A FEMINIZAÇÃO DA MEDICINA - Laboratório de Pesquisa Multimeios
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A FEMINIZAÇÃO DA MEDICINA - Laboratório de Pesquisa Multimeios
A FEMINIZAÇÃO DA MEDICINA: MUDANÇA E CONSERVAÇÃO DO PAPEL TRADICIONAL DA MULHER Walney Ramos de Sousa Doutoranda (LHEC-FACED-UFC) E-mail: [email protected] RESUMO Aborda a feminização de medicina, compreendida como o aumento do número de mulheres, numa profissão tradicionalmente masculina, enquanto fenômeno mundial que vem ocorrendo gradativamente desde os anos 1970. Tem intenção exploratória e apoio na historiografia e literatura sociológica e demográfica contemporânea, com vistas a alcançar a historicidade recente do fenômeno enfocado. Revela que, pela primeira vez, em 2009, entre os novos registros no CFM, há mais mulheres que homens; também pela primeira vez, as mulheres passaram, em 2011, a ser maioria dentro do grupo de médicos com 29 anos ou menos. Conclui que, dentre as especialidades médicas, persiste uma nítida predominância das mulheres nas especialidades envolvendo a saúde da mulher e da criança, o que nos permite inferir ser este fato, uma extensão e prolongamento da associação de gênero com o cuidar materno associado desde a antiguidade à mulher. PALAVRAS-CHAVE: Bioética – Feminização – Medicina - Educação Introdução No século XXI, sabemos e podemos afirmar e propagar que homens e mulheres são diferentes: no fenótipo, e no hipotálamo masculino que traz imprint atávico de caça (com aguçado senso de direção) 3,12. Muito se questionou sobre o hipotálamo feminino e o instinto materno, o que ao longo dos anos se mostrou ser um arcabouço social variável conforme o tempo e a organização da sociedade em dado momento, e não um imprint atávico. As diferenças param aqui. Não há qualquer dúvida quanto à similar capacidade cognitiva entre homens e mulheres. As concepções de masculinidade e feminilidade dependem do momento histórico, das leis, das religiões, da organização familiar e política, de diferentes circunstâncias. São esses fatores que levam a sociedade a construir, em determinado momento históri- co, a concepção de gênero. O gênero é resultado de diferentes aprendizagens que o indivíduo acumula, a partir de suas relações interpessoais, ao longo de suas experiências de vida dentro de um contexto histórico, político e social. É marca que o indivíduo carrega indelevelmente, de tal forma que se torna mais fácil modificar a configuração anatômica (sexo) de alguém do que sua configuração psicológica (gênero). 5,13,16,19,26 Na esteira da crença que o instinto maternal era inato, foi-se construindo os papéis sociais destinados à mulher, onde lhe cabia o cuidar, mas não o prover no sentido econômico financeiro. E a despeito das novas /modernas verdades científicas, o que se oberva no mundo do trabalho é a reprodução, inclusive pelas próprias mulheres, deste aforismo. Ora, compreender a feminização da medicina, parece simples, o desafio maior é compreender porque a despeito da larga entrada da mulher na profissão médica, são restritas as escolhas de especialidades e opções de trabalho, me é sedutor pensar, que isto reflete o arraigamento do determinismo social do feminino, construído ao longo dos séculos, como pretendemos discutir neste artigo. Divinização do Feminino O trabalho de arqueólogos e antropólogos demonstra que, no início do processo civilizador, o feminino era divinizado e cultuado, tendo o resultado de escavações indicado o papel sociocoletivo de destaque dado à mulher. Naquela época, questões associadas ao nascimento, fertilidade, regeneração e vida eram muito valorizadas e estavam simbolicamente ligadas ao feminino. 6 Segundo Hesíodo, Gea (a Terra) pariu Uranos, “um ser igual a ela, capaz de cobri-la inteiramente” (Teogonia, p. 126). Outras deusas gregas também geraram sem a ajuda dos deuses. É uma expressão mítica da autossuficiência e da fecundidade da Terra Mãe. A tais concepções míticas correspondem as crenças relativas à fecundidade espontânea da mulher e a seus poderes mágico religiosos ocultos, que exercem uma influência decisiva na vida das plantas. O fenômeno social e cultural conhecido como matriarcado está ligado à descoberta da agricultura pela mulher. Foi a mulher a primeira a cultivar as plantas alimentares. Foi ela que, naturalmente, se tornou proprietária do solo e das colheitas. O prestígio mágico religioso e, consequentemente, o predomínio social da mulher têm um modelo cósmico: a figura da Terra Mãe. 14, 25 Hegemonia do Masculino Embora o culto do divino feminino seja um dos mais antigos que se tem notícia, simbolizado pela Terra sendo a vida percebida como um “ab uterum”, um emergir do ventre da Terra, e a morte representando uma volta, um regresso “ad uterum”, para que um novo nascimento pudesse acontecer, sendo cultuado como a Grande Mãe, seu culto foi destruído e, paulatinamente, substituído. Primeiro pelos deuses guerreiros e depois pelo monopólio de um Deus único. Desse modo, a Grande Mãe foi primeiro, associada a um Deus masculino – como filha, mãe ou consorte – e, finalmente, banida da psique humana pela predominância do Deus único apregoado pelas religiões monoteístas. Esse processo, ocorrido em ritmo e intensidade diferentes para cada povo, se iniciou há cerca de 10.000 anos e moldou a forma de ver a realidade que é ainda dominante nos nossos dias. 6,25 Se tomarmos a Bíblia como livro histórico e nos debruçarmos no livro Genesis, encontramos nos textos: Deus fez o homem a sua própria semelhança e senhor de todas as coisas (Gn. 1,26); Deus criou a mulher da costela de Adão para ser sua ajudadora (Gn. 2,18). Percebemos então a consagração da hegemonia do masculino, sendo sedutor pensar que aí residam os primórdios do pensamento de superioridade do homem sobre a mulher e todas as coisas, que atravessou/ atravessa toda a história civilizatória. Na Roma antiga, as condições jurídicas das mulheres eram quase nulas. Com as pregações do cristianismo, que tratava a mulher como companheira do homem, houve um abrandamento da dominação masculina, na medida em que a Igreja consagrou o matrimônio. Contudo, no século XVI, o direito romano ainda diminuía os direitos femininos. No século XVII, segundo Badinter (p. 18), a influência de Aristóteles reforçava à mulher uma posição inferior, em uma sociedade baseada no princípio da autoridade. A mulher representava a matéria, resumindo-se em uma mãe em potencial. O homem representava o potencial cognitivo-intelectivo.1 Chegamos à idade moderna com a legitimação da submissão feminina a despeito dos ideais liberais. Nesse sentido citamos Sana Domingues (2008)13, que remonta a duas obras clássicas: Emílio ou Da Educação, de Jean-Jacques Rousseau, publicada em 1762 e A Sujeição das Mulheres, de John Stuart Mill, publicada em 1869. No livro Emílio ou Da Educação, um tratado pedagógico escrito sob a forma de romance, Rousseau (1712- 1778), detalha os princípios pelos quais é possível criar modelos exemplares de homens e mulheres, que conseguirão livrar a sociedade da corrupção pela qual ela foi tomada. Através do personagem chamado Emílio, prescreveu as formas ideais para se educar um menino. Essa educação começaria com o nascimento e se referia a todo e qualquer aspecto da vida humana. Sofia, por sua vez, era a personagem que simbolizava o ideal de mulher. Na qualidade de defensor da igualdade, Rousseau vai tentar argumentar que Emílio e Sofia são iguais, mas ressalta que apenas naquilo que não dependa do sexo. Emílio será criado para ser forte e livre desprendido dos preconceitos sociais. Deverá receber uma conscienciosa instrução científica e não poderá estar à mercê dos dogmas religiosos. Receberá, por fim, uma formação adequada ao desempenho de seu papel como cidadão. Sofia terá, por sua vez, uma educação extremamente condicionante, deverá ser criada para ser fraca casta e submissa. A religião terá para ela grande importância, pois é preciso submetê-la, o quanto antes, ao jugo de mais uma instituição. Sofia terá uma instrução apenas voltada ao bom desenvolvimento das tarefas domésticas e à apreciação do marido. 30 No que se refere à exacerbada valorização da maternidade contida no Emílio, vale ressaltar que foi Rousseau o cristalizador do ideário da família moderna, calcada no amor materno. Com esta obra Rousseau contribuiu para modificar os costumes que imperavam até então, já que o sentimento que prevalecia era o da indiferença materna. Vê-se, assim, que a imagem da mãe e o papel que ela deve desempenhar não são naturais, mas variam conforme a época e as circunstâncias sociais. Passado todo este tempo, ainda persiste este imaginário com a mulher do século XXI acumulando as suas tarefas profissionais com as tarefas das lides do lar principalmente no cuidado das crianças. John Stuart Mill nasceu em 1806, em Londres. Era filho de James Mill, um dos fundadores do utilitarismo inglês. James Mill acreditava que para criar um ser racional era preciso afastá-lo de qualquer manifestação de irracionalidade, de maneira que Stuart Mill foi criado longe de qualquer forma de diversidade, o que incluía o convívio com outras crianças. Ao atingir a idade adulta, Stuart Mill percebeu que a diversidade e não apenas a racionalidade era imprescindível para a vida humana e se tornou um aguerrido defensor da tolerância e da liberdade individual. Suas reflexões foram marcadas pelas transformações trazidas pela Revolução Francesa, com a consolidação do pensamento liberal, e pelo auge da Primeira Revolução Industrial. 13 Stuart Mill enquanto membro do Parlamento inglês, em 1867, apresentou uma petição assinada por 1500 mulheres requerendo a abertura do sufrágio ao sexo feminino. E, embora essa petição tenha sido majoritariamente rechaçada, o seu pioneirismo foi de suma importância para o desenvolvimento do movimento sufragista inglês. Stuart Mill foi o primeiro intelectual a expor de maneira sistematizada a sujeição das mulheres. Ele enxergou que a modificação na forma como as mulheres eram educadas era o principal instrumento de conquista do espaço social pelo sexo feminino. Destacando que o traço característico do mundo moderno, inaugurado pela Revolução Francesa, era o fato de que as pessoas já não estavam mais acorrentadas a posições inexoráveis e que eram livres para empregar suas capacidades naquilo que desejassem, Stuart Mill expôs a incoerência da situação feminina, vez que no mundo ocidental em pleno século XIX, todas as formas de sujeição legal já estavam sendo superadas. 13,22 Stuart Mill igualou a sujeição feminina à escravidão. Ao se casar, a mulher fazia um voto de sujeição eterna ao marido. Sua existência se condicionava totalmente à satisfação dele. Partia-se do princípio de que os representantes do sexo masculino tinham condições suficientes para exercer o poder absoluto dentro de seus lares, embora a mesma assertiva não valesse no campo da política. 13, 22 A importância de se traçar um paralelo entre as obras aqui citadas reside no fato de que cada uma delas é um clássico e, apesar de apresentarem posições antagônicas, ambas têm peso marcante para a formação do pensamento acerca das relações de gênero. Foi com base nas teorias liberais e a partir, sobretudo, das transformações trazidas pela Revolução Francesa, que as mulheres encontraram base para reivindicar direitos e lutar por sua emancipação. E ainda que pensadores como Rousseau fossem liberais apenas no que não dissesse respeito às mulheres, outros, como Stuart Mill abriu caminho para uma igualdade entre todos os seres humanos e não apenas aqueles do sexo masculino. Nossa historicidade mostra que entre avanços e retrocessos se faz ouvir, ora a voz de Rousseau, ora a de Stuart Mill.. Patriarcalismo/ Dominação Masculina Se retomarmos nossa historicidade, como brevemente apresentamos, fica evidenciado que a condição masculina, se apresentou e se vivenciou/ vivencia como o protetor, provedor e por isso, associado com autoridade. E isto fica significado na etimologia da palavra patriarcado/ patriarcalismo, que vem do grego páter “pai” mais arkhé” poder. A sociedade contemporânea ocidental se estruturou e se consolidou como um modelo patriarcal, sendo institucionalmente amparada na autoridade do homem sobre a mulher e filhos, no âmbito familiar, mas também facetando a organização da sociedade, da produção à cultura. O patriarcalismo compôs a dinâmica social como um todo, estando inclusive, inculcado no inconsciente de homens e mulheres individualmente e no coletivo enquanto categorias sociais. Lia Zanotta Machado (2000), defende que patriarcado diz respeito a uma forma de organização ou de dominação social, cujo significado remete à matriz conceitual weberiana. Ela expõe a definição de patriarcalismo em Weber, no qual o conceito se refere à dominação exercida por um indivíduo – na maioria dos casos – em uma comunidade econômica ou familiar, conforme as normas hereditárias próprias destes agrupamentos sociais. A autora salienta que na sociedade contemporânea os direitos paternais e sexuais não são naturalizados e legitimados da mesma maneira como o caso típico-ideal weberiano, o que torna muito pouco adequado referir-se ao conceito de patriarcado nas sociedades de princípios do século XXI. 18 Para, além disto, as mudanças sociais ocorridas, paulatinamente, a partir da revolução industrial, levaram ao surgimento de novos modelos de família. Este processo foi se delineando fruto não só de necessidades econômicas, mas também e principalmente, com o acesso das mulheres à instrução formal e ao mercado de trabalho renumerado, que rompeu com a subjugação econômica financeira das mulheres aos homens. Realmente, com estas mudanças, não há pertinência em ficarmos atrelados ao conceito puro de patriarcalismo, para compreender o porquê da manutenção da inculcação da superioridade masculina. Manuel Castells (1999) traz à discussão o tema, abordando as mudanças ocorridas fruto de processos interligados de transformação e conscientização da mulher, da sua maior participação no mercado de trabalho remunerado, e da rápida difusão de ideias em uma cultura globalizada. 2, 7 Pierre Bourdier (2002) apresenta o conceito de dominação masculina pretendendo abranger a dimensão simbólica inconsciente, para as representações sociais da dominação masculina. 4 A descrição etnológica de um mundo social, ao mesmo tempo distanciado para se prestar mais facilmente à objetivação e inteiramente construído em torno da dominação masculina, atua como uma espécie de “detector” de traços infinitesimais e de fragmentos esparsos da visão antropocêntrica do mundo, e por isto, como instrumento de uma arqueologia história do inconsciente que, originalmente construída, sem dúvida alguma, em um estágio muito antigo e muito arcaico de nossas sociedades, permanece em cada um de nós, homem ou mulher. [Bourdier, 2002] A mulher no mundo do trabalho (Brasil século XIX ao XXI) A emancipação feminina no Brasil remonta ao século XIX, com as reivindicações pelo direito ao voto e também ao ensino. Um dos grandes marcos desse movimento foi a edição da Lei Imperial de 15 de outubro de 1827, que estabeleceu a gratuidade de ensino para todos os cidadãos brasileiros. Essa lei também dispôs sobre a criação de escolas exclusivas para o público feminino. Nessas escolas apenas professoras podiam lecionar, uma vez que era considerado inadequado manter as meninas com professores do sexo masculino. Como até então as mulheres não tinham tido muitas oportunidades de acesso ao ensino, não havia professoras suficientes para o desenvolvimento das escolas. Enquanto as escolas masculinas possuíam profissionais bem qualificados, a educação feminina mantinha-se precária e a diferenciação do ensino era tanta que até os conteúdos ministrados eram diferentes. A educação feminina restringia-se a aulas de alfabetização, matemática básica (as quatro operações apenas), costura e bordado. 11 O ensino secundário era reservado unicamente aos homens, os quais podiam dar continuidade ao ensino superior, algo impensável e inadmissível para as mulheres brasileiras à época. 11 Com o estabelecimento da República, em 1889, a estrutura social do país mudou. A queda do Império também levou consigo a ligação entre o Estado e a Igreja, o que proporcionou a educação laica, que priorizava o ensino científico ao invés dos princípios morais e familiares. Logo ganhou força a tese de que a educação e o trabalho feminino eram fatores importantes para o progresso do país, o que facilitou a inserção em massa do público feminino no sistema educacional. 5, 11 A defesa do direito ao voto pelas mulheres começou, em 1910, com a fundação do Partido Republicano Feminino, e terminou em 1932, com a promulgação de decreto do Presidente Getúlio Vargas, estabelecendo o direito de as mulheres votarem e serem votadas. Entretanto, ainda hoje, em que pese o presidente da república ser uma mulher, a representação de mulheres em cargos do legislativo é muito pequena, a relação é de menos de uma mulher para cada dez deputados homens eleitos. Nas primeiras décadas do século XX, as mulheres já começavam a se posicionar de forma mais destacada no mercado de trabalho, entretanto com a manutenção das “profissões femininas”. 11 Em 2011, segundo dados do IBGE, as mulheres já representavam 45% da população ocupada, mas seu rendimento médio era 72,3% menor do que recebiam os homens. Ou seja, é clara a diferença de reconhecimento entre os gêneros, e o que citamos no inicio deste artigo, se revela aqui, a mulher ainda não sendo reconhecida, inclusive por ela própria, como provedora de si, no sentido econômico financeiro. A feminização da medicina A medicina ocidental tem sua origem na Grécia antiga, quando o pensamento mítico e a prática médica sobrenatural e empírica dão lugar a uma racionalidade médica baseada na observação da natureza. A origem, de uma medicina racional e científica (ou pré-científica) está tradicionalmente vinculada ao nome de Hipócrates, nascido na Ilha de Cós em 460 a.C. O conhecimento médico tradicional era transmitido a uma linhagem masculina familiar. A transmissão oral quer teórica ou prática, de pai para filho ou de mestre para aprendiz, não estava apenas circunscrita às questões de caráter médico, e algumas noções de filosofia natural e retórica eram também ensinadas. 28 A medicina ocidental nasce, pois, como profissão cuja aprendizagem e desempenho eram restritas ao masculino. Há um significativo hiato de tempo, até que surjam as primeiras notícias de mulheres médicas. A primeira vem de um édito de 1311 que concedia o direito de as mulheres praticarem a cirurgia em Paris. No entanto, havia uma clara distinção entre o cirurgião, considerado de uma categoria inferior, e o médico, que praticava a chamada medicina interna. Não tardou, porém, que esse direito fosse revogado. Em 1322, Jacoba Felicie foi presa e processada pela Université Paris acusada de exercer ilegalmente a Medicina. 20 Existem evidências que a alemã Dorothea Christiane Erxleben (1715-1762) foi a primeira mulher a receber o grau de doutora em Medicina. Estudou na Universität Halle-Wittenberg e foi diplomada em 1754, entretanto não há relatos de suas atividades médicas profissionais. 20 Considera-se que Elizabeth Blackwell (1821-1910), nascida na Inglaterra seja a pioneira no exercício feminino da Medicina. Em 1849 graduou-se em medicina no Geneva Medical College de New York. Após a formatura viajou para a Europa para estagiar nos Hospitais de Paris e de Londres, encontrando grande resistência dos médicos. Frequentou, em Paris, o La Maternité Hospital. Retornou aos Estados Unidos, junta- mente com as médicas Emily Blackwell e Marie Zakrzewska fundaram o New York Infirmary for Women and Children. 20 Iniciava-se aí um longo percurso da profissão médica feminina voltada para a saúde da mulher e da criança, reproduzindo socialmente o que se considerava/ se considera os atributos femininos do cuidar. No Brasil, podemos traçar a presença da mulher na Faculdade de Medicina do Império primeiramente nos cursos de parteira. Em 1832 as duas Faculdades de Medicina (Bahia e Rio de Janeiro), passaram a conceder aos concluintes o título de doutor para os médicos e o de Parteiro Diplomado aos que concluíssem o Curso de Partos realizado em três anos. Madame Durocher foi a mais célebre parteira e se formar neste curso em 1834. Adotava a estética de estilo masculino, por ser mais cômodo para a atividade exercida e decente para uma Parteira Diplomada, alegando ainda que este estilo inspirava mais confiança às mulheres. 20 A carioca Maria Augusta Generoso Estrella (1861- 1946) foi a primeira mulher brasileira a se formar em Medicina, tendo feito seus estudos nos Estados Unidos e sua graduação em medicina no New York Medical College and Hospital for Women, em 1881. Após sua graduação, voltou para o Brasil submeteu-se aos exames na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro para validar seu diploma, conforme determinava a Reforma de 1832, com a validação do diploma exerceu a profissão durante cerca de cinquenta anos, também se dedicando às mulheres e às crianças. 8, 20, 23 Somente no ano de 1879 o Ministro Leôncio de Carvalho estabelece, entre outras modificações, a possibilidade da matrícula de mulheres no curso médico. A gaúcha Rita Lobato foi a primeira a se formar na Escola de Medicina da Bahia, em 1887. Mas, como era de se esperar o ingresso de mulheres nas Faculdades de Medicina do Império se deu de forma muito lenta. Num levantamento das teses doutorais da Faculdade Medicina da Bahia de 1840 a 1928, Meirelles e colaboradores (2004) informam que apenas 0,6% das Theses Doutorais foram defendidas por mulheres. 8, 23, 26,32 A proporção de estudantes de Medicina do sexo feminino aumentou significativamente nas últimas décadas, em diferentes países, inclusive no Brasil. Nos anos 60, segundo a Association of American Medical Colleges (AAMC), 90% das candidaturas a Medicina eram do sexo masculino (AAMC, 1999). Em 1961, o perfil do médico americano era descrito como sendo homem, branco, protestante, da classe média-alta e filho de médico. Nos anos 70 e 80 verifica-se uma queda das candidaturas masculinas e um aumento progressivo das femininas e das minorias étnicas. 20,21 Em 2001, metade dos estudantes de Medicina são mulheres tanto nos EUA, no Canadá e em alguns países europeus, como a Noruega, a Irlanda e a Inglaterra, esta proporção foi atingida nos anos 90. Segundo o jornal Público (2000), 69% dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa são do sexo feminino. 20 Para conhecer a distribuição de profissionais médicos mulheres no Brasil, em 2013, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Demografia Médica Brasileira, concluindo que o perfil populacional dos médicos inscritos nos Conselhos Regionais de Medicina (CRM) está passando por uma transformação histórica: pela primeira vez, em 2009, entre os novos registros no CFM, há mais mulheres que homens; também pela primeira vez, as mulheres passaram, em 2011, a ser maioria dentro do grupo de médicos com 29 anos ou menos. 10 Em 2012, essa tendência se confirmou. Dos 51.070 médicos nessa faixa etária, 54,50% são mulheres e 45,50% são homens. Entre os mais idosos, o cenário ainda é predominantemente masculino. Do total de profissionais com 70 anos ou mais, apenas 13,76% são mulheres. Daí para as faixas mais jovens, o número de médicas é sempre crescente. O mercado, no entanto, ainda deve permanecer com maioria de homens por mais uma década e meia, já que, até os anos 1970, a profissão era predominantemente masculina. Segundo o estudo de projeção, as mulheres serão maioria no mercado em 2028. 10 Em 2011, 55.1% dos médicos brasileiros em atividade eram especialistas, ou seja, concluíram um programa de residência médica e/ou obtiveram título de especialista emitido por sociedade de especialidade médica. Os demais 44,9% não têm título de especialista nessas modalidades. Entre esses médicos especialistas 59,39% são homens e 40,61%, mulheres, o que segue a razão homem-mulher na população geral de médicos. No entanto, entre as especialidades, há importantes diferenças de gênero. 10,31 Entre as 53 especialidades oficialmente reconhecidas, 13 são exercidas majoritariamente por mulheres. Nas outras 40 os homens predominam. As mulheres são maioria em cinco das seis especialidades consideradas básicas: Pediatria (70,0%), Ginecologia e Obstetrícia (51,5%), Clínica Médica (54,2%), Medicina de Família e Comunidade (54,2%) e Medicina Preventiva (50,3%). Entretanto, as mulheres estão em menor quantidade na Cirurgia Geral, com apenas 16,2%. 10,31 Das seis especialidades nas quais os homens são 90,0% ou mais, quatro são cirúrgicas: Cirurgia Cardiovascular (90,0%), Cirurgia do Aparelho Digestivo (91,4%), Cirurgia Torácica (93,5%) e Neurocirurgia (91,8%). Além destas, na Ortopedia e Traumatologia os homens também contam com 95,0% dos profissionais, bem como preponderam em Urologia, com 98,8%. A especialidade cirúrgica com maior presença de mulheres, na qual representam 32,5%, é a Cirurgia Pediátrica. 10,31 Considerações Finais Se observarmos os dados do Conselho Federal de Medicina do Brasil, fica evidente o crescente aumento do número de mulheres médica, mas há uma nítida predominância das mulheres nas especialidades envolvendo a saúde da mulher e da criança, uma extensão e prolongamento da associação de gênero com o cuidar materno associado desde a antiguidade à mulher. Seguindo a esta predominância, vem a escolha por Medicina de Família e Comunidade e da Medicina Preventiva, ambas as especialidades com o perfil de trabalho assalariado e com horários fixos de trabalho, oportunizando as mulheres médicas disponibilidade de tempo para o cuidado dos filhos, reproduzindo assim a questão social do gênero feminino associado à maternidade. No que concerne ao trabalho assalariado, talvez, ou pelo menos em parte, traga resquícios do papel feminino do cuidar, mas não do prover econômico financeiramente a si e a sua prole, ficando este papel, ainda em maior parte, destinado ao homem. Talvez, a opção feminina pela prática de tempo de trabalho parcial ou com horários fixos, seja presumivelmente, para melhor servir às suas famílias. É sistêmica a perpetuação da opressão sobre as mulheres médicas e não apenas uma decisão pessoal e deliberada dos homens médicos. Resulta de práticas sociais e institucionais que agem conjunta e impessoalmente para favorecer os interesses dos homens sobre as mulheres, o que requer novos e permanentes aportes teóricos da bioética para a compreensão desses e de outros desequilíbrios de poder que estão por toda a sociedade – e não confinados unicamente na medicina. Para, além disto, as especialidades clínicas exigem para o seu exercício, maior e melhor tempo de escuta, assim como compartilhamento de decisões acerca das condutas terapêuticas inclusive as não - medicamentosas que envolvem mudança de estilo de vida, e nestes aspectos, as mulheres tem demonstrado desenvolver melhor tais habilidades, comparativamente aos homens. 9, 29 Outro aspecto a considerar é que com o tradicional desempenho das especialidades cirúrgicas por médicos homens, não houve tempo ainda para a construção da imagem – espelho por parte das estudantes mulheres. Talvez, isto gradativamente ocorra como já se começa a observar com o aumento de mulheres médicas em programas de residência médica para neurocirurgia. Na perspectiva da pluralidade bioética, mulheres e homens podem divergir na maneira de enxergar, sentir e solucionar problemas no cotidiano do exercício profissional da medicina. A constatação de que médicos e médicas são diferentes e de que as diferenças devem ser preservadas, nada tem a ver com a perpetuação de um exercício profissional pautado pela dominação masculina, sendo tarefa de todos os médicos e médicas, e da sociedade de modo geral, a construção continuada do respeito às diferenças. Referências 1. BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução de Waltensir Dutra. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. Disponível em: http://groups-beta.google.com/group/digitalsource. Acesso em 20 fev. 2015. 2. BARRETO, M.P.S.L. Patriarcalismo e Feminismo: uma retrospectiva histórica. Rev Ártemis, v. 11, dez 2004. Disponível em: http://periodicos.ufpb.br. Acesso em 24 mar. 2015 3. BEAR, M.F et.al. In: ____ Neurociências: desvendando o sistema nervoso. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2002. Cap. 17, p.548- 579. 4. BOURDIER, P. A Dominação Masculina. Tradução Maria Helena Kühner 2ªed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. 5. CARLOTO, M.C. 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