i. A água aprisionada

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i. A água aprisionada
i. A água aprisionada
A nossa água está sendo roubada?
Estima-se que 1,5 bilhão de seres humanos já não disponham de água suficiente para
suas necessidades essenciais. Significa que de cada cinco habitantes da Terra, um não
tem água nem para beber. Esse contingente, que equivale à população do maior país
do mundo, a China, vai precisar resolver esse problema vital de alguma maneira. Pela
via pacífica ou através da força. A próxima guerra será pela água, anuncia um número
crescente de profetas, baseados mais na correlação lógica de fatores do que numa análise minuciosa e específica das situações.
Este é o mesmo método que utilizam para apontar o sítio dessa próxima guerra:
a Amazônia. Nada mais lógico: a bacia amazônica, que se espraia por nove países da
América do Sul, mas tem dois terços das suas águas drenadas no território do Brasil,
representa 68% da massa de água doce superficial do nosso país e de 8% a 25% (conforme as diferentes avaliações) do total do planeta.
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A Amazônia em Questão
Com uma área de sete milhões de quilômetros quadrados, é dez vezes maior do que
toda a América Central. Sua principal riqueza ou está escondida no subsolo, em depósitos de minérios, ou na sua floresta tropical, um terço do que ainda subsiste sobre a
superfície terrestre. E a mais rica em biodiversidade. Um tesouro difícil de ser protegido,
sujeito a todas as formas de roubo.
A mais nova seria a do bem mais massivo e de fácil apropriação. Seguidas denúncias, apregoadas pelas vozes mais distintas, têm assegurado que já seria “assustador” o
tráfico de água doce da Amazônia para o exterior. O alerta mais recente foi feito no
final de 2009 pela revista jurídica Consulex, editada em São Paulo. Ela garantia que
algumas empresas já praticam com desenvoltura essa forma de roubo, subordinada a
várias denominações, como hidropirataria e bioinvasão.
A atividade ilegal estaria sendo praticada por navios com capacidade de armazenar
250 milhões de litros (ou 250 mil metros cúbicos) de água, que uma empresa da
Noruega forneceria para clientes na Grécia, Oriente Médio, Ilha da Madeira e Caribe. Por sair pela metade do custo da dessalinização, o roubo de água teria se tornado
atraente no comércio com países carentes de água doce superficial.
A matéria da revista era rica em detalhes e conjecturas, mas não o bastante para
convencer sobre o que relata, ecoando denúncias já numerosas. Claro que o acervo
de água da Amazônia é questão transcendental. Exige atenção, seriedade, prioridade e
investimentos. Todos esses elementos são de enorme deficiência atualmente. O Brasil
tem aproximadamente 120 comitês de bacia, que administram os cursos d’água. Só
um deles fica na Amazônia e tem ação urbana, na cidade de Manaus. É um despropósito paradoxal com o significado mundial da bacia amazônica.
Os escassos investimentos em manejo de água na região não permitem um conhecimento adequado sobre os seus recursos hídricos. O interesse mundial cresce
numa velocidade muito superior à da atenção nacional. Mesmo as denúncias mais
detalhadas, como a da Consulex e outras que se lhe seguiram, especialmente pela rede
mundial de computadores, ainda se revelam meramente especulativas, quando não
totalmente fantasiosas. Devem servir de alerta para o problema, se – e quando – ele
surgir.
Até agora, não há nenhum caso comprovado de roubo de água amazônica em
território nacional, incluindo o mar de 200 milhas. Os grandes navios (1.200 por
ano) entram na região em busca de outros recursos naturais, principalmente mi| 16
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nérios e madeira, atracando em cinco portos de grande movimentação. Não têm
espaço característico – nem tonelagem necessária – para acumular água – e em escala
comercial.
A única área que poderia proporcionar essa pirataria é a foz do Amazonas, onde
está a maior ilha fluvial do mundo, a de Marajó, com 50 mil quilômetros quadrados. Nela, o grande rio chega a despejar mais de 200 milhões de litros de água por
segundo, no auge da cheia. Não há qualquer caso concreto de um superpetroleiro que
tenha estacionado nesse local para se abastecer de um volume como os 250 milhões
de litros citados.
Pode parecer muito, mas esse volume de água equivale a menos de meio segundo
de descarga na vazão máxima natural que o rio Tocantins já alcançou no local onde
foi construída a barragem da hidrelétrica de Tucuruí, a quarta maior do mundo, em
1980.
Não parece um grande negócio, capaz de justificar o investimento e o risco, ainda
que o patrulhamento da costa amazônica seja deficiente, o que induziu no projeto
de criação da nova esquadra da Marinha, prevista para ter sua sede em São Luís do
Maranhão e não em Belém, como pareceria mais lógico.
A Capitania dos Portos do Pará assegura que fiscaliza todos os navios que entram e
saem da região e que, por amostragem, acompanha a qualidade da água que carregam
em seus porões como lastro. As normas internacionais autorizam essa operação, que
constitui prática comum e nada tem a ver com objetivo comercial ou mesmo roubo
com objetivo científico.
A água que o Amazonas despeja no Oceano Atlântico é rica em material particulado
em suspensão. Mas qualquer pequena coleta pode ser suficiente para um estudo
completo sobre o que contém – e isso é feito por meios legais, normais e saudáveis
(embora não na escala recomendável).
Quanto ao uso para outros fins, pelo menos para a costa dos Estados Unidos, o
Amazonas já dá sua contribuição em larga escala – e gratuita. Avançando até 100 quilômetros no oceano, suas águas derivam para o norte pela força da corrente marítima,
indo parar no litoral da Flórida.
Se não é para nos roubar água potável (com volumosa quantidade de sólidos em
suspensão), então essa pirataria seria para recolher água rica em nutrientes para algum
objetivo ainda não identificado (e, talvez, jamais identificável, por irreal).
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A Amazônia em Questão
O campo ainda está aberto à imaginação e à especulação. Para delimitá-lo, a melhor atitude para o bem do país é, sem deixar de se manter atento, investir no conhecimento dos nacionais sobre sua própria riqueza.
O Brasil deve acompanhar com atenção e sempre com atualização o que pensam
(e o que fazem) os estrangeiros sobre a – e na – Amazônia. Dispondo de mais recursos
e com objetivos mais bem definidos, eles podem servir de espelho para refletir melhor
o que os brasileiros e, em particular, os amazônidas, nem sempre conseguem ver, por
falta de meios humanos, técnicos e científicos equivalentes.
O mais importante, porém, é saber e acompanhar o que os próprios nacionais
pensam ou fazem, em numerosos casos dilapidando os recursos naturais ou os utilizando de forma irracional. Campeão em estoque de água doce do mundo, o Brasil é
medíocre no seu manejo.
Em Belém, que, por sua localização, serve de porta de entrada da Amazônia, um
dos problemas que sua população – de quase 1,5 milhão de habitantes – enfrenta é a
falta de água boa para beber, apesar da vasta massa que forma o estuário onde ela se
situa. Este é o triste paradoxo atual, cuja visualização e compreensão as sempre vivas
teorias conspirativas dificultam.
A visagem e a verdade sobre a água
A advogada Ilma Barcelos, da OAB do Espírito Santo, recolocou em circulação
uma das denúncias que constantemente vai e volta, sem perder ímpeto nem ganhar
credibilidade, como analisei acima: de que navios estrangeiros estariam roubando
água na Amazônia. Segundo ela, cada navio carregaria em seus porões 250 milhões
de litros por viagem. Essa água seria comercializada na Europa e no Oriente Médio.
Já tentei mostrar que essa pirataria ainda é fantasia. Principalmente porque não é
econômica. Várias autoridades seguiram raciocínios idênticos ao serem questionadas
sobre a denúncia. Um porta-voz da Marinha garantiu que a água captada pelos navios é autorizada por convenção internacional e praticada em todos os países. Serve
de lastro para que as embarcações tenham segurança em sua navegação. Assegurou
que jamais o governo recebeu denúncia concreta sobre práticas ilícitas desse carregamento.
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Já a Agência Nacional de Águas (ANA) recorreu aos argumentos econômicos para
desmentir a prática de hidropirataria. Seu representante alegou não ser viável como
negócio: o custo do frete da água levada da Amazônia para a Europa ou o Oriente
Médio e do seu tratamento seria de três a cinco vezes superior ao custo da dessalinização da água usada em Israel ou na Arábia Saudita, onde o processo é utilizado. Ainda
que o Brasil legalizasse e autorizasse os navios a levarem a água de graça, o custo do
transporte e beneficiamento tornaria inviável a operação.
Há ainda um detalhe técnico relevante: 250 milhões de litros representam uma
quantidade pequena de água bruta (ainda não potável) para venda, mas constituem
volume expressivo para um navio. É tonelagem muito superior à dos cargueiros que
operam nos oceanos.
A advogada Ilma Barcelos desdenhou das explicações. Para ela, a hidropirataria só
não se comprova porque a fiscalização dos órgãos públicos é falha. Está disposta a
contribuir para comprovar o que disse: vai formalizar uma denúncia à Marinha. Disse
para a imprensa que já tinha “certeza absoluta que essas questões seriam negadas porque ninguém vai assumir que é incompetente em algum órgão”.
Como a denúncia repercutiu, circulando por redes na internet (não pela primeira vez e certamente não pela última), o deputado Lupércio Ramos (do PMDB do
Amazonas), pediu a realização de audiência pública na Câmara Federal para tratar da
questão. Também cobrou dos órgãos de defesa e de segurança a ampliação do sistema
de fiscalização na Amazônia. “O país precisa começar a discutir o direito de uso da água. Nós devemos estar
em alerta em relação à Amazônia, porque temos lá um patrimônio extraordinário”,
justificou o parlamentar.
Para bem administrar esse patrimônio, porém, é preciso inventariá-lo, classificá-lo
e usá-lo de forma correta, o que pressupõe conhecimento de causa. Aí é que mora o
problema. A Amazônia é um tema tão universal quanto o futebol. Todos acham que
entendem dela e dão seus palpites como se fossem a expressão absoluta da verdade. O
contencioso amazônico é uma reunião de barbaridades.
É evidente, ao mais elementar iniciado em questões amazônicas, que não há
a pirataria apontada pela advogada capixaba. Simplesmente porque ainda não dá
lucro praticá-la. E porque, para colocá-la em curso, são requeridos providências e
procedimentos que ninguém ainda identificou.
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A Amazônia em Questão
Há irregularidades na navegação amazônica e ela é pessimamente fiscalizada. Mas
a hidropirataria é um “hidromito”, ao menos por ora, como observou com sarcasmo
o representante da ANA.
O brasileiro tem como seu patrimônio a maior bacia hidrográfica do planeta e o
dilapida todos os dias na Amazônia. É um bem que atrai o interesse mundial, mas para
outros fins, não como fonte de água potável – ou ainda não. Há um negócio muito mais
atrativo, um dos mais rentáveis nos últimos anos em qualquer parte: a água engarrafada.
Ela é apresentada como se fosse água mineral, mas na maioria dos casos ou vem da
rede pública ou de drenagens superficiais (não de uma fonte de água pura). Esta é uma
autêntica pirataria, que rende bilhões de dólares de super lucros indevidos. E é praticada
à vista de todos sem provocar o impacto das denúncias da advogada capixaba.
Histórias chocantes e sensacionalistas, mesmo quando usadas como inspiração
para defender a Amazônia, têm um efeito nocivo, principalmente por desviar a atenção do real para fantasias.
Em 1976 um cientista denunciou que a Volkswagen havia posto fogo em um
milhão de hectares na fazenda que possuía no sul do Pará. O incêndio havia sido detectado pelo satélite americano Skylab, o maior já registrado pelo homem.
A queimada era, na verdade, de dez mil hectares, 100 vezes menor. Todos se desinteressaram pelo caso. Ainda assim, era o maior incêndio provocado em uma única
temporada de fogo na Amazônia. A boa intenção do denunciante teve efeito reverso ao
pretendido. O exagero foi o boi de piranha para a Volks desviar sua manada para longe
da atenção da opinião pública.
Pouco depois surgiu a história de que submarinos emergiam à noite na sede do Projeto Jari, do milionário Daniel Ludwig, perto da foz do Amazonas com o oceano Atlântico,
para carregar ouro e minerais estratégicos. Muita gente acreditou e até um senador exigiu
todo um aparato de segurança nacional do governo militar para ir a Monte Dourado
verificar essas e outras denúncias.
Se esses submarinos conseguissem navegar pelas águas barrentas do Amazonas,
evitando as toras de madeira que ele arrasta na época de cheias, até que seria um troféu
justo ficarem com o ouro e os demais minérios. Um submarino cabe melhor numa
fábula, porque fica escondido debaixo d’água. O problema é o outro lado do enredo.
Um navio de carga faria um serviço muito melhor e mais econômico. Mas não se
encaixaria na fantasia.
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Também se dizia que, no meio do minério de ferro da Serra de Carajás, as multinacionais estariam levando ouro ou urânio. Ferro se mede por milhões de toneladas
para ser comercial. Ouro, em gramas. Urânio, em quilos. Um processo que permitisse
separar ouro e urânio na extração de ferro seria uma revolução tecnológica.
Aos exploradores dos recursos naturais de Carajás, no Pará, basta o minério de
ferro, o melhor que existe na crosta terrestre. Transportado, à razão de 90 milhões de
toneladas anuais (volume que dobrará até o meio da década), para a Ásia e a Europa
pelo maior trem de carga do mundo, em nove viagens diárias, é um autêntico negócio
da China (para a China). Sem qualquer vestígio de outro bem.
Há muita pirataria e ilegalidade na Amazônia. Haveria muito menos se houvesse
melhor fiscalização. Mais importante seria se houvesse melhor conhecimento, maior
valorização do homem, mais retenção de suas riquezas em proveito de quem a habita.
Valorizado, o amazônida cuidaria de separar o joio do trigo.
Ao invés de enfrentar fantasmas ao meio-dia ou zanzar atrás de bruxas circulando
com vassouras pelo espaço, ele submeteria cada questão ao teste de consistência e à
prova da verdade. Com a lição aprendida, talvez se colocasse em condições de escrever
uma história melhor para a região. Sem fantasmagorias, mas também sem exploração.
Com água no coração
De uma coisa não tenho dúvida: sou um homem das águas, um ser anfíbio. Nasci no
lugar do Pará em que o rio Tapajós, o mais bonito do mundo, encerra sua jornada de mil
quilômetros, incluindo um dos seus formadores, o Teles Pires, onde o governo federal
quer construir cinco hidrelétricas de grande porte. Na foz, que tem quilômetros de largura entre labirintos de ilhas, o Tapajós lança suas águas verdes contra o barrento Amazonas, em frente a Santarém, que era a segunda e hoje é a terceira maior cidade do estado.
Em 1949, quando vim ao mundo, Santarém não tinha 15 mil habitantes (hoje está
com quase 180 mil, mais 90 mil na zona rural do município). Com meses, eu era levado
para tomar banho no rio. Aprendi a nadar antes de ter consciência de mim. Sofri os pavores de um método que só muito depois ganharia ares de cientificidade: era largado na
água e só resgatado quando começava a me afogar. Logo passei a flutuar. Daí a deslizar
foi questão de braçadas.
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A Amazônia em Questão
Nossa vida era demarcada pelo ciclo das águas: seis meses subindo, seis meses descendo, com todos os efeitos do avanço ou do recuo da massa aquática sobre terras
que caíam pela erosão ou cresciam pela sedimentação. Em Santarém, tudo era função
do encontro de rios de coloração tão contrastante, com uma peculiaridade: quando
chegávamos à alva e extensa praia na orla da cidade (hoje poluída e deteriorada) e o
Amazonas vencera seu constante cabo-de-guerra com o Tapajós, ninguém se atrevia a
mergulhar.
Acostumados à cristalinidade do Tapajós, que permitia até pesca submarina só
com óculos, vendo-se o fundo lá embaixo e os peixes ao redor, sentíamos nojo da
cor de sujeira do “rio-mar”. Ficávamos na praia jogando futebol ou fazendo qualquer
coisa. Não era dia de banho.
Eu ainda não havia completado quatro anos quando, em 1953, houve a maior
das cheias do século XX. Lembro-me dela por imagens desfocadas na memória engatinhante, pelos testemunhos dos mais velhos e por álbuns de fotografias. A mais
impressionante delas exibia a rua principal do comércio tomada por tábuas de madeira, que substituíam o calçamento, todo submerso, para permitir a passagem dos
moradores.
Outra grande cheia, talvez mesmo a maior de todas, foi em 1976. Já como repórter, aos 26 anos, esta eu fui verificar pessoalmente os acontecimentos. Naveguei
durante 13 dias pelo Amazonas, conferindo os lugares mais atingidos pelas águas.
Mais impressionado ainda fiquei em 1984, ao chegar a Tucuruí, onde foi construída a quarta maior hidrelétrica do mundo. Vi o rio Tocantins, ainda maior que o Tapajós, completamente barrado, pela primeira vez na sua história de milhões de anos,
por uma monumental parede de concreto, com quase 80 metros de altura.
De uma parte alta do terreno próximo, vendo aquele espetáculo, ao mesmo tempo da espantosa engenharia humana e de sua presença inoportuna nos domínios da
natureza, o moleque aquático emergiu dentro de mim sem controle.
Chorei convulsivamente, antes de poder me controlar e tentar cumprir meu ofício
de jornalista, objetivo por dever de ofício. A partir de então, o homem das águas passou a predominar sobre o profissional da escrita. A indignação diante da destruição
cresceu mais do que a constatação da realidade.
Pensei que não teria mais impacto igual em matéria de água. Mas, em 2005, fiquei
ainda mais chocado quando vi rios, paranás e igarapés secos como nunca imaginei que
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um dia eles pudessem ficar. O nosso referencial mental esteve sempre voltado para a
abundância das águas – estrondosas, destruidoras e ao mesmo tempo fecundadoras.
Era da sua subida que a nossa vida dependia. Agora tínhamos que conviver com a
sua ausência. A paisagem deixava de ser amazônica. Sugeria uma África em ameaça,
o prenúncio de savanas, a cena seguinte à da passagem do homem, deus ex-machina.
Se for efeito da presença cada vez mais agressiva do homem ou de algum novo
ciclo da própria natureza, não interessa inquirir neste artigo, o mais pessoal que já
escrevi nesta seção. Escrevo-o depois de alguns dias de uma viagem à terra natal. Um
voo quase panorâmico sobre Santarém me deu a convicção de nunca ter visto uma
seca do Tapajós como a de 2012. Nem a de 2005.
É impressão forte de quem já viu muitas vezes o rio subir e descer. Não só o Tapajós, mas também o Amazonas. O nível que ele atingiu no encontro com o Negro,
defronte de Manaus, é o mais baixo desde que as medições começaram a ser feitas
naquele ponto, em 1902.
Isto é fato, mesmo se sujeito a algum ajuste. Não há muitos a fazer nem eles são
tão amplos, como se esperaria do uso de tantas ferramentas científicas e tecnológicas
disponíveis atualmente, sobretudo os satélites. Mas é inegável: as secas se tornam
mais rigorosas e frequentes. Vão se constituindo em acontecimento de presença tão
marcante como eram as cheias.
O encolhimento das águas do Tapajós deixou à mostra suas longas e belas praias,
como talvez não existam iguais em nenhum outro rio do Brasil (e do mundo?). Mas
também mostrou as marcas da agressão humana, preocupantes mesmo em Alter do
Chão, que foi considerada por um jornal inglês a melhor praia do mundo.
É enorme e preocupante o volume de lixo, que as águas antes escondiam. Alguns
começam a temer pela integridade futura de Alter-do-Chão. Sua fama talvez não seja
suficiente para garantir sua perenidade. O mundo das águas está mudando. Provavelmente não para melhor.
A verdade amazônica
O tema brasileiro de maior interesse no mundo atualmente não é o samba, Pelé,
carnaval, mulata, Rio de Janeiro ou mesmo o carismático presidente Lula: é a Ama23 |
A Amazônia em Questão
zônia. No momento em que o caro leitor lê este livro, um ou vários “eventos” estarão
sendo realizados em algum ou vários países sobre a Amazônia.
Ela tem sete milhões de quilômetros quadrados: é praticamente do tamanho dos
Estados Unidos. Estende-se por nove países da América do Sul. Abriga a maior bacia
hidrográfica e o maior rio do planeta, o Amazonas. Tem um terço das florestas tropicais que ainda cobrem a Terra, as mais ricas em biodiversidade.
Dela saem todo ano dezenas de milhões de toneladas de recursos naturais, na forma de matérias primas e insumos básicos, que abastecem mercados espalhados pelos
continentes.
Sua população ainda é pequena, mas já soma mais de 30 milhões de pessoas. A
maior parte dela está concentrada no Brasil, onde ficam dois terços da Amazônia
continental, que representam também dois terços da área do país.
Por suas dimensões e pelo que nela está contido, a Amazônia interessa a todos e
preocupa a muitos. Num mundo superpovoado e com carência de recursos naturais,
tinha que se infiltrar cada vez mais na agenda mundial. Não é, porém, um tema sobre
o qual as pessoas costumam se interessar com serenidade, perspicácia e conhecimento
de causa. A Amazônia é misteriosa, fascinante, desafiadora. Sobretudo porque, muito
debatida, é tão pouco conhecida.
Raramente quem se interessa por ela se dispõe a observá-la, estudá-la e aprender de
fato. Poucos dos tantos que se interessam chegam a visitá-la. Não só por ser distante,
de acesso mais difícil e caro. Também porque a região costuma provocar no interessado uma atitude passional, extremada, emocional.
Ele chega ao tema com verdades prontas e acabadas, mesmo que oriundas de boatos, fantasias e mitos. Como um papel vazio, a Amazônia tudo aceitaria. Exatamente
por ser uma área nova, enorme, pouco povoada, malmente conhecida. Bastaria ter
em mente meia dúzia de ideias sobre biopirataria, colonialismo, cobiça internacional,
água ou floresta para encaixar qualquer teoria. Sobretudo a conspiratória.
Minha coluna semanal no site do Yahoo motivou exemplos à larga desse generoso – mas mal informado e irrefletido – interesse pela Amazônia. Os leitores levaram
a sério a denúncia da advogada capixaba Ilma Barcelos, que abordei anteriormente
sobre o roubo de água do rio Amazonas por navios estrangeiros.
Mas jogariam no lixo o que escreveram se lessem o artigo que, logo em seguida,
Antonio Felix Domingues, assessor de articulação e comunicação da Agência Nacio| 24
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nal de Águas (ANA) escreveu para o jornal o Estado de S. Paulo. Ele afastou o fantasma da hidropirataria com informações e análises semelhantes às que apresentei na
minha coluna, aprofundando dados específicos.
Levar a sério essa fantasmagoria “acaba desviando a atenção de problemas reais,
como a insuficiência da cobertura da rede de água tratada para as populações amazônicas”, disse o assessor. Por paradoxal que seja, esse índice de atendimento, justamente
onde se localiza a maior de todas as bacias hidrográficas, é o mais baixo do Brasil.
O roubo de água bruta da Amazônia para transportá-la, tratá-la no local de destino, cuja distância se mede por milhares de quilômetros, e fornecê-la aos consumidores representa um custo incapaz de permitir o lucro pelo pirata. Logo, não tem viabilidade econômica. Portanto, não é factível. Ao menos hoje. No futuro, quem sabe?
Mas quem foi atraído pela notícia pode aproveitá-la como impulso para atacar inimigos reais, operativos, ao invés de combater quixotescamente moinhos de vento (ou
de água, no caso). Um problema concreto é o do uso da água como lastro pelos navios.
Tão concreto que em 2004 a ONU (Organização das Nações Unidas) adotou uma
convenção para prevenir a poluição quando os navios bombeiam a água que têm e
captam aquela de que precisam. Nessa troca, provocam danos ambientais que podem
ser avaliados por dados fornecidos por Antonio Domingues: todos os anos essa operação movimenta 5 bilhões de toneladas (ou de metros cúbicos) de água, que devem
causar prejuízos globais de 100 bilhões de dólares (quantificando-se o dano ecológico,
que, em geral, não entra no cálculo econômico).
Quanto desse enorme prejuízo é causado no Brasil e, especificamente, na Amazônia? Ninguém sabe. Mas eis aí uma presunção de verdade que está muito longe de ser
fantasmagórica. Só do Pará, quinto maior estado exportador do país, entre 130 e 150
milhões de toneladas de riquezas naturais (predominantemente as minerais) foram
levados para outros países no ano passado.
Se, apenas para efeito de cálculo, se considera uma média de 50 mil toneladas por
navio (cinco vezes menos do que a quantidade de água do navio pirata apontado pela advogada capixaba), só para o escoamento dessa exportação penetram na bacia amazônica
três mil grandes navios (para o padrão dessa navegação) por ano. Ou quase dez por dia.
É um movimento expressivo. Uma das rotas de mais intenso tráfego avança quase mil
quilômetros Amazonas adentro. É a que vai até Porto Trombetas, no Pará, onde funciona
uma das maiores minas de bauxita do mundo, usada para a produção de alumínio.
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A Amazônia em Questão
A produção da Mineração Rio do Norte, controlada pela antiga estatal Companhia Vale do Rio Doce, não pôde ir além de dezoito milhões de toneladas de minério
porque o rio não comporta mais navios. O rio Trombetas, um dos mais belos da
Amazônia, rendilhado por lagos, foi o primeiro a sofrer congestionamento de tráfego.
Recorde negativo que não está nos almanaques de conhecimentos e curiosidades.
O governo tem acompanhado esse crescimento vertiginoso da navegação interior
amazônica por grandes navios internacionais, que fazem o fluxo de trocas de mercadorias pelo mundo? Claro que não. Mesmo sem fazer maiores pesquisas, basta embarcar num barco regional, com capacidade 100 vezes inferior à média do transporte de
alto mar, para verificar que a fiscalização, quando existe, é deficiente.
Essa falha – gritante e grotesca – não significa que os cargueiros de bandeira estrangeira estejam nos roubando água (em sua condição bruta, ainda não potável).
Não fazem hidropirataria porque não tem valor comercial, não gera lucro.
Mas podem estar poluindo nossos rios, podem estar despejando água salgada em
água doce e outras transgressões legais, perfeitamente detectáveis, puníveis e passíveis
de inibição com mais – e também melhor – presença estatal.
Outros ilícitos também estão ocorrendo rotineiramente, sem qualquer ligação
com a troca de lastro pelos navios interoceânicos. Os acidentes fluviais, por exemplo,
que só merecem alguma atenção quando causam uma quantidade maior de vítimas.
Talvez para quem vê a Amazônia de fora, agora com mais frequência atrás de uma
tela de computador, esse tipo de acontecimento não interessa. Não tem glamour, não
provoca fantasias, não suscita a imaginação. Mas para milhares de pessoas que, todos
os dias, vão de um lado para outro da região nas pequenas embarcações, os “motores”,
esta é uma questão literalmente vital, de vida – ou de morte.
Para 40% da população amazônica, conjecturar sobre base falsa, ilusória ou fictícia se a água do Amazonas, que chega ao mar, numa frequência de 60 mil metros
cúbicos por segundo (quatro vezes mais no pique das enchentes), está sendo bombeada para os porões dos navios para saciar a sede de um povo qualquer distante, não
tem pé nem cabeça. Esses oito mil amazônidas precisam de água para beber e não a
recebem.
Há água demais por todos os lados, mas falta o governo para tratá-la e oferecê-la
à população nas torneiras, com a garantia de que o consumidor não terá problemas
de saúde, como a febre tifoide, extinta no mundo civilizado, mas ainda presente na
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Amazônia. Ela tem o mais baixo índice de acesso à água tratada no Brasil, onde a
média de não atendimento é quatro vezes menor, de 10%.
Esta é uma realidade amazônica que merece mais indignação do que o mito da
hidropirataria. Para criar, ao invés de apenas fabular.
Amazônia já: o grande desafio
Qualquer São Tomé escolado recomendaria ceticismo diante dos números que
as empresas “barrageiras” costumam apresentar quando iniciam – ou sugerem – a
construção de uma nova grande hidrelétrica no Brasil. Na Amazônia, a Eletronorte
(Centrais Elétricas do Norte do Brasil), subsidiária da Eletrobras, tem merecido essa
desconfiança, agravada pelo chamado “fator amazônico”.
Trata-se de uma taxa de imponderabilidade maior do que a própria incerteza recomendaria numa região considerada “pioneira” – e, por isso, suscetível aos imprevistos
derivados de seu desconhecimento.
Mas podiam ser colocadas de lado as resistências diante de mais uma carrada de
números despejada sobre a opinião pública para fazê-la aceitar a segunda grande hidrelétrica amazônica, a de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, outra vez na berlinda.
A mais recente versão do estudo de viabilidade econômica da usina assegura que cada
megawatt/hora de energia gerada na boca da máquina será de 12 dólares. Posto em
São Paulo, depois de transitar de uma linha de transmissão para outra, esse MWh
custará mais do que o dobro da geração in situ, ou US$ 25.
Este é um número que sensibiliza qualquer pessoa capaz de aplicar a estatística à
vida concreta do ser humano e à natureza, percebendo complexos processos sociais e
ecológicos por trás da alquimia numérica. Vale mesmo à pena provocar desorganização (ou mesmo caos) social e ambiental num lugar tão suscetível às transformações
bruscas, represando um rio caudaloso e de balanço hídrico profundamente desequilibrado, como o Xingu, antes de um conhecimento suficiente sobre a bacia que será
afetada por essa intervenção humana, para levar a energia produzida no local por três
milhares de quilômetros, até o distante centro consumidor?
É preciso pelo menos colocar essa dúvida na prancheta e dar-lhe consistência na
busca por uma resposta satisfatória. Se impressiona essa passagem do valor da geração
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A Amazônia em Questão
(US$ 12 o MWh), no local onde será construída a usina, para o do consumo (US$
25), a três mil quilômetros de distância, talvez impressione ainda mais a ênfase dos
“barrageiros” ao proclamar que, mesmo assim, o MWh de Belo Monte em São Paulo
é quase a metade do valor da energia que é comercializada atualmente no Sudeste do
Brasil, numa média de US$ 42 o MWh.
Os que defendem a continuação do programa de aproveitamento em grande escala da energia de fonte hidráulica da Amazônia, que corresponde a metade do potencial hidrenergético nacional, acrescentam algumas questões complementares a essa. A
primeira: se os rios amazônicos não se transformarem em fonte de energia, de onde
virão os megawatts adicionais dos quais o Brasil precisará para atender o crescimento
do consumo a partir de 2010, sob pena de um novo colapso, ou “apagão”? Virão de
térmicas a gás ou de plantas nucleares? A que preços?
Esse é o questionamento feito a partir da perspectiva do demandador da energia.
Mas há também um desafio, sob o ângulo do produtor: uma vez apresentado o grande projeto, seja de energia bruta ou de produtos transformados a partir do seu uso
intensivo, qual a alternativa que se pode oferecer às populações nativas e aos imigrantes, atraídos pelo anúncio de uma nova frente de trabalho, num país de desemprego
aberto e subemprego galopante? Pode-se simplesmente voltar ao status quo ante ou já
é imprescindível propor uma nova situação?
Uma resposta satisfatória requer presença em dois fronts. Num deles é necessário
desfazer o raciocínio dominante dos “barrageiros”. Como solução para a projeção
da demanda (em geral inflacionada), eles quase sempre oferecem a construção de
novas usinas, de preferência de grande porte (em seus enormes orçamentos, alguns
milhões de dólares é troco). Sabe-se que essa é uma posição esquemática, a eliminar sutilezas relevantes. É por isso que os programas de conservação de energia
e de criação de fontes alternativas não conseguem a prioridade recomendada. O
custo/benefício é, neles, muito mais interessante. O problema é que, em termos
absolutos, não têm tanto rendimento. Além disso, quebram esquemas de poder já
estabelecidos.
O outro front é o do convencimento dos alegados beneficiários dos grandes projetos de que eles ganharão ainda mais com soluções menores, acessíveis, eficientes, de
imediato efeito local, mas que também geram desdobramentos em amplitude nacional. Esta é uma frente pobre de resultados.
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lúcio flávio pinto
Avançou-se ainda pouco num modelo alternativo ao que tem sido dominante
na Amazônia, baseado na relação com mercados externos, geralmente distantes, em
tecnologia de ponta, capital intensivo e pouca capilaridade local. Essas características
fazem do grande projeto um enclave, mas, ainda assim, o impacto da sua presença (ou
mesmo de seu simples anúncio) não pode ser ignorado. Muito pelo contrário.
É quase certo que se a usina de Belo Monte não sair do papel ou se a Alcoa se
retirar do município de Juruti, desistindo da sua mineração de bauxita diante das
dificuldades que lhe são opostas, esses locais não retornarão ao que eram. Inclusive
porque já não são mais o que eram. O crescimento populacional de Altamira em
função da barragem de Volta Grande do rio é um dado concreto. A multiplicação da
criminalidade em Juruti é outro fato. O que fazer sem as expectativas de crescimento,
mesmo que efêmeras ou fantasiosas?
Sem opção concreta, viável, acessível, vai parecer que a corrente contrária aos grandes projetos tem inconfessáveis interesses ocultos, com raízes no exterior e motivação
nada benemérita. Certos grupos geopolíticos estão argumentando que a oposição ao
aproveitamento do potencial energético dos rios brasileiros acabará favorecendo a
termeletricidade, incluída a até recentemente condenada energia nuclear. E quem se
poderia favorecer dessa nova tendência?
Um dos países apontados é a Alemanha. Na década de 1970 os alemães venderam
a caixa preta nuclear para Angra dos Reis, comprada pelo governo Geisel (comandado
por um filho de alemães). Neste início de século o governo alemão se enfileirou entre
os defensores de energia limpa, a gás ou nuclear. Quer melhorar o mundo ou o seu
caixa?
A pergunta é boa, mas ficar nela seria fazer o jogo obscurantista e imobilista dos
teóricos da eterna conspiração internacional contra a Amazônia, baseada mais em
presunção e jogo de quebra-cabeça lógico do que em fatos analiticamente expostos. É
preciso desvendar os interesses externos à região, nela realizados conforme um plano
bem urdido, mas também é preciso continuar a corrigir os erros flagrantes que se
perpetuam na política nacional de integração regional.
Eles não deixam de serem erros só porque são também apontados por observadores estrangeiros da cena amazônica. Não se deve igualmente descartar os recursos
de fora, materiais e imateriais, com os quais se poderão criar modelos alternativos ao
padrão da ocupação irracional e devastadora da Amazônia, ou abreviar o tempo de
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A Amazônia em Questão
colocá-los em aplicação. Não para um futuro paradisíaco, no qual, em longo prazo,
todos nos teremos tornado peças de museu. Mas para já.
A grande obra esquecida
Na gincana programada para tornar inesquecível a despedida do presidente Lula,
com mil e um acontecimentos, no final de 2010, um não mereceu a atenção devida: a
inauguração do sistema de transposição do rio Tocantins na barragem da hidrelétrica
de Tucuruí, no Pará. Era uma das mais antigas obras públicas em execução no país.
Iniciada em 1981, chegou ao fim quase 30 anos depois. Ou quase ao fim.
Cinco presidentes da república haviam se comprometido a inaugurá-la e não cumpriram a promessa. A construção era em si complexa: tinha que possibilitar a transposição de um desnível de 74 metros, equivalente à altura da estrutura de concreto (do
tamanho de um prédio de 20 andares) erguida sobre o leito do rio.
Com duas eclusas, que funcionam como enormes elevadores hidráulicos, dando
entrada e saída a um canal de concreto de cinco quilômetros e meio de comprimento
por 30 metros de largura, é o maior de todos esses sistemas existentes no Brasil. Está
entre as cinco maiores eclusas do mundo, com capacidade para 40 milhões de toneladas de carga nas duas direções. Não por acaso.
O Tocantins é o 25º maior rio do planeta. Tem mais de dois mil quilômetros de
extensão, drenando 10% do território brasileiro. Se formasse um estado autônomo,
sua bacia seria o terceiro maior estado nacional. A vazão do rio bateu seu recorde em
1980, quando alcançou quase 70 milhões de litros de água por segundo.
Por isso, os vertedouros de Tucuruí, deixando passar 120 milhões de litros de água
por segundo, eram também os maiores que havia em operação. Até 2008, quando
os vertedouros da usina de Três Gargantas, na China, engoliram 120,6 milhões de
litros.
Uma diferença mínima, que se torna insignificante diante do fato de que Três
Gargantas é a maior estrutura de concreto já construída pelo homem, enquanto a
barragem de Tucuruí é apenas a sexta. Há uma diferença ainda mais expressiva: a
represa sobre o rio Yangtzé tem 610 metros de altura, enquanto a do Tocantins fica
em 78 metros.
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O remanso provocado pela contenção das águas do rio chinês em Três Gargantas
tem o dobro em extensão do de Tucuruí, quase 400 quilômetros. Ainda assim, o volume de águas do reservatório do Tocantins é de 45 trilhões de litros, enquanto o de
Três Gargantas é inferior a 40 trilhões. Porque o rio brasileiro é mais volumoso.
Não foi o bastante, porém, para impedir que o rio ficasse inteiramente bloqueado
durante um quarto de século, desde que a hidrelétrica de Tucuruí começou a funcionar, em 1984. Pelo Código de Águas, lei especial que entrou em vigor em 1934,
a navegabilidade do rio devia ter sido restabelecida simultaneamente à conclusão da
barragem.
Seria o legal, o lógico e o mais barato. Como nenhum desses princípios foi obedecido, a capacidade de transporte em Tucuruí ficou limitada pelo transbordo da carga
da embarcação de montante para a de jusante da represa, com limitação de volume e
encarecimento do frete.
O orçamento oficial das eclusas de Tucuruí, quando elas foram inauguradas pelo
presidente Lula, era de quase 1,7 bilhão de dólares. Talvez o valor esteja subestimado.
É difícil atualizar o custo depois de tantas paralisações e aditamentos de contratos.
Mas a obra ainda não está realmente concluída.
O governo federal precisará gastar muito para que as eclusas façam parte de uma
verdadeira hidrovia, a do Araguaia-Tocantins, com mais de dois mil quilômetros de
extensão. Só para dar plena navegabilidade a um quarto dessa distância, entre Belém
e Marabá, serão necessários uns R$ 600 milhões em derrocagens, retificações e dragagens.
Mesmo depois de solenemente inaugurado, o sistema ainda malmente iniciou
sua operação comercial. As eclusas só voltaram a funcionar quando chegaram balsas
transportando peças fabricadas no Ceará para a montagem de um flutuador, instalado
na eclusa um, de montante. Ele passou a permitir a ancoragem das balsas que, em
comboios, atravessam o canal intermediário e saem na eclusa de jusante, voltando a
navegar pelo rio Tocantins.
Seis usinas de gusa (uma paraense e cinco maranhenses) decidiram usar a ferrovia
de Carajás para escoar 145 mil toneladas do seu produto até o porto da Ponta da
Madeira, no litoral maranhense, e não as eclusas. A Vale lhes ofereceu vantagens para
fazerem essa opção. A ferrovia e o porto são concessões públicas da empresa, que também fornece o minério de ferro.
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A Amazônia em Questão
Por enquanto, os produtores de bens siderúrgicos e minérios é que serão beneficiados. Não precisarão mais fazer o transbordo rodoviário na barragem de Tucuruí nem
pagar pela passagem através das eclusas. Só em março o funcionamento do sistema
deverá estar regulamentado. Até lá, não haverá pedágios. Para operar a transposição,
a Eletronorte receberá R$ 3 milhões do governo, por um ano.
Como a grande obra vai funcionar, ainda não se sabe. O que se sabe é que o perfil
do projeto mudou: ao invés de servir ao desenvolvimento interno, criando efeitos
germinativos locais, se tornará mais uma via de escoamento de commodities para o
exterior, no modelo colonial de exploração da Amazônia.
Hidrelétricas: hoje como ontem
Em 1975 a hidrelétrica de Tucuruí começou a ser construída no rio Tocantins, no
Pará. Viria a ser a quarta maior usina de energia do mundo. A construtora Camargo
Corrêa foi escolhida para instalar o primeiro canteiro de obras. Uma vez instalada no
local, ganhou a concorrência principal. E lá permanece até hoje, sempre faturando,
passados 36 anos.
O orçamento inicial de Tucuruí era de 2,1 bilhões de dólares. Quando chegou em
US$ 7,5 bilhões, dez anos depois, a rubrica específica desapareceu. Foi remetida das
contas da Eletronorte, subsidiária da região norte, para a contabilidade da sua enorme
controladora, a Eletrobras. O preço final pode ter chegado a uns US$ 15 bilhões, sete
vezes mais do que a previsão na largada da obra. Mas pode ter ido além, ninguém
mais sabe ao certo.
O que a Camargo Corrêa ganhou entre 1975/84, quando a usina começou a
funcionar, permitiu ao seu proprietário, Sebastião Camargo, se tornar o primeiro bilionário brasileiro na listagem dos mais ricos do mundo. Sua fortuna pessoal dobrou
no período: de US$ 500 milhões para US$ 1 bilhão. Correspondeu ao lucro líquido
acumulado nesse decênio, à boa média de US$ 50 milhões a mais por ano. Sem atualização monetária.
Ninguém protestou quando o canteiro secundário virou principal. Nem quando
o contrato original foi seguidamente aditado. Ou dele derivaram outros contratos,
na usina ou em uma de suas principais dependências, o sistema de transposição da
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enorme barragem de concreto, com mais de 70 metros de altura (correspondente a
um prédio de dezessete andares), que custou R$ 1,6 bilhão, o maior do país.
Nem quando o Tocantins começou a ser aterrado para que no seu leito fosse erguida a represa, a obra pública que mais concreto absorveu no Brasil até então. Com
o fechamento do rio, a água subiu e inundou uma área de três mil quilômetros quadrados, afogando milhões de metros cúbicos da floresta que havia em seu interior.
A legislação ambiental brasileira só começaria a nascer seis anos depois. Mas a
Eletronorte sabia que Tucuruí causaria profundos danos à natureza, acima e abaixo
da represa, por pelo menos 200 quilômetros a montante. Tratou de fazer um levantamento ecológico das consequências da hidrelétrica.
A tarefa foi realizada por uma única pessoa, em 1977, o americano Robert Goodland. Ele era o autor, com seu compatriota Howard Irwin, de um estudo extremamente crítico sobre a ocupação da Amazônia durante o regime militar. O título
do livro, embora equivocado, dizia tudo sobre o seu conteúdo: Selva amazônica: do
inferno verde ao deserto vermelho.1
Da tradução para o português foi expurgado todo um capítulo, sobre a matança
de índios pelos projetos de “desenvolvimento”, embora a editora da publicação tivesse
o selo da honorável Universidade de São Paulo, a USP.
O levantamento que Goodland fez sobre o impacto ambiental da hidrelétrica de
Tucuruí podia ser considerado apenas como um exaustivo roteiro para uma pesquisa
muito mais ampla, complexa e detalhada – que nunca foi executada. Problemas que
eram visíveis mesmo a olho nu só foram considerados pelos “barrageiros” quando se
materializaram. Efeitos danosos que podiam ser evitados ou prevenidos foram deixados à própria sorte.
De Tucuruí, no Tocantins, para Belo Monte, no Xingu, caminhando para oeste
do Brasil, como sempre, na sina (e sanha) dos sempre bandeirantes, muita coisa
mudou – mas, talvez, não o substancial. Em 2011, um grupo de manifestantes levou
a Brasília um abaixo-assinado de 500 mil nomes contra a construção da usina, que
ocupará justamente o lugar até agora de Tucuruí no ranking das maiores hidrelétricas
do mundo.
1
Robert Gooland e Howard Irwin, Edusp/Itatiaia, 1975, pgs. 156
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A Amazônia em Questão
A caudalosa adesão de subscritores do manifesto dificilmente sensibilizará aqueles
que, 20 anos depois de começarem a tratar da hidrelétrica, não têm mais dúvida alguma de que ela precisa ser construída. De qualquer maneira.
A correlação de forças não é a mesma de 1975. Por trás do selo de autorização
não há uma ditadura, como então. Mas o Estado (no caso, personificado na União
Federal) pode muito. Talvez ainda mais do que a sociedade. A norma processual do
licenciamento ambiental foi violada para dar passagem a uma figura que o código
ecológico desconhece: a “licença de instalação parcial”.
O que ela é senão a versão atualizada ao mundo jurídico da figura concreta do
canteiro secundário de Tucuruí em 1975? A obra pode não começar (ou jamais vir a
ser legalizada), mas seu canteiro já estará pronto. Os 19,5 bilhões de reais de financiamento de longo prazo do BNDES (num orçamento global na época de R$ 24,7
bilhões, que agora se aproxima dos R$ 30 bilhões previstos pelos empreiteiros) podem
não sair, mas o enredo foi criado para que isso aconteça, apesar de todos os acidentes
de percurso. E o fato estará consumado, assim como Santo Antônio e Jirau, bem
mais a oeste (já quase no fim da rota dos bandeirantes em torrão pátrio), no estado
de Rondônia e no rio Madeira, o mais caudaloso afluente do oceânico rio Amazonas.
As três mega-hidrelétricas previstas para a Amazônia (sem contar outras cinco
ainda em conjecturas para o vale do Tapajós/Teles Pires) representam capacidade instalada de 17,4 mil megawatts (20% a mais do que Itaipu), ainda que apenas metade
desse potencial constitua energia firme (disponível ao longo do ano), ao custo – já
ultrapassado – de R$ 43 bilhões.
Esses números soam como poesia, para quem dispõe do poder decisório, por vários ângulos e perspectivas, enquanto as críticas e reações a esses projetos lhes chegam
aos ouvidos como cacofonia irrealista, absurda. O Brasil não é o mesmo de 1975. Mas
para esses cidadãos é como se fosse. Ao menos quando se trata da Amazônia. Para eles,
a história se escreve com bulldozers.
Energia que desenvolve
Mais de 70% da energia que é gerada no Brasil sai dos rios. Mesmo com a consciência que se tem hoje, sobre os danos que as grandes barragens causam ao meio
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ambiente e que, por isso, agora precisam ser compensados, a energia hidráulica ainda
é a mais barata e a que menos polui. É uma vantagem enorme para o Brasil tê-la como
a base da sua matriz energética.
O problema é que os rios mais próximos aos principais centros de consumo do
país, nas regiões sul e sudeste, estão com seu potencial quase esgotado. Resta a bacia
amazônica, a maior do mundo. Se os rios já inventariados na região fossem plenamente utilizados, a atual capacidade instalada de energia poderia ser duplicada. Nenhum
outro país dispõe de uma reserva desse porte e com características tão vantajosas. Só
a hidrelétrica de Tucuruí responde por 8% de toda energia que circula em território
brasileiro.
Um terço dos seus 8,3 mil megawatts vai para duas das maiores indústrias mundiais de alumínio (uma em Belém e outra em São Luiz do Maranhão), um terço
para o sistema integrado nacional e só o terço restante fica no Pará, onde a usina foi
instalada.
Fora dos enclaves industriais especializados em bens eletrointensivos, como os de
alumínio, cobre ou silício metálico, a demanda interna amazônica por energia dispensa a construção de barragens de alta queda, sem as quais não é possível produzir
muita energia. Mesmo sendo volumosos, os rios da Amazônia têm baixa declividade
natural, incapazes, por isso, de movimentar as gigantescas turbinas de maior potência,
que precisam pelo menos de quedas de 60 metros.
É por causa da parte mais desenvolvida do Brasil que ainda se projeta grandes
barragens para a Amazônia. Mas além dos problemas que acarretam à natureza e aos
habitantes das margens dos cursos d’água, essas obras exigem a construção de extensas
linhas de transmissão de energia em alta tensão, medidas em milhares de quilômetros.
As que se encontram em operação já estão com sua capacidade comprometida.
Às vezes esse “detalhe” é esquecido. Ou omitido, como parece ter acontecido em
relação a Belo Monte, no Xingu, também no Pará, hoje, o quinto maior produtor
brasileiro de energia e o terceiro que mais transfere energia bruta para fora dos seus
limites.
Discute-se quanto custará a geração, entre os 28 bilhões de reais do orçamento
oficial e os R$ 30 bilhões inicialmente calculados pelo “mercado”. Mas se esquece
que a transmissão poderá ultrapassar 70% ou 80% desse valor. E até agora não foi
considerada, embora constitua um dos problemas mais sérios de um projeto hidrelé35 |
A Amazônia em Questão
trico: por seu custo elevado, as perdas que sua extensão acarreta, a impossibilidade de
disseminar a eletrificação pelo seu trajeto e problemas de segurança.
Em 1989, quando foi definida a viabilidade do aproveitamento hidrelétrico do
Xingu, a Eletronorte previa a construção de uma única barragem, no final da Volta
Grande do rio, na qual haveria uma única casa de força, com 20 turbinas. A represa
inundaria 1.225 quilômetros quadrados, estocaria água suficiente para a produção
de 11,2 mil megawatts no pique das cheias e uma geração firme próxima de 50%.
Era um projeto semelhante ao de Tucuruí, que antecedeu a legislação ambientalista
brasileira, iniciada em 1981.
Em 2008, quando o inventário do Xingu foi atualizado, o projeto mudara. O eixo
da barragem foi relocado rio abaixo. A área de inundação foi reduzida para 516 quilômetros quadrados, dos quais 382 km2 ocupados pelo leito do próprio Xingu. Apenas
40 km2 seriam de área realmente nova, situada além dos limites alcançados pelas
cheias anuais nas margens do rio. Os outros 134 km2 constituiriam o que passou a
ser chamado de “reservatório dos canais”, a maior inovação do projeto de engenharia.
Reposicionada para o início da Volta Grande, a barragem desviaria as águas do
Xingu para canais artificiais, que aproveitariam as drenagens naturais nesse trecho da
bacia, transformando-as num vertedouro, através de uma sucessão de diques de terra
e de concreto, com maior volume do que o canal do Panamá. Assim, a água seria
conduzida até a casa de força principal, bem longe da barragem, valendo-se de um
desnível natural de 90 metros.
No auge da cheia, haveria água suficiente para movimentar as enormes máquinas,
cada uma das quais precisando de 500 mil litros de água por segundo. Mas na maior
estiagem simplesmente a vazão do Xingu seria insuficiente para colocar a usina em
funcionamento. Ela ficaria parada. É a deficiência das hidrelétricas chamadas “a fio
d’água”, que não têm estoque de água acumulado para o verão. No Xingu, a diferença
entre as duas etapas de vazão chega a 30 vezes.
Agora imagine-se um projeto que eliminasse o reservatório dos canais, mantendo
apenas a barragem no eixo do rio e a casa de força secundária. As oito máquinas a
serem instaladas na barragem têm capacidade para 233 MW. Essa potência equivale a
menos da metade de uma única das 20 máquinas da casa de força principal, situada a
50 quilômetros, rio abaixo (chamada de jusante, enquanto a parte alta é a montante).
Mas o suficiente para abastecer quase a metade da população de Belém.
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No Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) de Belo Monte, os técnicos afirmam, estranhamente, que essa população “corresponde aproximadamente a três milhões e meio de pessoas”. A população de Belém é de 1,5 milhão de habitantes. Logo,
a metade deveria ser de 750 mil pessoas. Qual então o valor certo: 750 mil ou 3,5
milhões de pessoas, que correspondem exatamente à metade da população de todo o
estado do Pará? O Rima não diz e esta se constitui em uma de suas falhas, pequena,
talvez, mas gritante.
É uma potência insignificante, se comparada aos 11,2 mil MW da capacidade a
ser instalada na casa de força principal (apenas 2% dela). Mas as melhores estimativas
são de que a energia média de Belo Monte será inferior a 4 mil MW, elevando o percentual da usina secundária para 5% da grande hidrelétrica.
Fazendo-se outra correlação, porém, verifica-se que se Belo Monte fosse reduzida
à casa de força complementar, sua potência seria uma vez e meia maior do que o parque eólico de Osório, a quarta mais importante cidade do Rio Grande do Sul. Nela,
75 torres de 100 metros de altura, com turbinas acionadas pelo vento, irão gerar 150
MW, o suficiente para abastecer 400 mil pessoas.
A barragem do Xingu, inundando uma área de 382 km2, dos quais apenas 40
km2 excederiam as cheias naturais do rio, abasteceria com energia toda a rodovia
Transamazônica e iria além: garantiria disponibilidade para absorver incrementos exponenciais no consumo, incluindo indústrias que fossem atraídas para a região.
Como todas as turbinas são do tipo bulbo, que funcionam com água corrente,
em desnível de menos de 20 metros, sem precisar da criação de declividade artificial,
a usina funcionaria o ano inteiro. Sem a enorme movimentação de terra e concreto
exigida pelo atual projeto, e dispensando as caríssimas turbinas Francis, em quanto
ficaria o custo dessa hidrelétrica?
Quem sabe, 2% ou, no máximo, 3% dos 28 bilhões de reais previstos pelos cálculos oficiais. E sem os impactos sociais e ambientais – que a grande e problemática
obra provocaria. Por que não testar uma mini-Belo Monte, que já está desenhada no
projeto, antes de se arriscar com um mastodonte sujeito ao descontrole?
Esse tipo de sugestão poderia ser levado na devida conta se projetos como o de
Belo Monte não fossem concebidos para manter a condição colonial da região, que
manda sua energia bruta para longe, ao invés de desenvolvê-la de verdade em seu
próprio território.
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A Amazônia em Questão
A transfusão de energia
A maior obra do Brasil começou oficialmente em 20 de fevereiro de 2011, com a
emissão da primeira ordem de serviço para a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, que será a quarta maior do mundo. Menos de um ano antes,
quando a concessão foi a leilão, o projeto era no valor de 14 bilhões de reais. Hoje, é
de R$ 30 bilhões. Não será surpresa se chegar a R$ 30 bilhões, a previsão inicial dos
empreiteiros. Ou superar esse patamar, como preveem os críticos.
Embora o projeto tenha duas décadas de existência, ele chegou à fase executiva
sem o amadurecimento devido. Durante esse período, os questionamentos e as dúvidas se sucederam, à medida que o debate se aprofundou. Mesmo com um acervo
de milhares de manifestações escritas ou orais sobre o tema, dentro e fora do país, a
sensação mais forte para quem acompanhou a trajetória é a da insuficiência de dados
e insegurança quanto às garantias dadas pelos executores da empreitada.
O governo, porém, não partilha esses sentimentos. A convicção, ainda rarefeita
no governo Lula, se tornou um axioma da administração Dilma: a matriz energética
brasileira continuará a se basear na energia de fonte hidráulica; por consequência, as
novas adições à produção nacional terão que vir da Amazônia, onde está a maior bacia
hidrográfica do planeta. O resto é circunstância.
O governo federal anunciou um plano de investimentos de R$ 210 bilhões para os
próximos 10 anos, algo como uma usina de Belo Monte por ano (claro, incluindo os outros itens, além da geração). Desse total, 40% serão aplicados na Amazônia, em 20 novas
hidrelétricas, com capacidade para gerar 15% de toda a energia produzida atualmente no
país. Em 2020, portanto, a região responderá por quase um quarto da energia nacional.
As resistências a esse plano foram crescentes e consistentes, mas o governo, vencido o prazo de tolerância, que estabeleceu unilateralmente, para as contestações, decidiu passar por cima dessas razões. Agiu como se fosse uma das quase 600 máquinas
pesadas que chegam ao canteiro de obras.
O fino véu da novidade foi rasgado por essa decisão. As novas mega-hidrelétricas
na Amazônia seriam de responsabilidade da iniciativa privada. Com seu interesse pelas concessões públicas, os empresários garantiriam que se tratava de negócio rentável,
do menor custo e da maior racionalidade. O poder público se restringiria à função de
ordenador, fiscalizador e cobrador de resultados.
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Nada disso aconteceu. O momento mais definidor foi quando dois dos maiores
sócios da concessionária pularam o balcão. Ao invés de bancar a obra e explorar o seu
produto, a energia, como empreendedoras. a construtora Camargo Corrêa e a Odebrecht voltaram à condição tradicional, de empreiteiras.
Deixaram de aplicar capital – próprio ou emprestado – para viabilizar o projeto.
Passaram a receber pelos serviços prestados na construção. Concluíram que a hidrelétrica de Belo Monte não é um bom negócio, exceto para os que vão ganhar para
torná-la uma realidade.
Mais do que qualquer outra empreiteira, a Camargo Corrêa sabia muito bem o
que estava fazendo. Foi ela que construiu a hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins,
também no Pará, ainda a quarta maior usina de energia do mundo. E há quase quatro
décadas mantém um forte canteiro no local. Inicialmente, empenhado na instalação
dos equipamentos eletromecânicos da usina. Nos últimos tempos, na construção de
uma das maiores eclusas do mundo, para a transposição da enorme barragem de concreto, com 70 metros de altura.
Motivos não faltaram para a desistência. A energia firme de Belo Monte será
de apenas 40% da sua capacidade nominal, de 11 mil megawatts. É rendimento
abaixo da média nacional, de 55%. Os construtores têm mil e um argumentos
para contraditar essa verdade, mas é melhor dar atenção a um detalhe: o maior
fator de carga entre as grandes hidrelétricas, de 70%, será o de Santo Antônio, em
Rondônia.
Não só porque o rio Madeira tem fluxo constante, ao contrário do Xingu, sujeito a
uma acentuada sazonalidade do regime hídrico: é principalmente porque a montante
está sendo construída outra usina de grande porte, Jirau, com energia firme de 57%,
que garantirá mais água para a hidrelétrica rio abaixo, a jusante.
É assim que está sendo feito no Tocantins, com mais hidrelétricas Tucuruí rio
acima. Era assim que devia ter sido feito também no Xingu, até que os monumentais
reservatórios alarmaram a todos, por seus efeitos terríveis, e o debate ecológico estancou o planejamento original.
No papel, não mais será assim. O governo construirá apenas Belo Monte e nenhuma outra usina a mais no Xingu. Mas quem pode garantir se, na hora do “vamos ver”,
aplica-se a política do fato consumado, como agora em Belo Monte e um pouco antes
em Santo Antônio e Jirau? A cada fonte de resistência encontrada, um elemento de
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A Amazônia em Questão
cobertura do “novo modelo energético” foi se desprendendo. Afinal, revelou-se o que
era velho: o modelo estatizante.
As empresas privadas são figurantes do lado do risco do empreendimento. As
empresas estatais, sócias amplamente majoritárias nas sociedades que se formaram,
respondem pelo empreendimento, como a holding Eletrobras e suas subsidiárias: Eletronorte, Furnas e Chesf. Do lado do financiamento, a conta é bancada pelo BNDES
(Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), com condições suficientes para suportar o elemento de surpresa do “fator amazônico”.
Só quando – e se – o projeto se firmar, à custa de muitos bilhões de reais e desafios
socioambientais e tecnológicos, o modelo será retomado. Mas para renovar outra velharia histórica: a consolidação da distante Amazônia também – e sobretudo – como uma
colônia energética, pontilhada de gigantescas usinas, que se conectam aos centros de
consumo do outro lado do Brasil, o mais rico e poderoso, por extensas linhas de transmissão. Uma espécie de transfusão de sangue em forma de kilowatts. Uma hemorragia.
Frankenstein nas águas do rio Xingu
Mal colocou em funcionamento no rio Tocantins a hidrelétrica de Tucuruí, em
1984, a Eletronorte já se preparou para repetir a dose, em escala ampliada. Avançando
para oeste nos afluentes do Amazonas, arrematou os estudos para a primeira de seis
usinas que pretendia construir no Xingu, ainda em território paraense, destinada a ser
a terceira maior do planeta.
O modelo era praticamente o mesmo, não só da gigantesca Tucuruí, como de
hidrelétricas menores que saíram da prancheta da subsidiária da Eletrobras: uma barragem de alta queda para segurar grande volume de água no reservatório e acionar turbinas de tal potência que precisam de pelo menos 300 mil litros de água por segundo.
O problema é que os maiores rios amazônicos, como mostrei, têm baixa declividade natural. Represados por um elevado paredão de concreto, eles passam a inundar
grandes áreas rio acima. Além disso, a variação da sua vazão entre o máximo do inverno e o mínimo do verão pode ser de mais de 30 vezes.
Um turbilhão de águas na cheia é substituído por um fio d’água na vazante tanto
no Tocantins quanto – e ainda mais – no Xingu. Para que as máquinas de energia
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funcionem regularmente o ano inteiro, pagando seu pesado custo, é preciso estocar
muita água.
Em Tucuruí, são 50 trilhões de litros de água armazenadas numa área de mais de
três mil quilômetros quadrados. Só assim a usina pode se manter em operação quando a vazão se torna mínima.
A hidrelétrica do Tocantins começou a ser construída com pouca reação (e conhecimento) da sociedade em 1975, seis anos antes de a legislação ambientalista brasileira
ter início. Em menos de dez anos já estava em funcionamento. Seu maior problema
foi a descontinuidade de recursos financeiros, mais do que críticas ou guerra judicial.
A Eletronorte achava que podia reeditar a façanha com Belo Monte.
Mas o facão da índia Tuíra, passado cinematograficamente no rosto do tecnocrata
que tinha o principal papel nesse enredo, o engenheiro José Antônio Muniz Lopes,
pôs fim a essa ilusão. Foi em 1989, durante o I Encontro dos Povos Indígenas, em
Altamira, que reuniu índios, celebridades e ONGs internacionais.
A cena da índia pintada para a guerra e com ar feroz brandindo seu facão diante do assustado engenheiro correu mundo e provocou impacto. O mundo primitivo dizia não à
civilização pós-moderna. Sentimentos mal reprimidos de consciência culpada afloraram.
O Banco Mundial decidiu não mais financiar grandes barragens na Amazônia.
Fechou-se assim a grande porta de financiamento internacional, base de sustentação
do “barragismo” no Brasil durante o governo militar, que levantou gigantes de concreto sobre leitos de rios, como Itaipu e Tucuruí.
Belo Monte parecia condenada ao esquecimento. Mas em 2002 ela foi reapresentada com nova moldura: sem as demais barragens rio acima e com seu reservatório
reduzido a um terço do tamanho original (de 1.200 para 400 km2), metade dele
coincidindo com a área natural de inundação do Xingu à altura de Altamira, a maior
cidade do vale.
Era a primeira grande hidrelétrica a fio d’água do Brasil, mesmo projetada para ser
a terceira maior do planeta. Foi despojada dos efeitos negativos de Tucuruí, com área
de inundação quase oito vezes maior (e 30% menos energia).
Mas sem o estoque de água da barragem de Babaquara, que seria construída a
montante, alagando 6 mil km2, as 20 gigantescas turbinas da casa de força ficariam
paradas, por absoluta falta de água, durante três meses e funcionariam a baixa potência por igual período.
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A Amazônia em Questão
A energia firme (disponível em média durante o ano) ficaria aquém do nível recomendado, de 50%, podendo bater em pouco mais de 40%. E havia ainda outro
problema: o custo da transmissão da energia cresceu tanto que se aproximou do custo
da geração, relação inédita nesse tipo de orçamento.
A preocupação com a imagem ambiental do projeto, abalada desde 1989, afetou
sua viabilidade técnica e econômica, que se tornou tremendamente complexa e temerária.
A construção dos diques para conduzir a água por dois igarapés até a casa de força, num desnível de 90 metros e uma distância de 50 quilômetros, demandará um
volume enorme de concreto e uma precisão tal para evitar vazamentos. Iniciativa de
risco diante das condições da área na Volta Grande do Xingu, com muita drenagem,
rochas e terra.
Um vertedouro secundário foi concebido para manter a vazão pelo leito natural
do rio, impedindo-o de secar. Mas depois foram aduzidas oito turbinas bulbo, que
produzem energia – embora em muito menor quantidade do que as máquinas convencionais da casa de força principal – com água corrente, sem precisar de reserva e
de maior desnível. Operam com água na horizontal e não na vertical.
A condução do projeto também se tornou descontínua. Depois de ficar sob o
controle total da Eletronorte, o empreendimento foi dividido entre a Odebrecht, a
Andrade Gutierrez e Eletrobras. A Chesf, estatal com jurisdição no Nordeste, substituiu a estatal amazônica, que estava sem condições financeiras.
Já as duas empreiteiras privadas acabaram se desinteressando por apresentar o lance
vencedor no leilão. O consórcio que arrematou a concessão será incapaz de executar a
obra, convicção a que se pode chegar apenas examinando as empresas que o compuseram.
A expectativa de que o outro grupo seria o vencedor, por combinar construtoras
experientes e habilitadas com grupos de consumidores intensivos de energia (como a
Vale e a CBA), se frustrou por algum incidente de bastidores ainda não reconstituído
satisfatoriamente. A própria crônica marginal ao leilão deve ter crescido tanto que, se
chegar a ser revelada, desnudará provavelmente um escândalo de acertos prévios e cartas marcadas. Pode ter sido o maior do governo Lula. Afinal, é negócio de 30 bilhões
de reais.
A sofreguidão do presidente da república arrematou a sucessão de erros e irregularidades com a decisão de que, se tudo continuasse a dar errado, como estava
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lúcio flávio pinto
acontecendo, o governo assumiria sozinho o projeto, estatizando-o de vez. As tinturas
de privatização são tênues demais para que se acredite nelas. É o creme brilhante na
superfície. Na essência, o que move a obra é dinheiro público.
O BNDES se dispôs a financiar – em condições favoráveis ao tomador do dinheiro – 80% dos até agora 28 bilhões de reais orçados para a obra (pelo menos R$
30 bilhões, segundo os empreiteiros). Já a Sudam comprometeu isenção de 75%
do imposto de renda por dez anos. Outros benefícios já se incorporaram à cesta de
favores oficiais, com o objetivo de reduzir ao mínimo o risco do empreendedor.
Com tudo isso, a rentabilidade do negócio dependerá ainda da disposição do
governo de ir além se a obra ultrapassar o valor orçado oficialmente. Nesses números
ainda não está incluída a transmissão, e ficam pendentes detalhes técnicos que não
podem ser minimizados diante da grandiosidade da empreitada.
O projeto de Belo Monte se tornou um monstro, um Frankenstein, depois de
tantas mudanças, correções, ajustes e mistificações feitos nos seus 30 anos de história.
Começou como uma cópia do modelo de hidrelétricas no Brasil, com ênfase em Tucuruí, apenas com ligeiras correções e adaptações.
Depois, tentou agradar os ambientalistas atendendo sua principal queixa: a
grande inundação provocada pelas barragens. Mas ao cobrir essa falha, como a
visão era curta, acabou inviabilizando a obra, por aumentar descontroladamente
o seu custo. Hoje, o negócio só pode ir em frente com muito dinheiro público. E
quando isso acontece, sem uma diretriz firme, a história começa a feder. Começou
já faz tempo.
A Amazônia emudecida
A hidrelétrica de Tucuruí começou a ser construída em 1975 e entrou em funcionamento em 1984. Pelos planos do governo federal, outras usinas do mesmo tamanho – ou equivalentes – deviam ter-se seguido imediatamente.
Havia duas lógicas fundamentais a sustentar essa estratégia. Uma: a água, além, de
possibilitar a energia mais limpa e renovável que existe, tem o menor custo por kwh
(kilowatt por hora). A outra lógica básica: a Amazônia abriga a maior bacia hidrográfica do planeta.
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A Amazônia em Questão
Passaram-se três décadas até que uma nova grande hidrelétrica voltasse a ser construída na Amazônia. Não mais no Pará, detentor do maior potencial energético do
país, mas em Rondônia, no extremo oeste. Ao invés de apenas uma barragem de alta
queda, como no rio Tocantins, Santo Antônio e Jirau serão duas represas baixas, com
menos da metade da altura da estrutura de concreto de Tucuruí.
Não é uma mudança irrelevante. Os rios amazônicos têm geralmente baixa declividade natural. Pelo seu perfil, não poderiam abrigar grandes usinas. Foi por isso que
o barramento do Tocantins se elevou por 70 metros, permitindo a geração de 8,2 mil
megawatts, correspondente a 7% de toda a oferta atual de energia do Brasil.
Como consequência desse projeto, Tucuruí inundou uma área de três mil quilômetros quadrados (ou 300 mil hectares). Quando o Tocantins está no seu apogeu, como
agora, é de impressionar a torrente de água que passa pelas comportas da represa.
São mais de dez mil metros cúbicos (ou dez milhões de litros) de água a cada
segundo. Quando o rio baixa, surgem os paliteiros, árvores que morreram e permanecem insepultas na área do lago, o maior reservatório artificial do Brasil, com 45
trilhões de litros de água armazenados.
As duas hidrelétricas rondonienses não formarão lagos semelhantes no rio Madeira, o principal afluente do Amazonas. Como serão barragens de baixa queda, elas
funcionarão com água quase corrente – ou “a fio d’água”, conforme a terminologia
técnica. Com muita vazão, haverá muita energia. No verão, pouca energia.
Do ponto de vista da engenharia elétrica, um grande prejuízo. O ideal dos “barragistas” é ter água estocada para poder gerar o ano inteiro, ainda que em intensidade
decrescente. Para os ambientalistas, significa menor impacto ecológico e social, menos
agressão à natureza e ao homem. Tucuruí provocou o afogamento de milhares de árvores, animais, recursos do subsolo e provocou alteração na qualidade da água. Além
de deslocar para as terras altas (os “firmes”) o habitante nativo, o “varzeiro”, que vivia
à margem do rio havia muitas gerações.
Para que houvesse um ponto de equilíbrio entre uma e outra posição, foi criada
uma nova tecnologia para as turbinas, capazes de funcionar com o movimento horizontal das águas, sem a criação de desnível artificial, uma condição apropriada para os
rios de planície da Amazônia.
Todas as turbinas de Jirau e de Santo Antonio são do tipo bulbo. Porém nunca
houve hidrelétricas com tantas dessas turbinas (mais de 90 no total) e potência tão
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lúcio flávio pinto
elevada. Não deixa de ser uma experiência nova, de vanguarda, com razoável margem
de risco. Não tanta porque a vazão do Madeira se mantém razoável mesmo no período de estiagem.
Não é o caso do Xingu, no Pará. É ali que começa a ser construída uma hidrelétrica maior do que as duas de Rondônia juntas, só inferior a Itaipu, no Paraná, e a
Tucuruí. A vazão do Xingu chega a se reduzir em mais de 30 vezes entre o inverno e
o verão.
Numa estiagem rigorosa, não haverá água para movimentar qualquer das 20 máquinas gigantescas a serem instaladas na sua casa de força. A usina ficará completamente parada por dois, três ou mais meses. É aí que a hidrelétrica a “fio d’água” revela
sua maior desvantagem: por que construir uma usina tão cara, tão distante dos principais centros de consumo e tão complexa se durante parte do ano ela ficará inativa?
A resposta está na ponta da língua dos “barragistas”: graças ao sistema integrado
nacional de energia, quando não estiver transferindo sua produção, por falta de água, a
hidrelétrica amazônica a receberá das bacias situadas em áreas que estarão sob chuvas.
A explicação seria convincente se acrescentasse a resposta satisfatória à questão
seguinte: e para quem será distribuída essa energia do sul do país, se não há procura
por ela na Amazônia? A região foi transformada também em colônia energética, com
pouca demanda própria de energia e ainda por cima com a tarifa mais cara do Brasil,
mesmo sendo a terceira maior exportadora nacional.
Provavelmente porque não há resposta para calar esse questionamento, a responsabilidade pela construção das extensas linhas de transmissão, com dois mil e mais
quilômetros (a de Porto Velho irá até Araraquara, em São Paulo), continuou nas mãos
do governo. Já a construção e operação das usinas foram privatizadas. Mas não tanto:
o principal agente financeiro é um banco estatal, o BNDES, e entre os parceiros destacados da iniciativa privada estão empresas públicas de energia e fundos de pensão
de estatais.
No momento em que um desses concessionários, a Norte Engenharia, anuncia
que as obras da hidrelétrica de Belo Monte estão finalmente começando, verifica-se
que muitas questões vitais como essas continuam à margem dos debates. Pior do que
isso: elas não contam nas decisões.
Não só por autoritarismo do governo. Também porque, quando se trata de Amazônia, a razão costuma ser atropelada pela paixão e pelo emocionalismo dos que, de
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A Amazônia em Questão
um e de outro lado do ringue plebiscitário, se apresentam como os pais (ou donos) da
região, vítima dessa tutela arrogante.
A hidrelétrica maldita
O aproveitamento energético da bacia do Xingu é uma história com mais de 35
anos. Talvez seja a mais demorada e acidentada das trajetórias já registradas nos anais
da construção de barragens no Brasil, que é um dos países com maior tradição nessa
engenharia em todo mundo.
Só agora está sendo lançada a primeira pá de areia sobre o leito do rio para fazer
surgir aquela que devia se tornar a terceira maior hidrelétrica do planeta, apesar de
centenas de milhões de reais já gastos e de centenas de milhares de folhas de papel
escritas a respeito.
O Ibama autorizou o início efetivo das obras da usina de Belo Monte debaixo
de muita contestação, inclusive judicial. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis deu a licença ambiental prévia em 2010. O passo
seguinte seria a concessão da licença de instalação.
Mas havia tanta polêmica e litígio judicial que foi necessário inovar no rito processual e inventar uma etapa intermediária, a licença de instalação parcial. O consórcio
construtor, a Norte Energia, pôde montar o canteiro da obra, mas não executá-la. O
que só acontecerá agora, se as previsões se confirmarem. Belo Monte deverá então sair
das pranchetas e começar a barrar o Xingu, um dos maiores cursos d’água da Terra.
O estranho é que, três décadas depois do início dos primeiros levantamentos de
campo sobre o potencial hidrelétrico da bacia, o projeto ainda provoque tantos questionamentos – e seus críticos aleguem que a decisão de construir a usina até hoje não
foi debatida com a sociedade. Continuaria a ser uma caixa preta – ou de Pandora.
Dela, tudo poderia sair. Sobretudo, surpresas desagradáveis.
Era a civilização autoritária e insensível que tentava impor seus dogmas materiais
(o “desenvolvimento”) sobre os direitos de povos ancestrais, abusando do seu poder e
tecnologia. Ressurgências do sentimento de culpa original dos colonizadores brancos
em relação ao bom selvagem rousseauniano bloquearam a continuidade do empreendimento. Tuíra venceu com seu facão as pesadas máquinas da Eletronorte.
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Remodelado, dez anos depois o projeto retomou o seu recurso. Não era mais a visão categórica e impositiva dos regimes militares (que haviam chegado ao fim quatro
anos antes). Por ela, o Xingu receberia seis barragens para gerar 20 mil megawatts de
energia, à custa de inundar uma área de 18 mil quilômetros quadrados, quatro vezes
e meia mais do que o maior lago artificial do país, o reservatório da hidrelétrica de
Sobradinho, no rio São Francisco.
Ao invés disso, uma única barragem, já no baixo curso do rio, um dos afluentes do
monumental Amazonas. E o reservatório seria reduzido a menos de 10% da previsão
inicial, ou 1.225 mil quilômetros quadrados. Na verdade, menos ainda: descontando-se a área que o próprio Xingu inunda durante metade do ano, seriam 516 km2, dos
quais tão somente 228 km2 seriam no próprio leito do rio (os outros 134 km2 resultariam do alagamento ao longo dos canais, que desviarão a água do seu curso natural
para a imensa casa de força da usina, 40 quilômetros abaixo.).
Cada megawatt gerado por Belo Monte inundaria apenas 0,005 km2 contra
uma média nacional de 0,49 km2. Para poupar a floresta, a cidade de Altamira e
as terras indígenas de alagamento, a usina teria o menor de todos os reservatórios
possíveis.
Em consequência, não poderá armazenar água no inverno para usar no verão,
quando as vazões do Xingu chegam a diminuir 30 vezes. O regime de funcionamento
da hidrelétrica será de água corrente, a “fio d’água”, como dizem os “barrageiros”.
É o que explica a grande diferença entre o que ela pode gerar no máximo, usando
suas 20 máquinas (11.233 megawatts), e sua potência média, de 4.571 MW, descontando os meses em que ficará parada ou produzindo pouco. A relação é inferior
ao ponto de viabilidade desse tipo de empreendimento, que é de 50%. Daí tantas
dúvidas sobre a rentabilidade do negócio.
A perda de faturamento por causa dessa opção (a alternativa seria formar o maior
lago possível para elevar a potência firme, garantindo o lucro do negócio) será de 300
milhões de reais ao ano, 50% a mais do que a compensação que será paga anualmente
aos municípios afetados pela obra, o maior valor de indenização de uma obra pública
na Amazônia.
Aparentemente, estaria atendida a principal crítica aos empreendimentos hidrelétricos na Amazônia, que provocam grandes inundações, como em Tucuruí, no Tocantins, também no Pará (3.100 km2) e Balbina, no Uatumã, no Amazonas (2.430 km2).
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A Amazônia em Questão
Minimizar o impacto ambiental no Xingu foi tão prioritário que pode ter comprometido a viabilidade econômica do projeto. Por que, então, a obra continua sob tiroteio
tão intenso, dentro e fora do Brasil?
A hidrelétrica sem saída
A Câmara dos Deputados convocou para Brasília, no primeiro semestre de 2010,
uma audiência pública para debater Belo Monte. Todos os convidados compareceram, exceto os que não podiam faltar: o governo federal, responsável pela concessão
da obra, e o consórcio Norte Engenharia, vencedor da concorrência para construir a
usina. Sem as duas presenças, o encontro se frustrou.
Tem sido esta a regra. Sempre que julgam desfavorável a situação, os responsáveis
pelo empreendimento evitam o confronto e escapam à controvérsia. A história do
projeto de aproveitamento energético da bacia do Xingu, que tem um dos maiores
potenciais de geração do país, tem sido de desvios e zigue-zagues.
As pedras de maior volume no caminho da execução do projeto têm sido deixadas pelo Ministério Público Federal do Pará (MPF). Em dez anos, o MPF ajuizou
dez ações contra a realização da obra. Ganhou a maioria das iniciativas em primeira
instância, mas perdeu todos os recursos no Tribunal Regional Federal. O juiz federal
singular se sensibiliza pelos argumentos apresentados, mas o relator na instância superior e o colegiado revogam as decisões proferidas.
Depois de tantos entreveros judiciais, a Norte Energia representou contra o mais
destacado dos seus adversários dentre os procuradores da república baseados em Belém, Felício Pontes. O Conselho Nacional do Ministério Público está apreciando a
alegação da empresa, de que o procurador não tem isenção de ânimo para continuar
a defender o interesse público no contencioso.
As provas? O que ele escreve contra Belo Monte no seu blog (hereticamente acoplado ao portal do MPF, segundo o entendimento dos denunciantes, que têm, contudo, seu próprio blog no portal do governo) e o que declara à imprensa, sempre disposta a ouvi-lo e lhe reservar bons espaços. A Norte Energia quer convencer os pares do
procurador que ele se tornou obsessivo no combate a Belo Monte, não importando
os motivos que possa vir a apresentar.
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A empresa tem o direito de suscitar a suspeição de Felício Pontes por parcialidade,
tendenciosidade ou interesse pessoal na causa. Mesmo que ele seja afastado, porém, é
certo que seu substituto, do quadro do MPF no Pará, dará continuidade às demandas
contra o projeto. Ele só sairá das pranchetas para as margens do Xingu se os recursos
dos seus executores continuarem a ser acolhidos pelos tribunais.
O Ibama acabou liberando a licença de instalação para que, finalmente, o rio
Xingu comece a ser desviado do seu curso natural pela primeira grande intervenção
humana no seu leito: a ensecadeira de terra. Não significará, entretanto, que a opinião
pública estará convencida do acerto do projeto.
Depois de 35 anos de estudos e levantamentos de campo, pode-se perceber que a
trajetória irregular de Belo Monte se deve tanto à resistência dos seus críticos e adversários quanto às inconsistências e inseguranças dos idealizadores da obra.
Quando não puderam evitar o debate público, imposto pela própria legislação ambiental, através das necessárias audiências públicas, que antecedem o licenciamento,
eles recuaram em certos momentos e modificaram o desenho da hidrelétrica. Deram
motivos, portanto, para o ceticismo, a desconfiança, a dúvida e a própria condenação
ao projeto.
Na posição oposta, os “barragistas” e seus aliados desacreditam os adversários,
apontam-nos como quintas colunas, defensores de interesses – ocultos e ilegítimos
– de alienígenas, em especial de concorrentes do Brasil. Seriam também “ecoloucos”
ou, quando nada, poetas, visionários, pessoas completamente desligadas da realidade,
desconhecedoras do que é construir uma grande usina de energia num lugar hostil,
como a Amazônia. Daí o tom arrogante e autossuficiente dos engenheiros, como na
representação feita contra o procurador federal paraense.
Abstraia-se toda a questão ecológica e etnológica. Admita-se, em princípio, que
os “barragistas” têm razão: o represamento do Xingu não irá causar grandes danos
ambientais (todos passíveis de prevenção ou reparação) e que o prejuízo às comunidades indígenas atingidas será mínimo, assim como à população de Altamira, a maior
cidade da região, situada às proximidades das barragens. O balanço dos prós e contras
de mais esse aproveitamento hidrelétrico seria, assim, superavitário. Logo, ele tem que
ser executado. Para o bem de todos e felicidade geral da nação.
Mas funcionará mesmo? Esta pergunta, elementar, continua sem resposta. Na
concepção original, Belo Monte, para ser viável, teria que contar com outros reserva49 |
A Amazônia em Questão
tórios a montante do rio. As três barragens previstas, anteriormente, inundando uma
área cinco vezes superior à de Tucuruí, responsável pelo segundo maior lago artificial
do Brasil, acumulariam água no inverno para suprir a usina durante o verão amazônico, quando a estiagem reduz o volume do Xingu em ate 30 vezes.
Sem essas bacias de acumulação rio acima e com a redução do lago da própria
usina, Belo Monte não terá água suficiente para funcionar durante metade do ano.
Por isso, sua potência firme (a energia disponível em média) será inferior a 40% da
capacidade nominal, abaixo do ponto de viabilidade.
Para que o lago formado pela barragem de Belo Monte fosse o menor possível, foi
necessário formar reservatórios nos dois canais artificiais de desvio de água para a casa
de força, onde estarão as enormes turbinas de energia, 40 quilômetros rio abaixo, as
maiores do mundo. A formação desses canais exigiria mais concreto do que o usado
no Canal do Panamá, uma das maiores obras da engenharia mundial. Tais muralhas
garantirão que não haverá vazamentos? É mais uma dúvida.
Uma – dentre tantas – que fizeram o orçamento de Belo Monte subir tanto , para
R$ 30 bilhões, que seus construtores diziam ser um absurdo. E sem contar mais uns
15 bilhões (ou 20?) na enorme linha de transmissão de energia, de três mil quilômetros, que não está incluída no cômputo da Norte Energia.
Fica, pois, a pergunta inicial: Belo Monte é viável mesmo?
Nossa energia: para os outros
Se a hidrelétrica de Belo Monte, a maior obra de infraestrutura em andamento no
Brasil, é inviável, como apregoam os seus críticos, por que o governo a aprovou, há
empresas privadas interessadas nela e tantos técnicos – e mesmo cientistas – se manifestam em defesa do projeto?
A resposta a essa pergunta fundamental serve de prova dos nove da operação. Muitos reagem com aprovação imediata à iniciativa. Afinal, ela não passou pelo teste dos
engenheiros e matemáticos? Logo, tem consistência.
Tudo que é sólido, porém, se dissolve no ar, advertiu o filósofo da crítica radical –
aquela que pega os fatos por sua raiz. Belo Monte pode se enquadrar nesse truísmo.
Mas para que a sua equação funcione, é preciso que a incógnita permaneça irrevelada
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lúcio flávio pinto
até o fim, que corresponde ao fato consumado, ao leite derramado, à morte de Inês
no poema formador da língua, agora em processo de deformação.
Essa incógnita é o governo. Belo Monte devia fazer parte de uma nova família, criada pela política de privatização do estado dos social-democratas tucanos e
mantida, com atualizações e adequações, pelos antigos jovens turcos petistas – hoje
mais para nouveaux riches, quando não arrivistas. O Estado recuaria para a função
reguladora e as empresas particulares assumiriam a vanguarda do processo econômico. Colocariam no jogo o que é sua razão de ser (e, por suposto, sua supremacia): o
capital de risco.
Mas metade das ações da Norte Engenharia, que já começou a construir a usina
de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, é da Chesf, a empresa federal de energia do
Nordeste. Estatais e fundos de previdência são também os maiores acionistas das
empresas que constroem as hidrelétricas de Jirau e Santo Antonio, no rio Madeira,
em Rondônia.
Ao invés de assumirem o comando das obras, as empresas privadas retroagiram à
sua função original, de empreiteiras, conforme o velho modelo capitalista, refinado
durante o regime militar (1964/85). Algumas delas (nem sempre as principais) mantiveram participação no capital das concessionárias de energia para atuar com mais
desenvoltura no futuro, quando o investimento estiver amortizado e for o momento
de faturar tarifas das mais caras do planeta.
Não podia ser de outra forma? Na ótica delas, não. Em dez anos, o orçamento de
Belo Monte saltou de 10,4 bilhões para 31,2 bilhões de reais, na última atualização.
Quanto será o valor de chegada? No caso da hidrelétrica de Tucuruí, que deu a partida
com 2,1 bilhões de dólares, o custo final ultrapassou US$ 10 bilhões. No orçamento
de Belo Monte não está incluída a linha de transmissão (que, na melhor das hipóteses,
sairá por mais de dois terços da obra de geração) e alguns outros itens milionários.
Uma das causas dessa triplicação entre 2001/11 é a complexidade do projeto de
engenharia. Originalmente, o projeto seguiria o esquema convencional. Como alagaria área enorme e precisaria de mais de um barramento rio acima, provocou grande
reação na opinião pública. Para não criar grandes reservatórios, o desenho foi modificado.
O tamanho da área de inundação diminuiu significativamente, mas teve efeitos
adversos. Sem retenção de água, a usina passará a funcionar com água corrente. Como
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A Amazônia em Questão
no verão a vazão do rio é mínima, a hidrelétrica ficará paralisada durante três ou quatro meses. Com isso, a média de energia que poderá gerar estará abaixo de 40% da sua
capacidade nominal. Isto significa kw mais caro. Muito mais.
Além disso, um complicado sistema de diques terá que ser construído para manter
a vazão lateral do rio até a casa de força, onde estarão as 20 enormes turbinas. Diante
da complexidade do desafio, ninguém poderá garantir que não haverá vazamento.
Será mais um fator de perda de energia a complicar a viabilização do negócio.
Para que o projeto não fosse à ruína, além de assumir o controle acionário da
empresa responsável pela obra, o governo garantirá o financiamento. O BNDES
se comprometeu a entrar com 80% do custo de Belo Monte. Como é uma despesa
gigantesca, o dinheiro sairá do caixa do tesouro nacional, fonte de R$ 200 bilhões
incorporados ao banco nos últimos dois anos (recorde em todos os tempos). Se o
equilíbrio financeiro ficar ameaçado ou for comprometido, sabe-se de onde virá a
salvação.
Trata-se mesmo de uma tarefa salvífica, missionária. É o que explica o desdém
de todos os participantes do projeto pelas exigências prévias para o licenciamento
ambiental. A licença foi dada mesmo com ao óbvio descumprimento das cláusulas
acertadas com o Ministério Público Federal. A presunção é de que o governo, grande
ausente na área, agitada pela iminência da grande obra, surgirá de súbito para fazer o
que não foi feito. A fundo perdido.
Sua atitude não será a socialização dos prejuízos e privatização dos lucros, tão
reprovável quanto contumaz? Talvez seja, mas para o governo o que importa é a meta
traçada no novo Plano Decenal, apresentado em 2011: extrair da Amazônia, em 2020,
23% das necessidades brasileiras de energia. A participação atual da região é de 10%.
Se acontecer esse incremento, de 265%, com a oferta de mais 28 mil megawatts
extraídos dos rios amazônicos, as participações das demais regiões cairão: do Sudeste/
Centro-Oeste, de 60% para 46,6%; e do Sul, de 16% para 14% (apenas o Nordeste
terá um ligeiro aumento, de 14% para 17%).
A Amazônia se tornará, de vez, na grande província energética brasileira. Cederá a
força motriz da sua bacia hidrográfica, a maior do mundo, para ser transformada em
produtos acabados a milhares de quilômetros de distância. Não era exatamente esse
o paraíso vislumbrado por Euclides da Cunha um século atrás. Mas seu vaticínio se
realizará: será um paraíso perdido. Pobre Amazônia rica.
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A voz do dono: a que manda
O estado do Pará tem a quarta maior hidrelétrica do mundo, que também pode
ser considerada a maior inteiramente nacional porque o Brasil só é dono de metade da
energia produzida pela usina de Itaipu, no rio Paraná, a maior do mundo. De 14 mil
megawatts de Itaipu, metade é da cota do Paraguai. Já os 8,4 mil MW de Tucuruí, no
rio Tocantins, são integralmente brasileiros.
Mesmo assim, a energia que fica no Pará é bem menor do que a que vai para fora
dos seus limites. A quantidade retida internamente não é suficiente para atender toda
a população paraense, de mais de sete milhões de habitantes. Mais de 20% deles continuam supridos por velhas usinas a óleo. Alguns municípios só dispõem de energia
por períodos do dia.
O Pará é a terceira unidade da federação que mais exporta energia bruta, depois
do Paraná, que tem Itaipu, e de Minas Gerais, que abriga a maior quantidade de barragens, além de ser o 5º em geração do país. A região metropolitana de Belém, que
é a capital do Pará e o maior adensamento humano da Amazônia, com 2 milhões de
habitantes, fica a apenas 350 quilômetros da hidrelétrica de Tucuruí, mas sofre milhares de pequenas interrupções de energia a cada ano.
As ocorrências de blecautes se amiúdam e se multiplicam na cidade, menos por
culpa da transmissão, a partir da grande usina, e mais em função das deficiências da
linha urbana de distribuição, sob a responsabilidade de uma concessionária particular
que comprou a antiga empresa estadual de energia.
Mas a maior de todas as interrupções aconteceu na linha de transmissão, operada
pela Eletronorte, subsidiária federal da Eletrobras, numa sexta-feira (o consagrado dia
nacional da cerveja), ao meio-dia, em 8 de março de 1991. O blecaute durou doze
horas e provocou enormes transtornos à população.
No dia seguinte a Eletronorte divulgou uma nota oficial atribuindo o acidente à
queda de um raio sobre uma das dezenas de torres metálicas da linha (a que atravessa
o rio Guamá, em frente a Belém, é a mais alta do mundo, com 100 metros de comprimento).
O que a Eletronorte não disse é que o blecaute provocou o maior acidente que
uma indústria de alumínio já sofreu em todos os tempos, no mundo inteiro, pela
falta de energia. A vítima foi a Albras, a 8ª maior fábrica de alumínio do mundo (e a
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A Amazônia em Questão
maior do continente), instalada em Barcarena, a menos de 50 quilômetros de Belém,
ao custo de 1,3 bilhão de dólares.
A Albras é também a maior consumidora individual de energia do Brasil: absorve,
sozinha, 1,5% de toda geração nacional. O alumínio é o bem mais eletrointensivo
que o homem fabrica. A fábrica, hoje sob o controle da norueguesa Norsk Hydro, em
sociedade com um consórcio japonês, utiliza mais energia do que toda a grande Belém.
Para a opinião pública e para a história oficial, ficou a explicação sobre o raio (foi a
primeira utilização desse argumento, que se repetiria em episódios semelhantes), mas
a verdade era outra. O acidente foi causado pelo rompimento de uma peça metálica
de sustentação dos cabos, A peça teria que ser em ferro forjado, mais resistente e de
maior duração, mas foi fabricada com ferro fundido, de menor vida útil. A linha possuía três mil dessas peças. Por que houve a troca? Nunca ninguém soube.
Mas na bolsa de metais de Londres logo ficou certo que o acidente era grave e que
a fábrica, responsável por 15% do alumínio primário consumido pelo Japão, maior
comprador mundial, que fica a 20 mil quilômetros de distância do seu fornecedor,
iria demorar a voltar a funcionar.
Por isso, houve mais compras no mercado spot (à vista), que tem preço maior, e
manobras especulativas. De fato, a Albras perdeu 40 mil toneladas de alumínio (10%
da sua produção anual) e seu prejuízo ultrapassou em 20 milhões de dólares a cobertura do caríssimo seguro.
A história de quase dez anos atrás deve ter voltado à memória de muitas pessoas
quando nova interrupção de energia aconteceu, em 2010. Para alívio geral, o apagão
desta vez foi de “apenas” 40 minutos. A Eletronorte não deu uma explicação oficial
para o fato. Soube-se apenas que o problema foi, mais uma vez, na subestação de Vila
do Conde, a mais importante do Pará.
De súbito, 2,5 milhões de pessoas ficaram sem energia. Nenhuma novidade para
a região da grande Belém e circunvizinhanças, vítimas quase diárias de curtas interrupções no fornecimento de energia, recordistas nacionais nesse triste fundamento,
como se diz no esporte.
Mas quando o tempo se alongou e foi divulgada a informação sobre a amplitude
do blecaute, as preocupações cresceram. Seria uma nova sexta-feira negra? Não, desta
vez a perda de produção foi pequena, de 50 toneladas. E os paraenses se safaram como
puderam.
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A arte da sobrevivência é sua prática rotineira. Uma vez restabelecida a energia,
ninguém mais voltou a se preocupar com o assunto. Nem houve cobrança pública de
explicações. A sociedade não tem consciência de que sua vida paroquial pode ter elos
mundiais.
Este exemplo é sugestivo do descompasso entre o fato e o seu entendimento. A
Amazônia vive um momento histórico decisivo, mas o personagem do seu dia a dia
não sabe disso. Poucos têm ideia dos elos e conexões mais amplos dos acontecimentos
singulares do cotidiano. A esmagadora maioria acredita que eles começam e terminam no próprio local.
Assim, o acidente de 1991 foi para os anais da história mundial do alumínio,
depois de haver provocado reações imediatas na bolsa especializada de Londres, mas
ainda não faz parte da história do Pará, da Amazônia ou do Brasil. Quando muito,
está confinado ao noticiário da imprensa, em relação ao qual os acadêmicos, sacerdotes do saber consagrado, viram o nariz. Só aceitam o conhecimento normalizado
pelas regras formais da ciência. São escravos da recorrência. Não querem arriscar seus
nomes com a poeira da história, que não sabem se irá cristalizar-se. Melhor aguardar
momento menos ambíguo.
Claro que esta não é a causa, mas é fator que contribui bastante para o estado
de inconsciência sobre a história em processo, aquela dinâmica dos acontecimentos
que ainda não foi carimbada com o atestado da verdade científica. O ator do drama
amazônico está como cego em tiroteio. Não sabe quem atira e para onde vão as balas
disparadas. Mandam os instintos que se jogue ao chão para se salvar. Entender o que
sucede, só depois. Se depois houver.
Se Londres foi um mirante melhor para entender o que aconteceu com a Albras
em 1991, a perspectiva externa é sempre uma posição privilegiada para acompanhar
o que ocorre na Amazônia. Mesmo porque as decisões que desencadeiam os fatos
costumam também ser tomadas a partir de fora da região – e também do país.
Prova disso? Desde que o ciclo dos “grandes projetos” voltou a atrair a atenção do
mundo para a “fronteira” amazônica, com a exploração da rica jazida de manganês
do Amapá pela multinacional americana Bethlehem Steel, nos anos 1950, a condicionante internacional tem sido mais forte do que a nacional, regional, estadual ou local.
Os governos mudaram desde então e em 1964 houve mais um golpe de estado.
Mas quando o regime militar chegou ao fim, em 1985, não houve qualquer mudança
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A Amazônia em Questão
em relação à Amazônia. O primeiro ato de impacto do presidente José Sarney, que
interrompeu a sucessão de generais no Palácio do Planalto, foi criar o Programa Calha
Norte, mais um filho da doutrina de segurança nacional aplicada à região.
Também não houve alteração significativa na passagem de bastão do tucano Fernando Henrique Cardoso ao petista Luiz Inácio Lula da Silva, exceto que o presidente-operário deu uma guinada mais forte na inclinação pela tecnoburocracia dos
militares. A presença de Delfim Neto como conselheiro econômico de Lula não é
mera coincidência. E Dilma Rousseff, a mãe do PAC (versão petista dos projetos de
impacto dos militares), como sucessora de Lula, menos ainda.
Quem se der ao trabalho de comparar as curvas de desmatamento, desde que elas
puderam ser produzidas. Através do uso de imagens de satélite, com as curvas econômicas, sobretudo as do comércio exterior, poderá aposentar certas ideias contrárias à
internacionalização, vista como ameaça, e tratá-la como realidade concreta, embora
não imutável. Talvez venha a ser melhor para o Brasil e a Amazônia. De qualquer
maneira, será melhor do que simplesmente achar que, com mais esta eleição geral, a
Amazônia mudará de rumos. Infelizmente, não.
Lá se vai nosso alumínio
O novo milênio não esperou pelo lento movimento do calendário: começou em
1973, com o primeiro choque do petróleo, que multiplicou por seis o custo da energia no mundo. Seus efeitos aproximaram duas regiões distantes e distintas, até então
com poucos contatos: a Amazônia e o Japão.
A Amazônia tinha muita energia, mas essa riqueza ainda estava inexplorada. O Japão exaurira tanto suas próprias fontes para poder crescer muito que se veria obrigado
a suprimir do seu território as atividades altamente consumidoras de energia.
A maior delas era – e continua a ser – o alumínio. O Japão produzia todo metal
que consumia (1,2 milhão de toneladas), a partir de 41 fábricas. Todas seriam fechadas. A maior delas seria aberta do outro lado do planeta, com capacidade para
atender a 15% de todas as necessidades japonesas. Ela produziria apenas lingote,
a forma industrial mais próxima da energia bruta (30% do seu conteúdo são pura
energia).
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Se houvesse tecnologia adequada e ela fosse viável economicamente, o Japão construiria uma linha de transmissão sobre o mar, por 20 mil quilômetros, para receber
energia em seu território e desdobrá-la em toda a série de manufaturas de alumínio,
da chapa para a construção civil ao componente de máquinas sofisticadas, como o
computador.
Há um quarto de século a Albras, a oitava maior fábrica de alumínio do mundo,
manda metal primário para o Japão, a um preço inferior ao custo que o produto teria
se fosse produzido em território japonês.
Graças a essa engenharia bem sucedida, o Japão pôde acabar com seu parque industrial sem ficar com problema de suprimento – e ainda teve lucro. Não só por
receber um metal mais barato como porque toda a agregação de valor ocorreu no
próprio país.
Não é à toa que o local onde ocorre o beneficiamento se desenvolve muito mais
do que de onde apenas saem matérias primas e insumos básicos. Tem sido a regra
das relações internacionais. Desde que o primeiro lingote foi fundido em Barcarena,
a 50 quilômetros de Belém, o Pará sonha em ir além da matéria prima e do produto
semielaborado.
Durante 25 anos teve que se contentar com sua função colonial porque os dois
sócios na Albras, os japoneses e a antiga Companhia Vale do Rio Doce, alegavam
que ir além do lingote não era possível. No futuro, talvez. Agora, esse futuro acabou.
Em 2010, a Vale decidiu sair do setor de alumínio, vendendo sua parte – por um
valor global de quase US$ 5 bilhões, sendo US$ 1,1 bilhão em dinheiro vivo e o restante em composições – para uma empresa muito menor do que ela, a norueguesa
Norsk Hydro. A Hydro, que se estabeleceu na Amazônia nos anos 90, em posições
minoritárias em bauxita e alumina, atuava apenas na ponta da linha da transformação do metal na Noruega. Agora é uma indústria integrada, desde o minério.
A ex-estatal transferiu a propriedade não só da Albras, mas também da Alunorte,
a maior fábrica de alumina do mundo, e uma das maiores minas de bauxita, em Paragominas, tudo no Pará , que é o terceiro maior produtor mundial do minério.
Ao invés de ir para frente, chegando a laminados ou perfilados, a Vale andou para
trás. Desnacionalizou um dos maiores polos integrados de um dos metais de maior
importância na economia internacional, agora nipo-norueguês. O que sobra das mul57 |
A Amazônia em Questão
tinacionais, que agora dominam o setor, é um cartel nacional, do grupo paulista
Votorantim, da família Ermírio de Moraes.
O mais surpreendente é que um fato desse porte mereceu apenas rápidos registros
na grande imprensa nacional e quase nenhuma repercussão junto à opinião pública.
Não é só a dimensão do negócio que deveria chamar a atenção de todos.
As duas fábricas vendidas tinham, no momento da venda, faturamento bruto de
4,2 bilhões de reais (o equivalente a quase metade de toda a receita do Pará) e um
lucro de R$ 385 milhões. Seus ativos somavam R$ 9,4 bilhões, o patrimônio líquido
era de R$ 6,5 bilhões e o capital social alcançara R$ 4,1 bilhões. Números que não
incluem a jazida de bauxita de Paragominas. Com produção de quase 10 milhões de
toneladas (que pode durar um século), a mina proporciona receita superior a R$ 400
milhões a cada ano.
Tempos atrás, um processo de desnacionalização tão súbito e profundo quanto
este provocaria acesa polêmica. O silêncio atual se explica pela globalização da economia, que atravessou e eliminou as barreiras nacionais? Em parte, talvez. Mas só em
pequena parte.
Uma razão maior pode estar na convicção de que a Albras nunca esteve realmente
sob o controle da empresa nacional, embora a antiga CVRD detivesse a maioria das
ações nas duas empresas. A inspiração do projeto foi japonesa, impulsionada pela
crise da energia de 1973. O empreendimento era de alto risco na época e por isso foi
bancado pelos dois governos, como uma imposição dos entendimentos mais amplos
que estabeleceram.
Um dos seus itens mais importantes era a viabilização da exploração das jazidas de
minério de ferro de Carajás, as melhores do mundo. Também dominadas, a princípio,
pelo Japão, que deslocou a hegemonia americana no setor. Agora, sob o controle da
China, que compra 60% das 100 milhões de toneladas anuais.
A razão oficial para a decisão da Vale de alienar o polo de alumínio do Pará é a
falta de energia para a expansão da Albras, há vários anos sem conseguir ampliar sua
produção, que estancou em 460 mil toneladas, por esse motivo. Mas aparentemente
a empresa estava procurando uma solução.
Primeiro conseguiu uma polêmica licença ambiental para uma grande usina térmica a carvão mineral, de 600 megawatts, apesar do problema da poluição inerente
a essa alternativa energética. Depois, participou de um dos consórcios que se apre| 58
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sentou ao leilão da usina de Belo Monte, no rio Xingu, mas que foi vencido. Mesmo
assim, a Vale manifestou interesse em integrar o grupo vencedor como compradora.
Todas essas iniciativas se anularam pela transferência das duas fábricas.
O negócio pode vir a ser apresentado como exemplo do que continuará a acontecer se os grupos ambientalistas impedirem a construção de grandes hidrelétricas nos
rios amazônicos.
Os projetos de maior porte, na região ou fora dela, ficarão com seus planos de implantação e expansão comprometidos ou cancelados. Seria um paradoxo intolerável
diante do vasto potencial de energia da região. E de uma fonte considerada limpa,
como a matriz hidrelétrica.
A ex-estatal pode ganhar da perspectiva dos rendimentos financeiros, como associada da Norsk em amplitude internacional, já que ficou com 22% do capital da multinacional norueguesa. Mas perdeu a condição de player, como são tratados aqueles
que realmente contam, que têm poder decisório no jogo econômico.
O Pará, como o principal estado do polo de alumínio no país, passa a ser dominado inteiramente pelos cartéis mundiais. É a consolidação definitiva da regressão à
condição de colônia mineral e de semielaborados.
Ao contrário do que fez o governo norueguês nesta transação (como já fizera o
governo do Canadá numa situação inversa, quatro anos atrás, quando a Vale comprou
a canadense Inco), o governo brasileiro não se manifestou sobre a questão nem nela
atuou. Passou batido. Afinal, para ele, a Amazônia talvez seja como Marte: fica muito
distante.
A Amazônia que morre
Fui um crítico constante da hidrelétrica de Tucuruí durante sua construção, até
1984, ano em que a usina instalada sobre o leito do rio Tocantins, no Pará, foi inaugurada, como a quarta maior do mundo. Mas não era um crítico à distância: estava
sempre na obra. E, por incrível que pareça, conversando com os “barrageiros”, que
me atendiam.
Certa vez, um deles, para me demonstrar que todos ganhariam com a hidrelétrica,
me levou para percorrer as novas cidades. Elas estavam sendo preparadas para receber
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A Amazônia em Questão
a população que seria remanejada da beira do rio para a formação do reservatório. O
futuro lago artificial, o segundo maior do Brasil, alagaria uma área de três mil quilômetros quadrados (mais de duas vezes o tamanho de Belém, a capital do estado, com
seus 1,2 milhão de habitantes).
O engenheiro tinha todos os motivos – mas os seus motivos – para achar que os
ribeirinhos viveriam muito melhor nas novas cidades. Lá eles teriam casas de alvenaria, ruas pavimentadas, água, luz e todos os serviços básicos, que não existiam na
margem do rio. Mas eu não tinha dúvida de que os remanejados não iam partilhar a
convicção do técnico.
É claro que eles estariam em melhores condições materiais num núcleo urbano
planejado. Mas lhes faltaria no novo domicílio algo que todas essas vantagens não
seriam capazes de compensar: o próprio rio.
O Tocantins era sua rua, sua fonte de água, de alimento, de trabalho, de vida.
Depois de tantas gerações se sucedendo na margem do vasto curso d’água, tirar dele
as vantagens, minimizando os prejuízos eventuais, era o grande patrimônio dessa população. Um aprendizado de séculos. Conhecimento experimental, empírico, sofrido,
valioso, único.
Subitamente, são remanejados rigorosamente manu militari (o primeiro presidente da Eletronorte, subsidiária da Eletrobras responsável pela hidrelétrica, foi um
coronel-engenheiro do Exército, Raul Garcia Llano). O legado de séculos no trato
com o ciclo das águas, subindo e descendo por turnos semestrais, se tornou inútil na
terra firme, longe do rio, em ambiente pouco conhecido.
Pelos critérios quantitativos, o engenheiro podia provar matematicamente que a
mudança foi positiva. Por essa régua, também é superavitário o balanço da transformação que ocorreu na Amazônia no último meio século, principalmente em função
de “grandes projetos”, como o de Tucuruí, que representou investimento superior a
10 bilhões de dólares.
Mas o triunfalismo da história oficial se vale da ausência de um índice capaz de
medir e traduzir numericamente a felicidade. Se houvesse esse indicador de satisfação,
ele revelaria a tristeza do homem obrigado a trocar o rio à sua porta pela casa de alvenaria no meio da mata – que, aliás, desapareceu.
O homem da Amazônia é detalhe ou enfeite no “modelo” (que nada tem de modelar) de integração forçada da região ao país e ao mundo. Modelo definido a partir de
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fora para fazer a vontade do migrante, seja ele pessoa física ou empresa, João da Silva
ou Vale do Rio Doce, nascido no país ou vindo do exterior (quanto mais distante,
mais poderoso).
Para a “modernização” compulsória pouco importa que o nativo esteja ou não
feliz. Seu mundo está condenado a desaparecer. Tudo que é considerado primitivo,
atrasado e isolado será progressivamente esmagado pela máquina que produz mercadoria, à medida que ela vai avançando sobre as novas áreas. Seu rótulo é a única fonte
válida de valor, do que interessa ao mercado. O mais é descartável, inútil.
São Félix do Xingu é uma dessas fronteiras em brutal mutação. Conheci o município em 1976. Fiquei hospedado numa pensão na cidade, que não tinha hotel. Dividia
o quarto com três pessoas. Todas usavam redes. Um dos homens, sem se mexer, cuspia
para o alto durante a noite. Eu acordava enojado pelo barulho.
Mas que jeito? Não havia para onde ir na cidade. Melhorou quando fizemos uma
longa excursão de “voadeira” (designação local para lancha) pelo rio Fresco, até suas
nascentes, na divisa do Pará com Mato Grosso. Foi uma das minhas melhores viagens.
O lugar era pouco menos do que um paraíso.
Mas quem o percorrer, hoje, não verá mais esse nirvana. O rio foi contaminado
pelo mercúrio dos garimpos de ouro. Os índios Kayapó que moram às suas margens,
no auge da exploração, tiveram que substituir o mergulho no rio pelo banho de chuveiro para evitar a contaminação.
Voltei a Belém ainda mais convicto da minha posição, contrária à continuação da
estrada que ligaria Xinguara a São Félix. Ela levaria o caos do Araguaia/Tocantins ao
Xingu, impedindo uma forma mais inteligente de uso da terra.
Graças ao debate que se suscitou, as obras ficaram paradas por algum tempo. Mas
logo as máquinas voltaram à ativa e a estrada foi rasgada. A irracionalidade, que tanto
mal causou ao Araguaia/Tocantins, fez pousada no Xingu. Sua principal atividade econômica, a pecuária, era impensável três décadas antes. Parece que andamos para trás.
No auge do verão de 2010, em agosto, 30% dos quase 65 mil focos de calor
registrados pelo satélite do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, de São
Paulo), estavam localizados em São Félix. Quase 16 mil hectares de floresta densa foram postos abaixo e em seu lugar plantado capim para os bois pastarem – os animais
irracionais e seus donos, a eles equivalentes. Só um ser irracional pode ainda achar que
trocar floresta por pastagens é lucrativo ou mesmo natural.
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A Amazônia em Questão
As imagens do satélite revelaram que de agosto de 2009 a agosto de 2010 foram
destruídos 16 mil hectares de florestas primárias em São Félix do Xingu, grande parte
delas substituídas por pastagens. Em 15 dias, entre 21 de outubro e 5 de novembro,
técnicos do Ibama constataram que 1,9 mil hectares de florestas nativas foram derrubados com a mesma finalidade. Os transgressores foram multados em 12,3 milhões
de reais.
Numa outra área, de 590 hectares, o crime ambiental caracterizado foi a queima
de lavouras e pastagens para a realização de novos plantios. Quase um quarto dos
fazendeiros estabelecidos na região toca fogo na mata que sobrevive ao desmatamento
ou nas roças e pastos degradados. A multa para esses casos foi de 66 milhões de reais.
Observa-se que a multa para a derrubada da floresta original foi de R$ 6,5 mil por
cada hectare desmatado. Para as lavouras ou pastagens queimadas, a sanção foi de R$
1,13 milhão. A razão, à vista do tal “modelo” de ocupação da Amazônia, é evidente:
pastos e lavouras são benfeitorias, com maior valor agregado. Já a floresta, gerada
através de processo natural, não tem incorporação de valor, que só é conferido pelo
homem, cuja presença substitui o domínio da natureza.
Por isso, a punição para quem a destrói é mais branda (admitindo-se que as multas
venham um dia a ser pagas, o que raramente acontece). Inversão total de valores, é
claro, mas de acordo com a irracionalidade que preside os atos humanos na última
grande fronteira da Terra. Apesar de todas as campanhas de conscientização e das
medidas de repressão e punição, ainda parece muito distante de ser alcançado um
objetivo primário, que instauraria a civilização humana na Amazônia: a abolição do
fogo como ferramenta para o trato da terra.
Esse conhecimento, universalizado no meio técnico, não consegue passar dos gabinetes e laboratórios para as práticas usuais. A distância entre o saber e o fazer se
tornou amazônica. Na Amazônia que interessa: a das quantidades.
A revolta no grande projeto
Duas das maiores obras em andamento no Brasil foram paralisadas no início de
2011. Se fossem localizadas no sul do país, a grande imprensa nacional certamente
teria dado o destaque compatível com a gravidade do acontecimento. Mas como os
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lúcio flávio pinto
fatos se deram em Rondônia, no extremo oeste, o noticiário foi pequeno e insatisfatório.
Quando concluídas, as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, terão absorvido em torno de 30 bilhões de reais, um custo equivalente ao da hidrelétrica
de Belo Monte, que, se for construída mesmo, será a segunda maior do mundo – ao
menos em capacidade nominal de geração de energia.
Como a usina do rio Xingu, as duas barragens do Madeira estão sendo levantadas
depois de provocarem extensos e apaixonados debates sobre a inconveniência de colocar duas estruturas de concreto sobre o leito do rio que mais contribui – em águas e
sedimentos – para o maior curso d’água do planeta, o Amazonas.
Três anos depois de iniciadas, as duas obras seguiam um andamento acidentado
e conflituoso. Desde 2009 os seus operários faziam manifestações de protesto e reclamavam dos salários, dos maus tratos e das condições de trabalho. A tensão veio
num crescendo. Mas ao assumir sua forma mais grave, no dia 13 de março de 2011,
surpreendeu a todos por sua extrema violência.
Em dois dias de depredações, o canteiro de obras de Jirau foi quase todo destruído
e a os empregados desmobilizados. Por cautela, os responsáveis por Santo Antônio,
rio abaixo, decidiram também parar. Quase 30 mil pessoas empregadas nas duas obras
tiveram que suspender suas atividades.
Incidentes têm sido uma constante nos “grandes projetos”. Houve quebra-quebra
em Tucuruí, no Jari, no Trombetas e em Carajás. Mas nada na escala do que aconteceu no Madeira. Nem com as características que ali elas assumiram. Os operários
estavam insatisfeitos e até revoltados, mas a esmagadora maioria ficou fora dos atos de
destruição, principalmente através de incêndios provocados. Muitos ficaram apavorados com o que viram e preferiram voltar aos seus locais de origem.
Segundo os responsáveis pela segurança no canteiro, os líderes das hostilidades
adotaram uma tática original: atacavam e depois se escondiam no mato próximo. Os
representantes sindicais não aprovaram a virulência empregada. A polícia foi violenta,
mas não eficiente: não só não evitou a destruição como não chegou a identificar os
que a provocaram.
A decisão de desmobilizar a frente de trabalho também surpreendeu. Aparentemente, as autoridades e a empresa se sentiram impotentes para prevenir, remediar e
reassumir o controle da situação o mais rápido que fosse possível.
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A Amazônia em Questão
Um incidente tão grave, a ponto de paralisar por completo as obras, contrastou
com o ritmo intenso dos serviços até então. Os concessionários das duas usinas manifestaram a disposição de investir dois bilhões de reais além do orçamento definido para
aumentar a capacidade de geração de energia e antecipar os prazos do cronograma.
Jirau pretendia entrar em operação em setembro de 2015, mas o consórcio Energia Sustentável já trabalhava com a data de março de 2012. Em relação à estimativa
original, o custo atualizado quase dobrou, para R$ 29,4 bilhões.
As modificações feitas na concepção que foi aprovada pelo governo para a outorga
das duas concessões parecem determinadas por um fator fundamental: a subestimação dos custos. O consórcio que ganhou o leilão de Jirau se comprometeu com um
deságio de 35% em relação ao preço mínimo fixado. Terá que oferecer energia a 71
ou 78 reais por megawatt/hora.
No penúltimo leilão promovido pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), no final de dezembro de 2010, o preço do MWh ficou em R$ 67,31, o mais
baixo de todos os leilões de energia nova já realizados. E nem toda a energia ofertada
foi arrematada.
Surpreendentemente, porém, a concessão da hidrelétrica de Teles Pires, a primeira
das cinco usinas previstas para o rio Tapajós, também no Pará, foi obtida pelo consórcio Teles Pires Energia Eficiente por apenas R$ 58,35 o MWh, com deságio de 33%
em relação ao valor mínimo estabelecido.
Certamente a redução teve a ver com a disputa pela concessão, já que, no mesmo
dia, o vencedor da licitação para a usina de Santo Antônio, no rio Jari, ainda no Pará,
ficou no preço mínimo, de R$ 140 (por se tratar de uma hidrelétrica de baixa capacidade, de apenas 300 MW), sem qualquer deságio.
O que se pode deduzir de fatos desconexos ou aparentemente irracionais é que o
governo abriu uma frente de construção de hidrelétricas tão vasta e pesada na Amazônia que não consegue mais controlá-la. Às vezes sequer se pode discernir as informações exatas para uma avaliação segura e confiável do que ocorre.
Os consórcios que constroem as duas usinas do Madeira, porém, não desconhecem seus desafios e o significado do que estão fazendo. Não por acaso assinaram os
dois maiores contratos de seguro em vigência no Brasil, no valor de quase R$ 17
bilhões. Os seguros incluem as fases de construção e operacional, além dos lucros
cessantes por interrupção do negócio, como deve ser o caso dos incidentes em Jirau
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(calcula-se um prejuízo operacional diário de R$ 500 mil, fora os danos no canteiro).
Os custos bilionários das duas usinas não incluem os juros durante a construção,
as obras de transposição das duas barragens (pelo menos R$ 700 milhões) e as linhas
de transmissão de energia.
Para alguns desses itens é muito provável que o governo federal seja chamado a dar
mais uma “colaboração”, que poderá crescer em função de ocorrências como a depredação do canteiro de Jirau. O incidente se transformou em caso de segurança pública
e pode ser um rastilho de pólvora numa região sempre conturbada, cuja condição a
imigração intensiva nos últimos três anos agravou bastante.
O esquema societário dos consórcios que receberam as concessões é um fator de
indução a esse desdobramento. Uma empresa estrangeira ou uma empreiteira têm o
controle do capital, com mais de 50% das ações. Empresas estatais, do sistema Eletrobras, fazem grande aporte de capital, subsidiadas pelo BNDES (que, em função
das vultosas transferências feitas pelo tesouro nacional, se tornou maior do que o
Banco Mundial), e agentes financeiros internacionais completam a quadratura do
círculo.
Não surpreende que, enfrentando múltiplas reações, as obras das grandes hidrelétricas avancem como se quisessem resolver suas dificuldades com seus bulldozzers.
Dispostas a passar por cima de quem estiver na frente. Os acontecimentos de Rondônia, porém, indicam que a barreira a superar é bem maior do que se presume.
Entre o Xingu e o Madeira
A opinião pública brasileira parece estar sofrendo de certa disfunção intelectual.
Sua atenção é levada ao paroxismo antes que dela possa resultar uma ação. Mas quando o momento de intervir se apresenta, está desatenta, já perdeu o interesse, passou
para outro item da agenda. Não converte sua vontade em fato concreto. Passa pela
história sem dela se tornar personagem.
É o caso das hidrelétricas na Amazônia, um dos itens mais controversos da agenda
nacional. Os holofotes estão direcionados para a usina de Belo Monte, no rio Xingu,
no Pará. Ela é o alvo de intenso tiroteio dos críticos do modelo energético atual e de
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A Amazônia em Questão
arrogante silêncio da parte dos executores da obra. Sabendo de tudo e com a mão na
massa, não se sentem na obrigação de prestar contas a ninguém. Seguem em frente,
atropelando quem estiver no meio do caminho.
Enquanto todos os olhos são postos sobre Belo Monte, desde fevereiro de 2012 a
hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, está em funcionamento. Cinco das 46 turbinas entraram em operação entre fevereiro e julho. Até o final de
2012 a previsão é de que 12 máquinas estejam em linha.
A usina, de custo projetado para R$ 16 bilhões, poderá gerar então 859 mil megawatts, o suficiente, segundo a concessionária da usina, para atender o consumo de
40 milhões de pessoas. É nada menos do que 20% de toda a população brasileira. Sua
capacidade final será de 3,1 mil MW.
Por que esse silêncio acabrunhante? Porque a polêmica hidrelétrica já é fato consumado e o que interessa é combater essas obras enquanto elas ainda estão em andamento, para que não se materializem?
Uma vez tornadas prontas e acabadas, os que a vinham acompanhando partem
para outro front. O objetivo não são os resultados práticos. É a defesa da causa. Ou o
combate à causa antagônica.
Como, independentemente de quem vença os duelos intelectuais, a história real
da Amazônia prosseguirá, esse tipo de atitude, a pretexto de combater uma forma de
colonialismo (interno e externo), ao ser sua contrafação mecânica, se torna também
seu espelho, a outra face da mesma moeda.
A imprensa – como a mais autêntica porta-voz da sociedade – devia estar informando-a sistematicamente sobre o start da usina de Santo Antônio. O acompanhamento da partida da megabarragem de Tucuruí (a quarta maior do mundo), no rio
Tocantins, ainda sob o regime militar (embora em seus estertores), na metade dos
anos 1980, foi mais atento e fecundo do que das hidrelétricas de hoje, construídas
durante o mais duradouro período democrático no Brasil. Foi o que tentei mostrar no
meu livro Tucuruí, a barragem da ditadura (Edições Jornal Pessoal). Como se temia,
sem provocar a atenção necessária (ou pelo menos desejada).
Há muita coisa em jogo no avanço da motorização em Santo Antônio, que
começou a ser feita nove meses antes do previsto pelo cronograma original, apesar
de todos os incidentes e problemas de percurso de uma grande e controversa obra
como essa.
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O efeito mais imediato e próximo é sobre a outra hidrelétrica do mesmo porte e
no mesmo rio, a de Jirau, que tem um cronograma mais atrasado. Mas diz respeito às
futuras usinas na Amazônia.
As duas turbinas já em operação em Santo Antônio são do tipo bulbo. Essa tecnologia permite gerar energia em baixa queda, ao contrário das turbinas convencionais,
Francis e Kaplan, que precisam de um desnível de água suficientemente expressivo
para produzir volumes maiores de energia.
O efeito prático dessa tecnologia é não exigir barragens de alta queda, como a de
Tucuruí, que tem 70 metros de altura. Represas baixas significam menores áreas alagáveis. Nada como no Tocantins, cujo represamento provocou a formação do segundo
maior lago artificial do país, com área de três mil quilômetros quadrados. Sem esse
reservatório, a usina não poderia atingir sua produção máxima, de 8,2 mil MW, só
superada pela represa de Itaipu, no Paraná.
As duas barragens do Madeira estão aparelhadas com a maior quantidade de turbinas bulbo do mundo de mais alta potência, sem paralelo em qualquer outro país.
Essa originalidade lhes dá um caráter pioneiro perigoso e crítico, a demandar mais
profundas análises (será que a escolha foi certa, bem maturada, ou o primeiro incidente, pouco antes da entrada em atividade, foi indício de novos problemas no futuro?).
Tais turbinas funcionam a rio corrente, a “fio d’água”, conforme o jargão da engenharia. Não necessitam da estocagem de água de um grande reservatório para acionar
as monstruosas palhetas das turbinas convencionais, sobretudo no verão, quando há
muito menos água na região.
Esta seria a nova tendência na motorização de hidrelétricas na Amazônia. Mas não
é o caso de Belo Monte, com orçamento duas vezes maior do que Santo Antônio. A
usina do Xingu também quase não terá reservatório, mas suas turbinas não são as do
tipo bulbo. São mesmo as convencionais, que precisam de enormes volumes de água
em queda até às máquinas. Cada uma das 20 turbinas precisa de 500 mil litros por
segundo para atingir plena carga.
É evidente que há um descompasso entre o layout de Santo Antônio e Jirau e o de
Belo Monte. Enquanto o primeiro é coerente com o rio Madeira, o mais caudaloso
afluente do Amazonas, com um regime hidrológico mais estável (tem sempre um
bom volume de água o ano inteiro), o segundo está em paradoxo com as características do Xingu.
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A Amazônia em Questão
No inverno este rio também é um expressivo fornecedor de águas para o Amazonas. Mas no verão o seu fluxo pode se reduzir em até 30 vezes. Vira um córrego em
certos trechos na estiagem. Não haverá água nesse período para mexer as fantásticas
engrenagens da casa de força principal de Belo Monte.
Todas as máquinas ficarão paradas por dois ou três meses. Ou mais. Exceto as
oito turbinas bulbo da casa de força secundária, a montante do rio, e do vertedouro, 50 quilômetros acima da casa de força principal e às proximidades da cidade de
Altamira.
Essa bateria de pequenas turbinas permanecerá em atividade mesmo no verão.
Tem capacidade suficiente para atender toda a demanda daquela região da Transamazônica. Dispensa a energia do Sistema Integrado Nacional, mas também nada lhe
pode transmitir. Não faz parte do modelo das megausinas coloniais que o governo
continua a projetar para a Amazônia.
Por isso quase ninguém lhe dá a atenção devida. Certamente por ela ser minúscula
no conjunto grandioso, assim como é vista a Amazônia a partir da ótica do poder
nacional, acantonado em Brasília e com suas matrizes invisíveis em outras metrópoles,
dentro e fora do país.
Mil explicações e desculpas já foram apresentadas pelos executores dessa obra
monumental, mas uma coisa está acima de qualquer dúvida: combatida e vetada
num primeiro momento por causa dos enormes impactos ambientais que provocaria, Belo Monte foi toda redesenhada para ser uma hidrelétrica ecologicamente
aceitável.
O preço desse ajuste foi torná-la inviável economicamente. Para que a adequação
ao meio ambiente fosse completa, ela devia ter sido aparelhada com turbinas tipo
bulbo, como Santo Antônio e Jirau. Mas se fosse assim não produziria o tanto de
energia (11,3 mil MW) que se quer obter dela no auge da estação chuvosa para ser
despachado rumo ao sul. Escolheu-se uma solução mista. Para isso ignorando que o
Xingu não é o Madeira, muito pelo contrário.
O resultado: criou-se um Frankenstein. O problema agora é saber se quem pariu
Mateus o conseguirá embalar. Ou, dito de forma mais direta: como impedir que
Belo Monte venha a dar prejuízo quando começar a funcionar? Prejuízo certo. E
grande.
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Sol e migração na Amazônia
O verão de 2012 está começando na maior parte da Amazônia, onde há apenas
dois climas de fato: o semestre das chuvas abundantes (de novembro a abril) e o semestre de menos chuva, evoluindo para pouca chuva em algumas áreas, de maio a
outubro.
Embora as chuvaradas afinem, os rios da calha do rio Amazonas, o maior do mundo, ainda sobem até junho ou julho, por conta do degelo dos Andes ou de chuvas
nas cabeceiras dos seus afluentes, em alguns casos distantes mais de mil quilômetros
do curso principal. É um detalhe que explica a simultaneidade de cheia na calha do
Amazonas e o início da estiagem nos seus formadores da margem direita.
Na Amazônia, características básicas e gerais camuflam variedades e diferenças,
imperceptíveis ao observador menos atento e adestrado. Há muitas Amazônias geográficas e ainda mais numerosas Amazônias humanas (ou anti-Amazônias). E, com
perdão do léxico, não-Amazônias, que se formaram nos últimos anos e têm se expandido velozmente, engolindo o que antes era geografia própria da região. O sertão
avança sobre a floresta. Roraima é o caso mais novo (e mais grave).
Em confronto dentre si, ou entre si, essas Amazônias evoluem para conflitos cada
vez mais graves e frequentes. Certamente vão explodir em futuro mais próximo do
que imagina a opinião pública nacional.
O Brasil declara a Amazônia sua prioridade, mas com tantas formas de acompanhamento, fiscalização e antevisão disponíveis na burocracia e na academia, o que
predomina é a desinformação. Incapaz de perceber a dinâmica do dia a dia, a sociedade brasileira age sempre de forma retardada na Amazônia. Lava o leite derramado,
chora Inês morta e lamenta o fato consumado. Quando lamenta.
Com o domínio do sol sobre a chuva, os fluxos migratórios se intensificam. Mais
gente se movimenta dentro da região, deslocando-se de um ponto para outro. E mais
gente chega de outros lugares do país e do exterior para se estabelecer na Amazônia.
O desmatamento vem no rastro dessas rotas humanas. Um rastro feio, disforme, devastador.
Uma das marcas definidoras das áreas pioneiras é exatamente essa movimentação
de pessoas. Tem sido assim na Amazônia desde o final dos anos 1950, com a abertura de duas estradas de penetração: a Belém-Brasília e a Brasília Acre. A rotação se
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A Amazônia em Questão
intensificou no início dos anos 1970, com a implantação de um sistema rodoviário
mais amplo, que deu acesso ao interior da região, a terra firme, até então praticamente
intocada.
A hipertrofia rodoviária alcançou extensão superior à dos cursos d’água, embora
estes formem a maior bacia hidrográfica do planeta. O paradoxo fomentaria um modal de transporte artificial e, por isso, destrutivo da natureza, sobretudo da floresta
e sua biodiversidade. Uma vez inventada, a pólvora não tem apenas uso pacífico. As
estradas se tornaram uma pólvora bélica sem paralelo na história amazônica.
Mas há novidade nesses fluxos, intensificados e modificados pela circunstância de
que vários dos “grandes projetos” do século passado já entraram na fase operacional.
O primeiro foi em 1979, a mina de bauxita no vale do rio Trombetas, no Pará, a maior
do mundo. Outros “grandes projetos” estão no pique das obras ou em andamento.
O índice de investimento per capita deve atingir na Amazônia valor sem paralelo
no restante do Brasil. As três maiores hidrelétricas estão sendo construídas na região.
Atestam que, mesmo com toda resistência provocada por seus impactos ecológicos
e sociais, elas dão prosseguimento à opção do governo pela energia de fonte hídrica
como a base da matriz energética nacional.
Essas três usinas representam investimento de 60 bilhões de reais. Nela trabalham
mais de 40 mil pessoas, comandadas pelas três maiores empresas de construção civil
do país. Todas já enfrentaram graves incidentes coletivos. Alguns deles, como os mais
recentes, de feição política, realizados em torno de reivindicações trabalhistas, econômicas e sociais. Mas outros de nítido vandalismo, como o que aconteceu em 2011 na
hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, quase arrasando todo o canteiro de obras.
Esses fenômenos se formam a partir de um caldo de cultura complexo. Refletem,
em certa medida, a ação dos movimentos sociais organizados e das ONGs, nacionais
e internacionais. Há eco significativo às pregações e denúncias sobre os malefícios
desses empreendimentos e o quanto de recursos públicos eles desviam para bolsos
particulares.
Discursos deficientes ou parciais parecem provocar no ouvinte a disposição de,
ao invés de criar militância paralela contra a consolidação desses males, numa opção
cívica, deles se aproveitar particularmente (guardada a diferença de escala com a S/A).
Se o empresário rouba o governo com obras superfaturadas ou vários tipos de fraudes,
que aumentam seu lucro, cada um procura tirar sua casquinha.
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É claro que nesse processo coletivo de apropriação ilícita de bens – públicos e
privados – o criminoso tem vantagens. E quando integra uma organização criminosa,
mais vantagens ainda. Este é o dado novo nos fluxos migratórios para a Amazônia, velhos de meio século: o crime organizado está se desviando das suas bases tradicionais,
na parte mais rica do país, para as frentes pioneiras amazônicas.
Não se trata mais apenas do bandido individual, do delinquente isolado: é uma
engrenagem com cabeça pensante, braços atuantes e um contingente de mão de obra
bastante significativo.
Os vários condomínios do crime já se infiltraram em assentamentos rurais, com
resultados modestos. Multiplicam as típicas operações de bandidagem, mas bem estruturadas, como a que em 2011 uma quadrilha aplicou num município do Pará:
dividida em dois grupos, assaltou simultaneamente os dois principais bancos da sede
municipal, com pleno êxito.
Também começam a penetrar nos empreendimentos de grande porte em plena
atividade, como os das mineradoras. E agora seus alvos principais são as grandes
concentrações de trabalhadores. Não há maiores do que as reunidas nas enormes
hidrelétricas, como as dos rios Madeira e Xingu.
Não se trata de criminalizar manifestações de reivindicação e protesto, que as autoridades costumam transferir da competência social para a policial. O desafio é o
de, sem cair na repressão policialesca tradicional das elites brasileiras diante dos movimentos de massa, não deixar a sociedade sem proteção contra essa nova ameaça: o
crime organizado de origem nacional que se torna também amazônico.
Muita atenção neste verão. Pode se tornar simbolicamente mais quente do que
alcança a temperatura do sol, o rei da temporada, ou dos desmatamentos, a obra mais
comum (e antiamazônica) da maior máquina de destruição nessa fronteira, a humana. Quem viver verá.
Novas formas de protesto
Foi sob o tacão do general gaúcho Emílio Garrastazu Médici o pior período do
regime militar, os anos verdadeiramente de chumbo, entre 1969/74. Sempre de óculos escuros, cara fechada e um cigarro pendente dos lábios, o ex-chefe do temido
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A Amazônia em Questão
Serviço Nacional de Informações era a expressão da estampa do típico ditador latino-americano. Não chegava a ser pessoalmente mau. Só que tinha um defeito terrível:
o da omissão.
Durante o tempo em que o general Médici foi o presidente da república, os porões
da ditadura ecoaram os gritos provocados pelas torturas impostas aos inimigos do
regime. Indiferente a essa selvageria, Médici ia ao campo de futebol.
Sempre com um radinho de pilha colado ao ouvido, torcia, dava opiniões e até
interferiu na escalação da seleção brasileira. Impôs ao treinador esquerdista do time, o
jornalista João Saldanha, o nome do atacante Dario, impetuoso e um tanto desastrado. Dadá Maravilha ficou no time, Saldanha foi mandado embora.
Outro contraste da personalidade do terceiro presidente-general no poder a partir
de 1964 estava na retórica. Na sede da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), em Recife, Médici leu um discurso poético e pungente. Declarava-se
solidário com os retirantes nordestinos, massacrados por mais uma seca inclemente,
daquelas que, segundo a lenda, a cada século devastava a região, como a de 1877.
O texto é uma das mais bonitas orações ditas por um governante no Brasil. Seu
autor, o então coronel Octávio Costa (depois promovido a general, já em comando de
tropa), chefiava a AERP. Era uma assessoria direta do presidente com semelhança ao
DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) do Estado Novo de Getúlio Vargas,
e algumas tintas da propaganda nazista criada por Joseph Goebbels (autor da famosa
frase: uma mentira, repetida mil vezes, vira verdade).
Era preciso atender as levas de sertanejos tocados do interior pela fome e a miséria,
e que se projetavam ameaçadoramente como vagas incontroláveis sobre as cidades do
litoral e as ricas propriedades rurais da Zona da Mata. Guardado o papel do discurso,
Médici ofereceu uma solução, em 1970: a Transamazônica.
Os nordestinos seriam recrutados para construí-la como peões e também seriam
assentados às suas margens como colonos. Teriam trabalho, terra e renda. O governo
de direita no Brasil lhes atenderia com aquilo que seria a bandeira das massas russas
revoltadas contra o czarismo milenar, que, seis décadas antes, provocaram o surgimento do primeiro governo socialista do mundo.
O nordestino abandonado e maltratado, finalmente, se transformaria em dono do
seu pedaço de chão, livrando-se do proprietário explorador. Não na sua terra natal.
Na distante, desconhecida e misteriosa Amazônia.
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Dois anos depois de ter dado partida à grande estrada de penetração ao interior
da fronteira amazônica, Garrastazu Médici voltou à região em fevereiro de 1973. Foi
visitar um grande empreendimento agroflorestal e industrial – arroz, gado, caulim e
celulose –, o Jari, implantado pelo milionário americano Daniel Ludwig, com todas
as bênçãos do governo brasileiro, próximo à foz do rio Amazonas, entre o Pará e o
Amapá.
Deu-se o que parecia impossível: dezenas de peões fizeram uma ruidosa manifestação de protesto diante da comitiva presidencial, o que não acontecia nem nas cidades
desde o AI-5, do final de n1968.
Não houve tempo para as assessorias – privada e oficial – impedirem a exibição de
faixas e cartazes diante do general carrancudo e de óculos pretos. A imprensa, mantida
sob controle em cubículos previamente delimitados, viu a cena, a fotografou e registrou. A censura teve que se submeter ao fato consumado.
Havia então doze mil peões trabalhando nas obras do Projeto Jari, apenas um
quarto deles vinculados à empresa de Ludwig. Os outros eram recrutados por agenciadores de mão de obra, os “gatos”. Sem qualquer garantia social e, muitas vezes, sem
receber, trabalhavam pesado durante muitos meses, derrubando floresta, plantando,
construindo.
O governo teve que providenciar alguma coisa para reparar aquela situação, que
alcançou repercussão internacional. Instalou um grupo volante para acompanhar as
condições de trabalho, semelhantes às dos escravos da colônia (e do império). Até
criou uma carteira de trabalho para atender o peão – mas só com parte das garantias
sociais do homem urbano.
A manifestação do Jari não foi a primeira nem a última a traduzir a insatisfação
contida e reprimida do ser humano nas distantes e esquecidas frentes pioneiras. Quase
meio século antes, outros trabalhadores haviam feito um quebra-quebra bem maior
na empresa de outro americano, este ainda mais célebre: Henry Ford.
De sua sede em Detroit, nos Estados Unidos, Ford impunha de tudo a quem
trabalhava na sua plantação de borracha no vale do rio Tapajós, no Pará, de onde
esperava extrair matéria prima para os pneus dos seus automóveis, que inundavam o
mundo. Até a comida.
No cardápio elaborado por nutricionistas não constava a farinha de mandioca.
Este, porém, era o item que não podia faltar no prato do caboclo. Como faltou, os
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A Amazônia em Questão
nativos se insurgiram e saíram destruindo o que encontraram pela frente. A farinha
voltou. Mas Fordlândia não foi longe. Em 1945 Ford jogou a toalha, desistindo de
produzir borracha em larga escala na Amazônia, dezoito anos depois de se instalar na
região.
Mais cinco décadas à frente, uma nova rebelião de milhares de trabalhadores ocorreria na maior obra que estava em andamento no Brasil na passagem dos anos 1970
para os 1980: a hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins.
A comida servida nos refeitórios coletivos era ruim. Certo dia ficou insuportável.
A carne foi amolecida à base de muito bicarbonato. Era colocá-la no prato e deixá-la
de lado. Revoltados, os peões começaram a destruir o restaurante e a avançar sobre
outros pontos do acampamento.
Centenas de homens da Polícia Militar foram transferidas às pressas de Belém para
conter a rebelião. A comida então melhorou. Tornou-se pelo menos suportável. Nada,
contudo, que nem de longe pudesse ser comparada ao menu oferecido para o staff das
obras.Lado a lado, padrões de vida sueco e biafrense.
Novas revoltas ocorrem agora nas grandes obras da Amazônia. Não mais apenas na
forma de explosões súbitas e de curta duração, como antes. Essas modalidades, mais
violentas, se combinam com greves, antes praticamente impossíveis. É a continuidade
de uma história marginal. Mas é também uma novidade, que precisa ser mais bem
registrada e adequadamente entendida.
Xingu: só mais um rio
Mais um grande rio da maior bacia hidrográfica do planeta está sendo barrado pelo
homem. No início do mês passado, uma barragem de terra começou a avançar sobre o
leito do rio Xingu, no Pará, dentre os maiores do mundo. A represa vai desviar o fluxo
da água para permitir que os construtores da barragem de concreto trabalhem em seco.
Eles pretendem erguer ali a maior de todas as hidrelétricas já criadas pelo homem,
com capacidade nominal de gerar mais de 11 mil megawatts. A usina de Belo Monte
acrescentaria então mais 15% de energia ao sistema nacional, o maior de origem hidráulica dentre todos os países. A água ainda propicia a energia mais barata de que se
dispõe na Terra. E, embora sob crescente ceticismo, também a mais limpa.
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Contra críticos e opositores, o governo federal já decidiu: extrairá da Amazônia
toda energia que seus rios poderão fornecer. Tanto para transferi-la – por longas distâncias – para as áreas de maior demanda como para atrair novos empreendimentos
eletrointensivos de todas as partes. É uma investida tão grandiosa quanto a que se empreende na região do Cáucaso, na antiga União Soviética (mas tangenciando a Rússia,
a mais poderosa das repúblicas socialistas da URSS), com outro energético: o petróleo.
A interferência humana nos caudalosos rios amazônicos começou no final dos
anos 1960, durante o “milagre econômico” promovido pelo regime militar. Mas o
alvo eram dois pequenos rios, o Curuá-Una, no Pará, e o Araguari, no Amapá. Neles
surgiram duas diminutas usinas, que funcionam com água corrente, sem formar reservatórios para acumulá-la. São a fio d’água, conforme a expressão dos engenheiros.
A primeira grande intervenção humana começou em 1975, sobre o leito do Tocantins, o 25º maior rio do mundo, com mais de dois mil quilômetros de extensão.
Foi uma epopeia, sob todos os sentidos, bons e ruins. O momento mais dramático
aconteceu em 1980.
A Eletronorte construiu uma ensecadeira de terra com capacidade para suportar a
pressão de 50 milhões de litros de água por segundo. Era o máximo que se imaginava
que o rio podia vazar, com base em estimativas científicas. Mas a vazão do Tocantins
surpreendeu: foi a 68,5 milhões de litros de água por segundo. Por pouco a ensecadeira não foi arrastada – e com ela, cinco anos de trabalho e centenas de milhões de
dólares já gastos.
O rio Xingu tem quase a grandeza do seu vizinho Tocantins, em extensão e em
vazão, embora sofra estiagem mais forte durante o verão, quando sobra um fio d’água
entre pedras e ilhas. Esta é a fase em que ele cresce e extravasa, por causa das chuvas
que caem nas suas cabeceiras e dos seus afluentes. É o inverno amazônico, caracterizado pelas enxurradas pesadas.
O nível do rio está bem acima do normal das cheias de janeiro. É sinal de que as
inundações poderão ser mais rigorosas. Algumas providências já estão sendo tomadas
para evitar maiores prejuízos. Uma das ameaças do rio é à ensecadeira.
Ela começou a ser formada numa época adversa, justamente quando começam
os “torós”, verdadeiros dilúvios. Mas o consórcio construtor de Belo Monte deve
ter preferido enfrentar a natureza a correr o risco de nova paralisação forçada ou de
restrição às obras.
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A Amazônia em Questão
Para poder iniciar o desvio do rio, a Norte Energia teve que derrubar uma medida
judicial que a impedia de trabalhar no leito do Xingu. Ela tinha que se limitar a operar
nas margens, com trabalhos complementares e acessórios. Mal a ordem foi suspensa,
tratou de colocar uma grande frota de tratores em serviço, jogando terra nas águas e
abrindo estrada numa ilha situada no meio do rio, montando estruturas.
Um juiz federal concedeu, em 2010, liminar, colocando a construtora fora do
Xingu sob a alegação de que as obras iam acabar com a pesca ornamental no local, foi
o mesmo que voltou atrás, logo em seguida, já convencido de que não há essa atividade. Ou ao menos não ao alcance da hidrelétrica.
Agora, se ele mais uma vez voltar atrás, quando examinar o mérito da ação dos
declarados pescadores, dificilmente sua decisão poderá ter efeito prático. O avanço
da obra humana sobre o vau de um rio como o Xingu constitui fato consumado.
Revertê-lo é possível e factível, mas não é a regra. Muito pelo contrário. Os engenheiros que levantam barragens sabem muito bem disso.
O governo também. Polêmicas e incidentes como os que se registram em Belo
Monte se repetiram no rio Madeira, que é ainda maior. Mas a usina de Santo Antônio
está entrando em operação comercial quatro anos antes do cronograma original.
Jirau, com o retardamento provocado pelo quebra-quebra no canteiro de obras
no ano passado, ainda assim segue pelo mesmo caminho. As duas terão quase metade
da potência nominal de Belo Monte, mas irão gerar efetivamente mais durante o ano
porque o Madeira tem uma vazão maior e mais regular (é o mais importante tributário do fantástico Amazonas).
Logo será a vez de outro grande afluente da margem direita do maior e mais volumoso rio do mundo. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-2) prevê que seis
hidrelétricas no Tapajós, o último grande rio no oeste do Pará, fornecerão tanta energia
quanto Tucuruí, hoje a maior usina inteiramente nacional, que responde por 8% do crescente consumo brasileiro de energia. Aí então virá o Araguaia – e qual mais em seguida?
Duas coisas surpreendem nessa corrida desabalada a grandes fontes de energia: o
barulho que provocam quando são anunciadas e o silêncio no qual seguem quando,
consumados os fatos, Inês é morta e a obra vai em frente, sem lenço, sem documento
e sem uma fita amarela.
Para consolidar a Amazônia como a maior província energética da terra, o equivalente verde dos campos de petróleo do Oriente. O verde da floresta, porém, trans| 76
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formado em hulha branca – e em seus vários derivados multicoloridos. Quando não,
negros.
Serve para quem a energia?
A hidrelétrica de Belo Monte, prevista para o rio Xingu, no Pará, foi tema de dois
acontecimentos simultâneos, mas de sentidos diametralmente opostos, em 2005. Em
Brasília, o Senado deu sua aprovação ao projeto de decreto legislativo do deputado
federal (do PT de Pernambuco) Fernando Ferro, que já havia passado às pressas pela
Câmara Federal, uma semana antes, autorizando o início oficial dos estudos para a
implantação da usina.
Já em Altamira, a cidade mais próxima do local previsto para a obra, na Grande Volta do Xingu, foi lançado o livro Tenotã-Mõ: Alertas sobre as consequências dos projetos hidrelétricos no rio Xingu (IRN, International Rivers Network), organizado pelo engenheiro Oswaldo Sevá, professor da Unicamp, a Universidade de Campinas, em São Paulo.
O projeto do deputado pernambucano foi concebido para resolver um impasse
legal: a justiça federal do Pará, acionada pelo Ministério Público Federal, suspendeu
os estudos sobre o impacto socioambiental da grande barragem, que vinham sendo
feitos pela Universidade Federal do Pará, sob contrato com a Eletronorte, por intermediação da Fadesp, a fundação de pesquisa da UFPA.
A Procuradoria da República no Estado argumentou que o EIA-Rima (Estudo
de Impacto Ambiental/ Relatório de Impacto Ambiental) só podia ser realizado com
aprovação legislativa, que não havia. O deputado do PT de Pernambuco tratou de
providenciá-la.
Sinais dos tempos: as entidades que até algum tempo atrás andavam de mãos
dadas com o PT tiveram que organizar sozinhas o lançamento do volumoso livro,
que é um libelo contra o projeto da hidrelétrica de Belo Monte, assinado por vários
especialistas, inclusive consultores da Comissão Mundial de Barragens, patrocinada
pela ONU. Já o PT substituiu o PSDB, embora a ele também se associando, na defesa
da obra, que antes condenava.
O Greenpeace chamou a atenção para o contraste entre a posição crítica da sociedade civil, patrocinando o lançamento do livro em Altamira, e a do parlamento,
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A Amazônia em Questão
“completamente alheio aos imensos impactos sociais e ambientais que o complexo
Belo Monte irá causar”, beneficiando não as populações das áreas a serem atingidas,
mas “indústrias que causam ainda mais impactos sociais e ambientais, em grandes
empreendimentos de mineração”, segundo o porta-voz da ONG, Carlos Rittl.
No entendimento do Greenpeace, antes da aprovação legislativa seria necessário
ouvir os oito povos indígenas – Kayapó, Parakanã-Apiterewa, Araweté do Igarapé Ipixuna, Assurini do Xingu, Arara do Pará, Juruna, Xipaia e Curuaia – que serão direta
ou indiretamente afetados pela construção do complexo de Belo Monte. Foi justamente pela presença dessas populações indígenas que o MP pediu e a justiça concedeu
a suspensão do EIA-Rima, em 2001.
O Greenpeace anunciou a intenção de convocar outras instituições para requerer ao Procurador Geral da Republica que ajuíze ação perante o Supremo Tribunal
Federal suscitando a inconstitucionalidade do decreto legislativo. Alega não ter sido
cumprida a exigência do parágrafo 3º do artigo 231 da Constituição Federal, “que
determina que o Congresso só autorize a construção de hidrelétricas que afetem terras indígenas, após ouvir as populações indígenas a serem atingidas, e saber se eles
aceitam ou não o empreendimento. Em nenhum momento a Câmara ou o Senado
convocaram aqueles povos indígenas para manifestar suas opiniões sobre o projeto de
decreto legislativo”.
Pode estar havendo um desentendimento nessa polêmica, por aquilo que os advogados costumam chamar de vácuo na lei. O decreto aprovado pelo Congresso Nacional não autoriza a execução da obra. O que ele faz é repor o processo de licenciamento
ambiental no ponto de partida legal, negligenciado anteriormente. A partir de agora a
Eletronorte pode iniciar a elaboração do EIA-Rima, licitando o serviço e contratando
o executor.
Para isso, deverão ser convocadas audiências públicas, durante as quais serão debatidos os documentos produzidos (que, evidentemente, irão considerar o material já
existente, sem tomá-lo, porém, como definitivo), antes que o Ibama possa expedir a
licença provisória da obra.
Quanto à população branca ou “civilizada”, o procedimento agora está legalizado.
Mas não atende a determinação constitucional de proteção às populações índias. O
dispositivo da Constituição aplicado ao caso diz que o aproveitamento dos recursos
naturais em áreas habitadas por nativos, incluindo o potencial energético, só poderá
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ser efetivado (há um erro de concordância no parágrafo do artigo) “com autorização
do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada
participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.
Parece claro que enquanto os “brancos” podem ser ouvidos durante a elaboração
do EIA-Rima, os índios teriam que ser consultados pelo Congresso Nacional antes da
aprovação do decreto legislativo de autorização. Mesmo com o privilégio dessa precedência, porém, a consulta aos índios não tem valor deliberativo.
O rito serve a uma mera consulta, conforme a natureza das audiências públicas
nos processos de licenciamento. Mesmo que toda a população – indígena e “branca”
– não veja vantagem alguma na usina, o órgão licenciador pode aprová-la. Restará aos
índios receber a parte que lhes caberá legalmente na receita da empresa. E aí?
O bom senso, sem o qual não há lei legítima, recomenda o trabalho de convencimento. Se o construtor não é capaz de convencer os supostos beneficiários das vantagens que lhes pode advir da obra, então é melhor não realizá-la – ou, pelo menos,
tentar uma nova saída, mudando-se de construtor, ou de responsável (já que, pelo
novo modelo energético, a obra irá a leilão e o arrematante pode não ser quem fez o
EIA-Rima, conforme admissível em mais essa falha do novo modelo).
O nó está dado. Ele só poderá ser desatado (ou cortado) quando uma reforma completa substituir o remendo em vigor. O decreto legislativo despachado pelo deputado
Fernando Ferro sanou a falha de origem de encaminhamento do projeto de uma hidrelétrica. Era inadmissível o desrespeito a um dispositivo constitucional categórico.
Os estudos para a usina tinham que ter como origem uma autorização legislativa.
Mas na verdade a origem teria que ser mais remota ainda, o seu verdadeiro ponto de
partida: o plano de desenvolvimento do vale para o qual o aproveitamento hidrelétrico está previsto.
Com um plano de desenvolvimento do vale do rio Xingu, a hidrelétrica de Belo
Monte devia estar inserida no planejamento global da região, baseado em estudos de
qualidade sobre ela, em toda sua amplitude, incluindo a geração de energia, mas inevitavelmente situando-a num contexto geral, econômico e social, até mesmo étnico.
A hidrelétrica seria um desdobramento desse plano global, do qual seria deduzida
e não ao qual o plano se reduziria. A energia é para os homens todos, pessoas físicas
e jurídicas, e não apenas para os que dela querem se apossar por terem maior capacidade de apossamento.
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A Amazônia em Questão
Duas décadas de operação da hidrelétrica de Tucuruí já é história bastante para a
opinião pública aprender que um Estado gerador de energia pode não se desenvolver
se limitar-se a vender energia bruta, como faz o Pará. As lições proporcionadas pela
grande usina do Tocantins estão sendo ignoradas na definição sobre a primeira grande
usina do Xingu (e também em relação às duas barragens projetadas para o rio Madeira, em Rondônia).
Talvez seja de alta relevância pedagógica refazer as anotações sobre Belo Monte
tendo o aprendizado de Tucuruí como pano de fundo.
Os engenheiros da Eletronorte (ultrapassados por Furnas – em parceria com a
Construtora Norberto Odebrecht, no Madeira, e pela própria Eletrobras, na nova
situação criada no Xingu pelo recém-aprovado decreto legislativo) sustentam que o
nome de batismo da obra, “Complexo Hidrelétrico Belo Monte”, não se deve à previsão de um novo barramento a montante do rio.
Utiliza-se a expressão “complexo” porque Belo Monte, no mais recente layout da
obra, será constituído de duas casas de força e não apenas de uma, como originalmente estava previsto. O detalhe é que a casa de força principal terá 11 mil megawatts,
enquanto a casa de força complementar ficará com 181 MW – ou menos de 2% da
potência da usina número um, mais a jusante.
O arranjo é de pé quebrado, mas tem sido usado como prova de fé de que a Eletronorte está raciocinando com apenas essa unidade – ou “complexo”– e não como
uma sucessão de barragens ao longo do Xingu a montante.
Há, contudo, outro elemento de sustentação desse discurso, que visa conter as
preocupações com a execução, ao fim de todo discurso ecológico, do mesmo projeto
da década de 1980, que levaria à formação de um conjunto de reservatórios, com área
inundada total de 14 mil quilômetros quadrados (quase cinco vezes o reservatório de
Tucuruí e mais de três vezes o maior lago artificial do país, o da hidrelétrica de Sobradinho, no rio São Francisco).
O discurso suplementar é o da excepcional integração de bacias hidrográficas conseguido pelo sistema energético nacional, algo excepcional em termos mundiais. Através de uma extensa linha de transmissão, Belo Monte usufruiria da transferência de
energia do sistema integrado, o que dispensaria a formação de uma reserva de água no
Xingu compatível com o porte da usina, projetada para pouco mais de onze mil MW,
uma capacidade de geração apenas 25% inferior à de Itaipu, a maior hidrelétrica em
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lúcio flávio pinto
operação no planeta. Nos quatro meses de seca no vale do Xingu, quando não haverá
água suficiente para mover qualquer uma das 20 gigantescas máquinas da usina, Belo
Monte receberia energia do muito louvado Sistema Integrado Brasileiro.
Graças a essa possibilidade de transferir energia de um extremo a outro do país,
conforme as disponibilidades hídricas de cada parcela do território nacional, a energia
firme de Belo Monte seria de 4.796 MW médios, ou 43% de sua capacidade nominal
de geração. O fator de capacidade médio das usinas brasileiras está entre 40% e 60%.
Assim, Belo Monte estaria próxima do limite mínimo de viabilidade, o que recomenda desde logo cautela e rigor na análise dos números oficiais, que podem estar certos,
mas, estando no limite, podem estar ligeiramente inconsistentes.
Não é esse, porém, o aspecto mais importante. O elemento principal da análise é
o papel da linha de transmissão de energia na viabilidade desse empreendimento. Belo
Monte jamais será construída pelos que a idealizaram para atender a demanda no seu
entorno. Se ela tivesse que atender a uma demanda geograficamente próxima, mesmo
que o consumo fosse multiplicado por uma indução excepcional, que atraísse para sua
vizinhança unidades de produção de alto consumo de energia, não seria viável economicamente para o seu porte. Ela não teria escala, como dizem os economistas. Belo Monte
foi concebida para ser uma base de lançamento de energia bruta a grande distância.
Essa estratégia se reflete nos seus custos. Sem o sistema associado de transmissão de
energia, cada um dos 11,2 mil MW a serem instalados na usina custará 12,4 dólares
por megawatt/hora. Conectada ao sistema de transmissão, o custo da hidrelétrica
quase dobra: vai parar em US$ 20,5/MWh.
Essa extensa linha tanto serve de chamariz ecológico, avalizando a dispensa do
grande reservatório previsto no projeto original (e hoje considerado inaceitável),
como a chave da equação do custo e do fator de capacidade.
O dado bruto do orçamento da usina, entretanto, assusta. Se o custo da construção da grande barragem chegará a US$ 12,4/MWh, que é um valor baixo, o custo da
linha será de US$ 8,1/MWh. Qualquer cidadão, diante desses números, se perguntará se vale mesmo à pena barrar um rio amazônico no meio da floresta para estender a
partir dele uma enorme linha de transmissão, sempre sujeita a significativas perdas ao
longo do trajeto, para levar a energia gerada até os grandes e distantes centros consumidores, sem que ninguém se empenhe em mudar as regras do desperdício ou azeitar
um sistema que funciona com elevadas perdas.
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A Amazônia em Questão
Por isso mesmo a Eletronorte separou a obra de geração da obra de transmissão,
tanto para os estudos quanto para a licitação. Talvez assim fique menos evidente a
finalidade primordial desse projeto: sugar energia bruta da Amazônia e transportá-la
para as áreas dominantes do país (e, “embrulhada” em produtos semielaborados, para
o mundo).
O cabo de guerra que ainda se irá travar em torno de Belo Monte poderia ser evitado
se realmente houvesse uma visão nova sobre a Amazônia, resultante da aproximação
da ciência e da tecnologia sem a perda de sensibilidade para as características próprias
da região. Ela exige a mudança profunda dos modelos esquemáticos de ocupação e o
cancelamento do modo colonial de agir sobre ela, que continua a prevalecer. Sem essa
revolução de concepção, a trajetória de Belo Monte continuará a ser problemática,
como já se anuncia a reação ao decreto legislativo, tanto pelas ONGs quanto pelo
Ministério Público.
Dessa demora poderão se beneficiar tanto outros aproveitamentos hidrelétricos,
como os dois já previstos para o rio Madeira, em Rondônia, quanto outras formas de
geração de energia, como a nuclear.
Esses empreendimentos, contudo, continuarão padecendo dos mesmos males que
entravam em Belo Monte: não estará demonstrada sua viabilidade socioambiental
nem que eles beneficiarão a população, a começar pela nativa; acabarão sendo usufruídos pelos grandes consumidores, alcançados à distância por extensas e caras linhas de
transmissão em alta voltagem.
O Brasil continuará sem poder traçar seu destino, com discernimento e domínio
do que faz. E a Amazônia, muito menos ainda.
Os índios é que decidirão?
Quatro líderes indígenas do vale do Xingu, comandados por Paulinho Payakan,
levaram um ano para preparar, quase sigilosamente, o I Encontro dos Povos Indígenas
de Altamira, realizado em fevereiro de 1989. A Eletronorte compareceu desprevenida.
Estava certa de que, com seu poderio, de maior subsidiária do grupo Eletrobras, convenceria todos a aceitarem as cinco barragens que pretendia construir no rio Tapajós,
no Pará, planos que anunciara alguns anos antes. Seriam das maiores e mais baratas
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lúcio flávio pinto
hidrelétricas que se podia pretender em qualquer parte do mundo. Mas acabou saindo
escorraçada. E os projetos, arquivados.
Passados quase 30 anos, as cinco represas inicialmente previstas foram reduzidas a
uma só. Belo Monte tem um perfil ecológico e social menos agressivo do que a usina
original, de Kararaô, e as barragens acompanhantes, a maior delas, Babaquara, apenas
para reter águas para a usina a jusante ter viabilidade econômica. Mas só agora, dez
anos depois da retomada do projeto, começou a montagem do acampamento para a
execução das obras. Novamente os índios são a pedra no caminho dos “barragistas”,
os engenheiros que espalham hidrelétricas pelo território nacional.
A mais recente interrupção no muito acidentado cronograma depende de uma
definição do Tribunal Regional Federal da 1ª Região sobre a nova pendência entre as
partes, que diz respeito a saber se os índios foram ou não consultados sobre a construção da hidrelétrica nas suas terras.
Que os índios foram ouvidos, não há a menor dúvida. Eles participaram da nova
edição do encontro de 1989, realizada em 2008. Não só disseram não à obra como
agrediram fisicamente o engenheiro encarregado de expô-la aos presentes. Como
eram frontalmente contra, nem quiseram ouvir a exposição. Quantas audiências forem realizadas, o resultado será o mesmo.
Mas o Ministério Público Federal, que os defende, exige que a formalidade da
regra processual seja observada. Sem a realização de consultas a todos os povos indígenas interessados, direta ou indiretamente atingidos pela obra, a autorização que o
Senado já concedeu para a implantação do projeto não terá valor, por ser inconstitucional, alega o MPF.
Sua posição foi endossada pela relatora do processo, desembargadora Selene Maria
de Almeida. Mas o julgamento foi suspenso por um pedido de vistas de outro desembargador, Fagundes de Deus, que já atuou no departamento jurídico da Eletronorte.
Ninguém defende que audiências semelhantes voltem a ser promovidas entre os
ditos civilizados. Os construtores já fizeram quatro debates e o resultado é tão cristalino quanto a unanimidade dos povos indígenas: não há qualquer possibilidade de
união entre os “brancos”.
As vozes consideradas mais qualificadas para o debate popular contestam Belo
Monte. A maioria, porém, é a favor. Até questiona o projeto, tal como foi concebido.
Quer mais compensações e investimentos. Mas com a usina, de quase 30 bilhões de
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A Amazônia em Questão
reais (e um bilhão de compensações) e capaz de fornecer quase tanta energia firme
quanto Tucuruí, a quarta maior do mundo, no Tocantins, ainda no Pará.
Nenhuma obra de impacto ambiental pode ser feita sem as audiências públicas.
Mas elas têm valor apenas consultivo. Sendo 1 ou 100, não têm poder deliberativo.
Quem decide é a engrenagem do governo e um colegiado de representação da sociedade, com rigidez institucional. Esse conselho pode ser influenciado pelo que for dito nas
audiências, mas não necessariamente. Pode também decidir justamente o contrário.
A apresentação dos empreendimentos de maior parte e o debate das suas características em auditórios mais amplos é uma conquista da legislação especializada e
da mobilização da sociedade. Depois de milhares de audiências, a conclusão mais
evidente desses encontros é a sua relativa inocuidade.
Mesmo sessões que se prolongam por muitas horas, com inúmeras intervenções
do público e dos apresentadores, não deixam a sensação de segurança que o pleno
conhecimento de causa pode criar. Parece um jogo de cartas marcadas.
Os documentos que servem de fundamento para essas audiências, os EIAs-Rimas,
ou são complexos demais para serem absorvidos por leitores mal preparados ou pesam
sobre esses documentos suspeições, fundamentadas ou não. Eles são vistos como meros instrumentos de persuasão, escondendo mais do que revelando. Passaportes para
a concessão da licença ambiental para a implantação do empreendimento, não fonte
de esclarecimento.
Muitas vezes procede a crítica quanto ao conteúdo confuso ou contraditório dos
estudos de impacto ambiental. Mas às vezes parece mais explícita a intenção de inutilizá-los (justamente por serem considerados armas a serviço dos interesses do empreendedor) do que debatê-los.
O consórcio de Belo Monte tentou inovar, editando uma espécie de cartilha, que
resumia e tentava ser clara na apresentação da hidrelétrica do Xingu, de complexa engenharia. Mas o que devia ser sua qualidade, o didatismo, acabou se tornando seu calcanhar de Aquiles. A simplificação seria tão mistificadora quanto o aprofundamento.
Por falta de preparo das partes e do ânimo prevenido para a contenda, as audiências públicas sobre temas mais polêmicos se transformaram num jogo, decidido mais
pelo emocional do que pelo racional. As falhas apontadas são reais. Mas essa degeneração do instituto se deveu mais à falta de disposição para corrigi-las e prosseguir nos
debates necessários.
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lúcio flávio pinto
Prevalecendo o emocionalismo, no caso de Belo Monte o personagem de maior
peso têm sido os índios. Eles tocam mais no inconsciente coletivo, tanto o nacional
quanto – e, sobretudo – o internacional. Suas utopias, fundadas numa sociedade distinta da nossa e associadas a um passado idílico, se apresentam mais puras, capazes de
expressar e traduzir os anseios mais íntimos (e mais reprimidos) do ser, concretizando
o que já está fora do alcance da nossa sociedade corrompida.
Podia ser realmente isso, Mas não é assim. O tema é mais complicado do que seu
enquadramento e esquematização por quem o acompanha à distância. Mesmo que
prevaleça a posição dos defensores de novas audiências públicas, agora nos redutos
indígenas, com a retração no andamento desta história, para que Belo Monte volte
ao seu início, isto só teria efeito prático se a história pudesse ser congelada. E, infelizmente, esse não é um milagre ao alcance dos humanos.
No entanto, como diria Galileu, se morasse no Xingu, a história se move. E pode
trazer surpresas.
O monumento e o monstro
Desde a sua fundação, e durante os 40 anos seguintes, a Federação das Indústrias
do Pará teve um único presidente: Gabriel Hermes Filho. Gabriel foi senador por
muitos anos, deputado federal e dirigente de órgãos públicos. Um homem sagaz e
com um senso agudo da oportunidade. Estava sempre ao lado do governo no poder.
Mesmo com essas credenciais, já encanecido, o senador anunciou que comandaria
o maior protesto contra a construção da hidrelétrica de Tucuruí, que era a maior obra
em andamento no Brasil naquele inicio da década de 1980.
O dirigente das indústrias paraenses era inteiramente a favor da usina, tanto por
pensar assim como por ser do partido do governo. O problema é que a barragem
mantinha bloqueado o rio Tocantins. Às vésperas de ser inaugurada, ninguém levava
a sério a exigência feita desde 1934, pelo Código de Águas, a quem fechasse um rio:
restabelecer-lhe a navegabilidade.
Tratava-se, no caso, do 25º maior rio do mundo. Depois de percorrer quase dois
mil quilômetros, o Tocantins estava represado a 300 quilômetros da sua foz. Precisava
de um sistema de transposição para continuar a ser um rio navegável – e legalizado.
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A Amazônia em Questão
Para isso, teria que dispor de duas eclusas, de um canal de concreto entre elas, com
cinco quilômetros de extensão, e obras de desobstrução no seu leito, rio acima. Obra
para mais de um bilhão de reais, valor atualizado. A maior eclusa do mundo.
A empresa construtora da usina, a estatal Eletronorte, se livrou logo do que era
para ela um abacaxi. Queria se dedicar apenas à geração de energia. O resto não lhe
interessava (mesmo que “o resto” fosse uma bacia hidrográfica ocupando 8% do território nacional).
Em protesto, o senador Hermes anunciou que iria se colocar sob uma das comportas da represa e lá se imolaria quando ela fosse aberta para dar passagem às águas.
No ano recorde de vazão, 1980, o Tocantins chegou a despejar naquele ponto 68,5
milhões de litros de água por segundo.
Ao lado do senador no momento em que ele comunicou seu ato heroico, ofereci-lhe um guarda-chuva para enfrentar o desafio. Todos riram, inclusive o candidato a
maior surfista de todos os tempos. Tratava-se, evidentemente, de pura bazófia. O senador não molhou o seu corpo, a barragem inundou três mil quilômetros quadrados
a montante (criando o 2º maior lago artificial do país) e as eclusas só foram parcialmente concluídas mais de duas décadas depois, no final do governo Lula.
As eclusas podem permitir a passagem de 30 milhões de toneladas de cargas nas
duas direções. Por enquanto, por ela fluem poucas embarcações. Nenhuma integrante
da grande frota de pequenos barcos típicos da região, que não atendem às condições
exigidas para atravessar as duas câmaras de transição. Só navios de maior porte ou
balsas utilizarão as eclusas.
É mais um efeito excludente da grande obra, que não foi feita para atender os
nativos, mesmo porque eles não são contemplados pelo planejamento central e não
tomam em suas mãos esse poder. O tão desejado sistema de transposição servirá aos
novos senhores da região.
Talvez não o maior de todos, a Vale, que neste momento realiza obras para aumentar a capacidade de carga de sua ferrovia (Carajás-Ponta da Madeira) de 130 milhões
para 230 milhões de toneladas anuais. Só o acréscimo excede em mais de três vezes
toda a capacidade de carga das eclusas de Tucuruí, que são as maiores do mundo.
Fica a pergunta: tinham razão os tecnocratas, quando se recusavam a atender aos
pedidos das elites locais para cumprir a lei e restabelecer a navegação no Tocantins,
argumentando que a região não tinha carga para justificar o pesado investimento?
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lúcio flávio pinto
Não tinha e ainda não tem. Mas podia ter se, em função dessa nova infraestrutura,
estímulos fossem dados ao desenvolvimento do vale do Araguaia-Tocantins, tema
de um plano pago pela Sudam para ficar nas prateleiras e permitir o faturamento do
consultor, a Hidroservice,
A Eletronorte fez o que quis durante a construção de Tucuruí, a quarta maior
usina de energia do mundo. A legislação de proteção ambiental só começou a ser formada seis anos depois que o empreiteiro contratado instalou o seu canteiro de obras,
em 1975. Quando a primeira das 21 turbinas entrou em operação, em 1984, nada
mais havia a fazer para impedir o efeito dos erros que foram cometidos e dos absurdos
que se incorporaram ao projeto.
Não há mais dúvida que a corrupção influiu decisivamente na multiplicação dos
custos da obra, ou que maior atenção e alguns cuidados teriam reduzido o impacto
negativo da enorme usina. Mas Tucuruí está em pleno funcionamento há mais de
uma década e meia. Responde por 7% de toda geração de energia consumida no Brasil, abaixo apenas de Itaipu. Se a corrupção consumiu 2 bilhões de dólares ou se até
hoje os efeitos negativos se fazem sentir, isso já é coisa do passado, história.
O perfil dessa usina é típico de um regime ditatorial. Com todos os poderes concentrados nas suas mãos, Brasília fez o que quis desde o começo das obras até a
inauguração festiva da hidrelétrica, três meses antes de terminar o mandato do último governo militar, o do general João Figueiredo. Já as outras grandes usinas que se
seguiram estão sendo construídas em plena democracia, a mais duradoura de toda a
história republicana.
Todas as pressões, mobilizações e ataques aos três grandes projetos em execução se
explicam pelas características da própria democracia. Não surpreende que os canteiros
de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, e de Belo Monte, no Xingu,
no Pará, sejam palco de conflitos jamais registrados no âmbito de Tucuruí.
Quem acompanhou mais de perto as obras no Tocantins deve ter contemplado
com certa perplexidade e algum embevecimento a imagem da mais recente investida
a Belo Monte, dos índios e seus aliados, os “guerreiros ambientalistas”, conforme se
denominam.
Eles conseguiram abrir um canal no meio da barragem de terra, com algumas
centenas de metros de extensão, que já interrompeu o fluxo natural do Xingu. A intenção seria a de libertar o rio, apenas um pouco menos extenso do que o Tocantins,
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A Amazônia em Questão
do aprisionamento que a engenharia humana lhe impôs. Para que ele possa fluir com
a liberdade que a natureza lhe concedeu.
O dano que os manifestantes causaram à ensecadeira de terra é quase nenhum,
embora, sob um governo forte, como o que viabilizou Tucuruí, nem isso teriam conseguido. Os muitos órgãos de informação se antecipariam à iniciativa e os braços repressivos do regime, logo acionados, acabariam com o ato de protesto, se ele chegasse
a se realizar, à base de violência.
Na democracia em que estamos, os manifestantes fizeram seu minúsculo dreno na
estrutura, que é a espinha dorsal da monumental obra de engenharia que uma represa
desse porte exige. Mas logo as enormes máquinas reporão tudo na condição original
e a obra prosseguirá, sofrendo apenas uma ranhura no seu cronograma físico e financeiro. O simbolismo terá sido bem mais vivo e efetivo do que o do senador Gabriel
Hermes Filho, no ocaso da ditadura.
Esse é o lado da democracia que favorece a cidadania. Mas ele tem outra face: exige
conhecimento e responsabilidade das lideranças. Quando o ato deixa de ter o objetivo
político evidente, na sangria do bloqueio de um rio belo e admirável como o Xingu,
para se tornar quebra-quebra, por mais nobre que seja sua inspiração, o conteúdo
político da manifestação é erodido, rui, desaparece.
Com isso se infiltra o risco de o ato descambar para o mero episódio policial,
com danos a reparar e autorias a imputar. Ainda mais quando nem sempre os que
executam a concepção sabem o que estão fazendo. E os que sabem nem sempre digam
o que sabem. Na democracia, ganhar de qualquer maneira não é jogo válido, sejam
quais forem os jogadores.
Duas semanas depois da série de manifestações contra a barragem, incluindo ataque às instalações administrativas da concessionária da obra, pela primeira vez índios
e engenheiros fumaram o cachimbo da paz no Xingu. Depois de 23 anos de escaramuças em torno da construção da hidrelétrica de Belo Monte, eles firmaram um
acordo, no dia 11.
Os representantes das cinco etnias que moram na área de influência direta daquela
que pretende ser a terceira maior hidrelétrica do mundo (mas a maior inteiramente
brasileira) aceitaram o prosseguimento das obras. Em troca, os construtores se comprometeram a cumprir o que o licenciamento ambiental já os obrigara a fazer, mas
agora sob a fiscalização dos próprios índios.
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lúcio flávio pinto
Eles também acompanharão um dos efeitos mais temidos do represamento do rio
Xingu, às proximidades de Altamira, no Pará, já no seu curso médio: a falta de água
a jusante, por onde se espalham algumas tribos. Elas sofreriam sede e fome em pelo
menos três meses do ano, quando é maior a estiagem.
Um dos compromissos assumidos no licenciamento ambiental pelo consórcio que
venceu a concorrência pública de Belo Monte foi o de manter uma vazão mínima de
700 mil litros de água por segundo. É bem acima do nível registrado nos verões mais
rigorosos, de 400 mil litros. Se ocorrer vazão abaixo desse patamar. a Norte Energia
pode ser punida e até perder a concessão – com ou sem a fiscalização indígena, formalizada agora em dois comitês gestores.
Acusada de não cumprir várias das medidas mitigadoras dos efeitos negativos da
obra e de não seguir o roteiro do licenciamento ambiental. A Norte Energia foi denunciada logo no dia seguinte por advogados dos próprios índios ao governo federal,
com o pedido de severas punições. Era uma reação ao resultado da véspera.
Todas as reivindicações que os índios levaram consigo ao ocupar o canteiro de
obras Pimental foram atendidas, depois de dois dias de intensa negociação. Após a
assinatura do termo de entendimento, eles se retiraram do local, ao qual retornaram
os 2,5 mil operários que ali trabalhavam. A consolidação do acordo, que afasta o
principal entrave para a continuidade dos serviços, vai depender da execução do que
foi definido.
O atraso, na verdade, será mínimo, quase imperceptível. E os pedidos dos índios
poderão ser atendidos sem maior esforço porque já constavam do projeto. A rigor, a
montanha pariu um rato. Muito barulho e confusão para pouco efeito real. A não ser
que a partir de agora se torne possível impor à concessionária maior obediência às suas
obrigações e deveres, com os quais tem manifestado tão pouca atenção.
A monumental hidrelétrica está sendo construída simultaneamente em cinco frentes. Todas trabalham em terreno seco, o que é uma raridade nessas grandes obras na
Amazônia. Têm assim excepcional celeridade, como em nenhum outro empreendimento similar na região.
No local ocupado pelos índios surgirá o principal dos dois vertedouros do projeto,
ao lado do qual será montada a casa de força complementar. A casa de força principal
será erguida depois do segundo vertedouro, este não motorizado, 50 quilômetros rio
abaixo em linha reta (140 kms pelo leito natural, que segue a “volta grande”). É um
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A Amazônia em Questão
desenho completamente original para os padrões das hidrelétricas. Nem todos atentaram para essa singularidade.
O projeto rejeitado liminarmente pelos mesmos grupos indígenas em 1989 pouco
tem a ver com o atual. A concepção original era a mesma da hidrelétrica de Tucuruí e
de outras grandes barragens. Tudo devia se concentrar na área que os índios ocuparam
no dia 21 de junho: vertedouro e casa de força. Se tivesse sido assim, a obra pararia
por inteiro e os prejuízos teriam sido de grande monta.
Para poder vencer (ou contornar) a resistência nacional ao aproveitamento hidrelétrico do vale do rio Xingu, pelo impacto ecológico que seria causado a uma das mais
belas e complexas áreas do país, entre Mato Grosso e Pará, o governo cancelou cinco
das seis barragens previstas nos inventários realizados a partir dos anos 1970. Restou
Belo Monte.
Ao invés de uma barragem, passaram a ser três. No ponto mais a montante já
está em construção o vertedouro principal, que no início não seria motorizado. Na
mais nova das versões (que parecem não ter fim), ele receberá oito turbinas do tipo
bulbo.
Elas são bem pequenas: sua capacidade é mais de 20 vezes inferior ao das gigantescas turbinas Francis, 18 das quais (e não mais 20, como estabelecia a penúltima versão
do projeto) ficarão na casa de força principal.
As turbinas bulbo do vertedouro Pimental funcionam com pouca água e com água
em baixa queda (basta um desnível de 12 metros, contra 90 metros das turbinas convencionais de Belo Monte). Não precisam de acumulação de água num reservatório.
São – como dizem os engenheiros – a fio d’água, com baixíssimo impacto ambiental,
se seguidas as normas legais e os compromissos contratuais.
Os 233 megawatts que essas oito máquinas irão gerar, a partir de 2015, representam 40% do que produz uma única das 18 turbinas convencionais da outra casa de
força. No conjunto, estas últimas é que respondem pelos 11 mil MW potenciais de
Belo Monte. Energia que será transferida quase integralmente para o sul do Brasil. O
consumo local podia ser atendido apenas com as máquinas do sítio Pimental.
Antes de chegarem a esse reservatório, as águas do Xingu (que podem atingir ali
vazão de 19 milhões de litros por segundo) serão desviadas do seu curso natural. Ao
fim de 50 quilômetros, elas terão descido 90 metros através de canais artificiais de
concreto, também já em construção, na maior obra desse tipo em todo mundo.
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Uma intrincada rede de canais conduzirá a água a um segundo reservatório (o Bela
Vista) criado fora da calha do rio. Passando por um novo vertedouro, a água chegará
à tomada da casa de força principal. Suas máquinas precisam de 10 milhões de litros
por segundo para serem capazes de gerar conforme sua capacidade instalada.
Essa plenitude só será atingida nos meses mais chuvosos do ano, que não serão mais
do que sete ou oito. Por isso a energia firme, aquela disponível durante o ano todo, cai
para 4,3 mil MW, bem abaixo do que seria a média econômica, de 5,5 mil MW. Ainda
assim, os projetistas de Belo Monte garantem que ela será rentável e que, sozinha, irá
assegurar 8% da demanda nacional, através de uma matriz renovável e limpa.
Respondendo aos críticos e se ajustando aos novos padrões de exigência, o complexo hidrelétrico do Xingu representa, ao pé da letra, o que diz o seu título. É a obra
mais complicada que já se concebeu e se realiza no Brasil no setor de energia. De
tantas emendas e correções, adquiriu um perfil inteiramente novo, que pode ser visto
como algo monstruoso (um Frankenstein hidrelétrico) ou primoroso, conforme o
modo de vê-lo.
É claro que essa vasta complexidade na abordagem de um rio não esteve posta na
mesa de negociação com as lideranças indígenas. Mas estará de volta às planilhas da
obra em acelerado andamento. De tal maneira que talvez só com o fato consumado se
venha a saber ao certo que criatura surgiu da prancheta dos engenheiros.
Eles se recusam, de forma arrogante e inaceitável, a discutir com a sociedade o que
conceberam e não param de mudar. Tantas alterações, inclusive com a obra já em pleno curso, sugerem que há um grave componente de imponderabilidade e de surpresa
nesta maravilha da engenharia.
Poder absoluto
A Eletronorte fez o que quis durante a construção de Tucuruí, a quarta maior
usina de energia do mundo. A legislação de proteção ambiental só começou a ser formada seis anos depois que o empreiteiro contratado instalou o seu canteiro de obras,
em 1975. Quando a primeira das 21 turbinas entrou em operação, em 1984, nada
mais havia a fazer para impedir o efeito dos erros que foram cometidos e dos absurdos
que se incorporaram ao projeto.
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A Amazônia em Questão
Não há mais dúvida que a corrupção influiu decisivamente na multiplicação dos
custos da obra, ou que maior atenção e alguns cuidados teriam reduzido o impacto
negativo da enorme usina. Mas Tucuruí está em pleno funcionamento há mais de
uma década e meia. Responde por 7% de toda geração de energia consumida no Brasil, abaixo apenas de Itaipu. Se a corrupção consumiu 2 bilhões de dólares ou se até
hoje os efeitos negativos se fazem sentir, isso já é coisa do passado, história.
O perfil dessa usina é típico de um regime ditatorial. Com todos os poderes concentrados nas suas mãos, Brasília fez o que quis desde o começo das obras até a
inauguração festiva da hidrelétrica, três meses antes de terminar o mandato do último governo militar, o do general João Figueiredo. Já as outras grandes usinas que se
seguiram estão sendo construídas em plena democracia, a mais duradoura de toda a
história republicana.
Todas as pressões, mobilizações e ataques aos três grandes projetos em execução se
explicam pelas características da própria democracia. Não surpreende que os canteiros
de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, e de Belo Monte, no Xingu,
no Pará, sejam palco de conflitos jamais registrados no âmbito de Tucuruí.
Quem acompanhou mais de perto as obras no Tocantins deve ter contemplado
com certa perplexidade e algum embevecimento a imagem da mais recente investida
a Belo Monte, dos índios e seus aliados, os “guerreiros ambientalistas”, conforme se
denominam.
Eles conseguiram abrir um canal no meio da barragem de terra, com algumas
centenas de metros de extensão, que já interrompeu o fluxo natural do Xingu. A intenção seria a de libertar o rio, apenas um pouco menos extenso do que o Tocantins,
do aprisionamento que a engenharia humana lhe impôs. Para que ele possa fluir com
a liberdade que a natureza lhe concedeu.
O dano que os manifestantes causaram à ensecadeira de terra é quase nenhum,
embora, sob um governo forte, como o que viabilizou Tucuruí, nem isso teriam conseguido. Os muitos órgãos de informação se antecipariam à iniciativa e os braços repressivos do regime, logo acionados, acabariam com o ato de protesto, se ele chegasse
a se realizar, à base de violência.
Na democracia em que estamos, os manifestantes fizeram seu minúsculo dreno na
estrutura, que é a espinha dorsal da monumental obra de engenharia que uma represa
desse porte exige. Mas logo as enormes máquinas reporão tudo na condição original
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e a obra prosseguirá, sofrendo apenas uma ranhura no seu cronograma físico e financeiro. O simbolismo terá sido bem mais vivo e efetivo do que o do senador Gabriel
Hermes Filho, no ocaso da ditadura.
Esse é o lado da democracia que favorece a cidadania. Mas ele tem outra face: exige
conhecimento e responsabilidade das lideranças. Quando o ato deixa de ter o objetivo
político evidente, na sangria do bloqueio de um rio belo e admirável como o Xingu,
para se tornar quebra-quebra, por mais nobre que seja sua inspiração, o conteúdo
político da manifestação é erodido, rui, desaparece.
Com isso se infiltra o risco de o ato descambar para o mero episódio policial,
com danos a reparar e autorias a imputar. Ainda mais quando nem sempre os que
executam a concepção sabem o que estão fazendo. E os que sabem nem sempre digam
o que sabem. Na democracia, ganhar de qualquer maneira não é jogo válido, sejam
quais forem os jogadores.
A outra face
Duas semanas depois da série de manifestações contra a barragem, em 2011, incluindo ataque às instalações administrativas da concessionária da obra, pela primeira
vez índios e engenheiros fumaram o cachimbo da paz no Xingu. Depois de 23 anos
de escaramuças em torno da construção da hidrelétrica de Belo Monte, eles firmaram
um acordo, no dia 11.
Os representantes das cinco etnias que moram na área de influência direta daquela
que pretende ser a terceira maior hidrelétrica do mundo (mas a maior inteiramente
brasileira) aceitaram o prosseguimento das obras. Em troca, os construtores se comprometeram a cumprir o que o licenciamento ambiental já os obrigara a fazer, mas
agora sob a fiscalização dos próprios índios.
Eles também acompanharão um dos efeitos mais temidos do represamento do rio
Xingu, às proximidades de Altamira, no Pará, já no seu curso médio: a falta de água
a jusante, por onde se espalham algumas tribos. Elas sofreriam sede e fome em pelo
menos três meses do ano, quando é maior a estiagem.
Um dos compromissos assumidos no licenciamento ambiental pelo consórcio que
venceu a concorrência pública de Belo Monte foi o de manter uma vazão mínima de
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A Amazônia em Questão
700 mil litros de água por segundo. É bem acima do nível registrado nos verões mais
rigorosos, de 400 mil litros. Se ocorrer vazão abaixo desse patamar a Norte Energia
pode ser punida e até perder a concessão – com ou sem a fiscalização indígena, formalizada agora em dois comitês gestores.
Acusada de não cumprir várias das medidas mitigadoras dos efeitos negativos da
obra e de não seguir o roteiro do licenciamento ambiental. A Norte Energia foi denunciada logo no dia seguinte por advogados dos próprios índios ao governo federal,
com o pedido de severas punições. Era uma reação ao resultado da véspera.
Todas as reivindicações que os índios levaram consigo ao ocupar o canteiro de obras
Pimental foram atendidas, depois de dois dias de intensa negociação. Após a assinatura
do termo de entendimento, eles se retiraram do local, ao qual retornaram os 2,5 mil
operários que ali trabalhavam. A consolidação do acordo, que afasta o principal entrave
para a continuidade dos serviços, vai depender da execução do que foi definido.
O atraso, na verdade, será mínimo, quase imperceptível. E os pedidos dos índios
poderão ser atendidos sem maior esforço porque já constavam do projeto. A rigor, a
montanha pariu um rato. Muito barulho e confusão para pouco efeito real. A não ser
que a partir de agora se torne possível impor à concessionária maior obediência às suas
obrigações e deveres, com os quais tem manifestado tão pouca atenção.
A monumental hidrelétrica está sendo construída simultaneamente em cinco frentes. Todas trabalham em terreno seco, o que é uma raridade nessas grandes obras na
Amazônia. Têm assim excepcional celeridade, como em nenhum outro empreendimento similar na região.
No local ocupado pelos índios surgirá o principal dos dois vertedouros do projeto,
ao lado do qual será montada a casa de força complementar. A casa de força principal
será erguida depois do segundo vertedouro, este não motorizado, 50 quilômetros rio
abaixo em linha reta (140 kms pelo leito natural, que segue a “volta grande”). É um
desenho completamente original para os padrões das hidrelétricas. Nem todos atentaram para essa singularidade.
O projeto rejeitado liminarmente pelos mesmos grupos indígenas em 1989 pouco
tem a ver com o atual. A concepção original era a mesma da hidrelétrica de Tucuruí e
de outras grandes barragens. Tudo devia se concentrar na área que os índios ocuparam
no dia 21 de junho de 2012: vertedouro e casa de força. Se tivesse sido assim, a obra
pararia por inteiro e os prejuízos teriam sido de grande monta.
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lúcio flávio pinto
Para poder vencer (ou contornar) a resistência nacional ao aproveitamento hidrelétrico do vale do rio Xingu, pelo impacto ecológico que seria causado a uma das mais
belas e complexas áreas do país, entre Mato Grosso e Pará, o governo cancelou cinco
das seis barragens previstas nos inventários realizados a partir dos anos 1970. Restou
Belo Monte.
Ao invés de uma barragem, passaram a ser três. No ponto mais a montante já está
em construção o vertedouro principal, que no início não seria motorizado. Na mais
nova das versões (que parecem não ter fim), ele receberá oito turbinas do tipo bulbo.
Elas são bem pequenas: sua capacidade é mais de 20 vezes inferior ao das gigantescas turbinas Francis, 18 das quais (e não mais 20, como estabelecia a penúltima versão
do projeto) ficarão na casa de força principal.
As turbinas bulbo do vertedouro Pimental funcionam com pouca água e com água
em baixa queda (basta um desnível de 12 metros, contra 90 metros das turbinas convencionais de Belo Monte). Não precisam de acumulação de água num reservatório.
São – como dizem os engenheiros – a fio d’água, com baixíssimo impacto ambiental,
se seguidas as normas legais e os compromissos contratuais.
Os 233 megawatts que essas oito máquinas irão gerar, a partir de 2015, representam 40% do que produz uma única das 18 turbinas convencionais da outra
casa de força. No conjunto, estas últimas é que respondem pelos 11 mil MW
potenciais de Belo Monte. Energia que será transferida quase integralmente para
o sul do Brasil. O consumo local podia ser atendido apenas com as máquinas do
sítio Pimental.
Antes de chegarem a esse reservatório, as águas do Xingu (que podem atingir ali
vazão de 19 milhões de litros por segundo) serão desviadas do seu curso natural.
Ao fim de 50 quilômetros, elas terão descido 90 metros através de canais artificiais
de concreto, também já em construção, na maior obra desse tipo em todo mundo.
Uma intrincada rede de canais conduzirá a água a um segundo reservatório (o
Bela Vista) criado fora da calha do rio. Passando por um novo vertedouro, a água
chegará à tomada da casa de força principal. Suas máquinas precisam de 10 milhões de litros por segundo para serem capazes de gerar conforme sua capacidade
instalada.
Essa plenitude só será atingida nos meses mais chuvosos do ano, que não serão
mais do que sete ou oito. Por isso a energia firme, aquela disponível durante o ano
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A Amazônia em Questão
todo, cai para 4,3 mil MW, bem abaixo do que seria a média econômica, de 5,5 mil
MW. Ainda assim, os projetistas de Belo Monte garantem que ela será rentável e que,
sozinha, irá assegurar 8% da demanda nacional, através de uma matriz renovável e
limpa.
Respondendo aos críticos e se ajustando aos novos padrões de exigência, o complexo hidrelétrico do Xingu representa, ao pé da letra, o que diz o seu título. É a obra
mais complicada que já se concebeu e se realiza no Brasil no setor de energia. De
tantas emendas e correções, adquiriu um perfil inteiramente novo, que pode ser visto
como algo monstruoso (um Frankenstein hidrelétrico) ou primoroso, conforme o
modo de vê-lo.
É claro que essa vasta complexidade na abordagem de um rio não esteve posta na
mesa de negociação com as lideranças indígenas. Mas estará de volta às planilhas da
obra em acelerado andamento. De tal maneira que talvez só com o fato consumado se
venha a saber ao certo que criatura surgiu da prancheta dos engenheiros.
Eles se recusam, de forma arrogante e inaceitável, a discutir com a sociedade o que
conceberam e não param de mudar. Tantas alterações, inclusive com a obra já em pleno curso, sugerem que há um grave componente de imponderabilidade e de surpresa
nesta maravilha da engenharia.
A grande usina poderá ficar maior ainda
A Eletronorte pretende ampliar a hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, a segunda
maior do Brasil e a terceira do mundo, que custou o equivalente a 7,5 bilhões de
dólares (15 bilhões de reais), nas avaliações técnicas. O projeto original da usina já
foi concluído, com a instalação das 23 máquinas que estavam previstas nas duas fases
de implantação, alcançando a potência nominal máxima, de 8,3 mil megawatts, só
inferior à de Itaipu. Mas a subsidiária da Eletrobras anunciou em 2007 que pretendia
prolongar a estrutura de concreto pela margem direita do rio Tocantins, onde atualmente há uma barragem de terra.
O objetivo é utilizar a água que é vertida por dentro da barragem sem aproveitamento energético. No auge do período de cheia, entre janeiro e abril, o rio Tocantins
pode descarregar uma média de 35 milhões de litros de água por segundo através do
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ponto onde está a hidrelétrica, 350 quilômetros ao sul de Belém, mas o consumo de
todas as suas turbinas não chega a metade dessa oferta. Mais de 15 milhões de litros
por segundo passam pelos vertedouros e formam um enorme salto na saída, o maior
desse tipo que existe, sem produzir energia.
O prolongamento da barragem, que a Eletronorte quer construir, permitiria a
instalação de novas máquinas para aproveitar a energia que é desperdiçada no pique
do inverno amazônico por causa do excesso de água. Os estudos, que já teriam sido
submetidos à presidência da República, garantiriam a viabilidade dessa que seria a 3ª
etapa da usina, não prevista no projeto original. Esses estudos estão sendo mantidos
em sigilo pelo governo. A própria Eletronorte ainda não se manifestou a respeito.
As poucas informações disponíveis não especificam o tamanho da nova casa de
força, que será menor e só poderá ser utilizada durante parte do inverno, permanecendo inativa durante todo verão, em mais da metade do ano. Seu custo também
será muito menor porque a atual barragem de terra da margem direita do Tocantins
funcionará como ensecadeira.
Depois que a nova estrutura de concreto for concluída, essa barragem será desfeita
e o rio também passará a fluir pelo novo vertedouro. O tráfego de veículos, que atualmente passa pela barragem, será desviado através de uma ponte, a ser construída a
jusante (abaixo) do rio, isolando o conjunto da usina e da transposição da barragem
(as eclusas).
Esse projeto exigirá um novo planejamento para integrar a operação dos reservatórios das hidrelétricas na bacia do Araguaia-Tocantins. O reservatório de Tucuruí,
o segundo maior lago artificial do país, que acumula quase 50 trilhões de litros de
água numa área de 2.875 quilômetros quadrados, não poderá mais ser ampliado. Para
acrescentar 100 megawatts à potência da usina, a Eletronorte elevou em dois metros
o nível operacional do reservatório, para a cota de 72 metros.
Novas adições de água terão que vir dos lagos que se formarem a montante do rio,
com as hidrelétricas que forem sendo construídas. Três delas já estão em operação. As
duas em projeto são as de Marabá, no Tocantins, e de Santo Antônio, no Araguaia.
Pelas previsões oficiais, a bacia poderia alcançar a potência de quase 20 mil MW de
energia até 2015, com 10 ou 12 aproveitamentos no curso dos dois rios. Mas essa
meta é questionada pelos críticos da construção de hidrelétricas na Amazônia. Eles
temem, sobretudo, seus efeitos ambientais negativos.
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A Amazônia em Questão
Água: apenas para produzir energia?
Itaipu Binacional anunciou, em 2007, que os turistas que visitam a hidrelétrica,
no rio Paraná (a maior do mundo até a completa motorização de Três Gargantas, na
China), neste período, têm uma atração a mais: por causa do excesso de chuvas na
região sudeste, uma das calhas do vertedouro foi aberta.
O escoamento da água – não usada para a produção de energia – chegou ao máximo, quase 2,5 milhões de litros de água por segundo, na madrugada do dia 8 de
dezembro desse ano. Nesse momento, o volume era maior do que toda a vazão das
Cataratas do Iguaçu na mesma temporada. Os saltos do Iguaçu, uma das maravilhas
da Terra, desapareceram com o enchimento do enorme reservatório da usina, inferior,
porém, ao de Tucuruí.
O vertedouro foi aberto na véspera do natal de 2007. Desde então, ficou fechado
apenas nos dias 2 e 3. No dia 4 voltou a escoar a água excedente. E, de acordo com
a Divisão de Hidrologia de Itaipu, deverá permanecer aberto por um longo período.
O reservatório de Itaipu recebe água de toda a bacia do Paraná, uma das maiores
do continente, que inclui rios de Minas Gerais e de São Paulo, onde as chuvas estão
sendo abundantes. Como a hidrelétrica utiliza para a produção de energia aproximadamente 11 milhões de litros (ou 11 mil metros cúbicos) de água por segundo, que
chegam pelo reservatório, e como o lago atingiu sua cota máxima, de 220 metros
acima do nível do mar, o excedente é escoado pelo vertedouro.
Garante a binacional que, mesmo sem a atração do vertedouro, que abriu poucas vezes, quase 600 mil turistas visitaram a usina de Itaipu. Pelo lado brasileiro, foram 422.421
pessoas, procedentes de 120 países e territórios. No lado paraguaio, do início de janeiro
até o dia 21 de dezembro de 2008, foram 150.951 mil turistas. Se cada um gastou ao
longo dessa visita 100 dólares, numa estimativa extremamente conservadora, foram 60
milhões de dólares de rendimento apenas por um dia de permanência de turistas na área.
Quanto renderia um turismo ecológico e inteligente em Tucuruí? A hidrelétrica
tem o segundo maior vertedouro do mundo. Esse já é um atrativo. Mas há outro,
ainda maior apenas por esse aspecto: a água que passa pelo vertedouro é atirada para
o alto pelo maior salto em esqui do mundo. O visitante pode passar por dentro desse
túnel e sentir o impacto e a vibração da massa de água. Qual será o seu maior rendimento: gerando turistas ou energia?
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Essa é uma dúvida que o projeto da Eletronorte para uma terceira casa de força
imediatamente provoca. Claro que o poder competitivo de Tucuruí está prejudicado
pela horrível paisagem das árvores submersas no reservatório e seus efeitos negativos,
não só sobre turistas, mas – e principalmente – sobre a população local.
O aspecto negativo poderá ser compensado se for encarado sem engodos: certo
tipo de turista seria guiado para ver com os próprios olhos o impacto de barragens de
alta queda nas regiões tropicais, de baixa declividade natural, e até participaria dos esforços realizados para combater esses efeitos, se tais esforços realmente forem empreendidos e puderem ser exibidos como um esforço decidido da ciência para conciliar
o homem com a natureza. Por esse ângulo, Tucuruí seria um alvo privilegiado de um
turismo de base científica, para instruir e não para enganar ou manipular.
Esta iniciativa só trará resultado, e não apenas para fins turísticos, se os responsáveis pela usina agirem às claras, com transparência, honestidade e competência. Mas
não é o que estão fazendo novamente. Guardando o projeto da ampliação sob sete
chaves, a Eletronorte, como de outras vezes, opta por criar mais um fato consumado,
ao invés de debater previamente sobre seus propósitos.
Pode ser que a empresa esteja completamente certa ao dar maior rendimento
energético possível à água do reservatório de Tucuruí, mas se essa maximização em
nenhum momento antes foi considerada, o que é que a torna viável, exequível ou
desejável agora? O fantástico salto em esqui se tornou anacrônico? Foi um erro ou
excesso do projeto original? O uso que a empresa está recomendando é mesmo o mais
adequado? Não haverá implicações maiores sobre a operação da água em toda bacia?
Essa modificação não vai influir sobre a concepção dos barramentos a montante, exacerbando o aproveitamento energético, com depleções ainda mais acentuadas?
Estas são apenas algumas das perguntas que o projeto suscita. As respostas poderão
ajudar a refletir melhor sobre outras usinas, inclusive a de Belo Monte, no Xingu,
ainda em fase de projeto. Convém, portanto, fazer a Eletronorte se explicar.
Tucuruí: uma advertência
Bertolt Brecht alerta num belo poema que se costuma condenar a turbulência
das águas de um rio e ignorar as margens que o comprimem. A imagem cabe como
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A Amazônia em Questão
luva ao movimento dos atingidos pela barragem da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará,
que eclodiu em 2007. Muitos deles reivindicam, há duas décadas, compromissos que
a Eletronorte, empresa responsável pela obra, assumiu e não cumpriu, ou atendeu
apenas parcialmente.
A indignação de vários deles é legítima e justa. Suas velhas causas podiam ser
atendidas sem maior custo ou dificuldade, desde que não esbarrassem numa empresa arrogante e bitolada pela estreita relação do custo do kw (embora, no apurar
das contas, o saldo ultrapasse todos os parâmetros da sensatez e, alguma vezes, da
decência).
Toda indignação dos remanejados da área do reservatório de Tucuruí, porém, não
justifica os excessos dessa manifestação. Realmente em tais momentos é difícil ponderar as coisas para quem já realizou inúmeros protestos, cada vez mais frontais, sem
obter resultado satisfatório; frequentemente, sem ser respeitado.
Mas as lideranças do movimento deviam saber que atirar bomba molotov na entrada da usina, levar outras bombas para o seu interior, invadir a sala de controle da
hidrelétrica e ameaçar com um blecaute quase 10% da produção nacional de energia
gera consequências, que transcendem as razões do protesto, se tornam autônomas e
podem desencadear uma crise de amplitude imprevisível.
A cena mostrada pela televisão, do líder do movimento, Roquevam Silva, ameaçando desligar o controle, mesmo que o gesto não tivesse o efeito de paralisar as
turbinas da usina, é forte demais, sobretudo para os responsáveis em última instância
pela segurança do sistema. E, em seguida, ver um general do Exército, comandante
de uma brigada, sentar à mesa para negociar com os manifestantes, sujeito não apenas
a ser contraditado, mas a voltar para o seu quartel com a autoridade de comandante
abalada, engolindo um fracasso, é cena que leva a rever acontecimentos do passado
que acabaram se mostrando desastrosos.
Na sala de controle da usina, ocupada pelos manifestantes, se destacava a completa ausência de funcionários da Eletronorte. Até mesmo os seguranças debandaram
quando a bomba caseira foi lançada, detonando a invasão. Nos dias seguintes, outra
ausência lamentável: uma nota oficial da Eletronorte, causa última para essa sequência
de impropriedades.
Diante de alguns desatinos e muito oportunismo, minha memória foi cascavilhar
no passado, há mais de quinze anos, o suposto atentado de que a hidrelétrica teria
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sido vítima, quando um pedaço de metal foi encontrado em um dos rotores. Na verdade, não houve sabotagem, ou, se houve, não teve a inspiração política que lhe foi
atribuída. Mas o que não alcançou o efeito desejado a partir de dentro, pode vir a ter
a consequência almejada por pretexto externo, se o pretexto continuar a ser oferecido
em bandeja de prata, como a simbólica cabeça do profeta bíblico João Batista.
PS – Cinço anos depois, o governo federal anunciou um plano de longo prazo para
reforçar a segurança de todas as principais instalações de infraestrutura do país.
Uma história escandalosa
A Amazônia foi consagrada como província energética, do Brasil e do mundo, por
abrigar metade do potencial de geração do país de fonte hidráulica. Mais de 80% da
energia produzida no Brasil tem essa origem. Provavelmente nenhum país com as dimensões brasileiras tem tal dependência hidrelétrica, o que geralmente é considerado
como uma enorme vantagem competitiva (mas que acarreta também repercussões
negativas).
Como a Amazônia abriga a maior de todas as bacias hidrográficas, nada mais
natural do que de seus numerosos e caudalosos rios o Brasil – e o mundo – extraiam
a energia de que precisam: a mais limpa, a mais renovável, a mais barata de todas as
energias.
Mas duas características fundamentais dos rios da Amazônia impõem cautela nesse raciocínio demasiadamente lógico, mas por abstração geográfica. Em primeiro lugar, eles têm baixa declividade natural. Em segundo lugar, apresentam uma enorme
diferença de volume de água entre o período de cheia e o de vazante.
Esses dois elementos constitutivos básicos dos rios amazônicos foram devidamente
considerados enquanto se pensou em energia para o consumo interno da região. Considerava-se em barragens de baixa queda, construídas às proximidades das áreas de
maior demanda por energia. Quando a corrente de pensamento nativa se fixou num
ponto do baixo rio Tocantins (então conhecido em função das cachoeiras de Itaboca),
como o local mais viável para suprir as necessidades da maior concentração humana e
econômica da região, que era Belém, o máximo de aproveitamento imaginado era de
300 megawatts (ou 300 mil quilowatts).
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A Amazônia em Questão
Quando a hidrelétrica foi iniciada, em 1975, 300 MW era uma potência inferior à
capacidade de uma só das turbinas que deviam ser instaladas na casa de máquinas da
usina, cada uma delas de 350 MW (375 na segunda fase). Na primeira etapa, seriam
doze máquinas. A ampliação aduziria outras onze. Concluída, com 23 turbinas, a hidrelétrica terá potência quase 30 vezes acima do que os paraenses sonhavam gerar até
a década de 1960, atendendo plenamente o consumo de todo Estado e com reserva
para o futuro.
O governo, portanto, optou por uma barragem de alta queda, contrariando as
condições naturais do sítio geográfico, e pela transmissão da energia por grandes distâncias para os grandes centros consumidores. Independentemente de simulações
econômicas para definir a viabilidade da obra, havia uma determinação categórica
prévia: a hidrelétrica tinha que atender uma demanda nova de energia, várias vezes
superior ao consumo regional.
Tucuruí só começou a ser construída porque o Brasil, associado ao Japão, decidira
instalar às proximidades de Belém um polo industrial de alumínio, do tamanho de
outro empreendimento que a Alcoa, a maior empresa do setor, estava montando na
ilha de São Luís, no Maranhão. Na época do estudo de viabilidade da hidrelétrica
de Tucuruí, a Albras ia produzir 600 mil toneladas e a Alumar, 350 mil toneladas
de metal. Juntas, necessitariam de quase 2 mil MW, quase sete vezes mais do que a
necessidade energética de todo o Pará. Depois, a Albras foi reduzida quase à metade.
Na época eu carregava uma desconfiança que, com os anos, só se reforçou: os estudos realizados tinham como bitola confirmar o que já estava decidido, ajustando as
condições para que a obra se realizasse, ainda que agredindo a natureza e encarecendo
muito além do tolerável, mesmo com todas as ressalvas do tal “fator amazônico” (o
custo do pioneirismo). De 2 bilhões de dólares inicialmente, o orçamento atualizado
já passou de US$ 10 bilhões, sem que as dificuldades próprias da fronteira amazônica
pudessem explicar esse incrível “erro de cálculo”.
Ao repassar as palavras ditas alguns anos atrás pelo engenheiro Eliezer Batista, que
foi ministro das Minas e Energia (de João Goulart), secretário de Assuntos Estratégicos
(de Fernando Collor de Mello), presidente da Companhia Vale do Rio Doce e o grande artífice do “Projeto Carajás” com viés oriental, não me canso de me escandalizar.
O pai de Eike Batista, ex-marido de Luma de Oliveira, disse que, se não tivesse
havido corrupção em Tucuruí, não seria preciso subsidiar o consumo de energia pela
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indústria de alumínio, que custou US$ 2 bilhões aos cofres públicos. Gastaria menos
na engenharia da obra e sacrificaria menos a poupança nacional. A conta de chegada,
portanto, é de pelo menos US$ 4 bilhões. É a conta imaginada da corrupção em
Tucuruí.
Obras gigantescas têm ralos de drenagem e de desvio também enormes. Quem
prestará atenção a algumas dezenas ou mesmo centenas de milhões de dólares se a
conta trivial é de bilhões? No curto prazo, este é o grande dano. Mas em prazos mais
extensos, o prejuízo atinge dimensões difíceis de mensurar. Os engenheiros que realizaram a Tucuruí pragmática (e não os devaneios microscópicos dos nativos) fizeram
seus cálculos e modelagens indiferentes à natureza em torno. Viram-na como um
simples barro, capaz de se amoldar a qualquer moldagem e modelagem.
Por isso conceberam o ambiente pela arbitrária lógica do grande projeto, convencidos de que uma tecnologia de ponta ajustaria a adequação do espaço à necessidade
externa (e artificial). Lembro uma vez em que, novamente esgrimindo contra o então
presidente da Eletronorte, coronel Raul Garcia Llano, logo no início da obra, reparei
num enorme mapa enrolado, que ele puxou de um canto do seu gabinete na sede da
empresa, na avenida Conselheiro Furtado, no centro de Belém do Pará.
Examinei mais atentamente o mapa, que confirmava a observação de um artigo
que eu escrevera um pouco antes e ele, irritado, contestara: originalmente, a Eletronorte previa (só previa, sem nada fazer para consumar essa previsão) a construção das
eclusas na margem direita do rio Tocantins e não na margem esquerda, como acabaria
acontecendo. Não incorporava a bacia do rio Caraipé ao reservatório, o que significava uma subestimação no seu volume de água. Nunca mais vi esse mapa, mas o silêncio
do coronel Llano dizia tudo.
“Detalhes” como esse ajudavam a contextualizar os sucessivos valores definidos
pela Eletronorte para a área do futuro lago da hidrelétrica, que começou com 1.116
quilômetros quadrados e acabou em 2.875 km2, erro de cálculo (de 150%) coerente
com o estouro orçamentário da usina, que envolve R$ e não kms2. Mais eficazes
métodos de cálculo não explicam integralmente a discrepância ao longo do tempo.
Quem já conhecia a região antes da sua transformação pelos “barrageiros” e acompanhou o andamento da obra sempre duvidou que a potência firme da hidrelétrica
fosse mantida no nível de viabilidade econômica. A cada nova máquina da segunda
etapa ficava mais evidente que faltaria água durante a estação mais seca.
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A Amazônia em Questão
A primeira confirmação veio quando a Eletronorte elevou em dois metros (de
72 para 74 metros) o nível operacional do reservatório para adicionar apenas 100
MW à potência. A usina passou a operar rotineiramente naquela que devia ser
a cota maxima maximorum, ou seja, excepcional. Para aumentar em pouco mais
de 1% a capacidade de geração, o nível operacional do reservatório foi elevado
em 15%.
Para que a queda entre o volume de energia gerada no pico do verão e no auge
do inverno não cresça cada vez mais, ferindo de morte o equilíbrio de contas da usina, será preciso regularizar o rio Tocantins a montante. Só o reservatório de Tucuruí
não suportará a pressão de suas 23 turbinas. Por isso, a Eletronorte já está tratando
da nova estrutura, a de Marabá, que se juntará a mais seis no Tocantins e quatro no
Araguaia, em operação, em construção ou projetadas. Assim, na segunda década deste
século, a bacia teria doze hidrelétricas.
Essa literal – e perigosa – escalada é imposta ao pensamento articulado a partir de
um fato consumado: a usina de Tucuruí. A alegação é que não se pode deixar inativa
por boa parte do ano a quarta maior hidrelétrica do mundo. Mas se o Tocantins pagará um preço alto e amargo pela ausência de um planejamento mais amplo sobre o seu
aproveitamento, por que condenar o Xingu a esse mesmo destino?
Se tivesse agido com a desenvoltura que reivindica para si, a Eletronorte estaria
construindo seis grandes e médias usinas no Xingu, com capacidade para produzir em
conjunto mais de 22 mil MW, inundando 16 mil km2 (mais de cinco vezes a área de
Tucuruí, que formou o segundo maior lago artificial do Brasil).
A estatal e sua corte garantem que se não fosse uma conspiração contra o progresso, o resultado desta sua atividade seria muito mais desenvolvimento para o Brasil
em geral e o Pará em particular – além da humanidade, é claro. Os que se colocam
em seu caminho, impedindo-a de realizar seus planos, são os que desejam manter o
Brasil estagnado. Em último grau, os países ricos, que manipulariam uma miríade de
personagens como bonecos mambembes.
Certamente há atores mal intencionados de um lado e do outro do front. Eles
aparecem sempre, em qualquer front, em qualquer país. Feitas as ressalvas, porém,
o que se evidencia é – se não o despreparo – a má-fé da Eletronorte. A empresa não
apresenta todos os dados para o bom debate nem se submete ao critério universal da
verdade: a sua demonstração. Conforme vai enfrentando resistências, desde que reto| 104
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mou a ofensiva pela implantação da hidrelétrica de Belo Monte, a estatal muda seu
discurso e remodela o seu projeto.
Depois de tantos retoques e reformas, uma coisa é certa: o sítio escolhido para a
usina, a grande volta que o rio Xingu dá a partir de Altamira, na direção da foz, seria
o ideal para produzir energia, se ela fosse viável isoladamente (e se não tivesse que ser
transmitida por grandes distâncias).
Mas isso parece impossível. Para vencer as críticas feitas à primeira concepção da
hidrelétrica, a Eletronorte decidiu não mais construir uma grande barragem ao lado da
casa de máquinas, com quase 90 metros de altura, que inundaria todos os 50 quilômetros da “Grande Volta” do Xingu, cobrindo uma área de 1.225 quilômetros quadrados.
Ao invés disso, o novo projeto passou a aproveitar a queda natural, de 87,5 metros,
unindo cursos d’água natural, em linha reta entre Altamira e a casa de força, através
de canais de concreto, praticamente sem formar reservatório. A área inundada seria
de apenas 400 km2, correspondendo às enchentes normais do Xingu, apenas tornadas
permanentes a partir daí. Ainda haveria danos ambientais, sociais, culturais e econômicos, mas de dimensão inferior aos benefícios da obra.
O problema é que a conta dos benefícios teria redução drástica, não nos parâmetros anunciados pela Eletronorte, mas conforme a visão dos seus críticos. A potência
não seria de 4.714 MW, como diz a empresa, mas de apenas 1.172 MW, como têm
mostrado vários técnicos e cientistas.
Dois deles, Neidja Cristine Silvestre Leitão e Wilson Cabral Sousa Júnior, do
Instituto Tecnológico de Aeronáutica (o ITA, de São José dos Campos, SP), fizeram
cálculos simples e convincentes num artigo publicado no número 225 da revista
Ciência Hoje, da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), de 2006.
A conclusão dos dois pesquisadores é que Belo Monte será deficitária durante sua vida
útil, calculada em 50 anos.
A Eletronorte, diante de argumentações como esta, ou as contesta com solidez
ou terá que procurar novo ponto de fuga, como tem feito. Não que seus técnicos e
dirigentes sejam incapazes de realizar estudos sérios: a questão é que eles estão empenhados em criar um fato consumado no Xingu tão definitivo quanto Tucuruí se mostrou no Tocantins. Uma vez construída a primeira barragem, as outras lhes haverão
de seguir como consequência. E ninguém mais poderá evitá-las, se não quiser vestir
a carapuça de maluco.
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A Amazônia em Questão
O problema é só começar, como adverte Philip Fearnside, do Inpa (o Instituto
Nacional de Pesquisas da Amazônia, de Manaus), no segundo artigo sobre Belo Monte, publicado na mesma edição de Ciência Hoje.
Diante da ampla e bem fundamentada reação à primeira abordagem do Xingu,
a Eletronorte voltou à carga como se o único aproveitamento fosse o de Belo Monte, que seria viável sem novas usinas a montante. No entanto, como bem observa
Fearnside, o projeto atual, “logo após admitir que a opção de não considerar as outras barragens deveu-se ‘à necessidade de reavaliação deste inventário sob nova ótica
econômica e socioambiental’, afirma expressamente: ‘Frise-se que a implantação de
qualquer empreendimento hidrelétrico com reservatório de regularização a montante
de Belo Monte aumentará o conteúdo energético dessa usina’”.
Na verdade, acrescenta o pesquisador do Inpa, “nem a Eletronorte, nem qualquer
autoridade governamental, prometeram não construir barragens a montante – apenas
adiaram uma decisão sobre elas. Esse é o ponto crucial da questão”. Fearnside nota,
com mira certeira, que a questão não se restringe a decidir se Belo Monte deve ser
construída ou não: ela deve chegar à “mudança no sistema de tomada de decisão sobre
barragens de hidrelétricas”.
Sua sugestão: “Além de não mais encorajar a expansão de indústrias intensivas
de energia, o governo brasileiro deveria penalizar fortemente essas indústrias, especialmente a de alumínio, cobrando delas o dano ambiental que o uso intensivo de
energia implica. Também é preciso formar uma estrutura institucional confiável, para
assegurar que compromissos oficiais sejam cumpridos”.
Há vários anos venho defendendo um tipo de mudança que, além de ter sua base legal em pleno vigor, atenderia as preocupações de pessoas como Fearnside. O planejamento na Amazônia passaria a ser feito sobre nova base territorial: por vales. Cada plano de
desenvolvimento, de vigência decenal, elaborado pela agência regional (a ADA, por enquanto), teria que ser transformado em lei, através do Congresso Nacional, antes sendo
discutido em audiências públicas em suas bases territoriais (um ou mais estado), ouvida
a sociedade civil e sua instância de representação institucional, em especial o parlamento.
O comitê da bacia, que seria a instância fiscalizadora da execução do plano, quando aprovado, seria também o órgão de auditoria externa durante a elaboração do
documento técnico, tendo o poder de contestação e correção, antes mesmo das audiências públicas.
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lúcio flávio pinto
Com tal estrutura, a Eletronorte ou qualquer outro concessionário ou arrematante
não podia mais apresentar o projeto executivo de um único aproveitamento hidrelétrico. Teria que fazer previsão para toda bacia, não mais como um inventário genérico,
mas como um estudo de viabilidade específico e completo. Ela indicaria e requereria
ao comitê, que seria a instância decisória superior, com o controle amplo e múltiplo
da bacia, não só para o seu uso como fonte de energia.
Assim, talvez, o Xingu não estaria sujeito às desventuras do seu vizinho Tocantins-Araguaia. E as pessoas de boa intenção e preparadas para enfrentar o desafio do seu
uso não estariam tateando no escuro, como agora. Esse novo ambiente estaria clareado pela luz que devia decidir nesse momento: a da inteligência.
Governo se retira da grande obra?
O impasse em torno da construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu,
no Pará, completou, em 2007, cinco anos na sua segunda versão, a atual. Na primeira
versão, a Eletronorte foi derrotada pelos adversários da obra, de forma simbólica,
em 1989, quando a índia Tuíra esfregou seu facão próximo ao rosto do coordenador
da presidência (e depois presidente), o maranhense José Antônio Muniz Lopes (a
Eletronorte é mais feudo de Sarney do que de qualquer outro político paraense).
Tecnicamente ficou impossível aceitar a construção das duas barragens propostas, que
submergiriam uma área duas vezes e meia maior do que a de Tucuruí, formando o
maior lago artificial do país.
Três anos depois o projeto foi reapresentado, já com uma única barragem e a área
inundada reduzida a um terço do tamanho do reservatório previsto originalmente
para essa única usina. A barragem de Babaquara, que alagaria uma área superior a 6
mil quilômetros quadrados, foi definitivamente suprimida. Com as correções feitas, o
impacto ecológico e humano da hidrelétrica de Belo Monte podia ser muito menor.
Mas os analistas mais exigentes do projeto da Eletronorte continuavam duvidando
que a obra fosse viável economicamente.
Ao invés de enfrentar abertamente as resistências, aceitando discutir com todos
os dados à mesa, a Eletronorte faz firulas e volteios para tangenciar as falhas e insuficiências do seu projeto. Como sempre, quer impor sua vontade goela abaixo da
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A Amazônia em Questão
sociedade, por achar que está em suas mãos um autêntico maná energético, capaz de
prevenir as ameaças de novo “apagão” nos próximos anos, com energia supostamente
farta, barata e limpa.
O que mais me tem impressionado não é a solidez dos argumentos do Ministério
Público Federal, o principal antagonista da obra, mas a falta de seriedade da Eletronorte (e, agora, também da Eletrobras, que assumiu o front pelo lado oficial) ao enfrentar a polêmica em torno de Belo Monte. Estou convencido de que um tratamento
sério e consciencioso poderá minimizar a um grau até aceitável os efeitos negativos da
usina sobre a população, sobretudo a indígena, e o meio ambiente.
O que não me convence, desde a reapresentação do projeto, em 2002, é a engenharia econômica, a viabilidade técnica da hidrelétrica, não como uma obra de construção civil, mas como uma fonte de energia capaz de se autossustentar. Ao menos não
com a equação que é possível se montar com os dados fornecidos pela Eletronorte.
Mesmo não sendo um especialista na matéria, saio dos documentos produzidos
pela empresa sem me convencer da potência de projeto da usina, da energia firme que
pode fornecer, do preço viável para gerar e transmitir por grande distância e de sua
viabilidade enquanto empreendimento isolado, que é como tem sido apresentada à
sociedade.
Não acredito que a Eletronorte sonegue informações ou forneça informações incompletas e inconcludentes por desatenção. É atavismo autoritário: não está disposta
a ir além do ponto que delimitou como a fronteira para sua prestação de contas à
opinião pública. Quer realizar Belo Monte de qualquer maneira e depois partir para
os demais aproveitamentos, que adicionariam 15% a mais à capacidade de geração de
energia do país. Mesmo sempre dizendo o contrário: que Belo Monte é viável sozinha.
E não é.
Em mais um capítulo da litigância judicial, o Ministério Público ajuizou nova
ação civil pública arguindo que a Eletronorte, agora direta e explicitamente sob o
manto protetor da Eletrobras, pretende iniciar a elaboração do EIA-Rima sem dispor
dos termos de referência para o estudo e o relatório de impacto ambiental.
Isso significa uma grave involução institucional. O governo Lula praticou um
ato que nem o mais radical neoliberal sonhou um dia ser possível. Nem nos Estados
Unidos (ou, sobretudo, lá) há tal lavar de mãos do poder público na condução de
uma obra de infraestrutura de grande impacto, como é a hidrelétrica de Belo Monte.
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O Acordo de Cooperação Técnica assinado em julho de 2005 pela Eletrobras com
as empreiteiras Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e Odebrecht, é a materialização
desse encolhimento.
Através do acordo, as empresas, diretamente interessadas na obra, se comprometeram a elaborar um novo EIA/Rima, a revisão do inventário de potencial hidroenergético da bacia do rio Xingu, o estudo de natureza antropológica, a avaliação ambiental
integrada da bacia e o respectivo Programa de Desenvolvimento Regional Sustentável.
Esse novo contexto explica um documento, datado de janeiro de 2007, que os
procuradores da República anexaram à sua ação. Nesse documento, uma empresa de
consultoria (a E. Labore), contratada para realizar os estudos de interação social do
empreendimento, por não dispor ainda do termo de referência, recomenda as seguintes ações:
“Mudar, devido às circunstâncias emergenciais, o escopo do nosso discurso estratégico, se provocados pela mídia e/ou sociedade, para explicar a realização dos atuais
estudos, antes da consolidação do Termo de Referência.
(...)
Em caráter institucional, sugerir à superintendência /diretoria do Ibama, em Brasília, autorize que o escritório de Altamira tome as seguintes inciativas:
Expedir, em caráter emergencial, um Termo de Referência Padrão/Genérico, a
ser apresentado aos responsáveis pelo projeto, em que os estudos complementares de
Inventário, ora em execução, possam servir como complementação;
Expedir documento oficial, solicitando que os responsáveis pelo Projeto complementem o Termo de Referência Padrão/Genérico, alegando deficiência infraestrutural
e podendo aproveitar os estudos de inventário em consecução”.
Com razão, os procuradores federais apontam para a gravidade dessas afirmações:
“O licenciamento ambiental de um empreendimento que irá afetar diversas comunidades indígenas e populações tradicionais e custará bilhões de reais é tratado como
mera formalidade a ser cumprida para a desejada implantação.
Se existe alguma deficiência basta ludibriar a população e comunidades afetadas
Ou, em uma terminologia mais adequada, ‘(...) Mudar, devido às circunstâncias
emergenciais, o escopo do nosso discurso estratégico’”.
O que enfatiza essa gravidade – diz ainda o MPF – é que não se trata de uma afirmativa isolada “mas, um consenso no setor elétrico”. Lembra que em audiência pú109 |
A Amazônia em Questão
blica sobre o mercado energético realizada na Câmara dos Deputados, o diretor-geral
da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Jerson Kelman, “defendeu o fim
do licenciamento ambiental para projetos do setor energético reconhecidos como de
interesse nacional. O objetivo, segundo ele, é dar agilidade à aprovação dos projetos,
que dependeriam da análise de uma comissão pública de alto nível”.
Ao governo restará então o quê? Pagar, provavelmente.
Diálogo de surdos no Madeira
Está havendo um diálogo de surdos entre as partes do governo que divergem sobre a construção das duas hidrelétricas previstas pelo PAC (Plano de Aceleração do
Crescimento) para o rio Madeira, em Rondônia: as usinas de Jirau e Santo Antônio.
Em um relatório de 256 páginas, os técnicos do Ibama (Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) sustentam que o EIA-Rima é
deficiente e não garante que dois graves problemas não surgirão em consequência do
represamento do rio: o desaparecimento de um tipo de peixe, que vive entre os cursos
de jusante e de montante, e a acumulação de sedimentos a montante da barragem,
reduzindo consideravelmente o tempo de vida útil do seu reservatório.
A dissensão é tão inverossímil que, ao chegar ao conhecimento do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o fez desabafar bem ao seu estilo: “Jogaram um bagre no
meu colo, mas o que é que eu tenho a ver com isso?”, queixou-se ele, cobrando uma
definição – claro, favorável às hidrelétricas.
Mas Lula confundiu o bagre com a dourada, que tem um valor comercial superior,
para dizer o mínimo. E, sem acesso à íntegra do relatório e tendo do debate informações secundárias, de qualidade parecida à do presidente, a opinião pública pode ficar
cada vez mais desinformada sobre uma questão que não devia estar causando tantos
embaraços.
Represa não deveria ser mais fonte de problemas para os peixes. Há uma providência técnica já largamente dominada: a escada de peixe. A primeira foi construída
na década de 1950, na usina de Boneville, no rio Colúmbia, nos Estados Unidos,
para salvar uma espécie ainda mais valiosa que a dourada (e o bagre metafórico do
presidente): o salmão. Os pescadores ameaçaram dinamitar a barragem se não fosse
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garantido aos salmões subir pelo rio para desovar do lado do Canadá, no alto Colúmbia. Para eles – e para todos – salmão valia mais do que quilowatts.
Quanto aos sedimentos, eles podem deixar de ser ameaça se for construído um
descarregador de fundo. Esse mecanismo estava previsto no projeto original da hidrelétrica de Tucuruí porque a bacia do Tocantins-Araguaia também arrasta muitos
sedimentos, embora não tanto quanto o Madeira, que lança metade do material em
suspensão que chega ao Amazonas através dos seus afluentes.
Mas o descarregador de Tucuruí foi cancelado. Por dois motivos. Um, o risco que
poderia representar para a estrutura de concreto, com 75 metros de altura a partir do
leito do rio. Ela suporta 50 trilhões de litros de água acumulados e a vazão do rio,
que pode chegar próxima de 70 milhões de litros por segundo, no pique da cheia,
acarretando intensa vibração.
Esse fator era secundário: a engenharia daria conta dele. O principal foi o custo:
quando Tucuruí era calculada em US$ 2,1 bilhões (e já passou de US$ 10 bilhões), o
descarregador sairia por R$ 200 milhões, ou 10%. A Eletronorte preferiu bloquear a
passagem de sedimentos pelo fundo da barragem. E esqueceu o assunto. Até quando?
A possibilidade desse descarregador em Santo Antônio e Jirau não podia ser retomada agora? Provavelmente a questão já foi levada em consideração. A Eletrobras
disse que contratou para estudar as duas usinas o mais especialista em sedimentologia
do mundo. Mas da mesma maneira como a estatal alega não conhecer o relatório do
Ibama, os mortais comuns nada souberam do resultado da consultoria do expert.
Resta-lhes, como invariavelmente acontece em tais momentos, esperar o final do
banquete de sonegação para recolher as sobras de desinformação e tentar formar um
juízo. Como informação é poder, quem a possui tenta usá-la para impor sua vontade.
E só libera o acesso quando a decisão está tomada. O cidadão só vai tomar conhecimento do fato consumado quando chegar a hora de pagar a fatura.
Quem (o quê) mudou?
Num tom inquisitorial, uma pessoa me abordou logo que encerrei minha conferência durante a 59ª reunião anual da SBPC, realizada em Belém, em 2007: “Você
mudou de opinião sobre as hidrelétricas na Amazônia?”.
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A Amazônia em Questão
Era como se me flagrasse num ato de vira-casaca, que raramente é risonho e franco. A razão para a dúvida angustiada: eu alertara para aspectos inovadores do projeto
das usinas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, no estado de Rondônia, licenciadas provisoriamente pelo Ibama.
Não, não mudei de posição. Depois de anos de estudos e acompanhamento de
obras, firmei uma posição: a definição da viabilidade – ou conveniência – da construção de hidrelétricas na Amazônia deve tomar como premissas alguns fatores.
O primeiro deles é que o aproveitamento energético do rio deve ser precedido por
um plano de desenvolvimento econômico e social, abrangendo toda a bacia hidrográfica, plano esse que exige todos os estudos necessários para dar-lhe consistência
técnica. Além disso, precisa ser formalizado em um projeto de lei, a ser submetido
pelo poder executivo ao legislativo e aprovado depois de audiências públicas, a serem
conduzidas pelo Comitê de Bacia específico.
O segundo ponto: a barragem tem que ser de baixa queda, evitando assim a inundação de grandes áreas para a formação do reservatório. A elevação do nível natural do
rio deve coincidir com a altura máxima que ele alcança durante as cheias, ou apenas
um pouco além desse limite.
O terceiro ponto: a energia gerada terá aproveitamento local, pondo-se fim às
transmissões em alta tensão por grandes distâncias, com custos elevados e perdas no
percurso. Ao invés de a energia ser deslocada em grandes blocos para atender os grandes consumidores, nas regiões mais adiantadas do país, estes é que serão remanejados
para o ponto de geração. A Amazônia, no futuro, e o Pará de hoje não podem continuar a ser exportadores de energia bruta, o que apenas atualizará seus atrasos. O Pará
é o terceiro estado brasileiro que mais transfere energia bruta gerada no seu território,
abaixo apenas do Paraná e de Minas Gerais.
Estes são apenas os pressupostos. Se eles forem atendidos, aí cada projeto hidrelétrico será analisado no seu contexto até que se decida se ele responde aos interesses
sociais, ambientais e econômicos da área de influência da obra, da região e do país,
nessa hierarquia.
O que eu procurei destacar na minha conferência foi uma característica original
dos projetos de Santo Antônio e Jirau, inexistente nas hidrelétricas anteriores, sobretudo nas de maior porte (Tucuruí, no Pará, mas também Balbina, no Amazonas):
as barragens serão de baixa queda. Elas respondem à preocupação de não submergir
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lúcio flávio pinto
grandes áreas (3 mil quilômetros quadrados no rio Tocantins, quase 2,5 mil km2 no
Uatumã, com uma potência 32 vezes menor), mantendo a lâmina do semirreservatório um pouco acima do nível máximo das cheias naturais do rio Madeira.
Por ser um dado novo, essa característica das duas usinas precisa ser analisada com
atenção, o que até agora não houve. Para quem já possui algum grau de informação
sobre esse tipo de usina, foi uma surpresa saber que as duas hidrelétricas usarão turbinas bulbo, que funcionam na vertical, sem depender da verticalidade da queda de
água, como nas turbinas convencionais (que criam um desnível artificial quando o
curso d’água tem baixa declividade natural).
Eu imaginava que essa tecnologia só era compatível com hidrelétricas de menor
potência. Não é o caso das duas usinas do Madeira, com capacidade de geração de
energia definida em projeto de 3,5 mil e 3,9 mil megawatts (em conjunto, representam mais da metade da potência da maior usina em atividade no mundo, a de Itaipu,
que é de altíssima queda; essa metade, por isso, ao contrário do que têm assinalado os
críticos dos projetos, que a minimizam, é muito expressiva).
As usinas com turbinas bulbo, em operação em poucos lugares do mundo, têm
potência entre 200/400 megawatts. A que tem maior quantidade de turbinas está na
China e conta com apenas nove, cada uma delas com somente 31 MW. No Japão há
uma hidrelétrica que tem turbina com potência maior, de 66 MW, mas só conta com
seis turbinas. Santo Antônio terá 50 turbinas e Jirau 52, com potência entre 70 e 75
MW cada uma. Serão, portanto, e de longe, as maiores hidrelétricas com turbinas
bulbo do mundo.
Esse é um dado a ser examinado com acuidade por causa do seu aspecto vanguardista. Qual o preço de ter uma barragem de baixa queda numa usina de grande potência, termos que até agora nunca foram combinados em qualquer lugar do mundo?
Essa vantagem tem algum efeito colateral negativo? Um leigo, como eu, não sabe. E
os especialistas ainda não foram cobrados sobre uma resposta. Convém formulá-la em
público. E cobrar as respostas.
Os autores dos projetos de Santo Antônio e Jirau declaram que raciocinaram com
base em mais três condicionantes, além da limitação dos níveis máximos de água dos
reservatórios: não inundar território boliviano, incluir as eclusas e desenvolver soluções de engenharia que produzam menos impacto ambiental. São boas condicionantes. Ainda falta testá-las até que se mostrem verdadeiras.
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A Amazônia em Questão
Nada indica, porém, que a Bolívia tenha razões para se queixar dos projetos se eles
não prejudicarem a migração dos peixes, não retiverem sedimentos e assegurarem a
navegabilidade do Madeira a jusante. A gritaria, na onda da reação que houve dentro
do Brasil, é mais um lance de sagacidade do presidente Evo Morales.
Já a questão das eclusas não está bem resolvida. Embora previstas nos dois projetos hidrelétricos, elas não fazem parte do orçamento das obras da hidrelétrica. É o
mesmo erro de Tucuruí. Ele só poderá ser corrigido se o sistema de transposição for
obrigatoriamente associado à geração de energia. Em compensação, Santo Antônio
e Jirau representam um retrocesso em relação a Tucuruí por não incluir o sistema de
transmissão associado, que existiu no Tocantins, embora apenas em linha singela,
que persistiu nessa condição por muito tempo, abusando do risco de interrupção por
acidentes.
A exclusão só é aceitável se as duas usinas do Madeira forem obrigadas a entregar
a energia no ponto de geração para consumidores que se instalarem à sua volta, nem
que para isso contem com incentivos oficiais (mas não leoninos, como no padrão
Sudam).
Se a dissociação dos dois orçamentos for simplesmente para não revelar o custo
absurdamente alto da transmissão, como já aconteceu no projeto de Belo Monte, no
rio Xingu, a manobra não pode ser tolerada. A preço de cinco anos atrás, só a geração
de Santo Antônio e Jirau era calculada em mais de 13 bilhões de reais. Pelos mesmos
parâmetros, a geração elevaria o custo total para R$ 20 bilhões. Ao mesmo tempo em que repetem alguns erros e introduzem erros novos, os dois
projetos apresentam inovações positivas, ou pelo menos abrem a possibilidade de se
avançar na configuração de empreendimentos hidrelétricos que não causem danos
irreparáveis ao meio ambiente, não sejam deficitários socialmente e não acarretem o
desenvolvimento do subdesenvolvimento da Amazônia.
Não é que já estejam enquadrados nesse novo figurino. Podem até, no apurar das
contas, não caber em seus parâmetros. O que não se pode é simplesmente rejeitá-los
com base nas outras experiências hidrelétricas na região, cujo saldo é negativo. Como
há novidade, é preciso encará-la no novo posicionamento. Não fui eu que mudei,
pois: foram os projetos.
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lúcio flávio pinto
Os acidentes em Tucuruí
No dia 15 de junho de 2007 um acidente irrompeu no transformador da unidade
número sete da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, a quarta maior do mundo. A causa
seria um curto-circuito na bucha. O incêndio se propagou para a máquina seguinte,
que também entrou em curto e saiu de operação. As duas turbinas só poderão voltar a
funcionar em nove meses, segundo a estimativa oficial, fazendo a capacidade nominal
de geração da usina baixar de 8,4 mil para 7,7 mil MW.
Como o acidente ocorreu no auge do verão, quando diminui a quantidade de água
no reservatório, a potência firme, de 4,1 mil MW, não será comprometida. Tucuruí
continuou a atender a demanda do Sistema Integrado Nacional, que mantém a operação interligada de todas as hidrelétricas do país, alternando as fontes conforme a
disponibilidade de cada uma das bacias hidrográficas.
Talvez por isso – e pela discrição da Eletronorte, responsável pela usina – o episódio não teve qualquer destaque na grande imprensa. Provavelmente, foi subestimado.
Nos últimos três anos, dois acidentes semelhantes ao de junho já aconteceram em
Tucuruí.
O primeiro foi em 2004. Em todos eles, o curto-circuito começou na bucha de
um transformador e se estendeu imediatamente ao vizinho, embora haja uma chapa
de aço entre eles, exatamente para evitar a propagação de fogo. Em todos os três acidentes a explosão foi muito forte. Por sorte, não houve vítimas, mas um técnico acabara de dar manutenção na máquina 7 quanto ocorreu o incêndio, depois do estouro
da bucha. Por muito pouco ele não foi atingido.
O primeiro acidente, na máquina 11, atingiu também a 12. No ano passado, o
fenômeno se repetiu nas máquinas 5 e 6. Agora, chegou às unidades 7 e 8. O que
impressiona os técnicos é o impacto do curto-circuito, que praticamente destruiu os
conjuntos de geração de energia, cada um deles com capacidade para abastecer uma
cidade de médio porte. Segundo a Eletronorte, os danos foram – ou serão – integralmente cobertos pelo seguro. A empresa não citou números. Mas por que tantos e
tão arrasadores acidentes? A questão ainda não foi satisfatoriamente respondida, nem
para o público interno.
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A Amazônia em Questão
A hidrelétrica amaldiçoada
A intenção de extrair energia do rio Xingu, no Pará, tem 28 anos. Foi em 1980 que
começaram os inventários sobre o potencial hidrelétrico da bacia, que drena as águas
de 7% do território brasileiro. Em 1989 o projeto para o primeiro aproveitamento
energético foi brecado pelos índios. Só dois anos depois a Eletronorte se recuperou
do abalo que a índia Tuíra causou quando esfregou seu facão no rosto do diretor da
empresa, José Antônio Muniz Lopes, para demonstrar a rejeição dos primitivos habitantes da região ao empreendimento.
Em junho de 2008, a nova investida dos índios contra o principal responsável
pelos estudos para a construção da usina de Belo Monte, o engenheiro Paulo Fernando Vieira Souto Rezende, há 37 anos funcionário da Eletrobras, interromperá
a continuidade do projeto – e por mais quanto tempo? Será o seu golpe de morte,
definitivo? Ou, pelo contrário, dará ao governo armas para executar para valer o empreendimento?
Muniz Lopes sofreu apenas um grande susto quando Tuíra partiu para cima dele,
pintada para guerra, gritando e manejando sua arma intimidadora. Rezende, porém,
ficou com um golpe profundo no braço e com escoriações generalizadas, resultado de
murros e chutes dados por vários índios, e não mais apenas por Tuíra, hoje com liderança excepcional para uma mulher por conta da sua decisiva participação nos dois
episódios, com intervalo de dezenove anos.
O incremento de agressividade entre os dois momentos serviria de indicação de
que agora a paciência dos índios do Xingu se esgotou e eles simplesmente não querem
mais usina alguma no rio. Sua disposição é morrer, se preciso for, até o último deles,
mas não permitir a execução da obra, conforme anunciaram no comunicado final do
encontro, realizado entre 19 e 23 de maio de 2011, em Altamira.
As cenas chocantes criadas por guerreiros furiosos investindo com facões, bordunas, lanças e flechas sobre o corpo do engenheiro carioca, atirado ao chão, rodou
pelo mundo, provocando espanto, perplexidade, indignação e revolta. Mas também
preocupação e medo.
Depois dessas cenas, ainda mais aberrantes para moradores de países que já não
convivem com os primitivos ocupantes de seus territórios, completamente absorvidos
ou eliminados, qual seria o primeiro passo para sair da inércia do susto?
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lúcio flávio pinto
De imediato, e ao menos de forma explícita, o estado de beligerância foi interrompido pelas duas partes. Os índios, na avaliação interna que fizeram, no dia seguinte
ao incidente, ainda em Altamira, admitiram que se excederam e cometeram um erro
grave. Pareciam conscientes que, a partir de agora, terão que recuperar o apoio da
opinião pública, que condenou seu ato, para poderem sustentar o veto à hidrelétrica,
projetada para substituir Tucuruí, no rio Tocantins, como a quarta maior do mundo
(ao menos em potência nominal de geração de energia).
Mas também a reação do engenheiro foi de surpreendente compreensão e tolerância em relação à própria agressão sofrida. Surpresa tanto maior quanto se conhecem as
características da personalidade de Paulo Rezende no curso dos três anos como chefe
dos grupos que estudam a viabilidade socioambiental de Belo Monte.
Ele teria refreado seus impulsos, perfeitamente naturais, para aproveitar os efeitos
desgastantes sofridos pelos índios, transferindo para a Eletrobras a liderança do longo
e acidentado processo pelo qual a hidrelétrica tem passado, por conta da sistemática
resistência dos seus críticos e opositores?
Outro fato pós-agressão parece indicar nesse sentido: a manifestação do cacique
kayapó Jair Bepe Kamró, da aldeia Topkrô, e da índia chipaia Maria Augusta, desaprovando a agressão dos guerreiros kayapó e a favor da usina. Esse primeiro apoio
declarado começa a causar fissuras num movimento até então aparentemente monolítico.
Em menor escala, essa reversão de situação já aconteceu em outros casos de conflitos semelhantes na Amazônia. A mineradora Paranapanema conseguiu mudar a atitude dos índios waimiri-atroari quanto à exploração da jazida de cassiterita do Pitinga,
no Amazonas: de radicalmente contra, a postura se tornou tão favorável que os índios
afastaram da área antigos aliados, que não os acompanharam nessa mutação. Também
a Companhia Vale do Rio Doce atraiu para si os índios xikrin do Cateté, vizinhos das
minas de Carajás e primos dos kayapós.
Como essa conversão foi obtida através de aplicações significativas em obras e
em dinheiro vivo, além de muitas relações públicas, é bem provável que os mesmos
métodos sejam repetidos em favor de Belo Monte. A Eletronorte tem bastante experiência na matéria e já vem atuando dessa maneira junto a algumas tribos na área
de influência da usina de Tucuruí, como os parakanãs, e em abordagem cautelosa
no Xingu.
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A Amazônia em Questão
Com a retração dos kayapós depois da agressão ao engenheiro, o campo está mais
favorável a esse tipo de empreitada. E as lideranças do movimento – índias e não-índias – sabem não só dessa possibilidade, como dos seus efeitos quase inevitáveis,
considerada a receptividade a tal iniciativa por parte de vários grupos indígenas.
Assim, não é de se esperar incursões justiceiras ou intimidatórias, como de uma
carga de cavalaria à moda do oeste americano, que no Brasil assume a forma de manobras como a desencadeada pela Operação Arco de Fogo, e sim trabalho de proselitismo e convencimento, à base de benefícios concretos e de dinheiro vivo nas mãos
dos líderes tribais. Para a eficácia dessa investida contribuirá o prosseguimento das
medidas policiais voltadas para a apuração da agressão em si e dos seus antecedentes.
Ainda que a Polícia Federal de Altamira identifique individualmente os agressores
e os enquadre penalmente, de tal maneira a autorizar seu indiciamento, denúncia e
eventual pronúncia, o processo seguirá um rito longo e complexo até poder produzir
algum resultado concreto, se é que chegará a tanto.
As implicações antropológicas do ato são um fator suficiente para que o caso acabe
prescrito ou feneça pelo meio do caminho. Mas a identificação, caracterização e punição da coautoria, através dos supostos autores intelectuais do delito, pode ser uma
ramificação mais expedida.
O delegado Jorge Eduardo Ferreira, da PF de Altamira, que preside o inquérito,
quis chegar logo aos “finalmentes” reconstituindo de pronto a trama. Organizações
Não Governamentais, sobretudo estrangeiras, e religiosos da prelazia do Xingu e do
Cimi (Conselho Indigenista Missionário) planejaram o ataque, doutrinando os kayapós para que eles repetissem, com um tom de agressividade a mais, o rito de dezenove
anos antes. Tudo teria sido providenciado para o revival, agora adicionando ao personagem principal, Tuíra, seus coadjuvantes, os guerreiros, municiados da ferramenta
indispensável para conferir dramaticidade à cena: os facões.
Foi fácil ao delegado compor uma história completa a partir das imagens da câmara de televisão da loja na qual os facões foram comprados por um dos religiosos
envolvidos na programação do encontro. Já estabelecer o nexo causal numa instrução
processual na justiça será muito mais problemático – e talvez até inócuo.
Se algumas pessoas ou grupos realmente articularam a repetição da dança do facão
de Tuíra, em 1989, não podiam ter imaginado o ambiente tenso que se formaria em
torno da palestra do engenheiro da Eletrobras. Mais do que apresentar o projeto,
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como fez Muniz Lopes dezenove anos antes, ele comunicou a todos uma decisão: a
Eletrobras vai realizar Belo Monte de qualquer maneira, por estar convencida de que
isso é o melhor para o Brasil e que a usina é indispensável para assegurar energia para
os brasileiros, evitando o risco de apagões e racionamentos.
Rezende declarou que Belo Monte terá a menor relação área inundada/capacidade
instalada de energia. Seu reservatório terá 440 quilômetros quadrados, mas metade
dessa área já é afogada todos os anos pelo Xingu.
Esses 220 km2 seriam a única intervenção do barramento porque a Eletrobras decidiu que só construirá uma usina no Xingu, abandonando os sete aproveitamentos
previstos em 1987, que provocariam a submersão de 18 mil km2, ou os 4 mil km2
da versão anterior do complexo de Belo Monte. Para um engenheiro, esses números
soam como a música de Bach para outros ouvidos.
Os brancos responsáveis pelo grande projeto não têm dado a devida atenção aos
índios que ocupam vários pontos da bacia, considerando-os meras figuras decorativas,
sem poder decisório. Acham que podem impor-lhes fatos consumados, como fazem
aos demais brancos, que supõem menos favorecidos em fosfato (daí certa arrogância
dos técnicos) e sabem que pouco pesam (quando pesam) na balança do poder.
A exposição do engenheiro, no segundo dia da programação do encontro, transcorria normalmente, mesmo com seu tom enfático, até o momento em que um grupo
reduzido de estudantes, num setor das arquibancadas do ginásio (que exibia grandes
claros), começou a vaiá-lo.
Como seria de esperar nessa circunstância, Paulo Rezende tentou ironizar a reação,
contrapondo aos apupos algumas informações que julgava de efeito. Lembrou que no
ano passado a muito criticada hidrelétrica de Tucuruí, que começara a citar exatamente quando começou a manifestação dos estudantes, rendera 44 milhões de reais aos
municípios na sua área de influência.
Belo Monte, se já tivesse operando, iria proporcionar ainda mais: R$ 65 milhões.
“Vocês acham pouco? Eu acho bastante. Mas a sociedade é que tem que avaliar o
quanto representa”, disse ele, mostrando que a participação da Amazônia no sistema
nacional de energia subirá de 8,9% para 9,3%.
Sua voz já não era ouvida. Uma das organizadoras, ao lado, pediu aos manifestantes para deixarem o engenheiro concluir sua palestra, que já estava na faixa de
prorrogação de cinco minutos, “se não ela vai ficar ainda mais longa”. Ao que Rezende
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aduziu: “Se eles continuarem, vou ficar aqui a tarde toda”. Mas quanto ao barulho
dos estudantes seguiram-se cantos e gritos dos índios, ele se sentou na sua cadeira, na
ponta da mesa colocada num dos lados da quadra de esportes. Armada do seu facão,
Tuíra se dirigiu a ele, cantando e dançando, como da outra vez. Outros índios cercaram o engenheiro e começaram a agredi-lo.
O que prenunciava um massacre, contudo, acabou com bem menos danos do que
os gestos sugeriam. Talvez porque providencialmente o engenheiro se manteve inerte
e submisso (quem sabe, por pavor), ou porque, no fundo, os guerreiros soubessem
do limite para aquele ataque. Se fosse um impulso completamente natural, é pouco
provável que dele não resultassem ferimentos mais graves.
É uma das características dos kayapó quando agridem: podem se tornar muito
violentos se contrariados. Outro funcionário da Eletrobras, que defendeu seu colega,
viu o facão de um índio subir e descer várias vezes, roçando ameaçadoramente sua
nuca. Mas não foi ferido.
Uma vez vencido o susto imediato, nem se preocupou mais em se defender, concentrando sua atenção em Rezende. Ficou claro que, esgotada a mise-en-scène, todos
escapariam. Não se pode dizer, entretanto, que o arranjo não tenha sido mais obra dos
próprios kayapós, adestrados nesse tipo de prática, do que o que algo eventualmente
sugerido por terceiros. Esses índios sabem muito mais sobre o que querem e os meios
de alcançar seus objetivos do que os brancos costumam estar dispostos a admitir, sejam parceiros deles ou seus contrários.
A maioria da opinião pública pode ter sido convencida pelo enredo apresentado
quase de pronto pelo delegado e, a seguir, ecoado e enriquecido em uníssono pelos
defensores da usina, dentro e fora do governo, incluindo a imprensa: corporações
internacionais ou países poderosos estão por trás das ONGs que deram suporte ao
novo encontro dos povos indígenas do Xingu, usando como base local a prelazia e
suas ramificações.
Esses personagens não querem que o Brasil cresça e se torne um concorrente no
mercado internacional. Gostariam que o país permanecesse atrasado ou deixasse que
seus vastos recursos naturais continuassem a ser explorados por agentes externos. Os
índios são um instrumento precioso dessa estratégia: qualquer coisa que façam tem
repercussão em todo mundo, reforçando um ambiente contrário ao Brasil, uma das
quatro potências emergentes do planeta.
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Esse é um script que pode ser aplicado a qualquer lugar e a qualquer tema da Amazônia, independentemente da sua demonstração. É lançado sobre qualquer grupo que
contrarie os exploradores de carne e osso que atuam na região, ou que questione as
ações oficiais, tendentes a favorecer estes seus parceiros. Como há realmente empresas
e países interessados em conquistar uma presença mais ativa na vasta fronteira amazônica, há sempre verossimilhança nesse discurso, mesmo que ele não resista a um teste
mínimo de consistência.
Se existem competidores interessados em sabotar o Brasil, há também aqueles
com projetos específicos para o nosso país. Um dos mais importantes é transferir para
a Amazônia empreendimentos eletrointensivos com baixo valor agregado, como a
mineração, a siderurgia e a metalurgia básicas. Essas atividades, que vêm sendo descartadas no primeiro mundo, demandam grandes quantidades de energia.
As fontes amazônicas efetivas de energia estão exauridas, mas a pressão desse setor
produtivo está em expansão. Logo, ele precisa de mais energia em grande quantidade.
Não há alternativa em prazo comercialmente viável além da fonte hídrica para esses
empreendimentos. Do contrário, se quiserem ter continuidade (e querem), eles terão
que recorrer a hipóteses ainda mais imediatas, como o carvão, vegetal ou mineral, que
é elástico, além do gás, limitado, ao menos por ora.
Pelo menos esses interesses, que são concretos e podem ser apontados sem maior
elucubração, estão empenhados em que saiam do papel projetos como o de Belo
Monte para o Xingu e os de Jirau e Santo Antônio para o Madeira. São interesses incorporados pelo establishment, tanto no plano federal quanto estadual e municipal, no
que se convencionou chamar de “os desenvolvimentistas”, quase sempre a qualquer
preço (embora haja os mais sofisticados).
Se muitos defendem as hidrelétricas por acreditar sinceramente nelas, há os que
as combatem dotados da mesma sinceridade. Boa intenção, porém, não costuma ser
o critério da verdade. Ela se firma pela demonstração e só pode fazê-la aquele que
domina os elementos do raciocínio, que são os fatos. Mesmo que consigam barrar de
vez Belo Monte e qualquer usina no Xingu, os índios garantirão a paisagem natural,
o mundo selvagem que integram, ou pelo menos uma abordagem mais ponderada
dos seus recursos?
Impedirão que o desmatamento prossiga, às vezes com a decisiva colaboração de
alguns dos próprios grupos indígenas? Se a hidrelétrica pode vir a ser o arremate dos
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males, na situação atual nada assegura que até lá os fazendeiros, madeireiros, assentados, mineradores, garimpeiros e outros “pioneiros” não continuem a contribuir para
que esse arremate venha a ter importância decrescente. O mal maior eles já estão
causando – e a oposição que os índios lhes movem tem tido eficácia menor.
Em relação a essas frentes, a ofensiva hidrelétrica, por ser incomparavelmente mais
concentrada como epicentro, tem uma vantagem notável: ela pode ser mediada por
providências acautelatórias embutidas no licenciamento ambiental, inexistente ou
meramente formal no caso das hordas de madeireiros, fazendeiros, assentados, garimpeiros e outros atores atomizados, porém corrosivos como cupins.
Pouco antes da cena de impacto em Altamira, o Tribunal Regional Federal autorizou a retomada dos estudos ambientais de Belo Monte, sustados um pouco antes.
Para isso, os empreendedores aceitaram descartar a clausula de sigilo desses levantamentos, algo completamente absurdo. Mas não foi tocada outra cláusula igualmente
inaceitável: os futuros realizadores da obra tratando da sua viabilidade socioambiental, suspeição que devia ser acatada como questão de princípio. Por conta desse detalhe relevante é de se prever mais um capítulo de litígio nessa novela protagonizada
pelo grupo Eletrobras e o Ministério Público Federal.
A história poderia seguir um rumo mais racional e consequente. Proponho uma
sugestão a exame. A Eletrobras colocaria na rua um edital para a elaboração dos termos de referência para o EIA-Rima de Belo Monte, com prazo curto (30 dias, por
exemplo). Uma comissão decidiria sobre a melhor proposta, comissão da qual participariam representantes das instituições federais de pesquisa da região e do setor
elétrico.
O anúncio da decisão seria feito em sessão pública, com direito a questionamentos à deliberação. Definidos os parâmetros dos estudos, uma nova concorrência seria
imediatamente aberta para os interessados em produzir o EIA-Rima. A mesma comissão examinaria e deliberaria sobre as propostas, anunciando o resultado em nova
sessão pública, aberta aos interessados, excluídos os que pretendessem participar da
fase executiva de obras.
O estudo de impacto ambiental seria financiado por um fundo público a ser criado com esse objetivo. Os gastos seriam apropriados como encargos da obra, a serem
ressarcidos pelo construtor, obrigado a adotar as normas do EIA-Rima, elaborado
independentemente da engenharia, mas incorporadas a ela.
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O EIA-Rima seguiria o processo de audiências públicas até ser submetido aos conselhos do meio ambiente nacional e estadual, e aprovado. Qualquer cidadão poderia
denunciar desvios do projeto e o Conama teria que abrir procedimento de apuração,
em rito sumaríssimo, mas prestando contas ao distinto público.
Essa alternativa forneceria todas as informações necessárias para responder a
várias questões, que ainda não foram atendidas pelos projetistas de Belo Monte.
Desde uma definição convincente sobre a viabilidade técnica e econômica da usina,
contestada por gente capaz, até mostrar se é possível manter a integridade do Xingu, conforme as aspirações dos índios, ou se esse é apenas um delirante sonho de
verão. Ao invés de partir do pressuposto de que é preciso viabilizar a hidrelétrica,
deve-se tomar como premissa uma pergunta ainda maior: por que Belo Monte? E
para quem?
Para começar pelo verdadeiro ponto de partida, essa pergunta tem que considerar
a atual crise de energia, mais uma vez demarcada pelos preços recordes do petróleo,
a maior e ainda a mais barata das fontes massivas. A crise dos hidrocarbonetos está
acelerando o estudo e a implementação de alternativas, desde as mais conhecidas
(e temidas), como o carvão mineral, até as verdadeiramente revolucionárias, como a
solar, a eólica e a fusão nuclear.
Cada um desses caminhos tem seu cronograma e suas condições. É preciso considerar com acuidade cada um deles para decidir bem sobre aquela alternativa que,
num exame meramente superficial, parece a mais evidente na Amazônia: os rios.
Podemos cometer o erro de travar o fluxo de água em rios fantásticos para criar
uma energia que poderá vir de fontes com menor impacto ambiental e social – e, o
que agravará ainda mais o erro, mais baratas – quando podíamos dar a essas paisagens selvagens um uso mais avançado e nobre (com a ciência e a tecnologia ajustadas
para esses fins), na forma de produtos de muito maior valor agregado do que aços ou
metais.
O cenário mundial poderá mudar drasticamente se a fusão nuclear, que produzirá
energia à base de água, sem o efeito radioativo da fissão nuclear, se mostrar viável. Mas
quanto tempo será preciso esperar por essa revolução? E de que maneira nos inseriremos nela? Seremos autores ou apenas espectadores nesse novo capítulo da história
da energia produzida pelo homem? Até lá, como resolveremos os problemas de hoje,
alguns deles se tornando de ontem?
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Respostas a essas e muitas outras perguntas só serão dadas se os especialistas examinarem o ambiente, com os propósitos do saber e do conhecimento, antes que outros
personagens se apresentem, com outros papéis. O benefício de projetos de grande
porte como o de Belo Monte é que eles permitem esse trabalho prévio, de inventário,
de sondagem. Sem os vícios que o processo apresenta atualmente, o EIA-Rima da
hidrelétrica pode ser a oportunidade de ouro, que falta nas outras frentes, como a dos
madeireiros ou dos agricultores.
O protesto dos índios do Xingu pode servir para dar início a esse momento, mas
não como resposta para as dúvidas, que subsistiram à cena de violência. A partir daí,
a busca terá que ser coletiva. Neste cenário, ninguém é o único artista nem o dono
da verdade, por mais que tenha um discurso pronto e acabado (ainda que lacunoso),
como certos críticos das hidrelétricas, ou tenha uma roupagem cenográfica de impacto e um direito primal, como os índios. O Brasil é formado por todos, mas é muito
maior do que cada um.
Realidade e fantasia no mundo da energia
A região amazônica vem batendo seguidamente recordes de demanda instantânea
de energia, conforme os registros do Operador Nacional do Sistema (ONS). No último, em junho de 2009, seus reservatórios estavam com quase 99,7% da sua capacidade de armazenamento de água, no auge do inverno. Às 18h52, o consumo no Norte
do país alcançou 4.197 megawatts, deixando para trás o recorde anterior, registrado
na véspera, de 4.182 MW.
Nesse mesmo momento a demanda de energia em todo o Brasil também era recorde, com 65.019 MW. Mas a maior marca nacional anterior foi atingida num espaçamento maior do que a amazônica, em 11 de abril desse mesmo ano. A causa
geral dos recordes, segundo o ONS, foram as altas temperaturas registradas em todo
o território nacional.
No Norte o recorde teve uma causa adicional: nesse dia estava praticando um
“elevado intercâmbio” com as regiões Nordeste e Sudeste: transferia para elas nada
menos do que 3.180 MW. Como consequência, aumentaram as perdas na rede de
transferindo do subsistema. Além disso, o ONS observou que houve acréscimo de
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carga no ponto de medição da Albras e da Alunorte em torno de 31 MW médios
em relação ao último recorde verificado, além dos acréscimos de carga nos demais
consumidores industriais.
O recorde de consumo ocorreu exatamente no dia em que os índios kayapó atacaram o engenheiro Paulo Rezende, responsável pelos estudos da hidrelétrica de Belo
Monte, em Altamira. A coincidência devia recomendar cautela, discernimento e lucidez na análise da questão energética na região. A Amazônia contribui com quase 9%
da geração nacional de energia. A usina de Tucuruí responde por 80% dessa potência.
No dia do recorde de consumo, quase metade da geração energética da região foi
transferida para o Nordeste e o Sudeste. De pouco mais da metade usada internamente, acima de 50% foram absorvidos pelas duas fábricas de alumínio, a Albras, em
Barcarena, e a Alumar, em São Luís, os maiores consumidores individuais do Brasil
(com 3% do total).
A outra metade foi partilhada por 25 milhões de habitantes, em suas residências e
locais de trabalho, pagando uma energia muito mais cara do que os dois empreendimentos eletrointensivos, que têm direito a tarifas incentivadas. Metade desses 3 mil
MW tem origem térmica, à base de óleo diesel e gás.
Esse é o marco de referência a considerar na hora de definir o que se pretende fazer
com a energia já disponível e com aquela que precisa ser adicionada ao potencial instalado. A manifestação dos índios é um dos componentes nessa equação, de relevância,
enquanto intérpretes autorizados e qualificados a falar sobre o mundo da natureza.
Mas não podem ser considerados como a única voz, a decisória. Eles próprios
precisam ponderar sua vontade pela realidade maior, se não quiserem ficar sós ou criar
elementos para uma negociação que acabará não servindo ao interesse coletivo, nem
ao sentido do verdadeiro progresso da região. Precisam obter informações, checá-las,
aplicá-las ao seu mundo e encontrar um denominador comum, o que, evidentemente, pressupõe sua consulta e audição.
A usina de Belo Monte é um elemento estranho e agressivo ao modo de vida deles
e à própria região que habitam. Mas os tupis, os caraíbas e os aruaques também foram
(e continuam a ser) invasores das terras dos jês, grupo ao qual os kayapós pertencem.
Nem por isso se vai aceitar que prossigam as escaramuças do passado, quando eles
eram os únicos que disputavam o domínio do que hoje é conhecida (impropriamente,
aliás) como Amazônia.
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As frentes lançadas sobre o sertão pelos brancos colonizadores são incomparavelmente mais perigosas e destruidoras. Tribos como a dos kayapós têm se tornado
uma barreira à expansão dessas hordas agressivas e um sustentáculo da integridade do
espaço original, à espera de melhor conhecimento para uso mais nobre. No entanto,
a vontade dos índios não tem sido suficiente para conter essas frentes da mesma maneira como vêm conseguindo em relação a Belo Monte.
Na simulação que fez recentemente, através de um poderoso software de computador, o “Sim Amazônia”, o LBA (Programa da Grande Esfera-Atmosfera da Amazônia, o maior empreendimento científico sobre a região) chegou à conclusão de que,
mantida a tendência atual de desmatamento, em 2050 a bacia do Xingu terá perdido
dois terços da sua vegetação. Isto é, sem considerar o efeito Belo Monte, que poderá
incrementar ainda mais essa tendência, mas traz consigo também a possibilidade de se
examinar e reenquadrar a questão, que as outras frentes não oferecem.
A combinação do voluntarismo guerreiro dos índios, enfático entre os kayapós, e
certa intolerância marcante entre seus aliados brancos, individuais ou institucionais,
que manejam a verdade como se ela fosse parte de uma tábua das leis, só acessível a
eles, os escolhidos, pode até sepultar o projeto da hidrelétrica, que até hoje não foi
convincente, mas não refará a realidade, que prossegue e prosseguirá por outros caminhos. Provavelmente piores.
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