Índice - Colégio Medicina
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ANÁLISE FUVEST E UNICAMP Prof.: Pettras Aluno(a): ________________________________________________ Turma: ____________________________ Em 1828, D. Miguel foi aclamado rei, aboliu a Constituição e restabeleceu o absolutismo no país. Seu irmão, D. Pedro, que abdicara o trono do Brasil, desembarcou em Portugal com um pequeno exército e, com apoio dos liberais, deflagrou a guerra civil de 1832-34, que terminou com a vitória sobre os absolutistas. D. Miguel partiu para o exílio; Jacinto Galião, descontente com o desfecho adverso ao seu bemamado rei, resolveu abandonar Portugal, partindo com a mulher, D. Angelina Fafes, o filho Cintinho e poucos criados para o desterro em Paris. Na capital francesa, D. Galião adquiriu um luxuoso palacete, na Avenida dos Campos Elíseos, número 202, onde viveu regaladamente, até morrer de indigestão. Sua viúva, D. Angelina, por comodismo permaneceu em Paris, em vez de regressar a Portugal. Cintinho foi crescendo fraco e doentio. Entre tosses e sufocações, padecia de insônia freqüente, sempre perambulando à noite pelo palacete, a ponto de os criados apelidarem-no Sombra. No outono de 1851, começou a cuspir sangue. Em vez de buscar climas mais salubres, como recomendava o médico, Cintinho resolveu ficar, pois estava apaixonado por Teresinha Velho, filha do desembargador Nunes Velho, amigo de família. Com ela se casou, mas morreu pouco tempo depois, sem presenciar o nascimento do filho, que veio ao mundo três meses após o falecimento do pai. Entusiasta da Civilização O menino também chamou-se Jacinto, mas, ao contrário do progenitor, era um garoto extremamente saudável e vivaz. Nascido e criado em Paris, desde cedo revelara inteligência superior e forte personalidade. Imensamente favorecido pela sorte, era chamado ”Príncipe da Grã-Ventura“ pelos amigos. Já rapaz, Jacinto tornara-se um entusiasta do progresso. Costumava dizer que o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado. Sua idéia de civilização implicava o acúmulo erudito de todas as concepções adquiridas pela inteligência humana, desde a Grécia antiga, aliado à utilização de todos os mecanismos inventados para potencializar o domínio do homem sobre a natureza. Assim, Jacinto passou a orientar sua vida segundo a fórmula: SUMA CIÊNCIA x SUMA POTÊNCIA = SUMA FELICIDADE Segundo Jacinto, a civilização era produto da cidade; somente nela o homem poderia afirmar sua superioridade de ser pensante. A natureza, ao contrário, inspirava-lhe horror; nela, ele sentia a anulação do intelecto e a redução do homem à bestialidade. Por uma conclusão bem natural, a idéia de civilização, para Jacinto, não se separava da imagem de cidade, de uma enorme cidade, com todos os seus vastos órgãos funcionando poderosamente. Nem este meu supercivilizado amigo compreendia que longe de armazéns servidos por três mil caixeiros; e de mercados onde se despejam os vergéis e lezírias de trinta províncias; e de bancos em que retine o ouro universal; e de fábricas fumegando com ânsia, inventando com ânsia; e de bibliotecas abarrotadas, a estalar, com a papelada dos séculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, por baixo e por cima, de fios de telégrafos, de fios de telefones, de canos de gases, de canos de fezes; e da fila atroante de ônibus, “tramways”, carroças, velocípedes, calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milhões de uma vaga humanidade, fervilhando, a ofegar, através da polícia, na busca dura do pão ou sob a ilusão do gozo — o homem do século XIX pudesse saborear, plenamente, a delícia de viver! [...] Ao contrário, no campo, entre a inconsciência e a impassibilidade da natureza, ele tremia com o terror da sua fragilidade e da sua solidão. Estava aí como perdido num mundo que lhe não fosse fraternal; nenhum silvado encolheria os espinhos para que ele passasse; se gemesse com fome, nenhuma árvore, por mais carregada, lhe estenderia o seu fruto na ponta compassiva dum ramo. Depois, em meio da natureza, ele assistia à súbita e humilhante inutilização de todas as suas faculdades superiores. De que servia, entre plantas e bichos — ser um gênio ou ser um santo? As searas não compreendem as Geórgicas2; e fora necessário o socorro ansioso de Deus, e a inversão de todas as leis naturais, e um violento milagre Índice A Cidade e as Serras Leitura de Vidas Secas Capitães de Areia Exercícios Fuvest Resumo de Til Análise De Viagens Na Minha Terra Mundo Grande Sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas Memórias de um Sargento de Milícias O cortiço Data: 27/05/2014 página 01 página 07 página 14 página 20 página 25 página 28 página 33 página 35 página 47 página 55 A cidade e as serras De eça de queirós Por José de Paula Ramos Jr. APRESENTAÇÃO Último romance de Eça de Queirós, publicado postumamente em 1901, A Cidade e as Serras é o desenvolvimento de um conto de sua autoria chamado A Civilização. Pertencendo à última fase da obra de Eça, esse romance apresenta uma acentuada idealização da vida rural portuguesa, entendida como remédio para os males gerados pela civilização urbana do final do século XIX. A obra apresenta XVI capítulos, que, esquematicamente, podem ser divididos em dois blocos. O primeiro, constituído dos sete capítulos iniciais e parte do oitavo, passa-se em Paris e serve para caracterizar os requintes da civilização urbana. Nele, mediante o poder da ironia e do talento caricatural, Eça de Queirós vai compondo um quadro exasperante, em que o protagonista aos poucos se deixa vencer por um tédio irresistível e um pessimismo atroz. Jacinto tem cultura, prestígio e uma imensa fortuna, mas não é feliz. Da metade do oitavo capítulo ao último, o autor compõe o segundo bloco, que se contrapõe ao primeiro, sendo a sua antítese. Jacinto se regenera, torna-se ativo e entusiástico. O encontro com a natureza e a vida simples do meio rural proporcionalhe a felicidade. Não deixa de haver humor, ironia e caricatura no idílio campestre de Jacinto, mas a arte de Eça, nesse segundo bloco, se compraz num estilo em que é notável a carga de lirismo, especialmente nas descrições impressionistas da natureza. Como se verifica em A Ilustre Casa de Ramires, outra obra da última fase do autor, configura-se, em A Cidade e as Serras, a valorização de uma aristocracia rural degradada pela adoção de modelos de vida inautênticos, estrangeirados, que se regenera ao reencontrar-se com as raízes nacionais lusitanas, capazes de restituir a fibra empreendedora e infundir o espírito de generosidade humanitária. Como um todo, o romance A Cidade e as Serras pode ser visto como uma alegoria, isto é, uma metáfora desenvolvida numa narrativa de significado simbólico, segundo a qual a felicidade se encontra na vida simples e laboriosa do meio rural, e não no artificialismo enganoso da civilização urbana. ENREDO De Lisboa a Paris A história de Jacinto de Tormes começa bem antes de seu nascimento. Em Lisboa, nos idos de 1820, aproximadamente, seu avô, um gordíssimo e riquíssimo fidalgo, também chamado Jacinto, conhecido pela alcunha de D. Galião, escorregou numa casca de laranja e desabou em plena rua, sendo socorrido pelo infante D. Miguel, filho do rei D. João VI e herdeiro do trono. Desde então, o velho aristocrata dedicou um afeto sem limites ao príncipe, que o ajudara tão graciosamente. 1 Jacinto, aborrecido com os desastres mecânicos, promove uma grande reforma no 202. Enquanto isso, Zé Fernandes conhece Madame Colombe, de quem se torna amante. Assim ele se pronuncia sobre o caso: Durante sete furiosas semanas perdi a consciência de minha personalidade de Zé Fernandes — Fernandes de Noronha e Sande, de Guiães! Ora se me afigurava ser um pedaço de cera que se derretia, com horrenda delícia, num forno rubro e rugidor; ora me parecia ser uma faminta fogueira onde flamejava, estalava e se consumia um molho de galhos secos. Desses dias de sublime sordidez só conservo a impressão de uma alcova forrada de cretones sujos, de uma bata de lã de cor lilás, com “soutaches” negros, de vagas garrafas de cerveja no mármore de um lavatório, de um corpo tisnado que rangia e tinha cabelos no peito. [...] Do sólido, decoroso, bem fornecido Zé Fernandes, só restava uma carcaça errando através de um sonho, com as gâmbias moles e a baba a escorrer. Depois, uma tarde, trepando com a costumada gula a escada da Rua do Hélder, encontrei a porta fechada — e arrancado da ombreira aquele cartão de “Madame Colombe” que eu lia sempre tão devotamente e que era a sua tabuleta... Tudo no meu ser tremeu como se o chão de Paris tremesse! Aquela era a porta do mundo que ante mim se fechara! Para além estavam as gentes, as cidades, a vida, Deus e Ela. E eu ficara sozinho, naquele patamar do não-ser, fora da porta que se fechara, único ser fora do mundo! Rolei pelos degraus, com o fragor e a incoerência de uma pedra, até o cubículo da porteira e do seu homem que jogavam as cartas em ditosa pachorra, como se tão pavoroso abalo não tivesse desmantelado o universo! — Madame Colombe? A barbuda comadre recolheu lentamente a vaza: — Já não mora... Abalou esta manhã, para outra terra, com outra porca! (pp. 59-60) Tédio e Pessimismo Curado de sua infecção sentimental, Zé Fernandes retomou a camaradagem com o amigo Jacinto, que, ultimamente, dava sinais de grande melancolia. Grilo, o velho criado negro, dizia: Sua Excelência sofre de fartura. De fato, os confortos proporcionados pelo progresso mecânico, toda erudição acumulada na vasta biblioteca, os apelos da sociedade elegante, nada satisfazia o Príncipe da Grã-Ventura, que se transfomara num homem taciturno, triste e asfixiado por um tédio medonho. E essa disposição de espírito era refletida pela decadência física de Jacinto, que definhava visivelmente. Para distrair o amigo, Zé Fernandes o leva a um passeio a Montmartre, nos arredores de Paris, para conhecerem a Basílica do Sacré-Coeur. A edificação não os interessou muito, no entanto, a visão da cidade de Paris, do alto, causou-lhes profunda impressão. Zé Fernandes faz uma longa reflexão sobre a cidade, considerando como toda a sua grandeza se apagava, vista de cima. Jacinto, observa: — Sim, é talvez tudo uma ilusão... E a cidade a maior ilusão! Animado com a própria eloqüência, Zé Fernandes prosseguiu seu discurso, aduzindo que na cidade findava toda liberdade moral do ser humano: Cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência: pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; rico e superior como um Jacinto, a sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel [...]. Se ao menos essa ilusão da cidade tornasse feliz a totalidade dos seres que a mantêm... Mas não! Só uma estreita e reluzente casta goza na cidade os gozos especiais que ela cria. O resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimentos especiais que só nela existem! [...] Aí jaz, espalhada pela cidade, como esterco vil que fecunda a cidade. [...] Ei-la agora coberta de moradas em que eles não se abrigam; armazenada de estofos, com que eles se não agasalham; abarrotada de alimentos, com que eles se não saciam! [...] A tua civilização reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só obterá, nesta amarga desarmonia social, se o Capital der ao Trabalho, por cada arquejante esforço, uma migalha ratinhada. Irremediável, é, pois, que incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada miséria é a condição do esplendor sereno da cidade. [...] Há andrajos em trapeiras — para que as belas madamas de Oriol, resplandecentes de sedas e rendas, subam, em doce ondulação, a escadaria da Ópera. Há mãos regeladas que se estendem, e beiços para que o lobo de Agúbio não devorasse S. Francisco de Assis, que lhe sorria e lhe estendia os braços e lhe chamava “meu irmão lobo!”. Toda a intelectualidade, nos campos, se esteriliza, e só resta a bestialidade. Nesses reinos crassos do Vegetal e do Animal duas únicas funções se mantêm vivas, a nutritiva e a procriadora. Isolada, sem ocupação, entre focinhos e raízes que não cessam de sugar e de pastar, sufocando no cálido bafo da universal fecundação, a sua pobre alma toda se engelhava, se reduzia a uma migalha de alma, uma fagulhazinha espiritual a tremeluzir, como morta, sobre um naco de matéria; e nessa matéria dois instintos surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar e o de gerar. Ao cabo de uma semana rural, de todo o seu ser tão nobremente composto só restava um estômago e por baixo um “falus”! A alma? Sumida sob a besta. E necessitava correr, reentrar na cidade, mergulhar nas ondas lustrais da civilização, para largar nelas a crosta vegetativa, e ressurgir reumanizado, de novo espiritual e jacíntico! José Fernandes, narrador do romance, amigo mais próximo de Jacinto, após alguns anos de estudos em Paris, teve de voltar a Portugal. Seu tio Afonso Fernandes, numa carta, lamentava que o peso de seus setenta anos e os males hemorroidais o impediam de cuidar de sua propriedade rural, em Guiães, na região do Douro, que ficava vizinha à casa senhorial dos Jacintos, nas serras de Tormes. O velho tio ordenava ao sobrinho que voltasse ao lar, a fim de assumir a gerência da propriedade. Zé Fernandes, então, abandonou o curso de Direito e partiu para Portugal. Voltando à vida de aldeia, passava seus dias entre os cuidados com a terra e o carinho da tia Vicência, que, em pouco tempo, ficou viúva. Desastres mecânicos e sentimentais Por sete anos os amigos não se viram, até que, por volta de 1887, Zé Fernandes, em viagem a Paris, reencontra Jacinto. Na Avenida dos Campos Elíseos, número 202, o antigo palacete fora transformado numa síntese do mundo moderno, dotado de uma biblioteca com 30 mil volumes, que concentrava todo o saber produzido pelo homem, e de toda espécie de máquinas e equipamentos de que a tecnologia era capaz para o conforto da vida. Nunca o 202, como era conhecido o palacete, fora tão magnífico, com o brilho da eletricidade, o conforto de elevadores, a parafernália de telefones, fonógrafos e telégrafos e o requinte de utensílios, máquinas e engenhocas de toda espécie. Zé Fernandes, convidado por Jacinto, hospedou-Se no 202. Participando do cotidiano daquela micrópolis ultra-sofisticada, pôde testemunhar a falibilidade exasperante dos prodígios tecnológicos. Eram canos que rompiam, inundando uma ala do palacete, panes elétricas e até mesmo o emperramento do ascensor de pratos, que comprometeu um jantar de gala oferecido ao grão-duque Casimiro, amigo de Jacinto. Nesse jantar, Zé Fernandes pôde observar mais de perto um resumo da alta sociedade parisiense: a condessa de Trèves, com sua lisonja fácil, ocupava-se de alimentar a vaidade de cada um, toda ela era uma sublime falsidade; o conde de Trèves e seu comborço, o banqueiro judeu Efraim, tentavam convencer Jacinto a tornar-se acionista de uma mirabolante Companhia das Esmeraldas da Birmânia, garantindo a segurança do empreendimento com um argumento estapafúrdio, que denunciava tratar-se de uma negociata: — Esmeraldas! Está claro que há esmeraldas!... Há sempre esmeraldas desde que haja acionistas!; um psicólogo cabotino alardeava seu profundo conhecimento da alma feminina, expresso em seu último romance, enquanto o irônico diretor do jornal Boulevard, o duque de Marizac, divertia-se apontando um erro no romance, que comprometia a credibilidade do autor; Dornan, celebrado poeta neoplatônico e místico, ouvia uma história picante e, impassível, declarava: — Há melhor, há infinitamente melhor... Todos aqui conhecem Madame Noredal. Madame Noredal tem umas imensas nádegas...; Madame de Oriol, Madame Verghane, a princesa De Carman rivalizavam na elegância sedutora de trajes e modos; esses todos juntaram-se aos demais convidados na arte da bajulação, quando chegou o grão-duque Casimiro. Este, irmão de um imperador, do alto de sua majestade, interessava-se apenas em cançonetas obscenas e nos prazeres culinários e etílicos. Três dias após essa festa, Jacinto recebeu uma correspondência de Portugal, com a informação de que sua propriedade nas serras de Tormes havia sido muito castigada por uma terrível tempestade, que soterrara uma capelinha do século XVI e o cemitério contíguo, onde jaziam vários ancestrais do fidalgo. Este telegrafa a Silvério, seu administrador em Tormes, ordenando a reedificação da igrejinha e o resgate das ossadas, para o que não se poupariam despesas. 2 sumidos que agradecem o dom magnânimo de um “sou”— para que os Efrains tenham dez milhões no Banco de França, se aqueçam à chama rica da lenha aromática, e surtam de colares de safiras as suas concubinas, netas dos duques de Atenas. E um povo chora de fome, e da fome dos seus pequeninos — para que os Jacintos, em janeiro, debiquem, bocejando, sobre pratos de Saxe, morangos gelados em Champagne e avivados de um fio de éter! (pp. 67-69) Quando ambos se preparavam para voltar a casa, Jacinto é chamado por Maurício de Mayolle, um amigo que não via há anos. Trava-se uma conversa, em que Zé Fernandes pôde observar como as doutrinas filosóficas e estéticas eram experimentadas por certas rodas elegantes como modas passageiras. Renanismo, hartmannismo, nietzschianismo, tolstoismo etc. eram substituídas umas pelas outras, numa atitude de puro diletantismo. Os sinais de enfado de Jacinto começaram a se acentuar mais; tanto que os próprios encontros com sua amante, a fina Madame de Oriol, tornaram-se um peso. Para aliviá-lo, Jacinto rogava que o amigo Zé Fernandes o acompanhasse nas visitas vespertinas. Quanto a Madame de Oriol: Ela só sabia chalrar sobre a sua pessoa, que era o resumo da sua classe, e sobre a sua existência, que era o resumo do seu Paris; e a sua existência, desde casada, consistira em ornar com suprema ciência o seu lindo corpo; entrar com perfeição numa sala e irradiar; remexer em estofos e conferenciar pensativamente com o grande costureiro; rolar pelo “Bois” pousada na sua vitória como uma imagem de cera; decotar e branquear o colo; debicar uma perna de galinhola em mesas de luxo; fender turbas ricas em bailes espessos; adormecer com a vaidade esfalfada; percorrer de manhã, tomando chocolate, os “ecos” e as “festas” do “Figaro”; e de vez em quando murmurar para o marido — “Ah, és tu?...” (pp. 76-77) Em uma dessas visitas, na escadaria do jardimda casa, os amigos encontram o marido de Madame de Oriol, que saía emocionado. Passase uma cena constrangedora. — Visita lá em cima? Vai achar a Joana em péssima disposição... Tivemos uma cena, e tremenda. Deu outro puxão desesperado à luva cor de palha, já esgarçada: — Estamos separados, cada um vive como lhe apetece; é excelente! Mas em tudo há medida e forma... Ela tem o meu nome, não posso consentir que em Paris, com conhecimento de todo o Paris, seja amante do trintanário. Amantes da nossa roda, vá! Um lacaio, não!... Se quer dormir com os criados que emigre para o fundo da província, para a sua casa de Corbelle. E lá até com os animais!... Foi o que eu lhe disse! Ficou como uma fera. (pp. 78-79) Zé Fernandes parte para uma viagem de algumas semanas pelas cidades da Europa. De volta a Paris, encontra o amigo mais melancólico ainda. Ele tornara-se adepto da filosofia pessimista, passando seus dias na leitura do Eclesiastes bíblico e das obras de Schopenhauer. Aos trinta e quatro anos de idade, Jacinto, apesar de todo conforto, de toda riqueza e de todo prestígio que gozava na sociedade parisiense, sentia a vida como um peso esmagador, que o fazia sucumbir. A Caminho das Serras Numa manhã de fim de inverno, Jacinto surpreende Zé Fernandes com a resolução de ir a Tormes para a inauguração da igrejinha, que ficara pronta, e para o traslado e sepultamento das ossadas ancestrais. Os preparativos para a viagem tomaram três meses. Jacinto despachou para Tormes várias caixas com móveis, livros, tapetes e objetos capazes de fazer do solar rústico da serra, edificado em 1410, um simulacro do 202. Em abril, com a primavera, Zé Fernandes e o amigo Jacinto, que nunca estivera em seu país, partiram para as serras portuguesas. A viagem foi tumultuada. Na baldeação do trem, em Medina, na Espanha, perderam-se os criados, com todas as bagagens. Assim, os dois amigos chegaram à estação de Tormes apenas com as roupas do corpo. Para piorar a situação, ninguém os aguardava; e eles tiveram que seguir para a propriedade de Jacinto em dois animais emprestados, uma égua e um burro. No caminho, Jacinto se encanta com a paisagem, mas ao chegar à sede da quinta (propriedade rural), nova decepção aguardava os amigos. O velho solar senhorial tinha um aspecto lúgubre, as obras ordenadas corriam muito lentamente e as caixas despachadas de Paris haviam sido extraviadas para Alba de Tormes, na Espanha, como depois se soube. Zé Fernandes, então, propôs que Jacinto fosse com ele, no dia seguinte, para sua quinta em Guiães; mas o amigo, furioso com o contratempo, decidira rumar para Lisboa. O jantar simples e farto, que lhes foi servido pelos empregados de Tormes, de típica culinária serrana, foi muito elogiado pelos fidalgos. Jacinto, que há anos sofria de inapetência, comeu com enorme prazer. Cansados da viagem, ambos dormiram em camas improvisadas sobre o chão de pedra. No dia seguinte, Zé Fernandes partiu para sua propriedade, de onde enviou a Jacinto alguma roupa, objetos de asseio e livros. Passada uma semana, Zé Fernandes recebeu as bagagens que se haviam extraviado em Medina. Telegrafando a Lisboa, onde pensava estar Jacinto, para acusar o recebimento das malas, não obteve resposta. Mais quatro semanas se passaram, até Zé Fernandes descobrir que o amigo não saíra de Tormes, desde a chegada. Num domingo, rumou para lá, encontrando o velho solar em obras e, embora ainda muito despojado, em condições mais higiênicas e habitáveis. Zé Fernandes surpreende-se com Jacinto, revigorado pelo ar e pela comida saudável da serra. Era outro homem. Recobrara a alegria de viver. E o motivo da transformação fora a descoberta da natureza e da vida campestre. Na tarde desse dia, os amigos foram passear pela quinta. Era com delícias, com um consolado sentimento de estabilidade recuperada, que [Jacinto] enterrava os grossos sapatos nas terras moles, como no seu elemento natural e paterno: sem razão, deixava os trilhos fáceis, para se embrenhar através de arbustos emaranhados, e receber na face a carícia das folhas tenras; sobre os outeiros, parava, imóvel, retendo os meus gestos e quase o meu hálito, para se embeber de silêncio e de paz; e duas vezes o surpreendi atento e sorrindo à beira dum regatinho palreiro, como se lhe escutasse a confidência... Depois filosofava, sem descontinuar, com o entusiasmo dum convertido, ávido de converter: — Como a inteligência aqui se liberta, hem? E como tudo é animado duma vida forte e profunda...! Dizes tu agora, Zé Fernandes, que não há aqui pensamento... — Eu?! Eu não digo nada, Jacinto... — Pois é uma maneira de refletir muito estreita e muito grosseira... — Ora essa! Mas eu... — Não, não percebes. A vida não se limita a pensar, meu caro doutor... — Que não sou! — A vida é essencialmente vontade e movimento: e naquele pedaço de terra, plantado de milho, vai todo um mundo de impulsos, de forças que se revelam, e que atingem a sua expressão suprema, que é a forma. Não, essa tua filosofia está ainda extremamente grosseira... — Irra! mas eu não... —E depois, menino, que inesgotável, que miraculosa diversidade de formas... E todas belas! Agarrava o meu pobre braço, exigia que eu reparasse com reverência. Na natureza nunca eu descobriria um contorno feio ou repetido! Nunca duas folhas de hera, que, na verdura ou recorte, se assemelhassem! Na cidade, pelo contrário, cada casa repete servilmente a outra casa; todas as faces reproduzem a mesma indiferença ou a mesma inquietação; as idéias têm todas o mesmo valor, o mesmo cunho, a mesma forma, como as libras; e até o que há mais pessoal e íntimo, a ilusão, é em todos idêntica, e todos a respiram, e todos se perdem nela como no mesmo nevoeiro... A mesmice — eis o horror das cidades! (pp. 125-126) Jacinto pensava ficar em Tormes no máximo dois meses, até a inauguração da igrejinha e trasladamento dos restos dos antepassados. No entanto, foi alongando sua estada, cada vez mais entusiasmado com sua quinta, para a qual tinha grandes planos. Após as primeiras semanas contemplativas, Jacinto começou a manifestar desejo de ação. Inexperiente nos trabalhos rurais, o fidalgo sonhava transformar sua rústica serra numa propriedade moderna, aproveitando os largos espaços inativos com um imenso prado, onde se criaria gado de raça, para fabricação de queijos finos. Para realização disso, do modo sofisticado que Jacinto pensava, seria necessário um vultoso investimento, que elevaria os custos de produção a ponto de trazer enorme prejuízo. O administrador de Tormes, Silvério, opunhase aos sonhos mirabolantes do patrão, argumentando que, se ele quisesse gastar tanto dinheiro, que o fizesse em outras propriedades que possuía, espalhadas por Portugal, em que as terras eram de qualidade superior. Mas, infelizmente para a quietação do Silvério, Jacinto lançara raízes, e rijas, e amorosas raízes na sua rude serra. Era realmente como se o tivessem plantado de estaca naquele antiquíssimo chão, de 3 Muitas vezes, Jacinto manifestava o desejo de levar mulher e filhos a Paris, para que conhecessem a grande metrópole, mas como a viagem era sempre adiada, Zé Fernandes, que os acompanharia, decidiu ir só. Lá chegando, reencontrou velhos conhecidos, que continuavam a mesma existência de frivolidade e inautenticidade. Desencantado, despediu-se da cidade, disposto a não mais voltar, regressando a Portugal. Ao descer na estação, a família de Jacinto o aguardava. Festivamente, tomaram o rumo do solar de Tormes, enquanto Zé Fernandes refletia: E na verdade me parecia que por aqueles caminhos, através da natureza campestre e mansa, — o meu príncipe, atrigueirado nas soalheiras e nos ventos da serra, a minha prima Joaninha, tão doce e risonha mãe, os dois primeiros representantes da sua abençoada tribo, e eu, — tão longe de amarguradas ilusões e de falsas delícias, trilhando um solo eterno, e de eterna solidez, com a alma contente, e Deus contente de nós, serenamente e seguramente subíamos — para o Castelo da Grã-Ventura! (p.192) ANÁLISE DA OBRA Foco Narrativo O foco narrativo de A Cidade e as Serras é centrado na primeira pessoa. O narrador, Zé Fernandes, embora seja personagem importante do romance, não é protagonista. Trata-se de um narrador testemunha, que observa de perto os acontecimentos que relata. Ele não sabe tudo sobre a história, como os narradores oniscientes; seu conhecimento dos fatos limita-se àquilo que presencia, ou ao que indiretamente lhe é dado saber. Quanto às personagens com que se relaciona, só as conhece pelo que manifestam; se há discordância entre o que declaram e seus pensamentos e sentimentos mais íntimos, o narrador não é capaz de saber com certeza. O leitor conhece indireta e parcialmente fatos e pessoas, uma vez que são apresentados mediante o filtro da subjetividade. Assim, o retrato das personagens depende da sensibilidade, capacidade de observação e disposição afetiva do narrador; a apresentação dos fatos resulta da seleção e combinação, empreendida pelo narrador, dos elementos que os constituem, aos quais ele teve acesso direta ou indiretamente; os juízos de valor formulados decorrem dos valores assumidos pelo narrador. Embora não se possa confundir autor (Eça de Queirós) e narrador (Zé Fernandes), o primeiro se vale do segundo para passar a tese que está na base da obra, a da superioridade da vida rural sobre a civilização urbana e desumanização do homem nas grandes cidades. Personagens Zé Fernandes reserva às personagens secundárias um espaço muito modesto na narrativa; são coadjuvantes que intervêm episodicamente, quando penetram no raio de ação do protagonista Jacinto, ou do próprio Zé Fernandes. Por esse motivo, suas caracterizações são muito esquemáticas; o narrador não as acompanha ou analisa, a não ser quando suas ações interessam para configurar as reações de Jacinto, de modo a modular sua personalidade, ou definir sua trajetória. Essas personagens secundárias não são propriamente indivíduos; são generalizações, que ilustram tipos humanos, isto é, modelos gerais de comportamento ou personalidade. Eça de Queirós, através do narrador, caracteriza-as com pinceladas grossas, usando o método da caricatura, de que é mestre. Freqüentemente, apresentam traços ridículos, que denunciam a intenção satírica e crítica do autor. A única personagem mais desenvolvida, fora o protagonista, é a do próprio narrador Zé Fernandes, que não é um simples coadjuvante, como as demais, mas um deuteragonista, isto é, a segunda personagem em importância, que forma um par com o protagonista. Na verdade, Zé Fernandes é uma espécie de duplo de Jacinto, um seu complemento; juntos, constituem uma totalidade, em que o caráter impulsivo do segundo é contrabalançado pelo perfil mais compassivo do primeiro. É como se fossem uma atualização, embora em escala e sentido diferentes, da dupla inesquecível de Cervantes: Sancho Pança (Zé Fernandes) e D. Quixote (Jacinto), em que o primeiro encarna o espírito realista, e o segundo, o idealista. Zé Fernandes representa o fidalgo culto, viajado e perfeitamente identificado com suas raízes rurais lusitanas, conformação que lhe dá a força de um caráter bem centrado em si. Espírito prático e benigno, tendo como principal característica psicológica o temperamento afetuoso e compreensivo, constitui uma espécie de personificação da amizade. Num elucidativo ensaio, Alvaro Santos Simões Junior demonstra como Zé Fernandes é a personagem mais complexa do romance, dotado que é de um caráter energético, nuançado pela ironia, malícia e, em alguns momentos, até mesmo pelo cinismo. onde brotara a sua raça, e o antiquíssimo humo8 refluísse e o penetrasse todo, e o andasse transformando num Jacinto rural, quase vegetal, tão do chão, e preso ao chão, como as árvores que ele tanto amava. E depois, o que o prendia à serra era o ter nela encontrado o que na cidade, apesar da sua sociabilidade, não encontrara nunca, — dias tão cheios, tão deliciosamente ocupados, de um tão saboroso interesse, que sempre penetrava neles, como numa festa ou numa glória. (p. 139) Contudo, os planos de Jacinto ficavam no papel, devido à resistência respeitosa do administrador Silvério, que sempre dava um bom motivo para não se iniciarem as reformas. Quando Jacinto ralhava com Zé Fernandes, porque este não se enlevava com os encantos da natureza, o amigo advertia: — Meu filho, olha que eu não passo de um pequeno proprietário. Para mim não se trata de saber se a terra é linda, mas se a terra é boa. Olha o que diz a Bíblia! “Trabalharás a quinta com o suor do teu rosto!” E não diz “contemplarás a quinta com o enlevo da tua imaginação!” (p. 142) Com o passar do tempo, Jacinto foi se familiarizando com os trabalhos rurais, sentindo prazer em conversar com os camponeses. Numa manhã de chuva tempestuosa, porém, ao abrigar-se na casa de um empregado seu, ficou chocado com a miséria que encontrou. Informado das condições precárias dos trabalhadores, que desconhecia, ordenou ao administrador Silvério a construção de habitações decentes para todos e a revisão de contratos de trabalho, no intuito de melhorar a renda dos empregados. Com o passar do tempo, Jacinto foi se familiarizando com os trabalhos rurais, sentindo prazer em conversar com os camponeses. Numa manhã de chuva tempestuosa, porém, ao abrigar-se na casa de um empregado seu, ficou chocado com a miséria que encontrou. Informado das condições precárias dos trabalhadores, que desconhecia, ordenou ao administrador Silvério a construção de habitações decentes para todos e a revisão de contratos de trabalho, no intuito de melhorar a renda dos empregados. A quinta de Tormes torna-se um imenso canteiro de obras. Jacinto, além de habitações aos trabalhadores, estava determinado a construir uma escola, uma creche para os bebês, uma biblioteca e a instalar uma farmácia, que atenderia toda região. A popularidade do fidalgo torna-se enorme, sendo reconhecido como um grande benfeitor dos pobres. João Torrado, um velho ermitão, figura folclórica, meio adivinho, afirmava a todos que Jacinto era D. Sebastião (sebastianismo), que voltara. Happy End Jacinto, indo a Guiães, por ocasião do aniversário de Zé Fernandes, hospedou-se na casa dele e conheceu, finalmente, a tia do amigo, Vicência, que ficou encantada de sua pessoa. Na festa, Jacinto foi apresentado à sociedade da região, que o recebeu com reservas cerimoniosas, pois corria o boato de que o fidalgo de Tormes fora a Portugal para conspirar a favor do absolutismo, levando consigo, disfarçado de lacaio, o filho do banido D. Miguel. Ao saber disso, quando foram embora os convidados, Jacinto mostrou-se surpreso, mas considerou: Vou ter aqui bons amigos, quando verificarem que não sou miguelista. Na verdade, Jacinto era simpatizante do socialismo, como afirmou à tia Vicência. Como a boa senhora ignorava o que era, Zé Fernandes explicou que socialista era ser pelos pobres. Jacinto conhece uma prima de Zé Fernandes, Joaninha, por quem se apaixona e com quem se casa. Passados cinco anos, o casal vivia feliz com seus dois filhos, Terezinha e Jacintinho. A paternidade dera a Jacinto senso de responsabilidade e disciplina, tornando-o um proprietário muito cioso do equilíbrio entre despesas e receitas; os sonhos quiméricos se dissiparam, dando lugar a um sólido conhecimento das coisas rurais, que ele aplicava, zelosamente, em todas as suas prósperas propriedades, e não apenas na de Tormes. Com a perspectiva do nascimento de Terezinha, Jacinto estabeleceu equilíbrio entre o culto à civilização e o fanatismo pela simplicidade. Ele mandara buscar as caixas mandadas de Paris e extraviadas para Alba de Tormes, mas a maior parte foi armazenada nos sótãos; de seus conteúdos, aproveitaram-se apenas cortinas, tapetes e alguma mobília, de modo que a simplicidade do velho solar foi preservada. Mandara, também, instalar telefones em sua casa, na do sogro, do médico e do amigo Zé Fernandes, que começou a temer uma recaída de Jacinto naquela ânsia de progresso dos tempos de Paris, mas isso não se confirmou. De fato, Jacinto conquistara a paz de espírito, capaz de aproveitar do progresso apenas o que realmente fosse útil, sem descomedimento. 4 Jacinto é o protagonista. Sua genealogia, modo de vida, aspecto físico, suas idéias e sentimentos, seus estados psicológicos e sua trajetória de Paris a Tormes, sempre no limite da narrativa em primeira pessoa, são apresentados minuciosamente ao leitor. Jacinto representa a elite portuguesa ultracivilizada, que se desenraizou do solo e da cultura lusitana. Cidadão do mundo, identificado com o espírito do progresso mecânico do século XIX, ele passa a sofrer uma terrível crise existencial, desencadeada, exatamente, por esse espírito insaciável de novidades, que nunca tem repouso ou sossego. Refém da insatisfação, sua alma se estiola num tédio profundo, que o encaminha para o pessimismo filosófico. Somente o reencontro das raízes nacionais e familiares, na simplicidade da vida rural serrana de Tormes, restitui-lhe a paz e alegria de viver. A trajetória existencial de Jacinto é marcada por três momentos. Inicialmente, ele nega o campo, que considera como imagem do embrutecimento espiritual e bestificação do homem, afirmando a cidade como imagem-síntese do progresso e da civilização; num segundo momento, seu tédio e desencanto da vida urbana desencadeia o movimento inverso de negação da cidade, como imagem da hipocrisia e aviltamento, e afirmação do campo, como imagem da regeneração das virtudes autênticas do homem; finalmente, dá-se a síntese dialética, em que cidade e campo se reconciliam, sob a hegemonia do segundo: Jacinto realiza o equilíbrio dos dois termos, admitindo certas conquistas da civilização, de forma moderada, para melhor aproveitar os benefícios superiores da natureza, sendo que esta se cristaliza como a verdadeira fonte de felicidade e paz. O nome do protagonista contém em si mesmo a trajetória de sua vida, pela evocação do mito que lhe é implícito. Jacinto é nome de uma personagem da mitologia grega. Jovem de notável beleza, era amado pelo deus Apolo. Um dia em que se divertiam com exercícios atléticos, o disco lançado por Apolo foi desviado pelo vento, atingindo Jacinto e matando-o. Apolo, para imortalizar o amigo, transformou-o na flor que recebeu seu nome. Apolo, deus da cultura e civilização, amava o Jacinto mítico, assim como a cidade de Paris, símbolo da cultura e civilização, amava o Jacinto moderno; Apolo, apesar de seu amor, provocou a morte do amigo, assim como Paris provocava o definhamento de seu predileto; Apolo restituiu vida ao amigo plantando-o na terra e metamorfoseando-o em flor; Paris restituiu Jacinto às suas origens rurais, completamente despojado dos bens da civilização — ele chega a Tormes somente com a roupa do corpo —, para ressuscitar pleno de energia para a vida. Tempo A Cidade e as Serras compreende uma narrativa que se inicia em torno de 1820, estendendo-se até cerca de 1893. O relato segue a cronologia linearmente, mas não de forma contínua; há alguns blocos de tempo bem definidos, entre os quais se interpõem períodos mais ou menos longos. O primeiro bloco abrange o período que vai de 1820, aproximadamente — quando D. Galião, avô de Jacinto, é socorrido de uma queda, numa rua de Lisboa, pelo infante D. Miguel —, até fins de 1853 e início de 1854, quando, respectivamente, morre o pai de Jacinto e este nasce, em Paris. Este primeiro bloco é apresentado de forma muito sintética, através da técnica do sumário narrativo. O segundo bloco, situado na segunda metade dos anos 1870, apresenta o protagonista em sua juventude, entusiasmado pelo progresso e pela civilização urbana, na época em que conhece o amigo Zé Fernandes e estabelece com ele estreita camaradagem. Este bloco, que se encerra em 1880 com a partida de Zé Fernandes para a aldeia de Guiães, após alguns anos de estudo em Paris, também se apresenta na forma de sumário narrativo. Esses dois blocos iniciais encontram-se no primeiro capítulo do romance. O terceiro bloco, que vai do capítulo II ao VII, compreende o período de um ano que se estende de fevereiro de 1887 a fevereiro de 1888. Aqui o método narrativo é mais analítico; se, no primeiro e segundo blocos, predomina a técnica do sumário, no terceiro, prevalece a da cena, em que os acontecimentos são expostos detidamente, com minúcia de detalhes. A narrativa dramatiza os fatos selecionados pelo narrador, que apresenta o cotidiano sufocante de Jacinto, em meio a suas obrigações sociais. Os episódios narrados têm a função de compor uma imagem da vida urbana, em que o protagonista acaba sucumbindo ao tédio e pessimismo. O quarto bloco é composto pelos capítulos de VIII a XIV, em que se mantém o método predominante da cena. A ação se concentra, a exemplo do terceiro bloco, na dramatização de episódios que transcorrem no período de um ano, desde a partida de Jacinto e Zé Fernandes, de Paris para Tormes, em abril de 1888, até maio de 1889, quando Jacinto se casa com Joaninha. Aqui, a narrativa se concentra na apresentação de Jacinto convertido ao meio rural, entusiasmado com a vida simples e laboriosa de sua quinta, havendo reconquistado a alegria de viver. O último bloco temporal, composto dos capítulos XV e XVI, retoma a primazia do método de sumário narrativo, para concluir o romance com a apresentação da felicidade familiar de Jacinto, com sua mulher e filhos. Espaço O elemento espacial é decisivo na estruturação de A Cidade e as Serras. O romance é nitidamente construído a partir de uma relação opositiva, que se apresenta desde o título. De um lado, o meio urbano; de outro, o meio rural. Mais, essa oposição básica se desdobra, ao longo da narrativa, na forma de um jogo dialético de afirmação e negação de cada um dos termos. Na perspectiva do espaço, a obra divide-se em duas partes, mediadas por uma terceira, que serve de transição entre elas. A primeira é constituída pelos capítulos de I a VII; a segunda, pelos capítulos de IX a XVI, sendo o capítulo VIII de transição. Observe-se o equilíbrio quase perfeito entre as partes: sete capítulos, a primeira; oito, a segunda; com o de transição no meio. Se considerarmos que a maior parte deste último se identifica com o espírito da primeira parte, então, a impressão de equilíbrio se acentua, pois teríamos a obra organizada em dois blocos iguais de oito capítulos. No primeiro bloco, genericamente, a cidade se apresenta investida de valores positivos, enquanto o campo se caracteriza negativamente. A cidade, nesse caso, representa o mundo da cultura e civilização, o espaço privilegiado do progresso científico e tecnológico, que é visto como responsável pela humanização do homem. O campo, ao contrário, é o domínio da natureza e da selvageria, que degrada o homem, reduzindo-o à condição de bestialidade. No segundo bloco, invertem-se as relações. A cidade é carregada de negatividade, apresentando-se como espaço de aviltamento do homem. O progresso é visto como ilusão, uma vez que constitui privilégio de poucos, ao preço da exploração de muitos. O luxo da elite minoritária decorre da condição miserável da maioria desfavorecida. Além disso, a profusão de bens materiais e espirituais, na cidade, provoca uma espécie de anulação de seus valores específicos, uma vez que tendem à padronização niveladora. Como diz Jacinto: Na cidade, pelo contrário, cada casa repete servilmente a outra casa; todas as faces reproduzem a mesma indiferença ou inquietação; as idéias têm todas o mesmo valor, o mesmo cunho, a mesma forma, como as libras; e até o que há mais pessoal e íntimo, a ilusão, é em todos idêntica, e todos a respiram, e todos se perdem nela como no mesmo nevoeiro... A mesmice — eis o horror das cidades! (p. 126) Nessa fala de Jacinto ecoa aquela formulação de Marx segundo a qual, na sociedade capitalista, todos os valores se reduzem a um só, ou, em outros termos, o valor de uso dos bens materiais e espirituais, que é múltiplo, reduz-se a um único valor, de troca. Por outro lado, essa redução, esse nivelamento, produz um efeito perverso. Uma vez que o desejo de novidade, típico da civilização moderna, nunca é saciado, pois tudo é o mesmo, a própria elite, beneficiária do progresso, torna-se presa de um terrível mal — o tédio, que conduz ao pessimismo e ao desencanto da vida. Enquanto a cidade é assim criticada, o campo é visto idilicamente. A natureza se apresenta como espaço de libertação da inteligência e ressurreição para a vida autêntica. Trata-se de uma idealização da vida rural, conforme a tradição clássica, desde Hesíodo (século VIII a.C.), Virgílio (século I a.C.), até os poetas árcades do século XVIII, segundo a qual a vida campestre é fonte de paz e felicidade. De Virgílio, por sinal, são os versos citados no capítulo IX de A Cidade e as Serras, ligeiramente modificados por Eça de Queirós para se adaptarem à situação do protagonista: Fortunate Jacinthe! Hic, interava nota / Et fontes sacros, frigus captabis opacum...10 (Afortunado Jacinto! Aqui, em meio a terras conhecidas / E fontes sacras, colherás sombra e frescor), que o autor traduz livremente por: Afortunado Jacinto, na verdade! Agora, entre campos que são teus e águas que te são sagradas, colhes enfim a sombra e a paz! É fato que, no romance, essas relações todas não são tão esquemáticas como as apresentamos. Na verdade, nos capítulos de I a VIII, prevalece o elogio da cidade, cuja superioridade se celebra. No entanto, Zé Fernandes, por exemplo, levanta sérias objeções ao entusiasmo irrestrito de Jacinto pela urbanidade. Por outro lado, nos 5 capítulos de IX a XVI, predomina a apologia da natureza, apresentada como superior à cidade. Mas, aqui também, o ímpeto idealizador de Jacinto é temperado com as ponderações realistas de Zé Fernandes sobre a natureza (— Meu filho, olha que eu não passo de um pequeno proprietário. Para mim não se trata de saber se a terra é linda, mas se a terra é boa.), ou com a revelação da existência de miséria entre os camponeses. Outra consideração relevante sobre o espaço, nessa obra, diz respeito à moradia do protagonista em Paris, o “202”. O prodigioso palacete apresenta-se como um microcosmo da civilização urbana. Todo seu luxo e conforto, toda parafernália mecânica, toda erudição acumulada em sua biblioteca de trinta mil volumes impressionam, à primeira vista, pela magnificência. Uma observação mais detida, contudo, impõe outra imagem — de ineficiência, inutilidade e opressão. As panes mecânicas e elétricas transtornam a vida cotidiana; os livros não se abrem; a casa tem uma atmosfera pesada, como de estufa, em que Jacinto definha solitário. No último capítulo, quando Zé Fernandes visita Paris pela derradeira vez, o “202” despovoado cristaliza-se como imagem de um museu das ilusões equivocadas de uma época de equívocos: E então, passeando através das salas, realmente me pareceu que percorria um museu de antigüidades; e que mais tarde outros homens, com uma compreensão mais pura e exata da vida e da felicidade, percorreriam, como eu, longas salas, atulhadas com os instrumentos da super-civilização, e, como eu, encolheriam desdenhosamente os ombros ante a grande ilusão que findara, agora para sempre inútil, arrumada como um lixo histórico, guardado debaixo da lona. (pp. 187-188) Estilo Na perspectiva da escola literária, A Cidade e as Serras mescla tendências estilísticas comuns na literatura da segunda metade do século XIX: Realismo, Naturalismo e Impressionismo. Do Realismo, o romance empresta, principalmente, o espírito crítico, com que Eça de Queirós castiga o francesismo da elite rural portuguesa de seu tempo. Esta, segundo se depreende da leitura atenta da obra, seduzida pelo estilo de vida diletante parisiense, seria responsável pelo abandono em que se encontravam as propriedades agrárias. Do Naturalismo, A Cidade e as Serras aproveita o gênero do romance de tese, inventado por essa tendência, para defender a superioridade da vida rural sobre a urbana. Outras características desse estilo, freqüentes na obra, apresentam-se no rebaixamento de personagens à condição de animalidade (zoomorfismo) e na exibição de elementos sórdidos ou desagradáveis (estética do feio). Observem-se as expressões negritadas, no exemploselecionado, em que o narrador Zé Fernandes reproduz o delírio que sofreu, quando se embriagou por ter sido abandonado pela amante. Era ela! Era a Madame Colombe, que esfuziara da chama da vela, e saltara sobre o meu leito, e desabotoara o meu colete, e arrombara as minhas costelas, e toda ela, com as saias sujas, mergulhara dentro do meu peito, e abocara o meu coração, e chupava a sorvos lentos, como na Rua do Hélder, o sangue do meu coração! Então, certo da morte, ganindo pela tia Vicência, pendi do leito para mergulhar na minha sepultura, que, através da névoa fina, eu distinguia sobre o tapete — redondinha, vidrada, de porcelana e com asa. E, sobre a minha sepultura, que tão irreverentemente se assemelhava ao meu vaso, vomitei o Borgonha, vomitei o pato, vomitei a lagosta. Depois, num esforço ultra-humano, com um rugido, sentindo que, não somente toda a entranha, mas a alma se esvaziava toda, vomitei Madame Colombe! (p. 61) A técnica impressionista manifesta-se especialmente nas descrições da natureza campestre, em que a captação dos fatos exteriores pelas sensações é apresentada conforme a percepção imediata deles, sem intervenção de análise racional. Observe-se, no texto selecionado como exemplo, o emprego dos verbos rolar, desabar, subir e embeber, destacados em negrito. No primeiro caso, o narrador, que se encontra num trem em movimento, em vez de dizer que as rodas deste rolavam sobre os trilhos, transmite ao leitor a sensação pessoal imediata de estar ele a rolar; no segundo, o rápido deslocamento do olhar do narrador, de alto a baixo, cria a impressão de que os penhascos desabam; no terceiro, ocorre um movimento inverso, quando o olhar percorre velozmente o terreno de topografia ascendente, as oliveiras plantadas nele transmitem a sensação fugaz de estarem a subir pela encosta. Rolávamos na vertente de uma serra, sobre penhascos que desabavam até largos socalcos cultivados de vinhedo. Embaixo, numa esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capelinha muito caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco lento carregado de pipas. Para além, outros socalcos, de um verde pálido de resedá, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundância do azul. (p. 101) Do ponto de vista do estilo pessoal, observam-se nesse último romance de Eça de Queirós as mesmas características que sempre o distinguiram como prosador. Dentre elas, destacam-se a ironia, que percorre cada página da narrativa, o humor, o grande talento na composição de caricaturas, o uso expressivo do adjetivo e do advérbio. Além dessas, merecem menção especial a paródia e o senso de contraste. A paródia consiste na referência irônica a obras consagradas, literárias ou de outra espécie, de modo a estabelecer uma relação de intertextualidade, cujo efeito de sentido é, geralmente, jocoso. Entre as mais relevantes para A Cidade e as Serras estão o Eclesiastes bíblico, as obras do filósofo pessimista Schopenhauer, D. Quixote, de Cervantes, as Bucólicas e as Geórgicas, de Virgílio. O senso de contraste, que é o princípio estruturador do romance, ocorre em vários níveis: na macroestrutura do romance (contraposição entre cidade e campo; cultura e natureza), na representação das relações socioeconômicas (contradição entre capital e trabalho, riqueza e miséria), na caracterização psicológica das personagens (pessimismo e otimismo de Jacinto; idealismo de Jacinto e realismo de Zé Fernandes; frivolidade da Joana — Madame de Oriol — parisiense, amante infiel, versus autenticidade da Joana serrana, esposa e mãe dedicada, etc.) e no plano da composição lingüística (articulação de expressões finas e delicadas com observações grosseiras). EXERCÍCIOS 01. Justifique o apelido de Príncipe da Grã-Ventura atribuído pelos amigos ao protagonista de A Cidade e as Serras. 02. Explique a ambigüidade do emprego do apelido referido na questão anterior, pelo narrador Zé Fernandes, na situação de tédio, desencanto e pessimismo de Jacinto. 03. Descreva sumariamente a estrutura bipartida de A Cidade e as Serras. 04. Que tipo de relação se estabelece entre as duas partes da narrativa do romance em questão? Explique por quê. 05. Identifique o foco narrativo de A Cidade e as Serras, explicando as conseqüências dessa escolha para a narrativa e caracterização de personagens. 06. Como se classificam as personagens de A Cidade e as Serras, do ponto de vista de suas caracterizações? 07. Por que se pode afirmar que A Cidade e as Serras é um romance de espaço? 08. Por que o romance A Cidade e as Serras pode ser visto como uma alegoria? 09. Do ponto de vista da escola literária, como classificar A Cidade e as Serras? 10. Cite algumas características do estilo pessoal de Eça de Queirós, presentes em A Cidade e as Serras. 11. Justifique a identificação do texto transcrito a seguir com a corrente literária do Naturalismo. É uma bela moça, mas uma bruta... Não há ali mais poesia, nem mais sensibilidade, nem mesmo mais beleza do que numa linda vaca turina. Merece o seu nome de Ana Vaqueira. Trabalha bem, digere bem, concebe bem. Para isso a fez a natureza, assim sã e rija; e ela cumpre. O marido todavia não parece contente, porque a desanca. Também é um belo bruto... Não, meu filho, a serra é maravilhosa e muito grato lhe estou... Mas temos aqui a fêmea em toda a sua animalidade e o macho em todo o seu egoísmo... (p. 124) 12. Leia o texto transcrito a seguir e identifique a corrente estilística a que se filia. Justifique sua resposta. Numa dessas manhãs — justamente na véspera do meu regresso a Guiães, — o tempo, que andara pela serra tão alegre, num inalterado riso de luz rutilante, todo vestido de azul e ouro fazendo poeira pelos caminhos, e alegrando toda a natureza, desde os 6 pássaros até os regatos, subitamente, com uma daquelas mudanças que tornam o seu temperamento tão semelhante ao do homem, apareceu triste, carrancudo, todo embrulhado no seu manto cinzento, com uma tristeza tão pesada e contagiosa que toda a serra entristeceu. E não houve mais pássaro que cantasse, e os arroios fugiram para debaixo das ervas, com um lento murmúrio de choro. sujeito, que se apreende o discurso particular. Assim, o discurso emerge da cultura humana. Apreendendo o discurso, esse trabalho contempla uma cenografia que se configura na interação entre discurso, sociedade, cognição e cultura. Assim, neste trabalho, busco confirmar a existência de marcos cognitivos culturais que compõem o homem nordestino. Tenho por objetivo, então, descrever a cultura do nordestino, a partir da obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos e, para que eu possa detectá-la, observo como o autor se plasmou nas personagens, representando o seu povo. O personagem Fabiano de Graciliano Ramos (1892 – 1953) em Vidas Secas parece responder às indagações sobre o limiar entre ser homem e ser animal. É, em termos de comparação com o homem moderno que vive cotidianamente com a ciência, um “primitivo”, não pela natureza física, porque não se parece mais com o homem préhistórico. Assim como os desassistidos das periferias ou aqueles que vivem distantes em isolamentos brasileiros, em regiões inóspitas, impedidas de civilização, Fabiano e sua família usavam linguagem rudimentar e a escrita não foi desenvolvida. Têm uma forma própria de se comunicar. E Fabiano sabia de suas carências e daquilo que sua família não tinha acesso: ciência, não a tecnologia e bens do mundo moderno, mas a possibilidade de exercer a liberdade por estar em contato com a linguagem/comunicação. É a partir dela que o fenômeno ocorre. E a ciência da personagem central limita-se à caatinga, à caça de preás, ao êxodo constante. O que lhes resta é lutar pela vida, vigiados pela morte, em espreita à parte da chamada civilização. Apesar de parecer homem da caverna, ele é produto do antigo esquema romano de “dê-lhe pão e circo”. Como muitos brasileiros, tiram-lhe a educação, é mantido na escravidão do espírito e mesmo na escravidão física. Foi impedido do processo evolutivo. Foi interrompido de ser, da individualidade. A ideologia do antigo império romano é a mesma que prevalece não só nos “impérios” e ditaduras atuais, mas também no populismo político, dono da indústria da miséria. Aliás, miséria que poderia mudar de paisagem, apenas isso: às margens do Rio Amazonas, no Pantanal mato-grossense, nos morros cariocas ou nas favelas e palafitas pelo Brasil afora. Têm-se, então, Vidas Secas como romance atual. Realidade de ontem refletida no hoje. O percurso gerativo do título, antecipa o contexto em que está inserida a ação. Vidas Secas pode ser interpretada como uma antítese entre vida e morte, a morte que rodeia Fabiano e sua família durante todo o percurso narrativo, e que, de certa forma, também acompanha todo nordestino, que se vê diante de uma situação de abandono por parte das instituições governamentais. A seca, na obra de Graciliano é cíclica, assim como as secas que castigam o nordeste brasileiro, a cada nova estiagem, uma nova situação de constatação dessa situação. A seca também, paradoxalmente simboliza a ausência de vida, ou pelo menos a incapacidade de gerar vida, em algumas culturas e até na Bíblia, chamavase de seca a mulher que não podia gerar filhos, por extensão, em Vidas Secas, podemos fazer a mesma leitura em relação à terra, seca porque não produz, e não produzindo deixa de gerar vida, levando o homem desse contexto a ter que conviver seca após seca, com essa proximidade entre vida e morte. Pelas contribuições recebidas das Ciências da Cognição, sabemos que o homem, no seu contato com as coisas e os acontecimentos do mundo, percebe-os como realidade, na medida em que os focaliza sob um determinado ponto de vista, representando-o mentalmente. Assim, ele constrói seus conhecimentos que são armazenados na memória a longo prazo; estes são tantos sociais, correspondentes ao marco das cognições sociais, quanto individuais, decorrentes de experiências pessoais. Nesse sentido, entendo que o processo de escutar e falar implica não só a identificação e a reprodução de processos lingüísticos e sociais, mas também de processos cognitivos para se construir, com contemporaneidade, a representação cognitiva das interações comunicativas. Baudet e Denhière (1992) tratam a estratégia de inferência para caracterizar as representações ocorrentes e as representações e as representações-tipo. As correntes são transitórias para explicar os comportamentos observáveis dos indivíduos, ou seja, é o que se produz na mente de uma pessoa quando ouve alguém falar, representando mentalmente sua pronúncia. As representações-tipo são concebidas como estados mentais, isto é, estruturas de memória persistentes que são ativadas pelos indivíduos, atribuindo a elas existência, pois são elas que são ativadas pelos indivíduos, atribuindo a elas existência, pois são elas que propiciam explicar a construção de representações ocorrentes; por RESPOSTAS 1. Esse apelido justifica-se pelos dotes naturais e espirituais que os amigos reconheciam em Jacinto: saudável, enérgico, inteligente, rico e dotado de uma sorte extraordinária. 2. Na situação depressiva do protagonista, quando Zé Fernandes chama Jacinto meu príncipe, o apelido pode ser entendido de duas maneiras: dada a amizade que os une, o epíteto tem o valor de expressão afetuosa; por outro lado, ele assume um valor irônico, uma vez que o príncipe da grã-ventura, na verdade, padecia grande infelicidade 3. O romance se estrutura em duas partes iguais em extensão e contrapostas quanto ao sentido. A primeira, constituída dos oito primeiros capítulos, mostra o protagonista identificado com a civilização urbana e infeliz; a segunda, que ocupa os oito capítulos restantes, apresenta Jacinto identificado com a natureza e feliz. 4. Entre as duas partes de A Cidade e as Serras, estabelece-se uma relação de antítese, uma vez que a segunda se contrapõe à primeira de forma opositiva. 5. Eça de Queirós valeu-se do foco narrativo em primeira pessoa, com narrador-testemunha, isto é, o narrador participa dos acontecimentos relatados por ele, não como protagonista, mas como observador privilegiado. Como tal, seu relato limita-se àquilo que presencia, não sendo capaz de conhecer, da vida interior das personagens, mais do que elas dão a saber. As opiniões do narrador, a respeito de fatos e pessoas, são marcadas por sua subjetividade. 6. Geralmente, as personagens dessa obra são planas, típicas e caricatas, não apresentam densidade psicológica, limitando-se a representar esquematicamente generalizações de tipos humanos ou sociais. Mesmo o protagonista, embora mais desenvolvido em sua constituição moral, padece de esquematismo em sua caracterização. A única personagem mais complexa é Zé Fernandes, uma vez que, sendo o próprio narrador, está em condição de oferecer um panorama mais rico de sua intimidade. 7. Porque o elemento espacial é decisivo na estruturação desse romance, o que se pode observar desde o título da obra. 8. A Cidade e as Serras pode ser visto como uma alegoria na medida em que se trata de uma narrativa metafórica de significado simbólico. 9. A Cidade e as Serras é um romance realista, que mescla as tendências estilísticas do Realismo propriamente dito, do Impressionismo e do Naturalismo. 10. As principais características do estilo queirosiano, presentes em A Cidade e as Serras, são a ironia, o humor, o caricaturismo, o uso expressivo de certas categorias gramaticais, como os adjetivos e advérbios, a paródia, a intertextualidade e o senso de contraste. 11. A característica mais notável do Naturalismo, presente no texto, consiste no zoomorfismo, isto é, no rebaixamento de seres humanos à escala animal. 12. Trata-se da corrente estilística chamada Impressionismo, em que os objetos exteriores são apresentados de acordo com as sensações e emoções provocadas na subjetividade do observador. É o que ocorre no texto em questão, quando elementos da natureza adquirem atributos humanos (prosopopéia) na visão do narrador. Leitura De Vidas Secas REPRESENTAÇÕES MENTAIS-GUIAS COMO CATEGORIAS DE ANÁLISE Valdemar Gomes do Nascimento É no exercício da linguagem/língua que os sentidos se libertam de modelos constantes. Também é no exercício que marcas particulares constituídas de variações e variedades de grupos, regiões geográficas, enfim, da diversidade cultural de um país, quando assumidas por um 7 exemplo, os falantes nativos e os aprendizes do Português brasileiro ativam suas representações sonoras-tipo. Os estudos sobre cultura (vertente sociocognitivista) apontam para três eixos: discurso, sociedade e cognição. Essas categorias mantêm entre si estreita relação. Sociedade é um conjunto de grupos sociais que se definem por terem as mesmas cognições sociais, as quais foram construídas pelo discurso. Cada grupo social é uma reunião de pessoas que têm o mesmo ponto de vista, ou seja, repetemse para representarem o que existe no mundo, olham sob o mesmo foco. Sendo assim, o conceito de grupo não é material. Por isso, esta pesquisa atenta para a polifonia- as vozes que eclodem dentro de Fabiano, livres - em conflito com a dialética social. Para uma leitura mais atenta, o texto seria ingênuo, se focasse apenas o social. As vozes deste ethos - o intertexto - são marcos de cognição social que se impõem sobre esse homem e sobre os quais ele se equilibra para vencer obstáculos ou superá-los. A dialética entre o individual e o social, entre o saber anterior e a atualidade, quando se resolvem no grupo, é a cultura. Nesse aspecto, então, cultura é plural (AZEVEDO, 2006). Nessa perspectiva, os marcos/representações ficam, assim, descritos: um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a sinhá Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinhá Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis. E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande.” (p.10-11) Essa brutalidade de Fabiano faz com ele seja uma pessoa com imensa dificuldade de demonstrar afeto, isso faz dele um homem duro, às vezes grosso, seco como o solo que pisa, também pelo ato ilocucionário, porque de sua expressão só saem ordens. O que podemos observar em Fabiano, não é exatamente a ausência desses sentimentos, mas a dificuldade de demonstrá-los e, quando isso ocorre, sente-se envergonhado, como se tivesse feito algo errado. Entrava dia e saía dia. As noites cobriam a terra de chofre. A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas pelas vermelhidões do poente. Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarravamse, somaram as suas desgraças e seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de sinhá Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram à fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava (p.13-14). A seca também é a principal responsável pela desagregação dos nordestinos, sem perspectivas, ele abandona sua terra, deixando para trás um cenário de desolação e tristeza, em que ausência de vida passa a ser a característica principal. Em Vidas Secas, Graciliano Ramos faz uma série de descrições desse estado de desolação causado pela seca, como no fragmento abaixo: A manhã, sem pássaros, sem folhas, progredia num silêncio de morte. A faixa vermelha desaparecera, diluíra-se no azul que enchia o céu. Sinhá Vitória precisava falar. Se ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo. Queria enganar-se, gritar, dizer que era forte, e a quentura medonha, as árvores transformadas em garranchos, a imobilidade e o silêncio não valiam nada (p.120). Nesta última abonação, Graciliano Ramos registra antíteses próprias da seca: “a manhã progredia”- o que poderia ser início de vida, vai em direção à morte: “silêncio de morte”; “a faixa vermelha desaparecera”- o que poderia indicar um cenário de provável chuva, agora é azul, que é a seca. O próprio azul, que poderia ser uma construção poética, bela, é inferno e sofrimento; Sinhá Vitória queria falar, gritar, mas calou-se. Proposição 3 – Religião A religiosidade é parte essencial da formação do nordestino, a sua crença faz com que aceite determinadas situações por acreditar que as coisas são postas por Deus e cabe somente e ele conduzir o destino deles. A obra analisada traz à tona esse aspecto religioso nordestino; Fabiano e sinhá Vitória encontram nas preces e nos pedidos feitos a Deus, um conforto, se não para o corpo, pelo menos para a alma, pois “A religião não surge da contemplação, mas do interesse do homem pelos acontecimentos da vida e, portanto, das esperanças e dos temores incessantes que o agitam”. (ABBAGNANO,op.cit) Suspenso entre a vida e a morte, entre a saúde e a doença, entre a abundância e a privação, o homem atribui a causas secretas e desconhecidas os bens de frui e os males pelos quais é continuamente ameaçado. Voltaire expunha da seguinte maneira esse mesmo conceito: “É natural que um povo, assustado com o trovão, afligido pela perda de suas colheitas, maltratado pelo povo vizinho, sentindo todos os dias a sua fraqueza, sentindo por todos os lados um poder invisível, tenha finalmente dito: há algum ser superior a nós que nos faz bem e mal. Podemos perceber em Fabiano um forte traço da religião Católica, se como um católico devoto e fervoroso, pelo menos como forma de manter as suas crenças e tradições: A igreja cada vez mais se enchia. Para avistar a cabeça da mulher, Fabiano precisava estirar-se, voltar o rosto. E o colarinho furava-lhe o pescoço. As botinas e o colarinho eram indispensáveis. Não poderia assistir à novena calçado em alpercatas, a camisa de algodão aberta, mostrando o peito cabeludo. Seria desrespeito. Como tinha religião, entrava na igreja uma vez por ano. E sempre vira, desde que se entendera , roupas de festa assim: calça e paletó engomados, botinas de elástico, chapéu de beata, colarinho e gravata. Não se arriscaria a prejudicar a tradição, embora sofresse com ela. Supunha cumprir um dever, tentava aprumar-se. Mas a disposição esmorecia: o espinhaço vergava, naturalmente, os braços mexiam-se desengonçados (p.75-76). Proposição 1 – o sofrimento/dor A dor sentida por Fabiano e sua família, em Vidas Secas, advém do sofrimento causado pelas constantes estiagens que castigam a região nordeste. Essas estiagens são cíclicas, portanto Fabiano vive a angústia do eterno retorno de novos períodos de escassez. Temos aí parte da cenografia construída por Graciliano Ramos. Segundo a filosofia, dor é uma das tonalidades fundamentais da vida emotiva, mas precisamente a negativa, que costuma ser assumida como sinal de indicação do caráter hostil ou desfavorável da situação em que se encontra o ser vivo (ABBAGNANO, 2000). Encontramos então em Fabiano um homem relutando contra sua própria sorte, tentando fazer desses momentos de motivo razão pela qual ele deve mover-se constantemente em busca condições favoráveis à sua sobrevivência. “Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera” (p.18). Na sequência revela: A vida na fazenda se tornara difícil. Sinhá Vitória benzia-se tremendo, manejava o rosário, mexia os beiços rezando rezas desesperadas. Encolhido no banco de copiar, Fabiano espiava a caatinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No céu azul, as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre (p.117). As passagens acima revelam o quanto a seca intensifica a dor de Fabiano e sua família, no entanto, eles procuram alternativas para vencer esse problema, seja pedindo ajuda divina, ou migrando para outras terras. O sofrimento para o homem nordestino é aceito como certa resignação, porém essa resignação se esgota quando ele percebe que “o mundo é grande” e que pode ser que exista um lugar melhor com menos sofrimento e dor. A mulher recorre às orações, talvez pedindo chuva, porque, ideologicamente, aprendeu que não adianta exigir aos homens, porque nada acontece. Assim, resta-lhe como última saída, pedir a Deus. Proposição 2- a seca A seca representa, nesta obra de Graciliano Ramos, a grande antagonista. Ela perpassa à situação climática em si, e vai além dessas questões, é um fator de desajuste social, de injustiças sociais, mas principalmente como elemento formador de uma cultura própria do vaqueiro na busca pela sobrevivência, buscando adaptar-se à realidade causada pela mesma. A secura não se dá apenas no plano físico, no que se refere à terra, mas também observamos em Graciliano Ramos, uma seca maior, a secura da alma, do espírito do homem, que sofrendo esses reflexos acaba por se “animalizar”. Fabiano é um homem que guarda marcas profundas das transformações causadas por essas estiagens, alterna momentos de ternura e brutalidade, como na passagem abaixo: Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinhá Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados ao estômago, frio como 8 Essas representações mentais-guias estruturam a construção do ethosnordestino, são essas marcas cognitivas que se manifestam no indivíduo, impostas pela cultura em que ele está inserido. Fabiano não tem plena consciência da situação que está vivenciando, sabe apenas que isso faz parte da sua vida desde que se entende por gente, e que ir à igreja pelo menos uma vez no ano é, antes de uma necessidade, uma obrigação que o conduz e que é muito forte, porque, conforme Vansina (1982, p.157), ”A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para a outra. Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas”. E, essa força de criar vem potencializada, porque é transmitida pelos mais velhos, pessoas respeitadas pelo medo ou pelo amor indiscutível, quase veneração, como acontece na cultura nordestina. Fabiano transmite essa força e dialoga com ela. Proposição 4 –destino Em Vidas Secas, o autor retoma a discussão sobre destino. Estaria o homem nordestino predestinado a uma vida de sofrimentos? Essa resignação do vaqueiro Fabiano, diante desse “inevitável destino”, constitui talvez, uma das mais fortes representações mentais-guias para a formação do ethos nordestino. Tem-ser destino como sendo: [...] ação necessitante que a ordem do mundo exerce sobre cada um de seus seres singulares. Na sua formulação tradicional, esse conceito implica: primeiro, necessidade, quase sempre desconhecida e por isso cega, que domina cada indivíduo do mundo enquanto parte da ordem total. Segundo, adaptação perfeita do indivíduo ao seu lugar, ao seu papel ou à sua função no mundo, visto como que, como engrenagem da ordem total, cada ser é feito para aquilo que faz. (ABBANANO, 2000). Na filosofia do Romantismo, enquanto Schopenhauer considera o destino como ação determinante, no homem e na história, da vontade de vida na sua natureza dilacerante e dolorosa, Hegel limita o destino à necessidade mecânica. Fabiano às vezes revolta-se com a sua condição de pobreza e desgraça, mas logo a aceita por achar que é assim mesmo, é o destino que ele tem que cumprir. Está realizada, dessa forma, a violência, pois ele não controla a própria vida. Pois não estavam vendo que ele era de carne e osso? Tinha obrigação de trabalhar para os outros, naturalmente, conhecia o seu lugar. Bem. Nascera com esse destino, ninguém tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que fazer? Podia mudar a sorte? Se lhe dissessem que era possível melhorar a situação, espantar-se-ia. Tinha vindo ao mundo para amansar brabo, curar feridas com rezas, concertar cercas de inverno a verão. Era a sina. O pai vivera assim, o avô também. E para trás não existia família. Cortar mandacaru, ensebar látegos – aquilo estava no sangue. Conformava-se, não pretendia mais nada (p.97). Em Vidas Secas, o foco narrativo predominante é discurso indireto, porém, quase na mesma dimensão, aparece o discurso indireto livre. O enunciador fica na postura de um não-eu, em debreagem enunciativa, no entanto, plasma-se em Fabiano, conforme o trecho acima: “Pois não estavam vendo que ele era de carne e osso?” Proposição 5 – simbiose com a natureza como as catingueiras e as baraúnas.. ele, sinhá Vitória, os meninos e a cachorra Baleia estavam agarrados na terra (p.19). Proposição 6 – linguagem corporal A seca e a pobreza calam Fabiano, como se “por destino ruim” ele não tivesse direito nem a pedaço de terra nem a uma linguagem. Fabiano sente-se distante dos homens justamente por não dominar os recursos lingüísticos comuns aos demais de sua espécie. Essa deficiência faz com que ele se sinta mais próximos dos animais do que dos homens: [Fabiano] Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais [...] Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia [...] Às vezes [Fabiano] utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e perigosas (p.1922) [grifo nosso]. Segundo Maingueneau(1987), a construção do ethos se dá de forma articulada à da cena, não pretendo aqui fazer um estudo lingüístico da linguagem de Fabiano, mas mostrar a cenografia como fator que implicará decisivo para a formação do ethos nordestino. Certamente aquela sabedoria inspirava respeito. Quando seu Tomás da bolandeira passava, amarelo, sisudo, corcunda, montado num cavalo cego, pé aqui, pé acolá, Fabiano e outros semelhantes descobriram-se. E seu Tomás respondia tocando na beira do chapéu de palha, virava-se para um lado e para outro, abrindo muito as pernas calçadas em botas pretas com remendos vermelhos [...] Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo [...] Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos nos livros, mas não sabia mandar: podia. Esquisitice um homem remediado ser cortês. Até o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele. Ah! Quem disse que não obedeciam? (p.22-23). Fabiano e seus semelhantes reconhecem a falta de uma linguagem mais elaborada, mas reconhecem que esta não lhes pertence, que o domínio da mesma está intimamente relacionado com as representações mentais de poder. Por isso, parece estranho para Fabiano e o povo dessa localidade, que um homem como seu Tomás, apesar de remediado culturalmente, fosse também um homem cortês. Essa é uma marca significativa na estrutura do ethos nordestino, é um reflexo de todo um processo de opressão política e cultural vivenciada por ele. O isolamento vivido por Fabiano e sua família, a falta de contato com outras formas de linguagem, acabaram distanciando-os de um dos aspectos cruciais nas relações interpessoais: a linguagem. Essa super valorização da expressão não chega a representar aquela representação ideologicamente imposta aos mais humildes de que aquele que “fala bem” é superior, exatamente como acontece ainda hoje. Essa era uma das alegações para que a classe média brasileira não votasse no presidente-operário- outro Paraíba- que não sabia falar. No caso de Fabiano, a necessidade era da explosão da linguagem para a delação das injustiças e dos próprios pensamentos. Aqui, neste trecho, cabe ressaltar o conceito de linguagem nãoverbal com a qual Fabiano, por não ter o domínio da língua que melhore a sua comunicação, desenvolve e resolve a sua vida. Na realidade, todos os sons são linguagem para ele. Ricoeur (1990, p. 3) ampara este trabalho quando registra que são “Linguagens não-verbais: o corpo, linguagem táctil dos cegos-surdos-mudos, sinais de trânsito, comunicação marítima, símbolos matemáticos, etc.” Assim, o meio e as circunstâncias fizeram com que ele desenvolvesse uma forma própria para se comunicar: também o não-verbal. Com essas expressões, ele estava protegido, porque os violentos - os que sabiam a linguagem não o entenderiam. A distinção entre linguagem e língua foi estabelecida por Ferdinand de Saussure, que destaca que a língua é um produto social da faculdade de linguagem e ao mesmo tempo um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Em Vidas Secas, Fabiano encontra, então, na linguagem corporal e nas expressões onomatopaicas, uma maneira de se incorporar com o seu entorno social. Fica oportuna, então, a definição de linguagem gestual e onomatopéia para que possamos compreender de que maneira esse ethos se articula com a cena, como afirma MAINGUENEAU (1987). Por linguagem gestual entende-se como a linguagem constituída por A cultura nordestina, entendo aqui o termo nordestina mais especificamente como sendo a da cultura do homem do sertão, está voltado para uma profunda relação do homem com a natureza, nesse aspecto diferenciando-se um pouco do nordestino dos grandes centros urbanos, pois estes, mesmo oriundos do mesmo contexto cultural, por necessidade, acabam incorporando formas de compreender e interagir coma natureza. Para o nordestino que sofre a realidade das constantes secas, a natureza é uma forma, não só de sobrevivência, como de entender todo seu entorno. Mesmo castigada pela estiagem, é na natureza queFabiano encontra alimento e abrigo para ele e sua família. Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinhá Vitória beijava o focinha de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo (p.14). Era o que ele tinha. Não havia opção. Conforme Eco (1986, p.108), em certas circunstâncias, a lógica é uma só, só tem uma saída. E a saída de Fabiano é buscar inspiração na força bruta da natureza para comparar-se à ela ou, em certas circunstâncias, sentir-se até superior. Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou os quipás, os mandacarus e os xiquexiques. Era mais forte que tudo isso, era 9 gestos; segundo as chamadas teorias psicológicas da linguagem, constitui a primeira fase de todas as linguagens. Wundt distinguiu duas espécies de gestos: indicativo e imitativo. (ABBAGNANO 2000) A teoria da onomatopéia, que Max Muller denominou de teoria do bau-bau, afirma ser a raiz lingüística de imitações dos sons naturais. Essa teoria era conhecida por Platão, que a critica observando que, neste caso, aqueles que imitam os cantos dos galos e as vozes dos demais animais dariam nome aos animais cuja voz imita. Vejamos como Graciliano Ramos estrutura o ethos de Fabiano relacionandose com seu meio através desses recursos lingüísticos “primitivos’, porém significativos dentro do entorno em que Fabiano está inserido. Fabiano seguiu-a com a vista e espantou-se: uma sombra passava pó cima do monte. Tocou o braço da mulher, apontou o céu, ficaram os dois algum tempo agüentando a claridade do sol. Enxugaram as lágrimas, foram agachar-se perto dos filhos , suspirando, conservaram-se encolhidos, temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrível, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente (p.13). A postura que se encolhe frente ao medo de que a nuvem, possibilidade de chuva, tivesse sumido no céu terrivelmente azul, ou seja, seco. Essa possibilidade de dissipação da nuvem está representada pelo encolhimento, forma de proteção “coçando os cotovelos” / “Chape-chape. As alpercatas batiam no chão” . Em momento sinestésico, barulhos-coçar e pés no chão- ajudam a desenhar a rotina que, como o sol quente, prolonga o dia e o sofrimento. Proposição 7 – Coronelismo Fabiano segue uma tradição de sua família, não questiona essa situação e deseja que seus filhos sigam também o mesmo caminho. A profissão de vaqueiro, tão valorizada por Fabiano, tem como leitura possível, a possibilidade de dar ordem, de conduzir, de se ver livre no espaço da caatinga. Talvez a possibilidade de mobilidade, dentro da imobilidade de suas faltas de oportunidade. Atualizando o texto, o fato de ser vaqueiro é sedutor até mesmo entre os jovens de hoje, desde a indumentária até mesmo a postura viril da atividade. O mundo é grande. Realmente para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande – marchavam, meio confiados, meio inquietos. Olharam os meninos, que olhavam os montes distantes, onde havia seres misteriosos. Em que estariam pensando? Zumbiu sinhá Vitória. Fabiano estranhou a pergunta e rosnou uma objeção. Menino é bicho miúdo, não pensa. Mas sinhá Vitória renovou a pergunta – e a certeza abalou-se. Ela devia ter razão. Tinha sempre razão. Agora desejava saber que iriam fazer os filhos quando crescessem. - Vaquejar, opinou Fabiano” (p.123). Proposição 10- a terra O sentimento de amor à terra é uma característica marcante do povo nordestino, apesar das adversidades encontradas provocadas pela ausência de chuvas, que torna a vida do sertanejo uma batalha constante pela sobrevivência. Ele mantém-se preso à terra numa relação quase visceral. A terra é, para o sertanejo, uma extensão de seu corpo e de sua alma. Podemos entender então, a resistência de Fabiano para manter-se na sua terra, reluta o quanto pode para não abandoná-la, mesmo passando as maiores dificuldades e vivendo em condições sub-humanas e, quando essa situação chega no seu limite máximo de suportabilidade, ele deixa a terra em busca de novos horizontes, mas essa partida se dá num clima de muita dor e angústia, é como se ele deixasse ali um pouco si. Apesar desse sentimento de amor à terra vivenciado por Fabiano e pelo homem sertanejo de uma maneira geral, ele se vê diante de uma dura realidade: a tristeza de saber que a terra não lhe pertence. Ele, Sinhá Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra [...] Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr o mundo, andar para cima e para baixo,à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, era hóspede. Sim senhor, hóspede que se demorava demais, tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite (p.19). “Considerar-se plantado em terra alheia!”. Novamente um exemplo de debreagem enunciativa. Graciliano, em situação de não-eu, expressa o eu. A dor do nordestino é tão forte que o enunciador, mesmo se propondo ao discurso indireto, utiliza-se deste recurso diante da impossibilidade de afastar-se da personagem. Proposição 11 – migração Em Vidas Secas, Graciliano Ramos enfoca uma questão pertinente aohomem nordestino, que é a questão da migração. Essa temática já foi trabalhada em outras obras da literatura brasileira. Em O Quinze, de Raquel de Queiros, há uma referência muito forte a esse problema que é comum para o homem nordestino, porém, enquanto em O Quinze há uma referência clara ao espaço e ao tempo em que ocorre esse fenômeno – a ação se passa durante a seca de 1915, e os retirantes saem do sertão do Ceará para a capital Fortaleza, em busca de sobrevivência – em Graciliano encontramos um espaço totalizante e atemporal, Fabiano e sua família deslocam-se pelo sertão à procura de uma sorte melhor, mas não existe uma definição de onde nem quando ocorre esta ação, é como se este movimento representasse o movimento de todo nordestino que, assim como as arribações, buscam um pouco de água e comida para sobreviver. E a conversa recomeçou. Agora Fabiano estava meio otimista. Endireitou o saco de comida, examinou o rosto carnudos e as pernas grossas da mulher. Bem. Desejou fumar. Como segurava a boca do saco e a coronha da espingarda, não pôde realizar o desejo. Temeu arriar, não prosseguir na caminhada. Continuou a tagarelar, agitando a cabeça para afugentar uma nuvem que, vista de perto, escondia o patrão, o soldado amarelo e a cachorra Baleia. Os pés calosos, duros como cascos, metidos em alpercatas novas, caminhariam meses. Ou não caminhariam? Sinhá Vitória achou que sim (p.122). Proposição 12– o cavalo O cavalo, para Fabiano, era um amigo íntimo. Diante das dificuldades, ele se “juntava” a ele: “Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, O coronelismo, é um dos marcos cognitivos significativos na formação do ethos nordestino e suas representações mentais-guias, é uma forma de aceitar a condição de que existem aqueles nasceram para mandar e outros menos favorecidos, tanto intelectualmente, quanto financeiramente. Representa talvez a maior forma de opressão, mas que, por questões culturais, acaba sendo aceito e legitimado pelos próprios indivíduos, que enxergam nestes “coronéis” a própria personificação do poder. O patrão atual, por exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor, e Fabiano ouvia as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha dúvida? (p.23). No nordeste, “autoridade” é inquestionável. Este discurso já está sedimentado. Cabe, ao mais humilde, obedecer. Proposição 8- conformismo Pátria de coronéis, há toda uma formação ideológica para a aceitação do estado de miséria pelo povo. É natural que uns nasçam poderosos e, outros, o que realmente trabalham e são responsáveis pela produção de bens, fiquem à margem, conformados. Segundo o dicionário Aurélio, conformismo é a atitude de quem se conforma com todas as situações; assim é Fabiano e por extensão, um pouco de cada um nordestino, que, diante da inevitabilidade dos fatos, aceita-os de forma resignada, resiste o quanto pode, o quanto a sua resistência física e moral é capaz de suportar. Aceita a sua condição de submissão aos seus senhores, aceita condição de miséria em que vive, acreditando que é assim por ter que ser assim.desta forma acontece com ele, seu pai, e também com os eu avô, ou seja, já faz parte da própria condição do homem sertanejo. Fabiano era uma coisa na fazenda, um traste, seria despedido quando menos se esperasse. Ao ser contratado, recebera o cavalo de fábrica, perneiras, gibão, guarda-peito e sapatões de couro cru, mas ao sair largaria tudo ao vaqueiro que o substituísse (p.23). Proposição 9 – profissão: vaqueiro Podemos perceber, em Vidas Secas, a existência de duas categorias sociais marcantes que formam os marcos cognitivos do povo do sertão nordestino: o patrão, dono das terras, e o vaqueiro, aquele tem a incumbência de cuidar das terras e dos animais. Há entre eles uma relação de dependência e até de subserviência do segundo em relação ao primeiro. Cabe ao vaqueiro seguir à risca as ordens do patrão para manter o seu emprego. E Fabiano é um desses vaqueiros que, de tanto ser explorado pelo patrão, julga-se um escravo, apesar da pele clara e dos olhos azuis. 10 monossilábica e gutural, que o companheiro entendia” (p. 20). Segundo Maffesoli (1985, p. 95) “[...] uma sociedade sente a necessidade de consolidar o sentimento que constitui o fundamento do ser/estar-juntocom”. Afinal, o cavalo compõe com ele a “sua gente”. A trajetória sobre o entendimento do que é ser brasileiro, vivenciada em todo o Brasil por diferentes estudiosos, em diferentes regiões, tem a mesma complexidade de traçar-se o perfil do nordestino, porque a diversidade complexa brasileira é constituída de culturas de sociedades que vivem no interior da sociedade nacional, como os indígenas, a tradição agrária, agrupamentos religiosos e extratos de populações no interior dos centros urbanos que, atualizando a situação dos nordestinos de Vidas Secas, têm, agora, o contato com a diversidade e, muitasvezes sem ter consciência política disso, faz da culinária, dos Centros de Tradições Nordestinas que eclodem nas grandes cidades, um ponto de resistência ou sobrevivência e que atenua a saudade na medida do possível. Neste trabalho prazeroso, em que pude conviver comigo mesmo, “Paraíba” como Fabiano, vivenciei a profundidade do texto Vidas Secas e deixo, conforme Lajolo (1993, p. 51), esta beleza de obra de arte para “[...] infinita interpretabilidade da linguagem de que os textos são constituídos”. e) relacionam-se à visão limitada e fragmentária que as próprias personagens têm do mundo. 03. (PUC-SP) O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal, provavelmente o sertão ia pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se nas árvores da beira do rio, descansavam, bebiam e, como em redor não havia comida, seguiam viagem para o Sul. O casal agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado. (…) Alguns dias antes estava sossegado, preparando látegos, consertando cercas. De repente, um risco no céu, outros riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o medonho rumor de asas a anunciar destruição. Ele já andava meio desconfiado vendo as fontes minguarem. E olhava com desgosto a brancura das manhãs longas e a vermelhidão sinistra das tardes. (…) O trecho acima é de Vidas Secas, obra de Graciliano Ramos. Dele, é incorreto afirmar-se que: a) prenuncia nova seca e relata a luta incessante que os animais e o homem travam na constante defesa da sobrevivência. b) marca-se por fatalismo exagerado, em expressão como “o sertão ia pegar fogo”, que impede a manifestação poética da linguagem. c) atinge um estado de poesia, ao pintar com imagens visuais, em jogo forte de cores, o quadro da penúria da seca. d) explora a gradação, como recurso estilístico, para anunciar a passagem das aves a caminho do Sul. e) confirma, no deslocamento das aves, a desconfiança iminente da tragédia, indiciada pela “brancura das manhãs longas e a vermelhidão sinistra das tardes”. EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO 01. (FUVEST) Leia o trecho para responder ao teste. "Fizeram alto. E Fabiano depôs no chão parte da carga, olhou o céu, as mãos em pala na testa. Arrastara-se até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente mudança. Retardara-se e repreendera os meninos, que se adiantavam, aconselhara-os a poupar forças. A verdade é que não queria afastar-se da fazenda. A viagem parecia-lhe sem jeito, nem acreditava nela. Preparara-a lentamente, adiara-a, tornara a prepará-la, e só se resolvera a partir quando estava definitivamente perdido. Podia continuar a viver num cemitério? Nada o prendia àquela terra dura, acharia um lugar menos seco para enterrar-se. Era o que Fabiano dizia, pensando em coisas alheias: o chiqueiro e o curral, que precisavam conserto, o cavalo de fábrica, bom companheiro, a égua alazã, as catingueiras, as panelas de losna, as pedras da cozinha, a cama de varas. E os pés dele esmoreciam, as alpercatas calavam-se na escuridão. Seria necessário largar tudo? As alpercatas chiavam de novo no caminho coberto de seixos." (Vidas secas, Graciliano Ramos) 04. (UFLA) Sobre a obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, todas as alternativas estão corretas, EXCETO: a) O romance focaliza uma família de retirantes, que vive numa espécie de mudez introspectiva, em precárias condições físicas e num degradante estado de condição humana. b) O relato dos fatos e a análise psicológica dos personagens articulam-se com grande coesão ao longo da obra, colocando o narrador como decifrador dos comportamentos animalescos dos personagens. c) O ambiente seco e retorcido da caatinga é como um personagem presente em todos os momentos, agindo de forma contínua sobre os seres vivos. d) A narrativa faz-se em capítulos curtos, quase totalmente independentes e sem ligação cronológica e o narrador é incisivo, direto, coerente com a realidade que fixou. e) O narrador preocupa-se exclusivamente com a tragédia natural (a seca) e a descrição do espaço não é minuciosa; pelo contrário, revela o espírito de síntese do autor. Assinale a alternativa incorreta: a) O trecho pode ser compreendido como suspensão temporária da dinâmica narrativa, apresentando uma cena "congelada", que permite focalizar a dimensão psicológica da personagem. b) Pertencendo ao último capítulo da obra, o trecho faz referência tanto às conquistas recentes de Fabiano, quanto à desilusão do personagem ao perceber que todo seu esforço fora em vão. c) A resistência de Fabiano em abandonar a fazenda deve-se à sua incapacidade de articular logicamente o pensamento e, portanto, de perceber a gradual mas inevitável chegada da seca. d) A expressão "coisas alheias" reforça a crítica, presente em toda obra, à marginalização social por meio da exclusão econômica. e) As referências a "enterro" e "cemitério" radicalizam a caracterização das "vidas secas" do sertão nordestino, uma vez que limitam as perspectivas do sertanejo pobre à luta contra a morte. 05. (UEL) O texto abaixo apresenta uma passagem do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, em que Fabiano é focalizado em um momento de preocupação com sua situação econômica. Escrito em 1938, esta obra insere-se num momento em que a literatura brasileira centrava seus temas em questões de natureza social. "Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão não se trepa. Consumidos os legumes, roídas as espigas de milho, recorria à gaveta do amo, cedia por preço baixo o produto das sortes. Resmungava, rezingava, numa aflição, tentando espichar os recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco." (In: RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 55. ed. Rio de Janeiro: Record, 1991.) 02. (FUVEST) Um escritor classificou Vidas secas como “romance desmontável”, tendo em vista sua composição descontínua, feita de episódios relativamente independentes e seqüências parcialmente truncadas. Essas características da composição do livro: a) constituem um traço de estilo típico dos romances de Graciliano Ramos e do Regionalismo nordestino. b) indicam que ele pertence à fase inicial de Graciliano Ramos, quando este ainda seguia os ditames do primeiro momento do Modernismo. c) diminuem o seu alcance expressivo, na medida em que dificultam uma visão adequada da realidade sertaneja. d) revelam, nele, a influência da prosa seca e lacônica de Euclides da Cunha, em Os sertões. Sobre este trecho do romance, somente está INCORRETO o que se afirma na alternativa: a) Este trecho resume a situação de permanente pobreza de Fabiano e revela-se como uma crítica à economia brasileira e às relações de trabalho que vigoravam no sertão nordestino no momento em que a obra foi criada. Isso pode ser confirmado pelas orações: "... Consumidos os legumes, roídas as espigas de milho, recorria à gaveta do amo, cedia por preço baixo o produto das sortes...." 11 b) A oração: "Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeça" tanto pode ser o discurso do narrador que revela o pensamento de Fabiano, quanto pode ser o próprio pensamento dessa personagem. Esse modo de narrar também ocorre com as demais personagens do romance. c) A oração: "... Resmungava, rezingava, numa aflição, tentando espichar os recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco" indica a voz do narrador em terceira pessoa, ao mostrar o estado de agonia em que se encontra a personagem. d) A expressão “Forjara planos”, típica da linguagem culta, é seguida no texto por um provérbio popular: “quem é do chão não se trepa”. Essa mudança de registro lingüístico é reveladora do método narrativo de Vidas secas, que subordina a voz das classes populares à da elite. e) O texto tem início com a esperança de Fabiano de mudanças em sua situação econômica; a seguir, passa a focalizar a realidade de pobreza em que a personagem se encontra, e finaliza com sua revolta e angústia diante da condição de empregado, sempre em dívida com o patrão. d) Chico Bento, antes da seca, não era vagabundo, nem bandido; era um trabalhador rural. e) narra a história de um burguês, Paulo Honório, que passara da condição de caixeiro-viajante e guia de cego à de rico proprietário de uma fazenda. Para atingir seus objetivos, o protagonista elimina todos os empecilhos que se colocam à sua frente, inclusive pessoas. 09. (ACAFE / SC) Analise as afirmações abaixo. I. "Será um romance? É antes uma série de quadros, de gravuras em madeira, talhadas com precisão e firmeza." II. "Construído como uma longa narrativa oral, o romance tem como personagem-narrador Riobaldo, um velho fazendeiro, que já foi homem de letras e de armas e que vive às margens do rio São Francisco." III. "Com a análise psicológica do universo mental das personagens, que expõe por meio do discurso indireto livre, o narrador nos vai decifrando a sua humanidade embotada, confundida com a paisagem áspera do sertão, neste romance que transcende o regionalismo e seu contexto específico." IV. "Emprestando dinheiro a juros, negociando de arma engatilhada no sertão, passando fome e sede, [o protagonista] consegue acumular algum capital e com ele volta para a sua terra, no município de Viçosa, Alagoas, onde ficava a propriedade." V. "O tema do poema é o itinerário do retirante nordestino, que parte do sertão paraibano em direção ao litoral, em busca de sobrevivência, devido à seca e às precárias, senão insustentáveis, condições de vida da maioria da população. 06. (ACAFE / SC) A vida na fazenda se tornara difícil. Sinha Vitória benzia-se tremendo, manejava o rosário, mexia os beiços rezando rezas desesperadas. Encolhido no banco do copiar, Fabiano espiava a catinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No céu azul, as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre. Todas as afirmações que se referem à obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, estão relacionadas em: a) I - III b) II - IV - V c) III - V d) II - III - IV e) I - II - IV De acordo com o fragmento acima, é incorreto o que se afirma em: a) Tanto Sinha Vitória quanto Fabiano tinham fé na providência divina. b) O enfoque é narrativo. c) O que se relata ao longo do parágrafo tem o objetivo de confirmar a afirmação da primeira frase. d) Há evidências de que Sinha Vitória e Fabiano estão fragilizados, pois ela "benzia-se tremendo" e ele estava "encolhido na banco do copiar". e) O tema predominante é a indagação metafísica sobre a existência (inexistência) de Deus. 10. (UNIARAXÁ) Leia o fragmento abaixo transcrito da obra Vidas Secas e responda a questão a seguir. Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes, utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admira as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. (Graciliano Ramos) 07. (ACAFE / SC) Baleia queria dormir. Acordaria feliz num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes. (Graciliano Ramos) Sobre o texto acima, é correto afirmar que: a) há marcas próprias do chamado discurso direto através do qual são reproduzidas as falas das personagens. b) o narrador é observador, pois conta a história de fora dela, na terceira pessoa, sem participar das ações, como quem observou objetivamente os acontecimentos. c) quem conta a história é uma das personagens, que tem uma relação íntima com as outras personagens, e, por isso, a maneira de contar é fortemente marcada por características subjetivas, emocionais. d) evidencia-se um conflito entre a protagonista Baleia e o antagonista Fabiano, pois este impede que a cadela possa caçar os preás. e) o narrador é onisciente, isto é, geralmente ele narra a história na terceira pessoa, sabe tudo sobre o enredo e sobre as personagens, inclusive sobre suas emoções, pensamentos mais íntimos, às vezes, até dimensões inconscientes. O texto, no seu conjunto, enfatiza: a) A pobreza física do personagem. b) A falta de escolaridade do personagem. c) A miséria moral do personagem. d) A identificação do personagem com o mundo animal. e) nda 11. (UNIARAXÁ) Leia o fragmento abaixo transcrito da obra Vidas Secas e responda a questão a seguir. Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes, utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admira as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. (Graciliano Ramos) 08. (ACAFE / SC) Sobre a obra Vidas secas, é correto afirmar que: a) a preocupação com a fidedignidade histórica e com o tom épico atenua o sentimento dramático da vida, habitualmente presente nos poemas do autor. b) apresenta temática indianista, a exemplo do que fizera Gonçalves Dias em Os timbiras eCanção do tamoio. c) as personagens humanas, em razão da seca, da fome, da miséria e das injustiças sociais, animalizam-se; em contrapartida, os bichos humanizam-se. No texto, a referência aos pés: a) Constitui um jogo de contrastes entre o mundo cultural e o mundo físico do personagem. 12 b) Acentua a rudeza do personagem, em nível físico. c) Justifica-se como preparação para o fato de que o personagem não estava preparado para caminhada. d) Serve para demonstrar a capacidade de pensar do personagem. e) nda Baleia. Os pés calosos, duros como cascos, metidos em alpercatas novas, caminhariam meses. Ou não caminhariam? Sinha Vitória achou que sim. [...] Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos, como bichos? Fabiano respondeu que não podiam. –– O mundo é grande. Realmente para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande –– e marchavam, meio confiados, meio inquietos. Olharam os meninos que olhavam os montes distantes, onde havia seres misteriosos. Em que estariam pensando? zumbiu sinha Vitória. Fabiano estranhou a pergunta e rosnou uma objeção. Menino é bicho miúdo, não pensa. Mas sinha Vitória renovou a pergunta –– e a certeza do marido abalou-se. Ela devia ter razão. Tinha sempre razão. Agora desejava saber que iriam fazer os filhos quando crescessem. –– Vaquejar, opinou Fabiano. Sinha Vitória, com uma careta enjoada, balançou a cabeça negativamente, arriscando-se a derrubar o baú de folha. Nossa Senhora os livrasse de semelhante desgraça. Vaquejar, que idéia! Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde havia montes baixos, cascalhos, rios secos, espinhos, urubus, bichos morrendo, gente morrendo. Não voltariam nunca mais, resistiriam à saudade que ataca os sertanejos na mata. Então eles eram bois para morrer tristes por falta de espinhos? Fixar-se-iam muito longe, adotariam costumes diferentes. RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 71. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 120-122. 12. (IELUSC) Texto para a próxima questão. Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés. [...] [Sinhá Vitória] distraiu-se olhando os xiquexiques e os mandacarus que avultavam na campina. Um mormaço levanta-se da terra queimada. Estremeceu, lembrando-se da seca, o rosto moreno desbotou, os olhos pretos arregalaram-se... (Graciliano Ramos) O texto é um trecho da obra de Vidas Secas (1938), que sobre a qual é INCORRETO afirmar que: a) Apesar de as personagens da história viverem no sertão nordestino, boa parte da trama se passa em São Paulo, que é o destino da maioria dos retirantes. b) Focaliza uma família de retirantes que vive numa espécie de mudez introspectiva, em precárias condições físicas e num estado degradante de condição humana. c) O autor descreve a realidade a partir da visão amarga do sertanejo, associando a psicologia das personagens com as condições naturais e sociais em que estão inseridas. d) É um “romance desmontável”, tendo em vista sua composição descontínua, feita de episódios relativamente independentes e seqüências parcialmente truncadas. e) Algumas das personagens são: Sinhá Vitória, Fabiano, Baleia e o Soldado Amarelo. A análise do fragmento, contextualizado no romance Vidas Secas, permite afirmar: (01) Fabiano considera necessária a imersão das crianças no mundo convencional para apreendê-lo e, assim, libertá-las das condições socioculturais vividas. (02) Sinha Vitória não se submete às expectativas sociais dominantes, contudo vislumbra um retorno às trivialidades da sua vida social da infância. (04) O conjunto de personagens da trama simboliza, alegoricamente, os heróicos seres que sonham em reformar a sociedade agrária brasileira à custa da luta armada. (08) Fabiano e sinha Vitória configuram um tipo de ser que vive reiterando ações, sem nada acrescentar a seu processo de crescimento humano. (16) Fabiano constitui uma metáfora de ser humano derrotado, que sofre as conseqüências das estruturas vigentes e não consegue impor seus pontos de vista. (32) A narrativa como um todo retrata um espaço em que a imutabilidade social e o abismo entre povo e governo são incontestáveis. (64) A interação entre humanos e inumanos na narrativa explica a descontinuidade das ações narradas. 13. (FAPA) Leia o texto abaixo, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos: “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e faminhos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos da catinga rala.” Considere as afirmações abaixo a respeito do romance Vidas Secas: I. O fragmento - parágrafo inicial do romance – apresenta o cenário da seca, que obriga uma família pobre do sertão a vagar triste e resignadamente em busca de um lugar onde possa sobreviver. II. Como um típico Romance de 30, Vidas Secas aborda a estrutura econômica, social e histórica do Brasil daquela década, fazendo com que aspectos documentais estejam presentes na tessitura narrativa. III. O mundo injusto e opressivo retratado em Vidas Secas é decorrente do latifúndio nordestino, responsável pela desigualdade social. Quais são corretas? a) Apenas I b) Apenas I e II d) Apenas II e III e) I, II e III 15. (UFBA) A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavamlhe a comida e a bebida. Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel. Então Fabiano resolveu matá-la. [...] Sinha Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta: — Vão bulir com a Baleia? [...] Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras. c) Apenas I e III 14. (UFBA) Os meninos sumiam-se numa curva do caminho. Fabiano adiantou-se para alcançá-los. Era preciso aproveitar a disposição deles, deixar que andassem à vontade. Sinha Vitória acompanhou o marido, chegou-se aos filhos. Dobrando o cotovelo da estrada, Fabiano sentia distanciar-se um pouco dos lugares onde tinha vivido alguns anos; o patrão, o soldado amarelo e a cachorra Baleia esmoreceram no seu espírito. E a conversa recomeçou. Agora Fabiano estava meio otimista. Endireitou o saco da comida, examinou o rosto carnudo e as pernas grossas da mulher. Bem. Desejou fumar. Como segurava a boca do saco e a coronha da espingarda, não pôde realizar o desejo. Temeu arriar, não prosseguir na caminhada. Continuou a tagarelar, agitando a cabeça para afugentar uma nuvem que, vista de perto, escondia o patrão, o soldado amarelo e a cachorra 13 Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas sinha Vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por taparlhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia. Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia. [...] Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens. Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinha Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável. RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 74. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 85-86. Aurélio de góis Monteiro e devidamente apoiado por alguns setores da Oligarquia, pela Burguesia e pela Classe Média Urbanas – invocando como motivo de seu recrudescimento a derrota de getúlio Vargas na eleição de 1930 —, para assumir o poder em 3 de outubro do mesmo ano, por meio de um Golpe de Estado. Um mês depois do golpe, a 3 de novembro de 1930, a Junta Provisória de Governo, por exigência das próprias forças revolucionárias, entregou o poder central nas mãos de getúlio Vargas, iniciando o período da República brasileira: a Era Vargas. Todavia, a situação da crise econômica por que passava o Brasil na década de 1920 só fez agravar-se depois de 30. A situação de atraso pungente das instituições brasileiras acabou ultrapassando os limites de ação do próprio Golpe Militar, dando margem a toda sorte de reivindicações e de manifestações populares durante todo o período Vargas. As massas trabalhadoras, instigadas pelo Partido Comunista Brasileiro — o PCB —, realizavam manifestos, greves e se puseram em sistemáticos confrontos contra o governo. Dividida, a intelectualidade brasileira defendia a extensão do Golpe como medida concreta para pôr fim ao poder oligárquico de São Paulo e de Minas gerais e para possibilitar o surgimento de novas bases nacionais mais favoráveis à democratização e ao desenvolvimento do país. De um lado, a Ação Integralista Brasileira — que apostava no autoritarismo e no nacionalismo militarista — desejava a radicalização e a militarização total do golpe de 30; de outro lado, as chamadas Forças Democráticas Populares— organizadas em torno da Aliança Nacional Libertadora, do Partido Comunista e de Luís Carlos Prestes — exigiam mudanças nas estruturas políticas e econômicas do Brasil, tendo em mente a realização de ideais socialistas (a suspensão do pagamento da dívida externa, a nacionalização das empresas estrangeiras instaladas no Brasil, a reforma agrária, a defesa das liberdades públicas e um governo soberano, popular e democrático). Pois era exatamente deste lado esquerdo que se colocavam os chamados autores modernistas da geração de 30, como graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Raquel de Queirós, José Lins do Rego, Gilberto Freyre, Jorge Amado, entre outros. A popularidade da Aliança Nacional Libertadora crescia vertiginosamente, agrupando operários, estudantes, a classe média urbana, intelectuais e militares de baixa patente em torno de ideais revolucionários. Incentivava a realização de greves, de manifestações e de confrontos que, eufórica e indevidamente, foram interpretados como indícios da proximidade da revolução comunista em todo país e da tomada do poder pelo proletariado brasileiro. Esse perigo vermelho — chamado assim pelos detratores da ação do Partido Comunista no Brasil durante a Era Vargas — acabou incentivando uma aliança entre o Governo, a Burguesia Urbana, a Oligarquia e parte da Classe Média, em torno de princípios integralistas ou fascistas, aliança que acabou resultando no Golpe de 1937e na instauração de um Estado de exceção no Brasil — o Estado Novo. Pois foi exatamente no ano da radicalização ditatorial da Era Vargas (1937), que Jorge Amado publicou Capitães da Areia, narrativa notadamente engajada nas perspectivas ideológicas do perigo vermelho, já que denunciava de maneira panfletária — romântica e, paradoxalmente, socialista e realista — o problema dos menores abandonados e dos menores infratores que povoavam as ruas de Salvador e de outras praças brasileiras, dando margem ainda às figurações e às discussões em torno de movimentos grevistas de trabalhadores, em torno dos conflitos e das diferenças de classes sociais, da prostituição, do homossexualismo, da miscigenação de etnias e culturas, das questões de identidade nacional e da participação do negro na formação de tal identidade etc... entre outras mazelas formadoras do tecido social brasileiro, notadamente o tecido sociocultural baiano, evidentemente roto e desbotado, em suas profundas contradições de ordem política, econômica e social projetadas por uma história de desigualdades. Conforme as palavras do próprio Jorge Amado, sua obra Capitães da Areia e outras tomavam parte daquela: “... moderna literatura brasileira, aquela que deu os grandes romances sociais, os estudos de sociologia, a reabilitação do negro, os estudos históricos, (aquela que) resulta diretamente do ciclo de revoluções iniciado em 22 e que só (encontraria) seu término com o pleno desenvolvimento da transformação democrático-burguesa. 22, 24, 26, 30, 35 trouxeram o povo à tona, interessaram-no os problemas do Brasil, deram-lhe uma ânsia de cultura da qual resultou o movimento (modernista de 30)...” Jorge Amado in: Wilson Martins. A Literatura Brasileira. O Modernismo. Cultrix Sobre o fragmento, contextualizado na obra, é correto afirmar: (01) O primeiro e o segundo parágrafos contêm argumentos que justificam a decisão a ser tomada em relação a Baleia. (02) Fabiano demonstra cuidados com Baleia, apesar de ser o seu algoz. (04) O comportamento de sinha Vitória caracteriza-a como a mãe protetora, zelosa do bem-estar de seus filhos. (08) O poder de decisão do chefe de família no ambiente rural fica evidente no texto. (16) Sinha Vitória, ao aceitar passivamente a decisão do marido no que se refere a Baleia, demonstra ser indiferente ao animal e preocupar-se exclusivamente com seus filhos. (32) A decisão de matar Baleia deixa patente o temperamento agressivo de Fabiano. (64) A palavra “Mas”, no último parágrafo, antecede uma explicação do conflito entre razão e emoção vivido por sinhá Vitória. 01. C 02. E 03. B 04. E 05. D 06. E 07. E 08. C 09. A 10. D 11. B 12. A 13. E 14. 08 + 16 + 32 = 56 15. 01 + 02 + 04 + 08 + 64 = 79 Capitães Da Areia DE JORGE AMADO O romance Capitães da Areia, de Jorge Amado, insere-se na vertente sociológica e, mais precisamente, na vertente da arte de denúncia social da prosa modernista da geração de 30, aquela que tateou cambiante em seu compromisso ideológico de esquerda, entre um neorrealismo de feições naturalistas ou psicológicas e um certo idealismo de feição romântica. Nesse sentido, a narrativa Capitães da Areia aparece fortemente vinculada às transformações políticas, econômicas e sociais vividas no Brasil, sobremodo as do decênio de 30. Vale ressaltar que o ano de 1930 marcou no Brasil o fim da República Velha, da Política e da Economia do Café com Leite, acentuando a crise das Oligarquias e abrindo as portas para as renovações políticas, econômicas e sociais que ocorreram durante a Era Vargas (1930-1945). O Movimento Tenentista — insurreição de jovens oficiais brasileiros que esteve no centro da crise da República Velha— ansiava já, desde a década de 1920, pela modernização das instituições políticas brasileiras e por uma mais significativa participação militar na condução dos negócios públicos. Os levantes ocorridos durante a década de 1920 — o do Forte de Copacabana (1922), A Rebelião de 1924, A Coluna Prestes(1924/1927) — prefiguraram o Movimento de 30, que foi liderado pelo Coronel 14 • os afrescos da região do cacau e as lutas épicas entre coronéis e exportadores de cacau (Terras do Sem-Fim e São Jorge de Ilhéus); • a crônica dos costumes provincianos (Gabriela, Cravo e Canela e Dona Flor e seus Dois Maridos). Já para a crítica literária Maria Carmem de Souza, Jorge Amado seria sempre: “... o narrador dos sem poder!... Ele descreve os traços dos pescadores sem bússola, dos primeiros pivetes, dos guetos e das prostitutas, na paródia que forjou. Avança no revezamento de lugares e de papéis, sob os auspícios da sensualidade, do onírico, do maravilhoso, do fantástico. O sexo explícito, o gesto ou vocábulo permissivos são também modalidades da sua aspiração libertária. O humor descontrai, matiza situações, muda a rota da heroicidade. O alargamento, o aproveitamento do dado picaresco já se encontra nos espaços abertos, prosperando assim a crítica das formas fechadamente sistêmicas. A sedução se apresenta como única conquista nãoautoritária.Jorge Amado retoma os padrões românticos no interior do Modernismo. (…) Um visionário apaixonado pelo recôncavo baiano. Contempla a Bahia de marinheiros felizes, sem mortes no mar, de gabrielas faceiras sem morte nos bordéis... De beberrões “metafísicos” e de heróis épicos protagonistas de cenas vivas... … No recôncavo nascem os homens valentes das águas... … Na Bahia, a capital das sete portas, nascem as mulheres mais bonitas do cais.”Maria Carmem Souza. Jorge Amado entre a Ficção e a História. in: Limites. 3o Congresso ABRALIC. Edusp / Abralic. ESTRUTURA DA OBRA Após a seção “Cartas à Redação”, a narrativa propriamente dita se inicia apresentando uma divisão em três partes: 1ª parte: Sob a lua num velho trapiche abandonado, parte mais longa (em média, 130 páginas), constituída por 11 capítulos. Apresenta o grupo dos Capitães da Areia, relata a vida de seus participantes e suas ações no grupo. Essa parte se finaliza com a epidemia de varíola que assola a cidade, matando centenas de pessoas. 2ª parte: Noite da grande paz, da grande paz dos teus olhos, mais curta do que a anterior (em média, 55 páginas), é constituída por 8 capítulos. Foca maior atenção no chefe do grupo, Pedro Bala, que descobre o amor, Dora, a única menina do grupo. Essa parte se finaliza com a morte de Dora e a dor de todos. 3ª parte: Canção da Bahia, Canção da liberdade, um pouco mais curta que a anterior (em média, 41 páginas), é constituída por 8 capítulos. Por ser a finalização da obra, apresenta o destino dos Capitães da Areia e o inevitável engajamento político de Pedro Bala na causa operária. Na opinião do crítico Antonio Candido: “Na maré montante da revolução de Outubro, que encerra a fermentação antioligárquica já referida, a literatura e o pensamento se aparelham numa grande arrancada. A prosa, liberta e amadurecida, se desenvolve no romance e no conto, que vivem uma de suas quadras mais ricas. Romance fortemente marcado de neonaturalismo e de inspiração popular, visando aos dramas contidos em aspectos característicos do país: decadência da aristocracia rural e formação do proletariado (José Lins do Rego); poesia e luta do trabalhador (Jorge Amado, Amando Fontes); êxodo rural, cangaço (José Américo de Almeida, Raquel de Queirós, Graciliano Ramos); vida difícil das cidades em rápida transformação (Érico Veríssimo). Nesse tipo de romance, o mais característico do período e frequentemente de tendência radical, é marcante a preponderância do problema sobre o personagem. É a sua força e a sua fraqueza. Raramente, como em um ou outro livro de José Lins do Rego (Banguê) e sobretudo Graciliano Ramos (São Bernardo), a humanidade singular do protagonista domina os fatores do enredo: meio social, paisagem, problema político. Mas, ao mesmo tempo, tal limitação determina o importantíssimo caráter de movimento dessa forte fase do romance, que aparece como instrumento de pesquisa humana e social, no centro de um dos maiores sopros de radicalismo da nossa história.” Antonio Candido, Literatura e Sociedade. Edusp. Quanto à evolução da obra de Jorge Amado, dentro do quadro das narrativas de 30, podemos dividi-la, conforme o crítico Rogel Samuel propõe, em dois grandes momentos. Em um primeiro momento, Amado dedica-se aos marginalizados pela vida — aos oprimidos das classes populares, no campo e na cidade. “Nesta fase, sente-se, nos seus escritos, a marca do “realismo socialista”, a procura do documentário político, das teses socialistas que, por serem extraliterárias, prejudicam a literariedade de sua ficção.” Rogel Samuel. Literatura Básica. Vozes. Realismo socialista que acabou sendo tomado, com o passar do tempo, como uma das poucas qualidades estilísticas na obra do autor, sobretudo quando verificada sua temerária oscilação entre lampejos de realismo e águas fortes de romantismo e de religiosismo popularesco, expressos de maneira primitiva e espontânea, ao impulso da pena, carente de uma técnica poética e de uma consciência do próprio processo criativo, o que resulta na obra do autor, não raras vezes, em uma poética desajeitada, recoberta de equívocos construtivos, que se justificam unicamente por seu populismo literário e programático. Em um segundo momento da obra, Jorge Amado dedicouse ao retrato da “baianidade”, ou seja, ao desvendamento das cores locais da Bahia e das peculiaridades baianas. Entrega-se, nesse sentido: “... ao humorístico, ao pitoresco, ao picaresco, ao exotismo, à cor local, preocupa-se mais com a ficção do que com o político, do que com o ideológico.” Rogel Samuel. Literatura Básica. Vozes. Nessa fase, podemos observar um amadurecimento estético de Amado, que chega a pender, ainda que de modo precário, para um certo academicismo, para uma certa reflexão sobre o próprio método e para a realização de uma poética, senão superior à da primeira fase, ao menos mais consciente que aquela. Conforme o crítico Alfredo Bosi, o próprio Jorge Amado se autodefiniu acertadamente como “apenas um baiano romântico e sensual”. “Definição justa, pois resume o caráter de um romancista voltado para os marginais, os pescadores e os marinheiros da sua terra que lhe interessam enquanto exemplos de atitudes “vitais”: românticas e sensuais... A que, vez ou outra, emprestaria matizes políticos. A rigor, não caminhou além dessa colagem psicológica a “ideologia” do festejado escritor baiano. Nem a sua poética, que passou incólume pelo realismo crítico e pelas demais experiências da prosa moderna, ancorada como estava em um modelo oral-convencional de narração regionalista. Cronista de tensão mínima...” Alfredo Bosi. História Concisa da Literatura Brasileira. Cultrix Na obra de Jorge Amado, segundo Bosi, poder-se-ia distinguir então algumas tendências temáticas, vinculadas à evolução da própria escritura do autor, notadamente: • a vida baiana rural ou citadina que lhe deram a fórmula fácil do romance proletário (Cacau e Suor); • os depoimentos líricos, em torno de rixas e amores marinheiros (Jubiabá e Mar Morto); • a pregação partidária (Cavaleiro da Esperança e O Mundo da Paz); O ENREDO A narrativa de Capitães da Areia começa com uma sequência de seis cartas — todas publicadas — depois de escritas à redação do Jornal da Tarde de Salvador, em que se debatia o problema dos “meninos de rua”, conhecidos então como "Capitães da Areia" — meninos pobres, abandonados, órfãos, carentes, ladrões, malandros, que se multiplicavam pelas ruas da cidade, assim como suas façanhas. Em seguida, apresenta-se o Trapiche, lugar abandonado no cais que, contrastando com a areia e o relento total das ruas, abrigava da noite os Capitães da Areia. O chefe do bando era Pedro Bala, que ganhou o direito de liderar o grupo numa “briga de foice” com um caboclo de nome Raimundo. Nas noites dos Capitães da Areia, as experiências eram muitas: os maiores, como João grande, protegiam os menores; o Professor lia histórias para aqueles que se achegavam no canto dele — como as histórias do Lampião dos jornais, de que o Volta-Seca tanto gostava; combinavam os assaltos, faziam os planos para o dia, em torno do chefe Pedro Bala e do Sem-Pernas, o mais cruel de todos; Pirulito rezava por ele e por todos os desvalidos; todos se amargavam na pobreza; aventuravam-se com mulher — era o caso do Gato, que saía todas as noites para ver a Dalva, prostituta que ele tomou de um flautista ingrato; aventuravam-se uns com os outros, como por exemplo o Boa-Vida, que tentava um, tentava outro... ou o Barandão e o Almiro — que sempre conseguiam; se prostituíam; pensavam uns nos outros... tentavam dormir... dormiam... às vezes... O Querido de Deus sempre arrumava um negócio para o grupo: dessa vez, o encontro seria no Ponto da Pitangueira, mas o homem não 15 veio. Enquanto esperavam, jogavam, enganavam uns marinheiros, arranjavam uns cobres. O gato era imbatível nas malandragens do jogo. E, finalmente, o homem do negócio apareceu... o negócio se deu: os Capitães da Areia foram contratados para furtar um objeto de uma casa fina – fizeram; ganharam 150 contos. Na cidade, instalou-se um carrossel japonês, que não passava de um velho carrossel nacional, mas aos olhos daqueles desvalidos era uma iluminação para a vida. Nhozinho França sequer imaginava o que fazia o carrossel na vida daqueles malandrinhos. Para cada um deles, o carrossel significava algo diferente: para uns era a luz; para outros, a música; para outros, o movimento; para todos, uma representação de seus sonhos, girando... girando... girando... Como o Volta-Seca e o Sem-Pernas estavam trabalhando para Nhozinho França, conseguiram uma autorização para se deliciarem com as cores, com as músicas e com os movimentos e sonhos do carrossel, na noite, quando o carrossel não estivesse atendendo ao público pagante. Até o padre José Pedro esteve com os malandros naquela noite. A religião estava sempre em torno deles. Para dizer a verdade, os Capitães da Areia tinham amigos em toda religião que seguiam... religiosos de ritos muito diferentes: padre José Pedro — católico — e Don'Aninha, dos terreiros da Macumba etc etc etc. Outro amigo dos Capitães da Areia era João de Adão, estivador nas docas. Sua religião era o movimento de trabalhadores. Fora amigo de Raimundo, um doqueiro mais velho — pai de Pedro Bala... Raimundo que, primeiro, tinha sido operário na fábrica de cigarros, depois, foi trabalhar nas docas; lutou pelos companheiros; morreu numa greve, numa primeira greve dos doqueiros... era um herói... Bala orgulhava-se do pai... A negra que vivia com João de Adão sempre convidava os Capitães da Areia para irem ao terreiro... os atabaques tocavam naquela noite de Omolu. O dia da vingança dos pobres estava chegando... Depois dos serviços... voltando sozinho para o Trapiche, Pedro Bala pensava no pai, na greve, nos doqueiros, nos pobres, em Omolu... foi então que avistou uma mocinha correndo pelo areal... perseguiu-a furioso... era uma negra... menina... quando a alcançou quis dobrá-la ali mesmo, mas ela resistiu... era virgem... o desejo de Bala era animal... alguma coisa da menina ele tinha de ter... e teve... não a virgindade... mas outra coisa... A vida seguia... Don'Aninha veio procurar os Capitães da Areia... A imagem de Ogum tinha sido levada numa batida da polícia no terreiro... Ogum estava zangado... As tempestades castigavam a cidade... De noite, os meninos tinham medo... eram meninos... cada um ao seu modo... mas podiam ajudar Don'Aninha... e ajudaram... Bala armou um plano e recuperou a imagem do santo. As tempestades iriam passar... O Professor, bom de desenho, é que sempre ganhava algum dinheiro desenhando os passantes da rua. Mas uma vez a coisa foi diferente: o homem do sobretudo preto não gostou de ser retratado: agrediu... chutou... esmurrou... esbravejou... O Professor perseguiu-o pelo areal, cercou-o, cortou-o com o canivete, tomoulhe o sobretudo. A polícia nada descobriu... Pirulito rezava... andava... vivia cercando uma loja de imagens religiosas: uma imagem, entretanto, chamava sua atenção mais que as outras — uma madona feia, com um menino Jesus feio, estendido, quase caindo dos braços da virgem. Ele precisava salvá-lo... ensaiou muito o pecado, o drama, mas levou... roubou... era como se salvasse o menino... teria perdão... somente ele o queria... Para roubar, nada mais acertado que o engodo, o engano, a farsa: acercar-se de uma casa... estudar o terreno, infiltrar-se — geralmente quem o fazia era o Sem-Pernas, com o artifício da sua deficiência, da sua orfandade desamparada e da sua teatralidade circense — depois de saberem da casa por ele, era só fazer a limpa. Numa dessas ocasiões, o Sem-Pernas e o Pedro Bala se deram bem: o Bala, porque sobrou para ele o sexo da empregada da casa; o SemPernas, porque foi adotado por Dona Ester e seu Raul... levou vida de rico um bom tempo, antes de sua fuga traiçoeira para a limpa da casa. Quando saiu a matéria no jornal, a procura d o A u g u s t o ( o S e m - P e r n a s ) d e s a p a r e c i d o e que causava imensa angústia em Dona Ester e seu Raul,o Sem-Pernas chorou feito menino... e ele era um menino.. aquela era uma família... mas ele era um sem-família. Era parte das molduras vazias da rua. Mas, na imaginação do Professor, as imagens da cidade iam preenchendo as molduras vazias, eram pinturas para as molduras, as incertezas, as imagens tristes, as cantorias coloridas. O homem da piteira podia ajudá-lo... afinal, o Professor era um talento nato... Mas ele negou-se a procurar aquele Dr. Dantas..., ao menos a princípio...As tempestades de Ogum passaram, mas o tempo de vingança dos pobres de Omolu chegara... trazia um alastrim... trazia a bexiga negra para a cidade. Omolu não sabia que os pobres não tinham a vacina e os ricos sim, por isso os pobres é que sofreram mais. Todo dia pediam no terreiro para Omolu levar a bexiga embora... lmiro foi o primeiro a adoecer... seus braços se cobriram da bexiga... queriam-no fora do Trapiche... o Sem-Pernas queria expulsálo de todo modo, foi cruel... mas João grande e o Professor o protegeram para esperar a decisão do Bala. Volta-seca concordava com os dois... era preciso esperar o Bala... Discutido o caso, buscaram a ajuda de padre José Pedro. O padre ajudou, mas uma denúncia do médico que cuidou do Almiro colocou o padre diante de seus superiores. O padre foi duramente repreendido por ajudar aqueles malandros... ainda mais num caso de varíola. Depois foi o Boa-Vida... adoeceu... mas, decidido a não contaminar os irmãos de rua, mudou-se para o Lazareto... era como mudar-se para o inferno... um dos infernos... certamente iria morrer lá... mas Omolu aceitou as oferendas dos terreiros... levou o alastrim para longe... e Boa-Vida se salvou... voltou ao Trapiche, magro... irreconhecível... foi uma festa... Antes de ir embora, entretanto, a bexiga matou os pais de Dora — menina que morava no morro. Ela teve coragem, desceu o morro e foi em busca de emprego na cidade baixa... Filha de bexiguento, entretanto, não acha canto em canto nenhum... certamente... a não ser entre os capitães de areia... que a receberam, a ela e ao irmãozinho, Zé Fuinha. Todos a desejaram no Trapiche... queriam tomá-la como uma vadia de todos, mas essa imagem foi se metamorfoseando aos poucos... Dora foi virando uma irmã, mãe... irmã e mãe de todos... só para o Bala e para o Professor Dora ficou amada. Ela andava junto do grupo... achava justo fazer tudo por eles e com eles. Para o Bala, era uma noiva... Ainda mais depois que ele arrumou briga com Ezequiel por causa dela. Era um noivado... Mas a miséria era maior... o Bala foi preso numa jogada errada para que seus irmãos de rua conseguissem fugir da polícia. Foi para o reformatório. Passou de tudo... O cafua era o pior... praticamente sem comer e sem beber... embaixo de surra, quase morreu... só um amigo para os recados e para os cigarros... mas o moleque foi pego... também seria torturado por ajudá-lo... Bala não comeu o pão que o diabo amassou, nem isso, porque não tinha, mas não denunciou o Trapiche. Era nobre e companheiro... amava a liberdade. A noite, no Reformatório, homossexualidade e tortura, uma miséria sem escolha... entretanto, o que mais doía no Bala era saber que Dora estava no Orfanato... sem poder vê-la... estava louco... Tinha de fugir... fugiu... num daqueles dias de trabalho na lavoura... bendita corda mandada pelos amigos... Tudo tramado, resgata a sua Dora... mas ela está doente... tem febre... naquela noite quis que ele se deitasse com ela... eram noivos... seriam esposos... e foram... mas ela morreu durante a noite... virou estrela... uma estrela estranha de loira cabeleira... O tempo cobria o Trapiche de ausências: as vocações avultavam — o Professor foi para o Rio de Janeiro para ser pintor, foi estudar com o homem da piteira... o Pirulito ingressou no seminário — ouviu o chamado de Deus... Padre José Pedro ganhou uma paróquia e seguiu para ela... Boa-Vida seguiu na vida de malandro e violão, samba e vadiagem... o gato, elegante e esperto, continuou o mesmo, seguiu a Dalva na rabada do trem para os cabarés de Ilhéus, lá estava o futuro entre os ricos fazendeiros de cacau... Volta-Seca se debandou para o Sertão, ingressou no bando de seu padrinho Lampião e passou a matar soldados até ser preso com sessenta marcas na espingarda... O SemPernas cometeu mais uma ousadia... se aconchegou com uma solteirona que colhia dele algumas migalhas de amor, mas por pouco tempo; ninguém nunca gostou dele pelo que ele era; não; por isso, como um trapezista sem trapézio, num dia, para não ser apanhado pela guarda, pulou do morro; saltou de costas para a liberdade... Os jornais noticiavam as vocações, os destinos de todos eles... só Pedro Bala ainda não se encontrara... mas uma visita de João de Adão deu a ele um sentido... Bala foi apresentado ao estudante Alberto — comunista — que andava por aquelas bandas metido na greve dos condutores... Os Capitães da Areia precisavam ajudar... aceitaram a incumbência de impedir os fura-greves de entrarem para o trabalho naquela madrugada... era isso... um destino... Bala descobriu o sentido da palavra companheiro. Agora ele era como o pai dele... ajudando a 16 modificar a vida daqueles pobres... seria da brigada de guerra... Os atabaques ressoavam como clarins de guerra... era o seu chamado: A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração. Ajuda a mudar o destino de todos os pobres. Uma voz que atravessa a cidade, que parece vir dos atabaques que ressoam nas macumbas da religião ilegal dos negros. Uma voz que vem com o ruído dos bondes onde vão os condutores e motoneiros grevistas. Uma voz que vem do cais, do peito dos estivadores, de João de Adão, de seu pai morrendo num comício, dos marinheiros dos navios, dos saveiristas e dos canoeiros. Uma voz que vem do grupo que joga a luta da capoeira, que vem dos golpes que o Querido de Deus aplica. Uma voz que vem mesmo do Padre José Pedro, padre pobre de olhos espantados diante do destino terrível dos Capitães de Areia. Uma voz que vem das filhas de santo do candomblé de Don'Aninha, na noite que a polícia levou Ogum. Voz que vem do Trapiche dos Capitães de Areia. Que vem do reformatório e do orfanato. Que vem do ódio do Sem-Pernas se atirando do elevador para não se entregar. Que vem no trem da Leste Brasileira, através do sertão, do grupo de Lampião pedindo justiça para os sertanejos. Que vem de Alberto, o estudante pedindo escolas e liberdade para a cultura. Que vem dos quadros de Professor, onde meninos esfarrapados lutam naquela exposição da rua Chile. Que vem de Boa-Vida e dos malandros da cidade, do bojo dos seus violões, dos sambas tristes que eles cantam. Uma voz que diz uma palavra bonita de solidariedade, de amizade: companheiros. Uma voz que convida para a festa da luta. Que é como um samba alegre de negro, como ressoar dos atabaques nas macumbas. Voz que vem da lembrança de Dora, valente lutadora. Voz que chama Pedro Bala. Como a voz de Deus chamava Pirulito, a voz do ódio o Sem-Pernas, como a voz dos sertanejos chamava Volta-Seca para o grupo de Lampião. Voz poderosa como nenhuma outra. Porque é uma voz que chama para lutar por todos, pelo destino de todos, sem exceção. Voz poderosa como nenhuma outra. Voz que atravessa a cidade e vem de todos os lados. Voz que traz com ela uma festa, que faz o inverno acabar lá fora e ser primavera. A primavera da luta. Voz que chama Pedro Bala, que o leva para a luta. Voz que vem de todos os peitos esfomeados da cidade, de todos os peitos explorados da cidade. Voz que traz o bem maior do mundo, bem que é igual ao sol, mesmo maior que o sol: a liberdade. A cidade no dia de primavera é deslumbradoramente bela. Uma voz de mulher canta a canção da Bahia. Cidade negra e velha, sinos de igreja, ruas calçadas de pedra. Canção da Bahia que uma mulher canta. Dentro de Pedro Bala uma voz o chama: voz que traz para a canção da Bahia, a canção da liberdade. Voz poderosa que o chama. Voz de toda a cidade pobre da Bahia, voz da liberdade. A revolução chama Pedro Bala. E Bala atendeu ao seu chamado. Primeiro, com os Capitães da Areia, depois, seguindo para Aracaju, onde iria recrutar os Índios Maloqueiros para fazerem parte da brigada de choque e lutar pela liberdade de todos. E na noite misteriosa das macumbas os atabaques ressoavam como clarins de guerra. COMENTÁRIO O romance Capitães da Areia configura-se efetivamente como narrativa que tende para uma organização moderna. Sua estrutura fragmentária, em que se sucedem vários quadros soltos, parece apontar para isso. Soma-se a esta experiência da fragmentação a colagem de gêneros em que o gênero narrativo vai se entremeando com o gênero epistolar (a carta), constituindo uma colcha de retalhos em que os dois tipos de registros se completam num diálogo aparentemente solto. Tal sequência de quados narrativos e cartas, todavia, possui um encaminhamento bastante organizado, construindo, na medida que avançam no tempo, uma transformação das personagens. Todos deixam seu estado infantil e adolescente inicial para se tornarem algo diferente ou para confirmarem seus destinos na juventude. Quanto à temática da narrativa, assevera o crítico Álvaro Cardoso Gomes: “Capitães da areia pertence à primeira fase da obra de Jorge Amado, mas o cenário escolhido é o urbano. Centrando a ação na vida dos menores abandonados da cidade de Salvador, o escritor aproveita para mostrar as brutais diferenças de classe, a má distribuição de renda e os efeitos da marginalidade nas crianças e adolescentes discriminados por um sistema social perverso. Capitães da Areia narra o cotidiano de pobres crianças que vivem num velho trapiche abandonado. Liderados por Pedro Bala, menino corajoso, filho de um grevista morto, entregam-se a pequenos furtos para sobreviver. A narrativa, de cunho realista, descreve o cotidiano do grupo e seus expedientes para arranjar alimento e dinheiro. Intercalando a narrativa com reportagens sobre o grupo dos “Capitães da Areia”, o romance supervaloriza a humanidade das crianças e ironiza a ganância, o egoísmo das classes dominantes. Conduzindo a história em função dos destinos individuais de cada participante do bando, Jorge Amado acaba por ilustrar, de um lado, a marginalização definitiva de uns (o Sem-Pernas e o Volta Seca, por exemplo), e, de outro, a tomada de consciência dos mais lúcidos (Pedro Bala).” Álvaro Cardoso gomes. Capitães da Areia – Roteiro de Leitura. Ática AS PERSONAGENS No romance, os protagonistas da narrativa — os Capitães da areia — vivem nos limites entre a ordem e a desordem, entre o lícito e o ilícito, o que nos permite tomá-los como malandros. Tipos marginais que constituem na literatura brasileira, desde sua primeira figuração literária em Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, em pleno Romantismo, um traço significativo na construção de uma autoimagem do Brasil e do brasileiro e, neste caso, na construção da autoimagem de uma região do Brasil, a Salvador dos meninos de rua. Para Tania Macedo, tais malandros são seres: que vivem na liminaridade, que pertencem a uma zona de inconsistência da sociedade, que são donos de uma ginga, de uma capacidade de drible, buscando sempre suprir suas carências de cidadania e afeto; são astuciosos, sempre tentando burlar as forças da Ordem; marginalizados, estranhos, diferentes; figuras que vivem sempre numa zona fronteiriça; de origem humilde, não raro, largados no mundo, têm sua matriz na tradição popular, em uma atmosfera sempre popularesca." Tania Macedo. Malandragens nas Literaturas do Brasil e de Angola in: Rita Chaves e Tania Macêdo. Literatura em Movimento: Hibridismo cultural e exercício crítico. Via Atlântica. Apesar dessa condição coletiva e tipificada apriorística, que mergulha os Capitães da Areia num caminhar coletivo, como frutos de um determinismo social que os condiciona, observamos que tais personagens seguem também um caminho paralelo e individualizado na opinião do narrador: nesse caminhar subjetivo, uns consolidam o que já pareciam ser socialmente: malandros e marginais; outros consolidam vocações recônditas, castradas pelo meio. Desse modo, determinismos do meio e determinismos subjetivos se tensionam na construção de um destino para cada um dos Capitães da Areia: — o Professor vai ser pintor no Rio de Janeiro; — o Pirulito vai para o seminário; — o Volta-Seca vai ser cangaceiro no sertão; — o gato consolida-se como malandro; — a Dora e o Sem-Pernas morrem, consolidando o que sempre foram: estrelas agregadoras por conta do amor (Dora) e do ódio (SemPernas); — o padre José Pedro vai ser padre de paróquia; — Pedro Bala consolida-se líder de desvalidos... Em todo caso, porém, como afirma mais uma vez Álvaro Cardoso gomes, os Capitães da Areia são personagens planas, não nos causam surpresa no decorrer na narrativa. Em sua subjetividade, realizam aquilo para o que foram dispostos desde o início por suas vocações ou pelos limites de seu mundo. Pedro Bala: chefe dos Capitães da Areia; respeitado por todos; filho de um doqueiro morto na primeira greve da região; líder nato; malandro sensível e bom. Sempre em busca de um sentido para sua existência, acaba descobrindo em suas próprias origens o pai doqueiro e grevista, um sentido para sua liderança: lutar pelos oprimidos. O estudante Alberto e o doqueiro João de Adão serviram de intermediadores dessa voz do passado que transforma Pedro Bala, de líder de malandros, em líder político nos movimentos de trabalhadores. Bala foi progressivamente formado pela voz, pelo clamor de todos com quem ele conviveu. Sua história é a história de todos. Dora: filha do morro; os pais morreram de varíola; sem ter para onde ir, passa a viver com os Capitães da Areia; sua imagem varia entre a menina órfã, a pedinte, a prostituta, a irmã, a mãe, a amada, a noiva e a esposa aos olhos dos Capitães da Areia. Por fim, consolida-se estrela... estrela estranha. Mulher de coragem. Sem-Pernas: abandonado, órfão, recalcado por sua deficiência física, por sua pobreza, por sua revolta. Destila ódio, muitas vezes sutilizado em brincadeiras cruéis e vingativas. É teatral e picaresco. Odeia a todos... porque culpa a todos por suas carências. Para não ser preso, preferiu se jogar do alto do morro (o elevador), como um trapezista sem trapézio. O seu drama final. 17 Professor (João José): era o mais culto do grupo; roubava e colecionava livros; desenhava como ninguém, um dom; tornouse pintor no Rio de Janeiro, apadrinhado por um pintor carioca — Dr. Dantas, o homem da piteira. Suas pinturas retratam a vida dos Capitães da Areia e, nesse sentido, reclamam uma relação intertextual com a própria narrativa de que ele faz parte. Não é por acaso que o Professor foi sempre o mais observador, o mais contemplativo do grupo... Pirulito (Antônio): magro, muito alto, olhar encovado; rezava o tempo inteiro. A voz de sua vocação clamava o tempo inteiro dentro dele. Finalmente, tornou-se seminarista, com a ajuda de padre José Pedro. Volta-Seca: menino do sertão; afilhado de Lampião; admirava de longe o padrinho; desde que sua mãe foi expulsa da terra por um coronel, passou a odiar os coronéis de fazenda e a polícia. Quando pôde, atendeu à sua vocação: voltou ao sertão, ingressou no bando de Lampião e deu voz à sua vingança, matando fazendeiros e policiais. Imaginava que, com isso, estaria restabelecendo a justiça para os pobres do sertão, ainda mais ao lado de seu padrinho Lampião. Boa-Vida: o vadio do grupo; gostava de mordomia; malandro como o Gato; fazer... somente o suficiente; no entanto, quando ficou doente da varíola, deu mostra de que era mais que um irmão de todos; era uma estrela corajosa: decidiu se sacrificar indo ao Lazaredo para não contaminar os irmãos de rua. Foi jovem e malandro... na rua, no samba, no violão...Querido de Deus: chegou para viver com os Capitães da Areia, vindo dos mares do sul; era o mais exímio capoeirista da Bahia. João Grande: treze anos, órfão, assistiu a morte do pai, atropelado por um caminhão; nunca mais voltou para o morro; era o mais forte dos Capitães da Areia; era o protetor dos menores. Sua força era o que tinha e o que os outros tinham. O Gato: malandro incorrigível; o mais elegante dos Capitães da Areia. Enamorou-se de uma prostituta de nome Dalva. Tomou-a de um flautista ingrato que deixara de reconhecer os dotes da cortesã. Foi com ela ganhar a vida em Ilhéus, nos cabarés. Lá ela ficou com um coronel daqueles do cacau... ele seguiu sua vida de malandragem, vadiagem, samba e violão... Padre José Pedro: padre pobre, maltrapilho, sem vocação, ou melhor, sem muita vocação para a retórica eclesiástica; dono de uma religiosidade prática, cotidiana, popular, participativa e transformadora; naturalmente, foi acusado pelos superiores de vocações socialistas (um perigo vermelho). João de Adão: doqueiro; organizador dos trabalhadores das docas; dava continuidade ao trabalho de conscientização dos trabalhadores iniciado por Raimundo, pai de Pedro Bala. Era um grande amigo dos Capitães da Areia e de todo trabalhador pobre. Don'Aninha: negra, mãe de santo; fazia parte de um terreiro de trabalhos; amiga dos Capitães da Areia. Representa a religiosidade afro-brasileira da Bahia. Alberto: estudante; socialista; participava dos movimentos de trabalhadores, ajudando-os a organizar suas reivindicações, ações e lutas. Tornou-se amigo dos Capitães da Areia. Participou da revelação do destino de Pedro Bala. Nhozinho França: dono do carrossel cheio de luz, de movimento e de cores. Levava o sonho para aquelas cidadezinhas pobres do nordeste. Ele mesmo, um falido, gastara todo seu quinhão com bebida e mulheres. Virara um peregrino, deixando para trás as dívidas sem pagar e os nomes feios que ganhara por isso. Fora esse rol de personagens mais centrais da obra, encontramos ainda algumas personagens menos trabalhadas e que tipificam a presença de classes e instituições sociais, antagonizando ou aparentemente antagonizando os Capitães da Areia. Isso porque, a despeito do que tipificam, ora rompem ora não rompem o seu invólucro social para se posicionarem diante da condição de marginalidade dos malandros. São os soldados da polícia, o diretor do reformatório, o cônego, a família burguesa (Dona Ester e seu Raul), as carolas da Igreja (a viúva Santos), o pintor carioca (Dr. Dantas), o dono do jornal, o delegado, os patrões da mãe de Dora etc. Como representações de classe e como representações institucionalizadas, dividem-se entre os que acolhem e os que reprimem e recusam os Capitães da Areia. O FOCO NARRATIVO Conforme Álvaro Cardoso gomes, citando Aguiar e Silva, em Capitães da Areia encontramos um narrador em terceira pessoa, onisciente... pois Jorge Amado usa sistematicamente a terceira pessoa do discurso: João grande vem vindo para o trapiche; Pedro Bala, enquanto subia a ladeira da Montanha, revia mentalmente seu plano etc. Ao se utilizar da terceira pessoa, a voz que narra tem a vantagem de poder acompanhar a multidão de personagens, deslocar-se de uma para outra, porque possui a onisciência, ou seja, nesse caso, o narrador configurase como um autêntico demiurgo que conhece todos os acontecimentos na sua trama profunda e nos seus últimos pormenores, que sabe toda a história da vida das personagens, que penetra no âmago das consciências como em todos os meandros e segredos da organização social.A focalização deste criador onisciente é panorâmica e total." Aguiar e Silva, in: Álvaro Cardoso gomes. Apesar de reconhecer tal onisciência, verificamos que o narrador de Capitães da Areia parece se confundir algumas vezes quanto à sua posição em relação às ações, extrapolando até mesmo os limites de sua liberdade total. É o que se vê num dos exemplos de onisciência, citado por Álvaro Cardoso – João Grande vem vindo para o trapiche (p. 23): o trecho parece insinuar muito mais o olhar de um dos personagens que estava no Trapiche que o olhar de um narrador externo aos fatos. Nesse sentido, parece acontecer, em verdade, um erro de referencial. Ou ainda: Foi assim que o Professor tinha conseguido aquele sobretudo, que nunca quis vender. Adquirira um sobretudo e muito ódio. E, tempos depois, quando as suas pinturas murais admiraram todo o país (eram motivos de vidas de crianças abandonadas, de velhos mendigos, de operários e doqueiros que rebentavam cadeias), notaram que nelas os gordos burguesesapareciam sempre vestidos como enormes sobretudos que tinham mais personalidade que eles próprios. — reparamos que nesse trecho, o narrador, ao dar uma mostra de sua antevisão e onisciência em relação aos fatos e destinos, se atrapalhou na representação do tempo verbal. A LINGUAGEM Jorge Amado pertence, como já vimos, à geração dos autores de 30, afeitos a uma linguagem coloquial, despojada e popular. Em Capitães da Areia, ele repete essa fórmula: abusa dos coloquialismos tanto nas falas de personagens quanto na fala do próprio narrador, seja em seus desvios sintáticos, seja na incorporação de palavras e expressões popularescas: — Tu não vai hoje ao Gantois? Vai ser uma batida daquelas. Um fandango de primeira. É festa de Omolu. — Muita boia? E aluá? — Se tem... mirou Pedro Bala. — Por que tu não vai, branco? Omolu não é só santo de negro. É santo dos pobres todos. — Tu quer esse Deus Menino para tu? — perguntou ele de repente. Seja ainda na utilização de termos chulos: Boa-Vida ficou espiando os peitos da negra, enquanto descascava uma laranja que apanhara no tabuleiro. – Tu ainda tem uma peitama bem boa, hein, tia? – Quem tirou teu cabaço? – Ora, me deixe... – respondeu o pederasta rindo. Ou na tentativa de mesclar seu discurso de narrador ao discurso das personagens, por meio do discurso indireto livre, o que permite uma visão bifocal dos fatos e constitui, nesse caso, apropriadamente, um recurso de onisciência do narrador, já que se consegue sobrepor, a partir desse recurso, o olhar do narrador ao olhar da personagem, ampliando a cosmovisão do narrador sobre os elementos da narrativa: ...O dono da loja tinha tantos Meninos, tantos... Que falta lhe faria este? Talvez nem se importasse, talvez até se risse quando soubesse que haviam furtado aquele Menino que nunca tinha conseguido vender, que estava solto nos braços da Virgem, diante do qual as beatas que vinham comprar diziam horrorizadas: — Este não... Vale ainda salientar um aspecto contraditório que percorre as descrições de ambiente e personagens na obra: algumas vezes, as descrições beiram o grotesco e o naturalismo; outras vezes, assumem lampejos de romantismo e de idealismo ufanista baiano, como nos trechos a seguir: Durante anos (o Trapiche) foi povoado exclusivamente pelos ratos que o atravessavam em corridas brincalhonas, que roíam a madeira das portas monumentais, que o habitavam como senhores exclusivos. Em certa época um cachorro vagabundo o procurou como refúgio contra o vento e contra a chuva. Na primeira noite não dormiu, ocupado em despedaçar ratos que passavam em sua frente. ... fazia com que os olhos vivos dos Capitães da Areia brilhassem como só brilham as estrelas da noite da Bahia. 18 astúcia, marginalização, carência etc. Embora devamos considerar no limite os destinos diferentes assumidos pelos protagonistas Pedro Bala e Leonardinho — enquanto Leonardinho passa efetivamente do estado da desordem para se tornar uma representação da ordem, Pedro Bala passa do estado da desordem para ser a representação da possibilidade da instauração de uma nova ordem ainda por se fazer — Leonardinho representaria, no fim da conta, a manutenção da ordem e Pedro Bala representaria, em última instância, uma subversão da ordem. Nesse sentido, no âmago das escolhas políticas e ideológicas das duas obras (Capitalismo x Socialismo) é que a representação da malandragem se diferenciaria. A AMBIENTAÇÃO O ambiente de Capitães de Areia é um somente: as ruas de Salvador, à beira-mar, onde se destaca o Trapiche, armazém antigo, abandonado, que servia de refúgio para os meninos de rua. O Trapiche, nesse sentido, aparece como imagem de segurança, como se fora uma espécie de colo, seio e ventre materno a que todos aqueles desvalidos recorriam. Suas vidas oscilavam entre as ruas e o Trapiche, se é que os dois espaços não eram o mesmo. Todavia, há que se perceber que na narrativa, esse ambiente da Salvador baixa, portuária, das docas, dos bondes, dos morros do samba, da macumba, da capoeira, contrasta com o casario elegante da cidade alta, insinuando já com esta paisagem ambivalente, antitética, o contraste social entre aquela gente da cidade alta e aquela outra da cidade baixa. O fato dessa paisagem ambivalente se impor como uma herança do passado colonial parece indicar ainda que as situações de conflito e de desigualdade vividas pelas personagens constituam, por certo, uma herança da própria história de constituição do Brasil e da sociedade brasileira desde seus primeiros tempos. E, desse mesmo modo, a paisagem com seus significados vindos do passado tomaria parte também, com sua ambivalência, da explicação do presente e mesmo do futuro das personagens. Outras referências espaciais, menos significativas à obra, nos remetem para longe de Salvador e parecem, de algum modo, mimetizar também o passado e o futuro dos protagonistas, em segundo plano, como um eco: é o sertão do Volta-seca; é o Rio de Janeiro do Professor; é a Paróquia do Padre José Pedro; é a Ilhéus do gato e, mais sutilmente ainda, o espaço vazio entre a cidade alta e a cidade baixa, zona fronteiriça, interstício social em que se lançou o malandro SemPernas, naquela liminaridade trágica entre a riqueza e a miséria. Quanto ao tempo, não temos nenhuma datação especial na narrativa, senão a de 1937, data da publicação da obra. Mas que já nos é suficiente para supor um enredo passando-se nos anos que seguiram ao golpe de 30 e todas as agitações que com o golpe se configuraram na realidade brasileira, já que o percurso das personagens os insinua: surpreendemos os protagonistas em seus anos de passagem da adolescência (12/13 anos) para a juventude, consolidando seus destinos. Olhando o decênio de 30, no Brasil e na Salvador de Capitães da Areia, surpreendemos situações homólogas: êxodos populacionais em direção aos grandes centros, o inchaço das capitais e seus problemas derivados, certos movimentos de trabalhadores, a ação do socialismo, os conflitos entre trabalhadores e patrões, entre trabalhadores e a polícia, a malandragem, o cangaço, a repressão, o problema dos menores de rua, o homossexualismo, a prostituição assim como a postura assumida pelas oligarquias, pela classe média, por determinadas instituições e pelas autoridades diante de todas essas realidades históricas ou ficcionais. OS DIÁLOGOS COM OUTRAS OBRAS Parece-nos mais imediato o diálogo estabelecido entre os Capitães da Areia e a obra imediatamente contígua a ela — Vidas Secas —, sobretudo em seu intento panfletário e partidarista de representar, a partir da figuração narrativa da realidade, os processos de luta de classes, a situação de opressão de classe e a crise de algumas instituições sociais, políticas e econômicas brasileiras, metonimicamente apontadas a partir de uma situação regional, nesse plano de narrativa engajada, de narrativa de denúncia das mazelas que assolavam algumas regiões brasileiras, sobremodo o nordeste, seja nas capitais, seja nos interiores, durante o período Vargas. O levantamento das tensões sociais que movem a sociedade latifundiária da seca nos interiores, como está efetivado em Vidas Secas, parece corresponder ao levantamento das tensões sociais que movem as grandes cidades, como Salvador, o que está efetivado em Capitães da Areia. Assim, a representação de desvalidos e marginalizados dentro de um sistema produtivo falido em temerário confronto com seus mandatários parece constituir um elo entre as intenções mais programáticas de Vidas Secas e de Capitães da Areia. De outro modo, a condição de malandros vivenciada pelas personagens de Capitães da Areia, que se colocam nos limites entre a ordem e a desordem social, parece corresponder também à situação figurada pela novelinha Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, em que Leonardinho (Leonardo, o filho), bem como seus coadjuvantes, parecem viver situações muito semelhantes às dos Capitães da Areia: situações de amoralidade, ginga, EXERCÍCIOS 01. Pode-se dizer, após a leitura de “Cartas à Redação”, que a) a direção do jornal acatou as denúncias contra o reformatório e iniciou uma campanha para a destituição do diretor. b) a costureira Maria Ricardina, mãe de um interno, defende o diretor do Reformatório. c) a partir de uma notícia, relatando o assalto praticado pelos Capitães da Areia, a opinião de todas as cartas é a mesma: repressão total aos menores delinquentes, inclusive com castigos corporais. d) a carta do padre José Pedro corrobora as afirmações da carta de Maria Ricardina, mãe de um interno. e) O juiz de menores assume a responsabilidade pela delinquência juvenil. 02. Faça um comentário sucinto sobre a função de Cartas à Redação na obra. Leia o texto e responda às questões: Um mês de Orfanato bastou para matar a alegria e a saúde de Dora. Nascera no morro, infância em correrias no morro. Depois a liberdade das ruas da Mcidade, a vida aventurosa dos Capitães da Areia. Não era uma flor de estufa. Amava o sol, a rua, a liberdade. 03. A que parte do romance pertence esse fragmento? 04. Pode-se dizer que a) a forma verbal “nascera” indica ação concomitante à expressa pela forma verbal “Amava”. b) a forma verbal “bastou” expressa ação anterior à indicada pela forma verbal “nascera” c) a forma verbal “nascera” tem valor temporal idêntico à forma verbal “tem nascido”. d) a forma verbal “nascera” indica ação temporal anterior à forma verbal “bastou”. e) a forma verbal “Amava” indica ação temporal posterior à expressa pela forma “nascera”. 05. Qual o sentido da metáfora “flor de estufa”? Leia e responda: Não durou muito na chefia o caboclo Raimundo. Pedro Bala era muito mais ativo, sabia planejar os trabalhos, sabia tratar com os outros, trazia nos olhos e na voz a autoridade de chefe. Um dia brigaram. A desgraça de Raimundo foi puxar uma navalha e cortar o rosto de Pedro, um talho que ficou para o resto da vida. Os outros se meteram e como Pedro estava desarmado deram razão a ele e ficaram esperando a revanche, que não tardou. Uma noite, quando Raimundo quis surrar Barandão, Pedro tomou as dores do negrinho e rolaram na luta mais sensacional a que as areias do cais jamais assistiram. Raimundo era mais alto e mais velho. Porém, Pedro Bala, o cabelo loiro voando, a cicatriz vermelha no rosto, era de uma agilidade espantosa e desde esse dia Raimundo deixou não só a chefia dos Capitães da Areia, como o próprio areal. Engajou tempos depois num navio. Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala à chefia, e foi dessa época que a cidade começou a ouvir falar nos Capitães da Areia, crianças abandonadas que viviam do furto. Nunca ninguém soube o número exato de meninos que assim viviam. Eram bem uns cem, e desses mais de quarenta dormiam nas ruínas do velho trapiche. Vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro eram, em verdade, os donos 19 da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas. denominação dessa parte faz referência aos olhos de Dora. O trecho transcrito é o início do capítulo Orfanato. 4) D 5) Essa metáfora conota a repressão do orfanato, visto como a estufa que contém a vitalidade, a criatividade, o porvir da criança, metaforizados em flor. 6) Sim, porque ao lado da constatação da condição precária e marginal dos menores abandonados (“vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados”) não deixa de haver uma idealização dessa condição quando o narrador considera que esses seres são “os que totalmente amavam” a cidade, “os seus poetas”. 7) B 8) B 9) Barandão torna-se o novo chefe dos Capitães da Areia, já que Pedro Bala torna-se um ativista político de esquerda. 10) E 11 ) C 06. Considerando o último parágrafo, pode-se dizer que a visão crítica do neorrealismo vem acompanhada de certa idealização da realidade? Por quê? 07. No fragmento transcrito, há palavras que remetem indiretamente ao nome e à maneira como morreu o pai de Pedro Bala. As palavras que podem ser associadas, respectivamente, ao nome e à forma como o pai de Pedro morreu são: a) talho, navalha b) loiro, bala c) negrinho, surrar d) Raimundo, navalha e) Barandão, bala. 08. Assinale a alternativa que apresenta o mesmo processo de coordenação de orações presente na passagem “Raimundo deixou não só a chefia dos Capitães da Areia, como o próprio areal” a) “Penso, logo desisto” (José Paulo Paes) b) Nem Pedro acudiu a tempo, nem ninguém. c) Enquanto uma chora, a outra ri (Machado de Assis) d) Estude que a prova está aí. e) Quer queira, quer não, você irá. EXERCÍCIOS FUVEST 01. (FUVEST) Leia o trecho para responder ao teste. "Fizeram alto. E Fabiano depôs no chão parte da carga, olhou o céu, as mãos em pala na testa. Arrastara-se até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente mudança. Retardara-se e repreendera os meninos, que se adiantavam, aconselhara-os a poupar forças. A verdade é que não queria afastar-se da fazenda. A viagem parecialhe sem jeito, nem acreditava nela. Preparara-a lentamente, adiara-a, tornara a prepará-la, e só se resolvera a partir quando estava definitivamente perdido. Podia continuar a viver num cemitério? Nada o prendia àquela terra dura, acharia um lugar menos seco para enterrar-se. Era o que Fabiano dizia, pensando em coisas alheias: o chiqueiro e o curral, que precisavam conserto, o cavalo de fábrica, bom companheiro, a égua alazã, as catingueiras, as panelas de losna, as pedras da cozinha, a cama de varas. E os pés dele esmoreciam, as alpercatas calavam-se na escuridão. Seria necessário largar tudo? As alpercatas chiavam de novo no caminho coberto de seixos." (Vidas secas, Graciliano Ramos) 09. Qual o papel que Barandão vai ter no grupo Capitães da Areia no final do livro? 10. (PUC) – Jorge Amado escreveu em 1937 o romance Capitães da Areia, no qual traz para a literatura a realidade das crianças de rua que vivem em Salvador e moram em um trapiche à beira do porto, no cais da Bahia. Considerando o romance como um todo, dele é incorreto afirmar que a) Pedro Bala segue o destino do pai e adere à militância política, orientado pelo velho operário das docas e pelo “estudante” que faz o papel do intelectual revolucionário. b) Sem-Pernas se vale do defeito físico para comover as senhoras ricas, penetrar nas residências e abrir caminho para o bando. c) os capitães dão uma finalidade política às artes da capoeira e à do jogo de punhais e passam a ajudar a mudar o destino dos pobres, intervindo em comícios, em greves e em lutas obreiras. d) o romance concentra a força de seus méritos na denúncia gritante da condição dos meninos de rua e dimensiona a trajetória da personagem principal, da vida de lúmpen à luta proletária. e) a morte de Dora, que desempenhou os papéis de mãe, irmã, noiva e esposa, determina a desagregação dos Capitães e a consequente prisão e condenação de Pedro Bala. Assinale a alternativa incorreta: a) O trecho pode ser compreendido como suspensão temporária da dinâmica narrativa, apresentando uma cena "congelada", que permite focalizar a dimensão psicológica da personagem. b) Pertencendo ao último capítulo da obra, o trecho faz referência tanto às conquistas recentes de Fabiano, quanto à desilusão do personagem ao perceber que todo seu esforço fora em vão. c) A resistência de Fabiano em abandonar a fazenda deve-se à sua incapacidade de articular logicamente o pensamento e, portanto, de perceber a gradual mas inevitável chegada da seca. d) A expressão "coisas alheias" reforça a crítica, presente em toda obra, à marginalização social por meio da exclusão econômica. e) As referências a "enterro" e "cemitério" radicalizam a caracterização das "vidas secas" do sertão nordestino, uma vez que limitam as perspectivas do sertanejo pobre à luta contra a morte. 11. UFRGS Assinale a afirmação correta sobre o romance de 30. a) Predominou, entre os autores, uma preocupação de renovação estética seguindo os padrões da vanguarda literária europeia. b) Na obra de José Lins do Rego, predomina a narrativa curta na recriação do modo de vida dos senhores de engenho. c) Os autores, em suas obras, tematizaram os problemas sociais com o intuito de denunciar as agruras das populações menos favorecidas. d) O caráter regionalista dos romances deste período deve-se à reprodução fiel do linguajar típico de cada região. e) A obra de Jorge Amado pode ser considerada uma exceção, no conjunto da época, porque seus romances apresentam uma grande inovação na estrutura narrativa. 02. (FUVEST) Um escritor classificou Vidas secas como “romance desmontável”, tendo em vista sua composição descontínua, feita de episódios relativamente independentes e seqüências parcialmente truncadas. Essas características da composição do livro: a) constituem um traço de estilo típico dos romances de Graciliano Ramos e do Regionalismo nordestino. b) indicam que ele pertence à fase inicial de Graciliano Ramos, quando este ainda seguia os ditames do primeiro momento do Modernismo. c) diminuem o seu alcance expressivo, na medida em que dificultam uma visão adequada da realidade sertaneja. d) revelam, nele, a influência da prosa seca e lacônica de Euclides da Cunha, em Os sertões. e) relacionam-se à visão limitada e fragmentária que as próprias personagens têm do mundo. GABARITOS 1) D 2) As matérias jornalísticas e a série de cartas procuram ligar o tema da obra, os menores delinquentes e abandonados, à vida cotidiana, presen tificando nessa obra neorrealista o proble ma social. Além disso, mostram não só a divergência insolúvel entre o grupo que representa o poder político-cultural e o que tem relação afetiva com os menores delinquentes como também mostram a parcialidade da imprensa, manipulada pelo poder vigente. 3) Esse fragmento pertence à parte intitulada Noite da Grande Paz, da Grande Paz dos Teus Olhos. Nesse segmento, a personagem Dora passa a integrar os Capitães da Areia e ganha grande destaque. A própria 20 pensamento dessa personagem. Esse modo de narrar também ocorre com as demais personagens do romance. c) A oração: "... Resmungava, rezingava, numa aflição, tentando espichar os recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco" indica a voz do narrador em terceira pessoa, ao mostrar o estado de agonia em que se encontra a personagem. d) A expressão “Forjara planos”, típica da linguagem culta, é seguida no texto por um provérbio popular: “quem é do chão não se trepa”. Essa mudança de registro lingüístico é reveladora do método narrativo de Vidas secas, que subordina a voz das classes populares à da elite. e) O texto tem início com a esperança de Fabiano de mudanças em sua situação econômica; a seguir, passa a focalizar a realidade de pobreza em que a personagem se encontra, e finaliza com sua revolta e angústia diante da condição de empregado, sempre em dívida com o patrão. 03. (PUC-SP) O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal, provavelmente o sertão ia pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se nas árvores da beira do rio, descansavam, bebiam e, como em redor não havia comida, seguiam viagem para o Sul. O casal agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado. (…) Alguns dias antes estava sossegado, preparando látegos, consertando cercas. De repente, um risco no céu, outros riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o medonho rumor de asas a anunciar destruição. Ele já andava meio desconfiado vendo as fontes minguarem. E olhava com desgosto a brancura das manhãs longas e a vermelhidão sinistra das tardes. (…) O trecho acima é de Vidas Secas, obra de Graciliano Ramos. Dele, é incorreto afirmar-se que: a) prenuncia nova seca e relata a luta incessante que os animais e o homem travam na constante defesa da sobrevivência. b) marca-se por fatalismo exagerado, em expressão como “o sertão ia pegar fogo”, que impede a manifestação poética da linguagem. c) atinge um estado de poesia, ao pintar com imagens visuais, em jogo forte de cores, o quadro da penúria da seca. d) explora a gradação, como recurso estilístico, para anunciar a passagem das aves a caminho do Sul. e) confirma, no deslocamento das aves, a desconfiança iminente da tragédia, indiciada pela “brancura das manhãs longas e a vermelhidão sinistra das tardes”. 06. "Irmão ... é uma palavra boa e amiga. Se acostumaram a chamá-la de irmã. Ela também os trata de mano, de irmão. Para os menores é como uma mãezinha. Cuida deles. Para os mais velhos é como uma irmã que brinca inocentemente com eles e com eles passa os perigos da vida aventurosa que levam. Mas nenhum sabe que para Pedro Bala, ela é a noiva. Nem mesmo o Professor sabe. E dentro do seu coração Professor também a chama de noiva." (Jorge Amado: "Capitães da Areia"). Considerando a obra e o autor do texto, assinale a alternativa INCORRETA. a) O autor faz parte do romance regional de 30, quando se aprofundaram as radicalizações políticas na realidade brasileira. b) Jorge Amado representa a Bahia, "descobrindo" mazelas, violências e identificando grupos marginalizados e revolucionários em "Capitães da Areia". c) Dora, Pedro Bala e Professor são alguns dos personagens da narrativa, que aborda a dramática vida dos camponeses das fazendas de cacau no sul da Bahia. d) O tom da narrativa aproxima-se do Naturalismo, alternando trechos de lirismo e crueza. O nível de linguagem é coloquial e popular. e) "Capitães da Areia " pertence à primeira fase da produção de Jorge Amado, quando era notório seu engajamento com a política de esquerda. Daí o esquematismo psicológico: o mundo dividido em heróis (o povo) e bandidos (a burguesia). 04. (UFLA) Sobre a obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, todas as alternativas estão corretas, EXCETO: a) O romance focaliza uma família de retirantes, que vive numa espécie de mudez introspectiva, em precárias condições físicas e num degradante estado de condição humana. b) O relato dos fatos e a análise psicológica dos personagens articulam-se com grande coesão ao longo da obra, colocando o narrador como decifrador dos comportamentos animalescos dos personagens. c) O ambiente seco e retorcido da caatinga é como um personagem presente em todos os momentos, agindo de forma contínua sobre os seres vivos. d) A narrativa faz-se em capítulos curtos, quase totalmente independentes e sem ligação cronológica e o narrador é incisivo, direto, coerente com a realidade que fixou. e) O narrador preocupa-se exclusivamente com a tragédia natural (a seca) e a descrição do espaço não é minuciosa; pelo contrário, revela o espírito de síntese do autor. 07. (UFLA) Relacione os trechos da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, às características realistas/naturalistas seguintes que predominam nesses trechos e, a seguir, marque a alternativa CORRETA: 1. Detalhismo. 2. Crítica ao capitalismo selvagem. 3. Força do sexo. 05. (UEL) O texto abaixo apresenta uma passagem do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, em que Fabiano é focalizado em um momento de preocupação com sua situação econômica. Escrito em 1938, esta obra insere-se num momento em que a literatura brasileira centrava seus temas em questões de natureza social. ( ) “(...) possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estepe cheio de palha.” "Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão não se trepa. Consumidos os legumes, roídas as espigas de milho, recorria à gaveta do amo, cedia por preço baixo o produto das sortes. Resmungava, rezingava, numa aflição, tentando espichar os recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco." (In: RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 55. ed. Rio de Janeiro: Record, 1991.) ( ) “(...) era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas de fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras.” ( ) “E seu tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer (...) Era um pobre diabo caminhando para os setenta anos, antipático, muito macilento.” Sobre este trecho do romance, somente está INCORRETO o que se afirma na alternativa: a) Este trecho resume a situação de permanente pobreza de Fabiano e revela-se como uma crítica à economia brasileira e às relações de trabalho que vigoravam no sertão nordestino no momento em que a obra foi criada. Isso pode ser confirmado pelas orações: "... Consumidos os legumes, roídas as espigas de milho, recorria à gaveta do amo, cedia por preço baixo o produto das sortes...." b) A oração: "Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeça" tanto pode ser o discurso do narrador que revela o pensamento de Fabiano, quanto pode ser o próprio a) 2, 1, 3 d) 2, 3, 1 b) 1, 3, 2 e) 1, 2, 3 c) 3, 2, 1 08. (UNIFESP) Jerônimo bebeu um bom trago de parati, mudou de roupa e deitouse na cama de Rita. – Vem pra cá... disse, um pouco rouco. – Espera! espera! O café está quase pronto! E ela só foi ter com ele, levando-lhe a chávena fumegante da perfumosa bebida que tinha sido a mensageira dos seus amores (...) 21 Depois, atirou fora a saia e, só de camisa, lançou-se contra o seu amado, num frenesi de desejo doído. Jerônimo, ao senti-la inteira nos seus braços; ao sentir na sua pele a carne quente daquela brasileira; ao sentir inundar-se o rosto e as espáduas, num eflúvio de baunilha e cumaru, a onda negra e fria da cabeleira da mulata; ao sentir esmagarem-se no seu largo e peludo colo de cavouqueiro os dois globos túmidos e macios, e nas suas coxas as coxas dela; sua alma derreteu-se, fervendo e borbulhando como um metal ao fogo, e saiu-lhe pela boca, pelos olhos, por todos os poros do corpo, escandescente, em brasa, queimando-lhe as próprias carnes e arrancando-lhe gemidos surdos, soluços irreprimíveis, que lhe sacudiam os membros, fibra por fibra, numa agonia extrema, sobrenatural, uma agonia de anjos violentados por diabos, entre a vermelhidão cruenta das labaredas do inferno. III. O meio adquire enorme importância no enredo, uma vez que determina o comportamento de todas as personagens, anulando o livre-arbítrio. IV. O estilo de Aluísio Azevedo, dentro de O Cortiço, confirma o que se percebe também no conjunto de sua obra: o talento para retratar agrupamentos humanos. Está(ão) correta(s) a) todas. b) apenas I. c) apenas I e II. d) apenas I, II e III. e) apenas III e IV. 11. FUVEST 2007 Considerado no contexto de "A cidade e as serras", o diálogo presente no excerto revela que, nesse romance de Eça de Queirós, o elogio da natureza e da vida rural a) indica que o escritor, em sua última fase, abandonara o Realismo em favor do Naturalismo, privilegiando, de certo modo, a observação da natureza em detrimento da crítica social. b) demonstra que a consciência ecológica do escritor já era desenvolvida o bastante para fazê-lo rejeitar, ao longo de toda a narrativa, as intervenções humanas no meio natural. c) guarda aspectos conservadores, predominantemente voltados para a estabilidade social, embora o escritor mantenha, em certa medida, a prática da ironia que o caracteriza. d) serve de pretexto para que o escritor critique, sob certos aspectos, os efeitos da revolução industrial e da urbanização acelerada que se haviam processado em Portugal nos primeiros anos do Século XIX. e) veicula uma sátira radical da religião, embora o escritor simule conservar, até certo ponto, a veneração pela Igreja Católica que manifestara em seus primeiros romances. Pode-se afirmar que o enlace amoroso entre Jerônimo e Rita, próprio à visão naturalista, consiste a) na condenação do sexo e conseqüente reafirmação dos preceitos morais. b) na apresentação dos instintos contidos, sem exploração da plena sexualidade. c) na apresentação do amor idealizado e revestido de certo erotismo. d) na descrição do ser humano sob a ótica do erótico e animalesco. e) na concepção de sexo como prática humana nobre e sublime. 09. (UFV-MG) Leia o texto abaixo, retirado de O Cortiço, e faça o que se pede: Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada, sete horas de chumbo. […]. O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e rezingas; ouviamse gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra. 12. FUVEST 2011 Considere a seguinte alienação: Ambas as obras criticam a sociedade mas apenas a segunda milita pela subversão da hierarquia social nela representada. Observada a sequência, essa afirmação aplica-se a a) A cidade e as serras e Capitães da areia. b) Vidas secas e Memórias de um sargento de milicias. c) O cortiço e Iracema. d) Auto da barca do inferno e A cidade e as serras. e) Iracema e Memórias de um sargento de milícias. AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 15. ed. São Paulo: Ática, 1984. p. 28-29. 13. FUVEST 2011 Como não expressa visão populista nem elitista, o livro não idealiza os pobres e rústicos, isto é, não oculta o dano causado pela privação, nem os representa como seres desprovidos de vida interior; ao contrário, o livro trata de realçar, na mente dos desvalidos, o enlace estreito e dramático de limitação intelectual e esforço reflexivo. Essas afirmações aplicam-se ao modo como, na obra a) Auto da barca do inferno, são representados os judeus, marginalizados na sociedade portuguesa medieval. b) Memórias de um sargento de milícias, são figuradas Luisinha e as crias da casa de D. Maria. c) Dom Casmurro, são figurados os escravos da casa de D. Glória. d) A cidade e as serras, são representados os camponeses de Tormes. e) Vidas secas, são figurados Fabiano, sinha Vitória e os meninos. Assinale a alternativa que NÃO corresponde a uma possível leitura do fragmento citado: a) No texto, o narrador enfatiza a força do coletivo. Todo o cortiço é apresentado como um personagem que, aos poucos, acorda como uma colméia humana. b) O texto apresenta um dinamismo descritivo, ao enfatizar os elementos visuais, olfativos e auditivos. c) O discurso naturalista de Aluísio Azevedo enfatiza nos personagens de O Cortiço o aspecto animalesco, “rasteiro” do ser humano, mas também a sua vitalidade e energia naturais, oriundas do prazer de existir. d) Através da descrição do despertar do cortiço, o narrador apresenta os elementos introspectivos dos personagens, procurando criar correspondências entre o mundo físico e o metafísico. e) Observa-se, no discurso de Aluísio Azevedo, pela constante utilização de metáforas e sinestesias, uma preocupação em apresentar elementos descritivos que comprovem a sua tese determinista. 14. FUVEST 2011 Tendo em vista o conjunto de proposições e teses desenvolvidas em A cidade e as serras, pode-se concluir que é coerente com o universo ideológico dessa obra o que se afirma em: a) A personalidade não se desenvolve pelo simples acúmulo passivo de experiências, desprovido de empenho radical, nem, tampouco, pela simples erudição ou pelo privilégio. b) A atividade intelectual do indivíduo deve-se fazer acompanhar do labor produtivo do trabalho braçal, sem o que o homem se infelicita e desviriliza. c) O sentimento de integração a um mundo finalmente reconciliado, o sujeito só o alcança pela experiência avassaladora da paixão amorosa, vivida como devoção irracional e absoluta a outro ser. 10. (ITA) Leia as proposições acerca de O Cortiço. I. Constantemente, as personagens sofrem zoomorfização, isto é, a animalização do comportamento humano, respeitando os preceitos da literatura naturalista. II. A visão patológica do comportamento sexual é trabalhada por meio do rebaixamento das relações, do adultério, do lesbianismo, da prostituição etc. 22 d) Elites nacionais autênticas são as que adotam, como norma de sua própria conduta, os usos e costumes do país profundo, constituído pelas populações pobres e distantes dos centros urbanos. e) Uma vida adulta equilibrada e bem desenvolvida em todos os seus aspectos implica a participação do indivíduo na política partidária, nas atividades religiosas e na produção literária. objetos que a cercavam. Pondo em jogo as broncas paixões do idiota, e colhendo os rudes germes de idéia que se formavam em seu bestunto, obteve ela afinal transformar a carta do abecê em uma família, em um mundo, para a existência enfezada dessa mísera criatura. Ao cabo de um mês, conhecia Brás todo o abecedário. 18. No Romance Til, expoente do Romantismo, muitos personagens são idealizados em coragem, beleza e força. Como exemplo de personagem com força e habilidades físicas excepcionais do romance está: a) Luis Galvão, dono da fazenda, que luta contra os que o tentam assassinar numa emboscada e os vence. b) Berta que não sofre danos ao fugir de uma manada de porcos selvagens, por correr velozmente. c) Miguel, excelente caçador e famoso pela força. d) Bugre ou Jão Fera, homem enorme, contratado como capanga para executar mortes e trabalhos afins. 15. FUVEST 2012 Tendo em vista o conjunto de proposições e teses desenvolvidas em A cidade e as serras, pode-se concluir que é coerente com o universo ideológico dessa obra o que se afirma em: a) A personalidade não se desenvolve pelo simples acúmulo passivo de experiências, desprovido de empenho radical, nem, tampouco, pela simples erudição ou pelo privilégio. b) A atividade intelectual do indivíduo deve-se fazer acompanhar do labor produtivo do trabalho braçal, sem o que o homem se infelicita e desviriliza. c) O sentimento de integração a um mundo finalmente reconciliado, o sujeito só o alcança pela experiência avassaladora da paixão amorosa, vivida como devoção irracional e absoluta a outro ser. d) Elites nacionais autênticas são as que adotam, como norma de sua própria conduta, os usos e costumes do país profundo, constituído pelas populações pobres e distantes dos centros urbanos. e) Uma vida adulta equilibrada e bem desenvolvida em todos os seus aspectos implica a participação do indivíduo na política partidária, nas atividades religiosas e na produção literária. 19. Leia o trecho e responda: Apenas afastou Berta a faxina que servia de porta ao cercado, saiu debaixo de sua palhoça uma galinha sura e muito arrepiada. Não tinha pés a pobre, que lhos haviam roído à noite os ratos; andava aos trancos, sobre os cotos que mal a ajudavam a saltar, e incapazes de sustê-la, a deixavam cair a cada passo, cobrindo-a de terra, o que a fazia mais feia ainda. Tanto que a avistou, correu a menina a seu encontro e tomando-a ao colo, deu-lhe a comer um punhado de milho que tirou do saco. Farta a galinha da sua pitança, levou-a Berta à bica, para matarlhe a sede, e lavar-lhe as penas sujas de poeira e cisco. Depois que assim desvelou-se em pensar a pobre ave, dando-lhe a nutrição e asseio, a menina a deitou na palhoça, que a seu rogo fizera Miguel num canto do cercado, para abrigo de sua protegida. Nos gestos de Berta, durante esses cuidados, já não se notava a travessa alacridade que cintilava de ordinário em seus movimentos; e era, pode-se bem dizer, a radiação de seu gênio. Sua graça então era séria; havia em seu lindo semblante uma serena efusão da ternura que fluía-lhe dos olhos meio vendados, e dos lábios descerrados por um riso gentil. Caracterize a personagem Berta em relação ao caráter e jeito, explique como isso se interliga ao contexto literário do romance. 16. Leia o trecho abaixo, do romance Til de José de Alencar e identifique características da prosa regionalista. Justifique com trechos: Àquela hora da manhã, projetava a casa larga sombra para o oitão voltado ao poente. Nessa fresca penumbra, que recatava da estrada uma cerca de estacas de cambuís já enramadas, acomodou-se Berta para passar a sesta, que se aproximava. Daí avistava-se por uma ogiva rendada que abria a folhagem em arabescos, o caudal Piracicaba, adormecido no regaço da campina. Sentara-se a menina em um pedaço de alto pranchão, que aí tinham colocado para servir de banco; e suas mãos sutis e ligeiras tomavam o ponto às meias, ou serziam e remendavam a outra roupa lavada, que precisava de conserto e enchia o balaio posto a seu lado na ponta do tabuão. Leia o trecho a seguir, para responder as questões 20 a 27. “Sim, leitor benévolo, e por esta ocasião te vou explicar como nós hoje em dia fazemos a nossa literatura. Já me não importa guardar segredo; depois desta desgraça, não me importa já nada. Saberás, pois, ó leitor, como nós outros fazemos o que te fazemos ler. Trata-se de um romance, de um drama. Cuidas que vamos estudar a História, a natureza, os monumentos, as pinturas, os sepulcros, os edifícios, as memórias da época? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar caracteres e situações do vivo da natureza − colori-los das cores verdadeiras da História… Isso é trabalho difícil − longo − delicado; exige um estudo, um talento, e sobretudo um tacto!… Não, senhor, a coisa faz-se muito mais facilmente. Eu lhe explico. − Todo o drama e todo o romance precisa de: Uma ou duas damas, Um pai, Dois ou três filhos de dezanove a trinta anos, Um criado velho, Um monstro, encarregado de fazer as maldades, Vários tratantes, e algumas pessoas capazes para intermédios. Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eugénio Sue, de Vítor Hugo, e recorta a gente, de cada um deles, as figuras que precisa, gruda-as sobre uma folha de papel da cor da moda, verde, pardo, azul – como fazem as raparigas inglesas aos seus álbuns e scrap-books; forma com elas os grupos e situações que lhe parece; não importa que sejam mais ou menos disparatados. Depois vai-se às crônicas, tiram-se uns poucos de nomes e palavrões velhos; com os nomes crismam-se os figurões; com os palavrões iluminam-se… (estilo de pintor pinta-monos). – E aqui está como nós fazemos a nossa literatura original.” (Capítulo. V – fragmento) in Garrett, Almeida. “Obra Completa – I”) 17. Durante um dos capítulos José de Alencar cria uma belíssima cena em que Berta ensina o ABC para Brás. Neste contexto, a psicologia utilizada por Berta no capitulo se assemelha com ideais do pedagogo Paulo Freire sobre a alfabetização de adultos. Releia o trecho e explique no que consiste o método de ensino utilizado pela personagem. Nisso o Brás pulando como um boneco de engonço, passava a ponta do dedo mui de leve pelas sobrancelhas negras de Berta, por seus lábios finos, pela conchinha mimosa da orelha; e, apontando alternadamente para o til na carta do abecê, repinicava as risadas e os corcovos. Iluminou-se de súbito o coração de Berta. (…) o primeiro balbucio da inteligência bôta se dirigia a ela, como o primeiro vagido da criancinha no berço chama pela mãe. Associando-se a lembrança original do idiota, disse-lhe a menina, ajudando a palavra com mímica expressiva e apontando para a carta. — Eu sou til! Esteve Brás um instante pasmo e boquiaberto, sem compreender, apesar da ânsia com que afinal bateu palmas de contente e deitou a pular, regougando a sua parva risada. (…) Com um repente, mostrou-lhe Berta a carta, pondo o dedo sobre o a. — A este!… Pela primeira vez reparou o rapaz na forma da letra, que se lhe gravou na memória. — Hanh?… tartamudeou ele ofegante. — Afonso! (…) Assim em torno dela, que era o til, Berta foi engenhosamente agrupando todas as letras do alfabeto, com os nomes das pessoas e Almeida Garrett (1799-1854), que pertenceu à primeira fase do romantismo português, é poeta, prosador e dramaturgo dos mais importantes da Literatura Portuguesa. Em Viagens na Minha Terra 23 (1846), mistura, em prosa rica, variada e espirituosa, o relato jornalístico, a literatura de viagens, as divagações sobre temas da época e os comentários críticos, muitas vezes mordazes, sobre a literatura em voga, no período. Releia o texto que lhe apresentamos e, a seguir, responda: 10. A 11. C 12. A 13. E 14. A 15. A 16. O autor buscava descrever uma localidade de maneira a mostrar como a vida de seus habitantes estava intimamente ligada ao meio físico no qual viviam. No trecho verifica-se a descrição da natureza da região associada ao humano – a roupa rendada de Berta “abria a folhagem em arabescos, o caudal Piracicaba, adormecido no regaço da campina”. 17. Berta ensina as letras para Brás por associações, pois percebe que pode interligar um fonema como A `a uma ideia do cotidiano de seu ‘aluno’ no caso Afonso, que é seu primo. Berta tem essa resolucao apos ver que o menino vê semelhança entre sua sobrancelha e o acento til. Isso se assemelha aos princípios de Freire, que prega que a alfabetização de adultos deve ser baseada no universo e cotidiano do estudante. 18. D 19. Til é uma moça “pequena, esbelta, ligeira, buliçosa” que se envolve nas mais intricadas tramas, sempre buscando ajudar os que precisam. Trata-se do ideal de heroína: doce, meiga, caridosa, mas também de coragem e impetuosidade únicas na literatura brasileira. Capaz de enfrentar jagunços, Berta não mede esforços ao buscar a realização de seus intentos. Possui uma extrema generosidade aos marginalizados e sofridos, como Zana, Brás e a Galinha sem pernas. 20. Refere-se aos gêneros literários românticos (na prosa) e ao drama (no teatro). 21. Segundo Garrett, tais escritores não desenvolvem literatura original, recorrendo a fórmulas prontas de como escrever – ” Todo o drama e todo o romance precisa de: Uma ou duas damas, um pai (…)” – e a elementos de outras literaturas – “vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eugenio Sue, de Victor Hugo, e recorta a gente”. Trata-se de uma critica ao modo de produção literária de sua época. 22. O autor usa a segunda pessoa do singular como pronome de tratamento (tu), que no português ”de Portugal” é mais informal, como acontece no trecho “te vou explicar”; e também utiliza um vocabulário informal como em “não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nos o somos”. 23. A ironia consiste no fato de o autor explicar nos parágrafos precedentes a “fórmula pronta” utilizada para escrever prosa, o que acaba com a originalidade. A crítica dirige-se aos escritores da estilo da época - o Romantismo – especialmente `a literatura de folhetim. 24. O leitor pressuposto por Garrett é ingênuo – iludido com os princípios literários da época - o que pode ser percebido em “não seja pateta, senhor leitor”, isso porque esse leitor se engana quanto a originalidade das obras. Já Machado de Assis trata seu leitor como ávido, que busca chegar logo ao desfecho da narrativa, algo identificado no contexto do Realismo (que buscava a escrita direta, objetiva e cientifica), o que é visto em “tu amas a narração direta e nutrida”. 25. O narrador, Brás Cubas, trabalha com a primeira pessoa na narração, assim utiliza “deste livro” referindo-se ao objeto que encontra-se próximo a ele enquanto escreve. Quando se refere ao mundo, utiliza “esse” porque o assunto/objeto está próximo ao leitor, tratado como segunda pessoa. 26. A beleza e estética românticas são baseadas na expressão dos sentimentos e emoções do sujeito. Nesse contexto, a natureza é um modo de representação do estado de espirito do sujeito. “Como há de ser belo ver o por-do-sol daquela janela” exemplifica o tom alegre da passagem em que Garrett descreve a casa da menina dos rouxinóis. 27. Segundo as normais atuais, o uso de “meia” está desviado, pois na norma culta o advérbio nao concorda com o substantivo, no caso ” janela ” e o padrão seria ” janela meio aberta”. Cabe observar que na época em que o livro foi publicado essa norma não existia. 20. (Vunesp-SP) A que gêneros literários se refere Almeida Garrett? 21. (Vunesp-SP) Quais os principais defeitos, segundo Garrett, dos escritores que elaboravam obras de tais gêneros? 22. (Vunesp-SP) No texto apresentado, Garrett dirige-se mais de uma vez ao leitor, de maneira informal e descontraída, como se estivesse dialogando com ele. Baseando-se nessa informação, mostre de que modo o tom de informalidade se revela também nas formas de tratamento gramatical que o escritor usa para dirigir-se ao leitor. 23. Em que consiste a ironia do trecho ” E aqui está como nos fazemos a nossa literatura original”, no final do texto transcrito? Leia o trecho a seguir, para responder as questões 24 e 25. Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem… E caem! — Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-ia uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar… Heis de cair. Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas. 24.Tanto no texto de Almeida Garrett como no de Machado de Assis, ocorre Metalinguagem, e ambos os autores, além de tecer comentários acerca de literatura, dirigem-se a seus leitores, cada qual pressupondo um tipo de leitor. Comente acerca do tipo de leitor que Garrett e Machado tem em mente quando tecem seus comentários. 25. No texto de Machado de Assis, explique o emprego dos pronomes demonstrativos este e esse nos trechos “ Começo a arrepender-me deste livro “expedir alguns magros capítulos para esse mundo”, considerando a relação espacial que esses pronomes evidenciam. Leia o trecho a seguir, para responder as questões 26 e 27. Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das árvores a janela meia aberta de uma habitação antiga mas não delapidada (…) Interessou-me aquela janela.Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali? Parei e pus-me a namorar a janela. Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço. Pareceu-me entrever uma cortina branca… e um vulto por detrás… Imaginação decerto! Se o vulto fosse feminino!… era completo o romance. Como há-de ser belo ver pôr o Sol daquela janela!…E ouvir cantar os rouxinóis!…E ver raiar uma alvorada de Maio!… Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra (Capitulo X) 26. (Fuvest-SP) Com dados extraídos do texto, explique o papel da natureza na estética romântica. 27 . “Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das árvores a janela meia aberta de uma habitação antiga mas não delapidada” – Comente o emprego da palavra meia, `a luz das normas gramaticais atuais. 01. C 02. E 03. B 04. E 05. D 06. C 07. D 08. D 09. E 24 no quarto de Linda. Fica na sádica espreita. Mas ele não contava que enquanto isso Pai Quicé se encontrara com Berta, a quem contara a caçada que estavam armando contra Jão Fera. A menina, preocupada, resolve avisar o perseguido. Antes precisa pegar um chapéu que está no quarto de Linda. Quando entra no cômodo, vê o réptil e dá um grito. Brás, diante dessa cena, tem uma convulsão e cai da árvore. Termina aqui o Segundo Volume. O Terceiro Volume interrompe o fluxo narrativo fazendo um flashback para 1826. Fala-se do misterioso aparecimento, alguns anos antes, nas terras de Afonso Galvão (pai de Luís Galvão), de uma criança de pouco mais de um ano. Adotam-na e dão-lhe o nome de Jão Bugre. Torna-se então companheiro de infância e juventude de Luís Galvão, servindo-lhe como guardacostas, já que o filho do fazendeiro tinha, quando jovem, um comportamento inconsequente, arranjando sempre confusão, que o amigo tinha de resolver. Nesse tempo residia nas imediações uma jovem que encantava todos os homens: Besita. Bugre e Afonso interessaram-se por ela, o primeiro, de forma submissa; o segundo, de maneira aventuresca apenas. Jão, apesar de extremamente triste ao saber da concorrência do amigo, que imagina superior, insiste para que o companheiro assuma algo sério com a moça, o que é recusado. Pouco depois a menina tornase noiva de Ribeiro, um sujeito que passava por ali. Bugre fica tão decepcionado que abandona a casa dos Galvão. Ribeiro, assim que se casa, parte em viagem para salvar a fortuna de sua família. Deixa a esposa por meses abandonada em uma fazendola, tendo a coitada apenas como companhia a escrava Zana. Esta uma noite abre a casa para um homem, crendo ser o patrão que finalmente retornava. Quando o sujeito foge, a jovem declara à negra que havia acontecido uma desgraça: o invasor era Luís Galvão. Para agravar a situação, daquela conjuração carnal havia ficado como consequência uma gravidez. Nascia Berta. Muitos meses depois, Besita imagina ter visto no meio do mato o rosto de Ribeiro. Chama Zana, a qual, para tentar salvar a reputação de sua patroa, pega Berta no colo, vai até o fogão, passa pó de carvão no bebê e coloca-se na frente da casa, ninando a criança – quer que o patrão pense que a menina é filha da escrava. Trabalho inútil: o marido desonrado havia esganado a esposa com os próprios cabelos dela. Justo naquele dia o sempre protetor Jão Bugre estava ausente. Tinha ido buscar uma encomenda para a amada. Mas chega a tempo de ver os últimos momentos de vida de Besita. Zana enlouquece diante disso. Berta acaba sendo adotada por Nhá Tudinha. O ódio do Bugre aumenta, ainda mais porque o assassino conseguira escapar. Infeliz no amor e no desejo de vingança, entrega-se ao banditismo, tornando-se Jão Fera. Quinze anos depois Ribeiro volta ao Brasil. Assume como nome um apelido que lhe haviam dado por causa de uma irrupção que tinha tomado o seu rosto: Barroso. Terminado esse recuo no tempo, a narrativa retorna ao ponto em que havia sido interrompida: Berta diante de uma cascavel. A moça consegue surpreendentemente hipnotizar a cobra, que, mansa, sobe em seu braço e acaba repousando no colo da garota. O transe só é desfeito quando Brás, recuperado, invade o quarto e some com o réptil. Retirada do seu transe, Berta não quer mais perder tempo. Junta-se a Pai Quicé e vai à procura de Jão Fera para avisá-lo do risco que corre. Entretanto, acaba se vendo mergulhada numa sequência vertiginosa de perigos: um bando de ferozes queixadas, o cerco dos homens de Filipe e Gonçalo, a sanha sexual de Fera e até o assédio de Afonso, que insiste em roubar um beijo. Por fim, ela acaba por dá-lo no rosto do rapaz, o qual acaba enciumando Miguel, que os estava espreitando. Berta consegue provar que não havia motivo para amuo do magoado rapaz, pois arranca dele a confissão de que gosta de Linda, declaração que é providencialmente ouvida por esta, que estava oculta no mato. Termina assim o Terceiro Volume. O Quarto Volume inicia-se relatando a tão esperada festa de São João, em que a paixão entre Linda e Miguel se fortalece. Entretanto, D. Ermelinda, já chateada por ter ouvido uma ironia sobre o passado nebuloso de Luís Galvão com Besita, flagra o casal recém-formado e decide dar um fim àquela união que considerava inadequada. Terminada a festa, Barroso, Gonçalo e dois empregados de Luís Galvão aparecem para pôr o plano maligno em ação. Trancam escravos e empregados, incendeiam o canavial, o que é suficiente para atrair o proprietário, que, enquanto tenta salvar suas posses, recebe um golpe na cabeça que o deixa desacordado. Entretanto, Jão Fera surge para impedir que o crime se concretize. Mata os malfeitores, menos Ribeiro, que consegue escapar. Resumo De Til No início do Primeiro Volume de Til, os jovens Berta1 e Miguel caminham alegres pela vegetação exuberante entre os rios Piracicaba e Atibaia, em Santa Bárbara, interior de São Paulo. É junho de 1846. No caminho veem o bandido Jão Fera, que, com sua feição inamistosa, parece estar planejando uma tocaia. Quando o casal chega a um belo e tranquilo lago, chamado Tanquinho, encontrase com os gêmeos Afonso e Linda, filhos do fazendeiro Luís Galvão. Estes mencionam a viagem que o pai está fazendo em direção a Campinas e dos pressentimentos da mãe, D. Ermelinda, aguçados ainda mais com o fato de Jão Fera ter sido visto várias vezes nos arredores. As suspeitas de Berta e Miguel aumentam, ainda mais por causa do encontro recente com o bandido. Na verdade, o narrador nos informa que um indivíduo chamado Barroso havia contratado por quarenta milréis um assassinato a Jão Fera, que de imediato aceitou. Era o seu ofício. O problema é que só depois de ter gastado o dinheiro o contratante procurou saber quem seria a vítima, informação que o desagradou. Tenta arranjar dinheiro para se livrar da obrigação, mas não consegue. Só lhe resta cumprir sua palavra, ainda que a contragosto. O prazo máximo era a noite de São João. Berta, diante das declarações dos gêmeos, infere o que está por acontecer e por isso resolve agir. Intercepta o bandido e consegue arrancar dele a confirmação dos fatos, o que a deixa indignada, ainda mais por se tratar de uma mera transação comercial. A menina oferece então o relicário de sua falecida mãe ao bandido para que este o venda e levante a quantia que o desobrigue de tal atroci dade. Quando o capanga reconheceu o objeto que a menina tirou do pescoço, saiu correndo aos berros pelo mato, sumindo de vista. Termina assim o Primeiro Volume. O Segundo Volume inicia-se com Berta cuidando de uma galinha e de um burro decrépitos e depois de uma velha e louca escrava chamada Zana. São cenas que demonstram o espírito caridoso da protagonista. O curioso é que toda vez que a menina ficava na tapera da anciã, vê-la repetir um ritual que parecia ser a origem de sua insanidade: atendia a um chamado imaginário, voltava-se para a janela, parecia ver alguma coisa no mato, espantava-se, pegava algo no colo, aproximava-se do que tinha sido um fogão, de lá pegava o que parecia esfarinhar na palma da mão e depois passar na suposta criança; então ia para a frente da casa, ninava o que carregava, até que voltava para a tapera, olhava para dentro dela e terminava por, dominada pelo terror, cair dura como uma pedra. O narrador desloca sua atenção para a pousada de Chico Tinguá. Lá está o falastrão Gonçalo, que se arrogou o valente apelido de Suçuarana (um tipo de onça), mas que o povo da região zombeteiramente chamava de Pinta, numa referência às manchas que tem no rosto. Surge então um grupo de caipiras comandados por Filipe. Estão à caça de Jão Fera, cuja cabeça foi dada a prêmio por ter assassinado o pai de um fazendeiro. Gonçalo, dominado pela inveja que sente do capanga, alia-se a esse povo. Tinguá escorraça um bacorinho (filhote de leitão). Pouco depois se ausenta do estabelecimento. Disfarçadamente vai seguir o animalzinho, que o guiará ao bandido. O narrador passa seu foco para a casa humilde de nhá Tudinha, mãe adotiva de Berta. Enquanto a senhora estava ocupada em fazer doces para a festa de São João, a menina apareceu com Brás, o sobrinho órfão de Luís Galvão. Era um epiléptico e doente mental que não aprendia quase nada do trato social. A única pessoa que obtinha influência em sua alma era Berta, por quem ele nutria adoração ciumenta e possessiva. A menina conseguira triunfantemente ensinar-lhe o abecedário, a Ave-Maria e a Salve-Rainha. Volta-se a história para a pousada de Chico Tinguá. É quando aparece Barroso. Quer tomar satisfações com o vendeiro, pois fora este que havia indicado Fera para um serviço que não se concretizara – e que o leitor já tem noção do que se trata: o assassinato de Luís Galvão. Pinta intromete-se no assunto e oferece seus préstimos. Tudo na venda fora acompanhado às ocultas por um escravo de idade avançadíssima: Pai Quicé. A narrativa transfere-se para o drama dos esforços inúteis de Jão Fera na captação de dinheiro para se livrar da obrigação assumida com Barroso. Logo depois, acompanhamos as ações de Brás, que inicia um plano maligno. Pega uma cobra, sobe em uma árvore e atira a serpente 25 A narrativa passa por uma série de desvios que servem para aumentar a expectativa sobre o clímax que está por ocor rer. Jão Fera se entrega ao fazendeiro que tinha posto sua cabeça a prêmio. Só assim conseguiu o dinheiro para se desobrigar do trato acertado com Barroso. Mas, como os capangas tentam amarrar o facínora, o que não estava no trato da rendição, sente-se livre de mais esse compromisso. Volta a Santa Bárbara a tempo de flagrar o obstinado e vingativo Ribeiro quase pondo a mão sobre Berta, vista por este como o fruto do adultério de Besita. É o momento em que o capanga reconhece a verdadeira identidade de Barroso. Mata-o com suas próprias mãos, o que deixa a menina tão desgostosa que o expulsa de sua presença. livre operariado inglês. É por isso que vemos nas terras de Luís Galvão a mão de obra negra realizando suas tarefas em meio ao canto e outras benesses, numa tentativa do prosador de passar ao leitor a ideia de que a relação entre senhores e escravos seria harmoniosa e benéfica. Retrata os costumes, a linguagem e a vida rural da época, e segue os moldes românticos, abordando a inocência, o amor, a fragilidade, a idealização da natureza e a subjetividade. Escrita em 1872 por José de Alencar, Til pertence à fase regionalista do autor. Na obra, são retratados os costumes, a linguagem e a vida rural da época abordando a inocência, o amor, a fragilidade, a idealização da natureza e a subjetividade. Decepcionado, Fera entrega-se à polícia em Piracicaba, na época Vila da Constituição. É lá que reencontra a protagonista, que já o perdoara. Por isso escapa da prisão, disfarçado em caiapó. Antes de sumir, faz questão de separar Afonso de Berta, aludindo de maneira enigmática ao passado de Luís Galvão e Besita, o que D. Ermelinda ouve. E já no caminho de volta, Zana toca também nesse passado, confundindo filho com o pai. O fazendeiro sente a obrigação de confessar à esposa essa parte nefasta de seu histórico. A mulher mergulha em uma silenciosa crise que dura uma noite. No dia seguinte, declara a necessidade de assumir Berta como filha deles. Entretanto, a menina recusa, ainda mais depois que consegue que Jão Fera conte tudo o que ocorrera naquela tapera. Ciente de toda a verdade, a menina diz que a mãe dela estava no céu e seu pai era o capanga. Exige, porém, que, no lugar do convite dos Galvão para morar com eles, seja admitido o casamento de Linda com Miguel. É atendida. Por fim, a família do fazendeiro se muda para São Paulo, para onde vai também Miguel. Lá ele estudará para poder se unir a Linda. Berta prefere ficar no interior, cuidando dos desvalidos Brás, Zana e Jão Fera. O enredo de Til Em um passeio pela fazenda, Berta - jovem pequena, esbelta - e Miguel - alto, ágil e robusto - encontram Jão Fera, com fama de bandido. Após um desentendimento entre eles, Jão vai embora a pedido da menina. Os dois amigos vão ao encontro de Linda e Afonso, irmãos gêmeos e filhos de Luís Galvão, homem inteligente, e de Ermelinda. Linda ama Miguel, mas Berta e Miguel já se amam. Contudo, para não ver o sofrimento da amiga, Berta faz de tudo para que Miguel fique com Linda. Todos gostavam muito de Berta apelidada de Til -, pois era alegre e de bom coração. Num outro trecho da obra, ela visita constantemente Zana, uma mulher com problemas mentais. Brás, menino de 15 anos, também com problemas mentais tentar matar Zana por sentir ciúme de Berta, mas não consegue. A história é marcada por tentativas de assassinatos. Pelo assassinato de Aguiar, seu filho oferecera uma recompensa a quem matar o assassino Jão Fera. Já o personagem Barroso e seu bando planejam provocar um incêndio na casa de Luis Galvão para matá-lo e, depois, apagando o incêndio Barroso pretende oferecer seus serviços à viúva e conquistá-la, vingando assim a traição do passado, pois ficaria com a esposa daquele que manchara a honra de sua esposa Besita. Ribeiro que trocara seu nome para Barroso tinha agora uma irrupção no rosto, Jão e Ribeiro tinham-se visto poucas vezes na época de Besita, por isso não se reconheceram quando se encontraram. À noite João, Gonçalo, o pajem Faustino e Monjolo, trancam a senzala e ateiam fogo no canavial, Luis tenta apagar o fogo e é agredido pelas costas por Gonçalo, mas Jão o salva, e mata os três bandidos. Barroso foge e, conforme o combinado, Jão se entrega ao filho de Aguiar, diz que irá pra onde ele quiser desde que ninguém toque nele, pois se isso acontecer este desfeito o acordo e ele estará livre novamente. Os capangas tentam amarrá-lo, ele espanca todos e vai embora. Barroso que ficara sabendo dessa prisão volta para tentar matar Berta, Jão que estava solto novamente consegue pegá-lo e o mata de forma violenta. Brás que presenciara tudo leva Berta pra ver a cena, mas ela foge horrorizada, enquanto Jão se entrega a policia. Luís resolve contar tudo a esposa, ela chora e decide que ele deve reconhecer Berta como filha. Eles contam tudo a Berta, omitindo, porém as circunstâncias desagradáveis, Berta sente que estão escondendo algo. Jão foge da prisão e procura Berta, ela o faz prometer que nunca mais matará ninguém. Ele fala de Besita sua mãe e ela lhe implora que conte tudo. Ele assim o faz, revelando que Besita casou-se com Ribeiro que desapareceu logo depois do casamento. Alguns meses depois, Besita é avisada por Zana que seu marido chegara. Como era noite, no escuro ela se entrega às caricias do marido, e depois descobre que não era ele e, sim, Luís Galvão. Jão pensa em matá-lo por isso, mas ela o impede. Meses depois Luís casa-se com D. Ermelinda e nasce Berta, filha de Besita. Um dia Besita pede a Jão que vá comprar coisas para o bebê. Durante sua ausência, aparece Ribeiro, que a acusa de traição e a estrangula. Neste momento, Jão chega e consegue salvar Berta, mas Ribeiro foge. Luís quer que Berta vá morar com ele e sua família em São Paulo, mas ela se nega e pede que leve Miguel que ama Linda. Miguel tenta convencê-la a ir junto, mas ela recusa, ficando no interior. 2. BREVE ANÁLISE Publicado primeiramente em folhetim no jornal A República entre 1871 e 1872, Til obteve bastante sucesso. Sua linguagem idealizada, a descrição rebuscada da paisagem, os relacionamentos amorosos leves e inocentes, além do ritmo ágil das aventuras foram alguns dos ingredientes que conquistaram de imediato os leitores. De fato, Alencar demonstra um valioso domínio da técnica narrativa, pois construiu sua trama em 62 capítulos, os 31 primeiros apresentando fatos que vão se tornando cada vez mais complicados, o que prende a curiosidade, seduzida pelos mistérios que se lhe vão apresentado; os 31 seguintes dedicando-se a desenrolar os nós da primeira metade do romance, o que atrai ainda mais a atenção, que vai vendo todos os mistérios sendo desvendados. Pelo fato de sua história se passar no interior de São Paulo, Til é reconhecidamente rotulado como romance regionalista, tendo, portanto, como preocupação a descrição dos costumes daquela localidade, o que acaba por contribuir com mais uma faceta do painel de nossa nacionalidade que Alencar pretendia erigir. Mas há de se observar também que se encontra no presente romance o arquétipo da Bela e a Fera. Berta, que encarnaria o primeiro elemento desse par, possui uma força extraordinária de amor e bondade, sendo capaz de melhorar a vida de todos que a cercam. Ela apura o caráter de Miguel, fazendo-o merecedor de Linda. É responsável também pela criação do amor desse casal. É também quem apazigua os desvalidos Brás e Zana. Por fim, resgata da criminalidade Jão Fera, o segundo elemento do par arquetípico e que mergulhara no banditismo não por maldade natural, mas por ser vítima das circunstâncias amorosas. Deve-se ainda dar atenção em Til às manifestações do grotesco, da maldade. Por um lado essa exibição de taras, anomalias, perversões pode revelar um desencantado Alencar utilizando-se de um expediente comum entre os românticos. É o que, por exemplo, também ocorreu quando Victor Hugo, um dos escritores prediletos de Alencar, criou O Corcunda de Notre-Dame. Por outro lado, essa malignidade assombrosa pode também ser uma alegoria das forças negativas que precisavam ser domadas para que finalmente aquele recanto brasileiro encontrasse a elevação para se integrar à civilização. Por fim, é importante observar como a escravidão é abordada em Til. Sabe-se que Alencar assumira a postura conservadora de defesa do regime forçado de servidão, que considerava um mal necessário, mas temporário, para o desenvolvimento de nossa economia. Seu romance vaise tornar, portanto, um libelo escravista, corroborando o argumento de que os cativos brasileiros viviam em uma situação melhor que a do Os personagens de Til A principal personagem da obra é Berta, que recebeu o apelido de Til, pois quando aprendeu a ler achava o acento til gracioso. Miguel é um rapaz robusto e apaixonado por Berta. Jão Fera tem fama de bandido, mas é o personagem que salva Berta e Luis Galvão, dono da fazenda em que a história é ambientada. 26 Personagens redondas- Tudo gira em torno da personagem principal (Berta). Jão Fera- Ação de heroísmo. Síntese de Viagens Til Til é uma narrativa que envolve os personagens Berta, Miguel, Linda e Afonso. Eles são adolescentes despreocupados. Regionalista, a obra supervaloriza o interior do Brasil e da vida bucólica. Til é o apelido de Berta, a heroína capaz de imensos sacrifícios por um ideal. 5) – Trama- O romance é a história de Berta, uma menina que fica órfã ainda bebê; sua mãe é assassinada pelo próprio marido, por ciúme ao saber que não era pai da criança. A menina cresceu inocente de sua própria história e era uma pessoa muito amável, justa e bondosa. Vivia com D.Tudinha, uma senhora que a adotou e a amamentou junto com seu filho Miguel. Berta era muito amiga de Afonso e Linda, ambos, filhos de Luiz Galvão: grande fazendeiro, e D. Ermelinda. Jão Fera é um personagem muito importante na trama, pois ele no início é um “bandido”, assassino e cruel. No decorrer da novela, ele vai se revelando como um herói. Ele é um guardião para Berta, pois desde quando ficou órfã, ele a defendera e continuava sempre por perto. Berta era muito amada por Miguel e Afonso; mas não se decidia por nenhum, pois Linda era apaixonada por Miguel e sua grande amiga. Berta chega a convencer Miguel a namorar Linda, embora sinta ciúme. Til, é um apelido que a própria Berta se dá para facilitar o aprendizado de Brás, pois era o símbolo que ele mais gostava no alfabeto. Por ser deficiente, Brás não conseguia aprender com clareza e por isso apanhava de palmatória nas aulas, e só Berta conseguiu ensiná-lo. Portanto eis o nome da obra. O romance não se enquadra na característica linear ou progressivo e sim como vertical ou analítico, pois dá maior ênfase aos personagens e no drama que eles vivem. Exemplo: Berta é tão marcada por sua história quando a descobre, que decide não aceitar a paternidade de Luiz Galvão e sua riqueza e fica com D.Tudinha, cuidando dos excluídos a sua volta. Desenvolvimento da obra Til A história se desenvolve na fazenda no interior de São Paulo em meio a uma história de amor e descobertas sobre o passado de Berta. Problemática da obra Til- A filha de Besita é fruto de uma noite de amor com Luís Galvão, imaginando que ele é seu marido que voltara de viagem. Clímax da obra Til- Quando Jão Fera revela o segredo sobre a mãe de Berta. Desfecho da obra Til- Luís e a família se mudam para São Paulo, enquanto Berta fica no interior do estado. A linguagem de Til- Regionalista. O espaço/tempo em Til- A história se passa no interior paulista, em uma fazenda do século XIX. Narrador e foco narrativo de Til- Obra narrada em terceira pessoa. Narrador Onisciente. Contexto histórico de Til- No ano de publicação da obra, o Brasil estava às voltas com a aprovação da Lei do Ventre Livre, que garantia a liberdade a filhos de escravos nascidos no Brasil. 6) -Verossimilhança- A ação dos personagens tem grande importância dentro do romance, pois são eles e principalmente Jão Fera, que faz a novela acontecer, ele possui um heroísmo fantástico, exemplo: Consegue vencer uma manada de Caitetus com Berta sobre os ombros e ainda salva o Pai-Quicé; se entrega à prisão e consegue sair livre. Por se tratar de fazendeiros, capangas, escravos, lavouras de cana e café, a trama tem uma semelhança com a verdade, pois isso faz parte da história do Brasil. Sobre o autor de Til- José de Alencar nasceu em 1° de maio de 1829, em Mecejana, no Ceará, e faleceu dia 12 de dezembro de 1877, no Rio de Janeiro. Formou-se advogado escreveu para jornais da época. Foi eleito deputado federal pelo Ceará e Ministro da Justiça. Alencar escreveu romances indianistas, urbanos, regionais, históricos, obras teatrais, poesias, crônicas, romances-poemas de natureza lendária e escritos políticos. Sua principal obra é Iracema. 7) -Ponto de Vista- A narração do romance é feita em terceira pessoa. O narrador é onisciente; ele conhece, sabe todos os pensamentos e planos dos personagens e os revela ao leitor. Não é um personagem e nem um simples espectador. 1) -Ação- Til, de José de Alencar, é uma obra caracterizada como romance- novela; possui uma dramaticidade dinâmica. Sua temática é baseada na época do Brasil Colonial. Embora não tendo, uma sequência cronológica dos fatos, o romance possui coerência e coesão que torna o drama compreensível, porém exigindo do leitor muita atenção para não se perder no decorrer da narração que torna o romance muito movimentado e em um pequeno espaço de tempo cria inúmeros acontecimentos envolvendo muitos personagens. Há uma pequena intertextualidade com as tragédias gregas ao narrar a “Ave-Maria” ,muitas mortes e muitos órfãos interligando assim vários núcleos existentes no enredo: A família de Guedes, a família de D.Tudinha, Luiz Galvão, o Tinguá e ainda os capangas : Jão Fera e Gonçalo Pinta. 8) Tipo de romance- Romance aberto- A trama apresenta características de um romance aberto, Pois o narrador traz ao longo da história, personagens próximos da realidade, por exemplo: Pessoas bondosas como Berta, D.Tudinha, e maldosas como Ribeiro e Gonçalo Pinta, que retratam sentimentos e ações comuns de pessoas reais. O narrador faz com que o leitor tenha profundas reflexões sobre o preconceito, a exclusão, a injustiça, e permite ao leitor participar da trama, pois faz o leitor pensar, refletir pressupor o que irá acontecer em alguns capítulos, ao mesmo tempo cria “armadilhas” durante seu “percurso” que pode confundir o leitor se não estiver atento. O leitor pode ainda continuar imaginando uma sequência mesmo após o final do romance. 2) –Espaço- Tudo acontece em um lugar chamado Santa Bárbara, próximo a Campinas no estado de São Paulo, mas o romance faz referência também à cidade de Itu; à Vila de Piracicaba e à fazenda do Limoeiro. A floresta, assim como o bar à beira da estrada, o Bacorinho e o lugar chamado Ave-Maria são recursos particulares dentro do romance. Os sentimentos que o romance causa no leitor são: Piedade, indignação e choro e algumas vezes satisfação quando há uma vingança. O autor se mostra um artista da palavra quando através dela utiliza de vários adjetivos para reforçar característica das personagens e lugares fazendo o leitor “viajar em imaginação na história”, e também quando toca o emocional do leitor. O Romance não é monofônico e também não é polifônico, pois não apresenta características. Essa oposição, a monofonia e a polifonia são observadas por M. Bakhtin como aquelas que se diferenciam no discurso como verdades fechadas e abertas. O discurso monofônico é próprio do discurso autoritário, que não permite o diálogo ou a relação entre o eu e o outro. Em contrapartida, na polifonia, própria da linguagem poética, a verdade surge como possibilidade discursiva em diálogo com a multiplicidade de vozes textuais. 3)-Tempo- O narrador utiliza disfarces físicos e mudança de nomes em seus personagens. De acordo com a chegada de cada personagem na trama, o tempo é manejado pelo narrador que torna o tempo passado sempre presente. Portanto o tempo predominante é o psicológico. 4) -Personagens- Personagens planas- Não tem iniciativa, não tem ação significativa no romance. (Linda, Miguel, D. Ermelinda, Besita e D. Tudinha). 27 Portugal. Ao chegar à costa, Luís Teixeira Sampaio oferece-lhe lugar em sua carroça até Azambuja onde irá acomodar-se em um alojamento depreciável, mesmo sendo o primeiro lugar com ar de conforto às margens do Nilo português (rio Tejo). Reflete, então, acerca do materialismo e dos lucros dos homens, do sofrimento para tornar-se rico, da Ciência ser tolice e orgulho dos néscios. Decidido em fazer reputação com o livro, Garrett parte discursa, então, sobre a beleza e compara Démades a Addison, propiciando um verdadeiro debate entre eles. O autor sonha acordado e tem consciência disto, tanto que aconselha os leitores a saltarem as páginas e a passarem ao capítulo seguinte. Conversa, então, com o leitor sobre o que é escrever um drama ou um romance dando-nos uma receita de romance antes de partir para Santarém montado em uma mula: “Trata-se de um romance, de um drama — cuidas que vamos estudar a história, a natureza, os monumentos, as pinturas, os sepulcros, os edifícios, as memórias da época? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar caracteres e situações do vivo da natureza, colori-los das cores verdadeiras da história... isso é trabalho difícil, longo, delicado, exige um estudo, um talento, e sobretudo tacto!... Não senhor: a coisa faz-se muito mais facilmente. Eu lhe explico. Todo o drama e todo o romance precisa de: Uma ou duas damas, mais ou menos ingénuas. Um pai — nobre ou ignóbil. Dois ou três filhos, de dezanove a trinta anos. Um criado velho. Um monstro, encarregado de fazer as maldades. Vários tratantes, e algumas pessoas capazes para intermédios e centros. Análise De Viagens Na Minha Terra DE ALMEIDA GARRETT CARACTERÍSTICAS DO AUTOR Garrett foi uma das principais personagens na evolução da literatura e teatro portugueses, propondo e executando uma sequência de alterações inovadoras. O teatro nacional português, idealizado por Almeida Garrett, iniciou um processo de divórcio das tragédias que eram importadas da França e da Itália para serem encenadas em Portugal, atendendo, desse modo, a expectativa do público português desejoso de uma literatura original e que construísse o sentido de pátria livre. Camões e D. Branca, marcos do início do Romantis mo em Portugal, são dois poemas de caráter narrativo em que Garrett retrata o amor à pátria e as lutas da reconquista, respectivamente; Um auto de Gil Vicente é uma homenagem de Garrett ao fundador do teatro português; Frei Luís de Sousa, ambientado no século XVII, retoma situações ligadas à Batalha de Alcácer-Quibir e o mito de D. Sebastião, atitude nacionalista também presente em Viagens na minha terra e O arco de Santana. A proposta da construção do Teatro Nacional de D. Maria I, a fundação do Conservatório Dramático e o empenho no fomento de uma produção dramática de caráter nacional são algumas das iniciativas de Garrett que o destacam no esforço pela valorização do teatro portu guês, uma tarefa de ampla projeção cultural diretamente associada à Revolução de Setembro na qual Garrett se envolvera. Almeida Garrett, típico representante da revolução liberal, foi peça atuante e dominante em todo processo revolucionário, quer no sentido político, quer no literário, chegando a retratar detalhadamente os costumes, a história, a religião e a cultura portuguesa. Educado na tradição clássica, Garrett foi um escritor regido pelo ecletismo artístico e pela habilidade da combinação harmoniosa de elementos temáticos e técnico-literários que mesclam a tendência clássica, na qual ele foi educado, e as novas propostas românticas europeias. A frase impecavelmente trabalhada, o poder de concisão e o ritmo padronizado são algumas das qualidades clássicas que Garrett desfila ao lado da variedade temática que discute: literatura, filosofia, religião, arte, história, política, arquitetura. Para a inserção de tantos e variados assuntos, o autor vale-se de digressões constantes, ou seja, a livre associação de ideias que se desenvolve por um assunto ir originando outro, isto é, a digressão caracteriza-se pela estratégia de os temas irem se desviando à medida em que despertam novos interesses a serem discutidos, sendo que tais divagações envolvem, na obra de Garrett, questões morais, científicas, psicológicas, artísticas, paisagísticas e, principalmente, no romance Viagens na minha Terra, literárias e políticas. Almeida Garrett foi um liberal progressista vinculado afetivamente à tradição lusitana e essa postura antitética perpassou por sua obra como força de mudança política frente à mentalidade passadista e frustrada politicamente, mas não renegando a beleza artística e histórica do passado português. Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eug. Sue, de Vítor Hugo, e recorta a gente, de cada um deles, as figuras que precisa, gruda-as sobre uma folha de papel da cor da moda, verde, pardo, azul — como fazem as raparigas inglesas aos seus álbuns e scrapbooks; forma com elas os grupos e situações que lhe parece; não importa que sejam mais ou menos dispara tados. Depois vai-se às crónicas, tiram-se uns poucos de nomes e de palavrões velhos; com os nomes crismam-se os figurões, com os palavrões iluminam-se... (estilo de pintor pinta-monos). — E aqui está como nós fazemos a nossa literatura original. E aqui está o precioso trabalho que eu agora perdi!” (p. 22). Comentando sobre Os lusíadas, verifica que é o melhor desde a Divina comédia até Fausto e insuperável desde que fora escrito. Passa pela charneca e lembra-se da última revista do Imperador D. Pedro ao exército liberal, criticando as guerras que matam muitos e chegam a ser inúteis. Recorda-se, então, de Ênio Manuel Figueiredo, escritor de treze volumes e peças teatrais que, se fossem um pouco mais detalhadas, seriam excelentes comédias. Porém, os títulos são importantes, aliás, segundo ele, alguns nem deveriam ter livro. Chegando a Santarém, o autor faz logo um passeio a cavalo e descreve o vale. Nele encontra uma janela que o enfeitiça e acredita ver um vulto lá. Se fosse feminino seria um romance. Durante o desafio de rouxinóis, imagina a personagem da janela num quadro romântico, linda mulher de olhos pretos, idealizados pelo poeta, mas que, na verdade, eram verdes, sabendo disso pois um companheiro de viagem corrige a observação dele e passa a contar-lhe a história da Menina dos rouxinóis. Numa conversa com Yorick, personagem de Skakespeare, Garrett discorre sobre a paixão que move a própria existência. Receia, por isso, iniciar a história da menina dos rouxinóis por não ter amado o suficiente, numa mistura de diálogos entre leitor, narrador e os companheiros de viagem. Decide-se por relatar apenas às leitoras uma visão que tivera há um mês: Em 1832, uma velhinha dobava o fio olhando firmemente para o poente sem pestanejar. Repentinamente, o movimento uniforme das mãos parou, pois a meada tinha se embaraçado e ela chamou por Joaninha. A velhinha não enxergava. Joaninha, beijando repetidas vezes a velhinha, ajudou-a e trouxe-lhe fruta, pão, queijo e vinho. A menina era gentil, bondosa, apenas os olhos eram verdes, mesmo assim, fascinantes. A avó volta a dobar o fio e a menina chora, deixando cair-lhe uma lágrima na mão da velha Francisca que lhe diz que tristeza é para os velhos. Frei Dinis aproxima-se e, de acordo com o 4. VIAGENS NA MINHA TERRA Em seu livro Viagens na minha Terra Almeida Garrett entremeia várias narrativas e reflexões que vão da preocupação jornalística e histórica até a política e literária. O autor inicia explicando porque escreveu o livro, mencionando Xavier de Maistre e sua obra Viagem à roda de meu quarto, afirmando que se este último tivesse escrito seu livro em Portugal, certamente iria até ao quintal, numa alusão a que o país de Garrett deveria ser visto de forma mais extensa. Justificando a dimensão de sua obra, afirma que de toda sua experiência e do que lhe for contado em sua viagem de Lisboa a Santarém resultará seu livro: “De quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crônica”. No barco em que viajava estavam presentes dois grupos distintos: os homens do norte e os do sul a discutir quem era o mais forte. Durante o percurso, Garrett revela que o verdadeiro motivo de ter escrito sobre uma viagem era mostrar a marcha do progresso social de 28 autor, o frade é indispensável, pois poetisa a paisagem, além de trazer notícias do outro neto de Francisca, um maldito que deveria ser esquecido. O frei chamava-se Dinis de Ataíde e, depois de passar pela carreira das armas e das letras, abandonou tudo e partiu para Santarém, tornando-se, dois anos depois, Frei Dinis da Cruz, homem austero que deixara todos os bens para D. Francisca que só tinha um neto e uma neta por família: Joaninha, órfã de pai e mãe, e Carlos, o neto que, para nascer, levou a mãe à morte. Antes das mortes, Dinis frequentava constantemente a casa de D. Francisca, depois, numa sexta-feira, os dois fecharam-se em casa, conversaram, durante horas, e a velha ficou a chorar a noite inteira, A partir daí, Frei Dinis passou a visitar a casa de Francisca todas as sextas-feiras. Carlos era o neto maldito que estava no último ano de Coimbra e era perseguido pelo frei. O rapaz voltou da universidade triste e melancólico e decidido a emigrar e, ao falar sobre a decisão ao Frei Dinis, Carlos foi proibido pelo frade de pensar e escolher seu caminho. conseguiram tirar de lá.Ao voltarem à terra e as águas novamente se juntaram. Seis séculos depois, a rainha Isabel pediu, por meio de orações, que a santa lhe aparecesse e foi atendida. As águas se lhe abriram e o rei, acompanhado de vários homens, tentou abrir o túmulo, sem êxito. Então, mandou erguer sobre o lugar um padrão que, apenas após a construção, foi encoberto pelas águas. Três séculos após, a Câmara de Santarém mandou refazer o marco e colocarem nele a imagem da santa. No entanto, há um outra versão da história de Santa Iria popularmente difundida nas cantigas: A santa estava em casa e um cavaleiro desconhecido, que foi hospedado por uma noite pelos pais dela, levantou-se durante a noite, sequestrou a jovem e levou-a até um descampado a fim de violentá-la. Ela resistiu bravamente e ele a matou. Anos depois, ele passava pelo mesmo lugar quando viu uma ermida que lhe disseram ser a de Santa Iria que o amaldiçou e ele pediu perdão. O narrador retoma a história de Joaninha relembrando o ponto de onde havia parado. Em meio a novos combates, Carlos partiu imediatamente para a luta e, ferido, foi recolhido ao Convento de São Francisco. Delirando, Carlos disse “Georgina, Georgina, I love you still” (p. 156). Uma enfermeira chorando ouve e assiste ao delírio de Carlos: Era Georgina. Carlos despertou e suas mãos se mantinham segurando um pedaço de fita com uma medalha contendo fios de cabelo de Georgina. Passadas algumas semanas, ela disse a Carlos que iria devolvê-lo à família, uma vez que ele já não mais a amava como antes. Na verdade, enquanto ele esteve doente, Georgina auxiliou e acalentou a dor de Joaninha e da avó, confessando-se ao frei Dinis e confidenciando-lhe o amor que ela tinha por Carlos. Georgina, ao conversar com Carlos, falou-lhe que via no frei um homem bom, ao que Carlos protestou imediatamente. Frei Dinis entrou no quarto do soldado e, pedindo perdão ao jovem, revelou que o amava. Em meio a situação reveladora, Carlos perguntou-lhe quem assassina-ra seu pai, cegara sua avó e cobrira sua família de infâmia. Dinis, caindo de bruços no chão, consentiu seus erros e pediu ao rapaz para matá-lo, pois não merecia viver. Nesse instante, Georgina pediu a Carlos que acudisse Frei Dinis e ele, num gesto de horror, negou-se. Erguido pela moça, o frei dirigiu-se ao rapaz chamando-o de Meu Carlos o qual caiu de joelhos aos pés do frei e todos se abraçaram. Em meio a tão fraternal cena, Dinis disse a Carlos que o jovem também deveria perdoar sua desgraçada mãe, o que despertou novamente a ira do rapaz que o chamou de frei do demônio, merecedor de morrer pelas mãos do próprio Carlos. Nesse instante, entrou pelo quarto a Avó Francisca que impediu a tragédia dizendo a Carlos que Dinis era seu pai. Uma ferida no pescoço de Carlos reabriu, o sangue começou a escorrer e Carlos perdeu os sentidos. Ao recobrar os sentidos, Carlos ouviu atentamente a verdadeira história contada pela avó: Frei Dinis havia sido amante da mãe de Carlos antes de ser frei e com ela tivera um filho. Ao saber do adultério da esposa, o suposto pai de Carlos planejou junto com o cunhado, pai de Joaninha, assassinarem Dinis. No entanto, o frei, defendendo-se, acabou matando os dois sem saber quem eram, devido à escuridão, e jogando os corpos no rio. Apenas o frei e dona Francisca sabiam do crime e, por causa dele, ela ficara cega e Dinis amaldiçoando sua vida eternamente.Carlos beijou as mãos da avó e retirou-se, mandando notícias suas apenas três dias depois. O autor, já impaciente de estar em Santarém, desejava partir. Antes, porém, soubera que Frei Dinis havia saído da cidade e que Joaninha e D. Francisca definhavam ser ter notícias de Carlos. Garrett, que se sentia bem por partir mas também saudoso do passeio, deixou seus compa nhei ros de viagem irem à frente para que ele pudesse vislumbrar sozinho a janela da menina dos rouxinóis. Em frente a casa, sentada à cadeira estava D. Francisca dobando o fio da meada e ao seu lado, o frei Dinis, magro como um cadáver. Garrett chegou-se a eles e perguntou por Joaninha e tristemente ouviu a notícia de que ela morrera. Receoso, questionou por Carlos e o frei perguntou-lhe se conhecia Carlos. Garrett convenceu o frade de que era um amigo de Carlos e recebeu das mãos de Dinis uma carta num papel amarelo e manchado de lágrimas. Na carta, Carlos se dizia perdido e explicava que fugira de casa pois sabia de um crime e não podia compactuar com ele nem viver olhando para frei Dinis. A avó, no entanto, era para ele cúmplice e ele, Carlos, Revoltado com a pátria, a casa da avó, as ordens de frei Dinis numa casa que não era dele, contra D. Miguel e sendo a favor dos liberais, dali há duas semanas, Carlos partiu para a Inglaterra e, meses depois, para a Ilha Terceira. Após a partida do rapaz, Frei Dinis foi à casa de Francisca, conversaram longamente e, depois de passar três dias a chorar no quarto, ficou completamente cega. Joaninha, ainda criança, depois desse dia, nunca mais sorriu para o frei que envelheceu dez anos em um dia. A guerra era uma evidência e Frei Dinis trazia notícias de Lisboa sobre os acontecimentos, a movimentação literária e, também, uma carta de Carlos à Joaninha, que, ao lê-la em voz alta, omitira alguns dados da avó a qual, mesmo percebendo a fraude da leitura da neta, nada disse. Na retirada de 11 de outubro, as tropas aproximaram-se devido à vitória dos Constitucionalistas e os feridos de guerra foram socorridos pelo frei, Joaninha e D. Francisca. Uma ocasião, Joaninha dormia sobre um banco, recostada sob a proteção de um rouxinol, que parou de cantar com a aproximação de um soldado, o qual tomou a mão da menina que, ao despertar, reconheceu-o: era Carlos. Enquanto conversavam, os soldados os cercaram suspeitando deles e chegaram a ferir Carlos que elogiou a atitude dos combatentes. Joaninha, que escrevera uma carta a Carlos, informando-o da aflição da avó sem ter notícias do neto querido, estava feliz em rever o primo que amava. Ao ler a carta, o rapaz lembrou-se ternamente da prima e, simultaneamente, também da jura de amor que fizera à Georgina, mulher rica e bela. Em seus pensamentos, o jovem Carlos supunha a avó criminosa juntamente com Frei Dinis e, ao reencontrar Joaninha ouviu dela a confissão de que também não gostava de Dinis, pois sabia que ele era pecador, e o culpado da cegueira da avó que ele matava lentamente, afirmando que tudo era pecado e maldade. Carlos, ao ouvir Joaninha, franziu a testa e ela pediu-lhe que não o fizesse, pois, desse modo, ficava parecido com o frei. Ao se despedirem, Joaninha revelou a Carlos que o amava unicamente, mesmo sabendo que ele estava preso afetivamente a uma outra mulher, cheia de encantos e riqueza. O autor vai visitar os Olivais, a Igreja de Santa Maria de Alcoçova e o palácio de Afonso Henriques e, numa reflexão sobre a formação de Santarém, relata a história de Santa Iria: Na versão dos livros, Iria era uma freira de um convento duplex e que despertara a paixão incontrolável de Britaldo, filho do Conde Castinaldo, governador das terras. O rapaz adoeceu por não ser correspondido e Iria tentou consolá-lo, converter a paixão dele e, com um discurso de santa, colocou-lhe as mãos sobre a cabeça e curou o mal do corpo. Um monge, Remígio, também apaixonado por Iria, jurou, então, vingar-se por não a conquistar e, numa ocasião propícia, deu-lhe uma bebida e Iria apareceu depois com sinais de maternidade. Britaldo, enfurecido, ao invés de esquecê-la, reviveu sua paixão. Todas as noites, Iria costumava dirigir-se a uma lapa oculta para conversar com Deus e, uma ocasião, Britaldo mandou um criado, Banan, matá-la. O homem, depois de assassiná-la, despiu-lhe o hábito e jogou o corpo no rio que o levou até o lugar onde hoje há uma vila com o seu nome, dando-lhe uma sepultura natural. Certo dia, o abade Célio saiu com todos até a ribeira de Santarém e benzeu as águas do rio que se abriram deixando ver o sepulcro da Santa. Aberto o túmulo, viram e tocaram-lhe o corpo, mas não o 29 cifras: “Quantas almas é preciso dar ao Diabo e quantos corpos se têm de entregar no cemitério para fazer um rico neste mundo”; “Cada homem rico, abastado, custa cento de infelizes, de miseráveis”; “A sociedade é materialista; e a literatura que é a expansão da sociedade, é toda excessivamente e absurdamente e despropositadamente espiritualista! Sancho, rei de facto, Quixote rei de direito”. só pecado: fora para a Inglaterra e conhecera uma família elegante na qual havia três filhas que o adoravam e ensinaram-lhe muito. Carlos apaixonou-se pela segunda filha, Laura, uma mulher fascinante, que lhe pediu que não fosse mais à sua casa. Júlia, irmã mais velha e um anjo, comunicou a Carlos que Laura não podia amá-lo pois era prometida em casamento a um outro rapaz e partiria dali a três meses para a Índia. No dia do enlace, Carlos recebeu uma carta de Laura dizendo: “o nosso romance acabou, começa uma história séria” (p. 222). Em Shire, Carlos encontrou-se com Georgina, a terceira irmã, por quem se apaixonara e, durante três meses, fora feliz como ele mesmo declarou: “O meu coração estava em — Shire, em Inglaterra, estava na Índia, estava no vale de Santarém, pelo mundo em pedaços repartido” (p. 226). Certo dia, Carlos passou à grade de um convento e uma freira, chamada Solidade, assolou a tristeza dele fazendo-o simpatizar ternamente com ela. Voltando a Portugal, Carlos descobriu que sua prima Joaninha sempre o amava, porém ele tem consciência de que a mulher que o amasse seria infeliz e, por isso, não deveria amar a mais ninguém, e seria feliz se morresse na guerra que, infelizmente, para ele, já havia acabado e ele teria de continuar vivendo. Talvez seu destino fosse se tornar um homem político ou um agiota. Garrett entregou a carta a Frei Dinis que lhe perguntou se ele queria saber algo mais, pois, embora não o conheces se sentia que podia lhe dizer tudo. Garrett revela-se camarada de Carlos e que embora não o visse há anos; ele tinha engordado, enriquecido e era Barão e talvez fosse deputado qualquer dia. Joaninha enlouquecera e morrera e Georgina tornarasse abadessa de um convento que havia fundado na Inglaterra. A avó Francisca não ouvia, não falava e não reconhecia mais ninguém desde que Joaninha morrera em seus braços e de Georgina. Frei Dinis voltou a rezar, a velha a dobar o fio e o autor foi embora parando no Cartaxo para dormir e sonhar com o frei, a velha e uma constelação de barões e cores diversas. No outro dia, sem dinheiro, voltou para Lisboa. Essa busca materialista faz com que o autor critique também os lisboetas que viviam apenas o triângulo central da capital, a rua do Ouro, Chiado e o Teatro de São Carlos, como se esse meio fosse suficiente para a totalidade da essência humana; “... não prestais para mais nada ... ficarais aí alfacinhas para sempre.” Os ingleses também não escapam à crítica feroz de Garrett que os vê insensíveis, distantes e de quem os portugueses não têm medo, pois o que faz do britânico homem é justamente o vinho português, o do porto e o Madeira, logo, a dependência é dos ingleses em relação aos portugueses e não o inverso: “... o inglês não canta senão quando bebe ... aliás quando está bebido” (p. 35). Há momentos de profundo lirismo como, por exemplo, quando tenta diferenciar o trabalho do poeta e o do filósofo. O privilégio estaria em o poeta ser namorado durante toda a existência enquanto o filósofo não consegue ser salvo Aristóteles que, já velho, apaixonarase. Garrett, declarando-se mais poeta do que filósofo, afirma que a imaginação domina e não o sentimento, tanto que Byron, Schiller, Camões, Tasso morreram justamente por amor, enquanto Homero, Goethe, Sófocles, Voltaire viveram pela imaginação que não depende de vida: “Imaginar é sonhar, dorme e repousa a vida no entanto; sentir é viver ativamente, cansa-a e consome-a ...” (p. 140). A descrença nos frades vai se fortalecentdo ao longo da narrativa (prenúncio Realista), chegando a declarar que eles de nada serviam a não ser do ponto de vista artístico, sendo indispensáveis, principalmente na paisagem campestre, justamente a do livro Viagens na minha Terra. Garrett afirma que se contasse todos os freis da literatura, certamente daria um convento lotado. 5. BREVE ANÁLISE CRÍTICA 5.1.ENREDO Viagens na minha Terra é mais que um simples relato jornalístico, diário íntimo ou uma literatura de viagens em torno de vários problemas sociais de meados do século XIX. A obra apresenta um jogo de palavras, digressões, metalinguagem em forma de crônica que chega a lembrar as interferências irônicas de Machado de Assis em sua obra, autor que, aliás, recebeu grande influência dos literatos portugueses. A poesia é uma constante na obra. Carlos, por exemplo, chega a deixar alguns versos sobre seu sentimento amoroso, porém eles não foram escritos, lidos ou declamados para o autor do livro, na verdade a soldado não poria em palavras os pensamentos poéticos, pois não condizia com sua figura, o autor é que tirara uma fotografia mental do poeta e flagrara tais versos. Garrett segue modelos ilustres como Xavier de Maistre, Viagem à Roda de Meu Quarto (1794), Lawrence Sterne, Viagem Sentimental (1768), além de Chateaubriand e Shakespeare. O bem e o mal, o profano e o sagrado são tematizados no livro por meio de referências a obras que discutem também a dualidade do ser humano. Através de D. Quixote, analisa os dois princípios do mundo que andam juntos e progridem sempre, o espirirutalismo e o materialismo representados no Cavaleiro da Mancha e Sancho Pança. Em outro instante, lança-se à análise de Fausto e o pacto com o demônio e, chegando a ter medo de brincar com o profano, volta-se para o século das Trevas e opõe-se ao das Luzes e aludindo ao transreal, encerra parcialmente com as bruxas que surgem a Banquo em Macbeth. A obra está dividida em quarenta e nove capítulos relatando as peripécias ocorridas entre Lisboa e Santarém e a divagação do viajante em torno do idílio entre Joaninha e Carlos. Os dez primeiros capítulos descrevem a viagem entre as duas cidades vistas pelo vapor, a cavalo e de carruagem, observando as divergências, políticas, sociais e, até arquitetônicas. O mar não poderia estar ausente na narrativa, uma vez que é tradicional elemento das artes da Península Ibérica e, logo nos primeiros momentos, por meio de uma disputa realizada entre os Homens do Norte e os dos Sul, durante a travessia do Tejo, ele surge como o mais poderoso e indestrutível lusitano (comparado ao Rio Nilo), tema da discussão dos homens na barca. Sem dúvida alguma a maior envergadura do autor se dá por meio da metalinguagem que é o triunfo constantemente empregado para garantir a permanência da atenção do leitor e aludir à importância deste no transcorrer da narrativa, fazendo-o participar da obra e, até, conversar com o próprio autor e vice-versa, aliado sempre à irônia e ao sarcasmo contundente: “A minha opinião sincera e conscienciosa é que o leitor deve saltar estas folhas, e passar ao capítulo seguinte, que é outra casta de capítulo” (p. 20); “Saberás, pois, ó leitor, como nós outros fazemos o que te fazemos ler” (p. 22). “Cuidas que vamos estudar a história, a natureza, os monumentos, as pinturas, os sepulcros, os edifícios da época? Não seja pateta, senhor Numa reflexão sobre o materialismo, Garret preocupa-se com a destruição da humanidade para a conquista de regalias frente a um mundo que reduz tudo a 30 leitor, nem cuide que nós o somos” (p. 22); “Ainda assim, belas e amáveis leitoras, entendemo-nos: o que eu vou contar não é um romance, não tem aventuras enredadas, peripécias, situações e incidentes raros; é uma história simples e singela, sinceramente contada e sem pretensão.” (p. 49) Ar de melancólico saudosismo, seus olhos verdes associados à natureza e, indicando a ligação vital de Joaninha à ela surpreendem o narrador que os consideram em discordância com a harmonia romântica de serem castanhos: “Os olhos porém – singular capricho da nature za, que no meio de toda esta harmonia quis lançar uma nota de admirável discordância! (...) Os olhos de Joaninha eram verdes ... não daquele verde mau e destingido que não é senão azul imperfeito, não; eram verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate”. (p. 58) Outro recurso excepcionalmente bem talhado por Garrett em Viagens na minha Terra é a mistura proposital entre personagem/autor/narrador; tornando-se, por vezes, difícil a distinção entre eles, fazendo com que os destinos e experiências dos três elementos da narrativa mesclem seus componentes a fim de transformar o leitor no quarto elemento e único capaz de costurar toda a narrativa, além de participar dela indiretamente e ser alvo de comentários irônicos e críticos do narrador. Carlos chega a confrontar os olhos de Joaninha com os olhos azuis de Georgina e os negros de Soledade: Os de Georgina dizem “Amo-te, sou tua”; os de Soledade, “Ama-me, que és meu!” (p. 13) e os de Joaninha; “são um livro imenso, escritos em caracteres móveis, cujas combinações infinitas excedem a minha compreensão. Que querem dizer os teus olhos, Joaninha? que língua falam eles?” (p. 113) Desse modo, o livro Viagens na minha Terra apresenta diferentes níveis narrativos: o narrador, o companheiro de viagem e Carlos. A proposta narrativa é a da viagem propriamente dita em que o narrador estabelece o limite inicial de um tempo que durará de segunda a sábado, período do decurso da viagem, repleto de incidentes, discussões, e outras personagens viajantes sendo que uma delas, ao passarem por Santarém satisfaz a curiosidade do narrador, relatando a história da “Menina dos Rouxinóis”. No final do romance, o narrador passa pelo Vale de Santarém e lê uma carta em tom autobiográfico que Carlos escrevera a Joaninha e que será o epílogo da novela da “Menina dos Rouxinóis”. Surge então um narrador epistolar. Eis os três narradores: o narrador propriamente dito, o companheiro de viagem e Carlos (em dois planos narrativos: o da viagem e o da novela). 3. FREI DINIS Dinis de Ataíde seguira a carreira das armas e depois a magistratura, mas abandonou tudo e, partindo para Santarém, torna-se frei Diniz de Cruz, homem austero, rígido e teimoso, defensor da monarquia e esperançoso de outra vida, já que a da terra era miserável. O narrador sequencia uma série de interrogações sobre frei Dinis, criando, desse modo, mistério que despertam a curiosidade do leitor: o que o levou à vida monástica? Por que abandonou carreira e dinheiro? Qual a razão de sua visão agourenta e desgraçada? Por que faz visitas à D. Francisca e Joaninha às sextas-feiras? Ética e psicologicamente, frei Dinis é um homem de princípios rígidos: “O despotismo, detestava-o como nenhum liberal é capaz de o aborrecer; mas as teorias filosóficas dos liberais, escarnecia-as como absurdas, rejeitava-as como perversoras de toda ideia sã, de todo o sentimento justo, de toda a bondade praticável. Para o homem em qualquer estado, para a sociedade em qualquer forma, não havia mais leis que as do decálogo, nem se precisavam mais constituições que o Evangelho: dizia ele. Reforça-las é supérfluo, melhorá-las impossível, desviar delas, monstruoso. Desde o mais alto da perfeição evangélica, que é o estado monástico, há regras para todos ali, e não falta senão observá-las.” (p. 73) 5.2.PERSONAGENS 1. CARLOS Inicialmente a personagem aparece de maneira discreta e misteriosa despertando a curiosidade do leitor o qual manterá a leitura até elucidar os segredos que envolvem Carlos. De “olhos pardos e não muito grandes, mas de uma luz e viveza imensa” (p. 98) Carlos simboliza o liberalismo vitorioso e, recompondo-se do transe amoroso, toma rumo à trajetório de homem público. Personagem instável, ele divide-se entre o chamamento do amor e a fidelidade à causa social. Frei Dinis representa o mundo velho, um frade do Antigo Regime em conflito com um hovem liberal (Carlos): “Duvidar é o único princípio, enriquecer o único objetivo de toda essa gente. Liberais e realistas, nenhum tem fé: os liberais ainda têm esperança; não lhe há de durar muito. Deixem-nos vencer e verão” (p. 69). Por um lado, o percurso de desencantos amorosos com Júlia, Laura, Georgina, Soledade e Joaninha e, por outro lado, a atração pela causa social que se resolve na vitória do Liberalismo, mas Carlos acaba se degradando e, contaminado pelos males sociais, cede ao materialismo: “Quando calado e sério, aquela fisionomia podia-se dizer dura; a mais pequena animação, o mais leve sorriso a fazia alegre e prazenteira, porque a mobilidade e a gravidade eram os dois pólos desse caráter pouco vulgar e dificilmente bem entendido.” (p. 98) 4. D. FRANCISCA D. Francisca era uma velha solitária, infeliz, cega, que renunciou à vida material e tornou-se uma mulher temente a Deus e manipulada por Frei Dinis. 5. GEORGINA Georgina era uma generosa moça que se compadeceu do sofrimento de Carlos e por ele acabou se apaixonando. No entanto, ela percebeu que, mesmo se sacrificando ao extremo, não conseguiria o amor dele e, por isso, recolheu-se ao convento e tornou-se abadessa. Carlos vive uma trajetória semelhante à de Almeida Garrett, viajando, emigrando, envolvendo-se em questões políticas e problemas amorosos intensos, identificando-se também com os excessos do Romantismo e; ao mesmo tempo, desvirtuando-se deles em meio a reflexões e divagações que o fazem ver fadas e duendes como ocorre em Macbeth de Shakespeare. 6. SANTA IRIA/IRENE Santa Iria era uma freira de um convento duplo que se dedicou à vida espiritual e transcendente. Dela se originou o nome da cidade de Santarém. 2. JOANINHA Menina de dezesseis anos que não era bela, era gentil, elegante e desembaraçada, pois a natureza a fizera educada e equilibrada por si só. Nela, os vícios sociais inexistem e a pureza original caracteriza seu perfil: “Mas nesta foi a natureza que fez tudo, ou quase tudo, e a educação nada ou quase nada.” (p. 56) 7. BRITALDO Britaldo, filho do governador, nutria um amor incontrolável por Iria. Ele pode ser relacionado ao amor sentimental de Carlos, puro e obsessivo em relação a uma ou várias mulheres. 31 5.3 ESPAÇO E TEMPO III – Critica ao materialismo – Chegada à estalagem A primeira localização espacial a que o autor se refere no livro é o seu próprio quarto, em meio a constantes digressões do narrador: “Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo — entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.” (p.3). IV – Divagação sobre o filósofo e o ministro V – Receita para se fazer um drama – Transporte até Santarém na mula Encontrando-se em Lisboa, transferindo-se lentamente até alcançar seu destino, o narrador refere-se a várias outras cidades que encontra pelo caminho, até chegar à Santarém e a compará-la à Pompeia e Nínive. VI – Clássicos X Românticos – Século das Luzes X Século das Trevas Os locais santos referidos na obra representam distintamente a natureza saudável, alegre e refrescante da qual o homem de vida social necessita (a charneca e o Vale de Santarém), e a urbanização repleta de tradição e de elementos históricos (Santarém). No primeiro, a purificação do homem se conquista graças à beleza, simplicidade e harmonia do Vale: “A majestade sombria e solene de um bosque antigo e copado, o silêncio e escuri dão de suas moitas mais fechadas, o abrigo solitário de suas clareiras, tudo é grandioso, sublime, inspirador de elevados pensamentos. Medita-se ali por força; isola-se a alma dos sentidos pelo suave adormecimento em que eles caem... e Deus, a eternidade — as primitivas e inatas ideias do homem — ficam únicas no seu pensamento.” (p. 38) VIII – Crítica às guerras IX – Comparação entre as íliadas Já Santarém é um espaço urbano que completa e, simultaneamente, desilude o narrador, uma vez que a riqueza da memória do passado contrasta com a ruína galopante: “Santarém é um livro de pedra em que a mais interessante e mais poética parte das nossas crónicas está escrita. Rico de iluminuras, de recortados, de florões, de imagens, de arabescos e arrendados primorosos, o livro era o mais belo e o mais precioso de Portugal (...) As ruínas do tempo são tristes mas belas, as que as revolu ções trazem ficam marcadas com o cunho solene da história. Mas as brutas degradações e as mais brutas reparações da ignorância, os mesquinhos consertos da arte parasita, esses profanam, tiram todo o prestígio” (p. 141). XV – Frei Dinis e o Liberalismo Ressalte-se que o elemento edênico do Vale de Santarém projeta-se na personagem Joaninha, integrada e pertencente à esse meio e símbolo do espaço puro da Natureza: “E uns e outros respeitavam e adoravam a menina dos rouxinóis. Entre uns e outros por tácita convenção parecia estipulado que aquela suave e angélica figura pudesse andar livremente no meio das armas inimigas, como a pomba doméstica e válida a que nenhum caçador se lembra de mirar” (p. 94). XX – Um soldado desperta Joaninha. Era Carlos A narrativa da Menina dos Rouxinóis que se passa por volta de 1832 e transcorre em meio à guerra civil portuguesa, passa-se na região de Santarém, uma cidade situada à margem direita do Rio Tejo que foi mandada edificar por Abidis, rei da Espanha em 1100 a. C., sendo por ele denominada “Esca-Abidis” e seus habitantes até hoje conhecidos como escalabitanos. Fundada por volta de 100 a. C, passou pelos domínios romano “Praesidiu Julium” e “Scalabiscatrum”, visigótico “Santa Irene”, muçulmano “Xantarim”, leonês e português “Santarém”. Santarém foi conquistada por D. Afonso Henriques (primeiro rei de Portugal) em 1147, tendo se tornado mais tarde a residência da Corte e o lugar predileto dos trovadores. D. Dinis chamou-lhe “Paraíso de Portugal” e Fernão Lopes caracterizou-a como uma das grandes vilas que há no reino. XXIV – Carlos e Joaninha conversam sobre a avô e o frei VII – Crítica aos lisboetas e ingleses X – Início da Menina dos Rouxinóis – Interesse pela janela e pelos pássaros XI – Conversa com Yorick, personagem de Hamlet XII – Justificativas para a cor dos olhos de Joaninha XIII – Oposição aos frades XIV – Carlos desembarca no Porto XVI – História de Frei Dinis XVII – Dinis traz notícias de Carlos numa carta XVIII – D. Francisca diz que Carlos precisa saber a verdade XIX – Retirada de 11 de Outubro – Porque menina dos rouxinóis XXI – Outros soldados comentam sobre Carlos e Joana XXII – Carlos lembra-se de Georgina XXIII – Poesia de Carlos XXV – Carlos pede segredo a Joaninha XXVI – Referência a Macbeth e às bruxas XXVII – O autor chega Santarém XXVIII – Descrição do Palácio de Afonso Henrique XXIX – Trova justificando a formação de Santa Iria XXX – História de Santa Iria XXXI – Visita à Igreja de Alcaçóva (fechada) 6. QUADRO SÍNTESE POR CAPÍTULO CAPÍTULO ASSUNTO XXXII – Retorno ao capítulo XXV – Carlos ferido em batalha I – O porquê do livro – Partida na regata – Briga dos homens do norte X do sul XXXIII – Georgina opina sobre Frei Dinis XXXIV – Frei Dinis pede para Carlos matá-lo II – A viagem representa o progresso Portugal XXXV – D. Francisca revela a Carlos seu verdadeiro pai: Frei Dinis 32 XXXVI – Antecipação da conclusão países imaginários, fáceis de habitar, ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio. Meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem. Entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notícia de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias, entre o fogo e o amor. Então, meu coração também pode crescer. Entre o amor e o fogo, entre a vida e o fogo, meu coração cresce dez metros e explode. - Ó vida futura! nós te criaremos. Carlos Drummond de Andrade SENTIMENTO DO MUNDO Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor. Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado, eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto o pântano sem acordes. Os camaradas não disseram que havia uma guerra e era necessário trazer fogo e alimento. Sinto-me disperso, anterior a fronteiras, humildemente vos peço que me perdoeis. Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho desfiando a recordação do sineiro, da viúva e do microscopista que habitavam a barraca e não foram encontrados ao amanhecer esse amanhecer mais que a noite. XXXVII – História da Igreja do Santo Milagre XXXVIII – Visita à Ribeira – Comentários sobre módulos literários XXXIX – Visita ao colégio dos Jesuítas e a S. Domingos XL – Procissão das freiras – Mosteiro das Claras XLI – Autor deseja partir de Santarém XLII – Autor visita o túmulo de S. Fernando XLIII – Conversa de Garrett com Frei Dinis XLIV XLV XLVI XLII XLIII – Carta de Canos à Joaninha XLIX – O autor entrega a carta a Frei Dinis e parte para Lisboa. Mundo Grande Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor. Nele não cabem nem as minhas dores. Por isso gosto tanto de me contar. Por isso me dispo, por isso me grito, por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos. Sim, meu coração é muito pequeno. Só agora vejo que nele não cabem os homens. Os homens estão cá fora, estão na rua. A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava. Mas também a rua não cabe todos os homens. A rua é menor que o mundo. O mundo é grande. Tu sabes como é grande o mundo. Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão. Viste as diferentes cores dos homens, as diferentes dores dos homens, sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem… sem que ele estale. Fecha os olhos e esquece. Escuta a água nos vidros, tão calma. Não anuncia nada; Entretanto escorre nas mãos, tão calma! vai inundando tudo… Renascerão as cidades submersas? Os homens submersos - voltarão? Meu coração não sabe. Estúpido, ridículo e frágil é meu coração. Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas. (Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que homens se comunicam.) O Homem e o Mundo E as vozes do mundo inteiro. Falemos de Carlos Drummond de Andrade – mineiro, intelectual, funcionário público, jornalista, poeta. Drummond, porém, não é simplesmente um poeta (ou talvez o seja verdadeiramente), mas um profundo sensitivo da realidade, das pessoas e das coisas, “ espectador do mundo a sua volta”, como bem descreve Benjamim Abdala Júnior (1998). Amargo e triste, pois. Não se veste, entretanto, do um manto sublime de uma poesia hermética. Ao contrário, escreve para que as pessoas o entendam, suas palavras têm o cheiro do dia-a-dia, as imagens por ele construídas são concretas e verdadeiras. Classificado por Afrânio Coutinho em seu Introdução à Literatura no Brasil , como escritor da segunda fase ou segunda geração do Modernismo brasileiro, Drummond não escreveu apenas poemas, apesar de ser este o campo em que mais se destacou. Como cronista e contista, também foi admirado e respeitado. Itabira, a pequena cidade natal do poeta, no interior de Minas Gerais, e tema recorrente em seus escritos, nunca lhe saiu do pensamento nem dos poemas. Quando, no início de sua carreira, passou a viver em Belo Horizonte , Itabira transformou-se em “uma fotografia na parede./ Mas como dói!” Pelo próprio Drummond, a Itabira é atribuída a responsabilidade da formação de seu caráter, das principais características de sua personalidade e das suas atitudes ante o mundo: Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. (...) A vontade de amar, que me paralisa o trabalho vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, Outrora escutei os anjos, as sonatas, os poemas, as confissões patéticas. Nunca escutei voz de gente. Em verdade sou muito pobre. Outrora viajei 33 pode continuar a ser o túmulo de nossas idéias, mas antes a força generosa de que elas dimanem. Somos, finalmente, um órgão político. E, então, o caráter claramente modernista: “... temos um ideal? Ele se apóia no mais fervoroso nacionalismo. Longe de repudiar as correntes civilizadoras da Europa, intenta submeter o Brasil cada vez mais ao seu influxo, sem quebra de nossa originalidade nacional. Nascidos na República, assistimos ao espetáculo quotidiano e pungente de desordens intestinais, ao longo das quais se desenha nítida e perturbadora, em nosso horizonte social,uma tremenda crise de autoridade. Contra esse opressivo estado de coisas é que a mocidade brasileira precisa e deve reagir. Resta-nos humanizar o Brasil.” Não é, entretanto, em Alguma Poesia , seu primeiro livro, publicado em 1930, que Drummond lança-se à tarefa de, como disse, “humanizar o Brasil”. Ao contrário, críticos apontam, nesse livro, grandes doses de individualismo e sarcasmo envolvidos em uma atmosfera de crítica às aparências e convenções sociais. Torturado pelo passado, assombrado com o futuro, ele se detém num presente dilacerado por este e por aquele, testemunha lúcida de si mesmo e do transcurso dos homens, de um ponto de vista melancólico e cético. Mas, enquanto ironiza os costumes e a sociedade, asperamente satírico em seu amargor e desencanto, entrega-se com empenho e requinte construtivo à comunicação estética desse modo de ser e estar . Como afirma o crítico Silviano Santiago no prefácio da4ª edição do livro pela editora Record, “É sombria e pessimista a visão de mundo que se justapõe à esperança da revolução e da utopia”. Assim, Dor e Esperança são os temas básicos que regem os poemas de Sentimento do Mundo . Uma Dor, talvez, maior que a Esperança que a contempla, ou talvez esta não esteja tão próxima dos homens. A Dor é o “Sentimento do Mundo”; Dor de todos os homens e que se concentra em um só – o poeta: Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo mas estou cheio de escravos minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor (Sentimento do mundo) E, então, ele, o poeta, sente-se responsável pelas pessoas a sua volta; sofre por elas; sente-se elas . Como se vê em: É preciso casar João, é preciso suportar Antônio, é preciso odiar Melquíades , é preciso substituir nós todos. (...) (Poema da necessidade) E em: Eu sou a Moça-Fantasma que espera na Rua do Chumbo o carro da madrugada. (...) (Canção da Moça-Fantasma de Belo Horizonte) O “nós” é muito empregado em Sentimento do Mundo e é através do “nós” que surgirá a Esperança. Ressalte-se que ela – a Esperança – nunca está no presente, mas, sempre, no futuro, virá. Vem, assim como a Dor, personificada em imagens possíveis de se encontrar em nosso cotidiano: o sorriso do operário, que caminha firme (“Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido”); a aurora, que dissolve a noite que traz o sofrimento (“Aurora,/ entretanto eu te diviso, ainda tímida,/ inexperiente das luzes que vais acender”); o soluço de vida, que resiste ao verme roedor de lembranças: Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava Que rebentava daquelas páginas. (Os mortos de sobrecasaca) Assim, “os temas políticos, o sofrimento do ser humano e as guerras, a solidão, o mundo frágil, os seres solitários predominam. A dor humana está lá; o eu-lírico se resguarda e canta o outro, tão mais importante que ele próprio.” é doce herança itabirana . Largando uma futura carreira de farmacêutico ou ainda de professor de Geografia e Português, Drummond foi chefe de gabinete do Ministério da Educação e Saúde Pública no governo de Getúlio Vargas durante o Estado Novo e dedicou-se, com prazer, ao jornalismo, tendo trabalhado como auxiliar de redação, redator, colaborador nos principais jornais do Estado do Rio de Janeiro e até se arriscado, haja vista a época em que viveu, como co-editor do jornal Tribuna Popular , juntamente com Luís Carlos Prestes. Há quem diga que a única coisa que tirava Drummond do sério era dizer que ele era a favor do Estado Novo de Getúlio e que cooperava com o então Presidente da República: “Vim para o Rio em 1934 para trabalhar com um amigo pessoal do tempo de colégio, Gustavo Capanema [na época, ministro da Educação e Saúde Pública] (...). Em 1937 veio o golpe do Estado Novo, Capanema ficou no seu cargo e eu continuei a servi-lo da mesma maneira. Minhas relações com o palácio eram burocráticas: eu preparava pastas de documentos e as mandava para lá, não tinha nada a ver com a política do governo". E ainda: “Eu voto contra o governo. É o meu resto de anarquismo”. Aliás, foi exatamente esse afastamento das tendências governistas do Brasil e a aproximação com as idéias socialistas – o que sempre foi ao encontro de sua preocupação com as causas sociais do Brasil e do mundo – que levou Drummond a pedir demissão do gabinete do ministério e trabalhar no Tribuna Popular , de onde saiu, meses depois, por divergências de opiniões: queriam que ele escrevesse apenas poemas de caráter politicamente militante. Drummond não aceita. Assim, afasta-se do partido e é mal visto pelos ex-colegas. Em certa ocasião, escreve, ironicamente, em uma crônica intitulada Essa nossa classe média... : Oh, os medos da pequena burguesia! – dirá talvez algum iluminado, portador de alguma certeza. Essa melancólica e indecisa classe média! Pois já se vai tornando moda acusar a classe média de todas as fraquezas e vacilações em frente da vida – e até mesmo em face da História. ‘Vacilante' é o qualificativo que se pregou no paletó do modesto pequeno-burguês, como um rabo grotesco. Roberto Pontes (1999) afirma sobre a contradição social de Drummond: Também não há como ver em Drummond um poeta por excelência participante, do mesmo modo que nunca foi um escritor alienado. Tem ele o mérito de haver conseguido, apesar de haver pago alto tributo à sua condição de classe, realizar poesia referta (sic) de humanismo fecundante e tão necessária ao auto-reconhecimento dos seres humanos perdidos no fulcro do desconcerto capitalista. Apesar de sentir-se individualista (“...conhecendo meu individualismo talvez um pouco exacerbado, achei melhor dar a minha adesão aos ideais comunistas na prática, sem me comprometer entrando para os quadros partidários”) quanto a sua condição social, Drummond é referência de uma “poesia socializante , comprometida”, como classifica Afrânio Coutinho. O Homem e o Sentimento do Mundo Nos poemas de Sentimento do Mundo , além do traço preciso e corrosivo, próprio da escrita de Drummond, há uma imensa preocupação com os rumos que tomam as pessoas enquanto seres humanos. Escrito nos anos de 1935 a 1940, fase em que o mundo se recuperava da Primeira Guerra Mundial e em que já se encontrava iminente a Segunda Grande Guerra, com a imposição do Estado Novo de Getúlio Vargas e o crescimento do Nazi-fascismo , percebe-se em Drummond a luta, a contestação, pela palavra, das atrocidades que o mundo parecia aceitar (“Tudo acontece, menina / E não é importante, menina”). “Drummond lançou-se ao encontro da história contemporânea e da experiência coletiva, participando, solidarizandose social e politicamente, descobrindo na luta a explicitação de sua mais íntima apreensão para com a vida como um todo” (www.culturatura.com.br/autores/bra/carlosd.htm). Paradoxalmente, há, também, nessa época, o crescimento das indústrias e, com ela, a ampliação do proletariado no país. O mundo entra em crise em 1929 e a sociedade muda sua face. Junte-se a isso, o espírito modernista que rodeia o país desde a Semana de Arte Moderna, em 1922 – misto de protesto cultural e social, ao qual Carlos Drummond de Andrade aderiu com a publicação de A Revista , 1925: Ação intensiva em todos os campos: na literatura, na arte, na política. Somos pela renovação intelectual do Brasil que se tornou um imperativo categórico. Pugnamos pelo saneamento da tradição, que não 34 Drummond vê, há mais de sessenta anos, um mundo que ainda é o nosso – triste, marcado pelo medo ou pela aceitação de toda imperfeição como normalidade: Mundo que ele vê ora com uma inquietante pessoalidade, ora com ótica social; contemplação melancólica ou participante, mas sempre um processo de investigação da realidade, onde humor, ironia, lirismo, sentimentalismo, o tudo, o vazio, o nada, têm seu lugar, numa poesia grandiosa. ( ABDALA, Benjamim Jr , 1998) Como o operário, entretanto, caminha firmemente e, quem sabe, com sua sensibilidade e seu coração – às vezes maior que o mundo, às vezes pequeno demais, ensine-nos a dar as mãos. Conclusão O estudo sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade é lugar de constate pesquisa, da qual sempre há aspectos a serem considerados. E o presente estudo, que não pretende esgotar a temática, apresenta as seguintes conclusões. Em “Drummond e o Sentimento do Mundo”, a pessoa de Carlos Drummond de Andrade foi considerada a imagem do homem que sente o mundo, que o questiona e que, como todo ser humano, ora o aceita, ora o contesta, ora se desesperança com ele; um homem que absorve as dores e cores de todo o mundo, a começar por sua cidade natal, que por ser triste e “de ferro”, faz dele, também, um ser triste e de ferro. Em “O homem e o Sentimento do Mundo” percebe-se a intensa movimentação social e política motivada pelos acontecimentos da época em que foram escritos os poemas que constituem o livro em questão, dentre eles a II Grande Guerra e o holocausto; o homem, então, desesperançado da humanidade, precisava, ao mesmo tempo, lutar contra toda aquela situação. O poema Sentimento do Mundo pode, assim, ser identificado dentro da produção drummoniana como uma forma de protesto ou de insubmissão perante a realidade. finado. Escrevi-a com a pena da galhofa* e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio*.‖Ao Leitor - Leitor incluso ―(...) evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.‖ - O narrador ―(...) eu não sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço. autor defunto x defunto autor‖ - Sobre a composição da obra ―ALGUM TEMPO hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.‖Cap. I – O óbito do autor - A Morte ―(...) estando eu ocupado em preparar e apurar a minha invenção, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me tratei.‖ CAPÍTULO V / EM QUE APARECE A ORELHA DE UMA SENHORA ―Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.‖ Sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas - O emplasto Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens: pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas.Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do ruído, do cartaz do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me argúam esse defeito fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro, de outro lado, sede de nomeada. Digamos: --amor da glória. Cap. II – O emplasto - O delírio ―Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim,--flagelos e delícias, desde essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo.‖ Cap. VII - Delírio - Crítica ao leitor romântico ―Era fixa a minha idéia, fixa como... Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a Lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que • Folhetim – de março à dezembro de 1880 na Revista Brasileira. • Livro – 1881, edição da Tipografia Nacional • Novas edições: 1896 e 1899. • Inaugura o Realismo brasileiro. Estrutura do romance • Retrato da sociedade (RJ) do século XIX • Contado pelo ―defunto autor‖ – Rompimento da linearidade. • Digressões – tornam a narrativa mais lenta. • Análise psicológica dos personagens - Reflexão a respeito da condição miserável do homem. Ex.: Prudêncio. • Determinismo – Eugênia, a Flor da Moita; Dona Plácida, filha de um religioso corrompido. • Metalinguagem • Intertexto (uma narrativa multiplicada por narrativas) • Leitor incluso • Humor negro • Pessimismo Contexto de época • Março 1871 - Fim da Guerra do Paraguai • Setembro 1871 – Lei do Ventre Livre • Junho 1880 – A Sociedade Brasileira Contra a Escravidão é criada por Joaquim Nabuco. • Março 1884 – Ceará é o primeiro estado brasileiro a abolir a escravidão. • Setembro 1885 – Lei do Sexagenário: liberta os escravos com mais de 65 anos. • Maio de 1888 – Princesa Isabel assina a Lei Áurea, acabando oficialmente com a escravidão no Brasil. • 1889 – Proclamação da República. O que observar: - Dedicatória: ―Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas Memórias Póstumas." - Metalinguagem ―Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de 35 este livro é escrito com pachorra*, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera logo brincalhona, cousa que não edifica nem destrói, não inflama nem regala, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.‖Cap. IV – A idéia fixa CAPÍTULO 71 O senão do livro Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente,expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo,porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem... E caem! — Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-ia uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar... Heis de cair. Descrição das Personagens e Resenha de Memórias Póstumas de Brás Cubas A personagem central da Obras é Brás Cubas, um narradorpersonagem que na verdade é um defunto autor, pois começa a contar sua historia apos ter morrido. Quando vivo tratava-se de um homem rico, que menino era muito traquinas e até malvado, digamos assim, pois montava num negrinho (o Prudencio) e fazia dele seu cavalo, chegou a quebrar a cabeça de uma escrava por que esta não lhe deu doce, entre tantos outros feitos principalmente narrados no Capítulo 11 (O Menino é o Pai do Homem). Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Viveu diversas aventuras na adolescência, como seu namoro com a espanhola Marcela – mulher que adorava receber joias e outros presentes, tinha vários admiradores e que no final da obra teve um final trágico (primeiro ficou desfigurada por causa de um surto de Bexiga, e depois morreu magra e decrepita na maior miséria). No trecho abaixo veja um pouco da ironia do autor ao lembrar-se da amante: Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. O pai, que amava por demais o filho desde a meninice nunca repreendeu seus atos traquinas (chamava-o de brejeiro e dava-lhe beijos, e tinha sonhos de o filho ser alguém ilustre o manda estudar Direito em Portugal. Em Lisboa, ele vive muitas aventuras, forma-se e so’ retorna ao Rio de Janeiro quando recebe uma carta dizendo que sua mãe esta mal e quer vê-lo. Apos a morte da mãe, Cubas é instruído pelo pai a se casar e ingressar no ramo da política, a noiva indicada era Virgília, bela filha de Dutra um homem influente na época. Da-se um pequeno namoro, mas surge a figura de Lobo Neves que acaba arrebatando-lhe a noiva e consegue cargos administrativos, ele prometia fazer Virgília Baronesa/Marquesa (aqui o autor mostra que a mulher fora movida e atraída por interesses sociais), ambos se casam e Cubas, que ainda não a amava deveras, sente apenas despeito e vaidade ferida ao perder a namorada. Neste ínterim, Brás Cubas vai visitar Dona Eusébia (que em outro tempo fora flagrada, pelo menino Cubas, beijando um senhor casado, Doutor Vilaça, numa Moita) e encontra-se com sua filha Eugenia, chamada por ele maliciosamente como a Flor da Moita, ha’ um certo flerte entre os moços, mas este finda-se quando Cubas descobre que ela é coxa. Veja a reflexão do narrador no capítulo 33 (Bemaventurados os que nao descem): O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa,de noite, e não atinava com a solução do enigma Apos os desfortúnios (perda da noiva e da candidatura) do filho, o pai de Brás morre. Segue-se uma briga entre irmãos (Brás e Sabina, já casada com Cotrim) sobre os bens da Herança, a qual fara’ com que fiquem brigados por um bom tempo. O narrador passa por uma fase, que se repetira’ no final do romance, de vazio combinado com orgulho e individualismo. Veja reflexão do autor no capítulo 49 (A Ponta do Nariz): A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo. Procriação, equilíbrio. Quando Virgília volta de São Paulo, casada com Lobo Neves, Cubas a reencontra num baile, dançam uma valsa e por fim acabam se apaixonando. Fica claro, no capítulo 53 (…) como se deu esse amor: Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias e pecas. O nosso amor era daquelas; brotou com tal ímpeto e tanta seiva, que, dentro em pouco, era a mais vasta, folhuda eexuberante criatura dos bosques. Complementado pelo capítulo 56 (Momento Oportuno): Um dia vimo-nos, tratamos o casamento, desfizemo-lo e separamonos, a frio, sem dor, porque não houvera paixão nenhuma; mordeu-me apenas algum despeito e nada mais.Correm anos, torno a vê-la, damos três ou quatro giros de valsa, e eis-nos a amar um ao outro comdelírio. A beleza de Virgília chegara, é certo, a um alto grau de apuro, mas nós éramos substancialmente os mesmos, e eu, à minha parte, não me tornara mais bonito nem mais elegante. Quem me explicará a razão dessa diferença? Assim, Brás Cubas e Virgília, vivem momentos de amor e perigo, afinal era uma relação de traição, chegam até a alugarem uma casa para se encontrarem a qual era cuidada por Dona Placida (filha de uma Doceira e de um cônego - que apenas sofre na vida). Resumindo bastante, seguem-se mais fatos como a eleição de Lobo Neves a Presidência de uma província no Norte (mas como foi decretada num dia 13, por superstição Neves a recusa); a morte de Viegas, um Velho rico que Virgília bajulava a fim de faze-lo deixar uma herança a seu filho, o qual morre sem deixar-lhe nada e sendo ganancioso até o ultimo suspiro; Cubas reencontra-se com Quincas Borba, amigo de infância que acaba por desenvolver uma Filosofia (o Humanitismo); tentativa de Sabina de arrumar uma noiva para Cubas (filha de Damasceno, chamada Eulália que terá um triste fim por ser assolada com um epidemia e morrer aos 19 anos); ocorrem também suspeitas públicas e de Neves quanto a traição. Por fim, Lobo Neves aceita um nova candidatura a Presidência, Virgília e Cubas separam-se e desta vez foi o fim do romance entre eles – o autor mostra que no final nem sentiu tristeza, foi algo como um ponta de alívio e saudade. O Romance é finalizado por uma sequencia de desatinos na vida de Cubas, que não foi ministro, não alcançou o sucesso na politica, nem no emplasto contra Hipocondria, nem se casou (Sequencia mostrada no ultimo capítulo - Das Negativas). Percebe-se assim como sua vida fora vazia e despropositada, mas que pelo menos não passou a diante o legado da miséria humana: Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro,não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna denão comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem asemidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que nãohouve míngua nem sobra, e conseguintemente que sai quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegara este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulode negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria Características da Obra; Análise e Comentários do Romance Realista Memórias Póstumas (…) * Inovações da Obra: quanto a Temática, a Estrutura da Narração e a Linguagem. O autor abandona o romantismo, investe na complexidade dos indivíduos que são retratados sem nenhuma idealização (Machado mergulha na alma humana, desvendando seus vícios, virtudes e defeitos). A lógica narrativa do romance é determinada não pela cronologia dos fatos, mas pelo encadeamento de reflexões do personagem. Outra inovacao foi a dedicatória do livro: AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES DO MEU CADÁVER DEDICO COMO SAUDOSA LEMBRANÇA ESTAS MEMÓRIAS PÓSTUMAS * Intertextualidade - Machado de Assis faz inúmeras referencias em sua Obra, como a Shakespeare, Virgílio, Voltaire e tantos outros. São citações a pensamentos, filosofias e romances escritos. Vê-se aqui uma das tantas influências que o autor sofreu da literatura de Almeida Garrett, especialmente comparada a obra Viagens na Minha Terra, pois 36 ambos desenvolvem diálogo com o leitor, intertextualidade, metalinguagem, digressões, ironia e críticas. * Digressões e Metalinguagem - através das digressões (ou seja interrupções do fluxo narrativo por devaneios, reflexões, relatos da memória, etc) o defunto autor fornece informações para conhecer a visão de mundo de um homem que passou a vida sem realização nenhuma, apenas ao sabor de seus desejos. Ao usar a metalinguagem, o autor interage com o leitor dialogando diretamente com ele, assim convida-o a refletir sobre a estrutura da obra e a perceber dois níveis de leitura: a que revela diretamente o personagem e a que o faz objeto de crítica do autor. * Ironia e Crítica - são marcas da obra madura de Machado de Assis, trata-se de um recurso que o autor utiliza para fazer o leitor desconfiar das declarações, dos pensamentos e das conclusões do narrador Brás Cubas, bem como um instrumento de critica aos valores adotados pelos homens (como a Opinião, a Formalidade, etc). * Humanitismo – filosofia desenvolvida por Quincas Borba (que vai tornando-se louco progressivamente) a qual prega que tudo o que acontece na vida faz parte de um quadro maior de preservação da essência Humana. No contexto do romance, o Humanitismo convém a Brás para justificar sua existência vazia, e a Quincas da’ uma ilusão de descoberta do sentido da vida. Segundo críticos, o Humanitismo é ” uma caricatura que Machado de Assis faz do Positivismo e do Evolucionismo, teorias científicas e filosóficas em voga na época, que atribuem sentido de evolução mesmo `as fatalidades da vida. * Ha’ uma certa dose de Determinismo (as origens e meio em que as pessoas vivem as propulsionam a certos destinos), como exemplo temos o caso de Dona Placida, fruto de uma relação vulgar e que vive sempre `a miséria. Dessa conjunção de luxúrias vadias brotou Dona Plácida. E de crer que Dona Plácida nãofalasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: – Aqui estou. Para queme chamastes? E o sacristão e a sacristia naturalmente lhe responderiam: – Chamamos-te para queimar osdedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina,adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada,amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lamaou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia. * Entre os Capítulos que considero Principais e marcantes, temos o cap. 1 (Óbito do Autor) que abre o romance com a morte do personagem-narrador que reflete sobre ser um autor defunto ou defunto autor, além das circunstancias da morte. Tem-se aqui um estilo inovador na literatura, tanto pela temática como pela forma da escrita. O Cap. 7 sobre o Delírio em que o autor reflete sobre o homem, sua existência, o passar dos seculos e a miséria humana na perseguição inútil da Felicidade. Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandoraescutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, – de umriso descompassado e idiota.- Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, - talvez monótona - mas vale a pena.Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima oespetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digereme; a coisa é divertida, mas digere-me.A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como osHebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura. Cap 71 – O senão do Livro – em que o autor dirige-se aos leitores dizendo que o defeito do livro é na verdade dos leitores que tem pressa de lê-lo, fazendo assim um crítica direta ao estilo romântico dos folhetins que eram marcados pela ação e clímax. Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente,expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Maso livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque omaior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas anarração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam àdireita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem. Memórias de um Sargento de Milícias INTRODUÇÃO Manuel Antônio de Almeida, contemporâneo de José de Alencar, Casimiro de Abreu, dentre outros, destaca-se pelo interesse e confusão que desperta nos estudiosos da escola literária que sua obra é enquadrada, o Romantismo. Esse artigo visa discutir uma classificação literária convincente da obra de Manuel Antônio de Almeida, visto que esse texto tem causado polêmica quanto a ser um romance romântico, como é freqüentemente classificado. Esse estudo foi feito por meio da análise da linguagem, comportamentos sociais e estilo, contidos em fragmentos do romance referido. A obra é todo um conjunto de particularidades do autor, que desenvolve a histórica sob a ótica de um estilo literário diferente àquele vigente. Memórias de um sargento de Milícias se configura como um desvio na história do romance brasileiro, pois se lança com um estilo diferente, renovado, rompendo com a tradição romântica. Tendo em vista tal objetivo, nos atemos ainda ao estudo do Romantismo enquanto escola literária, a fim de identificarmos a ausência de suas particularidades na obra. Como suporte teórico para a elaboração desse estudo, recorremos a alguns estudiosos sobre o autor, obra e escola literária. A saber: Mário de Andrade (1978), Antônio Cândido (1978), José Veríssimo (1978), Alfredo Bosi (1994), e Afrânio Coutinho (s/d). Nosso artigo está dividido em duas sessões: na primeira, MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS E A CRÍTICA, levantaremos a crítica de três estudiosos da obra. A segunda, UM ROMANCE ANTI-ROMÂNTICO, demonstraremos a ausência de características românticas na referida obra, concretizando o objetivo central do nosso artigo. I - MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS E A CRÍTICA. A relação estabelecida entre Memórias de um sargento de milícias é, no mínimo, curiosa. Comenta-se que a obra, inicialmente publicada em folhetim, não foi sequer resenhada. O sucesso do romance só teve seu início, de fato, com o início do Realismo, suscitando, ao longo desse tempo, opiniões adversas sobre o referido romance, voltadas em sua grande parte para a análise da estilística. "Esse estilo incorreto, descosido e solto, de uma simplicidade que é trivial, de um caráter sem feição, nem relevo, não é à época imputável e sendo próprio ao seu autor é o maior demérito de um livro que, e nenhuma ironia encobre o meu pensamento, para ser um dos mais belos da nossa literatura só lhe falta ser bem escrito" (José Veríssimo, 1978:294). Para Veríssimo, Memórias não deve ser considerado uma obraprima, devido às imperfeições, por ele reconhecidas, existentes no livro: a ausência de uma linguagem original na sua novidade, falta do talento do autor em observar, e presença de uma forma não artística, não admirável. Entretanto, embora seja relevante o comentário de José Veríssimo, comprovaremos a afirmação dada anteriormente, quanto às divergências de opiniões suscitadas pelo livro. "É aleive tradicional atirado sobre o artista, que ele escrevia mal. A expressividade do trecho acima transcrito não é de mau escritor, apesar da abundância inútil dos possessivos (...) Era sim um desleixado de linguagem, mas nem por isso deixava de ser um vigoroso estilista" (Mário de Andrade, 1978: 310). As opiniões adversas tampouco restringem-se a teóricos diferentes. O próprio Veríssimo afirma que, apesar dessas fraquezas e defeitos, o livro apresenta qualidades que o cedem um lugar distinto: a feição profundamente brasileira. "Apesar disso, não obstante estas imperfeições da linguagem e da ação, e menores máculas que não fora difícil esmiuçar, eu considero-o um dos mais característicos da nossa literatura, um dos mais nacionais que tenhamos, um dos que menos intencional e mais naturalmente nos dão aquela impressão de nacionalismo a que no começo aludi". (José Veríssimo, 303). Esse caráter de literatura nacional, observado por Veríssimo, se dá pelo fato de Memórias de um sargento de milícias ser uma representação da sociedade carioca, tratando com objetividade os seus costumes e hábitos, sendo atribuído à obra, portanto, a idéia de romance documentário. Esta riqueza de costumes é considerada, por 37 Mário Andrade, o grande mérito de Memórias de um sargento de milícias.Quanto a esse aspecto, Andrade observa a reprodução dessa tradição no referido romance. O romance está cheio referências musicais de grande interesse documental. Enumera instrumentos, descreve danças, conta o que era "a música de barbeiros", nomeia as modinhas mais populares do tempo". (Mário de Andrade, 1978: 307). Essas análises, por diversas vezes adversas, culminam em um ponto: entender a real classificação literária de Memórias de um sargento de milícias, por sinal o foco do nosso trabalho. É fato que a classificação literária de um livro concede uma prévia sobre o estilo e ideologia do mesmo. O grande marco de Memórias consta aí, visto que, a respeito do que já foi dito, a obra pouco tem a ver com a escola literária na qual foi enquadrada. O romance estudado é marcado pelas contradições, presentes em vários aspectos, sendo necessário ressaltar, nesse momento, as divergências existentes entre os críticos, visto que é o título da nossa sessão. Esses contrastes fazem de Memórias uma obra especial, impregnada de um mistério, uma indefinição, que agrada ou não seu leitor. Essa capacidade de gerar polêmica é o grande trunfo de Manuel Antônio de Almeida em seu único romance. Após uma breve análise do nosso objeto de estudo, seguido sob a visão de dois conceituados teóricos, José Veríssimo e Mário de Andrade, convém partir para a sessão II, em que encontra-se o núcleo de nosso artigo. -Hein?(...) Pois agora saiba, porque eu cá não tenho papas na língua, que o tal seu afilhado das dúzias é um pedaço de malcriadão grande, que há de desonrar as barbas de quem o criou..." (Idem, p.58) Quanto à linguagem, percebe-se ainda a interação entre leitor e narrador. Este, por sinal, é onisciente e, apesar de tecer comentários quanto às situações, não interfere na história do romance. Outro ponto a ser comentado é a questão da mulher na obra. Aqui extermina-se a mulher idealizada. Isto se reforça com a própria descrição de Vidinha, que veio a se tornar namorada de Leonardo. "Vidinha era uma rapariga que tinha tanto de bonita como de movediça e leve: um soprozinho por brando que fosse, a fazia revoar, e voava e revoava na direção de quantos sopros por ela passassem; isto quer dizer, em linguagem chã e despida dos trejeitos da retórica, que ela era uma formidável namoradeira, como hoje se diz, para não dizer lambeta, como se dizia naquele tempo" (Idem, p.149). Até o momento, evitamos usar neste artigo a expressão "herói" para designar o nosso personagem principal, o Leonardo. Entramos em um outro ponto de análise da obra. O personagem está mais para um antiherói. Por diversas vezes sua figura é ofuscada pela de outros personagens da trama. Inicialmente é apontado como traquina, desordeiro e vingativo. Deixa-se levar pelo meio em que vive. Há uma ruptura com a idéia do herói idealizado no Romantismo. Leonardo seria o primeiro malandro brasileiro. Uma característica forte é a malandragem contida nos personagens, e não apenas no nosso anti-herói. Segundo Antônio Cândido, a obra é estruturada com a relação/oposição entre Ordem e Desordem, apresentando uma análise crítica e irônica dos costumes morais. Nesse sentido, a ordem seria uma representação da elite, que controla as regras. Contrapondo esse conceito, estaria a desordem, ocupada pelas camadas populares. A malandragem, viria não como adjetivo próprio de uma determinada classe, mas sim uma característica própria de todos. A ordem e a desordem seria caracterizada pelo bem e pelo mal. É importante ressaltar a presença das camadas populares na obra, que é uma caricatura, um reflexo da sociedade da época. Isso se comprova quando percebemos que boa parte dos personagens não possuem nomes próprios, são identificados pela profissão. A exemplo temos major Vidigal, O Reverendo, a parteira, o barbeiro, Maria-dahortaliça. Alguns teóricos insistem em afirmar que Memórias de um sargento de milícias se configura como um romance avant la lettre, precursor do Realismo, visto que o romance referido reflete uma suposta realidade. No entanto , não se encontram nas Memórias algumas características realistas não são evidenciadas no romance: objetividade do narrador, a análise psicológica, a busca pela perfeição formal, nos levando a descartar então a possibilidade de enquadrar o livro no Realismo. II- O ANTI-ROMANTISMO DE MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS Na segunda metade do século XIX, o Brasil passava por mudanças políticas e econômicas. Foi nesse contexto histórico, meio à independência já consolidada, que ganha força o Romantismo no Brasil. Como toda escola literária, o romantismo trouxe consigo uma série de características próprias: imaginação criadora, subjetivismo, evasão, senso de mistério, consciência da solidão, reformismo, sonho, fé, exagero, sentimentalismo, ânsia de glória, importância da paisagem, gosto pelas ruínas, gosto pelo noturno, idealização da mulher, função sacralizadora da arte. A partir daí, surge a geração ultra-romântica, integrada por Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, entre outros. Em meio às esses romances, Manuel Antônio de Almeida publica Memórias de uma sargento de milícias. Embora escrito em pleno Romantismo, Memórias apresenta características diferentes a essa escola literária. Manuel Antônio de Almeida transgride as concepções literárias da época. O primeiro fato a ser observado na obra é a ausência do sentimentalismo exagerado. "Tratava-se de uma cigana; o Leonardo a vira pouco tempo depois da fuga da Maria, e das cinzas ainda quentes de um amor mal pago nascera outro que também não foi a esse respeito melhor aquinhoado; mas o homem era romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia naquele tempo; não podia passar sem uma paixãozinha." (idem, p. 31). Percebe-se nesse excerto da obra uma desvalorização do sentimentalismo, do ultra-romantismo, caracterizados pela ironia, tendendo para a gozação. Essa, por sinal, é uma tendência do livro, que segue uma linha cômica. O autor chega, num marco de sua ousadia, a satirizar o início do romance dos pais do personagem principal. Sobre esse assunto, Afrânio Coutinho afirma mais. "Muito se tem dito acerca da sua natureza de romance realista avant la lettre, de sua condição de precursor da ficção realista. Na verdade, essa alegação é um esforço de supervalorização a partir de um nacionalismo mal-entendido, que procura emprestar ao romancista brasileiro uma antecipação do realismo à francesa." Memórias de um sargento de milícias é apresentado, neste artigo, como um romance anti-romântico. No entanto, ainda que descaracterize ou contradiga nosso artigo, é necessário afirmar que o final da obra assume, no final, uma postura romântica, quando Leonardo assume seu posto e casa-se com Luisinha. Por essa razão, alguns estudiosos afirmam que o romance é romântico sim, apenas assume uma postura mais excêntrica. CONSIDERAÇÕES FINAIS É fato que Memórias de um sargento de milícias foge às tendências do Romantismo, como geralmente é classificado. Essa classificação só é plausível quando analisa-se a época da publicação, em uma análise puramente cronológica. Do ponto de vista da estilística, é necessário que haja uma reclassificação da obra, que tende para o anti-romantismo. Essa ausência de Romantismo é evidenciado a todo o tempo, seja na linguagem ou nos comportamentos sociais. Apesar do final supostamente romântico, é impossível enquadrar a obra no Romantismo, visto que há a ausência de características marcantes deste, como o excesso, subjetivismo, fantasia. Memórias, ao "(...) O Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu envergonhada com o gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda." (Idem, p.17). Além da sátira, é notável a presença de uma linguagem desleixada. Não lhe escapava pobres, nobres ou religiosos. A antiga linguagem rebuscada é substituída pela linguagem simples, coloquial, uma mera reprodução da fala dos personagens, sem o excessivo cuidado do autor em torná-la rebuscada, conferindo à narrativa um tom despretensioso e espontâneo. Pela primeira vez na literatura brasileira a língua falada é reproduzida naturalmente. "- Já... Já... senhora intrometida com a vida alheia... já sabe o padrenosso, e eu faço rezar todas as noites um pelo seu defunto marido que está a esta hora dando couces no inferno!... 38 contrário, é lacônico, objetivo, realista, não sendo este último a escola literária, mas sim adjetivo. Muito especula-se na necessidade de enquadrar o romance no Realismo. No entanto, diante das diferenças técnicas e ideológicas, essa é uma classificação descabida. O que sabemos, e isso é certo, é eu necessitamos de uma reclassificação convincente da obra Memórias de uma sargento de milícias. Em todo o caso, em nosso artigo, devido às particularidades do romance em relação à estilística, preferimos encerrar considerando o livro apenas como anti-romântico, ao invés de enquadrá-lo em alguma escola literária. Leonardo queria uma festa refinada, mesmo com dificuldade em achar pares. Levantaram: uma mulher gorda, baixa e matrona, sua companheira, cuja figura era a mais completa antítese da sua, um colega do Leonardo, miudinho e pequenino, com ares de gaiato e o sacristão da Sé, alto e magro, com pretensões de elegante. Enquanto compadre tocava o minueto na rabeca, o afilhadinho acompanhava cada arcada com um guincho e um esperneio, fazendo o compadre perder, várias vezes, o compasso. Aos poucos o minueto foi desaparecendo e a coisa esquentou, chegaram os rapazes da viola e machete; logo, a coisa passou de burburinho para gritaria e algazarra, que só parou quando perceberam que o Vidigal estava por perto. Resumo O narrador, baseando-se em uma história contada por um sargento de milícias aposentado, adota a postura de contador de histórias para narrar os costumes e acontecimentos de mais ou menos cinqüenta anos atrás. Logo, o narrador não viveu na época das estripulias de Leonardo. A festa acabou tarde. A madrinha foi a última a sair, mas antes colocou um raminho de arruda no pimpolho. II – Primeiros infortúnios - O narrador, mais um vez, inclui o leitor na narrativa, chamando-o para pularem alguns anos desde o batizado do herói e irem encontrá-lo com sete anos, mas antes avisa que durante todo esse tempo o menino não desmentiu aquilo que já se anunciava, ou seja, desde o nascimento já atormentava: ainda bebê era o choro, mas assim que se pôs a andar era um flagelo, quebrava e rasgava tudo o que podia; o que mais gostava era do chapéu do pai e sempre que podia por-lhe as mãos, punha-lhe dentro tudo o que encontrava. Quando não traquinava, comia. Maria não lhe perdoava, tanto que o menino trazia uma região do corpo bem maltratada, mesmo assim ele não se emendava, era teimoso, suas travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas. Foi assim que o herói chegou aos sete anos. I – Origem, nascimento e batismo - É a apresentação do protagonista Leonardo. O narrador, baseando-se na história que um sargento de milícias aposentado lhe contou, narra a vida e os costumes do Rio de Janeiro na época em que D. João VI esteve no Brasil, daí iniciar com: Era no tempo do rei. – volta a um passado não muito distante. No Rio de Janeiro, na rua do Ouvidor, havia um local em que os meirinhos se reuniam, daí o nome o canto dos meirinhos, os meirinhos da época em que vivia o narrador, Segunda metade do século XIX, eram apenas uma sombra caricata daqueles do tempo do rei, gente temida e temível, respeitada e respeitável e a sua influência moral era a de formarem um dos opostos da cadeia judiciária; mas além da influência moral tinham também a influência que derivava de suas condições físicas, que é o que falta nos meirinhos de hoje (época em que vivia o narrador da obra), estes são homens como quaisquer outros, confundem-se com qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição; já os da época do rei eram inconfundíveis tanto no semblante quanto no trajar: “sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadachim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu armado. Nesta época ele podia usar e abusar da sua posição. Como a mãe, Maria, sempre fora saloia, o pai, Leonardo, suspeitava de que estava sendo traído, pois por diversas vezes viu um certo sargento se esgueirando e enfiando olhares curiosos janela adentro. Outras vezes estranhou que um certo colega sempre ia procurá-lo em casa; mas o mais grave foi, não só deparar-se várias com um certo capitão do navio de Lisboa junto de sua casa, como também, ao entrar em casa, vê-lo fugir pela janela. Não agüentou, cerrou os punhos e tremendo com todo o corpo, gritou: — Grandessíssima!..., em seguida, saltou sobre Maria. Ela saltou para trás, pôs-se em guarda e sem temer advertiu-o: — Tira-te lá, ó Leonardo! Como a sua resistência, frente ao ódio de Leonardo, era inútil, começou a correr e pedir socorro ao compadre Barbeiro que ocupado, ensaboando a cara de um freguês, nada pôde fazer e ela, como única opção, encolheu-se em um canto. Após a comparação, o narrador chama o leitor para participar da narrativa, usando para isso, a primeira pessoa do plural: “Mas voltemos à esquina , à abençoada época do rei”, e lá apresenta-lhe a equação meirinhal; um grupo de meirinhos conversando sobre tudo que era lícito conversar: vida dos fidalgos, fatos policiais e astúcias do Vidigal. No grupo destacava-se Leonardo-Pataca, uma rotunda e gordíssima figura de cabelos brancos e carão avermelhado; era moleirão e pachorrento; como era moleirão, ninguém o procurava para negócios e ele nunca saía da esquina, passava os dias sentado, tendo a sua infalível companheira depois dos cinqüenta, a bengala. Como sempre se queixava dos 320 réis por citação, deram-lhe o apelido de Pataca. O menino, no maior sangue-frio, enquanto rasgava as folhas dos autos que o pai havia largado ao entrar, assistia à mãe que apanhava. Quando o pai estava se acalmando, viu a obra do filho e tornou a se enfurecer: suspendeu o filho pelas orelhas, fazendo-o dar meia volta; em seguida ergueu o pé direito e dizendo que o menino era filho de uma pisadela e de um beliscão, assentou-lhe em cheio sobre os glúteos, atirando-o a quatro braças de distância. Cansado de ser o Leonardo algibebe de Lisboa viera ao Brasil e não se sabe por proteção de quem havia alcançado o posto de meirinho. Ainda a bordo do navio, conhecera Maria da hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitona. Eles se conheceram quando ela estava encostada à bordo do navio e ele, ao passar, fingiu-se de distraído e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. O menino ergueu-se rapidamente e em três pulos estava dentro da loja do padrinho; nem bem havia entrado, esbarrou na bacia de água com sabão que estava nas mãos do padrinho e acabou batizando o freguês com toda aquela água. O afilhado apontou o problema e o padrinho, após desculpar-se com o freguês, resmungou: — Ham! resmungou; já sei o que há de ser... eu bem dizia... ora ai está!... e foi acudir o que acontecia. De beliscões e pisadelas, tornaram-se amantes e quando saltaram em terra ela começou a sentir certos enojos. Os dois foram morar juntos e sete meses depois, manifestaram-se os efeitos da pisadela, nasceu o herói dessa história, um formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão. Assim que nasceu, mamou duas horas seguidas, sem largar o peito. Por estas palavras vê-se que ele suspeitara alguma coisa; e saiba o leitor que suspeitara a verdade. - Não se pode deixar de perceber nesse fragmento que o narrador conversa com o leitor, chamando-o para a narrativa. O compadre já sabia o que estava acontecendo pois era comum, na época, espionar a vida alheia, logo, conhecia todas as visitas da comadre. Os padrinhos de batismo foram a madrinha parteira e o compadre barbeiro, foi uma festança; o compadre trouxe a rabeca e todos dançaram o fado e apesar da dificuldade em encontrar pares, o minueto; 39 O barbeiro entrou na casa do compadre Leonardo e ao perguntarlhe se havia perdido o juízo, ele respondeu-lhe Ter perdido a honra. Maria apareceu e sentindo-se protegida pelo compadre, pôs-se a zombar e a xingar toda a classe masculina; assim que acalmou o segundo “round” de murros, enquanto ela chorava em um canto, Leonardo, com olhos e bochechas vermelhas, juntou os papéis rasgados, a bengala e o chapéu e saiu batendo a porta. Era de manhã. cômodos e a mobília compunha-se de dois ou três assentos de paus, algumas esteiras, uma caixa enorme de pau que servia para várias coisas: mesa de jantar, cama, guarda-roupa e prateleira. Quem morava nessa tapera não era o Leonardo, mas sim um feiticeiro, um caboclo velho, que conforme crença da época, tinha por ofício dar fortuna. Não era só a gente do povo que acreditava, mas também muita gente da alta sociedade o procurava para comprar a felicidade pelo cômodo preço da prática de alguma imoralidades e superstições. À tarde quando o compadre retornou à casa, decidido fazer as pazes com Maria, ela não estava mais lá, havia fugido com o capitão do navio de Lisboa. Dentre a gente do povo que o procurava em busca de fortuna, temos o Leonardo Pataca por causa das contrariedades que sofria com um novo amor. Era uma cigana que Leonardo conhecera logo após a fuga de Maria, isso porque ele era romântico - termo que na época do narrador significa babão, já na época de Leonardo Pataca significava que ele não podia passar sem uma paixãozinha. Como a sua profissão rendia não lhe era difícil conquistar a posse do adorado, mas a fidelidade, a unidade no gozo, que era o que sua alma aspirava, isso não conseguira pois a cigana era tão saloia quanto Maria - da - Hortaliça, esta fugira com outro com a desculpa de saudades da pátria, mas a outra não eram saudades, o que fez Leonardo buscar meios sobrenaturais para consegui-la de volta, já que os meios humanos movidos por súplicas não funcionaram. Leonardo saiu sem falar nada e o pequeno ficou com o Compadre Barbeiro. III – Despedidas às travessuras - O pequeno, enquanto se achava novato na casa do padrinho, portou-se com sisudez e seriedade, mas assim que foi se familiarizando com o novo ambiente, começou a pôr as manguinhas de fora; mesmo assim, o padrinho estava cego de afeição pelo menino, tanto que por pior que fosse a travessura do garoto ou mal-criação, ele achava graça dizendo serem atitudes ingênuas. A atitude do homem era natural, visto que ele já tinha 50 e tantos anos, nunca tinha tido afeições; passara sempre só, isolado; era verdadeiro partidário do mais decidido celibato. Logo à primeira afeição que fora levado a contrair sua alma expandiu-se toda inteira, e seu amor pelo pequeno subiu ao grau de rematada cegueira. O seu desespero era tamanho que se entregou de corpo e alma ao caboclo da casa do mangue, além de contribuir com dinheiro, já ter sofrido fumigações de ervas sufocantes, tragar bebidas enjoativas; decorar milhares de orações misteriosas, que era obrigado a repetir muitas vezes por dia; tinha também que depositar quase todas as noites em lugares determinados quantias e objetos com o fim de chamar em auxílio, dizia o caboclo, as suas divindades; apesar de tudo isso a cigana resistia ao sortilégio. A última prova para a reconquista foi marcada para a meia-noite; à hora marcada Leonardo encontrou à porta, o nojento nigromante que não permitiu que ele entrasse vestido, obrigou-o a trajar-se à moda de Adão no paraíso e após cobri-lo com um manto imundo, abriu-lhe a entrada. Este, aproveitando-se da imunidade em que se achava por tal motivo, fazia tudo quanto lhe vinha à cabeça. O menino era de fato endiabrado: várias vezes sentado na loja divertia-se em fazer caretas aos fregueses quando estes se estavam barbeando. Uns riam e outros se enfureciam, do que resultava que saíam muitas vezes com a cara cortada, com grande prazer do menino e descrédito do padrinho. Outras vezes escondia em algum canto a mais afiada navalha do padrinho, e o freguês levava por muito tempo com a cara cheia de sabão mordendo-se de impaciência enquanto este a procurava; ele ria-se furtiva e malignamente. Em casa, nada ficava inteiro por muito; pelos quintais atirava pedras aos telhados dos vizinhos; sentado à porta da rua, entendia com quem passava e com quem estava pelas janelas, de maneira que ninguém por ali gostava dele. O padrinho porém não se dava disto, e continuava a querer-lhe sempre muito bem. Desempenhando o papel de pai, passava às vezes, as noites fazendo castelos no ar a seu respeito; sonhava-lhe uma grande fortuna e uma elevada posição, e tratava de estudar os meios que o levassem a esse fim. Queria o melhor para o menino, já que havia se arranjado na vida, pensava até em enviá-lo para Coimbra, (como um babeiro havia se arranjado na vida e conseguido dinheiro para isso, segundo o narrador, é assunto para outra história). Segundo o barbeiro, a melhor profissão para o menino seria a de clérigo. Lá dentro, após ajoelhar-se e rezar em todos os cantos da casa, Leonardo aproximou-se da fogueira, quatro figuras saíram do quarto e foram juntar-se a eles e todos dançavam sinistramente ao redor da fogueira quando de repente bateram levemente a porta e pediram para abri-la, isto fez com que todos de dentro se sobressaltassem: era o major Vidigal. V – O vidigal - Nessa época ainda não estava organizada a polícia da cidade, portanto o major era rei absoluto, era o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas. Após ruminar por muito tempo essa idéia, certa manhã, uma Quarta-feira, chamou o pequeno, então com 9 anos, e disse-lhe que deveria se fartar de travessuras até o resto da semana, dali em diante, só aos domingos, após a missa. O pequeno levou a fala do padrinho ao pé da letra e achou que era uma licença ampla para fazer tudo o que quisesse, fosse bem ou mal. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial. Entretanto, frente aos costumes e acontecimentos da época, ele não abusava muito de seu poder, e o empregava em certos casos muito bem empregado. Era um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar sempre baixo, os movimentos lentos, e voz descansada e adocicada. Apesar deste aspecto de mansidão, não se encontraria por certo homem mais apto para o seu cargo inquisidor. Ao anoitecer, sentado à porta, o padrinho viu de longe um acompanhamento alumiado pela luz de lanternas e tochas e ouviu padres rezarem. Era a via sacra do Bom Jesus. O major Vidigal juntamente com uma companhia de soldados escolhido por ele rondavam a cidade a noite e a sua polícia durante o dia. Não havia um lugar em que a sagacidade do major não caçasse vagabundos. O menino quando viu aquilo, estremecendo de alegria, lembrou se da fala do padrinho, “fartar-se de travessuras”; não perdeu tempo: misturou-se com a multidão, e lá foi concorrendo com suas gargalhadas e seus gritos para aumentar a vozeria. Com um prazer febril pulava, cantava, gritava, rezava e saltava, era um prazer febril; só não fez o que não tinha forças. Para ajudar ainda mais ass estripulias, juntou-se com mais dois moleques e as estripulias foram tantas, que quando deu por si a via-sacra já havia retornado à igreja do Bom Jesus. Ele espalhava terror. O som daquela voz que dissera “abra a porta” gerava medo nos integrantes da sala, era o prenúncio de um grande aperto, com certeza não conseguiriam escapar. Mesmo assim, o grupo pôs-se em debandada, tentaram sair pelos fundos, mas a casa estava cercada e todos foram pegos em flagrante delito de nigromancia. IV – A fortuna - Enquanto o compadre, procura o afilhado por toda a parte, o narrador, ao convidar o leitor para ver o que era feito do Leonardo, acaba chegando nas bandas do mangue da Cidade Nova, em uma casa coberta de palha da mais feia aparência, possuía dois O major por sua vez, já dentro da casa, pediu-lhes que continuassem com a cerimônia pois queria ver como era. Resistir era 40 inútil, então, após hesitarem, recomeçaram ritual. Já fazia meia hora que dançavam andando ajoelhados, mas sempre que paravam o major pedia para continuarem. Muito tempo depois pararam, mas o major pediu-lhes para continuarem. Não agüentavam mais, mas o major pedia para continuarem. Muito, mas muito tempo depois, quando já se arrastavam, o major ordenou-lhes que parassem e pediu aos granadeiros para tocarem, o que fez os soldados arrancarem as chibatas e o grupo feiticeiro dançar muito mais. Era uma mulher baixa, gorda, bonachona, ingênua ou tola até certo ponto, e fina até outro. Vivia do ofício de parteira e de benzedeira. Era conhecida como beata e papa-missas. O seu traje habitual era como já se esperava, igual ao de todas as mulheres da sua condição e esfera, uma saia de lila preta, que se vestia sobre um vestido qualquer, um lenço branco muito teso e engomado ao pescoço, outro na cabeça, um rosário pendurado no cós da saia, um raminho de arruda atrás da orelha, tudo isto coberto por uma clássica mantilha, junto à renda da qual se pregava uma pequena figa de ouro ou de osso. Depois de reger a música para a frenética dança, o major Vidigal começou o interrogatório. Perguntou a ocupação de um por um e nada ouviu, até que chegou a vez do Leonardo Pataca, reconheceu-o e quando o pobre homem explicou-lhe o motivo de tudo aquilo, o major prontificou-se a curá-lo e arrastou-o para a casa da guarda no largo da Sé, era uma espécie de depósito que guardava os que haviam sido presos durante a noite até dar-lhes um destino. O uso da mantilha era um arremedo espanhol e segundo o narrador era uma coisa poética pois revestia as mulheres de um certo mistério, realçava lhes a beleza, mas a mantilha das mulheres brasileiras era muito mais prosaico do que se podia imaginar, principalmente usadas por gordas e baixas. As mantilhas usadas nas brilhantes festas religiosas, nem se fala, pois a igreja tomava um ar lúgubre ao se encher daqueles vultos negros que se uniam e cochichavam a cada momento. Ao amanhecer, toda a cidade já sabia do ocorrido e Leonardo foi mandado para a cadeia o que fez os companheiros mostrarem-se sentidos, a princípio, para logo depois gostarem pois enquanto o colega estava preso eles seriam procurados para os negócios, era um concorrente a menos. Apesar de tudo, a mantilha era o traje mais conveniente da época, posto que as ações dos outros era o principal cuidado de quase todos, era necessário ver sem ser visto. Funcionava como um observatório da vida alheia. VI – Primeira noite fora de casa - Assim que deu por falta do afilhado, o compadre, todo aflito, pôs-se a procurar pela vizinhança, mas ninguém tinha notícias do menino. Lembrou-se então da via-sacra e pôs se a percorrer as ruas. Indagando, aflitoa, a todos que encontrava pela rua, o paradeiro do seu tesouro. Quando chegou ao Bom-Jesus, informaram-lhe terem visto três endiabrados que foram expulsos da igreja pelo . Essa era a única pista que tinha. O fato de ser parteira, beata e curandeira, tomava-lhe muito tempo, tanto que fazia tempo que não via nem sabia nada do compadre, Leonardo, Maria e do afilhado, até que um dia na Sé, ouviu as beatas comentarem sobre Maria Ter apanhado de Leonardo, ter fugido com um capitão e o filho, um mal-educado, ter ficado com o barbeiro. Retornou a sua casa e ao indagar novamente a vizinha, exasperouse quando esta lhe respondeu que o menino tinha maus bofes e que a história não teria um bom final. Ao ouvir a história, pôs-se rumo à casa do barbeiro, lá chegando questionou o fardo deixado para o homem carregar. Após Ter respondido ao interrogatório da comadre, pôs-se a defender o pequeno, dizendo ser sossegadinho, gentil e ter intenções de ser padre. O pobre homem passou a noite em claro e decidiu, antes de pedir ajuda ao Vidigal, esperar mais um dia. A comadre não concordou como compadre e retirou-se. Enquanto o compadre dá esse prazo, o narrador conduz o leitor ao paradeiro do menino. A partir desse dia, a comadre sempre aparecia na casa do compadre. Junto com os emigrados de Portugal, veio também para o Brasil, a praga dos ciganos, gente ociosa e sem escrúpulos, tão velhacos que quem tivesse juízo não se me tia com eles em negócios; quanto a poesia de seus costumes e crenças, deixaram do outro lado do oceano, trazendo para cá, apenas os maus hábitos. Viviam quase na ociosidade, não tinham noite sem festa. Moravam ordinariamente nas ruas populares e viviam em plena liberdade. O padrinho, não desistindo de seus sonhos, pôs se a ensinar o ABC ao afilhado, que empacava no F. Após apresentar a comadre, o narrador volta a informar o paradeiro de Leonardo. VIII – O pátio dos bichos - No palácio del-rei, conhecido nos tempos do narrador como paço imperial, existia no saguão, uma saleta, conhecida com salão dos bichos, apelido dado em conseqüência de seu uso: Diariamente, passavam por ele três ou quatro oficiais superiores velhos, incapazes para a guerra e inúteis para a paz, eram pouco usados pelo rei, logo passavam ociosos a maior parte do tempo. Dentre eles, destaca-se um português, era tenente-coronel. A sua importância na história e que foi ele quem a comadre procurou para pedir a libertação de Leonardo. Os dois meninos, com quem o pequeno fizera amizade, eram de uma família dessa gente e acostumados à vida à toa, conheciam toda a cidade, percorriam-na sós. Após se conhecerem na via-sacra, carregaram o pequeno para a casa dos pais. Pelo caminho o menino ainda teve escrúpulos de voltar mas decidiu seguir os dois e ir até onde iriam. Lá , como era de se esperar, havia uma festa para o santo de sua devoção. Daí a pouco começou o fado e o menino, esquecido de tudo pelo prazer, assistiu a tudo enquanto pôde; mas ao chegar o sono, reuniu-se com os companheiros em um canto e adormeceram, embalados pela música e sapateado. Após ouvi-la, o velho colocou o chapéu armado, pôs a espada à cinta e saiu. Em breve, saber-se-á do resultado. IX – O arranjei-me do compadre - Aqui, o narrador revelará alguns fatos da vida do compadre, até agora desconhecidos: o compadre nada sabia de seus pais ou parentes e quando jovem, achouse na casa de um barbeiro, não sabia se estava lá como filho ou agregado; não só cuidava do barbeiro como também herdara dele a profissão. Acordou sobressaltado e pediu aos companheiros que o levasse para casa. Quando o padrinho ia recomeçar a busca, esbarrou no afilhado e ao interrogá-lo, ele respondeu que como queria que ele fosse padre, tinha ido ver um oratório. Já adolescente, sabia barbear e sangrar sofrivelmente e como jamais conseguiria se manter com essa profissão, visto que o sucesso e fregueses cabiam ao seu mestre, saiu sem rumo. Como todo barbeiro é tagarela, conheceu um marujo que acabou colocando-o a bordo, como barbeiro e sangrador. O padrinho, não resistiu à ingenuidade do afilhado e sorrindo levou-o para dentro. VII – A comadre - Vale agora falar um pouco de uma personagem que desempenhará um importante papel ao longo da história: é a comadre, a parteira e madrinha do memorando. 41 A bordo, ganhou fama quando sangrou e curou dois marujos doentes e com sua lanceta não deixou nenhum negro do carregamento morrer. concentrar no memorando, ou seja em Leonardo, afilhado do barbeiro, pois a última vez que fora mencionado estava encalhado no F e agora já está no P, de novo empacado, mas o progresso do menino havia deixado o padrinho muito contente. O difícil era fazê-lo decorar o padre-nosso, em vez de dizer “venha a nós o vosso reino”, ele dizia : “venha a nós o pão nosso”. O maior suplício para o menino era ir à missa ou ao sermão. Poucos dias antes de chegar ao Rio, o capitão do navio adoeceu e nem com a Quarta sangria ele melhorou. Havia chegado a hora do capitão, não havia sangria que o salvasse. Moribundo e em segredo, o capitão, que confiava no barbeiro, entregou-lhe uma caixa, deu lhe o endereço e pediu-lhe que entregasse a sua filha, em seguida disse que espiaria a sua tarefa lá do outro mundo. Pouco tempo depois, o capitão morreu. A partir daí, o barbeiro já não sangrava mais como antes e decidiu não embarcar mais. Quanto a história do capitão, sequer havia testemunhas então, o compadre instituiu-se como herdeiro do capitão. Foi assim que ele se arranjou na vida. Mesmo assim, enquanto todos viam em Leonardo um grande peralta, principalmente a vizinha, o padrinho não perdia as esperanças de vê-lo um clérigo. Era a tal vizinha uma dessas mulheres que se chamam de faca e calhau, valentona, presunçosa, e que se gabava de não ter papas na língua: era viúva, e importunava a todo o mundo com as virtudes do seu defunto. Ela não perdia tempo em desmentir o vizinho em suas esperanças a respeito do afilhado. X – Explicações - O velho tenente-coronel, apesar de virtuoso, bom e de estar numa idade inofensiva, tinha um sofrível par de pecados da carne, tanto que aos 36 anos havia deixado em Lisboa, um filho. Aos 20 anos era um cadete desordeiro, jogador e insubordinado. Deixava o pai, um homem de respeito, desesperado. Certo dia, o barbeiro não suportou mais, pois certo dia, ao chegar a loja, a vizinha, à janela, perguntou-lhe, em zombaria, onde estava o seu reverendo. Poucos dias antes de embarcar para o Brasil, em companhia de elrei, o infeliz pai foi procurado por uma mulher velha, baixa, gorda e vermelha, vestida, segundo o costume das mulheres da mais baixa classe do seu país: um vestido de chita e um lenço branco, triangular sobre a cabeça e preso embaixo do queixo. Estava nervosa e agitada, seus lábios franzinos e franzidos estavam apertados um contra o outro, como se segurassem uma torrente de injúrias. Assim que chegou em frente ao capitão, era esse o posto do velho tenente-coronel na época, olhou-o com ar resoluto e enfurecido, fazendo-o, instintivamente, dar um passo atrás. O barbeiro, vermelho, foi às nuvens e quando ela perguntou se o menino já sabia o padre-nosso, o homem não agüentou e exasperandose respondeu-lhe que o menino já sabia e que ele o fazia rezar todas as noites para seu marido que estava dando coices no inferno. A mulher retrucou e chamou-o de raspa-barbas. A discussão foi longe. Quando o compadre perguntou a mulher o porquê de ele implicar tanto com uma criança que nunca havia lhe feito mal, ela respondeu que ele vivia jogando pedras no telhado, fazia-lhe caretas e a tratava como se fosse uma saloia ou mulher de barbeiro. Ela, colocando as mãos nas cadeiras e chegando a boca bem perto do rosto do capitão, logo já se pôde deduzir: o problema era com o filho do capitão que pôs-se a namorar Mariazinha, filha da velha nervosa. Segundo a mulher, foi namoro pra lá, namoro pra cá e... brás!.. O menino ao ouvir tanto estardalhaço, pôs-se a porta e começou a arremedá-la. O compadre achou tanta graça que sentiu-se vingado e desatou a rir. O capitão foi às nuvens. A mulher ainda afirmou que o rapaz havia prometido casamento a filha. Após pensar um segundo, viu que não poderia deixar o filho casarse com a filha de uma colareja e além do mais, o que ele ganhava como cadete não era suficiente para o rapaz sustentar uma família. Então, o capitão disse a mulher que pensaria no caso. Enquanto a discussão termina, o narrador aproveita para informar que o barbeiro sabia da prisão de Leonardo mas não se importava. Assim que o velho tenente-coronel colocou Leonardo na rua, decidiu tomar Leonardo para a sua proteção, acreditando que se conseguisse felicitá-lo, lavaria o seu filho do pecado; tanto que pediu à comadre que oferecesse ao compadre seu préstimo para o pequeno, chegou a pedir que o deixasse ir para a sua companhia. O capitão, em apuros, procurou a mulher e ofereceu alguma coisa para que ela se calasse e não estourasse. Não deu para ele pensar muito no assunto pois havia chegado a hora. Então, deixando o filho aos cuidados de conhecidos, partiu. O compadre recusou e disse que era a sua função, para tampar a boca da vizinhança, transformar o menino em gente. XII – Entrada para a escola - Para evitar repetir a história das mil travessuras do menino, que exasperaram a vizinhança e desgostaram a comadre sem reduzir a amizade do barbeiro pelo afilhado, o melhor e informar que os progressos do menino agradavam o padrinho, pois o pequeno já lia, sofrivelmente e aprendera a ajudar na missa. Já no Brasil, anos depois, soube que a tal Mariazinha estava no Rio de Janeiro, em companhia de Leonardo. Era a Mariazinha, a famosa Maria-da-Hortaliça. Sabe-se agora o porquê de o velho tenente-coronel prometer ajudar Leonardo: acontece que o velho, procurando satisfazer o seu escrúpulo de pai honrado, fazia o que podia pela moça que seu filho havia desonrado. Em segredo havia feito um trato com a comadre, ou seja qualquer necessidade que Maria-da-hortaliça sofresse, ele supriria, bastaria que a comadre o informasse. Como a comadre o ajudava, ele deveria ajudá-la, é essa troca de favores que fê-lo, assim que falou com a comadre, dirigir-se à cadeia e após ouvir a história vinda da boca de Leonardo, dirigiu-se à casa de um amigo, um fidalgo. Preocupado com o futuro da criança foi procurar um mestre, Era este um homem todo em proporções infinitesimais, baixinho, magrinho, de carinha estreita chupada, excessivamente calvo; usava de óculos, tinha pretensões de latinista, e dava bolos nos discípulos por dá cá aquela palha. Era um dos mais acreditados na cidade. O barbeiro entrou acompanhado do afilhado. Era Sábado, os bancos estavam cheios de crianças; os dois entraram exatamente na hora da tabuada cantada, uma espécie de ladainha de números, era monótono e insuportável, mas os meninos gostavam. Em poucas palavras o tenente-coronel pôs-lhe a par de tudo e o fidalgo prometeu ajudar. As vozes dos meninos, acompanhadas pelos passarinhos nas gaiolas, faziam uma algazarra de doer os ouvidos. O velho tenente-coronel, satisfeitíssimo pôs-se rumo à cadeia a fim de contar a novidade a Leonardo. Na Segunda-feira, lá estava o menino, munido de sua pasta a tiracolo, a sua lousa e o seu tinteiro de chifre. Logo no primeiro dia levou quatro bolos o que o fez declarar guerra viva à escola. XI – Progresso e atraso - Após todas essas explicações , apresentações e origem dos personagens, o narrador volta a se 42 Na saída, assim que viu o padrinho, disse-lhe que não voltaria mais à escola, não queria ter que apanhar para aprender. fim. terminada a missa queixou-se ao mestre-de-cerimônias e os dois ganharam uma tremenda sarabanda. O barbeiro ficou contrariado temendo que a maldita vizinha soubesse que o menino havia apanhado no primeiro dia de escola, mas o pequeno só concordou em retornar caso o padrinho falasse ao mestre para não lhe bater mais. O padrinho, a fim de persuadi-lo, concordou. XIV – Nova vingança e seu resultado - Apesar de os meninos não se importarem com a sarabanda, não perdoaram o mestre-de-cerimônias por tê-los humilhado em frente da vítima e resolveram desforrar e foi o caso assim: o pobre homem era um padre de meia idade formado em Coimbra na mais austeridade da igreja católica, poderia fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro; pois apesar de, aparentemente, buscar por assunto a honestidade e a pureza corporal, a sua essência era sensual, fato que muitos ignoravam, mas os dois pequenos estavam por dentro de tudo, tanto que sabiam que o padre enviava recados e objetos a uma cigana, a mesma de Leonardo Pataca. O menino entrou na escola desesperado e como não ficasse quieto ou calado, foi colocado de joelhos e nessa posição foi surpreendido atirando uma bolinha de papel nos colegas; resultado: doze bolos, o que fez o menino despejar sobre o mestre, todas as injúrias que sabia. Segundo o barbeiro, os dezesseis bolos do primeiro dia deviam-se a praga que a vizinha deveria ter jogado, mas ele venceria. Já fazia três ou quatro dias que o padre não saía por estar decorando o sermão, um sacristão foi incumbido de lhe avisar quando chegasse a hora e os meninos não perderam tempo, o pequeno dirigiu-se à casa e após bater, perguntou, em voz alta, pelo sacristão. XIII – Mudança de vida - Foi com muito sacrifício que o compadre conseguiu fazer o menino freqüentar a escola por dois anos, levando bolos todos os dias. Apesar de o mestre sustentar a fama de cruel, na verdade os bolos eram merecidos pois o menino era da mais refinada má-criação, sempre desobedecia a tudo que lhe era ordenado. A cigana mandou-o entrar e ele em vez de dizer nove, disse dez horas. Não parava quieto. No dia seguinte, às nove em ponto, começou a festa e nada do pregador aparecer, o que fez um capuccino italiano, por bondade, oferecer-se para improvisar o sermão, já havia começado quando o mestre entrou e ambos começaram a disputar o púlpito. Assim que terminou, o mestre-de-cerimônias dirigiu-se ao menino que defendeuse dizendo que a cigana com quem ele estava era testemunha de que ele havia dito que o sermão seria às nove. O Oh! Que soltaram foi geral, mas o homem desmentiu. Nunca uma pasta, um tinteiro, uma lousa lhe durou mais de 15 dias, era um velhaco que vendia aos colegas tudo o que podia Ter algum valor, empregando o dinheiro que conseguia, do pior modo que podia. No quinto dia de escola disse ao padrinho que já sabia ir sozinho, este acreditou e o afilhado, então somou mais um apelido ao de apanhabolos-mor, era o de gazeta-mor. Terminada a festa despediu o menino que nem se importou. O lugar que mais ficava quando cabulava aulas era a igreja da Sé, pois reunia-se gente e várias mulheres com mantilha, de quem tomara certa zanguinha por causa da madrinha. Lá, no meio da multidão, não o encontrariam se o procurassem. XV – Estralada - Quando Leonardo já havia se esquecido da cigana, descobriu que ela era amante do mestre-de-cerimônias e resolveu procurá-la para salvar sua alma, mas ela disse ter sido procurada por vários meirinhos mas nenhum havia lhe agradado. Então, após ter desejado uma estralada para a mulher, retirou-se jurando vingança. Como não saía da igreja, fez amizade com um pequeno sacristão tão peralta quanto ele, conseguiam se comunicar apenas com troca de olhares. Dito e feito, contratou Chico-Juca que ganhava para dar pancada e o dia de colocá-lo em ação seria no aniversário da cigana. Após acertar tudo com o brigão, procurou o major Vidigal para falar sobre a festa. O plano deu tão certo que quando os soldados do Vidigal foram revistar o quarto, tiraram de lá, nada menos que o mestre-de-cerimônias em ceroulas, meias pretas e sapatos afivelados. Sem perdão, o padre foi para a casa da guarda. Essa vida durou muito tempo, até que o padrinho voltou a acompanhá-lo. O menino decidiu que seria muito agradável acompanhar o colega sacristão, afogando em ondas de fumaça a cara da velha que chegasse mais perto e para isso comunicou ao compadre o seu desejo de freqüentar a igreja, tinha nascido para aquilo. Para o padrinho, foi a maior alegria quando ouviu o menino pedir que lhe fizesse sacristão. XVI – Sucesso do plano - O mestre-de-cerimônias não chegou ao xilindró, pois o Vidigal quis apenas dar-lhe um susto. Como era de se esperar, a notícia correu rapidamente e logo depois, todo envergonhado, ele seguiu para casa. Em poucos dias aprontou-se, e em uma bela manhã saiu de casa vestido com a competente batina e sobrepeliz, e foi tomar posse do emprego. Ao vê-lo passar a vizinha dos maus agouros soltou uma exclamação de surpresa a princípio, supondo alguma asneira do compadre; porém reparando, compreendeu o que era, e desatou uma gargalhada e ao chamá-lo de Sr. Cura, o menino respondeu-lhe que seria e haveria de curá-la. Enfim, Leonardo e a cigana reataram o romance, para desgosto da comadre que tentava enfiar-lhe a sobrinha. Já o ex-sacristão, para desgosto do compadre, ainda estava com o seu destino incerto. Era aquilo uma promessa de vingança. O menino chegou à Sé impando de contente, a batina era como um manto real e foi na maior seriedade que entrou na função de sacristão. Já no dia seguinte, o negócio era outro: durante a missa cantada ele ficou com a tocha e o amigo, com o turíbulo, quando de repente, para infelicidade da vizinha, a quem o menino prometera curar, sem pensar, colocou-se junto aos dois e bastou uma troca de olhar para se colocarem em distância e lugar conveniente: enquanto um, tendo enchido o turíbulo de incenso, e balançando-o convenientemente, fazia com que os rolos de fumaça que se desprendiam fossem bater de cheio na cara da pobre mulher, o outro com a tocha despejava-lhe sobre as costas da XVII – D. Maria - Num dia de procissão, o barbeiro, o afilhado, a comadre e a vizinha dos maus agouros estavam hospedados na casa de D. Maria, uma mulher muito velha e muito gorda, era rica, religiosa e caridosa. mantilha a cada passo plastradas de cera derretida, a mulher ao exasperar-se ouviu o menino dizer que estava lhe curando. Como a igreja estava apinhada de gente, ela teve que suportar o suplício até o XVIII – Amores - Alguns anos depois, o menino tornou-se um vadio-mestre, vadio-tipo, levando o padrinho ao mais Lá, o menino ouviu a vizinha falando dele para a madrinha e como vingança, pisou na barra da saia da mulher que ao se levantar, rasgou em quatro palmos; a única atitude do barbeiro foi rir. Ali, todos discutiam o destino do menino e ao saírem, D. Maria pediu ao compadre que voltassem para falarem sobre o menino. completo desespero. 43 A comadre conseguiu o que queria, Leonardo Pataca havia se arranjado com a sobrinha. por conta, mas cada vez que ficava a sós com Luisinha, dava-lhe um tremor de pernas que mal conseguia ficar de pé ou articular qualquer palavra. Certa ocasião, a moça estava em pé, perto da janela e ele se aproximou ficando como a uma estátua atrás dela, quando ela se virou, a única reação do rapaz foi a de fazer uma careta; por fim criou coragem e disse-lhe que a queria muito bem; esta por sua vez, ficou cor de cereja e desapareceu pelo corredor. D. Maria havia envelhecido sofrivelmente e era, na época, tutora de sua sobrinha que estava órfã. As demais personagens continuam do mesmo jeito. XXIV – A comadre me exercício - Leonardo-Pataca estava todo feliz, pois do seu relacionamento com Chiquinha, a sobrinha da comadre, nasceu uma pequerrucha, oposta ao irmão, pois era mansa e risonha. O memorando, agora adolescente, passou a ser tratado pelo nome, o mesmo do pai, Leonardo. O jovem estava apaixonado por Luisinha, a sobrinha de D. Maria. Quando Leonardo a viu pela primeira vez, não conteve o riso: era já muito desenvolvida, porém ainda não tinha adquirido a beleza de moça: era alta, magra, pálida: andava com o queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos; o cabelo, cortado, dava-lhe apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça sempre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e olhos, como uma viseira. XXV – Trama - Quando a comadre não estava ocupada fazendo partos, ocupava-se em desconceituar José manuel para D. Maria. Então, começou a contar que uma moça muito rica, que vivia com a mãe orando no Oratório de Pedra, havia enchido uma meia preta com jóias e fugido com um homem, o mistério é que ninguém sabia quem era o tal; então, a comadre, aproveitando-se da curiosidade da outra, após fazê-la jurar não contar nada a ninguém, disse que o homem era José Manuel. Mesmo tendo rido de Luisinha, quando o padrinho anunciou a nova visita à D. Maria, o jovem pulou de alegria, foi o primeiro a ficar pronto e lá foram os dois para o seu destino. XXVI – Derrota - D. Maria ficou estupefada e a comadre satisfeita com o resultado. A fofoca foi interrompida pela chegada de José Manuel, que nem bem havia entrado e começou a falar que andava muito ocupado com uns arranjos XIX – Domingo do Espírito Santo - Como era Domingo de Espírito Santo, ao chegarem a casa de D. Maria, encontraram todos à janela. Desta vez, ao ver a moça de branco e com os cabelos, penteados, não conseguiu rir, mas sim apreciar a figura da moça. Ela, por sua vez, continuava em seu inalterável silêncio e concentração. mas não podia falar pois era segredo. As duas trocaram olhares significativos. Luisinha, desde a declaração de Leonardo, sofreu mudanças significativas tanto física quanto psicológica, passou a erguer os olhos, a falar, a mover-se. Mais tarde, os quatro iriam ver os fogos. XX – O fogo no campo - Luisinha estava atônita no meio de todo aquele movimento, mas Leonardo a puxava pelo braço. De tanto as duas senhoras cutucarem, José Manuel concordou em falar-lhes do seu negócio (não se pode esquecer de que ele era mentiroso) desde que elas fossem discretas; disse-lhes que havia sido chamado para ir ao palácio, mas assim que a comadre saiu D. Maria quis saber sobre a moça que ele havia roubado, mas o homem jurou e tresjurou que não tinha nada a ver com aquilo, mas D. Maria estava inflexível, resultado: José Manuel saiu na carreira. Para deleite de Leonardo, após a queima de fogos, os dois voltaram de mãos dadas. XXI – Contrariedades - Como aqui se faz e aqui se paga, chegou a hora de Leonardo pagar os seus tributos: o rapaz estava amando Luisinha, cujo comportamento voltara ao antigo estado de letargia, fato que fez o jovem sofrer grande contrariedade e fingindo desprezo que era despeito, murmurou um - que me importa! XXVII – O mestre-de-reza - Depois do acontecido na casa da D. Maria, José Manuel reconheceu que tinha ali um inimigo e que o motivo seria a sua pretensão à mão de Luisinha, só faltava saber quem. A situação mudou só mudou de figura quando o padrinho e o afilhado depararam com um desconhecido na casa de D. Maria. Era um homenzinho de mais ou menos trinta e cinco anos, magro, narigudo e de olhar penetrante, recém chegado da Bahia; era o Sr. José Manuel. Quem olhasse para a sua cara via logo que pertencia à família dos velhacos. Era uma crônica viva e escandalosa, sempre que podia desfiava um discurso de duas horas sobre a vida alheia. Padrinho e afilhado, nutriam pelo homenzinho, desde a primeira vez que o viram, uma grande antipatia. Rapidamente José Manuel pôs mãos à obra, ou seja, da mesma forma que Leonardo tinha seus protetores, ele teria um; para tanto, recorreu ao mestre-de-reza de D. Maria, que tinha fama de casamenteiro. O mestre-de-reza entrou em ação logo à noite, pois enquanto conversava com D. Maria, disse-lhe que sabia quem havia roubado a moça. XXVIII - Transtorno - Enquanto José Manuel agitava a casa de D. Maria, a vida de Leonardo agitava-se tristemente, pois o seu padrinho adoecera. Como D. Maria não conseguiu curá-lo, chamaram o velho da botica que prometeu curá-lo com umas pílulas. A comadre não gostou da idéia das pílulas, chegou até a franzir a testa, pois disse que nunca tinha visto quem as tomasse escapar vivo. O pedantismo com que José Manuel tratava as duas era por um motivo muito simples: Luisinha era a única herdeira de D. Maria, assim, quem se casasse com a moça, daria-se bem. XXII – Aliança - A presença de José Manuel desagradava aos dois homens, e ele já havia percebido que os dois não gostavam dele. Leonardo amava Luisinha e o padrinho via na moça um excelente meio de vida para o rapaz. A comadre tinha razão até certo ponto, pois três dias depois o compadre morreu. Na casa do falecido, Leonardo, todos os amigos, vizinhos e conhecidos estavam em prantos. Tamanha era a preocupação do compadre que ele foi falar com a comadre que ficou de falar com D. Maria. Foi assim que se formou uma aliança entre o compadre e a comadre para derrotarem o concorrente de Luisinha. Quando todos se foram, enquanto Leonardo e Luisinha conversavam, D. Maria e a comadre foram procurar o testamento do compadre e encontraram. XXIII – Declaração - Enquanto a comadre tecia planos para derrotar o rival do afilhado, este ardia em ciúmes. Para a sua sorte, Luisinha ignorava tudo e continuava indiferente. Leonardo era o herdeiro universal do padrinho; quando LeonardoPataca ficou sabendo, apresentou-se para tomar conta do filho, mas este não gostou pois lembrou-se do pontapé, mas mesmo assim teve que acompanhá-lo e encontrar-se com a irmã e Chiquinha. Leonardo, por sua vez, temendo que o compadre e a comadre derrotassem seu rival e ele não pudesse entrar em combate, tentou agir 44 Leonardo-Pataca não só cuidou do testamento como também ficou com tudo; não se pode esquecer-se de que além dos mil cruzados, tinha ainda aquele dinheiro do capitão do navio que ele “pegou”. No momento de te ver; Nos primeiros dias tudo foram flores, a família estava novamente unida: Leonardo-Pataca, Leonardo, a irmã e a comadre. É tarde não pode ser. Agora quero quebrá-los, Este último passo acabou de desorientar completamente o Leonardo: reconheceu que havia se inclinado um só instante por Luisinha, mas estava apaixonado por Vidinha, mas eram duas irmãs com três filhos e três filhas que moravam numa mesma casa, logo, havia três casais de primos completos, mas dois gostavam de Vidinha, resumindo: Leonardo tinha mais dois rivais, mas sem Ter para onde ir, passou a noite ali. XXXII – José Manuel triunfa - Enquanto a comadre procurava Leonardo por toda a parte, o jovem ouvia modinhas. Cansada, a comadre acaba indo à casa de D. Maria. Lá, tudo que a comadre falava do afilhado, defendendo-o, D. Maria não concordava, acusava-o; algo estranho acontecia: José Manuel, aliado ao mestre-de-rezas, venceram. Agora, somente Leonardo e a comadre continuavam as visitas à D. Maria. A paz familiar durou pouco, pois Leonardo não simpatizava com Chiquinha e esta começou a embirrar com Leonardo, resultado: na casa era a maior balbúrdia. XXIX - Pior transtorno - Leonardo, após ficar grande tempo na casa de D. Maria sem ver a amada, entrou em casa de mal com a vida e ao se sentar jogou a almofada de Chiquinha no chão; esta por sua vez chamou-o de namorado sem ventura e ele não se fez de rogado, espumando de cólera avançou em Chiquinha que disse-lhe Ter raça de saloio. O velho conseguiu inocentar José Manuel e este tinha aprovação de D. Maria para ser pretendente de Luisinha. Como Leonardo-pataca estava em casa foi acudir e armado do espadim embainhado, atirou-se sobre o filho, chegou D. Maria e apesar de tomar partido do jovem, a única coisa que pôde fazer foi sair à sua procura, pois o pai o havia expulsado de casa. XXXIII – O agregado - Algumas semanas depois, Leonardo já era agregado na casa de Tomás da Sé, mas certo dia, ao ser surpreendido abraçado com Vidinha, acabou se atracando com um dos enamorados pela moça. XXX - Remédio aos males - Após o carreirão que levara, o pobre rapaz, vagando pela cidade e pensando em Luisinha e no rival, chegou ao Cajueiro. Como parecia ser sua sina viver como o Judeu Errante, já ia se pondo a andar, quando a comadre o encontrou. XXXIV – Malsinação - As três velhas, após longa conversa, tornaram-se amigas e a tormenta dos três briguentos cessou e a comadre, cada vez que tentava fazer o afilhado voltar para casa, as duas velhas se metiam, até que, para a alegria de Vidinha, Leonardo resolveu ficar. Gargalhadas vindas de uma moita tiraram-no do devaneio, procurou e encontrou um grupo de moças e moços sentados em uma esteira jogando baralho. Com o estômago roncando, ia se afastando quando um deles o chamou, era o seu antigo camarada, Tomás, aquele menino sacristão da Sé. Este apresentou-lhe a irmão, Vidinha, uma mulatinha de 18 a 20 anos, de altura regular, ombros largos, peito alteado, cintura fina e pés pequeninos; tinha os olhos muito pretos e muito vivos, os lábios grossos e úmidos, os dentes alvíssimos, a fala era um pouco descansada, doce e afinada. Por ser cantora de modinhas, pôs-se a cantar: A comadre ia regularmente visitar Leonardo e as duas novas amigas. Tudo ia as mil maravilhas, porém os dois primos despeitados tramavam e tramavam algo. Os dois colocaram o plano em ação no dia em que o grupo saiu para uma patuscada. Quando estenderam a esteira, surgiu o major Vidigal, que assim que chegou quis saber quem era Leonardo e assim que este se identificou, Vidigal o prendeu por vadiagem. Se os meus suspiros pudessem Aos teus ouvidos chegar, Segundo Vidinha, foi uma malsinação. XXXV – Triunfo completo de José Manuel - Com o sumiço de Leonardo da casa de D. Maria, José Manuel teve espaço para agir a vontade, tanto que acabou ajudando D. Maria em uma demanda do testamento de Luisinha. Como já tinha adquirido a confiança da velha, aproveitou-se e pediu a moça em casamento. Verias que uma paixão Tem poder de assassinar. Não são de zelos Os meus queixumes, Luisinha estava naquela idade do abatimento, entre 13 e 25 anos e como não via Leonardo há tempos, aceitou a proposta de forma indiferente. Nem de ciúme Abrasador; Num Sábado à tarde, Luisinha e José Manuel casaram-se. São das saudades Ora, os leitores hão de estar lembrados da mania que tinha D. Maria por uma demandazinha; atirava-se a ela com vontade, e tal era o empenho que empregava na mais insignificante questão judiciária, que em tais casos parecia ter em jogo sua vida. Daqui se poderá concluir a satisfação que teria ela no dia em que se achava vencedora, e como se não julgaria obrigada a quem lhe proporcionasse a vitória. Que me atormentam Na dura ausência De meu amor. José Manuel aproveitou-se disto; e no dia em que veio ler a D. Maria a sentença final que resolvia a pendência em seu favor, pediu-lhe a mão da sobrinha, a qual lhe foi prometida sem grandes escrúpulos. Leonardo ouviu a música boquiaberto e nunca mais tirou os olhos da cantora. XXXVI – Escápula - Enquanto o casal está no gozo tranqüilo da lua-de-mel e D. Maria faz cálculos aritméticos aconselhando a sobrinha, Leonardo, a caminho da cadeia, ao ouvir uma confusão, teve uma vertigem, seus ouvidos zuniram, deu um encontrão no granadeiro e fugiu. Pouco depois estava na casa de Vidinha. XXXI - Novos amores - Já na casa do amigo, enquanto o jovem, pensava em Luisinha, José Manuel e Vidinha, ouvia mais uma música da bela cantora: Duros ferros me prenderam 45 Vidigal foi às nuvens, urrava; nunca nenhum garoto havia conseguido fugir. Jurara vingança. Certo dia todos saíram para uma patuscada, mas toma-largura bebeu demais armou-se a confusão, o que gerou no aparecimento de Vidigal e dos granadeiros. XXXVII – O Vidigal desapontado - Todos riram quando o major Vidigal, após vasculhar uma casa, saiu de mãos vazias. Quando o major ia entrando na casa da guarda, a comadre atirou-se aos seus pés e em prantos pedia a libertação do afilhado. Quando um deles se aproximou para prender toma-largura, todos se surpreenderam; Leonardo havia se tornado um dos granadeiros de Vidigal. XLII – O granadeiro - Como toma-largura estivesse bêbado, caiu estirado na calçada e o seu tamanho colossal, mas o fato de ser gente da casa real, fez com que os granadeiros deixassem-no ali. Convém agora, um leve flash-back para saber como Leonardo se tornou um granadeiro. Foi simples, na noite em que fora preso, como o regimento do Vidigal estivesse precisando de soldado, reconheceu que Leonardo seria de grande ajuda, pois conhecia todas as bocas do Rio de Janeiro. O problema é que sorrateiramente Leonardo aliava-se ao povo e ficava contra o major. XLIII – Novas diabruras - Um dia o major anunciou que tinha uma grande e importante diligência a fazer. Era prender um banqueiro de jogo-de-bicho e cantor satírico e chamado Teotônio. Todos que a ouviam, riam e quando o major disse que ele havia fugido, ela saiu toda sorridente. XXXVIII – Caldo entornado - Assim que a comadre chegou à casa de Vidinha, todos puseram-se a rir, mas após a alegria, a comadre começou a passar-lhe um sermão, afirmando que Leonardo tinha que arranjar alguma ocupação, caso contrário cairia nas unhas do Vidigal. Leonardo prometeu se emendar. Poucos dias depois, a comadre arranjou-lhe um emprego de servidor na ucharia real. O major, mordendo os beiços, não o perdia de vista. Onde havia festa ele era convidado. Com o novo emprego, a despensa de Vidinha ficou abarrotada, ou seja ele tirava de l’’a e abastecia a casa. Por coincidência, Teotônio estava justamente na casa de LeonardoPataca, na festa de batizado de sua filha. No pátio da ucharia morava um toma-largura na companhia de uma moça bonita. Acontece que o homem era extremamente bruto e Leonardo, na mais pureza dos sentimentos foi à casa da moça levar-lhe uma tigela de caldo. De repente a porta se abre, eras o toma-largura; a moça entornou o caldo, Leonardo pôs-se a correr e o toma-largura, atrás. Leonardo fora incumbido de entrar na casa e dar sinal para que prendessem o homem, mas como o jovem era astuto, fez Teotônio livrar-se da prisão, saindo disfarçado de corcunda. Mais uma vez enrolara o Vidigal. XLIV – Descoberta - Quando a patrulha do Vidigal estava batendo em retirada, um amigo de Teotônio, todo esfuziante, correu a abraçar Leonardo para agradecê-lo por ter enganado o major. O jovem granadeiro ficou estático e foi preso. Daí a pouco ouviu-se barulho e gritos e Leonardo atravessar o pátio às carreiras. Enquanto caminha para o quartel, como será que estão Luisinha e sua gente? No dia seguinte o Leonardo foi despedido da ucharia. XXXIX – Ciúmes - No dia seguinte o Vidigal já sabia de tudo e pôs-se em alerta. Tudo eram rosas, mas pouco depois da lua-de-mel, José Manuel pôs as manguinhas de fora, de posse da moça e da herança, mudaramse da casa de D. Maria. Em casa, Vidinha, enfurecida pelo ciúmes, pediu a mantilha da mãe para ir à ucharia falar com toma-largura . Leonardo que ouvia tudo, sem resultado pediu à moça que não fosse. No caminho, Leonardo deparou-se com o major e foi obrigado a acompanhá-lo. Agora que os dois estavam sozinhos, ele se tornou um maridodragão, não permitindo que a esposa sequer saísse à rua. A moça chorava pela liberdade. XL – Fogo de palha - Enquanto Leonardo era obrigado a seguir o “seu destino”, Vidinha já estava na ucharia. Lá, disse à moça do caldo que ela não tinha sentimentos fez um desaforozinho ao toma-largura e saiu, sem saber que era seguida por ele. Certo dia na missa, a comadre e D. Maria se encontraram e voltara a se falar. Uma falava das desgraças de Leonardo e a outra das de Luisinha. Ambas, agora, teciam planos para a libertação de Leonardo. XLI – Represálias - Em casa, enquanto Vidinha contava a sua aventura a todos, sentiram falta de Leonardo e reconheceram que este deveria estar com o Vidigal. XLV – Empenhos - Primeiro a madrinha foi falar com o major, mas sem resultado. Como o major era um pecador antigo, como última tentativa, a comadre e D. maria foram falar com o grande amor de Vidigal, a Maria-Regalada. No dia seguinte, Tomás, que até então não havia tomado parte de nada na agitada casa, saiu para tomar as providências em favor do amigo. Lá chegando puseram a mulher a par de tudo e as três, na cadeirinha, puseram-se rumo à casa do major. XLVI – As três em comissão - Lá chegando, o major recebeu-as de rodaque de chita e tamancos, mas quando reconheceu as três, correu o mais que pôde para pôr a farda. Na pressa retornou à sala de farda, calças de enfiar, tamancos e um lenço de alcobaça nos ombros. As três mulheres, chorando em um único coro, pediam a soltura de Leonardo, mas o major estava irredutível, até que Maria-Regalada chamou-o a um canto da sala e cochichou-lhe algo. Pronto, tudo mudou, Leonardo seria solto. XLVII – A morte é juiz - Nem bem chegou à casa, D. Maria, toda atrapalhada, teve que sair. José Manuel havia morrido. Luisinha pôs-se a chorar, mas como choraria por qualquer vivente, porque tinha coração terno. Isso bastou para que uma vizinha dissesse a outra que não eram lágrimas de viúva. A afirmação era correta, pois José Manuel nunca fora marido de Luisinha, senão por conveniência. À saída do enterro, os escravos fizeram a maior algazarra. Tomás foi à casa da guarda, mas não encontrou o amigo; procurou em outros lugares e nada. Sem opção, ele e os demais foram procurar a comadre que também pôs-se a procurar pelo afilhado e nada do moço. Como Leonardo não dava notícias, acharam que ele estivesse escondido, resultado: Vidinha e os familiares passaram a odiá-lo. O desaparecimento de Leonardo, aliado a visita que Vidinha fizera à ucharia, contribuíram para que ela visse, todos os dias, toma-largura duas vezes por dia. Pouco tempo depois os familiares da moça já gostavam dele e ele passou a freqüentar a casa. 46 Ao entardecer, para espanto de D. Maria, Leonardo dbentro na sala, estava livre das garras do major e ainda por cima, promovido a sargento. Os olhos de Leonardo encontraram-se com os de Luisinha. Depois de conversarem com Leonardo estava de serviço, teve que se retirar. XLVIII – Conclusão feliz - Luisinha e Leonardo haviam reatado o antigo namoro; namoro de viúva anda depressa. Após conversarem o major concordou em dar baixa ao Leonardo; de sargento de tropas, seria sargento de milícias. Pouco tempo depois, Leonardo e Luisinha, casaram-se. Daí por diante, aconteceu o reverso da medalha: Leonardo Pataca devolveu os bens do filho, D. Maria e Leonardo Pataca morreram e mais uma enfiada de acontecimentos tristes que convém poupar e ponto final. Como sargento não podia se casar, foram a casa de Maria-Regala pedir ajuda e lá encontraram o major em rodaque e tamancos. Este era o segredo que Maria-Regalada havia lhe cochichado. abandonado pela mãe, que foge para Portugal com um capitão de navio, é igualmente abandonado pelo pai, mas encontra no padrinho seu protetor. Esse é dono de uma barbearia e tem guardada boa soma em dinheiro. A origem pouco digna desse capital – o barbeiro desviou a herança que um capitão moribundo deixara à sobrinha – só será revelada posteriormente. A fórmula “arranjei-me” sintetiza, no romance, a explicação dada pelo barbeiro para a posse do dinheiro. O autor acaba por dizer que muitos “arranjei-me”, equivalentes ao atual “jeitinho brasileiro”, se explicam assim, e estende essa representação de sua história a toda a sociedade da época. As aventuras e desventuras de Leonardo, que o autor faz desfilar diante dos leitores com dinamismo, conduzem o protagonista a apuros dos quais ele sempre se salva, graças a seus protetores. Leonardo é um personagem fixo no romance, suas características básicas não mudam. Resumo e análise da obra: Memórias de um Sargento de Milícias Manuel Antônio de Almeida O romance de Manuel Antônio de Almeida, escrito no período do romantismo, retrata a vida do Rio de Janeiro no início do século XIX e desenvolve pela primeira vez na literatura nacional a figura do malandro. Memórias de um Sargento de Milícias surgiu como um romance de folhetim, ou seja, em capítulos, publicados semanalmente no jornal Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, entre junho de 1852 e julho de 1853. Os folhetins não indicavam quem era o autor. A história saiu em livro em 1854 (primeiro volume) e 1855 (segundo volume), com autoria creditada a “Um Brasileiro”. O nome de Manuel Antônio de Almeida aparecerá apenas na terceira edição, já póstuma, em 1863. TEMPO A história se passa no começo do século XIX, ocasião em que a família real portuguesa se refugiou no Brasil. Por isso, o romance tem início com a expressão “Era no tempo do rei”, referindo-se ao rei português dom João VI. Essa fórmula também faz referência – e isso é mais relevante para entender a estrutura do romance – aos inícios dos contos de fada: “Era uma vez...” PERSONAGENS NARRADOR Apesar do título de “memórias”, o romance não é narrado pelo personagem Leonardo, e sim por um narrador onisciente em terceira pessoa, que tece comentários e digressões no desenrolar dos acontecimentos. O termo “memórias” refere-se à evocação de um tempo passado, reconstruído por meio das histórias por que passa o personagem Leonardo. Leonardo – protagonista que garante unidade à narrativa. O sargento de milícias a que se refere o título da obra é Leonardo, embora o personagem obtenha esse cargo somente nas últimas páginas do livro. Leonardo-Pataca – pai de Leonardo, um meirinho (oficial de Justiça) que fora vendedor de roupas em Lisboa e, durante sua viagem ao Brasil, conhece Maria das Hortaliças, o que resultará no nascimento de Leonardo. Maria das Hortaliças – mãe de Leonardo, uma saloia (camponesa) muito namoradeira, que abandona o filho para ficar com outro homem. O Compadre (ou Padrinho) – é dono de uma barbearia e toma a guarda de Leonardo após os pais abandonarem a criança. Torna-se um segundo pai para ele. A Comadre (ou Madrinha) – mulher gorda e bonachona, apresentada como ingênua, frequentadora assídua de missas e festas religiosas. Major Vidigal – homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão. Apesar do aspecto pachorrento, era quem impunha a lei de modo enérgico e centralizado. Dona Maria – mulher idosa e muito gorda, não era bonita, mas tinha aspecto bem-cuidado. Era rica e devotada aos pobres. Tinha, contudo, o vício das demandas (disputas judiciais). Luisinha – sobrinha de dona Maria. Seu aspecto, inicialmente sem graça, se transforma gradualmente, até se tornar uma rapariga encantadora. Vidinha – mulata de 18 a 20 anos, muito bonita, que atrai as atenções de Leonardo. ORDEM E DESORDEM Duas forças de tensão movem os personagens do romance: ordem e desordem, que se revelarão características profundas da sociedade colonial de então. A figura do major Vidigal representa o polo que, na história, cuida da ordem: “O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que dava e distribuía penas e, ao mesmo tempo, o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua justiça não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processos; ele resumia tudo em si (...)”. A estabilidade social representa a ordem, enquanto a instabilidade se refere à desordem. Dessa forma, o barbeiro, completamente adequado à sociedade, ao revelar as origens pouco recomendáveis de sua estabilidade financeira, evoca no seu passado a desordem. Personagens como o major Vidigal, a comadre, dona Maria e o compadre pertencem ao lado da ordem. Mas os personagens desse polo nada têm de retidão, apenas estão em uma situação social mais estável. O polo da desordem é formado pelo malandro Teotônio, o sacristão da Sé e Vidinha. A acomodação dos personagens, tanto na ordem como na desordem, está sujeita a uma mudança repentina de polo, ou seja, não existe quem esteja totalmente situado no campo da ordem nem no da desordem. Não há, portanto, uma caracterização maniqueísta dos tipos apresentados. O major Vidigal, por exemplo, um típico mantenedor da ordem, transgride o código moral ao libertar e promover Leonardo em troca dos favores amorosos de Maria Regalada. ENREDO Por ser originariamente um folhetim, publicado semanalmente, o enredo necessitava prender a atenção do leitor, com capítulos curtos e até certo ponto independentes, em geral contendo um episódio completo. A trama, por isso, é complexa, formada de histórias que se sucedem e nem sempre se relacionam por causa e efeito. “Filho de uma pisadela e de um beliscão” (referência à maneira como seus pais flertaram, ao se conhecer no navio que os conduz de Portugal ao Brasil), o pequeno Leonardo é uma criança intratável, que parece prever as dificuldades que irá enfrentar. E não são poucas: ROMANCE MALANDRO Nos estudos sobre a obra, houve uma linha de interpretação que, seguindo as indicações de Mário de Andrade, e tendo como base o 47 enredo episódico do livro, classificou o romance como uma manifestação tardia do “romance picaresco”, gênero popular espanhol medieval dos séculos XVII e XVIII. O gênero picaresco – do qual o mais ilustre representante é o romance Lazareto de Tormes – caracteriza-se por narrar, em primeira pessoa, os infortúnios de um pícaro, um garoto inocente e puro que se torna amargo à medida que entra em contato com a dureza das condições de sobrevivência. Por isso procura sempre agradar a seus superiores. O pícaro tem geralmente um destino negativo, acaba por aceitar a mediocridade e acomodar-se na lamentação desiludida, na miséria ou num casamento que não lhe dá prazer algum. Nenhuma dessas características está presente em Memórias de umSargento de Milícias. Leonardo não é inocente. Ao contrário, parece já ter nascido com “maus bofes”, como afirma a vizinha agourenta. Também não é totalmente abandonado, tendo sempre alguém que toma seu partido e procura favorecê-lo. Ele ainda desafia seus superiores, como o mestre-de-cerimônias e o Vidigal. Por fim, Leonardo não encontra um destino negativo, pois se casa com o objeto de sua paixão (Luisinha, a sobrinha de dona Maria), acumulando cinco heranças e granjeando uma promoção com o major Vidigal. Existem, de fato, algumas semelhanças entre Leonardo e os personagens picarescos. Uma é a atitude inconsequente do protagonista, que o leva, por exemplo, a esquecer-se rapidamente de Luisinha ao conhecer Vidinha. Depois, o amor antigo retorna, mas nada dá a entender que não possa acabar novamente. Essas semelhanças, porém, são superficiais, por isso é problemática a classificação de Memórias de um Sargento de Milícias como romance picaresco. O que se vê é que Manuel Antônio de Almeida foge completamente ao idealismo romântico de sua época. Se há traços românticos em sua obra, eles estão no tom irônico e satírico que assume o narrador. A conclusão possível é que estamos diante de um novo gênero nacional, que se constrói em torno da figura do malandro, personagem que tem influências popularescas, como Pedro Malasarte; mas é urbano e relaciona- se socialmente com as esferas da ordem e da desordem, já citadas. É mais apropriado, por isso, classificar essa obra como um “romance malandro”, de cunho satírico e com elementos de fábula. Esse gênero frutificará em vários romances posteriores, como Macunaíma, de Mário de Andrade, e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade. pachorrento; como era moleirão, ninguém o procurava para negócios e ele nunca saía da esquina, passava os dias sentado, tendo a sua infalível companheira depois dos cinqüenta, a bengala. Como sempre se queixava dos 320 réis por citação, deram-lhe o apelido de Pataca. Cansado de ser o Leonardo algibebe de Lisboa viera ao Brasil e não se sabe por proteção de quem havia alcançado o posto de meirinho. Ainda a bordo do navio, conhecera Maria da hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitona. Eles se conheceram quando ela estava encostada à bordo do navio e ele, ao passar, fingiu-se de distraído e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. De beliscões e pisadelas, tornaram-se amantes e quando saltaram em terra ela começou a sentir certos enojos. Os dois foram morar juntos e sete meses depois, manifestaram-se os efeitos da pisadela, nasceu o herói dessa história, um formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão. Assim que nasceu, mamou duas horas seguidas, sem largar o peito. Os padrinhos de batismo foram a madrinha parteira e o compadre barbeiro, foi uma festança; o compadre trouxe a rabeca e todos dançaram o fado e apesar da dificuldade em encontrar pares, o minueto; Leonardo queria uma festa refinada, mesmo com dificuldade em achar pares. Levantaram: uma mulher gorda, baixa e matrona, sua companheira, cuja figura era a mais completa antítese da sua, um colega do Leonardo, miudinho e pequenino, com ares de gaiato e o sacristão da Sé, alto e magro, com pretensões de elegante. Enquanto compadre tocava o minueto na rabeca, o afilhadinho acompanhava cada arcada com um guincho e um esperneio, fazendo o compadre perder, várias vezes, o compasso. Aos poucos o minueto foi desaparecendo e a coisa esquentou, chegaram os rapazes da viola e machete; logo, a coisa passou de burburinho para gritaria e algazarra, que só parou quando perceberam que o Vidigal estava por perto. A festa acabou tarde. A madrinha foi a última a sair, mas antes colocou um raminho de arruda no pimpolho. II – Primeiros infortúnios - O narrador, mais um vez, inclui o leitor na narrativa, chamando-o para pularem alguns anos desde o batizado do herói e irem encontrá-lo com sete anos, mas antes avisa que durante todo esse tempo o menino não desmentiu aquilo que já se anunciava, ou seja, desde o nascimento já atormentava: ainda bebê era o choro, mas assim que se pôs a andar era um flagelo, quebrava e rasgava tudo o que podia; o que mais gostava era do chapéu do pai e sempre que podia por-lhe as mãos, punha-lhe dentro tudo o que encontrava. Quando não traquinava, comia. Maria não lhe perdoava, tanto que o menino trazia uma região do corpo bem maltratada, mesmo assim ele não se emendava, era teimoso, suas travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas. Foi assim que o herói chegou aos sete anos. Como a mãe, Maria, sempre fora saloia, o pai, Leonardo, suspeitava de que estava sendo traído, pois por diversas vezes viu um certo sargento se esgueirando e enfiando olhares curiosos janela adentro. Outras vezes estranhou que um certo colega sempre ia procurá-lo em casa; mas o mais grave foi, não só deparar-se várias com um certo capitão do navio de Lisboa junto de sua casa, como também, ao entrar em casa, vê-lo fugir pela janela. Não agüentou, cerrou os punhos e tremendo com todo o corpo, gritou: — Grandessíssima!..., em seguida, saltou sobre Maria. Ela saltou para trás, pôs-se em guarda e sem temer advertiu-o: — Tira-te lá, ó Leonardo! Como a sua resistência, frente ao ódio de Leonardo, era inútil, começou a correr e pedir socorro ao compadre Barbeiro que ocupado, ensaboando a cara de um freguês, nada pôde fazer e ela, como única opção, encolheu-se em um canto. O menino, no maior sangue-frio, enquanto rasgava as folhas dos autos que o pai havia largado ao entrar, assistia à mãe que apanhava. Quando o pai estava se acalmando, viu a obra do filho e tornou a se enfurecer: suspendeu o filho pelas orelhas, fazendo-o dar meia volta; em seguida ergueu o pé direito e dizendo que o menino era filho de uma pisadela e de um beliscão, assentou-lhe em cheio sobre os glúteos, atirando-o a quatro braças de distância. O menino ergueu-se rapidamente e em três pulos estava dentro da loja do padrinho; nem bem havia entrado, esbarrou na bacia de água com sabão que estava nas mãos do padrinho e acabou batizando o freguês com toda aquela água. Resumo O narrador, baseando-se em uma história contada por um sargento de milícias aposentado, adota a postura de contador de histórias para narrar os costumes e acontecimentos de mais ou menos cinqüenta anos atrás. Logo, o narrador não viveu na época das estripulias de Leonardo. I – Origem, nascimento e batismo - É a apresentação do protagonista Leonardo. O narrador, baseando-se na história que um sargento de milícias aposentado lhe contou, narra a vida e os costumes do Rio de Janeiro na época em que D. João VI esteve no Brasil, daí iniciar com: Era no tempo do rei. – volta a um passado não muito distante. No Rio de Janeiro, na rua do Ouvidor, havia um local em que os meirinhos se reuniam, daí o nome o canto dos meirinhos, os meirinhos da época em que vivia o narrador, Segunda metade do século XIX, eram apenas uma sombra caricata daqueles do tempo do rei, gente temida e temível, respeitada e respeitável e a sua influência moral era a de formarem um dos opostos da cadeia judiciária; mas além da influência moral tinham também a influência que derivava de suas condições físicas, que é o que falta nos meirinhos de hoje (época em que vivia o narrador da obra), estes são homens como quaisquer outros, confundem-se com qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição; já os da época do rei eram inconfundíveis tanto no semblante quanto no trajar: “sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadachim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu armado. Nesta época ele podia usar e abusar da sua posição. Após a comparação, o narrador chama o leitor para participar da narrativa, usando para isso, a primeira pessoa do plural: “Mas voltemos à esquina , à abençoada época do rei”, e lá apresenta-lhe a equação meirinhal; um grupo de meirinhos conversando sobre tudo que era lícito conversar: vida dos fidalgos, fatos policiais e astúcias do Vidigal. No grupo destacava-se Leonardo-Pataca, uma rotunda e gordíssima figura de cabelos brancos e carão avermelhado; era moleirão e 48 IV – A fortuna - Enquanto o compadre, procura o afilhado por toda a parte, o narrador, ao convidar o leitor para ver o que era feito do Leonardo, acaba chegando nas bandas do mangue da Cidade Nova, em uma casa coberta de palha da mais feia aparência, possuía dois cômodos e a mobília compunha-se de dois ou três assentos de paus, algumas esteiras, uma caixa enorme de pau que servia para várias coisas: mesa de jantar, cama, guarda-roupa e prateleira. Quem morava nessa tapera não era o Leonardo, mas sim um feiticeiro, um caboclo velho, que conforme crença da época, tinha por ofício dar fortuna. Não era só a gente do povo que acreditava, mas também muita gente da alta sociedade o procurava para comprar a felicidade pelo cômodo preço da prática de alguma imoralidades e superstições. Dentre a gente do povo que o procurava em busca de fortuna, temos o Leonardo Pataca por causa das contrariedades que sofria com um novo amor. Era uma cigana que Leonardo conhecera logo após a fuga de Maria, isso porque ele era romântico - termo que na época do narrador significa babão, já na época de Leonardo Pataca significava que ele não podia passar sem uma paixãozinha. Como a sua profissão rendia não lhe era difícil conquistar a posse do adorado, mas a fidelidade, a unidade no gozo, que era o que sua alma aspirava, isso não conseguira pois a cigana era tão saloia quanto Maria - da - Hortaliça, esta fugira com outro com a desculpa de saudades da pátria, mas a outra não eram saudades, o que fez Leonardo buscar meios sobrenaturais para consegui-la de volta, já que os meios humanos movidos por súplicas não funcionaram. O seu desespero era tamanho que se entregou de corpo e alma ao caboclo da casa do mangue, além de contribuir com dinheiro, já ter sofrido fumigações de ervas sufocantes, tragar bebidas enjoativas; decorar milhares de orações misteriosas, que era obrigado a repetir muitas vezes por dia; tinha também que depositar quase todas as noites em lugares determinados quantias e objetos com o fim de chamar em auxílio, dizia o caboclo, as suas divindades; apesar de tudo isso a cigana resistia ao sortilégio. A última prova para a reconquista foi marcada para a meia-noite; à hora marcada Leonardo encontrou à porta, o nojento nigromante que não permitiu que ele entrasse vestido, obrigou-o a trajar-se à moda de Adão no paraíso e após cobri-lo com um manto imundo, abriu-lhe a entrada. Lá dentro, após ajoelhar-se e rezar em todos os cantos da casa, Leonardo aproximou-se da fogueira, quatro figuras saíram do quarto e foram juntar-se a eles e todos dançavam sinistramente ao redor da fogueira quando de repente bateram levemente a porta e pediram para abri-la, isto fez com que todos de dentro se sobressaltassem: era o major Vidigal. O afilhado apontou o problema e o padrinho, após desculpar-se com o freguês, resmungou: — Ham! resmungou; já sei o que há de ser... eu bem dizia... ora ai está!... e foi acudir o que acontecia. Por estas palavras vê-se que ele suspeitara alguma coisa; e saiba o leitor que suspeitara a verdade. - Não se pode deixar de perceber nesse fragmento que o narrador conversa com o leitor, chamando-o para a narrativa. O compadre já sabia o que estava acontecendo pois era comum, na época, espionar a vida alheia, logo, conhecia todas as visitas da comadre. O barbeiro entrou na casa do compadre Leonardo e ao perguntarlhe se havia perdido o juízo, ele respondeu-lhe Ter perdido a honra. Maria apareceu e sentindo-se protegida pelo compadre, pôs-se a zombar e a xingar toda a classe masculina; assim que acalmou o segundo “round” de murros, enquanto ela chorava em um canto, Leonardo, com olhos e bochechas vermelhas, juntou os papéis rasgados, a bengala e o chapéu e saiu batendo a porta. Era de manhã. À tarde quando o compadre retornou à casa, decidido fazer as pazes com Maria, ela não estava mais lá, havia fugido com o capitão do navio de Lisboa. Leonardo saiu sem falar nada e o pequeno ficou com o Compadre Barbeiro. III – Despedidas às travessuras - O pequeno, enquanto se achava novato na casa do padrinho, portou-se com sisudez e seriedade, mas assim que foi se familiarizando com o novo ambiente, começou a pôr as manguinhas de fora; mesmo assim, o padrinho estava cego de afeição pelo menino, tanto que por pior que fosse a travessura do garoto ou mal-criação, ele achava graça dizendo serem atitudes ingênuas. A atitude do homem era natural, visto que ele já tinha 50 e tantos anos, nunca tinha tido afeições; passara sempre só, isolado; era verdadeiro partidário do mais decidido celibato. Logo à primeira afeição que fora levado a contrair sua alma expandiu-se toda inteira, e seu amor pelo pequeno subiu ao grau de rematada cegueira. Este, aproveitando-se da imunidade em que se achava por tal motivo, fazia tudo quanto lhe vinha à cabeça. O menino era de fato endiabrado: várias vezes sentado na loja divertia-se em fazer caretas aos fregueses quando estes se estavam barbeando. Uns riam e outros se enfureciam, do que resultava que saíam muitas vezes com a cara cortada, com grande prazer do menino e descrédito do padrinho. Outras vezes escondia em algum canto a mais afiada navalha do padrinho, e o freguês levava por muito tempo com a cara cheia de sabão mordendo-se de impaciência enquanto este a procurava; ele ria-se furtiva e malignamente. Em casa, nada ficava inteiro por muito; pelos quintais atirava pedras aos telhados dos vizinhos; sentado à porta da rua, entendia com quem passava e com quem estava pelas janelas, de maneira que ninguém por ali gostava dele. O padrinho, porém, não se dava disto, e continuava a querer-lhe sempre muito bem. Desempenhando o papel de pai, passava às vezes, as noites fazendo castelos no ar a seu respeito; sonhava-lhe uma grande fortuna e uma elevada posição, e tratava de estudar os meios que o levassem a esse fim. Queria o melhor para o menino, já que havia se arranjado na vida, pensava até em enviá-lo para Coimbra, (como um babeiro havia se arranjado na vida e conseguido dinheiro para isso, segundo o narrador, é assunto para outra história). Segundo o barbeiro, a melhor profissão para o menino seria a de clérigo. Após ruminar por muito tempo essa idéia, certa manhã, uma Quarta-feira, chamou o pequeno, então com 9 anos, e disse-lhe que deveria se fartar de travessuras até o resto da semana, dali em diante, só aos domingos, após a missa. O pequeno levou a fala do padrinho ao pé da letra e achou que era uma licença ampla para fazer tudo o que quisesse, fosse bem ou mal. Ao anoitecer, sentado à porta, o padrinho viu de longe um acompanhamento alumiado pela luz de lanternas e tochas e ouviu padres rezarem. Era a via sacra do Bom Jesus. O menino quando viu aquilo, estremecendo de alegria, lembrou se da fala do padrinho, “fartar-se de travessuras”; não perdeu tempo: misturou-se com a multidão, e lá foi concorrendo com suas gargalhadas e seus gritos para aumentar a vozeria. Com um prazer febril pulava, cantava, gritava, rezava e saltava, era um prazer febril; só não fez o que não tinha forças. Para ajudar ainda mais ass estripulias, juntou-se com mais dois moleques e as estripulias foram tantas, que quando deu por si a via-sacra já havia retornado à igreja do Bom Jesus. V – O vidigal - Nessa época ainda não estava organizada a polícia da cidade, portanto o major era rei absoluto, era o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial. Entretanto, frente aos costumes e acontecimentos da época, ele não abusava muito de seu poder, e o empregava em certos casos muito bem empregado. Era um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar sempre baixo, os movimentos lentos, e voz descansada e adocicada. Apesar deste aspecto de mansidão, não se encontraria por certo homem mais apto para o seu cargo inquisidor. O major Vidigal juntamente com uma companhia de soldados escolhido por ele rondavam a cidade a noite e a sua polícia durante o dia. Não havia um lugar em que a sagacidade do major não caçasse vagabundos. Ele espalhava terror. O som daquela voz que dissera “abra a porta” gerava medo nos integrantes da sala, era o prenúncio de um grande aperto, com certeza não conseguiriam escapar. Mesmo assim, o grupo pôs-se em debandada, tentaram sair pelos fundos, mas a casa estava cercada e todos foram pegos em flagrante delito de nigromancia. O major por sua vez, já dentro da casa, pediu-lhes que continuassem com a cerimônia pois queria ver como era. Resistir era inútil, então, após hesitarem, recomeçaram ritual. Já fazia meia hora que dançavam andando ajoelhados, mas sempre que paravam o major pedia para continuarem. Muito tempo depois pararam, mas o major pediu-lhes para continuarem. Não agüentavam mais, mas o major pedia 49 para continuarem. Muito, mas muito tempo depois, quando já se arrastavam, o major ordenou-lhes que parassem e pediu aos granadeiros para tocarem, o que fez os soldados arrancarem as chibatas e o grupo feiticeiro dançar muito mais. Depois de reger a música para a frenética dança, o major Vidigal começou o interrogatório. Perguntou a ocupação de um por um e nada ouviu, até que chegou a vez do Leonardo Pataca, reconheceu-o e quando o pobre homem explicou-lhe o motivo de tudo aquilo, o major prontificou-se a curá-lo e arrastou-o para a casa da guarda no largo da Sé, era uma espécie de depósito que guardava os que haviam sido presos durante a noite até dar-lhes um destino. Ao amanhecer, toda a cidade já sabia do ocorrido e Leonardo foi mandado para a cadeia o que fez os companheiros mostrarem-se sentidos, a princípio, para logo depois gostarem pois enquanto o colega estava preso eles seriam procurados para os negócios, era um concorrente a menos. religiosas, nem se fala, pois a igreja tomava um ar lúgubre ao se encher daqueles vultos negros que se uniam e cochichavam a cada momento. Apesar de tudo, a mantilha era o traje mais conveniente da época, posto que as ações dos outros era o principal cuidado de quase todos, era necessário ver sem ser visto. Funcionava como um observatório da vida alheia. O fato de ser parteira, beata e curandeira, tomava-lhe muito tempo, tanto que fazia tempo que não via nem sabia nada do compadre, Leonardo, Maria e do afilhado, até que um dia na Sé, ouviu as beatas comentarem sobre Maria Ter apanhado de Leonardo, ter fugido com um capitão e o filho, um mal-educado, ter ficado com o barbeiro. Ao ouvir a história, pôs-se rumo à casa do barbeiro, lá chegando questionou o fardo deixado para o homem carregar. Após Ter respondido ao interrogatório da comadre, pôs-se a defender o pequeno, dizendo ser sossegadinho, gentil e ter intenções de ser padre. A comadre não concordou como compadre e retirou-se. A partir desse dia, a comadre sempre aparecia na casa do compadre. O padrinho, não desistindo de seus sonhos, pôs se a ensinar o ABC ao afilhado, que empacava no F. Após apresentar a comadre, o narrador volta a informar o paradeiro de Leonardo. VI – Primeira noite fora de casa - Assim que deu por falta do afilhado, o compadre, todo aflito, pôs-se a procurar pela vizinhança, mas ninguém tinha notícias do menino. Lembrou-se então da via-sacra e pôs se a percorrer as ruas. Indagando, aflitoa, a todos que encontrava pela rua, o paradeiro do seu tesouro. Quando chegou ao Bom-Jesus, informaram-lhe terem visto três endiabrados que foram expulsos da igreja pelo . Essa era a única pista que tinha. Retornou a sua casa e ao indagar novamente a vizinha, exasperouse quando esta lhe respondeu que o menino tinha maus bofes e que a história não teria um bom final. O pobre homem passou a noite em claro e decidiu, antes de pedir ajuda ao Vidigal, esperar mais um dia. Enquanto o compadre dá esse prazo, o narrador conduz o leitor ao paradeiro do menino. Junto com os emigrados de Portugal, veio também para o Brasil, a praga dos ciganos, gente ociosa e sem escrúpulos, tão velhacos que quem tivesse juízo não se me tia com eles em negócios; quanto a poesia de seus costumes e crenças, deixaram do outro lado do oceano, trazendo para cá, apenas os maus hábitos. Viviam quase na ociosidade, não tinham noite sem festa. Moravam ordinariamente nas ruas populares e viviam em plena liberdade. Os dois meninos, com quem o pequeno fizera amizade, eram de uma família dessa gente e acostumados à vida à toa, conheciam toda a cidade, percorriam-na sós. Após se conhecerem na via-sacra, carregaram o pequeno para a casa dos pais. Pelo caminho o menino ainda teve escrúpulos de voltar mas decidiu seguir os dois e ir até onde iriam. Lá , como era de se esperar, havia uma festa para o santo de sua devoção. Daí a pouco começou o fado e o menino, esquecido de tudo pelo prazer, assistiu a tudo enquanto pôde; mas ao chegar o sono, reuniu-se com os companheiros em um canto e adormeceram, embalados pela música e sapateado. Acordou sobressaltado e pediu aos companheiros que o levasse para casa. Quando o padrinho ia recomeçar a busca, esbarrou no afilhado e ao interrogá-lo, ele respondeu que como queria que ele fosse padre, tinha ido ver um oratório. O padrinho, não resistiu à ingenuidade do afilhado e sorrindo levou-o para dentro. VIII – O pátio dos bichos - No palácio del-rei, conhecido nos tempos do narrador como paço imperial, existia no saguão, uma saleta, conhecida com salão dos bichos, apelido dado em conseqüência de seu uso: Diariamente, passavam por ele três ou quatro oficiais superiores velhos, incapazes para a guerra e inúteis para a paz, eram pouco usados pelo rei, logo passavam ociosos a maior parte do tempo. Dentre eles, destaca-se um português, era tenente-coronel. A sua importância na história e que foi ele quem a comadre procurou para pedir a libertação de Leonardo. Após ouvi-la, o velho colocou o chapéu armado, pôs a espada à cinta e saiu. Em breve, saber-se-á do resultado. IX – O arranjei-me do compadre - Aqui, o narrador revelará alguns fatos da vida do compadre, até agora desconhecidos: o compadre nada sabia de seus pais ou parentes e quando jovem, achouse na casa de um barbeiro, não sabia se estava lá como filho ou agregado; não só cuidava do barbeiro como também herdara dele a profissão. Já adolescente, sabia barbear e sangrar sofrivelmente e como jamais conseguiria se manter com essa profissão, visto que o sucesso e fregueses cabiam ao seu mestre, saiu sem rumo. Como todo barbeiro é tagarela, conheceu um marujo que acabou colocando-o a bordo, como barbeiro e sangrador. A bordo, ganhou fama quando sangrou e curou dois marujos doentes e com sua lanceta não deixou nenhum negro do carregamento morrer. Poucos dias antes de chegar ao Rio, o capitão do navio adoeceu e nem com a Quarta sangria ele melhorou. Havia chegado a hora do capitão, não havia sangria que o salvasse. Moribundo e em segredo, o capitão, que confiava no barbeiro, entregou-lhe uma caixa, deu lhe o endereço e pediu-lhe que entregasse a sua filha, em seguida disse que espiaria a sua tarefa lá do outro mundo. Pouco tempo depois, o capitão morreu. A partir daí, o barbeiro já não sangrava mais como antes e decidiu não embarcar mais. Quanto a história do capitão, sequer havia testemunhas então, o compadre instituiu-se como herdeiro do capitão. Foi assim que ele se arranjou na vida. VII – A comadre - Vale agora falar um pouco de uma personagem que desempenhará um importante papel ao longo da história: é a comadre, a parteira e madrinha do memorando. Era uma mulher baixa, gorda, bonachona, ingênua ou tola até certo ponto, e fina até outro. Vivia do ofício de parteira e de benzedeira. Era conhecida como beata e papa-missas. O seu traje habitual era como já se esperava, igual ao de todas as mulheres da sua condição e esfera, uma saia de lila preta, que se vestia sobre um vestido qualquer, um lenço branco muito teso e engomado ao pescoço, outro na cabeça, um rosário pendurado no cós da saia, um raminho de arruda atrás da orelha, tudo isto coberto por uma clássica mantilha, junto à renda da qual se pregava uma pequena figa de ouro ou de osso. O uso da mantilha era um arremedo espanhol e segundo o narrador era uma coisa poética pois revestia as mulheres de um certo mistério, realçava lhes a beleza, mas a mantilha das mulheres brasileiras era muito mais prosaico do que se podia imaginar, principalmente usadas por gordas e baixas. As mantilhas usadas nas brilhantes festas X – Explicações - O velho tenente-coronel, apesar de virtuoso, bom e de estar numa idade inofensiva, tinha um sofrível par de pecados da carne, tanto que aos 36 anos havia deixado em Lisboa, um filho. Aos 20 anos era um cadete desordeiro, jogador e insubordinado. Deixava o pai, um homem de respeito, desesperado. Poucos dias antes de embarcar para o Brasil, em companhia de elrei, o infeliz pai foi procurado por uma mulher velha, baixa, gorda e vermelha, vestida, segundo o costume das mulheres da mais baixa classe do seu país: um vestido de chita e um lenço branco, triangular sobre a cabeça e preso embaixo do queixo. Estava nervosa e agitada, seus lábios franzinos e franzidos estavam apertados um contra o outro, como se segurassem uma torrente de injúrias. Assim que chegou em frente ao capitão, era esse o posto do velho tenente-coronel na época, olhou-o com ar resoluto e enfurecido, fazendo-o, instintivamente, dar um passo atrás. Ela, colocando as mãos nas cadeiras e chegando a boca bem perto do rosto do capitão, logo já se pôde deduzir: o problema era com o filho 50 do capitão que pôs-se a namorar Mariazinha, filha da velha nervosa. Segundo a mulher, foi namoro pra lá, namoro pra cá e... brás!.. O capitão foi às nuvens. A mulher ainda afirmou que o rapaz havia prometido casamento a filha. Após pensar um segundo, viu que não poderia deixar o filho casarse com a filha de uma colareja e além do mais, o que ele ganhava como cadete não era suficiente para o rapaz sustentar uma família. Então, o capitão disse a mulher que pensaria no caso. O capitão, em apuros, procurou a mulher e ofereceu alguma coisa para que ela se calasse e não estourasse. Não deu para ele pensar muito no assunto pois havia chegado a hora. Então, deixando o filho aos cuidados de conhecidos, partiu. Já no Brasil, anos depois, soube que a tal Mariazinha estava no Rio de Janeiro, em companhia de Leonardo. Era a Mariazinha, a famosa Maria-da-Hortaliça. Sabe-se agora o porquê de o velho tenente-coronel prometer ajudar Leonardo: acontece que o velho, procurando satisfazer o seu escrúpulo de pai honrado, fazia o que podia pela moça que seu filho havia desonrado. Em segredo havia feito um trato com a comadre, ou seja qualquer necessidade que Maria-da-hortaliça sofresse, ele supriria, bastaria que a comadre o informasse. Como a comadre o ajudava, ele deveria ajudá-la, é essa troca de favores que fê-lo, assim que falou com a comadre, dirigir-se à cadeia e após ouvir a história vinda da boca de Leonardo, dirigiu-se à casa de um amigo, um fidalgo. Em poucas palavras o tenente-coronel pôs-lhe a par de tudo e o fidalgo prometeu ajudar. O velho tenente-coronel, satisfeitíssimo pôs-se rumo à cadeia a fim de contar a novidade a Leonardo. comadre sem reduzir a amizade do barbeiro pelo afilhado, o melhor e informar que os progressos do menino agradavam o padrinho, pois o pequeno já lia, sofrivelmente e aprendera a ajudar na missa. Preocupado com o futuro da criança foi procurar um mestre, Era este um homem todo em proporções infinitesimais, baixinho, magrinho, de carinha estreita chupada, excessivamente calvo; usava de óculos, tinha pretensões de latinista, e dava bolos nos discípulos por dá cá aquela palha. Era um dos mais acreditados na cidade. O barbeiro entrou acompanhado do afilhado. Era Sábado, os bancos estavam cheios de crianças; os dois entraram exatamente na hora da tabuada cantada, uma espécie de ladainha de números, era monótono e insuportável, mas os meninos gostavam. As vozes dos meninos, acompanhadas pelos passarinhos nas gaiolas, faziam uma algazarra de doer os ouvidos. Na Segunda-feira, lá estava o menino, munido de sua pasta a tiracolo, a sua lousa e o seu tinteiro de chifre. Logo no primeiro dia levou quatro bolos o que o fez declarar guerra viva à escola. Na saída, assim que viu o padrinho, disse-lhe que não voltaria mais à escola, não queria ter que apanhar para aprender. O barbeiro ficou contrariado temendo que a maldita vizinha soubesse que o menino havia apanhado no primeiro dia de escola, mas o pequeno só concordou em retornar caso o padrinho falasse ao mestre para não lhe bater mais. O padrinho, a fim de persuadi-lo, concordou. O menino entrou na escola desesperado e como não ficasse quieto ou calado, foi colocado de joelhos e nessa posição foi surpreendido atirando uma bolinha de papel nos colegas; resultado: doze bolos, o que fez o menino despejar sobre o mestre, todas as injúrias que sabia. Segundo o barbeiro, os dezesseis bolos do primeiro dia deviam-se a praga que a vizinha deveria ter jogado, mas ele venceria. XI – Progresso e atraso - Após todas essas explicações , apresentações e origem dos personagens, o narrador volta a se concentrar no memorando, ou seja em Leonardo, afilhado do barbeiro, pois a última vez que fora mencionado estava encalhado no F e agora já está no P, de novo empacado, mas o progresso do menino havia deixado o padrinho muito contente. O difícil era fazê-lo decorar o padre-nosso, em vez de dizer “venha a nós o vosso reino”, ele dizia : “venha a nós o pão nosso”. O maior suplício para o menino era ir à missa ou ao sermão. Mesmo assim, enquanto todos viam em Leonardo um grande peralta, principalmente a vizinha, o padrinho não perdia as esperanças de vê-lo um clérigo. Era a tal vizinha uma dessas mulheres que se chamam de faca e calhau, valentona, presunçosa, e que se gabava de não ter papas na língua: era viúva, e importunava a todo o mundo com as virtudes do seu defunto. Ela não perdia tempo em desmentir o vizinho em suas esperanças a respeito do afilhado. Certo dia, o barbeiro não suportou mais, pois certo dia, ao chegar a loja, a vizinha, à janela, perguntou-lhe, em zombaria, onde estava o seu reverendo. O barbeiro, vermelho, foi às nuvens e quando ela perguntou se o menino já sabia o padre-nosso, o homem não agüentou e exasperandose respondeu-lhe que o menino já sabia e que ele o fazia rezar todas as noites para seu marido que estava dando coices no inferno. A mulher retrucou e chamou-o de raspa-barbas. A discussão foi longe. Quando o compadre perguntou a mulher o porquê de ele implicar tanto com uma criança que nunca havia lhe feito mal, ela respondeu que ele vivia jogando pedras no telhado, fazia-lhe caretas e a tratava como se fosse uma saloia ou mulher de barbeiro. O menino ao ouvir tanto estardalhaço, pôs-se a porta e começou a arremedá-la. O compadre achou tanta graça que sentiu-se vingado e desatou a rir. Enquanto a discussão termina, o narrador aproveita para informar que o barbeiro sabia da prisão de Leonardo mas não se importava. Assim que o velho tenente-coronel colocou Leonardo na rua, decidiu tomar Leonardo para a sua proteção, acreditando que se conseguisse felicitá-lo, lavaria o seu filho do pecado; tanto que pediu à comadre que oferecesse ao compadre seu préstimo para o pequeno, chegou a pedir que o deixasse ir para a sua companhia. O compadre recusou e disse que era a sua função, para tampar a boca da vizinhança, transformar o menino em gente. XIII – Mudança de vida - Foi com muito sacrifício que o compadre conseguiu fazer o menino freqüentar a escola por dois anos, levando bolos todos os dias. Apesar de o mestre sustentar a fama de cruel, na verdade os bolos eram merecidos pois o menino era da mais refinada má-criação, sempre desobedecia a tudo que lhe era ordenado. Não parava quieto. Nunca uma pasta, um tinteiro, uma lousa lhe durou mais de 15 dias, era um velhaco que vendia aos colegas tudo o que podia Ter algum valor, empregando o dinheiro que conseguia, do pior modo que podia. No quinto dia de escola disse ao padrinho que já sabia ir sozinho, este acreditou e o afilhado, então somou mais um apelido ao de apanhabolos-mor, era o de gazeta-mor. O lugar que mais ficava quando cabulava aulas era a igreja da Sé, pois reunia-se gente e várias mulheres com mantilha, de quem tomara certa zanguinha por causa da madrinha. Lá, no meio da multidão, não o encontrariam se o procurassem. Como não saía da igreja, fez amizade com um pequeno sacristão tão peralta quanto ele, conseguiam se comunicar apenas com troca de olhares. Essa vida durou muito tempo, até que o padrinho voltou a acompanhá-lo. O menino decidiu que seria muito agradável acompanhar o colega sacristão, afogando em ondas de fumaça a cara da velha que chegasse mais perto e para isso comunicou ao compadre o seu desejo de freqüentar a igreja, tinha nascido para aquilo. Para o padrinho, foi a maior alegria quando ouviu o menino pedir que lhe fizesse sacristão. Em poucos dias aprontou-se, e em uma bela manhã saiu de casa vestido com a competente batina e sobrepeliz, e foi tomar posse do emprego. Ao vê-lo passar a vizinha dos maus agouros soltou uma exclamação de surpresa a princípio, supondo alguma asneira do compadre; porém reparando, compreendeu o que era, e desatou uma gargalhada e ao chamá-lo de Sr. Cura, o menino respondeu-lhe que seria e haveria de curá-la. Era aquilo uma promessa de vingança. O menino chegou à Sé impando de contente, a batina era como um manto real e foi na maior seriedade que entrou na função de sacristão. Já no dia seguinte, o negócio era outro: durante a missa cantada ele ficou com a tocha e o amigo, com o turíbulo, quando de repente, para infelicidade da vizinha, a quem o menino prometera curar, sem pensar, colocouse junto aos dois e bastou uma troca de olhar para se colocarem em distância e lugar conveniente: enquanto um, tendo enchido o turíbulo de incenso, e balançando-o convenientemente, fazia com que os rolos de fumaça que se desprendiam fossem bater de cheio na cara da pobre mulher, o outro com a tocha despejava-lhe sobre as costas da mantilha a cada passo plastradas de cera derretida, a mulher ao exasperar-se XII – Entrada para a escola - Para evitar repetir a história das mil travessuras do menino, que exasperaram a vizinhança e desgostaram a 51 ouviu o menino dizer que estava lhe curando. Como a igreja estava apinhada de gente, ela teve que suportar o suplício até o fim. terminada a missa queixou-se ao mestre-de-cerimônias e os dois ganharam uma tremenda sarabanda. Quando Leonardo a viu pela primeira vez, não conteve o riso: era já muito desenvolvida, porém ainda não tinha adquirido a beleza de moça: era alta, magra, pálida: andava com o queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos; o cabelo, cortado, dava-lhe apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça sempre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e olhos, como uma viseira. Mesmo tendo rido de Luisinha, quando o padrinho anunciou a nova visita à D. Maria, o jovem pulou de alegria, foi o primeiro a ficar pronto e lá foram os dois para o seu destino. XIV – Nova vingança e seu resultado - Apesar de os meninos não se importarem com a sarabanda, não perdoaram o mestre-de-cerimônias por tê-los humilhado em frente da vítima e resolveram desforrar e foi o caso assim: o pobre homem era um padre de meia idade formado em Coimbra na mais austeridade da igreja católica, poderia fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro; pois apesar de, aparentemente, buscar por assunto a honestidade e a pureza corporal, a sua essência era sensual, fato que muitos ignoravam, mas os dois pequenos estavam por dentro de tudo, tanto que sabiam que o padre enviava recados e objetos a uma cigana, a mesma de Leonardo Pataca. Já fazia três ou quatro dias que o padre não saía por estar decorando o sermão, um sacristão foi incumbido de lhe avisar quando chegasse a hora e os meninos não perderam tempo, o pequeno dirigiu-se à casa e após bater, perguntou, em voz alta, pelo sacristão. A cigana mandou-o entrar e ele em vez de dizer nove, disse dez horas. No dia seguinte, às nove em ponto, começou a festa e nada do pregador aparecer, o que fez um capuccino italiano, por bondade, oferecer-se para improvisar o sermão, já havia começado quando o mestre entrou e ambos começaram a disputar o púlpito. Assim que terminou, o mestre-de-cerimônias dirigiu-se ao menino que defendeuse dizendo que a cigana com quem ele estava era testemunha de que ele havia dito que o sermão seria às nove. O Oh! Que soltaram foi geral, mas o homem desmentiu. Terminada a festa despediu o menino que nem se importou. XIX – Domingo do Espírito Santo - Como era Domingo de Espírito Santo, ao chegarem a casa de D. Maria, encontraram todos à janela. Desta vez, ao ver a moça de branco e com os cabelos, penteados, não conseguiu rir, mas sim apreciar a figura da moça. Ela, por sua vez, continuava em seu inalterável silêncio e concentração. Mais tarde, os quatro iriam ver os fogos. XX – O fogo no campo - Luisinha estava atônita no meio de todo aquele movimento, mas Leonardo a puxava pelo braço. Para deleite de Leonardo, após a queima de fogos, os dois voltaram de mãos dadas. XXI – Contrariedades - Como aqui se faz e aqui se paga, chegou a hora de Leonardo pagar os seus tributos: o rapaz estava amando Luisinha, cujo comportamento voltara ao antigo estado de letargia, fato que fez o jovem sofrer grande contrariedade e fingindo desprezo que era despeito, murmurou um - que me importa! A situação mudou só mudou de figura quando o padrinho e o afilhado depararam com um desconhecido na casa de D. Maria. Era um homenzinho de mais ou menos trinta e cinco anos, magro, narigudo e de olhar penetrante, recém chegado da Bahia; era o Sr. José Manuel. Quem olhasse para a sua cara via logo que pertencia à família dos velhacos. Era uma crônica viva e escandalosa, sempre que podia desfiava um discurso de duas horas sobre a vida alheia. Padrinho e afilhado, nutriam pelo homenzinho, desde a primeira vez que o viram, uma grande antipatia. O pedantismo com que José Manuel tratava as duas era por um motivo muito simples: Luisinha era a única herdeira de D. Maria, assim, quem se casasse com a moça, daria-se bem. XV – Estralada - Quando Leonardo já havia se esquecido da cigana, descobriu que ela era amante do mestre-de-cerimônias e resolveu procurá-la para salvar sua alma, mas ela disse ter sido procurada por vários meirinhos mas nenhum havia lhe agradado. Então, após ter desejado uma estralada para a mulher, retirou-se jurando vingança. Dito e feito, contratou Chico-Juca que ganhava para dar pancada e o dia de colocá-lo em ação seria no aniversário da cigana. Após acertar tudo com o brigão, procurou o major Vidigal para falar sobre a festa. O plano deu tão certo que quando os soldados do Vidigal foram revistar o quarto, tiraram de lá, nada menos que o mestre-de-cerimônias em ceroulas, meias pretas e sapatos afivelados. Sem perdão, o padre foi para a casa da guarda. XXII – Aliança - A presença de José Manuel desagradava aos dois homens, e ele já havia percebido que os dois não gostavam dele. Leonardo amava Luisinha e o padrinho via na moça um excelente meio de vida para o rapaz. Tamanha era a preocupação do compadre que ele foi falar com a comadre que ficou de falar com D. Maria. Foi assim que se formou uma aliança entre o compadre e a comadre para derrotarem o concorrente de Luisinha. XVI – Sucesso do plano - O mestre-de-cerimônias não chegou ao xilindró, pois o Vidigal quis apenas dar-lhe um susto. Como era de se esperar, a notícia correu rapidamente e logo depois, todo envergonhado, ele seguiu para casa. Enfim, Leonardo e a cigana reataram o romance, para desgosto da comadre que tentava enfiar-lhe a sobrinha. Já o ex-sacristão, para desgosto do compadre, ainda estava com o seu destino incerto. XXIII – Declaração - Enquanto a comadre tecia planos para derrotar o rival do afilhado, este ardia em ciúmes. Para a sua sorte, Luisinha ignorava tudo e continuava indiferente. Leonardo, por sua vez, temendo que o compadre e a comadre derrotassem seu rival e ele não pudesse entrar em combate, tentou agir por conta, mas cada vez que ficava a sós com Luisinha, dava-lhe um tremor de pernas que mal conseguia ficar de pé ou articular qualquer palavra. Certa ocasião, a moça estava em pé, perto da janela e ele se aproximou ficando como a uma estátua atrás dela, quando ela se virou, a única reação do rapaz foi a de fazer uma careta; por fim criou coragem e disse-lhe que a queria muito bem; esta por sua vez, ficou cor de cereja e desapareceu pelo corredor. XVII – D. Maria - Num dia de procissão, o barbeiro, o afilhado, a comadre e a vizinha dos maus agouros estavam hospedados na casa de D. Maria, uma mulher muito velha e muito gorda, era rica, religiosa e caridosa. Lá, o menino ouviu a vizinha falando dele para a madrinha e como vingança, pisou na barra da saia da mulher que ao se levantar, rasgou em quatro palmos; a única atitude do barbeiro foi rir. Ali, todos discutiam o destino do menino e ao saírem, D. Maria pediu ao compadre que voltassem para falarem sobre o menino. XVIII – Amores - Alguns anos depois, o menino tornou-se um vadio-mestre, vadio-tipo, levando o padrinho ao mais completo desespero. A comadre conseguiu o que queria, Leonardo Pataca havia se arranjado com a sobrinha. D. Maria havia envelhecido sofrivelmente e era, na época, tutora de sua sobrinha que estava órfã. As demais personagens continuam do mesmo jeito. O memorando, agora adolescente, passou a ser tratado pelo nome, o mesmo do pai, Leonardo. O jovem estava apaixonado por Luisinha, a sobrinha de D. Maria. XXIV – A comadre me exercício - Leonardo-Pataca estava todo feliz, pois do seu relacionamento com Chiquinha, a sobrinha da comadre, nasceu uma pequerrucha, oposta ao irmão, pois era mansa e risonha. XXV – Trama - Quando a comadre não estava ocupada fazendo partos, ocupava-se em desconceituar José manuel para D. Maria. Então, começou a contar que uma moça muito rica, que vivia com a mãe orando no Oratório de Pedra, havia enchido uma meia preta com jóias e fugido com um homem, o mistério é que ninguém sabia quem era o tal; 52 então, a comadre, aproveitando-se da curiosidade da outra, após fazê-la jurar não contar nada a ninguém, disse que o homem era José Manuel. grossos e úmidos, os dentes alvíssimos, a fala era um pouco descansada, doce e afinada. Por ser cantora de modinhas, pôs-se a cantar: Se os meus suspiros pudessem Aos teus ouvidos chegar, Verias que uma paixão Tem poder de assassinar. Não são de zelos Os meus queixumes, Nem de ciúme Abrasador; São das saudades Que me atormentam Na dura ausência De meu amor. Leonardo ouviu a música boquiaberto e nunca mais tirou os olhos da cantora. XXXI - Novos amores - Já na casa do amigo, enquanto o jovem, pensava em Luisinha, José Manuel e Vidinha, ouvia mais uma música da bela cantora: Duros ferros me prenderam No momento de te ver; Agora quero quebrá-los, É tarde não pode ser. Este último passo acabou de desorientar completamente o Leonardo: reconheceu que havia se inclinado um só instante por Luisinha, mas estava apaixonado por Vidinha, mas eram duas irmãs com três filhos e três filhas que moravam numa mesma casa, logo, havia três casais de primos completos, mas dois gostavam de Vidinha, resumindo: Leonardo tinha mais dois rivais, mas sem Ter para onde ir, passou a noite ali. XXXII – José Manuel triunfa - Enquanto a comadre procurava Leonardo por toda a parte, o jovem ouvia modinhas. Cansada, a comadre acaba indo à casa de D. Maria. Lá, tudo que a comadre falava do afilhado, defendendo-o, D. Maria não concordava, acusava-o; algo estranho acontecia: José Manuel, aliado ao mestre-de-rezas, venceram. O velho conseguiu inocentar José Manuel e este tinha aprovação de D. Maria para ser pretendente de Luisinha. XXXIII – O agregado - Algumas semanas depois, Leonardo já era agregado na casa de Tomás da Sé, mas certo dia, ao ser surpreendido abraçado com Vidinha, acabou se atracando com um dos enamorados pela moça. Como parecia ser sua sina viver como o Judeu Errante, já ia se pondo a andar, quando a comadre o encontrou. XXXIV – Malsinação - As três velhas, após longa conversa, tornaram-se amigas e a tormenta dos três briguentos cessou e a comadre, cada vez que tentava fazer o afilhado voltar para casa, as duas velhas se metiam, até que, para a alegria de Vidinha, Leonardo resolveu ficar. A comadre ia regularmente visitar Leonardo e as duas novas amigas. Tudo ia as mil maravilhas, porém os dois primos despeitados tramavam e tramavam algo. Os dois colocaram o plano em ação no dia em que o grupo saiu para uma patuscada. Quando estenderam a esteira, surgiu o major Vidigal, que assim que chegou quis saber quem era Leonardo e assim que este se identificou, Vidigal o prendeu por vadiagem. Segundo Vidinha, foi uma malsinação. XXXV – Triunfo completo de José Manuel - Com o sumiço de Leonardo da casa de D. Maria, José Manuel teve espaço para agir a vontade, tanto que acabou ajudando D. Maria em uma demanda do testamento de Luisinha. Como já tinha adquirido a confiança da velha, aproveitou-se e pediu a moça em casamento. Luisinha estava naquela idade do abatimento, entre 13 e 25 anos e como não via Leonardo há tempos, aceitou a proposta de forma indiferente. Num Sábado à tarde, Luisinha e José Manuel casaram-se. Ora, os leitores hão de estar lembrados da mania que tinha D. Maria por uma demandazinha; atirava-se a ela com vontade, e tal era o empenho que empregava na mais insignificante questão judiciária, que em tais casos parecia ter em jogo sua vida. Daqui se poderá concluir a satisfação que teria ela no dia em que se achava vencedora, e como se não julgaria obrigada a quem lhe proporcionasse a vitória. José Manuel aproveitou-se disto; e no dia em que veio ler a D. Maria a sentença final que resolvia a pendência em seu favor, pediu-lhe a mão da sobrinha, a qual lhe foi prometida sem grandes escrúpulos. XXVI – Derrota - D. Maria ficou estupefada e a comadre satisfeita com o resultado. A fofoca foi interrompida pela chegada de José Manuel, que nem bem havia entrado e começou a falar que andava muito ocupado com uns arranjos mas não podia falar pois era segredo. As duas trocaram olhares significativos. Luisinha, desde a declaração de Leonardo, sofreu mudanças significativas tanto física quanto psicológica, passou a erguer os olhos, a falar, a mover-se. De tanto as duas senhoras cutucarem, José Manuel concordou em falar-lhes do seu negócio (não se pode esquecer de que ele era mentiroso) desde que elas fossem discretas; disse-lhes que havia sido chamado para ir ao palácio, mas assim que a comadre saiu D. Maria quis saber sobre a moça que ele havia roubado, mas o homem jurou e tresjurou que não tinha nada a ver com aquilo, mas D. Maria estava inflexível, resultado: José Manuel saiu na carreira. XXVII – O mestre-de-reza - Depois do acontecido na casa da D. Maria, José Manuel reconheceu que tinha ali um inimigo e que o motivo seria a sua pretensão à mão de Luisinha, só faltava saber quem. Rapidamente José Manuel pôs mãos à obra, ou seja, da mesma forma que Leonardo tinha seus protetores, ele teria um; para tanto, recorreu ao mestre-de-reza de D. Maria, que tinha fama de casamenteiro. O mestre-de-reza entrou em ação logo à noite, pois enquanto conversava com D. Maria, disse-lhe que sabia quem havia roubado a moça. XXVIII - Transtorno - Enquanto José Manuel agitava a casa de D. Maria, a vida de Leonardo agitava-se tristemente, pois o seu padrinho adoecera. Como D. Maria não conseguiu curá-lo, chamaram o velho da botica que prometeu curá-lo com umas pílulas. A comadre não gostou da idéia das pílulas, chegou até a franzir a testa, pois disse que nunca tinha visto quem as tomasse escapar vivo. A comadre tinha razão até certo ponto, pois três dias depois o compadre morreu. Na casa do falecido, Leonardo, todos os amigos, vizinhos e conhecidos estavam em prantos. Quando todos se foram, enquanto Leonardo e Luisinha conversavam, D. Maria e a comadre foram procurar o testamento do compadre e encontraram. Leonardo era o herdeiro universal do padrinho; quando Leonardo-Pataca ficou sabendo, apresentou-se para tomar conta do filho, mas este não gostou pois lembrou-se do pontapé, mas mesmo assim teve que acompanhá-lo e encontrar-se com a irmã e Chiquinha. Leonardo-Pataca não só cuidou do testamento como também ficou com tudo; não se pode esquecer-se de que além dos mil cruzados, tinha ainda aquele dinheiro do capitão do navio que ele “pegou”. Nos primeiros dias tudo foram flores, a família estava novamente unida: Leonardo-Pataca, Leonardo, a irmã e a comadre. Agora, somente Leonardo e a comadre continuavam as visitas à D. Maria. A paz familiar durou pouco, pois Leonardo não simpatizava com Chiquinha e esta começou a embirrar com Leonardo, resultado: na casa era a maior balbúrdia. XXIX - Pior transtorno - Leonardo, após ficar grande tempo na casa de D. Maria sem ver a amada, entrou em casa de mal com a vida e ao se sentar jogou a almofada de Chiquinha no chão; esta por sua vez chamou-o de namorado sem ventura e ele não se fez de rogado, espumando de cólera avançou em Chiquinha que disse-lhe Ter raça de saloio. Como Leonardo-Pataca estava em casa foi acudir e armado do espadim embainhado, atirou-se sobre o filho, chegou D. Maria e apesar de tomar partido do jovem, a única coisa que pôde fazer foi sair à sua procura, pois o pai o havia expulsado de casa. XXX - Remédio aos males - Após o carreirão que levara, o pobre rapaz, vagando pela cidade e pensando em Luisinha e no rival, chegou ao Cajueiro Gargalhadas vindas de uma moita tiraram-no do devaneio, procurou e encontrou um grupo de moças e moços sentados em uma esteira jogando baralho. Com o estômago roncando, ia se afastando quando um deles o chamou, era o seu antigo camarada, Tomás, aquele menino sacristão da Sé. Este apresentou-lhe a irmão, Vidinha, uma mulatinha de 18 a 20 anos, de altura regular, ombros largos, peito alteado, cintura fina e pés pequeninos; tinha os olhos muito pretos e muito vivos, os lábios 53 XXXVI – Escápula - Enquanto o casal está no gozo tranqüilo da lua-de-mel e D. Maria faz cálculos aritméticos aconselhando a sobrinha, Leonardo, a caminho da cadeia, ao ouvir uma confusão, teve uma vertigem, seus ouvidos zuniram, deu um encontrão no granadeiro e fugiu. Pouco depois estava na casa de Vidinha. Vidigal foi às nuvens, urrava; nunca nenhum garoto havia conseguido fugir. Jurara vingança. XXXVII – O Vidigal desapontado - Todos riram quando o major Vidigal, após vasculhar uma casa, saiu de mãos vazias. Quando o major ia entrando na casa da guarda, a comadre atirou-se aos seus pés e em prantos pedia a libertação do afilhado. Todos que a ouviam, riam e quando o major disse que ele havia fugido, ela saiu toda sorridente. XXXVIII – Caldo entornado - Assim que a comadre chegou à casa de Vidinha, todos puseram-se a rir, mas após a alegria, a comadre começou a passar-lhe um sermão, afirmando que Leonardo tinha que arranjar alguma ocupação, caso contrário cairia nas unhas do Vidigal. Leonardo prometeu se emendar. Poucos dias depois, a comadre arranjou-lhe um emprego de servidor na ucharia real. O major, mordendo os beiços, não o perdia de vista. Com o novo emprego, a despensa de Vidinha ficou abarrotada, ou seja ele tirava de l’’a e abastecia a casa. No pátio da ucharia morava um toma-largura na companhia de uma moça bonita. Acontece que o homem era extremamente bruto e Leonardo, na mais pureza dos sentimentos foi à casa da moça levar-lhe uma tigela de caldo. De repente a porta se abre, eras o toma-largura; a moça entornou o caldo, Leonardo pôs-se a correr e o toma-largura, atrás. Daí a pouco ouviu-se barulho e gritos e Leonardo atravessar o pátio às carreiras. No dia seguinte o Leonardo foi despedido da ucharia. XXXIX – Ciúmes - No dia seguinte o Vidigal já sabia de tudo e pôs-se em alerta. Em casa, Vidinha, enfurecida pelo ciúmes, pediu a mantilha da mãe para ir à ucharia falar com toma-largura . Leonardo que ouvia tudo, sem resultado pediu à moça que não fosse. No caminho, Leonardo deparou-se com o major e foi obrigado a acompanhá-lo. XL – Fogo de palha - Enquanto Leonardo era obrigado a seguir o “seu destino”, Vidinha já estava na ucharia. Lá, disse à moça do caldo que ela não tinha sentimentos fez um desaforozinho ao toma-largura e saiu, sem saber que era seguida por ele. XLI – Represálias - Em casa, enquanto Vidinha contava a sua aventura a todos, sentiram falta de Leonardo e reconheceram que este deveria estar com o Vidigal. No dia seguinte, Tomás, que até então não havia tomado parte de nada na agitada casa, saiu para tomar as providências em favor do amigo. Tomás foi à casa da guarda, mas não encontrou o amigo; procurou em outros lugares e nada. Sem opção, ele e os demais foram procurar a comadre que também pôs-se a procurar pelo afilhado e nada do moço. Como Leonardo não dava notícias, acharam que ele estivesse escondido, resultado: Vidinha e os familiares passaram a odiá-lo. O desaparecimento de Leonardo, aliado a visita que Vidinha fizera à ucharia, contribuíram para que ela visse, todos os dias, toma-largura duas vezes por dia. Pouco tempo depois os familiares da moça já gostavam dele e ele passou a frequentar a casa. Certo dia todos saíram para uma patuscada, mas toma-largura bebeu demais armou-se a confusão, o que gerou no aparecimento de Vidigal e dos granadeiros. Quando um deles se aproximou para prender toma-largura, todos se surpreenderam; Leonardo havia se tornado um dos granadeiros de Vidigal. XLII – O granadeiro - Como toma-largura estivesse bêbado, caiu estirado na calçada e o seu tamanho colossal, mas o fato de ser gente da casa real, fez com que os granadeiros deixassem-no ali. Convém agora, um leve flash-back para saber como Leonardo se tornou um granadeiro. Foi simples, na noite em que fora preso, como o regimento do Vidigal estivesse precisando de soldado, reconheceu que Leonardo seria de grande ajuda, pois conhecia todas as bocas do Rio de Janeiro. O problema é que sorrateiramente Leonardo aliava-se ao povo e ficava contra o major. XLIII – Novas diabruras - Um dia o major anunciou que tinha uma grande e importante diligência a fazer. Era prender um banqueiro de jogo-de-bicho e cantor satírico e chamado Teotônio. Onde havia festa ele era convidado. Por coincidência, Teotônio estava justamente na casa de Leonardo-Pataca, na festa de batizado de sua filha. Leonardo fora incumbido de entrar na casa e dar sinal para que prendessem o homem, mas como o jovem era astuto, fez Teotônio livrar-se da prisão, saindo disfarçado de corcunda. Mais uma vez enrolara o Vidigal. XLIV – Descoberta - Quando a patrulha do Vidigal estava batendo em retirada, um amigo de Teotônio, todo esfuziante, correu a abraçar Leonardo para agradecê-lo por ter enganado o major. O jovem granadeiro ficou estático e foi preso. Enquanto caminha para o quartel, como será que estão Luisinha e sua gente? Tudo eram rosas, mas pouco depois da lua-de-mel, José Manuel pôs as manguinhas de fora, de posse da moça e da herança, mudaramse da casa de D. Maria. Agora que os dois estavam sozinhos, ele se tornou um maridodragão, não permitindo que a esposa sequer saísse à rua. A moça chorava pela liberdade. Certo dia na missa, a comadre e D. Maria se encontraram e voltara a se falar. Uma falava das desgraças de Leonardo e a outra das de Luisinha. Ambas, agora, teciam planos para a libertação de Leonardo. XLV – Empenhos - Primeiro a madrinha foi falar com o major, mas sem resultado. Como o major era um pecador antigo, como última tentativa, a comadre e D. maria foram falar com o grande amor de Vidigal, a Maria-Regalada. Lá chegando puseram a mulher a par de tudo e as três, na cadeirinha, puseram-se rumo à casa do major. XLVI – As três em comissão - Lá chegando, o major recebeu-as de rodaque de chita e tamancos, mas quando reconheceu as três, correu o mais que pôde para pôr a farda. Na pressa retornou à sala de farda, calças de enfiar, tamancos e um lenço de alcobaça nos ombros. As três mulheres, chorando em um único coro, pediam a soltura de Leonardo, mas o major estava irredutível, até que Maria-Regalada chamou-o a um canto da sala e cochichou-lhe algo. Pronto, tudo mudou, Leonardo seria solto. XLVII – A morte é juiz - Nem bem chegou à casa, D. Maria, toda atrapalhada, teve que sair. José Manuel havia morrido. Luisinha pôs-se a chorar, mas como choraria por qualquer vivente, porque tinha coração terno. Isso bastou para que uma vizinha dissesse a outra que não eram lágrimas de viúva. A afirmação era correta, pois José Manuel nunca fora marido de Luisinha, senão por conveniência. À saída do enterro, os escravos fizeram a maior algazarra. Ao entardecer, para espanto de D. Maria, Leonardo dentro na sala, estava livre das garras do major e ainda por cima, promovido a sargento. Os olhos de Leonardo encontraram-se com os de Luisinha. Depois de conversarem com Leonardo estava de serviço, teve que se retirar. XLVIII – Conclusão feliz - Luisinha e Leonardo haviam reatado o antigo namoro; namoro de viúva anda depressa. Como sargento não podia se casar, foram a casa de Maria-Regala pedir ajuda e lá encontraram o major em rodaque e tamancos. Este era o segredo que Maria-Regalada havia lhe cochichado. Após conversarem o major concordou em dar baixa ao Leonardo; de sargento de tropas, seria sargento de milícias. Pouco tempo depois, Leonardo e Luisinha, casaram-se. Daí por diante, aconteceu o reverso da medalha: Leonardo Pataca devolveu os bens do filho, D. Maria e Leonardo Pataca morreram e mais uma enfiada de acontecimentos tristes que convém poupar e ponto final. Fontes: http://guiadoestudante.abril.com.br/estude/literatura/materia_41396 5.shtml 54