fim típico ou
específico dele, com meios ou instrumentos também próprios do agente".
Em princípio, só interessa à justiça administrativa as relações administrativas públicas, as
reguladas por normas de direito administrativo, aquelas em que um dos sujeitos, pelo
menos, actue na veste de autoridade pública, munido de um poder de imperium, com vista à
realização do interesse público legalmente definido (Ac. RP, de 07/11/2000).
Por outro lado, será de gestão privada a actividade em que a pessoa colectiva, despida do
poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os
actos respeitam e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia
proceder o particular com submissão às normas de direito privado (BMJ 311º/195).
Importaria saber se, em face do teor da petição, a relação jurídica estabelecida entre as
partes, designadamente pelas Rés, se reconduz à actividade de um serviço público
administrativo.
Perfilhamos o sustentado na decisão agravada.
“No caso dos autos, atenta a causa de pedir alegada na petição inicial, está em apreciação
uma questão de responsabilidade civil extracontratual das aqui rés – pessoas colectivas de
direito público -, na veste da invocada violação danosa do direito real de propriedade da aqui
A., com base na servidão non aedificandi resultante da concessão às rés da auto-estrada em
apreço, levando á privação de parte da área do prédio misto da A. da sua aptidão para a
construção industrial e alegado dano daí decorrente.
Ou seja, com base em tal servidão por força da concessão que foi atribuída às aqui rés, a A.
pretende ser ressarcida pelo dano daí decorrente concretizado na perda do valor do seu
prédio misto.”
Trata-se, assim, de um acto de gestão pública.
A questão (gestão pública/gestão privada) seria relevante caso a acção tivesse sido
instaurada antes de 01/01/2004, data da entrada em vigor do novo ETAF. Com efeito, no
termos do estatuído na al. g), do citado art. 4º, nº 1, do ETAF em vigor, compete aos
tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham
nomeadamente por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a
responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a
resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.
A partir da entrada em vigor da citada lei, todas as acções por responsabilidade civil
extracontratual das pessoas colectivas de direito público são da competência dos tribunais
administrativos.
Efectivamente, das “Linhas Gerais da Reforma do Contencioso Administrativo” (cfr. Reforma
do Contencioso Administrativo, Colectânea de Legislação, Ministério da Justiça, pág. 13),
deduz-se explicitamente que tenha sido esse um dos objectivos da reforma, pois aí se deixa
expressa a seguinte afirmação: «... o ETAF também atribui competência aos tribunais da
jurisdição administrativa para apreciarem todos os pedidos indemnizatórios fundados em
responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas públicas, eliminando o actual
critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido,
causador de grandes incertezas na determinação do tribunal competente...»
É essa a doutrina defendida por Diogo Freitas do Amaral e
pág. 36):”Compete, assim, à jurisdição administrativa
responsabilidade civil extracontratual da Administração
questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma
uma actuação de gestão privada: a distinção deixa de
determinar a jurisdição competente, que passa a ser,
administrativa”.
Mário Aroso de Almeida (ob. cit.,
apreciar todas as questões de
Pública, independentemente da
actuação de gestão pública ou de
ser relevante, para o efeito de
em qualquer caso, a jurisdição
Ora, no caso, atento o alegado na petição, está em causa uma questão de responsabilidade
civil extracontratual das demandadas em consequência da obra pública realizada pelas Rés,
no âmbito da sua competência legal (administrativa) pelo que, pelos fundamentos já
expostos a competência material é do Tribunal Administrativo e não dos Tribunais Comuns.
5.DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em negar provimento ao agravo,
confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela agravante.
Porto, 12 de Fevereiro de 2007
Maria do Rosário Marinho Ferreira Barbosa
Abílio Sá Gonçalves Costa
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho
Agravo nº 387/07-3ª Sec.
Data – 22/02/2007
5209 (Boletim Interno nº 27)
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
ACÇÃO RESPEITANTE A IMÓVEL
OBJECTO IMEDIATO DA ACÇÃO
ACÇÃO DE APRECIAÇÃO POSITIVA
Sumário
Se visando a acção o reconhecimento de que um certo imóvel, sito na comarca de Loulé, fazia parte da
comunhão conjugal do seu dissolvido casal, a Autora intenta a acção na comarca do seu domicílio –
Bragança – nem por isso a competência territorial radica naquela comarca (Loulé), por não estar em
causa directamente o direito real sobre o imóvel, sendo, antes, objectivo primeiro do pleito a declaração
da existência de um direito (acção de apreciação positiva).
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO.
1. Decretada, por sentença transitada em julgado, a separação judicial de pessoas e bens
entre eles, B………. instaurou, no Tribunal da Comarca de Bragança, contra C………., inventário
para partilha dos bens comuns do casal.
2. Nomeado cabeça-de-casal, o requerente apresentou relação de bens, relativamente à qual
a interessada C………. deduziu incidiu incidente de reclamação em que, além do mais, pedia
que nela fosse incluído o imóvel sito em ………., descrito na Conservatória do Registo Predial
de Loulé sob o nº 40429, a fls. 94 do Livro B-104.
3. Após resposta do requerente e produção da prova oferecida, foi, por decisão transitada
em julgado, decidido remeter os interessados para os meios comuns quanto à propriedade
do imóvel em causa.
4. Instaurou então a interessada C………., no referido Tribunal, contra B………., a presente
acção declarativa, com forma de processo ordinário e, alegando que o imóvel em causa
constitui bem comum do casal porque adquirido na constância do casamento, formula, entre
outros sem pertinência para a decisão do presente agravo, os seguintes pedidos:
A) Deve ser declarado que faz parte dos bens comuns do casal de Autora e Réu o imóvel
urbano, descrito em III. da petição inicial, a fracção autónoma designada pela letra «Z-3»,
correspondente ao .º andar direito, e local para estacionamento, do prédio urbano sito na
Rua ………., inscrito na matriz predial respectiva sob o artº 3.472 e descrito na CRP sob o nº
4.429, a fls. 94 do Livro B-104;
B) Deve declarar-se que não é da responsabilidade do cônjuge Autora o empréstimo na
D………., mencionado nos artigos VII-IX da petição inicial, empréstimo bancário, no valor de
Esc. 10.500.000$00, requerido e concedido ao Réu, na qualidade de funcionário da aludida
instituição bancária mutuante, através de proposta nº …….., datada de 01/02/92, proposta
que foi exclusivamente assinada pelo Réu, conforme melhor consta do doc. nº 1 e doc. nº 2.
5. Contestou o R. por impugnação e por excepção, e, no que à defesa por excepção respeita,
invocando o disposto no artº 73º, nº 1, do Código de Processo Civil, com o fundamento de
que a acção versa sobre o direito de propriedade sobre fracção autónoma (imóvel),
excepciona a incompetência, em razão do território, do Tribunal da Comarca de Bragança,
pugnando pela do Tribunal da Comarca de Loulé.
6. Respondeu a A. no sentido da improcedência da excepção.
7. Foi então proferido despacho a declarar competente para os termos da acção o Tribunal
da Comarca de Loulé, escrevendo-se, na respectiva fundamentação, o seguinte:
“Pela presente acção pretende-se, em primeiro lugar, o reconhecimento/declaração do
direito de propriedade da Autora e do Réu sobre determinado imóvel, sito em………., na
comarca de Loulé.
Atento o disposto no artº 73º, nº 1, do Cód. Proc. Civ., a presente acção deveria ter sido
instaurada no tribunal da situação do referido bem – a comarca de Loulé
É certo que a Autora formulou outros pedidos (als. B) e C), cuja apreciação seria da
competência deste Tribunal.
Todavia, aplicando-se no presente caso a regra especial do artº 87º, nº 2, do Código de
Processo Civil, a presente acção sempre deveria ser instaurada no tribunal da situação do
imóvel e na comarca de Loulé, atento o disposto no artº 110º, nº 1, al. a), do Código de
Processo Civil.
Para apreciar todos os pedidos independentes e autónomos formulados pela Autora é
competente o citado Tribunal da Comarca de Loulé.
Resta dizer que a presente acção não é dependente dos autos de inventário identificados
pelas partes, pelo que também não deve correr por apenso àquele processo.
Aliás, diga-se, a Autora não pediu tal apensação na petição inicial nem na réplica, limitandose nesta última peça processual a dizer que competente para a acção era o Tribunal onde
corre o inventário (o .º Juízo deste Tribunal) – o que, como acima ficou escrito, não tem
fundamento legal”.
8. Inconformada, dele agravou a A., que, terminando pela sua revogação e pela declaração
de competência do Tribunal da Comarca de Bragança, nas respectivas alegações, formulou
as seguintes conclusões:
1ª: No artigo I da petição inicial a demandante alega resultar esta acção do douto Acórdão
deste Tribunal da Relação, que remete os interessados (Autora e Réu) para os meios
comuns, quanto à propriedade do apartamento na ………., bem como da responsabilidade
pelo empréstimo bancário de 10.500.000$00, ut. doc. 1, junto com o articulado petitório.
2ª: No caso sub judice, a Autora Agravante, escolheu o Tribunal Judicial de Bragança para a
propositura da acção, pois cumula dois pedidos na petição inicial a saber:
A) Deve ser declarado que faz parte dos bens comuns do casal de Autora e Réu o imóvel
urbano, descrito em III. da petição inicial, a fracção autónoma designada pela letra «Z-3»,
correspondente ao .º andar direito, e local para estacionamento, do prédio urbano sito na
Rua ……….. da ……….., inscrito na matriz predial respectiva sob o artº 3.472 e descrito na CRP
sob o nº 4.429, a fls. 94 do Livro B-1054;
B) Deve declarar-se que não é da responsabilidade do cônjuge Autora o empréstimo na
D………., mencionado nos artigos VII-IX da petição inicial, empréstimo bancário, no valor de
Esc. 10.500.000$00, requerido e concedido ao Réu, na qualidade de funcionário da aludida
instituição bancária mutuante, através de proposta nº …….., datada de 01/02/92, proposta
que foi exclusivamente assinada pelo Réu, conforme melhor consta do doc. nº 1 e doc. nº 2.
3ª: É evidente que os critérios de justiça e razoabilidade, a comodidade das partes que até
vivem na cidade de Bragança, os menores gastos de dinheiro e de tempo para Autora e Réu,
bem assim a maior garantia de acerto com menor dispêndio de actividade, justificam a
aconselham que seja competente para decidir a presente acção o Tribunal Judicial de
Bragança.
4ª: In casu sub judice, a Autora, Agravante, escolheu o Tribunal Judicial de Bragança para a
propositura da Acção, pois cumula dois pedidos na petição inicial, e é este Tribunal que tem
melhores condições para decidir esta Acção, face à sua causa de pedir e aos pedidos
formulados, nos seus precisos termos.
9. Não tendo sido oferecidas contra alegações e tendo sido proferido despacho de
sustentação tabelar, colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO.
1. A situação de facto a ter em consideração é a que supra se deixou relatada.
2. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do
recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser
que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do CPCivil), que
neles se apreciam questões e não razões e que não visam criar decisões sobre matéria nova,
sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, a única questão suscitada no
presente agravo é a de saber qual o tribunal competente, em razão do território, para
apreciar e julgar a acção.
A agravante propôs a acção no tribunal da comarca de Bragança, onde as partes se
encontram domiciliadas, pretendendo, além do mais, se declare que o imóvel sito na área da
comarca de Loulé faz parte do património comum do casal separado.
O R. defende que deverá a mesma ser proposta na comarca de Loulé, por aí se situar o
imóvel.
Na resposta defende a agravante que competente é o tribunal da comarca de Bragança.
O tribunal recorrido pronunciou-se no sentido da competência pertencer, por força do artº
73º, nº 1, do Código de Processo Civil, ao Tribunal da Comarca de Loulé, onde se situa o
bem,
porquanto
através
da
acção
se
pretendia,
em
primeiro
lugar,
o
reconhecimento/declaração do direito de propriedade da agravante sobre um imóvel sito na
área daquela comarca.
A competência em razão do território é determinada em função do modo como a causa foi
delineada na petição inicial e não pela controvérsia que resulta da confrontação entre acção
e defesa – cfr. Ac. deste Tribunal de 17/06/97, sumariado no BMJ nº 468, pág. 473.
E é sabido que, entre nós, vigora o princípio da substanciação, segundo a qual o objecto da
acção se afere pelo pedido e pela causa de pedir, impondo-se ao A., para fundamentar a sua
pretensão jurídica, que indique o facto concreto em que baseia a pretensão que formula e
pretende ver acautelada.
Concretamente, nas acções reais, a causa de pedir consiste no facto jurídico de que deriva o
direito real – artº 498º, nº 4., do Código de Processo Civil (diploma a que pertencerão os
demais preceitos legais a citar, sem outra indicação de origem).
Por seu turno, nas acções pessoais, a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito
do A. – A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, pág. 123, e Manuel de Andrade,
Noções, pág. 123.
A competência territorial, mostra-se regulada nos artºs 73º a 89.
De acordo com o Prof. Alberto dos Reis, Comentário, 1º, pág. 167, no que à competência em
apreço respeita, a questão é a de saber “qual o elemento da lide que é tomado por
referência para se determinar a sua sede e, portanto, qual o tribunal territorialmente
competente”.
Esse elemento pode ser de natureza subjectiva (presença das partes) ou objectiva (bens
sobre que recai, o acto ou facto jurídico de que emerge, a obrigação cujo cumprimento se
exige), dando lugar a várias modalidades que concorrem no mesmo sistema jurídico.
Assim, temos, na lição de Carnelutti (ibidem, pág. 169) o foro pessoal, determinado pelo
domicílio ou residência das partes; o foro real, determinado pela situação dos bens; o foro
causal, determinado pela localização do facto jurídico, do facto que serve de fundamento à
acção ou do facto em que devia traduzir-se o cumprimento e o foro instrumental, o lugar em
que existem os instrumentos do processo (as provas na acção declarativa, os bens na acção
executiva).
Como refere o citado Profs., a legislação dos países mais representativos, admite o foro real
para as acções respeitantes a imóveis.
É o que sucede entre nós com o artº 73º, nº 1, que dispõe que “Devem ser propostas no
tribunal da situação dos bens as acções referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre
imóveis, as acções de divisão de coisa comum, de despejo, de preferência e de execução
específica sobre imóveis, e ainda as de reforço, substituição, redução ou expurgação de
hipotecas”.
Entendemos, todavia, face à história do preceito, por acções relativas a direitos reais ou
pessoais sobre imóveis, as que têm por objecto o próprio direito real, imediatamente, pois se
inicialmente teve em vista a acção de reivindicação – com as Ordenações -, o foro real foi-se
alargando a outros casos concretos (ibidem, pág. 172).
Os direitos reais sobre imóveis só podem ser aqueles direitos que, como tal, o direito
substantivo consagra e trata no Direito das Coisas – Livro III do Código Civil: o direito de
propriedade, o usufruto, o uso e habitação, o direito de superfície, as servidões prediais.
Entre os direitos pessoais de gozo sobre imóveis contam-se a locação, o comodato, a
tradição da coisa objecto do contrato prometido, o direito real de habitação periódica, etc..
Os direitos reais têm várias fontes e a propriedade pode ser originária ou derivada. No caso
da aquisição derivada a sua fonte é um negócio jurídico, um contrato, uma doação ou a lei
(como sucede na sucessão legítima), e a sua causa a anterior propriedade de outrem.
Ora, a acção só é real quando o seu objecto é imediatamente o próprio direito real e não a
sua fonte. A acção de reivindicação é uma acção real porque visa reconhecer o próprio
direito real sobre um imóvel, imediatamente, e a sua restituição pelo possuidor.
Outros casos há em que o objecto da acção é o próprio facto jurídico que é fonte de
transferência do direito real, pelo que, só mediatamente se visa o direito real sobre o imóvel.
A agravante, com fundamento em que o imóvel foi adquirido da constância do matrimónio,
formula na petição a seguinte pretensão:
Deve ser declarado que faz parte dos bens comuns do casal de Autora e Réu o imóvel
urbano, descrito em III. da petição inicial, a fracção autónoma designada pela letra «Z-3»,
correspondente ao .º andar direito, e local para estacionamento, do prédio urbano sito na
Rua ………. da ………., inscrito na matriz predial respectiva sob o artº 3.472 e descrito na CRP
sob o nº 4.429, a fls. 94 do Livro B-1054.
Trata-se, portanto, de uma acção de simples apreciação positiva, definida no artº 4º, nº 2,
al. a), uma vez que tem por fim obter unicamente a declaração de existência de um direito
ou de um facto.
Visa, com ela, pôr fim à incerteza resultante da não aceitação por parte do agravado de que
o imóvel faz parte do património comum do casal, pondo em crise o seu pretenso direito de
comunhão sobre o imóvel.
Portanto, o objecto da acção é o próprio facto jurídico que é fonte de transferência do direito
real, pelo que, só mediatamente visa o direito real sobre o imóvel, como consequência da
declaração de que ele faz parte do património comum a partilhar.
Assim sendo, não estando em causa, imediatamente, o direito real sobre o imóvel, não tem
aplicação o disposto no artº 73º, nº 1, que se reporta ao “foro da situação dos bens”,
havendo antes que recorrer ao foro pessoal, no caso à regra geral constante do artº 85º, nº
1, que estipula que “Em todos os casos não previstos nos artigos anteriores ou em
disposições especiais é competente para a acção o tribunal do domicílio do réu”, ou seja o
Tribunal da Comarca de Bragança.
Merece, pois, provimento o agravo, nada obstando a que o .º Juízo Cível do Tribunal da
Comarca de Bragança proceda à tramitação da acção, embora desapensada aos autos de
inventário, para o que deve ser efectuada a carga na espécie respectiva, não se justificando,
como parece depreender-se da fundamentação do despacho agravado, nova distribuição ou
remessa a outro Juízo do Tribunal recorrido.
III. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do
Porto em conceder provimento ao agravo e declarar competente para os termos da acção o
Tribunal da Comarca de Bragança.
*
Custas pelo agravado.
*
Porto, 22 de Fevereiro de 2007
António do Amaral Ferreira
Manuel José Pires Capelo
Ana Paula Fonseca Lobo