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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 11-17, 2004.
OS JOGOS NA ÉPICA HOMÉRICA
Filomena Yoshie Hirata*
HIRATA, F.Y. Os jogos na épica homérica. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 14: 11-17, 2004.
RESUMO: Competições esportivas têm função estratégica nos poemas homéricos.
Na Ilíada, por exemplo, no decorrer dos oito jogos, Aquiles mostra a seus companheiros
de dez anos de guerra o impacto do enterramento de Pátroclo, cujo túmulo compartilhará
brevemente. Perpassa o trecho, além da tristeza, um forte sentimento de cordialidade
entre os pares, ao lado do desprendimento de quem se despede, mesmo porque
estamos no canto XXIII. Aquiles realiza os jogos em honra do amigo, num ambiente
de confraternização, solucionando desavenças com bom humor, distribuindo prêmios
com fartura e, sobretudo, evitando constrangimentos entre os competidores mais
importantes. Se, de um lado, ele mantém uma atitude irrepreensível como membro da
comunidade na condução do evento, de outro, ele mantém uma atitude impassível,
quase distante, em relação a tudo o que ocorre.
UNITERMOS: Ilíada, Odisséia – Aquiles – Pátroclo – Morte – Jogos fúnebres –
Mêtis.
Competições esportivas aparecem tanto na
Ilíada quanto na Odisséia. Na Ilíada, ocupam
grande espaço do canto XXIII, um conjunto de
640 versos, conhecido como jogos fúnebres em
honra de Pátroclo. Na Odisséia, o espaço dedicado a elas é menor, apenas 11 versos, e acontecem
na corte de Alcínoo na Feácia, no canto viii.
São oito modalidades de jogos na Ilíada:
corrida de carros, pugilato, luta, corrida a pé,
combate armado, arremesso de peso, arco e flecha
e arremesso de dardo, contra cinco na Odisséia:
corrida a pé, luta, salto, arremesso de disco e
pugilato. Embora o número de modalidades seja
menor nesta obra, introduz-se a prova de salto, que
não consta da lista anterior. Contrariamente à
Ilíada, o fato de haver na Odisséia menos modalidades e, sobretudo, bem menos versos dedicados
(*) Universidade de São Paulo. [email protected]
a elas é compreensível, porque elas não têm um
papel tão relevante quanto na Ilíada, mas estão
entre as várias atividades apresentadas por Alcínoo
a Odisseu, que constituem, enfim, um conjunto
elaborado de uma amostra de uma maneira de viver.
Os recursos dos feácios acabam revelando o que
eles têm em comum com os aqueus e, dessa forma,
a Feácia acaba por tornar-se um ponto de parada
importante para Odisseu, há muito tempo distante
de sua terra e do contato humano. A narrativa a
Alcínoo vai mostrar que, entre a saída do mundo
das aventuras fantásticas e a entrada no mundo real
de Ítaca, Odisseu necessitava de uma parada
estratégica, um local de reflexão e experimentação,
uma ponte entre dois pontos distantes, como nos
indica o texto de Charles Segal (1962:17-64). Os
jogos acontecem, portanto, em condições favoráveis. Depois de passar por inúmeras aventuras
fantásticas e dolorosas por terra e por mar, Odisseu
se sente acolhido numa terra privilegiada, para
alguns, utópica, por um povo festivo e por um bom
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hospedeiro que o recebe de forma pródiga e que
propõe os jogos, como puro entretenimento, no
momento em que percebe que seu hóspede chora,
ao ouvir o canto de Demódoco. E nada mais
natural: Odisseu ouve seus próprios feitos cantados
como kléa andrôn para deleite do auditório.
Contudo os jogos também não preenchem o
objetivo previsto, de simplesmente divertir, mas
acabam tendo função estratégica, ou seja, levam
Odisseu à ação. Pois este, reagindo às provocações de Laódamas e Euríalo e aceitando o desafio
no arremesso de disco, mostra que é o melhor, na
palavra e na ação, mas, mais importante que isso,
exercita-se, exerce plenamente uma atividade
humana, para sentir que está vivo como homem.
Não é tão simples definir as condições em que
se dão os jogos na Ilíada. Poder-se-ia dizer que
são também condições favoráveis, à medida que
por um tempo os guerreiros deixam o combate
para participar de competições, o que implica um
relaxamento das tensões, mas ainda assim, ainda
que haja momentos de riso, bom humor e discussões, há uma tristeza persistente contendo as
emoções, a expansão da alegria, porque se trata
dos jogos fúnebres em honra de Pátroclo. É um
momento grandioso e inesquecível e que deveria
ser sempre lembrado pela comunidade, caso
contrário, não seriam mencionados nesta passagem
outros três jogos fúnebres: aqueles em honra de
Édipo, de Pélias e de Amarinceu. A simples menção
desses respeitáveis eventos engrandece o participante e sua linhagem.
No entanto, alguma coisa a mais se acrescenta
a esta comoção generalizada, corroborando com a
persistente tristeza: a atitude de Aquiles na condução dos jogos. Ora, no canto XXIII, Aquiles já
matou Heitor e, enquanto ultraja seu cadáver,
recebe o pedido de Pátroclo para que apresse seu
enterramento. E Aquiles, ao fazê-lo, já deixa a
tumba demarcada para ser enterrado ao lado do
amigo, ciente de que sua morte não tardará. Este
sentimento de expectativa trágica persiste até o fim
do poema e esclarece-nos a atitude de Aquiles,
indiferente e um tanto quanto distante em relação
ao que se passa, atitude diferente das outras mais
envolventes assumidas no resto do poema. Aquiles
preside, sim, os funerais e patrocina os jogos em
honra do amigo, num ambiente o quanto possível
ameno, com muita prodigalidade na distribuição
dos prêmios, mas como se estivesse se despojando
de seus bens. Ele organiza e dirige tudo com boa
vontade, certo humor e serenidade incomum, não
permitindo que qualquer deslize ou constrangimento, seu ou dos competidores, pudesse minar a
homenagem ao amigo. Esta conjuntura prepara o
momento em que Aquiles recebe o velho Príamo e
entrega-lhe o cadáver de Heitor no último canto.
Não se trata mais aqui de reunião de amigos, mas
da união de dois sofrimentos imensuráveis, compartilhados por dois seres que têm em comum pouco
tempo de vida e um futuro previsível.
Na Odisséia, ao propor os jogos atléticos,
Alcínoo apenas diz que quer mostrar a Odisseu,
para que ele conte depois a sua gente, quanto os
feácios superam os outros povos nessas atividades.
E, de fato, por meio do relato sucinto de Homero,
ficamos sabendo quais são as competições e os
nomes dos vencedores, diferentemente de Odisseu
que, espectador privilegiado, assiste a tudo.
Verifica-se, então, que, se os jogos dos feácios são
os mesmos que Odisseu conhece, ao contrário os
atletas vencedores são para ele (e para nós) ilustres
desconhecidos (Clitônio, Euríalo, Anfíalo, Elatreu e
Laódamas), mas perdem esse anonimato, ao menos
para Odisseu, nesse momento, em que pode vê-los
pondo em prática sua habilidade. Quando Homero
se detiver um pouco mais, para falar da atuação de
um competidor que se sobreponha aos feácios, este
será Odisseu, que não é um desconhecido para
nós. De qualquer forma, é possível detectar que os
atletas vencedores pertencem à elite feácia: Clitônio
e Laódamas são filhos de Alcínoo e Euríalo é
aquele que vai desafiar Odisseu.
Na Ilíada, o largo espaço dedicado por
Homero ao relato dos jogos, embora irregular em
relação às outras modalidades (por exemplo, 388
versos à corrida de carros dos 640), justifica-se,
por serem os competidores justamente os heróis
que mais se destacam na guerra, ou seja, as
personagens principais do poema, que precisam
continuar atuando e brilhando, mesmo se não estão
guerreando. Para os oito tipos de competição, os
guerreiros competidores são: na corrida de carros,
Eumelo, filho de Adrasto, Diomedes, filho de Tideu,
Menelau, um dos Atridas, irmão de Agamenão,
Antíloco, filho de Nestor, e Meriones. No pugilato,
Epeu, filho de Panopeu e Euríalo, filho de Mecisteu.
Na luta, Ájax, filho de Télamon e o astucioso
Odisseu. Na corrida a pé, Ájax, filho de Oileu,
Odisseu e Antíloco, novamente. No combate
armado, novamente, Ájax, filho de Télamon e
Diomedes. No arremesso de peso, Polipetes,
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Leonteu, e novamente Ájax, filho de Télamon e
Epeu. Na prova de arco e flecha, Teucro e de novo
Meriones e, finalmente, para a prova de arremesso
de dardo apresentam-se Agamenão e Meriones
novamente.
Examinando esse quadro, vemos que os
melhores guerreiros que, ao longo de dez anos,
sustentam o cerco de Tróia – já estamos no fim da
guerra – são exatamente os que se apresentam para
competir. E às vezes em duas ou mesmo três
provas. Aparentemente nenhum outro se apresenta,
mesmo quando o apelo de Aquiles que parece ser
aberto a todos se faz ouvir no anúncio de cada
prova. Em algumas situações, os competidores são
tão importantes que a vitória de um sobre outro
chega a criar certo constrangimento e também um
certo suspense. Mas é esse o caráter da épica, ela
não é democrática, não quer cantar todos os
guerreiros indistintamente; ao contrário, é elitista e
evoca principalmente os mais importantes. E mais,
se é possível falar em afinidade entre guerra e
jogos, mais do que isso é possível falar que os
jogos são uma forma de extensão da guerra. Daí os
melhores guerreiros serem também os melhores
atletas. Na realidade, há uma certa relação entre as
coisas: no caso da Feácia, como marinheiros
velozes não seriam também bons atletas?
Vejamos agora algumas particularidades dessas
competições. A primeira prova, a corrida de carros,
ocupa mais da metade dos versos dedicados a
todas as provas. É um texto importante para o estudo
da Mêtis e tem atraído a atenção de respeitáveis
helenistas desde os anos 70, quando J.P. Vernant e
M. Détienne publicaram o livro sobre a Mêtis
(1974: 17-31). Não vou retomar aqui o que já foi
dito pelos dois estudiosos citados, nem pelos
posteriores, mas não deixa de ser curioso simplesmente notar que, apesar de todo debate que a
corrida suscita, seja por assumir os riscos da
juventude, seja por submeter-se ao debate ético do
mais velho, Antíloco não seja o vencedor, mas sim
Diomedes, herói qualificado na Ilíada como de outro
porte e muito superior na guerra aos outros competidores. Diomedes vence porque Apolo, irritado com
seu bom desempenho na corrida, faz com que ele
perca seu chicote e Atena, por sua vez, irrita-se
com isso e não só devolve o chicote a Diomedes,
mas também enche seus cavalos de ardor, favorecendo-o na vitória. Mais ainda vinga-se de Apolo,
rompendo o jugo dos cavalos de seu protegido,
Eumelo, que acaba ficando fora da competição.
A disputa entre Antíloco e Menelau é, portanto, pelo segundo lugar. Ela pode ser vista como a
disputa entre um homem maduro que tem cavalos
rápidos e um jovem astucioso que tem cavalos
lentos. Conforme o alerta antes da prova o pai, o
velho Nestor, com anos de prática de astúcia, a
diferença entre os dois poderia advir do desempenho deles na passagem de um local de difícil
acesso, em que a pista se estreita e a superfície
prejudicada pelas chuvas desbarrancara, cavando
uma fenda. Dessa forma, da habilidade e da
destreza dos condutores dos carros poderia
depender a vitória. Antíloco, então, impulsionado
não só pelo ardor da juventude, mas também pelo
assentimento do pai, e, sobretudo, usando da
astúcia, ultrapassa Menelau no local indicado e no
momento exato, pondo em risco seu carro e o de
Menelau, uma vez que fustiga os cavalos cada vez
mais rápidos, chegando na frente. O texto já gerou
muita discussão, de um lado, sobre o uso da
astúcia, da mêtis, de outro, sobre a qualificação da
mêtis como lepté, no jovem. Sem dúvida, Nestor
havia avisado o filho sobre a passagem perigosa,
mas a vitória de Antíloco está além dos conselhos
do pai, está na ação, no senso de oportunidade, na
capacidade de realizar um feito, assumindo uma
atitude arriscada no momento preciso, ou seja,
aliando a mêtis ao kairós, uma atitude de grande
concentração intelectual.
No entanto, não é esse o ponto em que
pretendo insistir porque muitos já insistiram
exaustivamente. Gostaria apenas de destacar o
acordo final entre Menelau e Antíloco. De um lado,
Menelau lamenta ter arruinado nesse dia sua areté
na corrida, censura Antíloco por ter perdido a
sensatez, ao lançar seus cavalos sobre os dele, e, o
que é importante, pede-lhe que jure por Posêidon
que não foi voluntariamente, nem por fraude (dóloi)
que fechou seu carro. Antíloco, por sua vez, não
jura a Posêidon, mas não quer sentir-se culpado
diante dos deuses, e justifica-se alegando que (no
jovem) o espírito (nóos) é mais firme (krapnóteros)
e a astúcia (mêtis) é lepté (leve). A qualificação da
métis como lepté, leve, nebulosa, flexível, permitenos entender que Antíloco admite diante de
Menelau que sua ação foi arriscada, duvidosa e
perigosa e que ele cede diante da pressão de
alguém que é mais velho, mais poderoso e também
amigo, mas não nos obriga a aceitar que Antíloco
se arrepende de seu feito vitorioso. Depois disso,
Antíloco se dispõe a entregar o prêmio que
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recebera de Aquiles a Menelau e, então, é a vez de
este ser magnânimo e recusar. Menelau reconhece
os anos de sofrimento a que tem submetido a
família de Nestor e, preservando a amizade que os
une, não priva Antíloco de seu prêmio.
Ainda sobre a premiação. O longo debate
entre Menelau e Antíloco desvia nossa atenção da
vitória de Diomedes. De fato, modernamente
poderíamos argumentar sobre a razão de tanto
debate ético em torno da vitória de Antíloco,
quando Diomedes vence porque é visivelmente
protegido por Atena. O repentino vigor dos cavalos
não passa despercebido aos aqueus. Assim como
Atena auxilia Diomedes na guerra, assim também
nos jogos. Do ponto de vista do poeta, o favor
divino não se separa do favorecido na vitória. A
tradição se mantém.
Ainda sobre a premiação. Antíloco chega em
segundo lugar, mas Aquiles pretende dar o segundo
prêmio a Eumelo porque, conforme ele afirma, “o
melhor homem, o último, empurra os cavalos de
cascos maciços” (v. 536). Não deixa de ser
estranho que, se não fosse a intervenção oportuna
de Antíloco, assim teria sido, pois nenhum aqueu
contradiz a decisão de Aquiles. Premiar Eumelo
significa manter uma tradição, isto é, premiar não os
que vencem, mas os que têm a areté, os que são
considerados os melhores. No canto II, há
referência à excelência dos cavalos de Eumelo (v.
763-4). Cabe lembrar que Adrasto, pai de Eumelo,
tem em seu curriculum a participação nos célebres
jogos fúnebres em honra de Pélias. Diante do
protesto oportuno de Antíloco, Aquiles, bem
humorado, acata a queixa e oferece um outro
prêmio a Eumelo, não o terceiro, mas um outro,
que manda buscar na sua barraca. Aquiles também
se abstém de qualquer comentário em relação à
disputa de Antíloco com Menelau.
E Meríones? Trata-se do bom servidor de
Idomeneu. Na apresentação dos cinco competidores, o nome de Meríones vem lá no fim, sem
nenhum destaque, sem menção de linhagem, depois
do longo conselho que Nestor dá a Antíloco.
Chega em quarto lugar e recebe de Aquiles o
quarto prêmio. Há ainda o quinto prêmio, mas não
há um quinto lugar, pois Eumelo ganhou um prêmio
especial; Aquiles, então, resolve entregá-lo ao velho
Nestor, como lembrança dos funerais de Pátroclo,
sem que precisasse participar de qualquer prova.
Nestor hoje não mais pode competir, mas, quando
jovem, conquistara muitas vitórias. A que ele narra,
nessa passagem, refere-se à sua participação nos
jogos fúnebres em honra de Amarinceu (v. 630).
Trata-se de um prêmio de amizade que Pátroclo
aprovaria. A ocasião se apresenta e Aquiles sabe
aproveitá-la bem nesse momento de confraternização. Como já foi dito, aos poucos, Aquiles vai se
desfazendo de seus valiosos bens.
A seguir, vou tratar das duas provas que têm
como resultado o empate. São duas lutas diferentes
que contam com a participação de guerreiros
excepcionais. A primeira se chama palaismosýne e
vem qualificada sempre pelo adjetivo algeiné; para
ela se apresentam: o grande Ájax, filho de Télamon,
e o astucioso Odisseu, conhecedor de artimanhas.
A luta é dura e difícil de ser definida porque ambos
são muito fortes: Odisseu não consegue mover
Ájax, fazê-lo escorregar e ir ao chão, mas Ájax
também não. Ao fim de algum tempo de exposição
das duas potências quase inertes, Ájax faz uma
proposta: que Odisseu o levante ou o contrário. Ele
fala e, em seguida, levanta Odisseu, mas este tenta
um golpe, um dólos, batendo na perna do outro por
trás, forçando-o a dobrar o joelho, mas caem
ambos no chão. Depois é a vez de Odisseu tentar
erguer Ájax. Chega a movê-lo minimamente do
chão, mas não o levanta; tenta passar a perna, mas
caem ambos no chão. Quando, enfim, ensaiam a
terceira tentativa, os dois atletas são interrompidos
por Aquiles, que encerra o penoso combate,
atribuindo a vitória aos dois. Ambos aceitam e
ninguém reclama.
Por que Aquiles interrompe a luta? A pergunta
é inevitável, sobretudo quando se sabe da inimizade
dos dois heróis na Odisséia e na literatura posterior. Na Ilíada, entretanto, essa rivalidade não
aparece, embora no canto II haja uma referência a
Ájax como o segundo dos aqueus (v. 768-9).
Minha leitura é pelo empate porque, enfim, é um
empate, nenhum dos dois atinge o objetivo da luta,
ainda que, como acontece em todo empate, há
sempre um que atuou minimamente melhor que o
outro. Por outro lado, o empate teria a comodidade
de evitar que Aquiles passasse pelo constrangimento de ter de premiar um dos dois grandes competidores, constrangimento que poderia ser explicado
pela rapidez com que ele interrompe a luta. No
entanto, considero importante lembrar a sugestiva
leitura de Richardson (1993: 245-249) que
pergunta se Odisseu ganhou alguma vantagem
técnica, por ter levado Ájax duas vezes ao chão, ou
se o fato de ele mesmo cair junto nas duas vezes
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lhe tirou esta vantagem. Em outras palavras, a
habilidade de Odisseu prevalece sobre a força de
Ájax. Assim, o fato de Aquiles interromper a luta é
significativo. Há uma clara simpatia de Aquiles por
Ájax, por sua maneira de ser, mais direta, da
mesma forma que há certa aversão pela maneira de
ser mais indireta de Odisseu, como aparece no
canto IX (Richardson, 1993: 246).
A outra luta talvez possa nos ajudar a esclarecer esta, uma vez que ambas têm final semelhante.
Nesta, os competidores se apresentam usando
armadura, escudo e lança. Participam, novamente, o
grande Ájax, filho de Télamon e o forte Diomedes,
filho de Tideu, devidamente armados. O vencedor
do combate será aquele que, em primeiro lugar,
conseguir atingir o outro, ferindo-o na pele, até que
escorra o sangue negro. Então os dois combatentes
se entregam à luta com furor; por três vezes eles
atacam e por três vezes se lançam um sobre o
outro. Ájax atinge o escudo de Diomedes, mas este
tenta com insistência tocar por cima do escudo o
pescoço de Ájax com a lança. Os aqueus, temendo
por Ájax, pedem o fim do combate e a divisão
igualitária dos prêmios, mas é a Diomedes que
Aquiles entrega o prêmio principal, o punhal. Neste
caso, são os aqueus que pedem o fim do combate,
isto é, o empate, quando, de novo, Ájax tecnicamente seria perdedor. Diomedes é mais ágil e mais
agressivo, como, no combate anterior, Odisseu era
mais astuto. Ao observar a atitude de Ájax, nas
duas lutas, é possível estabelecer um paralelo entre
o guerreiro e o atleta. Na guerra, como defende
Francisco Murari (1999: 94-96), e nas competições, a atitude de Ájax é de ficar mais na defesa,
na retranca, do que no ataque. Encerrando aqui sua
participação, Diomedes tem uma vitória e um
empate em que é tecnicamente superior.
Vou tratar agora das provas que têm um
vencedor.
Aquiles poderia até pretender favorecer Ájax
pelo que eles têm em comum, mas Ájax participa
ainda de mais uma prova e fica em segundo lugar.
Trata-se do arremesso de peso. Além dele apresentam-se para competir o belicoso Polipetes, o
furor poderoso do divino Leonteu e o divino Epeu.
O melhor desempenho é de longe o de Polipetes.
Encerrando sua participação, Ájax tem dois
empates em que é tecnicamente inferior e um
segundo lugar.
O pugilato põe frente a frente Epeu, filho de
Panopeu, um homem grande, forte e conhecedor
do pugilato (pugmakhía) e Euríalo, filho de
Mecisteu, mortal igual aos deuses, filho de Talao,
que outrora viera a Tebas para participar dos jogos
fúnebres em honra de Édipo. Logo de início, o
próprio Epeu, num pequeno discurso desafiador,
encarrega-se de declarar-se invencível nessa
modalidade, o que, de fato, se confirma, em
seguida ao enfrentar Euríalo. Este recebe um golpe
tão violento na face que ele não consegue mais ficar
em pé.
A corrida a pé traz Ájax, o rápido filho de
Oileu, o astucioso Odisseu e Antíloco, filho de
Nestor, que ganha de todos os jovens na corrida.
Ájax sai correndo na frente dos outros; atrás dele,
muito próximo, quase roçando está Odisseu,
fazendo o máximo esforço para ultrapassá-lo.
Então, no último trecho da corrida, ele dirige uma
prece à deusa Atena, suplicando-lhe que venha
ajudar seus pés. A deusa ouve sua prece e a
resposta é imediata: de repente, fortalecido,
Odisseu vence a corrida, ao mesmo tempo em que
Ájax, por ação de Atena, escorrega e cai, ficando
em segundo lugar. Antíloco chega em terceiro e
observa que dessa vez os imortais favoreceram, na
ordem, os mais velhos. Mais uma vez o vencedor
teve o favor divino e, nesse caso, em particular, é
preciso ressaltar que Odisseu foi piedoso; não
pediu para ganhar de Ájax, pediu apenas socorro
aos seus pés, quando os sentiu fracos. Todos,
inclusive Ájax, reconheceram o auxílio de Palas
Atena. Assim, Odisseu encerra sua participação
com uma vitória e um empate em que é tecnicamente superior.
Para a sétima competição, arco e flecha,
apresentam-se o forte senhor Teucro e Meríones, o
nobre servo de Idomeneu. O alvo é uma pomba
amarrada pela pata ao mastro de um navio fincado
ao longe na areia. Por sorteio, Teucro atira primeiro
mas não atinge o alvo; Apolo não lhe concede isso,
porque ele não prometeu, antes da prova, ao
senhor dos arqueiros uma insigne hecatombe de
cordeiros recém-nascidos. Erra o alvo, mas a
flecha parte a corda que amarra a pomba ao
mastro e esta voa para o céu. Imediatamente
Meríones toma o arco das mãos de Teucro,
promete a hecatombe a Apolo e, enquanto vê a
pomba voando no céu, atira a flecha, e realiza a
prova com sucesso.
A última prova tem um desfecho diferente.
Para o arremesso de dardo, apresentam-se o
poderoso senhor Agamenão, filho de Atreu, e
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Meríones, nobre servo de Idomeneu. Aquiles,
contudo, dirigindo-se a Agamenão, suspende a
competição, dizendo saber que ele é o melhor de
todos nessa modalidade. Pede-lhe que leve seu
prêmio para a nau e dá a Meriones a lança.
Caberia perguntar por que Aquiles cancela a
prova? Porque Agamenão é de fato tão bom que
não teria sentido competir com Meriones, servo de
Idomeneu, que já participara de duas provas
vencendo uma, ou porque ele quer evitar o
constrangimento de Agamenão, caso viesse a
perder de Meríones? Na verdade, trata-se da
última prova e, penso, Aquiles quer encerrar bem,
com dignidade, os jogos em honra de Pátroclo. O
momento é de amizade, de confraternização e não
de constrangimento. Por que correr o risco? A
ocasião é propícia e com muita habilidade, ele
aproveita para apagar qualquer dúvida que pudesse
pairar sobre sua reconciliação com o Atrida,
reiterando a função que ele tem de chefe. A atitude
de Aquiles contradiz o que ele afirma no canto I,
que Agamenão sem lutar sempre se reservava os
melhores prêmios. No entanto, neste final, Agamenão
sabe corresponder ao gesto de Aquiles com igual
elegância e entrega o prêmio a Taltíbio, seu fiel
arauto.
HIRATA, F.Y. Games in Homer’s epic. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo,
14: 11-17, 2004.
ABSTRACT: Games have a strategic function in Homer’s poems. In the Iliad, for
example, throughout the eight competitions, Achilles shows to his ten-year-war
companions the impact of Patroclus’ burial: he knows he will share Patroclus’ grave
presently. Throughout the passage, besides sadness, there is a strong feeling of
cordiality among the partners, as well as the detachment of the one who says farewell:
remember we are in book XXIII. Achilles accomplishes the games in honour of his
friend in a brotherly manner, solving discords in a good mood, handing out prizes
abundantly and, above all, avoiding embarrassment between the most important
contestants. If, on the one hand, he keeps an irreprehensible attitude in conducting the
event, on the other hand, he has an impassive attitude, almost a detachment towards
everything that is happening around him.
UNITERMS: Iliad, Odyssey – Achilles, Patroclus – Death – Funeral games – Mêtis.
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Recebido em 18 de novembro de 2004.
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Filomena Yoshie Hirata.pmd
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