20/11/2006 1a W_EPACAPA€_001 - A TARDE
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20/11/2006 1a W_EPACAPA€_001 - A TARDE
SALVADOR, BAHIA SEGUNDA-FEIRA, SALVADOR, 20/11/2006 BAHIA SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA Sou de santo e raça Só 0,11% dos baianos no Censo 2000 assumiu ser de candomblé. Isso no Estado que tem os cultos afros como uma das marcas de sua identidade. A baixa estatística é vista pelo próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como resultado do preconceito que historicamente atinge as religiões de matriz africana. Até 1976, por exemplo, as suas festas religiosas só podiam acontecer com autorização da polícia. Um decreto do então governador Roberto Santos acabou com a exigência, mas ainda hoje a batalha contra a discriminação leva o povo-de-santo a ter que sair às ruas para gritar por liberdade e respeito. Neste caderno especial em homenagem ao Dia da Consciência Negra, histórias de luta contra o preconceito e pela afirmação. XANDO P. | ESPECIAL | 2 SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 [email protected] índice 4 5 Uma só cidade e várias nações da “mãe África” Jarê, religião dos mestres da Chapada Diamantina 6 Sábios em dizer não à intolerância 7 Tempo de gritar por liberdade religiosa 8 Herança religiosa foi formada pela diversidade 9 História de Zumbi traz boa lição de luta política 10 Terreiros conservam a tradição da resistência 11 Caridade e cura para evolução do espírito 12 Os terreiros que vieram a partir da Barroquinha 13 Candomblé cultiva a crença no elo universal 14 Comida para união de ofertantes e ancestrais 15 A arte abraça o axé numa troca que vem de longe Marcos Rezende Lindinalva Barbosa Contra a intolerância Aos pés de Xangô Quando recebi a missão de escrever estas bem traçadas linhas sobre a II Caminhada do Povo de Santo pela Vida e Liberdade Religiosa, não me dei conta da dimensão em que estava me envolvendo. E só pude perceber a complexidade do fato quando à noite, dentro do Terreiro de Oxumarê, sentei em frente ao computador para escrever o tal artigo. Pensava, pensava, pensava e nada. Tendo ficado em minha cabeça a velha história que a nossa tradição é oral. Pois bem, como sou do orixá e de luta, refleti que o que tinha a fazer mesmo era dormir. Dormir e me inspirar. Pedi então para Ewá me incitar bons sonhos e caminhos para tratar da caminhada. Resolvi então escrever como quem carrega o oxé de Xangô e o opaxorô de Oxalá para tratar da importância da caminhada realizada na última quarta pelas comunidades de candomblé. Há tempos que os nossos ancestrais caminham por este mundo carregando as concepções de vida e de morte, que também é vida para o povo negro. Há muito tempo o povo-de-santo, os omorixá (filhos de orixá) caminham neste País, nesta cidade, lutando pacificamente por liberdade, por justiça, por dignidade. Não pretendo fazer deste artigo um momento de lamúria ou de dor, mas sim de transformação, de um novo olhar. Nós, os representantes das religiões de matriz africanas, fomos às ruas ontem, um dia antes do Dia da Consciência Negra, porque o dia 19 é dia de domingo e num país laico, com dezenas de feriados católicos e com uma população de 48% de negros e uma cidade com o maior percentual de negros e negras do país, ainda não se dignificaram a transformar em feriado o dia 20 de novembro. O povo-de-santo foi às ruas em causa própria para homenagear as suas próprias tradições e raízes. Estivemos lá para falar de mãe Runhó do Bogum; Nezinho de Muritiba; do babalaô Martiniano Bonfim; de Bamboxé; de Tia Massi do Engenho Velho; de Mãe Menininha do Gantois; Dionísia do Alaqueto; Bernardino do Bate-Folhas; Procópio do Ogunjá; Ciriáco na Vila América; Cotinha do Oxumarê, Mãe Aninha do Opô Afonjá, dentre outras grandes personalidades. Grandes sacerdotes e sacerdotisas das religiões de matrizes africanas. Agora, como diriam os mais novos, somos nós na fita, sabendo que estamos apenas dando mais um passo frente a todo o caminho trilhado pelos nossos ebomis (mais velhos). Quisemos com esta atividade relembrar aos poderes públicos quem somos, onde estamos, o que fazemos, como pagamos os nossos impostos e que temos direito a voto (votamos e decidimos). Estamos cansados da opressão e aviltamento cotidiano. Cansamos de ser cartão-postal sem direitos, de ser cultura sem formação, de estar na internet sem acesso, de conhecer leis que não se colocam em prática, de ser utilizados em receptivos como atrativos, como moscas nesta emaranhada teia de conexões globalizadas e turísticas. Resolvemos sair de casa. Exu à frente enviando a mensagem, Ogum abrindo o nosso caminho, Oxóssi com a sua flecha certeira, Xangô com a sua justiça, Ossain com suas folhas sagradas, Omulu cuidando da nossa saúde, Oxum espelhando nossa beleza e conhecimento, Iemanjá nos dando a força materna, Logum-Edé com os seus encantos, Ewá com seus mistérios, Iansã os seus bons ventos e presságios, Iroko e o ancestral saber, Oxumarê com a visão do futuro, Nanã nos enviando e nos esperando, e Oxalá, nosso pai maior a nos conduzir. E desta vez, Olorum pode ter certeza, não mais retornaremos a Ele, o nosso destino maior lá no Orum, sem a nossa missão cumprida. MARCOS REZENDE ❚ Historiador, ogã e coordenador do CEN De acordo com o velho e bom jeito de fazer africano, é recomendável iniciar qualquer coisa reverenciando a ancestralidade, que, no caso particular da comunidade negra, tem sido muito bem lembrada, respeitada e cuidada, graças, sobretudo, ao povo do candomblé. Por isso, não existe uma melhor forma de saudar o 20 de Novembro – inscrito pelo movimento negro brasileiro como Dia Nacional da Consciência Negra – do que retomando a frase, célebre já entre nós, da venerável iyá fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, a sábia Mãe Aninha Oba Biyi: “De anel no dedo aos pés de Xangô”. É muito bom poder presenciar e partilhar, 311 anos depois de Zumbi dos Palmares, da disposição de pessoas negras – jovens ou nem tanto – em dirigir seus interesses e objetivos intelectuais e acadêmicos à reconstituição de nossa história; à investigação de dados sociológicos sobre as condições de vida ou sobrevivência do nosso povo; à proposição de novas formas de educar ou mesmo de edificar casas; à escritura ou reescritura etnográfica e o registro documental de nossas formas de relação com o sagrado e com as artes. Tudo isso, levando em conta o que a África e a diáspora construíram e garantiram como conhecimento e saber civilizatórios. Saber civilizatório africano que contribuiu para formar as bases da civilização universal. É claro que muito já foi escrito sobre nós, mas é, sem dúvida, um “detalhe relevante” (como diz um poeta amigo meu), quando esta produção intelectual salta das mentes e das mãos dos atores centrais das páginas da vida real do povo negro brasileiro. Vida real que acumula déficits em relação à dignidade, reconhecimento e participação no poder, mas que, no entanto, transborda em páginas de luta, resistência, sabedoria, coragem, capacidade criativa, e, porque não, alegria e beleza. São centenas de dissertações, teses, artigos, jornais, panfletos, ensaios, poemas, peças de teatro, romances, documentários, histórias em quadrinhos, charges, encontros, seminários, palestras, núcleos de estudos universitários, enfim, um patrimônio conquistado “à unha” pela organização do povo negro, haja vista, só para dar um exemplo, a verdadeira guerra que temos travado, contemporaneamente, para garantir os, ainda mínimos, percentuais de acesso às universidades brasileiras. Esta disposição guerreira do povo negro para lutar pela vida e pela dignidade é a maior herança que recebemos de Xangô, o orixá que nunca morreu, e jamais morrerá, assim como ancestrais ilustres, como Mãe Aninha e Zumbi, que nos animam a continuar. LINDINALVA BARBOSA ❚ Omorixá Oyá do Terreiro do Cobre e mestranda em Estudos de Linguagens/Uneb Gilmar Santiago Ação de reparação O Brasil viveu 358 anos de regime escravista, nos quais as populações negras não possuíam qualquer tipo de direito que lhes garantisse cidadania. Do ponto de vista da sua religiosidade, essas populações não podiam expressar algo que era fundamental para sua existência. As comunidades de terreiros, para que se preservassem numa conjuntura tão adversa, tiveram que forjar formas de resistência, sincretismo e solidariedade tão eficazes que conseguiram atravessar séculos negando-se a desaparecer. Essas estratégias permitiram que heranças atravessassem a história, contribuindo fundamentalmente para a formação do povo brasileiro. Neste contexto, o candomblé sofreu duras perseguições do Estado brasileiro, sendo, inclusive, a sua prática constituída em crime mesmo no pós-abolição. Na Bahia, só em 1976, um decreto do então governador Roberto Santos tornou os terreiros livres de ter que pedir autorização à Delegacia de Jogos e Costumes para celebrar os seus cultos. Os terreiros se constituem em verdadeiros espaços de resistência e afirmação das identidades negras recriadas no Brasil, seja através da preservação das diversas línguas africanas, passando pelas sociedades matrilineares, onde as mulheres e os mais velhos têm uma importância fundamental nas estâncias decisórias, até chegarmos às formas hierarquizadas de relações e papéis sociais. Com uma forte presença em Salvador, estima-se, atualmente, a existência de aproximadamente dois mil terreiros na cidade, localizados nos bairros periféricos, onde predomina a popu- lação negra. A maioria desses espaços carece de melhoria em sua infra-estrutura física que permita sua preservação. A Secretaria Municipal da Reparação (Semur) reconhece a necessidade de políticas públicas reparatórias para a preservação desse patrimônio cultural da Cidade do Salvador. Atualmente, a Semur e a Secretaria de Habitação desenvolvem, em parceria com a Fundação Cultural Palmares e a Secretaria Especial de Política da Promoção da Igualdade Racial (Seppir), o Projeto de Mapeamento dos Terreiros de Salvador, coordenado pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (Ceao/ Ufba). Um mapeamento sistematizado permitirá a elaboração de políticas de preservação e revitalização desses espaços sagrados. O Ceao já mapeou mais de 700 casas e verifica-se que algumas se constituem em um misto de celebração de cultos, moradia e espaço socioeducativo onde são desenvolvidas atividades para as populações do entorno. Uma emenda ao Orçamento da União, da bancada parlamentar baiana, articulada pela Semur, no valor de R$ 2,2 milhões, será investida em intervenções nos terreiros de Salvador. O projeto prevê pequenas melhorias, como conservação e ampliação de suas estruturas físicas, reforma de telhados, pintura, construção de muros, recuperação de parques e jardins, iluminação, entre outras ações. É o Estado tentando reparar uma dívida histórica que possui com os descendentes de povos africanos. GILMAR SANTIAGO ❚ Secretário municipal da Reparação Jamille Sodré Religião e juventude “Cantiga de Menino Gente Grande já cantou” (Ebomi Cidália) “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte” (Caetano Veloso) Quero homenagear aqui os nossos griôs, ou seja, os donos da palavra, sem eles não saberíamos quem nós somos. Os griôs são pessoas destinadas a passar o conhecimento de um clã (família) através de contos, lendas e mitos. Simplesmente através do dom da palavra preservam a força de uma herança milenar. Peço licença aos meus mais velhos: permitam que eu faça o uso da palavra, fazendo singelamente um papel de uma griô. Vou compartilhar a experiência de nascer e ser criada num terreiro. Isso me deu a noção de verdade e respeito que o candomblé tem com o mundo. Contaram-me como se deve agir quando um sábio lhe passa um ensinamento (este sábio não precisa ser necessariamente um mais velho. Um jovem pode ter esse dom. Porém existe o tempo certo para assumir essa missão). Peça a bênção (proteção). A identidade de um povo é muito importante para a resistência do mesmo. Nós, jovens, temos o dever e o direito de colocar a história de nosso povo a serviço da liberação do candomblé. Nos permitamos griôs, desmistificar as diversas histórias equivocadas que criaram ou distorceram a nosso respeito. Dá aflição uma pessoa que ignora nossa cultura tentar ensaiar algo sobre nós e querer nos convencer de que nós temos demônios. Uma pessoa que não reflete sobre suas raízes está condenada a viver perigosamente à deriva. Demônios são aqueles que querem apagar nossas riquezas, nossas referências, nosso modo de vida, nosso amor. A possibilidade de nascer e crescer em um terreiro de candomblé – nasci no Terreiro Tanuri Junsara e morei boa parte da minha vida no mesmo – fez com que eu tivesse uma visão diferenciada de mundo, onde o tempo não é o tempo cronológico e sim o tempo do inquice. Onde temos que aguardar um período muito especial para nos iniciarmos. Aprender a ser criança sagaz para se tornar um adulto sábio. Sendo jovens, nós temos uma sensação de buscar mudanças, aliás, isso não é exclusivo do jovem. Todo ser humano busca mudanças. Contudo, nosso respeito a nossas riquezas nos permite entender e preservar nossas tradições. Nós temos ótimos griôs e eles nos guiam para que a juventude do candomblé continue a caminhar pelas ruas de Salvador, mostrando que cultura e religião é feita com a força do respeito. A “bênção”. Dedico essas palavras aos meus griôs, minha amável mãe, Marlene da Hora, e meu querido pai, Jaime Sodré. JAMILLE HORA SODRÉ ❚ Designer e makota do Terreiro Tanuri Junsara IEMANJÁ Dia: sábado Cores: cristal branco e cristal verde Oferendas: acaçá, água, milho branco, arroz EXPEDIENTE Coordenação editorial | Marlene Lopes Projeto gráfico e diagramação | Valentina Garcia e Axel Augusto Hegouet Ilustrações | Bruno Marcelo Edição de fotografia | Carlos Casaes e Gildo Lima Colaboração | Edson Rodrigues ❚ SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA | ESPECIAL 3 | AUTODECLARAÇÃO ❚ A história de agressões às religiões afros faz com que na Bahia menos de 1% da quer dizer... população declare a prática. Isso quando as artes apresentam o axé como traço da identidade baiana Só 0,11% dos baianos assume o candomblé ARQUIVO A TARDE Nação | Designação para identificar a origem da tradição do culto. No caso da Bahia, as mais conhecidas são a angola, jeje e ketu. A angola é a herdada dos povos da área correspondente a onde hoje está Angola. Reúne as etnias que usam como idioma a família lingüística banto; a jeje é correspondente ao antigo Reino do Daomé, hoje Benim e tem como idioma o fon ou ewé; a ketu é a herança da área que corresponde hoje à Nigéria e que tem como língua o iorubá. ❚ Babalorixá | Título usado quando o mais alto sacerdote de um terreiro ketu é do sexo masculino ❚ Iaô | Sacerdotisa recém-iniciada na tradição ketu que tem a capacidade de entrar em transe. É o véiculo de comunicação, no momento do ritual, entre a divindade e a comunidade. ´Cerimônia de saída de iaô, no Terreiro de Mãe Mirinha de Portão No imaginário nacional, o candomblé é uma marca de identidade da religiosidade baiana. Mas os números estatísticos demonstram outro quadro. Segundo o último censo divulgado pelo IBGE, em 2000 – a pesquisa acontece a cada dez anos – apenas 0,11% ou 14.967 dos mais de 13 milhões de habitantes da Bahia têm o candomblé como religião. A umbanda tem percentual ainda menor: 0,05% ou 6.766 pessoas que a apontaram como sua religião. No ranking de cinco estados onde há manifestações culturais e religiosas de herança africana de forma mais forte, a Bahia é o segundo em prática de candomblé, atrás do Rio de Janeiro. Em relação à umbanda é o quarto, empatando com o Maranhão, num ranking liderado pelo Rio Grande do Sul. POUCOS Nas estatísticas baianas, opção religiosa por candomblé ou umbanda não chega a 1% ❙ Maranhão Bahia 0,01 Maranhão 0,11 0,38 Rio de Janeiro São Paulo 0,07 Rio Grande do Sul 0,09 UMBANDA [email protected] CANDOMBLÉ CLEIDIANA RAMOS Bahia 0,05 0,05 0,89 Rio de Janeiro São Paulo 0,21 Rio Grande do Sul 1,1 FONTE ❙ Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) SURPRESAS – A baixa taxa de declaração surpreende e é vista por religiosos e entidades do Movimento Negro Unificado da Bahia como um dos muitos resultados do preconceito que essas crenças ainda enfrentam. O chefe do setor de informações do IBGE na Bahia, Joilson Rodrigues, analisa que realmente os dados podem estar abaixo da quantidade de pessoas que professam tanto o candomblé quanto a umbanda. Para ele, um fator importante é a forte influência do catolicismo como religião de referência. Na Bahia, 74% da população disse ser católica. “Muitas pessoas identificam o catolicismo como sua religião de referência ainda que tenham a prática das religiões afro-brasileiras. No caso delas, percebe-se um importante sub-registro”, avalia Rodrigues. A pergunta sobre religião no censo é aberta. Não são da- Religião afro cresceu em Conquista JOSÉ SILVA No mapa religioso de Vitória da Conquista, a 509 km de Salvador, o número de templos afro supera o de outras religiões. Juntos, os terreiros jeje-mahi, ketu, ketu-angola, angola e de umbanda somam 87, contra 66 templos batistas, 55 evangélicos e 41 católicos. O estudo, que faz parte da tese de doutorado do professor Itamar Pereira de Aguiar, a ser defendida na PUC (SP) no ano que vem, mostra um crescimento de 22,25% da preferência pela religião afro, de junho de 1997 a junho deste ano. Aguiar catalogou, no geral, 391 templos em todo o município e verificou um acréscimo de 12 religiões de matrizes africanas, nove a mais do que o número de igrejas católicas; igual número de evangélicas e um a menos do que o de igrejas batistas. O pesquisador conta que vem observando este fenômeno desde 1983, mas somente em 1997 é que começou uma pesquisa mais abrangente. São dados que vão modificando a histórica de preconceito contra a religiosidade de origem africana, que é antigo. Em 1842, por exemplo, por meio do Código de Posturas do Município, impôs-se a proibição da prática da religião. “Esse código perdurou até 1954”, precisa Aguiar. MÃE VITÓRIA – Os tempos mudaram e o respeito às religiões melhorou a ponto de fazer de Vitória da Conquista um importante centro de resistência das religiões afro. Itamar Pereira de Aguiar estuda mapa religioso de Vitória da Conquista Atualmente, no terceiro maior município do Estado, com cerca de 300 mil habitantes, o combate ao racismo e discriminação religiosa é feito por meio de atividades culturais. A semente do resgate da cultura afro, plantada há mais de um século pela celébre Victoria Alves dos Santos Dias, Mãe Vitória de Petu, até hoje produz frutos graças ao apoio da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), movimentos negros unificados e governo municipal. Todo o trabalho de pesquisa sobre mãe Vitória de Petu foi feito pelo Movimento Griot, organização não-governamental e sem fins lucrativos que resgata a memória da comunidade negra de Vitória da Conquista por meio de atividades e eventos culturais. “A Uesb também tem esse compromisso de resgatar as histórias esquecidas para uma releitura. Temos que reler os trabalhos dela de uma forma sem preconceito”, destacou a professora e historiadora Heleusa Câmara. EXEMPLO – Para ela, a ação de Mãe Vitória de Petu foi notável, não só pelo trabalho social de acolhimento de crianças, mas também como o de uma alta sacerdotisa de um terreiro no bairro das Pedrinhas. Lá, as pessoas iam buscar alento para suas dores e problemas. “A história dela é uma história que dignifica a nossa cidade”, acrescenta a historiadora. Mas, mesmo com esses avanços, o preconceito continua a se manifestar. Ele se apresenta na vizinhança de terreiros de candomblé, umbanda e quimbanda. “Ainda existe preconceito e muita gente acha que nossa religião é coisa ruim. Mas nós somos iguais, temos propósitos espirituais e sociais como os que existem em qualquer outra profissão religiosa”, defende o babalorixá Oiá Bilê Jorge. (Juscelino Souza) das opções, diferente do que acontece em relação à cor. “É preciso ter o entendimento que o racismo acontece de forma transversal na vida das pessoas. Não assumir a sua opção religiosa, infelizmente, ainda é um mecanismo de defesa. Não podemos falar em liberdade religiosa sem discutir o racismo. Existe uma cultura de demonizar as tradições afro, e isso faz parte do projeto de negação da contribuição negra na construção do País”, destaca a vereadora em Salvador Olívia Santana, filiada ao PCdo B-BA, coordenadora nacional da União dos Negros pela Igualdade (Unegro). Marcos Rezende, coordenador do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e ogã do terreiro Oxumarê, também aponta o preconceito como base para o registro de resultados como esses apontados pelo censo. “É a representação do ponto de vista de uma geração que foi perseguida. Tem também a questão da associação religiosa com o catolicismo, que foi muito forte. Então, quando alguém de santo responde na pesquisa que é católico, de certa forma está apresentando um lado da sua religiosidade”, completa Marcos Rezende. Em sua avaliação, futuramente, essa afirmação vai se ampliar. “Os mais jovens estão desfrutando de mais liberdade religiosa, fruto das lutas do movimento negro e isso vai se traduzir em afirmação”. Para o coordenador da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), Gilberto Leal, a subnotificação do candomblé e da umbanda apontam para a necessidade uma melhor metodologia em estudos como o censo. “A realidade da presença das religiões de matrizes africanas e sua cosmovisão na sociedade brasileira vão muito além do que expõe o IBGE. Daí a necessidade de se buscar mecanismos para mostrar a real dimensão que elas possuem”, diz. Preconceito estimula negação de crença em Itabuna e Ilhéus Itabuna tem 202.523 habitantes, mas apenas 311 pessoas assumem que professam a umbanda ou o candomblé como religião. Em Ilhéus, dos 221.249 habitantes, somente 337 se confessam seguidores das duas religiões de matrizes africanas. Para o babalorixá de Itabuna Ruy do Carmo Póvoas, esses números não são surpreendentes por refletirem a imagem negativa construída contra essas crenças desde os tempos da escravatura. Para ele, os dados do IBGE não refletem a prática real das religiões de origem africana. Aponta que, só em seu terreiro, o Ilê Axé Ijexá Orixá Olufon, há mais de 300 integrantes e ninguém se esconde atrás de disfarces. Em 2000, num levantamento que fez por conta própria, o babalorixá diz que relacionou 85 terreiros em Itabuna. “Isso indica que 10% da população do município é de praticantes do candomblé ou umbanda e pelo menos o dobro disso é simpatizante, mas ninguém assume, porque a sociedade itabunense é elitista e muito mais preconceituosa do que a de Salvador”, considera. Embora muito respeitado como homem-de-santo, o babalorixá diz que preferem reconhecê-lo como escritor e professor fundador da Universidade Estadual de Santa Cruz do que como babalorixá. Ele diz que isso não o abala, porque sentiu o preconceito dentro de sua própria casa. Conta que o pai, branco, coronel do cacau, amava uma mulher negra, com quem viveu a vida inteira, teve dois filhos muito bem criados, mas nunca se casou nem assumiu uma vida em sociedade com ela. PRECONCEITO DUPLO – “Nós sofremos preconceito pela religião e pela cor”, diz Ilza Rodrigues, mameto de inquice do terreiro Matamba Tombency Neto, funcionando há quatro gerações, no alto da Conquista, em Ilhéus. Ela conta que há uma clínica na cidade na qual ninguém se veste de branco na sexta-feira, para não ser confundido com o povo-de-santo. Mãe Ilza relata que foi batizada no catolicismo, mas faz questão de ser chamada de Mameto Mucalê, seu nome no candomblé. A nora de Mãe Ilza Rodrigues, Adelita Santos Rodrigues, que trabalha em um laboratório de análises clínicas, diz que já sofreu críticas quando falou sobre sua religião. “As pessoas ainda pensam que a gente de candomblé adora o satanás”, diz. Mãe Carmosina Mota de Souza Santos, há 50 anos no terreiro Sultão das Matas Fé, Esperança e Caridade, em Ilhéus, diz que, embora seu terreiro, localizado no bairro do Malhado, seja conhecido, nem todos assumem freqüentar o local. “Não é todo mundo que gosta de dizer que veio até o meu terreiro. Mas a religião é uma só. Todas elas estão procurando chegar até Deus”, diz a sacerdotisa. (Ana Cristina Oliveira) IANSÃ Dia: quarta-feira Cor: vermelho Oferendas: acaçá, água, acarajé 4 | ESPECIAL | DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA ❚ SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 XANDO P. quer dizer... Ibá | Vasilha ritual, símbolo de poder ❚ Alabê | sacerdote músico no candomblé de nação ketu ❚ Rum | O maior dos três atabaques tocados nos rituais ❚ Mãe pequena | Título aportuguesado da sacerdotisa que ocupa a segunda posição na alta hierarquia dos terreiros ❚ Ekede |sacerdotisa do candomblé com funções de serviço ritual, mas sem transe ❚ CACHOEIRA ❚ O preconceito existe e é notado até em localidades onde os terreiros de candomblé mais proliferaram Uma só cidade e várias nações da “mãe África” MARY WEINSTEIN [email protected] O candomblé está em cima e em baixo dos morros, e nas zonas urbana e rural de Cachoeira, cidade histórica localizada no Recôncavo baiano, a 114 quilômetros de Salvador. Em suas construções simples, ele se constitui de forma singela e forte, em ramificações das diversas casas de várias nações africanas instaladas na Bahia há tantos anos. Os habitantes da cidade integram esses terreiros. Mesmo assim, não há quem diga que não existe preconceito. Em um dia chuvoso, A TARDE subiu e desceu caminhos de pedra e barro e bateu na porta de quatro barracões e se envolveu com o modo tranqüilo e íntimo que, de um modo geral, o povo-de-santo recebe e conversa. Mãe Preta – Juciara Silva da Paixão, 42 anos – estava na porta de casa e foi sentar na cadeira de plástico, perto da mesa do Ilê Kayó Alaketu Axé Oxum. Em tudo que dizia, falava de Galdina Silva, sua mãe de sangue, que teve 22 filhos biológicos e mais de 2.800 de santo e era filha de Nezinho do Portão, um influente babalorixá da região, que era filho de Mãe Menininha do Gantois. O candomblé de Galdina Silva, que hoje tem Mãe Preta à frente, tem 40 anos de casa aberta. Fica no Alto do Rosarinho, “bairro dos afri- canos”, e bem perto do cemitério restaurado pelo Ministério da Cultura. Antes, era de palhoça. É, também, conhecido como terreiro de Dona Baratinha, apelido de Galdina que, quando era criança, adorava o carro que tinha esse apelido. E carregou o nome. “Ela morreu aos 84 anos (em 2004). Minha iniciação foi aos 6 ou 7 anos e ela trouxe o meu pai-de-santo, Dudu de Xangô (Lázaro Cardoso), de Salvador, porque se eu fosse feita lá não ia poder tirar o meu ibá. Nós temos todo o tempo do mundo. Aqui, a gente bate de ano em ano. Nossa última festa começou em 25 de agosto e terminou em 30 de setembro”, falou devagar Mãe Preta. “Preconceito? Mas, é claro. Até hoje ainda tem um pouco, sim. Hoje eu estava aqui conversando com os testemunhas de Jeová. Eles perguntaram se podiam deixar uns folhetinhos e eu, também, perguntei se podia falar dos nossos orixás”, disse Mãe Preta. Ela conta que foi auxiliar de limpeza em um hospital na cidade de São Paulo e que, quando chegou, ficou sem poder dizer de onde era. Foi a instrução que a irmã, que havia arrumado o emprego, lhe passou. Um dia, não teve jeito. Largou um “brinque comigo que eu sou de Cachoeira” para um colega. “O mesmo que Mônica (Millet, do Gantois) toca eu toco”, diz Mãe Preta que é alabê de rum, o maior dos três atabaques usados nos terreiros. Aqui, em dia de festa, só fica esse espaço pequeno para se movimentar. Aqui não falta gente, a briga é pra ver quem é que vai tocar”, gaba-se Mãe Preta. RESPEITO – No caminho para o Terreiro do Caboclo Guarani do Oxóssi, um rapaz em roupas coloridas, em uma bicicleta e com guarda-chuva na mão, diz que as pessoas olham diferente para os filhos do candomblé. “A partir do momento que eu respeito, quero que me respeite, também”, disse Edvaldo Santos, 36 anos, pedreiro, freqüentador do terreiro de Efigênia, já falecida. Marcia Maria Lopes, 38 anos, mãe pequena do Guarani, é quem recebe, no barracão com piso de cerâmica, em uma parte, e de barro, em outra. “O caboclo não aceita, tem que ser de barro”, explica, no meio do espaço todo decorado com estatuetas, desenhos de orixás, caboclos e iemanjás. Ela diz que Mãe Madalena, ialorixá do terreiro, revidou com um banho de abô ao “ungido de sal em cima do assentamento de ogum”, que veio da parte de uma igreja que fica do outro lado, aos fundos do terreiro. Depois, houve um apaziguamento e a convivência entre eles agora é pacífica. Orgulho, apesar do preconceito OXUM Dia: sábado Cor: amarelo ouro Oferendas: acaçá, água, feijão fradinho A ekede Elisângela Vale dos Santos, 26 anos, filha de Mãe Madalena (Maria Helena Araújo Vale, ialorixá do Guarani), diz que o preconceito nasceu no próprio candomblé, “quando muita gente que tem vergonha, não assume, não veste branco às sextas-feiras”. Em dia de festa, o terreiro que tem dez anos de aberto fica cheio, com gente olhando pela janela. Isso é orgulho para a Mãe Pequena, do terreiro de Angola e Ketu: “Nossa religião é linda!” “Por parte de algumas pessoas tem, sim. Até aquele preconceito que não seja declarado, de pessoa que não tenha um certo esclarecimento”, declara Eliana Gonzaga, 34 anos, assistente administrativa, freqüentadora da igreja Assembléia de Deus, quando ia atravessar a secular Ponte Dom Pedro II, e esperava o trem passar. Mais acima, lá nos Três Riachos, ficam outros terreiros. O Ilê Axé Itá Ilê, de Mãe Filhinha, integrante da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, por exemplo. Mãe Filhinha Narcisa Cândida da Conceição, 103 anos – estava sentada em uma cadeira jogando conversa fora. Os meninos que mostraram o caminho se estribaram nas janelas altas e pela porta estreita, para olhar para dentro da sala da casa que fica ao lado do barracão que tem uma figura enorme de Iemanjá, orixá de Mãe Filhinha. Mesmo chateada com a gripe, Mãe Filhinha falou sobre preconceito. “Tenho 60 anos (de iniciada) e lascou”, disse ela. Informou sobre a festa de domingo, que “todo mundo gostou, porque comeu e dançou”, apesar da chuva. A comemoração era pelo aniversário, em 25 de outubro. Dos seus sete filhos de sangue, só um está vivo. “Hoje em dia não tem mais candomblé. Tem bagunça. Hoje ninguém mais sabe o que é ketu, umbanda, ijexá. Quem sabe o que eu sou sou eu mesma. Quando eu morrer, fica minha fama. Tudo que eu tinha para fazer eu já fiz. Até festa eu estou deixando de fazer. Porque não se tem um bom resultado”, disse Mãe Filhinha, com força e com jeito de quem ainda vai fazer muitas coisas. Mãe Filhinha, de 103 anos: “Quando eu morrer, fica a minha fama” ❛ “Hoje ninguém mais sabe o que é ketu, umbanda, ijexá. Quem sabe o que eu sou sou eu mesma” Mãe Filhinha , do Ilê Axé Itá Ilê ❚ IGNORÂNCIA – Romildo dos Santos, 34 anos, em cima da carroça, esperando o trem desimpedir a ponte para poder passar, diz que quem pensa que o Deus do outro é o satanás está errado, porque, segundo ele, é o mesmo Deus. “Sofro preconceito racial, social e profissional”, diz ele, a caminho de São Félix. A roça de Dona Filhinha (Isabel Brígida Conceição, 80 anos – não confundir com Mãe Filhinha) fica no alto, depois do Quebra-Bunda (é assim que a cidade inteira de Cachoeira chama o lugar), a caminho de Terra Vermelha. A estrada é ruim mesmo. Se despencar dali, já era. Dona Filhinha anda adoentada, mas nada que lhe tire o bom humor e o sorriso do rosto. Dona Filhinha completa 81 anos, hoje, Dia da Consciência Negra. O rosto dela é aberto, de bondade. Ela não faz parte da Irmandade da Boa Morte. Seu barracão é todo pintado com a simbologia da sabedoria. A fachada é azul e branca e tem escrito o nome do Terreiro Lobanekum, fundado em 1914, em taipa. Na fachada atual tem a data de quando foi reformado e passou a ser de telha, em 1954. Para cuidar dela, a filha veio de Salvador. E foi Dona Lúcia, que tem o próprio terreiro, o Ilê Axé Alaketu Oxum Apará, nos Três Riachos. “Aqui faz festa no mês de dezembro e em junho. Mas, este ano, Dona Filhinha vai se cuidar em vez de fazer festa. Dona Lúcia diz que o preconceito é por causa da ignorância das pessoas. “Tem gente que confunde a religião. Tem cristão que tem esse problema”, diz ela, lembrando que as coisas desagradáveis ficaram no passado. Sobre agora, Dona Lúcia explica que em volta do barracão do Lobanekum tem todas as folhas sagradas necessárias para se fazer todas as obrigações. Lobanekum foi do avô de Dona Lúcia. E o vínculo com esse terreiro permanece até os dias atuais. Ela é mãe pequena também do terreiro de Mãe Filhinha, nos Três Riachos, vizinha do terreiro dela. (M.W.) Mãe Preta: “Brinque comigo, que eu sou de Cachoeira” Em Feira, religiões de matriz afro buscam reconhecimento “Se vou a algum lugar que não sou conhecido, não falo que sou do candomblé, pois tenho receio da reação das pessoas”. A afirmação é do babalorixá Nelson Lima da Costa sobre a sua religião. Ele tem um terreiro de candomblé em um bairro periférico de Feira de Santana, distante 108 quilômetros de Salvador. Sem ser cadastrado na Federação Nacional de Culto Afro-Brasileiro (Fenacab), pai Nel, como é mais conhecido, diz que já presenciou vários colegas serem mortos por causa da religião. “Tive um amigo que foi seqüestrado e assassinado de forma cruel por ter feito um trabalho que não teve o resultado esperado pelo cliente. Fora outros colegas que estão desaparecidos até hoje sem que tenhamos notícias”, contou. Para ele, o fato de não assumir em todos os locais a sua religião está relacionado diretamente com o preconceito existente contra os adeptos do candomblé e da umbanda. “Não sei o que dá na cabeça de algumas pessoas que, quando sabem que sou do candomblé, se irritam e começam a me xingar de satânico, filho do diabo, entre outras palavras que nem tenho coragem de falar”, relata o babalorixá. A coordenadora da Fenacab, a ialorixá Tânia Silva Suzarte, conta que a associação vem realizando um trabalho de conscientização para que os religiosos assumam e aceitem a religião, que ela destaca como sendo pura e linda. Diferente de outras cidades, em Feira de Santana, segundo a coordenadora, os adeptos dos candomblés e umbanda são convidados a participar de vários eventos, principalmente os que são ligados à cultura. “Nós nos assumimos e impomos respeito como religião”, acrescenta. Na opinião dela, em determinadas regiões, o preconceito diminuiu, e cita como exemplo o trabalho que vem sendo desenvolvido com o Conselho Municipal da Mulher e programa DST/Aids da Secretaria Municipal de Saúde. “Na realidade, o maior preconceito vem mesmo do próprio adepto, pois, com receio de ser discriminado, não assume a real religião, o que aumenta o preconceito. Não ligo para aquelas pessoas que me xingam de satanás, coisa do mal, pois são pessoas que não têm conhecimento do que é a religião”, diz. Tânia Suzarte alerta que existem pessoas que estão comercializando o candomblé. “São aqueles que fazem do candomblé uma forma de ganhar dinheiro e aí acabam por prejudicar a verdadeira essência da crença”, completa. Ela explica que dentro do culto afro existem rituais religiosos, como casamento, batismo e feitura. “Quero deixar claro que não mato e não acredito que ninguém mate através de trabalho, pois não temos este poder. O que acontece é que muitos falsos adeptos da religião usam este artifício para colocar medo nas pessoas e até aumentar a sua fama”. (Alean Rodrigues). REGINALDO PEREIRA Tânia Silva Suzarte: esforço para que os seguidores assumam a fé SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 ❚ DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA | ESPECIAL 5 | FOTOS XANDO P. DIVERSIDADE ❚ Diferentes tradições quer dizer... deram origem a um culto rico e original Obaluaê | Orixá que tem o domínio sobre a cura de doenças, principalmente as de pele ❚ Jarê, religião dos mestres da Chapada Diamantina REGINA BOCHICCHIO [email protected] Chapada Diamantina, lugar onde muita gente ficou rica do século XVIII ao XX, com o garimpo e extração de diamantes. Formada por um grande amálgama de brasileiros vindos de diversas regiões, o povoamento do local abarcou também estrangeiros e, sobretudo, africanos, levados como escravos. É dessa interação social, moldada ao longo dos séculos, que surge uma modalidade da religiosidade afrodescendente, o jarê – um candomblé de caboclo único. Pouca gente escreveu sobre a história ou ritos do jarê. Nem os próprios mestres, ou curadores – que têm o dom da cura para os males espirituais – sabem exatamente como tudo começou. O fato é que, hoje, o jarê, segundo os próprios habitantes locais, é o único tipo de candomblé encontrado em cidades da região como Lençóis e Andaraí. A TARDE esteve nesses municípios em busca do jarê e teve contato com alguns mestres. Novembro é o mês dos mortos; não há rituais. O jarê existe principalmente em Andaraí, mas sobrevive com dificuldade. A falta de dinheiro e até a ausência de pessoas que assumam um jarê quando morre um mestre fez com que, aos poucos, o número de casas de "bater jarê" fosse diminuindo. O livro Jarê - uma face do candomblé, resultado de pesquisa desenvolvida na década de 1980, é o único grande escrito que trata do assunto – existem apenas artigos –, de autoria do antropólogo Ronaldo de Salles Senna, nativo de Lençóis e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Segundo dados desse livro, na época da pesquisa, cerca de 12 municípios da Chapada possuíam terreiros de jarê, calculados em cerca de duas a três centenas. Passados mais de 20 anos, um levantamento realizado pelo professor Emílio Ribeiro, pesquisador do jarê e morador de Andaraí, revela que, atualmente, existem cerca de 12 jarês naquela cidade. Em Lençóis, são cerca de cinco casas. Com a idéia de integrar os grupos que batem nessa linha é que a ONG presidida pelo professor Emílio, a Viver Cultura e Meio Ambiente, em parceria com a Casa de Cultura Coronel Pitá, está organizando o I Encontro de Jarê da Chapada Diamantina. O evento acontece no mês de dezembro deste ano, em Andaraí, e deverá contar com mestres, adeptos e estudiosos do assunto. “O jarê não está morrendo, ele existe. Mas houve épocas em que ele esteve mais pujante”, acredita Emílio Ribeiro. A idéia é que, com o encontro, os mestres possam interagir e falar sobre a história do jarê. Muitos mestres entrevistados por A TARDE afirmam que antes esse candomblé era mais forte. O motivo, para eles, é a falta de dinheiro, pois “é preciso recurso para bater jarê”, como diz Mãe Áurea, do Terreiro Palácio de Ogum, da cidade de Lençóis. Por esse motivo, os rituais, que deveriam acontecer em intervalos regulares de 15 dias, acabam acontecendo vez por outra, nas datas mais importantes (Iansã, Cosme e Damião...). O fato, no entanto, é que o jarê é algo único no mundo do candomblé. Segundo o professor Ronaldo Salles, essa originalidade está diretamente ligada à história econômica e de ocupação da região; ou seja, o garimpo. Vêm daí muitos dos mitos e guias dessa face da religião. Até os orixás, no Jarê, são “caboclarizados”, diz Salles. Em seu livro, ele explica que “os que vieram do Recôncavo baiano traziam o candomblé de orixás (jejê, keto, nagô, banto, angola), já com os caboclos incorporados à sua cosmogonia e ao seu ritual. Os que chegaram de Minas Gerais, além dos orixás, traziam elementos formativos da futura umbanda. Já os que vieram do São Francisco chegaram com atitudes, pensamentos e valores do catolicismo rural”. Mais adiante, lê-se, sobre a origem: “Foram, porém, os negros vindos do Recôncavo, que se intitulavam nagôs, aqueles que maior influência exerceram na formação do jarê, embora tudo indique não ser o jarê uma religião de origem nagô (...); sugerimos mais uma base angolana, à qual se superpôs a influência religiosa dos nagôs”. Nagô | denominação usada para designar os povos iorubás ❚ Encosto | Entidade espiritual que atrapalha o bem estar de alguém por agir por força de energia negativa ❚ O curador Wilson, no seu terreiro, às margens do Rio Paraguaçu, aponta a serra onde viu São Roque Dona Carmosina acha dura a vida de mestre, mas agradece a Deus poder ajudar pessoas “com encosto“ Palácio de Ogum é uma referência O Terreiro Palácio de Ogum tem mais de 50 anos, fica em Lençóis, num local chamado Capivaras, e é uma das principais referências do jarê: foi fundado por um mestre identificado por todos como Pedro de Laura, falecido há oito anos. Ele iniciou boa parte de quem hoje é mestre. O terreiro está em processo de tombamento pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac). Maria Áurea de Jesus Quaresma, 50 anos, era ogã do mestre. Era a que mais sabia. Daí porque, hoje, ela é a principal líder espiritual do local. A TARDE tentou mas não conseguiu visitar o Terreiro Palácio de Ogum. O acesso é feito somente com permissão; ritual ali, agora, só dia 4 de dezembro (Santa Bárbara). O terreiro ficou abandonado por um tempo, pois não havia quem o comandasse. Mas os guias pediram para reabri-lo e Maria Áurea tomou a frente espiritual. O filho adotivo do mestre, Sandoval Amorim, 30 anos, cuida da administração através da Associação Palácio de Ogum. A idéia de fundar uma associação veio da necessidade: para conseguir verbas junto a poderes públicos para se manter é preciso de organização. COSMINHO – A TARDE tentou contato com outros mestres de jarê em Lençóis, mas encontrou somente dona Maria de Lourdes, que ainda está sendo preparada. Mesmo assim, comanda rituais de jarê num cômodo de sua casa, batizado de Centro Cosme e Damião, numa rua escondida no bairro Alto da Estrela: "O jarê talvez esteja morrendo porque muitas vezes a pessoa não tem a condição de fazer". Maria de Lourdes tem devoção direta com Cosminho. Bateu tambor pela última vez ali dias 4 e 5 de novembro, porque faz um calendário próprio. Mas pretende bater novamente no dia de Iansã. Seu mestre, Raimundo Bruno dos Santos, 56 anos, é curador de um terreiro em Ubiraitá. Para ele, o jarê pode até estar diminuindo ("antes tinha muito mais casas"), mas, pela força da religião, "sempre vai ter alguém batendo couro". Ele explica o que, para ele, é a religião: "Jarê é só o nome. Tudo é candomblé, mas é candomblé de caboclo. Jarê é nagô. Diferente da sessão espírita mesa branca, onde não pode bater couro". Histórias de vocação e entrega Cosme e Damião são reverenciados em todas as casas de “bater jarê“ Dona Lourdes faz rituais em um dos cômodos de sua casa, em Lençóis O crucifixo de pai Wilson ”levanta sozinho“ da mão durante o ritual Doze quilômetros de uma estrada de terra levam a um local chamado Praião, que é, na verdade, o Rio Paraguassu. É preciso atravessar o rio a pé e caminhar 20 minutos numa trilha para chegar ao Terreiro de Obaluaiê, de Wilson Rodrigues Oliveira, o pai Wilson, 63 anos, há 18 anos com seu jarê. Ele mora com a mulher e uma filha. "O meu Obaluaiê é São Roque. Era ele que eu via ali na montanha", conta ele. "Eu via, daqui, a uns sete quilômetros, um homem descendo a serra de bata cinza-chumbo. Todo dia. E eu pensava: meu Deus, o que é aquilo?”. O tempo passou até o dia em que encontrou o mestre Pedro de Laura, que terminou sua iniciação. FESTA – Pai Wilson hoje não só é um dos curadores mais procurados das redondezas como seus jarês são dos mais animados. O difícil acesso do terreiro não impede que os habitantes de Andaraí participem da festa. Lá não tem luz elétrica e os rituais começam à noite. No jarê, as festas são abertas a todos. Wilson, quando manifesta seus caboclos, faz coisas inusitadas, como andar sobre brasas e mover um crucifixo de madeira. Enquanto rola o jarê, as incorporações e rituais, os visitantes bebem cachaça, vinho ou dançam “o samba”, como chamam a batida dos atabaques. Quem conta é José Ailton Alves ❛ “Tem muitos que queriam ter e não têm. Tem muitos que têm e não queriam ter. Não tem escolha. É o guia que escolhe” Wilson Rodrigues, mestre do Terreiro de Obaluaiê, na cidade de Andaraí, referindo-se à missão de receber caboclos ❚ Santana, 27 anos, que já foi a três jarês no Terreiro de Pai Wilson. José não tem ligação com o jarê, mas gosta da festa. Ele viu, "com os próprios olhos": "Ele cantava um bocado de música e a cruz vinha levantando devagarinho, ficou empezinha na mão dele", conta. Pai Wilson, na sua simplicidade, apenas diz: "É o poder dos caboclos". Agora ele só vai bater jarê em dezembro: "Devia bater de oito em oito dias, mas a gente é fraco (de dinheiro) e não dá". Por enquanto, o mestre não sabe quem, no futuro, assumirá seu terreiro. Os filhos de sangue não deram para o jarê. "É, esse é um problema que a gente tem", diz. JOANA D’ARC– Na Rua da Casa Branca, nº 49, vive dona Carmosina de Jesus Reis, 40 anos, com marido, filhas e netos. Carmosina entrou no jarê aos 16 anos, quando fugiu de casa porque sentiu uma “necessidade que não sabia explicar”. Tudo começou quando ela começou a ver uma mulher "muito bonita" – que, segundo conta, era Joana D’Arc. A história é longa, mas o fato é que, depois de passar por muitas pessoas, acabou no mestre Pedro de Laura, que também a “curou”. Há 27 anos, dona Carmosina mantém seu jarê em Andaraí. Para ela, é uma obrigação que não escolheu ter. Mas vê beleza em sua missão: "É um orgulho que eu tenho quando chega um doente que eu recebo aqui nos meus pés e as pessoas saem boas", diz ela. Carmosina conta que trabalha com Ogum de Lei e Iansã. E explica: "Eles também são caboclos". No seu peji – altar onde se colocam imagens – há reproduções de caboclos, orixás e santos católicos, como Cosme e Damião – em todos os terreiros se cultua Cosminho e São Jorge. Dona Carmô diz que sua intuição aponta para o filho caçula, que deverá seguir seus passos: "Eu sinto isso nele, ele é chegado, gosta". EWÁ Dia: sábado Cores: vermelho e amarelo Oferendas: acaçá, água, feijão fradinho torrado com coco. 6 | ESPECIAL | DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA ❚ SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 XANDO P. quer dizer... fala povo Ialorixá | Grau máximo do sacerdócio no culto afro de nação ketu quando a ocupante do cargo é uma mulher ❚ Você assume que é de candomblé? Ogã | sacerdote do candomblé com funções de serviço ritual sem transe ❚ 12 pessoas ouvidas no dia 10 entre as 13h50 e 15h15, no fim de linha do Garcia e no Alto da Federação, e no dia 14 entre 15h e 15h30 na travessa do Curuzu, Liberdade ❚ WALTER DE CARVALHO Sou ogã. Temos que assumir nossa religião. É difícil quando as pessoas não compreendem. Acho que o candomblé é a religião que mais pratica caridade. Mas há quem receie usar guias com medo de discriminação. Mãe Jaciara, em ritual com filhos-de-santo: “Todo dia vivo momento de intolerância. No carro, no elevador. Já estou me cansando” Lázaro Boa Morte, 31, técnico contábil ❚ EXEMPLOS ❚ Ser vítima de preconceito não abate quem tem fé e a exercita no FOTOS MARGARIDA NEIDE dia-a-dia. Mãe-de-santo e sargento da PM contam como enfrentam o problema Sábios em dizer não à intolerância CRISTINA DE MORAES [email protected] Conviver com a intolerância religiosa é parte do cotidiano de Jaciara Ribeiro dos Santos, 39, a ialorixá do Te rreiro Axé Abassá de Ogum, no Abaeté. Toda vez que sai em seu buggy, vestida com trajes de sacerdotisa, ela ouve desaforos. “Todo dia vivo momento de intolerância. No carro, no elevador. Tenho que explicar que é meu direito, está na Constituição, já estou me cansando”, explica. Mãe Jaciara lembra que o preconceito atinge a educação, o trabalho e a saúde. “Se um enfermeiro evangélico tem que me atender no SUS, ele não atende. Professores evangélicos não tratam as crianças do candomblé com a mesma atenção. As pessoas se escondem com medo de perder trabalho, de serem agredidas”, conta. Ela mesma teve que ocultar sua religiosidade durante o tempo em que trabalhou com menores infratores em Curitiba. “Quando falei na rádio que era do candomblé, perdi todos os que se diziam amigos”, lembra. Desde 2000, Jaciara enfrenta uma guerra contra a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), por danos morais e uso indevido de imagem de sua mãe, a Mãe Gilda, morta no dia 21 de janeiro, um dia após assinar a procuração para o processo que já tramita no Superior Tribunal de Justiça em Brasília. Em homenagem a Mãe Gilda, o dia 21 de janeiro foi decretado Dia Municipal de Combate à Intolerância Religiosa em Salvador. Em primeiro julgamento, o Judiciário estadual condenou a Iurd a indenizar a família de mãe Gilda em R$ 1,3 milhão e ainda determinou que o Ministério Público abrisse inquérito criminal contra a instituição por ter publicado a foto de Mãe Gilda com uma tarja no rosto sob o título Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes. “Não preciso do dinheiro. Quero a segurança de exercer minha religiosidade. O combate à intolerância não é uma ban- deira deste terreiro, mas de todo o povo-de-santo”, lembra. O procurador Almiro Soares, da Promotoria da Cidadania e Combate ao Racismo do Ministério Público da Bahia, conta que as pessoas que seguem as religiões de matriz africana vão ao MP queixar-se de discriminação, principalmente por comunidades evangélicas. “Já recebemos denúncias de ofensas proferidas por evangélicos dentro de ônibus, apenas porque o rapaz portava adereços do candomblé”, conta. RESPEITO ÀS RAÍZES – Soares explica que as denúncias de intolerância religiosa têm diminuído, “não há uma pesquisa que identifique se os casos realmente diminuíram, ou se as notícias não são trazidas até nós”, explica. “Percebemos que as lideranças religiosas, africanas e evangélicas, têm tido maior preocupação em respeitar as outras. Mas é verdade que ainda existem casos pontuais.” O trabalho da Pastoral Afro da Igreja Católica visa resgatar a cultura negra preservada pelos rituais das religiões de matriz africana. “A cultura negra é um dom de Deus. Apresentar o evangelho sob a ótica da cultura negra é uma forma de ensinar as crianças na diversidade, aproximando a igreja católica da nossa maneira de ver o mundo”, explica o padre Fidéle Katsan, coordenador da Pastoral Afro. Natural do Togo, Padre Fidéle conta que os elementos utilizados pelo candomblé na África são elementos culturais, e não apenas religiosos. “Atabaque, acarajé, pipoca, são patrimônio comum do negro. Introduzimos esses elementos na missa para integrar a comunidade negra na igreja e na sociedade”. Na igreja anglicana, o respeito entre as diversas religiões é o discurso corrente. “Nossa igreja é ecumênica e inclusiva. Penso que o evangelho é um instrumento de paz. O melhor é respeitar a religiosidade de cada um”, ensina o reverendo Josafá Batista, pároco da Igreja Anglicana de Itaparica. Sou filha-de-santo do Gantois. Minha família toda segue minha religião. Não de maneira forçada, seguem porque gostam. Já tenho filhos e netos na faculdade. Nunca tivemos problemas por causa do candomblé. Antônia Castro de Lisboa, 70, yamorô do Gantois ❚ Freqüento de vez em quando o candomblé. Não escondo que freqüento. Mas sou católica. Quando o pessoal me chama, vou assistir. Não vejo problema em assumir que gosto de ir aos ritos do candomblé. Julinda Maria Araújo da Silva, 45, dona-de-casa ❚ Nafro exercita reparação histórica EDSON RUIZ LOGUM-EDÉ Dia: quinta-feira Cores: azul turquesa e dourado Oferendas: acaçá, água, feijão fradinho e milho amarelo com côco. A criação do Nafro – Núcleo de Religiões de Matriz Africana da Polícia Militar da Bahia, em junho de 2005, foi uma grande conquista contra a intolerância religiosa no Estado, porque materializa uma reparação histórica da ação opressora do aparelho policial. Não vai longe o tempo em que a polícia realizava batidas em terreiros, prendendo sacerdotes e confiscando ou até destruindo os objetos sagrados de culto. As festas de candomblé necessitavam de licença da polícia para serem realizadas. “O Nafro nasceu da intolerância religiosa e tem a missão de proteger as tradições das religiões de matriz africana, defendê-las contra a intolerância e promover a difusão do conhecimento de seus fundamentos, além de garantir o exercício da prática religiosa de policiais militares e servidores da corporação”, explica o sargento Eurico Alcântara, fundador e presidente do Nafro. O sargento Eurico solicitou ao comandante-geral da PM baiana a criação de um núcleo de religiões de matriz religiosa ao perceber que elas não tinham sido incluídas no I Seminário Religioso da PM, ocorrido em junho de 2005, por falta de representação. O seminário anunciava a participação de representantes católicos, evangélicos e espíritas. “Nossa presença foi tão marcante que Sargento Alcântara fundou o núcleo que garante a prática na PM no final do seminário o assunto mais comentado eram as religiões de matriz africana”, lembra Eurico. Em pouco mais de um ano de existência, o núcleo já agrega 274 integrantes. No seminário, além do sargento Eurico, o Nafro contava apenas com mais um participante. “O núcleo é de importância vital para a PM. Se a integração não acontecer no seio da corporação, como vamos tratar a população”, questiona. “Estamos trabalhando para que a PM olhe para o povo-de-santo como irmãos. Essa atitude vai mudar a cara da polícia”, conta. Através de palestras e eventos, o Nafro leva informações sobre as religiões de matriz africana aos policiais e à comunidade civil. “Estamos trabalhando essa desinformação de que o candomblé é uma religião maléfica. Queremos esclarecer as pessoas, fazer com que conheçam melhor os fundamentos”, explica Eurico. O Nafro é pioneiro no País e está servindo de exemplo para outros Estados. A convite, o Nafro já foi apresentado às PMs de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. “Em apenas um ano, conseguimos fazer muito. Precisamos levar isso para todo o País”, orgulha-se. Após a criação do Nafro, foi implantado um comitê inter-religioso dentro da PM, para discutir a intolerância religiosa. “A tropa está mais unida”, conta o sargento. Sou católico, mas gosto muito do candomblé. Adoro os rituais, não escondo de jeito nenhum. Sou nascido e criado aqui perto do Gantois. De tudo que existe no candomblé, eu gosto. Pra mim é o paraíso. Antônio Mário das Mercês, 54, mecânico ❚ Sou de Oxóssi. Assumo minha religiosidade, vou até mandar fazer um pingente. Tem um bocado de gente que é incubado por causa do preconceito. Eu, graças a Deus, não enfrento preconceito. José Fábio Gomes de Souza, 29, entregador ❚ ❚ SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA | ESPECIAL LIBERDADE ❚ Há 30 anos, rituais afros só podiam acontecer com autorização da polícia. A determinação caiu por força do decreto assinado pelo governador Roberto Santos, mas luta por respeito continua ainda hoje Tata de inquice | Título dado ao mais alto sacerdote de um terreiro angola quando o ocupante do cargo é do sexo masculino ❚ XANDO P. [email protected] Para realizar um ritual religioso, a primeira parada era uma delegacia. No caso em questão, a de Jogos e Costumes. Esse era o caminho constrangedor que tinha que ser percorrido por sacerdotes e sacerdotisas das religiões de matrizes africanas para poder realizar os seus cultos. O decreto que pôs fim a esse desrespeito a um direito fundamental, que é o de escolher a sua forma de relação com o sagrado, foi assinado há apenas 30 anos, pelo então governador da Bahia, Roberto Santos. Embora a intolerância religiosa seja ainda um obstáculo a ser combatido, a batalha pela liberdade de culto somou pontos: a Constituição Brasileira de 1998 considera como direito fundamental o respeito à livre escolha de crença; o Ministério Público da Bahia se prepara para comemorar no próximo ano uma década de criação da promotoria que combate o racismo e protege a independência da escolha de religião. A Polícia Militar, que em outros tempos invadia terreiros para acabar com os cultos, tem há um ano o Nafro, criado exatamente para defender a opção religiosa dos seus integrantes. “A luta contra a discriminação religiosa passou principalmente pela batalha para que os cultos de matrizes africanas fossem considerados religiões e respeitados como tais, uma luta incorporada ao combate ao racismo pelos movimentos negros”, destaca o procurador-geral do Ministério Público baiano, Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto, que foi o titular da Promotoria de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa até o ano passado, quando assumiu a chefia da instituição. Um outro avanço foi a criação do Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra (CDCN), criado em 1987 e que reúne representantes do governo estadual e também da sociedade civil, totalizando 20 organizações. O combate à intolerância religiosa é uma das ações do órgão. LIÇÕES – “Hoje, as coisas estão bem melhores, mas quem nos garante que mais adiante não vamos enfrentar problemas semelhantes aos do passado? Daí que temos procurado promover cursos e outras ações, pois a nossa partilha de conhecimento é uma garantia para as coisas darem certo adiante”, acrescenta Ferreira. Inaugurar um núcleo de proteção às religiões de matrizes africanas foi uma daquelas iniciativas para ficar na história. A simbologia da fundação do Nafro na Polícia Militar é maior para quem viveu o preconceito também dentro da própria corporação. “Quantas vezes não ouvi dos meus próprios colegas gozações, tipo a pergunta se eu tinha o pé no azeite. Hoje, depois do Nafro e da nossa afirmação como religiosos de candomblé, avançamos muito”, relata o tata de inquice e sargento da PM Eurico Alcântara, coordenador do Nafro-PM. Embora tenha assumido o comando do Ilê Axé Oxumarê já no período após a repressão, o babalorixá Silvanilton Matta guarda a memória das histórias contadas pelos mais velhos da casa. Sua avó, a ialorixá Simplícia da Encarnação, por exemplo, foi uma das sacerdotisas que empreenderam ações para combater a intolerância religiosa. “Ela não chegou a ir conversar com Getúlio Vargas, como fez mãe Aninha. Mas acabou convidada para participar da preparação de um jantar, com cardápio baiano, para o presidente em Minas Gerais. Ela aproveitou, enquanto servia os pratos, para conversar com o Getúlio sobre o absurdo do tratamento dispensado pela lei ao candomblé”, narra o babalorixá. MUSEU – A mameto de inquice Maria Lúcia Neves também preserva a memória desses tempos como um ensinamento de resistência para as gerações futuras. No Museu Comunitário, que funciona no Terreiro São Jorge da Goméia, em Portão, Lauro de Freitas, estão arquivadas as autorizações para a realização dos rituais como exigia a lei. Nelas, inclusive, estava o lembrete de que os rituais deveriam ser encerrados às 22 horas. Além disso, o cartão de autorização alertava que estava proibida a participação de jovens e crianças nas festas dos terreiros. “Muitas vezes, minha avó, Mirinha do Portão, deixava de realizar o ritual para não ter que se submeter à lei absurda. A proibição caiu, mas a gente continua a ter que tirar uma licença anual na Federação do Culto Afro, o que de certa forma ainda nos faz lembrar dessa situação de ter que pedir licença de alguma forma para praticar a nossa religião”, acrescenta mãe Lúcia. Mãe Lúcia (à frente) preserva a memória como um ensinamento de resistência para as gerações futuras * Em 1937, aconteceu em Salvador o 1º Congresso Afro Brasileiro. Foi um momento histórico, pois, no Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, estiveram reunidos grandes sacerdotes e sacerdotisas da cidade, como Mãe Menininha, Mãe Aninha, Martiniano do Bomfim, dentre outros . Os representantes das religiões de matrizes africanas foram até o congresso para dizer que a sua religião merecia respeito, como discursou Martiniano do Bomfim: “Religião de negro é igual à religião de branco”. O encontro foi organizado pelo pesquisador Edison Carneiro. Preconceito fundamentava política repressiva do Estado Por influência de Osvaldo Aranha, chefe da Casa Civil do governo, mãe Aninha do Ilê Axé Opô Afonjá conseguiu um encontro com o presidente Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Nele, cobrou do presidente o direito de exercer a religião que aprendeu com seus antepassados. A iniciativa deu certo, e Vargas assinou o Decreto 1.202, que ao menos liberava o uso dos atabaques nos terreiros. Mas as coisas só se acomodaram mesmo com o Decreto nº 25.095, assinado pelo governador Roberto Santos, que acabou com a necessidade de registrar a realização dos cultos na polícia. Foi a vitória da articulação política do povo-desanto. A iniciativa pôs fim a um período de perseguição descrito, inclusive por Jorge Amado em seu livro Tenda dos milagres . Nele, o escritor cita Pedro Azevedo Gordilho, um delegado auxiliar, extremamente temido pelo povo-de-santo. Conhecido como Pedrito, ele e suas batidas policiais nos terreiros transformaram-se no mais forte ícone da época da repressão. O motivo que legalizava essa política repressora de Estado se baseava apenas no preconceito. “No princípio, não se sabia o que tinha determinado essa exigência. Foi preciso pesquisar sobre o ato, até que se viu que tinha sido um decreto muito antigo, numa fase em que se dizia que os candomblés escondiam pessoas que tinham problemas com a lei”, diz o ex-governador Roberto Santos (ver entrevista abaixo). O decreto de Santos deu ganho de causa à resistência. O desafio agora é afirmar as suas conquistas. Roberto Santos | Governador da Bahia durante o período de 1975 a 1979. Ex-reitor da Universidade Federal da Bahia MARCO AURÉLIO MARTINS O A TARDE | Quando o senhor foi governador, qual era o quadro da relação do Estado com as religiões de matrizes fricanas? ROBERTO SANTOS | Os terreiros tinham uma preocupação muito grande e de certo modo se sentiam discriminados, porque, quando estava para acontecer um culto, eles tinham que fazer o registro na polícia, na Secretaria da Segurança Pública. Com outros cultos, isso não acontecia. AT | Em que era baseada a exigência? RS | O interessante era que no princípio não se sabia o que tinha determinado essa exigência. Foi preciso pesquisar sobre muito sobre isso, até que se viu que tinha sido um decreto muito antigo, numa fase em que se dizia que os candomblés escondiam pessoas que tinham problemas com a lei. As associações e terreiros pediram para corrigir e concordei em baixar o decreto. Com ele, acabou aquela marca de que o terreiro era um lugar de esconderijo de quem tivesse cometido algum crime. Babalorixá | Título do mais alto sacerdote de um terreiro ketu quando o ocupante do cargo é do sexo masculino ❚ Mameto de inquice | Grau máximo do sacerdócio no culto afro de nação angola, quando a ocupante do cargo é uma mulher. Há uma variação do termo para nengua, dependendo da Casa, pois os povos angola unem expressões de várias etnias ❚ “Crença merece respeito” Decreto nº 25.095, assinado pelo ex-governador Roberto Santos, que governou a Bahia de 1975 a 1979, suspendeu a exigência para que sacerdotisas e sacerdotes de candomblé tivessem que se dirigir à Delegacia de Jogos e Costumes para retirar a autorização para a realização das festividades nos seus terreiros. quer dizer... Ialorixá | Grau máximo do sacerdócio no culto afro de nação ketu quando a ocupante do cargo é mulher ❚ Tempo de gritar por liberdade religiosa CLEIDIANA RAMOS 7 | A TARDE | O senhor encontrou algum tipo de resistência ou dificuldade administrativa para fazer essa mudança? RS | Não. Eu acho que isso estava sendo mantido mais por uma questão de rotina, sem que se tivesse uma preocupação de se analisar a fundo. A TARDE | O Sr. convivia com a comunidade de candomblé? RS | Não muito. Passei a ter mais contato depois do decreto. Mas conheci religiosos como Mãe Menininha, uma pessoa muito interessante e de muita energia. A TARDE | A Bahia teve outros governadores antes do senhor, mas a exigência de submeter a realização do culto à polícia continuava. Sua decisão foi uma conjunção de fatores que a permitiram? RS | Não. Foi uma coisa de baianidade mesmo (risos). A TARDE | Que mensagem o senhor deixa para os que ainda lutam pela liberdade religiosa? RS | Acho que todos nós, brasileiros, devemos ter respeito à liberdade religiosa. Eu desejo, sinceramente, que desapareçam quaisquer restos de discriminação que ainda existam. EXU Dia: segunda-feira Cores: vermelho e preto Oferendas: farofa com dendê, feijão, água, mel, aguardente, acaçá 8 | ESPECIAL | DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA ❚ SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 ❚ DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA | ESPECIAL ARQUIVO A TARDE quer dizer... Inquices | Nome das divindades do candomblé de nação angola ❚ Voduns | Nome das divindades do candomblé de nação jeje ❚ Xicarangoma | sacerdote músico no candomblé de nação angola ❚ Oloê | Conselheiro no candomblé de nação jeje ❚ Tata | Palavra no candomblé de nação angola que pode ser traduzida por “pai” ❚ RESISTÊNCIA ❚ Palmares foi experiência mosaico de povos, costumes e línguas de Estado africano e combate à escravidão Herança religiosa foi formada pela diversidade História de Zumbi traz boa lição de luta política [email protected] Quando se fala em África, a idéia presente no senso comum, não só na Bahia, mas no Brasil, é a de uma terra arrasada ou exótica. Pensa-se na diversidade de um continente, com suas línguas, costumes e povos, como uma coisa só. Com o candomblé acontece o mesmo. Sua complexidade costuma ser reduzida a uma única forma. Para a maioria das pessoas, os rituais são os mesmos em qualquer terreiro; pensam que candomblé e umbanda são iguais. Além disso, inquices e voduns são palavras desconhecidas se comparadas a orixás. Esse desconhecimento tenta unificar algo que é completamente diverso até mesmo em relação a casas das mesmas tradições. “As religiões de matriz africana têm um núcleo teológico e filosófico que não espelha apenas um único aspecto. Se pensarmos nelas como uma forma unitária, já incorremos no erro de negar a diversidade que é a África”, salienta o doutorando em História Social Jaime Sodré. Ele conhece essa diversidade por sua própria experiência religiosa. Sodré é xicarangoma, título para sacerdote músico, do terreiro Tanuri Junçara, de tradição angola, e oloê, espécie de conselheiro, do Bogum, que tem herança jeje-mahi. “Mesmo entre casas da mesma tradição existem diferenciações. Elas têm um panteão de divindades semelhantes, mas guardam saberes que sofrem modificações, como, por exemplo, na manifestação de determinado rito, nas terminologias mais gerais de divindades, nas suas subdivisões dotadas de características muito personalizadas”, acrescenta Sodré. Assim, os terreiros apresentam características semelhantes num primeiro e rápido olhar, mas possuem, cada um, suas características muito próprias. “Essa diversidade pode vir pelas características das linguagens, mas também pela via dos ritos”, diz o historiador. Essa diversidade costuma ser enquadrada numa divisão do que se convencionou chamar de nação, onde a língua litúrgica é um diferenciador. Assim, aceita-se de uma forma mais genérica três grupos: angola, com tradição herdada dos povos de língua banto; jeje, formada pela herança lingüística ewé e fon; e ketu, que tem como idioma o iorubá. Essa classificação é importante para clarear um pouco o nome que se dá à essência da ligação entre divino e humano em cada tradição. Na angola, ela se chama inquice; na jeje, vodum; e na ketu, orixá. RIQUEZA – Mas essa divisão não é tão simples como aparenta. Entre os angolas, por exemplo, há subdivisões como congo e congo angola; no jeje existe a mahi e a savalu. Sem falar em ramos da religião, como ijexá, dentre outros. Existem ainda os cultos ligados aos eguns e eguguns, que se referem aos ritos pós-vida, pois na dinâmica do candomblé a morte é só mais um ciclo. Há ainda a incorporação ao culto, em alguns terreiros, da figura do caboclo, uma entidade que é própria do Brasil e começou pela relação entre os primeiros escravos a chegar, os bantos, e os indígenas. “O candomblé é, antes de tudo, uma forma de resistência negra e um modo de vida. Ele engloba o nosso modo de ver o mundo, o meio ambiente. E todos esses saberes se uniram, com a contribuição de povos diversos, para criá-lo como o conhecemos hoje”, destaca Tata Kommannanjy. Tata lubitu, posto que significa o “guardião de segredos” do terreiro Unzó Kwa Mpaanzu, localizado no bairro de São Marcos, Tata Kommannanjy é também o presidente da Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu (Acbantu). A associação envolve terreiros, candomblés e também quilombos, totalizando, aproximadamente, 700 organizações. Aliança preservou o culto aos caboclos O caboclo é uma entidade que simboliza a diversidade que possui o candomblé. Embora aparentemente possua maior identificação com a herança indígena, ele se tornou um elemento religioso bem mais complexo e foi preservado nos cultos de candomblé. A multiplicidade dos tipos de caboclo identifica desde figuras com características sertanejas, a exemplo do Boiadeiro, às ligadas à água, como o Marujo. São entidades que possuem um lado irreverente, mas estão sempre prontas à realização da caridade, principalmente ações de cura. OBÁ Dia: quarta-feira Cores: vermelho e branco Oferendas: acaçá, água,milho REPRODUÇÃO PLURALIDADE ❚ O candomblé forma um CLEIDIANA RAMOS COMUNHÃO –As informações sobre caboclos fazem parte de um estudo acadêmico que já se tornou referência sobre esse tema. Intitulado O dono da terra, ele foi realizado pelo doutor em antropologia Jocélio Teles, diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais da Ufba (Ceao). “Não há registros específicos sobre o começo dos cultos aos caboclos. Mas há os de interação dos grupos étnicos conhecidos, como os povos bantos e indígenas, já a partir do século XVI”, completa Teles. Teles destaca que, por esse motivo, são os terreiros angola os pioneiros a reivindicar a herança de reconhecimento aos primeiros habitantes do continente americano. Além disso, houve certa resistência de sacerdotes das tradições jeje e ketu a abrirem espaço para o caboclo em terreiros. Embora tenha ficado corrente a expressão “candomblé de caboclo”, Teles explica que é mais correto se falar em “giro ou sessão de caboclo”. De acordo com Teles, mesmo em terreiros ditos de caboclo, ao se observar seus ritos, percebe-se que eles seguem a tradição angola. “À medida que o candomblé foi se afirmando como religião, a identificação com a sua origem africana torna-se mais forte. Isso não significa que houve uma negação do culto ao caboclo, mas sim que, ao se falar em sua herança básica, a identidade como origem se dá pela via da herança que veio da África”, explica. RIQUEZA – A construção do caboclo como um elemento religioso passa também pela fusão com a literatura e a política. O índio foi um símbolo forte na tradição literária brasileira e, no caso da Bahia, ele também acabou se fundindo com a idéia de liberdade trazida pelas guerras da Independência, como acontece, por exemplo, com o famoso Caboclo do 2 de Julho. “A tradição africana já traz o componente de culto aos ancestrais que, no caso do caboclo, uniu-se a um sentido histórico, político e também literário”, acrescenta Teles. O antropólogo Jocélio Teles aponta a unidade de tradições distintas na figura do caboclo, que até mesmo na umbanda se faz presente. (C.R.) CLEIDIANA RAMOS [email protected] O caboclo Boiadeiro, identificado com o sertanejo, é exemplo da diversidade na religiosidade de matriz afro Tradição tem variedade lingüística Tata Kommannanjy, presidente da Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu (Acbantu), diz que, embora diferentes, as heranças que formam o candomblé são o resultado de uma aliança entre vários povos, com seus costumes e línguas. “A palavra candomblé, por exemplo, vem do verbo loomba, que é de origem kikongo, uma das línguas banto. Ele quer dizer pedir, cultuar, rezar. Da conjugação desse verbo surge a palavra kandoombelê, que significa “eu peço a Deus, eu rogo a Deus, eu cultuo Deus”. Ao longo dos anos, a corruptela da conjugação desse verbo levou à palavra candomblé”, completa. Kommannanjy destaca que a diversidade é extremamente complexa. “Mesmo em nações de tradições iguais há diferenças. A mesma energia tem nomes diversificados. A energia que é Kayango numa casa é Bamburecema em outra. Depende da língua usada pela tradição da casa. Num evento, realizado em 2003, identificamos pelo menos cinco raízes diferentes e isso só da tradição angola. Em rezas e cantigas aparecem, no mínimo, sete idiomas, o que atesta a riqueza de povos que compuseram o candomblé”, completa. Jaime Sodré, por sua vez, diz que essa diversidade foi possível pelo diálogo que existe entre as várias tradições. Ele se baseia no respeito ao outro e no entendimento de que a sabedoria é múltipla. “No candomblé não se admite a interrupção do diálogo. Tanto é que pode acontecer no ritual de uma determinada nação ser acolhida a divindade de uma outra”, completa. FERNANDO AMORIM 19.5.2006 9 | "Determinei se pusesse a cabeça em um pau no lugar mais público desta praça a satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam o Zumbi imortal, pelo que se entende que nesta empresa se acabou de todo com o Palmares." Essa expectativa do governador de Pernambuco, Caetano de Melo e Castro, numa carta enviada ao rei de Portugal em 14 de março de 1696, não se cumpriu, afinal, hoje, 310 anos depois, Zumbi é o maior símbolo político dos movimentos negros que lutam por igualdade de direitos. O dia 20 de novembro, dia da sua morte, virou, no Brasil, o Dia Nacional da Consciência Negra. O que o governador de Pernambuco pensou evitar com a crueldade só reforçou a simbologia de um homem que não só desafiou a política escravista de um Estado, mas montou um sistema de poder alternativo. Palmares não era apenas um agrupamento de escravos fugidos, mas uma estrutura de governo que sobreviveu por um século, de 1595 a 1695. “Zumbi comandou um projeto de Estado africano. Por isso, se tornou símbolo de organizador político e ícone do movimento negro”, destaca o doutor em História e presidente da Fundação Cultural Palmares, Ubiratan Castro. INDEPENDENTE – Palmares, com uma área estimada em 27 mil quilômeros quadrados, localizado onde hoje é o Estado de Alagoas, mas que na época pertencia à capitania de Pernambuco, era uma reunião de pequenas vilas chamadas mocambos. O quilombo tinha uma economia baseada na agricultura, com a garantia de comercialização da sua produção em cidades vizinhas. Na verdade, Palmares, com cerca de 20 mil habitantes, não incomodava tanto os fazendeiros locais, mas sim o poder central, afinal, sua estrutura desafiava a utilização de mão-de-obra escrava, base da economia brasileira. A tensão entre quilombolas e o Estado formal era mais ou menos intensa de acordo com o estágio da quer dizer... Axé | Força. Seu uso também expressa concordância com o que foi afirmado ❚ Nzambi | Nome de divindade suprema no candomblé de nação angola ❚ oferta de mão-de-obra escrava. Se ela fosse grande, os quilombos não eram incomodados. Mas se a importação de escravos estivesse diminuída, a preocupação em combatê-los aumentava. BATALHA – Palmares tornou-se uma dor-de-cabeça para a coroa portuguesa por conta de fatores como a disputa entre Portugal e Holanda por colônias. A Guiné, atual Gana, e Angola eram postos fornecedores da mão-de-obra escrava trazida para o Brasil nos primeiros séculos do período da colonização. Os holandeses passaram a dominar esse locais, o que se tornou um problema para Portugal. Por outro lado, o rei do Congo, Estado também localizado nessa região, decidiu não mais permitir a saída de seus súditos para serem usados como escravos. “O padre Vieira, inclusive, passou a defender que Portugal abrisse mão do Brasil e o entregasse à Holanda”, completa Castro. Embora tivesse chegado a ensaiar uma aliança com os holandeses, em 1654, Portugal decide partir para a briga para manter o Brasil e os expulsar daqui. Os donos da economia local decidem que Palmares é um desafio aos seus interesses e a guerra contra ele endurece. É então que Palmares vive um conflito em seu próprio núcleo de poder. O chefe Ganga Zumba, tio de Zumbi, recebe uma proposta do governo da capitania de Pernambuco: eles deveriam sair da Serra da Barriga, onde o quilombo estava abrigado, para ocupar uma parte plana, o que claramente facilitaria um futuro ataque; receberiam terra em troca de não mais incitar nenhum tipo de rebeldia ou fuga. Zumbi é contra a decisão do tio e decide ficar em Palmares. Ele organiza então o quilombo como uma fortaleza, o que significa, inclusive, marcar posição territorial. Sua avaliação política se revela completamente correta: Ganga Zumba é traído pelo poder colonial e acaba morrendo. Zumbi então emerge como governante absoluto de Palmares. "O quilombo se fortalece como modelo de Estado e governo alternativo no lugar de ser meio apenas para reunião de fugitivos", completa Castro. Morre o homem, mas sobrevive o ícone de uma luta ainda necessária Tata Kommannanjy diz que, no candomblé, saberes e contribuições de diversos povos se uniram GILDO LIMA 16.7.2003 Antropólogo e pesquisador Jocélio Teles aponta a unidade de tradições distintas na figura do caboclo O ano apontado como provável para o nascimento de Zumbi é 1655. Ele nasceu livre, em Palmares, mas ainda criança foi capturado e dado de presente a um padre. Foi batizado com o nome de Francisco e aprendeu latim e português. Mas a vida de escravo do menino nascido livre não durou muito. Aos 15 anos, Zumbi conseguiu fugir e retornou a Palmares para junto do tio Ganga Zumba, que era o chefe do quilombo. Quando o tio morreu após ser traído ao acertar um acordo com o poder colonial, Zumbi assumiu o comando, revelando uma liderança política e militar significativa. De 1680 a 1691, por exemplo, todas as expedições mandadas pelo Estado contra o quilombo de Palmares foram completamente derrotadas. Acuado, o poder colonial apelou. Contratou Domingos Jorge Velho, um entradista paulista conhecido pela crueldade. Em 1694, Palmares acabou sendo derrotado pelos homens de Jorge Velho. RETORNO – Ferido, Zumbi caiu de um desfiladeiro, mas sobreviveu. Um ano depois, reapareceu retomando as lutas * Zumbi comandante guerreiro/Ogunhê, ferreiro mor/capitão da capitania da minha cabeça/mandai a alforria pro meu coração Minha espada espalha o sol da guerra/rompe mato, varre céus e terra/ (...) (Trecho da música Zumbi, de Gilberto Gil e Wally Salomão contra a escravidão. O seu retorno fez correr a história de que ele havia voltado como um ser sobrenatural e guerreiro. “É difícil trazer um perfil preciso de Zumbi, afinal, as informações que temos sobre ele é o que foi retirado de documentos policiais”, diz o presidente da Fundação Palmares, Ubiratan Castro. Ainda assim, fica patente seu FERNANDO VIVAS perfil heróico, afinal, se o próprio poder repressor deixou passar informações sobre a sua resistência, é uma boa pista de que foi um homem extraordinário. Sua derrota seguiu o roteiro típico da vivida por heróis de movimentos de resistência: foi traído por um companheiro, Antônio Soares. Morto, foi decapitado e sua cabeça pendurada em praça pública não só para servir de exemplo, mas principalmente para anular o mito de seu poder sobrenatural, inclusive presente no apelido que substituiu o nome cristão, e que ainda intriga estudiosos. Para alguns, Zumbi seria uma corruptela de Nzambi, o nome da divindade poderosa dos povos bantos, classificação usada para reunir as etnias provenientes das regiões do Congo e de Angola. Para outros, é a tradução de uma palavra que indica “deus da guerra” e, ainda, em outras interpretações, “morto vivo”. O certo é que a importância política de Zumbi persistiu. Em 1978, ela foi completamente resgatada pelo movimento negro ao incorporá-lo à celebração da Consciência Negra. OSSAIN Dia: segunda-feira Cor: verde fosco Oferendas: acaçá, água, Presidente da Palmares, Ubiratan Castro destaca heroismo de Zumbi milho amarelo, batata-doce. 10 quer dizer... Ogã |Sacerdote do candomblé com funções de serviço ritual, sem transe ❚ Ialorixá |Título do mais alto grau de sacerdócio num terreiro ketu, quando o cargo é ocupado por uma mulher ❚ | ESPECIAL | DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA ❚ SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 ORGANIZAÇÃO ❚ Comunidades religiosas mantêm a estrutura organizacional de solidariedade grupal concentrada em um território, lembrando a configuração dos quilombos em grandes centros urbanos Terreiros conservam a tradição da resistência LUCIANO DA MATTA ❛ Para Vovô, as ações sociais são inspiradas na solidariedade, que é uma marca dos terreiros de candomblé CLEIDIANA RAMOS [email protected] Em 1974 nascia o bloco afro Ilê Aiyê. Hoje, três décadas depois, ele não é apenas uma entidade carnavalesca, mas um símbolo de resistência e combate à exclusão, luta que passou pela estética, mas sem deixar de lado a educação e, conseqüentemente, a construção de cidadania. Mas não se pode falar da história dessa associação sem ir até o seu ponto de referência: o Ilê Axé Jitolu, localizado no mesmo endereço do bloco afro, no bairro da Liberdade, o Curuzu. O terreiro é comandado por mãe Hilda Jitolu, mãe biológica e espiritual de Antônio Carlos Vovô, presidente do Ilê. “Todo homem nasce com um sonho que vai crescer com ele. Eu ajudei meu filho a realizar o sonho dele”, resume mãe Hilda, principal referência do Ilê. As ações sociais, por exemplo, segundo Vovô, são inspiradas na solidariedade que ele aprendeu no Jitolu e que é uma marca dos terreiros de candomblé. “A criação da nossa escola, da Band‘Ayê e outras iniciativas vem da inspiração de mãe Hilda e das próprias experiências solidárias do terreiro”, completa o presidente do Ilê Aiyê. As afirmações de Vovô trazem à tona uma das características especiais dos terreiros: eles funcionam como um importante território de resistência negra, moldado por fortes laços familiares, nem sempre relacionado a parentesco biológico e têm a solidariedade com a comunidade onde estão inseridos como uma das suas faces mais marcantes. São traços que os aproxima da idéia de quilombo. “Todo homem nasce com um sonho que vai crescer com ele” “Eu ajudei meu filho a realizar o sonho dele” Mãe Hilda Jitolu, ialorixá do Jitolu e do Ilê Aiyê “O modelo de vida africana, o isolamento motivado muitas vezes pela perseguição do poder dominante, como aconteceu com os candomblés da Barroquinha, a necessidade de ter um território para se fixar são elementos que aproximam os terreiros das características de resistência como foram os quilombos”, destaca o doutor em história e presidente da Fundação Cultural Palmares, Ubiratan Castro de Araújo. Além disso, ele destaca que algumas pistas em documentos históricos deixam aberta a possibilidade de que ao lado de quilombos sempre estavam presentes organizações religiosas, que, embora ainda não fosse chamados de candomblé, fazem referências a elementos presentes neles. “Há queixas de autoridades sobre o que chamavam batuques de negro, com comida, bebida e festa, inclusive em documentos relacionados à Guerra da Independência na Bahia”, acrescenta Castro. Ele destaca que, há pouco mais de 20 anos tornou-se mais firme o entendimento de que quilombos não eram organizações excepcionais, mas sim presentes onde existissem vilas e cidades. “Um quilombo é entendido como uma comunidade de resistência. Onde houve escravidão, houve resistência e assim houve quilombo”, completa Castro. Assim, Salvador, estava cercado de quilombos, áreas que não eram fixas, mas tinham mobilidade de acordo com a necessidade. “Com o crescimento das cidades, áreas que foram quilombos foram incorporadas pelas cidades, mas muitas não perderam seu modelo de resistência”, diz Castro. FERNANDO VIVAS Santiago: apoio a bairros onde há terreiros Liberdade: resistência, concentração negra e superpopulação Calabar: apoio da Secretaria da Reparação Poder público investe em infra-estrutura OXALÁ Dia: sexta-feira Cor: branco Oferendas: acaçá, água, milho branco, inhame. Nos terreiros, a organização social constrói laços estreitos entre a comunidade que o forma, mas também com a do seu entorno. Daí que esse espaço de resistência é ampliado e transforma a configuração de bairros como Liberdade e Engenho Velho no que se pode chamar de quilombos urbanos. “Os quilombos sempre foram entendidos como áreas rurais, mas esse entendimento pode ser bem mais amplo”, destaca o ogã do terreiro do Cobre, educador e assessor especial da Secretaria Municipal da Reparação (Semur), Antônio Cosme. O Engenho Velho da Federação, por exemplo, segundo levantamento da Semur reúne 23 terreiros. “Não custa lembrar que os terreiros foram perdendo suas áreas por conta da expansão urbana. Assim, muitos deles perderam a área física por causa da ocupação que aconteceu por conta da solidariedade dos seus sacerdotes, o que faz com que os laços com a comunidade se mantenham firmes”, completa Cosme. Mas a perda de muitas dessas áreas aconteceu por conta da especulação imobiliária, inclusive ameaçando a conservação de um patrimônio essencial para uma casa de candomblé: o meio natural. Por esse motivo, os terreiros tem sido uma das prioridades nas ações da Semur. O direcionamento de projetos não se resume ao beneficiamento da sua estrutura física, direção para a qual a secretaria acaba de assinar junto ao Ministério da Cultura, um convênio no valor de R$ 2,2 milhões. Recursos também são utilizados para o beneficiamento de comunidades no entorno dos templos de candomblé, como o total de R$ 300 mil que será utilizado para melhoramento da mobilidade urbana no Engenho Velho da Federação. A parceria envolve prefeitura e governo federal por meio da Secretaria Especial de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial (Seppir). As obras começam até o final deste ano. VITÓRIAS – “Conseguimos, do ano passado para cá, um aporte de R$ 10 milhões para intervenções em bairros onde há concentração de terreiros e, logo, da população negra, como Engenho Velho da Federação, Calabar, Sussunga em São Caetano, Bom Juá, Jaqueira do Carneiro, para intervenção em encostas, recuperação de escadarias”, relaciona Gilmar Santiago, secretário municipal da Reparação. Os recursos são provenientes de emendas parlamentares. SÃO BARTOLOMEU – Uma vitória recém-conquistada pelo povo-de-santo foi a disponibilização de R$ 4 milhões pelo Ministério da Cultura para a revitalização do Parque São Bartolomeu, considerado um santuário para as religiões de matrizes africanas. Os recursos serão utilizados para despoluição de mananciais permitindo a recuperação da beleza de cachoeiras, como a que leva o nome da orixá Oxum, senhora das águas. “O projeto prevê a inclusão em atividades de recuperação das comunidades que ocuparam áreas do parque”, acrescenta Santiago. A Semur está realizando o mapeamento dos terreiros em Salvador. No estudo que vem sendo feito pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Ufba (Ceao), já foram catalogados, de junho até agora, 800 terreiros nos bairros Pau Miúdo, Uruguai, dentre outros. SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 ❚ DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA | MARCO AURÉLIO MARTINS EXUS ❚ Entidades de personalidade controversa povoam rituais de umbanda Caridade e cura para evolução do espírito SYLVIA VERÔNICA [email protected] Metade da casa da ialorixá Petrúcia dos Santos, 62 anos, é uma residência comum, onde vive com filhos e netos, no bairro de Castelo Branco. Atrás de uma das portas da sala, dois salões forrados com palha-da-costa acomodam o terreiro de umbanda no qual mantém a tradição herdada da avó, povoado de caboclos, orixás, exus e pombas-giras. O Centro Espírita Caboclo Laje Grande da Bahia leva o nome do “dono da cumieira da casa”, explica a mãe Pel, como é chamada pelos filhos-de-santo. “Para e le a gente arreia abóbora, fumo e mel”, revela a religiosa. Laje Grande foi um índio guerreiro cuja imagem de louça é cuidadosamente guardada em um dos roncós da casa. Carcomida pelo tempo – lá se vão mais de 50 anos – representa o guia que, acreditam, já realizou muitas curas. “Mas não está mais entre nós. Teve o corpo cremado”, diz a ialorixá, enquanto mostra a decoração do terreiro. Em um dos altares, os orixás obaluaê, iansã e iemanjá; no barracão, o jogo de atabaques guardados pelos ogãs são forrados de couro, referência ao “caboclo truvezeiro”, que maneja o couro nas aldeias, faz tambores e pandeiros. As paredes do barracão onde são realizados os rituais estão repletas de pinturas das imagens dos orixás Ogum, Obaluaê, Ossain, ADEPTOS Porto Alegre e Rio têm maior número de fiéis da umbanda entre as capitais Rio de Janeiro | População: 5.857.914 Umbandistas: 72.946 pessoas ou 1,25% da população ❚ São Paulo | População: 10.435.546 Umbandistas: 35.782 pessoas ou 0,34% da população ❚ Porto Alegre | População: 1.360.590 Umbandistas: 29.944 pessoas ou 2,2% da população Salvador | População: 2.443.107 Umbandistas: 3.033 pessoas ou 0,12% da população São Luís | População: 870.028 Umbandistas: 610 pessoas ou 0,07% da população Fonte ❚ IBGE: censo 2000 Iansã, Oxóssi e elementos da tradição do candomblé angola que convivem em harmonia com o culto aos caboclos. Boiadeiro, o dono da casa, para o qual dois bois são sacrificados todos os anos; Tupiniquim, o rei das cobras. “Ele cuida para que nenhuma cobra se aproxime e nos ataque”, diz Petrúcia. No pote da jurema do caboclo, uma bebida feita com ervas, vinhos, mel e frutas. A convivência das entidades sob o mesmo teto termina aí. Os escravos da umbanda são acomodados nos fundos da casa. Em um pequeno e escuro cômodo construído no quintal, estão assentados exus e pombas-giras. É o quarto de Maria Padilha, Tranca-Rua, Pomba-Gira, Caveirinha, Arranca-touco, Exu Morcego, que permanece fechado e seu conteúdo, guardado em segredo. “Aqui é o quarto dos que trabalham para o mal”, afirma Petrúcia. Essa distinção afasta os exus que trabalham pelo bem e que por isso ocupam lugares separados. É o caso do escravo Zé Pelintra, muito querido e conhecido pelas curas que promove, e da escrava Anastácia. “Ela só faz o bem. Sofreu muito na mão dos senhores de escravos”, comenta a mãe-de-santo. A personalidade controversa dos exus e seu duplo caráter exigem cuidados de quem lida com essas entidades na umbanda, candomblé e na quimbanda, na qual são associados ao demônio. Mãe Petrúcia diz que exus não têm noção das consequências do mal ESPECIAL 11 | Acusação de magia negra é preconceito quer dizer... “Quando a pessoa pede algo que vai prejudicar o outro, e às vezes pedem coisas terríveis, trabalhos de perversidade, o exu pergunta: `você tem consciência do que está me pedindo?´. Os exus são interesseiros, fazem para quem dá mais, pedem garrafa de uísque, bode”, revela Petrúcia. A mãe-de-santo Lígia Sales, 70 anos, reforça a dualidade que envolve a crença. “O espiritismo é uma faca de dois gumes. Pode fazer tanto o bem quanto o mal. A umbanda é magia branca, mas é confundida com a quimbanda, a magia negra. Daí vem o preconceito, e nos confundem com macumbeiras. A umbanda é religião de culto a um só Deus, indiana, esotérica, independente, misto de tudo e, sobretudo, da consciência de que estamos aqui para crescer, evoluir, não fazer o mal”, diz mãe Lígia, líder do Centro Umbandista Caboclo Itapuã desde 1978. Todos os sábados, dia de atividades no centro, Lígia recebe a cigana Madalena e passa o dia inteiro fazendo consultas, chegando a atender mais de 100 pessoas. “A cigana faz caridade e limpeza para o bem. Aqui nada é cobrado, mas quem quiser ajudar é bem-vindo, já que vivemos de doações”, comenta. O antropólogo Vilson Caetano de Souza Júnior avalia que esse universo vasto e complexo da umbanda torna difícil defini-la. Brasileira, foi estruturada no Rio de Janeiro, em um centro espírita onde começaram a manifestar-se espíritos que diziam ser caboclos. O que dá identidade é a grande matriz espírita, que acredita na reencarnação, e a idéia de que os orixás são guias. Além de ser espírita, talvez seja a religião que mais dialogue com elementos do catolicismo. Uma das principais características da umbanda, talvez a mais importante, é que trata-se de uma religião de cura. Roncó | Quarto de recolhimento para rituais sagrados ❚ Ialorixá |Título para o mais alto grau de sacerdócio num terreiro ketu, quando o cargo é ocupado por uma mulher ❚ Ogã | Sacerdote do candomblé com funções de serviço ritual, sem transe ❚ Tata | Palavra banto que pode ser traduzida para o português como pai ❚ Inquice | Divindade do candomblé de nação angola ❚ Universo de caboclos e padilhas XANDO P. O antropólogo Roberto Albergaria faz questão de ressaltar que seu interesse pelas “moças” é mais pessoal que profissional, mas faz uma avaliação sobre o significado da figura de Padilha enquanto uma das facetas da personalidade feminina. A manifestação exuberante e voluntariosa e o comportamento exemplar em sociedade conviveriam como dois lados de uma mesma identidade. Nos terreiros, a entidade está presente em invocações demoníacas e nos trabalhos para casos amorosos. “O maniqueísmo herdado do espiritismo e do catolicismo soma-se às práticas da astrologia, quiromancia e heranças ameríndias, cultura egípcia, indiana e remonta a Atlântida. A umbanda é um fenômeno da década de 20 e foi criada por brancos da classe média no Rio de Janeiro e em Porto Alegre. É a única que Albergaria e uma de suas voluntariosas padilhas: auto-estima feminina rompe as fronteiras das religiões. A diferença para o candomblé é que este não tem no panteão a fusão de crenças”, afirma o antropólogo e diretor do centro de estudos Afro-Orintais (Ceao), Jocélio Teles. Sem a idéia de reciprocidade, mas de graça e caridade, o que leva um guia de umbanda a trabalhar pela cura de alguém é estar em desenvolvimento espiritual. Com visão de mundo baseada na matriz judaico-cristã e forte discurso com relação à caridade, a umbanda pretende ser religião na qual só se faz o bem. A partir daí cria-se outro modelo religioso no qual se faz o mal, a quimbanda. “A quimbanda assume o mal ou constróem essa imagem sobre ela. O exu é interpretado como diabo e trabalha não necessariamente para o mal; ele faz o que você pede”, afirma Vilson Caetano. A umbanda é religião quase invisível em Salvador. A preservação do candomblé no quantitativo e no espaço físico prevalece. A avaliação de Jocélio Teles tem base no censo de terreiros iniciado pelo Ceao no qual, até agora, entre os 800 terreiros identificados, apenas oito declararam-se de umbanda. Em 1983, pesquisa da Secretaria da Indústria e Comércio revelou a existência de um terreiro de umbanda no total de 1.018. A falta de investigação acadêmica sobre a umbanda talvez seja uma das repercussões desse cenário. “Faço pesquisas nessa área há 20 anos e desconheço estudos na Bahia sobre o culto umbandista”, diz Jocélio. SAÚDE ❚ Corpo é morada de divindades A saúde do corpo é imprescindível para os adeptos do candomblé por um motivo simples: o corpo tem que estar bem para ser morada de orixás, inquices e voduns, ou seja, não há, para as religiões de matriz africana, separação entre corpo e espírito. Para preservar o templo das divindades, o candomblé é uma religião de cura na qual folhas, raízes e caules são utilizados como remédios em banhos, chás, defumadores, xaropes, uma farmacopéia básica de conteúdo precioso para quem o domina, mas que não se encerra em uma lista de receitas. “É o jogo de búzios que revela qual órgão está afetado, qual orixá, vodun ou inkice pode ajudar e que tipos de injunções devem ser feitas para curar. Às vezes não podemos fazer nada e a orientação é que a pessoa procure a rede de saúde. Terreiros são fonte de saúde, mas o tratamento é individual. Somos feitos de energia: divina e do nosso corpo. Às vezes um banho de folha recarrega de energia positiva. De outra vez esse mesmo banho não vai servir. O maior efeito colateral dos remédios naturais é não fazer efeito”, ensina Anselmo Santos, Tata de inquice do terreiro do Mokambo. Há uma infinidade de defumadores para abrir caminhos, banhos para descarregar o corpo e para o amor, simpatias contra inveja e para nunca faltar dinheiro, xarope para fortificar, para bronquite, asma, tosse. RECEITA –“Toda a mãe-de-santo tem seu caderninho com as receitas que aprendem ao longo dos anos, mas a recomendação vem de lá de cima. Na verdade, o conhecimento e a inspiração trabalham juntos. Não é apenas em sonho que o santo me diz que folha usar, tenho que ter conhecimento teórico e prático também”, revela Anselmo. Tata Kommannanjy, do Terreiro Unzó Kwa Mpaanzo, no bairro de São Marcos, assinala que assim como o candomblé, a umbanda está fortemente ligada à cura, e é esse seu significado na língua bantu. Também é bantu a palavra candomblé, originada de kandoombele, que significa: “Eu peço a Deus, eu cultuo a Deus eu rezo a Deus. Candomblé é natureza, vive da natureza e cuida dela. Mais não se deve esquecer que toda a folha tem dois lados, um faz o bem, o outro faz o mal”, aponta Kommannanjy. Há um ano, o Grupo de Trabalho da Saúde da População Negra (GTS), da Secretaria Municipal da Saúde, iniciou trabalho de aproximação com os terreiros de can- domblé da cidade para promover um intercâmbio nessa área. Até o final de 2006, serão realizadas 13 feiras da saúde em bairros populares, elaboradas a partir das conclusões de oficinas nas quais membros das comunidades apontavam as principais necessidades de cada uma delas. Nas feiras, as populações dos terreiros e do entorno contam com diversos serviços, entre eles vacinas, medição de pressão arterial, orientações de saúde bucal e higiene. “Essas iniciativas fazem parte do compromisso dos governos com as ações afirmativas na área de saúde. As práticas de saúde nas religiões de matriz africana nunca foram reconhecidas. Mas o povo pobre de periferia tem acesso aos terreiros e neles encontra a cura das doenças. Procuramos ONGs que já desenvolviam trabalhos com terreiros, na Federação do Culto Afro Brasileiro, e dessa forma chegamos mais facilmente até eles”, afirma Denize Ribeiro, coordenadora do GTS. A intenção é articular a formação de uma rede municipal de terreiros e, ao tempo que a estrutura da saúde pública chega até esses locais, os saberes sobre fitoterapia e práticas de cura serão compartilhados e disponibilizados. Semana passada foi realizado o 1º Seminário Municipal de Religiões de Matriz Africana e Saúde, onde foram discutidas formas de viabilizar esse intercâmbio. “A intolerância religiosa e o preconceito ainda são obstáculos. Alguns terreiros já estão dispostos a participar do projeto. Existem elementos da religião que vão continuar restritos, mas muito pode ser compartilhado. É um processo que requer tempo”, comenta Denize Ribeiro. (S.V.) NANÃ Dia: terça-feira Cores: branco e azul Oferendas: branco e azul Oferendas: acaçá, água, feijão fradinho, milho branco, pipoca. 12 quer dizer... Iorubás | Termo para definir grupo étnico que usa a língua iorubá ❚ Ijexá | Um dos povos que vieram escravizados para o Brasil e que também construíram um repertório religioso no candomblé ❚ Oyó | Famoso reino iorubá ❚ Egbás |Etnia africana ❚ | ESPECIAL | DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA ❚ SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 HISTÓRIA ❚ Atrás de uma igreja católica, um terreno abrigou, em fins do século XVIII, o local sagrado do povo do candomblé, de onde surgiram casas de culto importantes para a consolidação da religião no Brasil Os terreiros que vieram a partir da Barroquinha Ogã | Sacerdote do candomblé com funções de serviço ritual, sem transe ❚ REPRODUÇÕES ARISTIDES ALVES Vista do alto do bairro da Barroquinha, em Salvador, em 1800. À época, uma mãe-de-santo africana alforriada (provavelmente Iyá Adetá) fundou, na região, o primeiro culto a Oxóssi volta de 1855, já estava onde permanece como o primeiro templo de culto afro tombado na América Latina, na antiga Estrada do Rio Vermelho, atual Avenida Vasco da Gama, Engenho Velho de Brotas. No momento da fundação do terreiro, por volta de 1807, um grupo formou o Ilê Maroiá Láji, mais tarde famoso como “o terreiro de Olga de Alaketu”. Entre 1850-60 foi criado o Gantois. E, em 1910, o Ilê Axé Opô Afonjá. MARY WEINSTEIN [email protected] OGUM Dia: terça-feira Cor: azul marinho Oferendas: acaçá, água, inhame, farofa de dendê, vinho O único lugar do mundo, fora da África, onde o candomblé se estabeleceu no centro de uma cidade foi em Salvador, na Barroquinha. “Aqueles africanos eram estrategistas muito espertos. Eles tinham democracia lá, que não é a nossa democracia representativa”, diz o professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia Renato da Silveira, referindo-se aos que arrendaram um terreno atrás da igreja de culto católico e ali fizeram o primeiro terreiro de candomblé da Bahia, de onde saíram outros de tradição inegável – o Ilê Maroiá Láji, o do Gantois, e o da Casa Branca. Renato da Silveira escreveu 650 páginas sobre as comunidades de santo que se fixaram na Barroquinha e que, de lá, foram expulsas, em uma “limpeza étnica” promovida por perseguidores de negros. O Candomblé da Barroquinha, processo de constituição do primeiro terreiro baiano de keto é o nome do livro dele. Segundo conta, com base em uma pesquisa de 21 anos, ali havia, originalmente, uma igreja, fundada em 1726 por uma irmandade de brancos, a Irmandade de Nossa Senhora da Barroquinha, formada por artesãos, oficiais inferiores do exército e pessoas que moravam nas redondezas. Em 1764, juntou-se a ela uma irmandade negra, a do Senhor Bom Jesus dos Martírios, de crioulos, ou seja, de negros filhos de africanos nascidos no Brasil, antes sediada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho. A igreja ficava abaixo da Porta de São Bento, que desapareceu no século XVII, mas que na época era na altura do início da Rua Chile, hoje Praça Castro Alves, que se chamava Largo do Teatro, por causa do Teatro São João, posteriormente demolido. A Barroquinha era um bairro popular. A partir dos séculos XVII e XVIII, tinha uma população misturada. Por volta de 1790, foi morar por ali uma mãe-de-santo africana alforriada que fundou o primeiro culto a Oxóssi e que, na hipótese de Renato da Silveira, era Iyá Adetá. Em seguida, no início do século XIX, o perfil demográfico dos negros da Bahia começou a mudar e a maioria passou a ser de escravos vindos da África ocidental, in- Tia Sussu foi a última africana a comandar a famosa Casa Branca * Recompor a história do candomblé na Bahia é uma tarefa difícil por causa do incêndio que destruiu vários livros da Igreja da Barroquinha, em 1983. Por sorte, os pesquisadores João da Silva Campos e Carlos Ott consultaram os arquivos antes que eles fossem destruídos. . cluindo os iorubás nagôs. Os ijexás, oyós e egbás eram em maior número do que os ketos, ao contrário do que muito se pensa. “Essa turma começa a se filiar à Irmandade dos Martírios, que fica sendo de crioulos e africanos. Com o aumento da importância da irmandade, esse grupo decide arrendar o terreno atrás da igreja, que pertencia a um casal de brancos. Isso porque foi favorecido por uma distensão política, a partir de 1810, com o Conde dos Arcos. Em 1812, a comunidade dos Martírios construiu um salão, um consistório, onde atualmente deve ser o Hotel Castro Alves”, vai dizendo Renato da Silveira. Tudo ia mais ou menos bem até a década de 1850, quando se iniciou o governo do presidente da província Francisco Gonçalves Martins, que era progressista, mas anti-africano. O candomblé foi invadido, profanado e expulso. Por CONSOLIDAÇÃO – Silveira destaca o papel das três mulheres responsáveis pela consolidação da prática do candomblé na Bahia. Primeiramente, a responsável pela instalação do culto doméstico a Odé Oxóssi, Iya Adetá, por volta de 1790; depois Iyá Akalá, quando o terreno é arrendado e é fundado um terreiro; por último, a estruturação do candomblé, do jeito que conhecemos hoje, por Iyá Nassô. Iya Nassô, emissária do imperador de Oyó – maior reino iorubá até a virada do século XVIII para o XIX, veio junto com Babá Assiká para organizar o candomblé. Ela reuniu as sociedades de africanos que funcionavam clandestinamente e reestruturou o lugar de importância litúrgica e política. Iyá Nassô atraiu pessoas importantes da comunidade, que recebiam títulos de reconhecimento. Concebia-se, então, a casa-de-santo, reunindo o culto aos orixás e, ao mesmo tempo, associada a organizações civis secretas e a irmandades. Para Silveira, não existe outro exemplo de mistura tão íntima entre candomblé e irmandade de leigos na história. A urbanização da Barroquinha foi uma “limpeza étnica”, resultante da “ideologia do progresso”, diz Silveira. A Barroquinha se traduzia em um constrangimento para a elite baiana, por ser uma sociedade ainda escravagista. Na primeira metade do século XIX, no governo de dom Pedro II, os jornais exaltavam a chegada do progresso ao País. “Aí vem toda uma vergonha do atraso colonial, e há políticas para fazer os africanos voltarem para a África. Francisco Gonçalves Martins se destacou porque tinha sido inclusive o chefe da polícia durante a Revolta dos Malês. Então, era um cara que tinha o perfil de perseguição”, resume Renato da Silveira. Para ele e outros estudiosos, a Barroquinha é um marco da luta do povo negro pela cidadania. Livro resgata a origem das casas de santo na Bahia O candomblé da Barroquinha, processo de constituição do primeiro terreiro baiano de Keto tem 80 ilustrações associadas ao texto. Imagens foram colhidas em jornais franceses, que noticiavam a África, no século XIX. O autor restaurou retratos. E, pela primeira vez, poderá ser visto, por exemplo, o rosto de Tia Sussu, última africana da Casa Branca. Também foi feita uma recomposição da vista aérea da Barroquinha. E há o mapa da Costa da Mina, na África ocidental, que mostra de onde os africanos daqui vieram, os rios sagrados – o Niger, que é o de Oyá (Iansã), a bacia do Rio Oxum, e o Euá, que banha o Reino de Keto. O livro está sendo impresso em São Paulo, pela Edições Maianga, para ser lançado em janeiro em Salvador. “A idéia que as pessoas têm da África é a da floresta. Mas os escravos jejes e nagôs da Bahia vieram de regiões urbanizadas, comerciais, bem organizadas, com instituições políticas. Eles já tinham o teatro profissional desde o final do século XVIII”, diz Renato da Silveira. Segundo o professor, com esse know-how, os africanos começaram a organizar as procissões mais espetaculares da cidade. “Eles tinham a capacidade de produzir festas que tinham grande importância e que eram moeda política importante no mundo colonial”, acrescentou Renato da Silveira. O Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Ufba, o antropólogo Ordep Serra, que é ogã do Ilê Axé Iya Nassô Oká, o terreiro da Casa Branca, originário da Barroquinha, tem o mesmo entendimento do pesquisador Renato da Silveira. “Como costuma acontecer, houve um movimento das elites, uma limpeza étnica, que jogou o terreiro para bairros da periferia. Foi assim que ele foi bater onde está até hoje, no trecho da Estrada do Rio Vermelho”, localiza, para dizer que, hoje, o terreiro “tem descendentes de norte a sul do Brasil e até na Argentina”. ❚ SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA | ESPECIAL 13 | ARQUIVO A TARDE quer dizer... Babalaxé | Termo utilizado para um sacerdote que ocupa o comando do terreiro num período de espera pela transição de governo ❚ Zambi | Designação para o poder supremo no candomblé de nação angola ❚ Tata de inquice |Título para o mais alto sacerdote de um terreiro de nação angola quando ele é do sexo masculino ❚ Xicarangoma | Sacerdote músico no candomblé de nação angola ❚ Oloé | Conselheiro no candomblé de nação jeje ❚ Emi | Sopro que anima a vida ❚ Os rituais são a forma de aproximação com o sagrado. Como não prega a conversão, o caminho até essa crença deve ser motivado por decisão muito firme e iniciativa própria COSMOVISÃO ❚ A religião vê ligação entre tudo que forma o mundo. Cada homem é responsável por seus próprios atos, mas não pode esquecer que cada um deles interfere no equilíbrio da comunidade na qual vive Candomblé cultiva a crença no elo universal CLEIDIANA RAMOS [email protected] O candomblé é chamado de religião ancestral, afinal sua base é a crença de que tudo que passou ou está no universo forma um elo indestrutível. Nele, o mal não existe de forma personificada e cada um é responsável por seus próprios atos. Sem os laços de solidariedade de grupo, um terreiro não funciona. Mesmo com as relações de hierarquia, cada membro tem sua função na comunidade. Na base dessa religião está a idéia de um ser supremo, que é o princípio da vida, mas também de essências que são a sua revelação no mundo, grupo no qual o homem está incluído. Inquices, orixás, voduns, encantados, nomes que divergem por conta das diferenças das variadas tradições, são as pontes acessíveis para a comunhão com o sagrado. “As divindades são o rosto do poder supremo. É assim que ele se revela. Embora não sejamos deu- ses, fazemos parte desse todo superior. Ele é maior do que a soma entre as partes e se apresenta em todos os princípios criadores, como na árvore que tem seu ramo cortado e brota”, define o pós-doutor em antropologia Vilson Caetano, que é babalaxé do Ilê Axé Ori Tarokê, terreiro situado em Valença. O babalaxé é o responsável pela guarda da casa religiosa durante um certo período. O homem é também uma centelha dessa essência divina e comunga de forma mais próxima com ela por meio dos seus rituais. Por ser parte do todo que forma o mundo, a humanidade é parente de tudo o que a cerca. Cada pessoa é animada por uma energia que está sempre em circulação e se reúne ao todo quando se encerra seu ciclo de vida. Daí porque a morte não oferece medo. Ela é encarada como uma etapa do ciclo da vida. “Se formos começar a fazer o encadeamento dessa porção criadora que há em todas as coisas vamos descobrir que fazemos parte MARCO AURÉLIO MARTINS Tata Anselmo: busca da harmonia que evita desequilíbrios FERNANDO AMORIM Caetano: crença-base da religião devolve o homem à terra de uma cadeia que dará no próprio Zambi, como chamamos a divindade toda-poderosa, na nossa tradição. Daí porque o culto aos antepassados está presente no candomblé, afinal celebramos o que faz parte da nossa própria essência”, destaca o tata de inquice Laércio Sacramento do Mansu Kilembekweto Lembafurama. A casa é também conhecida como Terreiro de Jauá e fica na localidade que leva o mesmo nome. ESCOLHA – Um princípio básico do candomblé é a sua relação comunitária. Os rituais, por exemplo, que são o canal de comunicação com o divino, acontecem num ambiente conjunto, incluindo o sentido de partilha, por meio da distribuição de comida. “No princípio o poder supremo cria a taquara, que é uma espécie de cana ou bambu. A humanidade sai dessa taquara, ou seja, é um mito simples para nos dar a noção de comunidade”, aponta Caetano. Mas fazer parte dessa comuni- dade requer aceitação de responsabilidades. A primeira delas é a crença de que cada um é responsável pelos seus próprios atos e, como se vive num grupo, as ações individuais terão conseqüências para todo o grupo. “Você faz tudo por sua conta e risco. Cada homem atua sobre seu próprio destino. Quando você elabora um pensamento abre a porta para atos que terão suas conseqüências. Trilhar o caminho do bem ou do mal é uma escolha sua, cujos resultados você terá que aceitar”, explica o doutorando em história social Jaime Sodré. Ele é xicarangoma do Tanuri Junçara, nome que se dá ao sacerdote músico na tradição angola, e oloê do terreiro Bogum, de herança jeje. Esse título é para quem atua como uma espécie de conselheiro da casa. Aceitar essa responsabilidade é o primeiro passo para fazer parte da comunidade. Essa é uma decisão muito particular. “Cabe a você escolher a sua forma própria de dialogar com o mundo que lhe cerca”, acrescenta Sodré. Ao se decidir por fazer esse compromisso, o primeiro passo é percorrer um processo de autoconhecimento, para saber que lugar ocupar na estrutura comunitária, que é o terreiro. “O candomblé não é uma religião de conversão. O chamado para ele é muito pessoal, individualizado e respeita-se o que cada um carrega consigo. Acreditamos no princípio de forças que são energias. Quando há uma sobrecarga delas torna-se prejudicial. Pode-se, por exemplo, por conta dessa sobrecarga chegar até o candomblé devido a um problema de saúde ”, completa o tata de inquice Anselmo dos Santos, do terreiro Mokambo, localizado no Trobogy. A palavra-chave então passa a ser equilíbrio, com as próprias forças que lhe movem e que a convivência comunitária vai reforçar “É por isso que se fala em desequilíbrio quando há um afastamento do grupo”, destaca Caetano. Morte é porta para o eterno retorno Para os cristãos, enquanto Deus é o símbolo do bem, o demônio, que é entendido mais genericamente com forma tenebrosa, é o próprio mal. Para o candomblé, não há essa personificação do que é imperfeito ou malévolo. “O mal está no ser humano como uma escolha ou nas imperfeições do que forma o mundo. O mesmo oceano que é tão belo e calmo, num determinado momento pode se tornar fonte de destruição. A nossa busca é pela harmonia que evita esses desequilíbrios”, explica o tata de inquice Anselmo dos Santos. O religioso destaca que uma das habilidades dada aos homens é o livre-arbítrio. “Cada um traz dentro de si a essência do bem e do mal. O que fazer com elas é uma decisão pessoal”, salienta. Tata Laércio afirma que não consegue compreender quando algum religioso do candomblé reforça a personificação dessa dicotomia. “É lamentável que alguns líderes do candomblé ainda aceitem esses penduricalhos de tradições que nada têM a ver com a nossa. Vejo isso mais como uma questão comercial, afinal o diabo alimenta o medo”, alfineta. Para se chegar à concepção que o candomblé possui sobre a morte é necessário partir da idéia de um elo entre as coisas que formam o mundo. Como ❛ “Cada um traz dentro de si a essência do bem e do mal” Tata Anselmo, do Terreiro Mocambo ❚ nele se crê que tudo que tem vida faz parte de um ciclo ininterrupto, a morte é apenas mais uma fase do movimento vital. “O homem possui em seu corpo elementos que existem também fora dele. Temos em nós água, minerais. Assim, somos formados pelas mesmas energias que também dão vida a outras matérias”, completa tata Laércio. O antropólogo Vilson Caetano lembra que a crença base no candomblé é que ao morrer o corpo humano acaba se decompondo e se unindo à terra. Já o que o faz respirar e o mantém vivo, o emi, volta para o poder supremo. Ele então o distribui de volta. “A diferença em relação ao espiritismo, por exemplo, é que esse retorno à vida está destituído de identidade. É a minha essência que volta a se reunir ao ciclo da vida, mas sem as minhas memórias”, diz. O historiador Jaime Sodré conta que aprendeu uma lição preciosa com sacerdotes de candomblé com quem conviveu e convive. É a concepção de como o princípio da sabedoria não segue exatamente as noções do tempo cronológico. “Andava sempre me perguntando sobre essas questões e, na convivência com os mais velhos de candomblé, eles me chamavam a atenção sobre como nascemos com um conhecimento que nos permite satisfazer às nossas necessidades mesmo sem a fala. Quando se vai envelhecendo se adquire coisas próprias de criança, um estágio que liberta das experiências individuais e nos deixa prontos para mergulhar nesse oceano do todo”, completa Sodré. Para o historiador, é esse entendimento que faz a morte ser encarada no candomblé com maior serenidade. “Ela na verdade é apenas mais um dos nossos muitos ciclos de vida. E esse é apenas um dos muitos exemplos que podem ser encontrados sobre a sofisticação filosófica de um povo que foi tratado de forma preconceituosa como primitivo”, destaca. OMOLU Dia: segunda-feira Cor: vermelho rajado de preto Oferendas: porco, galinha d’angola, comidas com bastante dendê, bode e pipoca 14 | ESPECIAL | DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA ❚ SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 FOTOS MARCO AURÉLIO MARTINS quer dizer... Inquice | Divindades no candomblé angola ❚ Voduns | Divindades no candomblé de nação jeje ❚ Xicarangoma |Sacerdote músico no candomblé de nação angola ❚ Ebomi | Título das iniciadas que já cumpriram todo o ciclo de obrigações e que, portanto, são consideradas mais velhas na sabedoria ❚ Iroko | Orixá do candomblé de nação ketu ❚ Folhas para a cura e comida são pontes entre o homem e o sagrado; elas são usadas para garantir a saúde física e espiritual e também prosperidade, ou seja, equilíbrio completo Tata lubitu | Título no candomblé angola que significa “a chave” ou “guardião dos segredos ❚ CULINÁRIA ❚ Os filhos-de-santo seguem as interdições alimentares próprias dos seus orixás. Além de ser uma forma de reforçar essa relação, o alimento é parte do ritual e pertence ao domínio do sagrado Comida para união de ofertantes e ancestrais FABIANA MASCARENHAS [email protected] Assim como a literatura, a música e a dança, a culinária tem importância reconhecida no candomblé. Para o povo-de-santo, a comida representa um elo entre o ofertante e seus ancestrais e é por meio dela que se consegue o equilíbrio necessário para se ter saúde. “Nos terreiros de candomblé, a comida é vista como veículo de axé, veículo de força. Ela é uma forma de comunicação entre o filho-de-santo e seus ancestrais. É oferecendo a comida ao seu respectivo orixá que nós pedimos paz, saúde, amor e agradecemos pelo que nos é ofertado”, explica o pós-doutor em antropologia e diretor do Centro de Estudos da População Afro-Indo–Americana (Cepaia), Vilson Caetano. De acordo com Caetano, que no final do ano lançará um livro intitulado O banquete sagrado, no universo afro-brasileiro tudo remete à comida, ao comer e aos utensílios da cozinha. “Para nós, o mundo é a representação de uma grande panela. O céu é a tampa, a terra é o fundo da panela e nós somos os grãos, as raízes, as folhas dentro dela”, afirma Caetano. Ele explica que há diversos mitos que explicam como a comida passou a representar um símbolo sagrado no candomblé. Um deles é o mito da fome dos orixás. Numa certa ocasião, conta, os orixás passaram uma grande fome. Depois de já terem recorrido a tudo, Exu – que é o mensageiro de todos os orixás existentes – consegue recolher coquinhos de palmeira (de dendê), e, a partir deles, os homens passaram a se comunicar com os orixás. “Desde então, a comida é uma das principais formas de comunicação entre o filho-de-santo e seu orixá. Por isso, é tão importante seguir corretamente as interdições alimentares dos seus santos”, afirma Vilson Caetano. As interdições citadas por Caetano variam de acordo com o orixá que rege cada pessoa. Um filho de Oxalá, pai de todos os orixás, por exemplo, não come azeite de dendê. O de Exu detesta óleo de coco. O de Obaluaê não come crustáceo. E assim segue com os outros orixás. QUIZIL AS – Cada um deles tem suas preferências e repulsas e desobedecê-las significa tornar-se suscetível a sanções. São as chamadas quizilas de santo, que é tudo aquilo que o orixá rejeita, causando uma reação negativa que atinge as pessoas. “Toda iniciação ao candomblé passa por tabus alimentares. As quizilas são proibições rituais que têm uma única função: lembrar ao iniciado a sua relação com aquele ancestral. Seguir essas restrições é uma forma de reforçar a identidade com o seu orixá”, expli- ❛ “A função do ebó não é fazer o mal, mas restabelecer o equilíbrio” Vilson Caetano, pós-doutor em antropologia e diretor do Centro de Estudos da População Afro-Indo-Americana (Cepaia) ❚ ca o antropólogo. A Maié da Casa de Oxumarê, Tânia Bispo, conta que depois que passou a ser filha de Oxóssi teve que deixar de comer tangerina. “Sempre gostei muito e não sabia dessa quizila do meu santo. Continuei comendo, mas toda vez que isso acontecia eu passava mal. Sentia mal-estar, azia, diarréia. Conversei com a minha mãe-de-santo e foi aí que ela me disse que Oxóssi não gostava de coisa ácida. Tive que parar de comer”, conta. As proibições, contudo, não se restringem apenas à alimentação, mas a tudo o que o Orixá rejeita. Muitas delas está ligada a ações cotidianas, como passar atrás de corda de animal, não deixar ninguém passar com fogo nas nossas costas, não passar embaixo de escadas, não pagar nem receber dinheiro em jejum, entre outras restrições. De acordo com o antropólogo Vilson Caetano, os tabus alimentares não ocorre de forma aleatória e está sempre associado à história do Orixá. Conta o mito que Oxalá não gosta de azeite de dendê porque, em um dos encontros dele com Exu, este entornou um pote de azeite de dendê sobre o Orixá. “Os filhos de Oxalá também não comem muito sal porque num desses encontros, Exu amarrou o sal nas costas de Oxalá e ele acabou ficando corcunda”, diz Vilson. Há, no entanto, aqueles que afirmam não sentir nada ao desobedecer a esses tabus, mas ele avisa que nem toda quizila se manifesta de forma imediata. EBÓ – “É preciso lembrar que a quizila, em alguns casos, é como se fosse uma ‘alergia’ natural, que comemos alguma coisa, e imediatamente temos uma reação alérgica, mas há aquela que não sentimos de imediato alguma reação. Não podemos comer imaginando que algo irá nos fazer mal, porque isso atrai, mas é preciso respeitar os santos e lembrar sempre que a comida é uma maneira de reforçar a nossa relação com ele”, orienta. Segundo ele, as oferendas gastronômicas, também chamadas de ebós, são preparadas dentro de rigorosos preceitos e colocadas nas moradas de cada Orixá – Iemanjá vive no mar, Xangô habita as pedras, Oxóssi, as matas, e Exu, as encruzilhadas. Não há um chef, como num restaurante, mas quem zela pelo fogão é a iabassê, que, dentro da rígida hierarquia do candomblé, detém o cargo vitalício de responsável pela cozinha. O antropólogo explica que os ebós não se restringem à alimentação e são uma série de rituais visando corrigir várias deficiências na vida de um ser humano – saúde, amor, prosperidade, trabalho profissional, equilíbrio, harmonia familiar, etc.) “Toda oferenda é um ebó, mas nem todo ebó é uma oferenda. Há ebós de agradecimento, de limpeza, no qual se faz um pedido, enfim, há vários tipos”, esclarece. A composição de cada ebó depende de sua finalidade e seus componentes irão desde bebidas, frutas, folhas, velas, adornos, alimentos secos , mel, dendê, louças, artefatos de barro ou ágata. Para o antropólogo, há uma visão errônea e deturpada de algumas pessoas em relação ao sentido do ebó. “Ao contrário do que muita gente pensa e acredita, a função do ebó não é fazer o mal, mas restabelecer o equilíbrio”, afirma Vilson Caetano. ADAPTAÇÃO ❚ Candomblé: invenção brasileira ARQUIVO A TARDE MEIRE OLIVEIRA [email protected] OXOSSI Dia: quinta-feira Cor: verde Oferendas: acaçá, água, feijão fradinho, milho amarelo com côco. Embora da mesma origem, os cultos às divindades de matriz africana diferem em vários aspectos. Na África e no Brasil, a época, o contexto social, o poder político e outros fatores são determinantes na visibilidade ou ausência de alguns orixá, inquices ou voduns. Segundo o doutorando em História Social e xicarangoma do Tanuri Junçara e oloê do Bogum, Jaime Sodré a aparição de cada divindade é oportuna. “A dinâmica da sociedade é que vai caracterizar os mais ou menos atuantes”. A religião conhecida como candomblé é uma invenção tipicamente brasileira. É fruto da adaptação produzida pelos negros trazidos na época da escravidão que se assemelha às religiões praticadas no continente africano. São três as principais nações que norteiam a prática no Brasil: ketu, jeje e angola. Na Bahia, os contatos mais intensos foram com Angola e Congo, desde o século XVI. Depois vieram os negros daomeanos (jejes) e os iorubás (nagôs). Dentre as principais diferenças está a forma de cultuar. Enquanto na África cada etnia adora uma divindade, no Brasil, no mesmo lugar são feitas cerimônias para várias delas. A conjuntura de perseguição favoreceu o culto coletivo como forma de resistência. A crença superou as diferenças entre as etnias em prol da sobrevivência de todos e contra o inimigo comum. É neste ambiente que Divindidades assumem características diferentes de acordo com sua nação de origem também negros e simpatizantes (não negros) são unidos pela fé. “Os adeptos formaram uma irmandade no candomblé na Bahia que contribuiu para a sobrevivência de terreiros como Casa Branca, Gantois e Afonjá”, afirma Sodré. Da união, surgiu a estratégia de preservar a religião: a associação religiosa. As cerimônias paralelas com as do catolicismo foram o grande trunfo que manteve o candomblé. Garantida a permanência, o contexto vai definir a sobrevivência de cada divindade. Se na África os deuses da agricultura eram venerados, aqui perderam prestígio. Não existia o interesse em pedir boa colheita em benefício do opressor. Segundo Sodré, “a preferência se deu por divindades guerreiras, com espírito de libertação. Alguns ganharam prestígio devido ao indivíduo que o representava ou adquiriram simpatia saindo do espaço restrito do terreiro pela força de seu mito”. DIVERSIDADE– E quando se torna popular, a sobrevivência é garantida, que, de acordo com Sodré, depende da eficiência da divindade em resolver conflitos. Dentre os primeiros colocados no rol da preferência estão: Oxalá, Iansã, Ie- manjá, Oxóssi, Oxum e os Ibejis. Obaluaê, Olokum, Mameto Kalunga, Azanadô,Kpo, Samba, Obá, Ossain, Zazi, Katendê estão entre os raros. Nos cultos às divindades, os terreiros obedecem um panteão obrigatório, além das cerimônias específicas de cada casa. Estas últimas são celebradas de forma secreta. “Ewá, por exemplo, era exclusivo do Gantois porque as mulheres que vieram da região onde existia um culto dedicado a ela se uniram lá”, explica ebomi Cidália que é filha de Iroko, outro orixá de culto raro. O repasse do conhecimento é um segredo preservado pela maioria dos guardiões da religião. “Outros inquices somem pela falta de materiais e locais para culto. Outros, nem chegaram aqui como Kianda (sereia), Nkosi, Nzazi”, conta o presidente da Acbantu e tata lubitu do Terreiro Unzó Kwa Mpaanzo, Tata Kommannanjy. O jeito de lidar com cada inquice, vodun ou orixá influenciou na seleção. Cada um exige tratamento diferenciado em relação à oferenda, cântico, nome, cor, e outros aspectos, que podem mudar de acordo com a etnia e suas variações decorrentes do dinamismo das religiões de matriz africana. Esses conhecimentos, geralmente, são dominados por poucas pessoas que os repassam através da vivência quando assim desejam. Neste contexto, as festividades ou ciclo de obrigações mantêm viva a religião e os toques funcionam como veículos de preservação. “Neles são perpetuados os nomes, o mito, além dos cantos e do ritmo. É a melhor memória. Já outras divindades permanecem só na lembrança, pois completam o ciclo ou faltam elementos para realização do culto”, afirma Sodré. Em muitos locais da África as religiões de matriz africana são minoria. Perderam o referencial com a imposição das religiões como catolicismo e islamismo. “No Brasil, o candomblé é ligado a identidade do país. Muita gente vem aprender o culto à Oxóssi que eles não têm mais. Ficam encantados como preservamos e respeitamos a religião”, lembra ebomi Cidália. SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006 ❚ DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA | ESPECIAL 15 | ARESTIDES BAPTISTA 1980 ENCONTRO ❚ Na música e nas telas mora quer dizer... a amizade de artistas com o candomblé Obá | Integrantes de um conselho de ministros do culto a Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá. Tem também um orixá que possui esse nome ❚ A arte abraça o axé numa troca que vem de longe CLAUDIO LEAL [email protected] Aurelina Cândida, dona Sinhá, morava no Bângala, rua de casarões que se escoram uns nos outros, na incestuosidade arquitetônica da velha Bahia. Vez e meia, ao lado, na delegacia, nasciam gritos doídos. Sinhá ouvia. Na década de 1910, os terreiros de candomblé resistiam a perseguições diárias. Negros presos em rituais eram levados à autoridade policial. Mas alguns se rebelavam. Certo dia, um deles, em fuga, resolveu pular o muro e cair na casa de dona Sinhá. Assustada, mas compadecida, ela ajudou o filho-de-santo a fugir, em vez de berrar a presença do delegado. Esse exemplo de tolerância se cristalizou nos olhos de um dos filhos. Você o conhece, pode tirar o chapéu: é Dorival Caymmi. Nascia naquele instante uma relação de enlevo e de mistério. Em criança, o compositor se embebeu das tradições africanas resistentes na Bahia. “A ligação com o candomblé vem desde a infância. Ele participava de festas populares e havia uma curiosidade muito grande entre os rapazes a respeito dos terreiros”, conta Stella Caymmi, neta e biógrafa de Dorival. Até hoje, ele prefere chamar terreiro de roça, como em antanho. É contra adulteração. CONTATOS – A história da relação dos terreiros com artistas e intelectuais está por ser escrita. As marcas dessa troca simbólica, como dizem os sabidos, são sentidas na música, na literatura, nas ciências sociais e nas artes plásticas. Uma narrativa das perseguições religiosas e políticas em Salvador explicaria, em parte, essa atração mútua. A geração do sociólogo Édison Carneiro (autor de Candomblés da Bahia) e do escritor Jorge Amado iniciou a batalha para romper a criminalização dos terreiros. No aperto, encontravam refúgio nos domínios das mães-de-santo. Para evitar uma prisão política, na ditadura do Estado Novo, Carneiro foi acolhido por mãe Aninha no Axé Opô Afonjá. E não faltam exemplos de comunistas que pegaram o caminho da roça. O candomblé, porém, influenciou mais os músicos do que qualquer militante. “No caso de Maria Bethânia, ela dialoga com a representação mítica de Iansã a partir dos anos 70, tanto nas vestes como no repertório”, esclarece Marlon Passos, mestrando do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao), que desenvolve a pesquisa Oiá-Bethânia – os mitos de um orixá nos ritos de uma estrela. Antes dela, Clara Nunes abrira caminhos. Em Santo Amaro, ainda adolescente, a cantora freqüentava os rituais do caboclo de dona Edith do Prato. Aprofundaria sua experiência religiosa em 1973, quando o poeta Vinícius de Morais a apresentou a Mãe Menininha do Gantois, que a iniciou no candomblé e indicou seu orixá: Iansã, também conhecida por Oiá, mulher de Xangô, senhora dos ventos e das tempestades. Segundo Marlon, “ela passa a tratar Mãe Menininha como uma divindade, a quem consultava para tomar decisões”. A relação de Dorival Caymmi com Mãe Menininha se assemelhava à de Bethânia. Em 1972, ele lança o disco Caymmi, que traz na capa um desenho dos instrumentos de Xangô. Gravou pela primeira vez a Oração de Mãe Menininha. Mas não faltou quem criticasse a canção. “Ele pôs Mãe Menininha na categoria de santa, fez uma oração, e foi mal compreendido. Valorizava, sim, a cultura negra, coisa que desenvolvia desde a década de 30, inclusive com a ajuda de Carmen Miranda”, avalia Stella. Curioso é que o compositor pertence a outra casa, o Ilê Axé Opô Afonjá, onde é obá de Xangô. Pouco conhecido, para não dizer semi-inédito, há um samba de sua autoria em homenagem a Mãe Stella, sem a força da canção dedicada a Menininha. Filha de Oxum, a ialorixá do Gantois continua a ser reverenciada por Bethânia. “Ela se considera uma protegida de Oxum, graças a Menininha”, observa Marlon. Quase ninguém percebeu este detalhe na hora de comentar o novo show da intérprete, Dentro do mar tem rio, dedicado aos rios e aos mares. Oxum é senhora das águas. E, em alguma parte, Menininha é a segunda voz de Bethânia. África e Bahia, na arte de Mestre Didi Reconhecida em galerias internacionais, a obra de Mestre Didi ainda não alcançou a merecida divulgação na Bahia. Mas novos estudos sobre sua arte, que analisam a apropriação estética de elementos dos cultos da ancestralidade africana, contribuem para a compreensão do artista que consegue preservar a tradição numa arte de vanguarda. Entre eles, está A influência da religião afro-brasileira na obra escultórica de Mestre Didi, do doutorando em história social Jaime Sodré. Originalmente uma dissertação de mestrado, o livro será lançado no dia 29 de novembro, às 18h, na Galeria Canizares, da Escola de Belas Artes da Ufba. Contou com o apoio da Fundação Palmares e foi editado pela Edufba. “Procurei estudar as possibilidades de intermediação entre o sagrado e a inspiração pelo sagrado. De certa forma, é um reconhecimento à afirmação de uma arte fundada na cultura afrodiaspórica, que, curiosamente, tem um reconhecimento maior fora da Bahia”, explica Sodré. Nascido em 1916, Mestre Didi foi iniciado aos 8 anos como Kori Kowê Olukotun no culto dos ancestrais Egun, na Ilha de Itaparica. Em 1936, foi confirmado supremo sacerdote do culto de Obaluaê, no Ilê Axé Opô Afonjá. Sua contribuição à cultura brasileira não se resume à arte escultórica. Publicou, em 1946, Yorubá tal qual se fala, dicionário iorubá-português, e é também autor de Contos negros da Bahia, prefaciado por Jorge Amado. Esculturas suas foram abrigadas pelo Museu Picasso, em Paris, e receberam uma sala especial na XXIII Bienal Internacional de São Paulo, em 1996, aos 80 anos. Sodré destaca o caráter vanguardista de Mestre Didi: livre de amarras folclóricas, soube valorizar a cultura afro-brasileira. Os exemplos baianos não são vastos, mas incluem também o pintor Rubem Valentim e Hélio de Oliveira. “Ele executa uma recriação que não recebe o aparato místico porque vai ser exibido fora do lugar de culto”, avalia Sodré. À época da exposição de esculturas na galeria Prova do Artista, Mestre Didi definiu a sua fonte de inspiração: “Os orixás do Panteão da Terra são os que nos alimentam e nos ajudam a manter a vida. Os meus trabalhos estão inspirados na natureza, na Mãe Terra-Lama, representada pela orixá Nanã, patrona da agricultura.” Egun | Ancestrais que já partiram para o mundo espiritual e que, na Bahia, tem um culto específico ❚ programação Hoje | 15 horas – 27ª Marcha Zumbi dos Palmares, com saída do Campo Grande (centro de Salvador), organizada pela Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen); 16 horas – Caminhada do Fórum de Entidades Negras, com saída do Curuzu, na Liberdade; 19 horas – Câmara Municipal: entrega da medalha Zumbi dos Palmares ao ator Lázaro Ramos. Na sede da Câmara, centro de Salvador. ❚ Amanhã | 16 horas – O Conselho Estadual da Cultura e a Secretaria da Cultura do Estado da Bahia prestam homenagem a Mãe Hilda Jitolu, ialoarixá do Terreiro Ilê Axé Jitolu, e ao ator Lázaro Ramos. No Palácio da Acxlamação, centro de Salvador. ❚ De terça a sábado | 6ª Feira das Nações Africanas, que este ano trabalha o tema “Juventude Negra: Ancestralidade e Políticas Públicas”. A partir das 14 horas no Ceafro, Largo 2 de julho. ❚ Maria Bethânia se rendia à força e ao carisma de Menininha Existencialistas no reino dos orixás Os terreiros baianos seduziram três dos intelectuais franceses mais influentes do século XX: Albert Camus, Sartre e Simone de Beauvoir. Sem inspirar obras literárias, as experiências deitaram em cartas e diários. Em 1949, Camus viajou pela América do Sul. Aborrecido, vencido da vida, doido pra se matar. Coisa de existencialista durão. Na capital baiana, em 24 de julho, visitou um terreiro em Itapuã. “Os ritos degradados exprimem-se em danças medíocres”, observou. Sentiu-se entediado até que surgiu “um grupo de jovens negras” em estado semi-hipnótico. “Uma delas, alta e esguia, me encanta... Essa Diana negra é de uma graça infinita. E quando ela dança, essa graça infinita extraordinária não se desmente.” Ficou por aí. Voltou ao Hotel da Bahia e tomou uísque numa boate “triste como a morte”. A experiência do casal Sartre e Simone, em 1960, mereceu notas mais alegres. No terreiro de Mãe Senhora, descobriram seus orixás. Em carta a Nelson Algren – com todo o respeito, o escritor que lhe apresentou ao orgasmo – Simone vibrou: “A mãe-de-santo descobriu em Sartre um filho do mais poderoso dos deuses e, em mim, uma filha da mais adorável deusa.” Para quem acha que Mãe Senhora fez uma média com o casal de escritores: “Todos nos garantem que, se ela assim o diz, não pode subsistir qualquer dúvida, é verdade verdadeira.” Hum, hum. Quinta-feira (dia 23/11) | 15 horas – Mesa redonda com o tema Nzila Mu ngongo – O caminho do mundo – Terreiro São Jorge da Goméia, Lauro de Freitas; Lançamento da 1ª Exposição do Museu Comunitário Mãe Mirinha de Portão Tema “Nzila”; ❚ Até dia 24 (sexta-feira) | A Escola Aristides Novis, no Jardim Federação, promove a Semana da Consciência Negra, com o projeto didático A escola vai à África. Aberto à comunidade, o evento inclui palestras, oficinas de trança afro e visita ao Terreiro Ilê Axé Oxumaré, na Federação ❚ ARQUIVO A TARDE OXUMARÉ Dia: quinta-feira Cor: arco-íris Oferendas: batata doce, Mestre Didi: trabalhos inspirados na Mãe Terra-Lama, representada pela orixá Nanã, patrona da agricultura banana 16 | ESPECIAL | DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA ❚ SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006