20/11/2006 1a W_EPACAPA€_001 - A TARDE

Transcrição

20/11/2006 1a W_EPACAPA€_001 - A TARDE
SALVADOR, BAHIA
SEGUNDA-FEIRA,
SALVADOR,
20/11/2006 BAHIA
SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
Sou de
santo
e raça
Só 0,11% dos baianos no Censo 2000 assumiu ser de candomblé. Isso no Estado
que tem os cultos afros como uma das marcas de sua identidade. A baixa
estatística é vista pelo próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
como resultado do preconceito que historicamente atinge as religiões de matriz
africana. Até 1976, por exemplo, as suas festas religiosas só podiam acontecer com
autorização da polícia. Um decreto do então governador Roberto Santos acabou
com a exigência, mas ainda hoje a batalha contra a discriminação leva o
povo-de-santo a ter que sair às ruas para gritar por liberdade e respeito. Neste
caderno especial em homenagem ao Dia da Consciência Negra, histórias de luta
contra o preconceito e pela afirmação.
XANDO P.
| ESPECIAL |
2
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
[email protected]
índice
4
5
Uma só cidade e
várias nações da
“mãe África”
Jarê, religião
dos mestres
da Chapada
Diamantina
6
Sábios em
dizer não à
intolerância
7
Tempo de gritar
por liberdade
religiosa
8
Herança religiosa
foi formada pela
diversidade
9
História de
Zumbi traz boa
lição de luta
política
10
Terreiros
conservam a
tradição da
resistência
11
Caridade e cura
para evolução
do espírito
12
Os terreiros que
vieram a partir da
Barroquinha
13
Candomblé cultiva
a crença no elo
universal
14
Comida para união
de ofertantes e
ancestrais
15
A arte abraça o
axé numa troca
que vem de longe
Marcos Rezende
Lindinalva Barbosa
Contra a
intolerância
Aos pés de Xangô
Quando recebi a missão de escrever estas bem traçadas linhas sobre a II Caminhada do Povo de Santo pela Vida e Liberdade Religiosa, não me dei conta da dimensão em que estava me envolvendo. E só
pude perceber a complexidade do fato quando à
noite, dentro do Terreiro de Oxumarê, sentei em
frente ao computador para escrever o tal artigo.
Pensava, pensava, pensava e nada. Tendo ficado
em minha cabeça a velha história que a nossa tradição é oral.
Pois bem, como sou do orixá e de luta, refleti que
o que tinha a fazer mesmo era dormir. Dormir e me
inspirar. Pedi então para Ewá me incitar bons sonhos e caminhos para tratar da caminhada. Resolvi
então escrever como quem carrega o oxé de Xangô
e o opaxorô de Oxalá para tratar da importância da
caminhada realizada na última quarta pelas comunidades de candomblé.
Há tempos que os nossos ancestrais caminham
por este mundo carregando as concepções de vida
e de morte, que também é vida para o povo negro.
Há muito tempo o povo-de-santo, os omorixá (filhos de orixá) caminham neste País, nesta cidade,
lutando pacificamente por liberdade, por justiça,
por dignidade. Não pretendo fazer deste artigo um
momento de lamúria ou de dor, mas sim de transformação, de um novo olhar.
Nós, os representantes das religiões de matriz
africanas, fomos às ruas ontem, um dia antes do
Dia da Consciência Negra, porque o dia 19 é dia de
domingo e num país laico, com dezenas de feriados católicos e com uma população de 48% de negros e uma cidade com o maior percentual de negros e negras do país, ainda não se dignificaram a
transformar em feriado o dia 20 de novembro.
O povo-de-santo foi às ruas em causa própria
para homenagear as suas próprias tradições e raízes. Estivemos lá para falar de mãe Runhó do Bogum; Nezinho de Muritiba; do babalaô Martiniano
Bonfim; de Bamboxé; de Tia Massi do Engenho Velho; de Mãe Menininha do Gantois; Dionísia do
Alaqueto; Bernardino do Bate-Folhas; Procópio do
Ogunjá; Ciriáco na Vila América; Cotinha do Oxumarê, Mãe Aninha do Opô Afonjá, dentre outras
grandes personalidades. Grandes sacerdotes e sacerdotisas das religiões de matrizes africanas.
Agora, como diriam os mais novos, somos nós
na fita, sabendo que estamos apenas dando mais
um passo frente a todo o caminho trilhado pelos
nossos ebomis (mais velhos). Quisemos com esta
atividade relembrar aos poderes públicos quem
somos, onde estamos, o que fazemos, como pagamos os nossos impostos e que temos direito a voto
(votamos e decidimos). Estamos cansados da
opressão e aviltamento cotidiano. Cansamos de
ser cartão-postal sem direitos, de ser cultura sem
formação, de estar na internet sem acesso, de conhecer leis que não se colocam em prática, de ser
utilizados em receptivos como atrativos, como
moscas nesta emaranhada teia de conexões globalizadas e turísticas.
Resolvemos sair de casa. Exu à frente enviando
a mensagem, Ogum abrindo o nosso caminho,
Oxóssi com a sua flecha certeira, Xangô com a sua
justiça, Ossain com suas folhas sagradas, Omulu
cuidando da nossa saúde, Oxum espelhando nossa
beleza e conhecimento, Iemanjá nos dando a força
materna, Logum-Edé com os seus encantos, Ewá
com seus mistérios, Iansã os seus bons ventos e
presságios, Iroko e o ancestral saber, Oxumarê com
a visão do futuro, Nanã nos enviando e nos esperando, e Oxalá, nosso pai maior a nos conduzir. E
desta vez, Olorum pode ter certeza, não mais retornaremos a Ele, o nosso destino maior lá no
Orum, sem a nossa missão cumprida.
MARCOS REZENDE ❚ Historiador, ogã e coordenador do CEN
De acordo com o velho e bom jeito de fazer africano, é recomendável iniciar qualquer coisa reverenciando a ancestralidade, que, no caso particular da comunidade negra, tem sido muito
bem lembrada, respeitada e cuidada, graças, sobretudo, ao povo do candomblé.
Por isso, não existe uma melhor forma de saudar o 20 de Novembro – inscrito pelo movimento
negro brasileiro como Dia Nacional da Consciência Negra – do que retomando a frase, célebre já
entre nós, da venerável iyá fundadora do Ilê Axé
Opô Afonjá, a sábia Mãe Aninha Oba Biyi: “De
anel no dedo aos pés de Xangô”.
É muito bom poder presenciar e partilhar, 311
anos depois de Zumbi dos Palmares, da disposição de pessoas negras – jovens ou nem tanto – em
dirigir seus interesses e objetivos intelectuais e
acadêmicos à reconstituição de nossa história; à
investigação de dados sociológicos sobre as condições de vida ou sobrevivência do nosso povo; à
proposição de novas formas de educar ou mesmo de edificar casas; à escritura ou reescritura etnográfica e o registro documental de nossas formas de relação com o sagrado e com as artes.
Tudo isso, levando em conta o que a África e a
diáspora construíram e garantiram como conhecimento e saber civilizatórios. Saber civilizatório
africano que contribuiu para formar as bases da
civilização universal.
É claro que muito já foi escrito sobre nós, mas
é, sem dúvida, um “detalhe relevante” (como diz
um poeta amigo meu), quando esta produção intelectual salta das mentes e das mãos dos atores
centrais das páginas da vida real do povo negro
brasileiro.
Vida real que acumula déficits em relação à
dignidade, reconhecimento e participação no
poder, mas que, no entanto, transborda em
páginas de luta, resistência, sabedoria, coragem,
capacidade criativa, e, porque não, alegria e
beleza.
São centenas de dissertações, teses, artigos,
jornais, panfletos, ensaios, poemas, peças de
teatro, romances, documentários, histórias em
quadrinhos, charges, encontros, seminários,
palestras, núcleos de estudos universitários, enfim, um patrimônio conquistado “à unha”
pela organização do povo negro, haja vista, só para dar um exemplo, a verdadeira guerra que temos travado, contemporaneamente, para garantir os, ainda mínimos, percentuais de acesso às
universidades brasileiras.
Esta disposição guerreira do povo negro para
lutar pela vida e pela dignidade é a maior herança
que recebemos de Xangô, o orixá que nunca morreu, e jamais morrerá, assim como ancestrais
ilustres, como Mãe Aninha e Zumbi, que nos animam a continuar.
LINDINALVA BARBOSA ❚ Omorixá Oyá do Terreiro do Cobre e mestranda em Estudos de Linguagens/Uneb
Gilmar Santiago
Ação de reparação
O Brasil viveu 358 anos de regime escravista, nos
quais as populações negras não possuíam qualquer tipo de direito que lhes garantisse cidadania. Do ponto de vista da sua religiosidade, essas
populações não podiam expressar algo que era
fundamental para sua existência.
As comunidades de terreiros, para que se preservassem numa conjuntura tão adversa, tiveram que forjar formas de resistência, sincretismo
e solidariedade tão eficazes que conseguiram
atravessar séculos negando-se a desaparecer. Essas estratégias permitiram que heranças atravessassem a história, contribuindo fundamentalmente para a formação do povo brasileiro.
Neste contexto, o candomblé sofreu duras
perseguições do Estado brasileiro, sendo, inclusive, a sua prática constituída em crime mesmo
no pós-abolição. Na Bahia, só em 1976, um decreto do então governador Roberto Santos tornou os terreiros livres de ter que pedir autorização à Delegacia de Jogos e Costumes para celebrar os seus cultos.
Os terreiros se constituem em verdadeiros espaços de resistência e afirmação das identidades
negras recriadas no Brasil, seja através da preservação das diversas línguas africanas, passando
pelas sociedades matrilineares, onde as mulheres e os mais velhos têm uma importância fundamental nas estâncias decisórias, até chegarmos às formas hierarquizadas de relações e papéis sociais.
Com uma forte presença em Salvador, estima-se, atualmente, a existência de aproximadamente dois mil terreiros na cidade, localizados
nos bairros periféricos, onde predomina a popu-
lação negra. A maioria desses espaços carece de
melhoria em sua infra-estrutura física que permita sua preservação.
A Secretaria Municipal da Reparação
(Semur) reconhece a necessidade de políticas
públicas reparatórias para a preservação desse
patrimônio cultural da Cidade do Salvador.
Atualmente, a Semur e a Secretaria de Habitação
desenvolvem, em parceria com a Fundação Cultural Palmares e a Secretaria Especial de Política
da Promoção da Igualdade Racial (Seppir), o Projeto de Mapeamento dos Terreiros de Salvador,
coordenado pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (Ceao/
Ufba).
Um mapeamento sistematizado permitirá a
elaboração de políticas de preservação e revitalização desses espaços sagrados. O Ceao já mapeou mais de 700 casas e verifica-se que algumas
se constituem em um misto de celebração de cultos, moradia e espaço socioeducativo onde são
desenvolvidas atividades para as populações do
entorno.
Uma emenda ao Orçamento da União, da
bancada parlamentar baiana, articulada pela
Semur, no valor de R$ 2,2 milhões, será investida
em intervenções nos terreiros de Salvador.
O projeto prevê pequenas melhorias, como
conservação e ampliação de suas estruturas físicas, reforma de telhados, pintura, construção de
muros, recuperação de parques e jardins, iluminação, entre outras ações.
É o Estado tentando reparar uma dívida histórica que possui com os descendentes de povos
africanos.
GILMAR SANTIAGO ❚ Secretário municipal da Reparação
Jamille Sodré
Religião e juventude
“Cantiga de Menino Gente Grande já cantou”
(Ebomi Cidália)
“É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte” (Caetano Veloso)
Quero homenagear aqui os nossos griôs, ou
seja, os donos da palavra, sem eles não saberíamos quem nós somos. Os griôs são pessoas destinadas a passar o conhecimento de um clã (família) através de contos, lendas e mitos. Simplesmente através do dom da palavra preservam a força de uma herança milenar.
Peço licença aos meus mais velhos: permitam que eu faça o uso da palavra, fazendo singelamente um papel de uma griô.
Vou compartilhar a experiência de nascer e
ser criada num terreiro. Isso me deu a noção de
verdade e respeito que o candomblé tem com o
mundo. Contaram-me como se deve agir quando um sábio lhe passa um ensinamento (este sábio não precisa ser necessariamente um mais
velho. Um jovem pode ter esse dom. Porém existe
o tempo certo para assumir essa missão). Peça a
bênção (proteção).
A identidade de um povo é muito importante
para a resistência do mesmo. Nós, jovens, temos
o dever e o direito de colocar a história de nosso
povo a serviço da liberação do candomblé.
Nos permitamos griôs, desmistificar as diversas histórias equivocadas que criaram ou distorceram a nosso respeito. Dá aflição uma pessoa
que ignora nossa cultura tentar ensaiar algo sobre nós e querer nos convencer de que nós temos
demônios.
Uma pessoa que não reflete sobre suas raízes
está condenada a viver perigosamente à deriva.
Demônios são aqueles que querem apagar nossas riquezas, nossas referências, nosso modo de
vida, nosso amor.
A possibilidade de nascer e crescer em um terreiro de candomblé – nasci no Terreiro Tanuri
Junsara e morei boa parte da minha vida no mesmo – fez com que eu tivesse uma visão diferenciada de mundo, onde o tempo não é o tempo
cronológico e sim o tempo do inquice. Onde temos que aguardar um período muito especial para nos iniciarmos.
Aprender a ser criança sagaz para se tornar um
adulto sábio. Sendo jovens, nós temos uma sensação de buscar mudanças, aliás, isso não é exclusivo do jovem. Todo ser humano busca mudanças. Contudo, nosso respeito a nossas riquezas nos permite entender e preservar nossas tradições. Nós temos ótimos griôs e eles nos guiam
para que a juventude do candomblé continue a
caminhar pelas ruas de Salvador, mostrando que
cultura e religião é feita com a força do respeito. A
“bênção”.
Dedico essas palavras aos meus griôs, minha
amável mãe, Marlene da Hora, e meu querido
pai, Jaime Sodré.
JAMILLE HORA SODRÉ ❚ Designer e makota do Terreiro Tanuri Junsara
IEMANJÁ
Dia: sábado
Cores: cristal branco
e cristal verde
Oferendas: acaçá, água,
milho branco, arroz
EXPEDIENTE
Coordenação editorial | Marlene Lopes
Projeto gráfico e diagramação |
Valentina Garcia e Axel Augusto Hegouet
Ilustrações | Bruno Marcelo
Edição de fotografia | Carlos Casaes e Gildo Lima
Colaboração | Edson Rodrigues
❚
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA |
ESPECIAL
3
|
AUTODECLARAÇÃO ❚ A história de agressões às religiões afros faz com que na Bahia menos de 1% da
quer dizer...
população declare a prática. Isso quando as artes apresentam o axé como traço da identidade baiana
Só 0,11% dos baianos
assume o candomblé
ARQUIVO A TARDE
Nação | Designação para
identificar a origem da
tradição do culto. No caso
da Bahia, as mais conhecidas
são a angola, jeje e ketu. A
angola é a herdada dos
povos da área
correspondente a onde hoje
está Angola. Reúne as etnias
que usam como idioma a
família lingüística banto; a
jeje é correspondente ao
antigo Reino do Daomé,
hoje Benim e tem como
idioma o fon ou ewé; a ketu
é a herança da área que
corresponde hoje à Nigéria e
que tem como língua o
iorubá. ❚
Babalorixá | Título usado
quando o mais alto
sacerdote de um terreiro
ketu é do sexo masculino ❚
Iaô | Sacerdotisa
recém-iniciada na tradição
ketu que tem a capacidade
de entrar em transe. É o
véiculo de comunicação, no
momento do ritual, entre a
divindade e a comunidade.
´Cerimônia de saída de iaô, no Terreiro de Mãe Mirinha de Portão
No imaginário nacional, o candomblé é uma marca de identidade da religiosidade baiana. Mas os
números estatísticos demonstram
outro quadro. Segundo o último
censo divulgado pelo IBGE, em
2000 – a pesquisa acontece a cada
dez anos – apenas 0,11% ou 14.967
dos mais de 13 milhões de habitantes da Bahia têm o candomblé como religião. A umbanda tem percentual ainda menor: 0,05% ou
6.766 pessoas que a apontaram como sua religião.
No ranking de cinco estados onde há manifestações culturais e religiosas de herança africana de forma mais forte, a Bahia é o segundo
em prática de candomblé, atrás do
Rio de Janeiro. Em relação à umbanda é o quarto, empatando com
o Maranhão, num ranking liderado pelo Rio Grande do Sul.
POUCOS
Nas estatísticas baianas, opção religiosa por candomblé ou
umbanda não chega a 1% ❙
Maranhão
Bahia
0,01
Maranhão
0,11
0,38
Rio de Janeiro
São Paulo
0,07
Rio Grande do Sul
0,09
UMBANDA
[email protected]
CANDOMBLÉ
CLEIDIANA RAMOS
Bahia
0,05
0,05
0,89
Rio de Janeiro
São Paulo
0,21
Rio Grande do Sul
1,1
FONTE ❙ Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
SURPRESAS – A baixa taxa de declaração surpreende e é vista por
religiosos e entidades do Movimento Negro Unificado da Bahia
como um dos muitos resultados do
preconceito que essas crenças ainda enfrentam.
O chefe do setor de informações do IBGE na Bahia, Joilson Rodrigues, analisa que realmente os
dados podem estar abaixo da
quantidade de pessoas que professam tanto o candomblé quanto a
umbanda. Para ele, um fator importante é a forte influência do catolicismo como religião de referência. Na Bahia, 74% da população disse ser católica.
“Muitas pessoas identificam o
catolicismo como sua religião de
referência ainda que tenham a
prática das religiões afro-brasileiras. No caso delas, percebe-se um
importante sub-registro”, avalia
Rodrigues. A pergunta sobre religião no censo é aberta. Não são da-
Religião afro cresceu em Conquista
JOSÉ SILVA
No mapa religioso de Vitória da
Conquista, a 509 km de Salvador,
o número de templos afro
supera o de outras religiões.
Juntos, os terreiros jeje-mahi,
ketu, ketu-angola, angola e de
umbanda somam 87, contra 66
templos batistas, 55 evangélicos
e 41 católicos.
O estudo, que faz parte da
tese de doutorado do professor
Itamar Pereira de Aguiar, a ser
defendida na PUC (SP) no ano
que vem, mostra um
crescimento de 22,25% da
preferência pela religião afro, de
junho de 1997 a junho deste ano.
Aguiar catalogou, no geral,
391 templos em todo o
município e verificou um
acréscimo de 12 religiões de
matrizes africanas, nove a mais
do que o número de igrejas
católicas; igual número de
evangélicas e um a menos do
que o de igrejas batistas.
O pesquisador conta que vem
observando este fenômeno
desde 1983, mas somente em
1997 é que começou uma
pesquisa mais abrangente.
São dados que vão
modificando a histórica de
preconceito contra a
religiosidade de origem africana,
que é antigo. Em 1842, por
exemplo, por meio do Código de
Posturas do Município, impôs-se
a proibição da prática da
religião. “Esse código perdurou
até 1954”, precisa Aguiar.
MÃE VITÓRIA – Os tempos
mudaram e o respeito às
religiões melhorou a ponto de
fazer de Vitória da Conquista um
importante centro de resistência
das religiões afro.
Itamar Pereira de Aguiar estuda mapa religioso de Vitória da Conquista
Atualmente, no terceiro maior
município do Estado, com cerca
de 300 mil habitantes, o combate
ao racismo e discriminação
religiosa é feito por meio de
atividades culturais.
A semente do resgate da
cultura afro, plantada há mais de
um século pela celébre Victoria
Alves dos Santos Dias, Mãe
Vitória de Petu, até hoje produz
frutos graças ao apoio da
Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (Uesb),
movimentos negros unificados e
governo municipal.
Todo o trabalho de pesquisa
sobre mãe Vitória de Petu foi
feito pelo Movimento Griot,
organização não-governamental
e sem fins lucrativos que resgata
a memória da comunidade negra
de Vitória da Conquista por meio
de atividades e eventos culturais.
“A Uesb também tem esse
compromisso de resgatar as
histórias esquecidas para uma
releitura. Temos que reler os
trabalhos dela de uma forma
sem preconceito”, destacou a
professora e historiadora
Heleusa Câmara.
EXEMPLO – Para ela, a ação de
Mãe Vitória de Petu foi notável,
não só pelo trabalho social de
acolhimento de crianças, mas
também como o de uma alta
sacerdotisa de um terreiro no
bairro das Pedrinhas. Lá, as
pessoas iam buscar alento para
suas dores e problemas. “A
história dela é uma história que
dignifica a nossa cidade”,
acrescenta a historiadora.
Mas, mesmo com esses
avanços, o preconceito continua
a se manifestar. Ele se apresenta
na vizinhança de terreiros de
candomblé, umbanda e
quimbanda.
“Ainda existe preconceito e
muita gente acha que nossa
religião é coisa ruim. Mas nós
somos iguais, temos propósitos
espirituais e sociais como os que
existem em qualquer outra
profissão religiosa”, defende o
babalorixá Oiá Bilê Jorge.
(Juscelino Souza)
das opções, diferente do que acontece em relação à cor.
“É preciso ter o entendimento
que o racismo acontece de forma
transversal na vida das pessoas.
Não assumir a sua opção religiosa,
infelizmente, ainda é um mecanismo de defesa. Não podemos falar
em liberdade religiosa sem discutir
o racismo. Existe uma cultura de
demonizar as tradições afro, e isso
faz parte do projeto de negação da
contribuição negra na construção
do País”, destaca a vereadora em
Salvador Olívia Santana, filiada ao
PCdo B-BA, coordenadora nacional da União dos Negros pela Igualdade (Unegro).
Marcos Rezende, coordenador
do Coletivo de Entidades Negras
(CEN) e ogã do terreiro Oxumarê,
também aponta o preconceito como base para o registro de resultados como esses apontados pelo
censo. “É a representação do ponto
de vista de uma geração que foi perseguida. Tem também a questão da
associação religiosa com o catolicismo, que foi muito forte. Então,
quando alguém de santo responde
na pesquisa que é católico, de certa
forma está apresentando um lado
da sua religiosidade”, completa
Marcos Rezende. Em sua avaliação, futuramente, essa afirmação
vai se ampliar. “Os mais jovens estão desfrutando de mais liberdade
religiosa, fruto das lutas do movimento negro e isso vai se traduzir
em afirmação”.
Para o coordenador da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), Gilberto Leal, a subnotificação do candomblé e da
umbanda apontam para a necessidade uma melhor metodologia em
estudos como o censo. “A realidade
da presença das religiões de matrizes africanas e sua cosmovisão na
sociedade brasileira vão muito
além do que expõe o IBGE. Daí a
necessidade de se buscar mecanismos para mostrar a real dimensão
que elas possuem”, diz.
Preconceito estimula negação
de crença em Itabuna e Ilhéus
Itabuna tem 202.523 habitantes,
mas apenas 311 pessoas
assumem que professam a
umbanda ou o candomblé como
religião. Em Ilhéus, dos 221.249
habitantes, somente 337 se
confessam seguidores das duas
religiões de matrizes africanas.
Para o babalorixá de Itabuna
Ruy do Carmo Póvoas, esses
números não são surpreendentes
por refletirem a imagem negativa
construída contra essas crenças
desde os tempos da escravatura.
Para ele, os dados do IBGE
não refletem a prática real das
religiões de origem africana.
Aponta que, só em seu terreiro, o
Ilê Axé Ijexá Orixá Olufon, há
mais de 300 integrantes e
ninguém se esconde atrás de
disfarces.
Em 2000, num levantamento
que fez por conta própria, o
babalorixá diz que relacionou 85
terreiros em Itabuna. “Isso indica
que 10% da população do
município é de praticantes do
candomblé ou umbanda e pelo
menos o dobro disso é
simpatizante, mas ninguém
assume, porque a sociedade
itabunense é elitista e muito
mais preconceituosa do que a de
Salvador”, considera.
Embora muito respeitado
como homem-de-santo, o
babalorixá diz que preferem
reconhecê-lo como escritor e
professor fundador da
Universidade Estadual de Santa
Cruz do que como babalorixá.
Ele diz que isso não o abala,
porque sentiu o preconceito
dentro de sua própria casa.
Conta que o pai, branco, coronel
do cacau, amava uma mulher
negra, com quem viveu a vida
inteira, teve dois filhos muito
bem criados, mas nunca se
casou nem assumiu uma vida
em sociedade com ela.
PRECONCEITO DUPLO – “Nós
sofremos preconceito pela
religião e pela cor”, diz Ilza
Rodrigues, mameto de inquice
do terreiro Matamba Tombency
Neto, funcionando há quatro
gerações, no alto da Conquista,
em Ilhéus.
Ela conta que há uma clínica
na cidade na qual ninguém se
veste de branco na sexta-feira,
para não ser confundido com o
povo-de-santo. Mãe Ilza relata
que foi batizada no catolicismo,
mas faz questão de ser chamada
de Mameto Mucalê, seu nome
no candomblé.
A nora de Mãe Ilza Rodrigues,
Adelita Santos Rodrigues, que
trabalha em um laboratório de
análises clínicas, diz que já
sofreu críticas quando falou
sobre sua religião. “As pessoas
ainda pensam que a gente de
candomblé adora o satanás”, diz.
Mãe Carmosina Mota de
Souza Santos, há 50 anos no
terreiro Sultão das Matas Fé,
Esperança e Caridade, em Ilhéus,
diz que, embora seu terreiro,
localizado no bairro do Malhado,
seja conhecido, nem todos
assumem freqüentar o local.
“Não é todo mundo que gosta de
dizer que veio até o meu terreiro.
Mas a religião é uma só. Todas
elas estão procurando chegar até
Deus”, diz a sacerdotisa. (Ana
Cristina Oliveira)
IANSÃ
Dia: quarta-feira
Cor: vermelho
Oferendas: acaçá, água,
acarajé
4
|
ESPECIAL
| DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
❚
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
XANDO P.
quer dizer...
Ibá | Vasilha ritual,
símbolo de poder ❚
Alabê | sacerdote músico
no candomblé de nação
ketu ❚
Rum | O maior dos três
atabaques tocados nos
rituais ❚
Mãe pequena | Título
aportuguesado da
sacerdotisa que ocupa a
segunda posição na alta
hierarquia dos terreiros ❚
Ekede |sacerdotisa do
candomblé com funções
de serviço ritual, mas sem
transe ❚
CACHOEIRA ❚ O preconceito existe e é notado até em
localidades onde os terreiros de candomblé mais proliferaram
Uma só cidade
e várias nações
da “mãe África”
MARY WEINSTEIN
[email protected]
O candomblé está em cima e em
baixo dos morros, e nas zonas urbana e rural de Cachoeira, cidade
histórica localizada no Recôncavo
baiano, a 114 quilômetros de Salvador. Em suas construções simples, ele se constitui de forma singela e forte, em ramificações das
diversas casas de várias nações
africanas instaladas na Bahia há
tantos anos. Os habitantes da cidade integram esses terreiros. Mesmo assim, não há quem diga que
não existe preconceito.
Em um dia chuvoso, A TARDE
subiu e desceu caminhos de pedra
e barro e bateu na porta de quatro
barracões e se envolveu com o modo tranqüilo e íntimo que, de um
modo geral, o povo-de-santo recebe e conversa. Mãe Preta – Juciara
Silva da Paixão, 42 anos – estava na
porta de casa e foi sentar na cadeira
de plástico, perto da mesa do Ilê
Kayó Alaketu Axé Oxum. Em tudo
que dizia, falava de Galdina Silva,
sua mãe de sangue, que teve 22 filhos biológicos e mais de 2.800 de
santo e era filha de Nezinho do Portão, um influente babalorixá da região, que era filho de Mãe Menininha do Gantois.
O candomblé de Galdina Silva,
que hoje tem Mãe Preta à frente,
tem 40 anos de casa aberta. Fica no
Alto do Rosarinho, “bairro dos afri-
canos”, e bem perto do cemitério
restaurado pelo Ministério da Cultura. Antes, era de palhoça. É, também, conhecido como terreiro de
Dona Baratinha, apelido de Galdina que, quando era criança, adorava o carro que tinha esse apelido. E
carregou o nome.
“Ela morreu aos 84 anos (em
2004). Minha iniciação foi aos 6 ou
7 anos e ela trouxe o meu
pai-de-santo, Dudu de Xangô (Lázaro Cardoso), de Salvador, porque
se eu fosse feita lá não ia poder tirar
o meu ibá. Nós temos todo o tempo
do mundo. Aqui, a gente bate de
ano em ano. Nossa última festa começou em 25 de agosto e terminou
em 30 de setembro”, falou devagar
Mãe Preta.
“Preconceito? Mas, é claro. Até
hoje ainda tem um pouco, sim. Hoje eu estava aqui conversando com
os testemunhas de Jeová. Eles perguntaram se podiam deixar uns folhetinhos e eu, também, perguntei
se podia falar dos nossos orixás”,
disse Mãe Preta. Ela conta que foi
auxiliar de limpeza em um hospital
na cidade de São Paulo e que,
quando chegou, ficou sem poder
dizer de onde era. Foi a instrução
que a irmã, que havia arrumado o
emprego, lhe passou. Um dia, não
teve jeito. Largou um “brinque comigo que eu sou de Cachoeira” para um colega.
“O mesmo que Mônica (Millet,
do Gantois) toca eu toco”, diz Mãe
Preta que é alabê de rum, o maior
dos três atabaques usados nos terreiros. Aqui, em dia de festa, só fica
esse espaço pequeno para se movimentar. Aqui não falta gente, a
briga é pra ver quem é que vai tocar”, gaba-se Mãe Preta.
RESPEITO – No caminho para o
Terreiro do Caboclo Guarani do
Oxóssi, um rapaz em roupas coloridas, em uma bicicleta e com
guarda-chuva na mão, diz que as
pessoas olham diferente para os
filhos do candomblé. “A partir do
momento que eu respeito, quero
que me respeite, também”, disse
Edvaldo Santos, 36 anos, pedreiro,
freqüentador do terreiro de Efigênia, já falecida.
Marcia Maria Lopes, 38 anos,
mãe pequena do Guarani, é quem
recebe, no barracão com piso de
cerâmica, em uma parte, e de barro, em outra.
“O caboclo não aceita, tem que
ser de barro”, explica, no meio do
espaço todo decorado com estatuetas, desenhos de orixás, caboclos e iemanjás. Ela diz que Mãe
Madalena, ialorixá do terreiro, revidou com um banho de abô ao
“ungido de sal em cima do assentamento de ogum”, que veio da
parte de uma igreja que fica do outro lado, aos fundos do terreiro.
Depois, houve um apaziguamento e a convivência entre eles agora
é pacífica.
Orgulho, apesar do preconceito
OXUM
Dia: sábado
Cor: amarelo ouro
Oferendas: acaçá, água,
feijão fradinho
A ekede Elisângela Vale dos
Santos, 26 anos, filha de Mãe
Madalena (Maria Helena Araújo
Vale, ialorixá do Guarani), diz
que o preconceito nasceu no
próprio candomblé, “quando
muita gente que tem vergonha,
não assume, não veste branco às
sextas-feiras”.
Em dia de festa, o terreiro que
tem dez anos de aberto fica
cheio, com gente olhando pela
janela. Isso é orgulho para a Mãe
Pequena, do terreiro de Angola e
Ketu: “Nossa religião é linda!”
“Por parte de algumas
pessoas tem, sim. Até aquele
preconceito que não seja
declarado, de pessoa que não
tenha um certo esclarecimento”,
declara Eliana Gonzaga, 34 anos,
assistente administrativa,
freqüentadora da igreja
Assembléia de Deus, quando ia
atravessar a secular Ponte Dom
Pedro II, e esperava o trem
passar.
Mais acima, lá nos Três
Riachos, ficam outros terreiros.
O Ilê Axé Itá Ilê, de Mãe Filhinha,
integrante da Irmandade de
Nossa Senhora da Boa Morte,
por exemplo. Mãe Filhinha Narcisa Cândida da Conceição,
103 anos – estava sentada em
uma cadeira jogando conversa
fora. Os meninos que mostraram
o caminho se estribaram nas
janelas altas e pela porta estreita,
para olhar para dentro da sala da
casa que fica ao lado do
barracão que tem uma figura
enorme de Iemanjá, orixá de
Mãe Filhinha.
Mesmo chateada com a gripe,
Mãe Filhinha falou sobre
preconceito. “Tenho 60 anos (de
iniciada) e lascou”, disse ela.
Informou sobre a festa de
domingo, que “todo mundo
gostou, porque comeu e
dançou”, apesar da chuva. A
comemoração era pelo
aniversário, em 25 de outubro.
Dos seus sete filhos de sangue,
só um está vivo.
“Hoje em dia não tem mais
candomblé. Tem bagunça. Hoje
ninguém mais sabe o que é ketu,
umbanda, ijexá. Quem sabe o
que eu sou sou eu mesma.
Quando eu morrer, fica minha
fama. Tudo que eu tinha para
fazer eu já fiz. Até festa eu estou
deixando de fazer. Porque não se
tem um bom resultado”, disse
Mãe Filhinha, com força e com
jeito de quem ainda vai fazer
muitas coisas.
Mãe Filhinha, de 103 anos: “Quando eu morrer, fica a minha fama”
❛
“Hoje ninguém mais sabe o
que é ketu, umbanda, ijexá.
Quem sabe o que eu sou sou
eu mesma”
Mãe Filhinha , do Ilê Axé Itá Ilê ❚
IGNORÂNCIA – Romildo dos
Santos, 34 anos, em cima da
carroça, esperando o trem
desimpedir a ponte para poder
passar, diz que quem pensa que
o Deus do outro é o satanás está
errado, porque, segundo ele, é o
mesmo Deus. “Sofro preconceito
racial, social e profissional”, diz
ele, a caminho de São Félix.
A roça de Dona Filhinha
(Isabel Brígida Conceição, 80
anos – não confundir com Mãe
Filhinha) fica no alto, depois do
Quebra-Bunda (é assim que a
cidade inteira de Cachoeira
chama o lugar), a caminho de
Terra Vermelha. A estrada é ruim
mesmo. Se despencar dali, já era.
Dona Filhinha anda adoentada,
mas nada que lhe tire o bom
humor e o sorriso do rosto.
Dona Filhinha completa 81
anos, hoje, Dia da Consciência
Negra. O rosto dela é aberto, de
bondade. Ela não faz parte da
Irmandade da Boa Morte. Seu
barracão é todo pintado com a
simbologia da sabedoria. A
fachada é azul e branca e tem
escrito o nome do Terreiro
Lobanekum, fundado em 1914,
em taipa. Na fachada atual tem
a data de quando foi reformado
e passou a ser de telha, em 1954.
Para cuidar dela, a filha veio
de Salvador. E foi Dona Lúcia,
que tem o próprio terreiro, o Ilê
Axé Alaketu Oxum Apará, nos
Três Riachos. “Aqui faz festa no
mês de dezembro e em junho.
Mas, este ano, Dona Filhinha vai
se cuidar em vez de fazer festa.
Dona Lúcia diz que o
preconceito é por causa da
ignorância das pessoas. “Tem
gente que confunde a religião.
Tem cristão que tem esse
problema”, diz ela, lembrando
que as coisas desagradáveis
ficaram no passado.
Sobre agora, Dona Lúcia
explica que em volta do
barracão do Lobanekum tem
todas as folhas sagradas
necessárias para se fazer todas
as obrigações. Lobanekum foi
do avô de Dona Lúcia. E o
vínculo com esse terreiro
permanece até os dias atuais.
Ela é mãe pequena também do
terreiro de Mãe Filhinha, nos
Três Riachos, vizinha do terreiro
dela. (M.W.)
Mãe Preta: “Brinque comigo, que eu sou de Cachoeira”
Em Feira, religiões de matriz
afro buscam reconhecimento
“Se vou a algum lugar que não
sou conhecido, não falo que sou
do candomblé, pois tenho receio
da reação das pessoas”. A
afirmação é do babalorixá
Nelson Lima da Costa sobre a
sua religião. Ele tem um terreiro
de candomblé em um bairro
periférico de Feira de Santana,
distante 108 quilômetros de
Salvador. Sem ser cadastrado na
Federação Nacional de Culto
Afro-Brasileiro (Fenacab), pai
Nel, como é mais conhecido, diz
que já presenciou vários colegas
serem mortos por causa da
religião. “Tive um amigo que foi
seqüestrado e assassinado de
forma cruel por ter feito um
trabalho que não teve o
resultado esperado pelo cliente.
Fora outros colegas que estão
desaparecidos até hoje sem que
tenhamos notícias”, contou.
Para ele, o fato de não
assumir em todos os locais a sua
religião está relacionado
diretamente com o preconceito
existente contra os adeptos do
candomblé e da umbanda. “Não
sei o que dá na cabeça de
algumas pessoas que, quando
sabem que sou do candomblé, se
irritam e começam a me xingar
de satânico, filho do diabo, entre
outras palavras que nem tenho
coragem de falar”, relata o
babalorixá.
A coordenadora da Fenacab, a
ialorixá Tânia Silva Suzarte,
conta que a associação vem
realizando um trabalho de
conscientização para que os
religiosos assumam e aceitem a
religião, que ela destaca como
sendo pura e linda.
Diferente de outras cidades,
em Feira de Santana, segundo a
coordenadora, os adeptos dos
candomblés e umbanda são
convidados a participar de vários
eventos, principalmente os que
são ligados à cultura. “Nós nos
assumimos e impomos respeito
como religião”, acrescenta.
Na opinião dela, em
determinadas regiões, o
preconceito diminuiu, e cita
como exemplo o trabalho que
vem sendo desenvolvido com o
Conselho Municipal da Mulher e
programa DST/Aids da
Secretaria Municipal de Saúde.
“Na realidade, o maior
preconceito vem mesmo do
próprio adepto, pois, com receio
de ser discriminado, não assume
a real religião, o que aumenta o
preconceito. Não ligo para
aquelas pessoas que me xingam
de satanás, coisa do mal, pois
são pessoas que não têm
conhecimento do que é a
religião”, diz.
Tânia Suzarte alerta que
existem pessoas que estão
comercializando o candomblé.
“São aqueles que fazem do
candomblé uma forma de
ganhar dinheiro e aí acabam por
prejudicar a verdadeira essência
da crença”, completa.
Ela explica que dentro do
culto afro existem rituais
religiosos, como casamento,
batismo e feitura. “Quero deixar
claro que não mato e não
acredito que ninguém mate
através de trabalho, pois não
temos este poder. O que
acontece é que muitos falsos
adeptos da religião usam
este artifício para colocar
medo nas pessoas e até
aumentar a sua fama”. (Alean
Rodrigues).
REGINALDO PEREIRA
Tânia Silva Suzarte: esforço para que os seguidores assumam a fé
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
❚
DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA |
ESPECIAL
5
|
FOTOS XANDO P.
DIVERSIDADE ❚ Diferentes tradições
quer dizer...
deram origem a um culto rico e original
Obaluaê | Orixá que tem
o domínio sobre a cura de
doenças, principalmente
as de pele ❚
Jarê, religião
dos mestres
da Chapada
Diamantina
REGINA BOCHICCHIO
[email protected]
Chapada Diamantina, lugar onde
muita gente ficou rica do século
XVIII ao XX, com o garimpo e extração de diamantes. Formada por
um grande amálgama de brasileiros vindos de diversas regiões, o
povoamento do local abarcou
também estrangeiros e, sobretudo, africanos, levados como escravos. É dessa interação social, moldada ao longo dos séculos, que
surge uma modalidade da religiosidade afrodescendente, o jarê –
um candomblé de caboclo único.
Pouca gente escreveu sobre a
história ou ritos do jarê. Nem os
próprios mestres, ou curadores –
que têm o dom da cura para os males espirituais – sabem exatamente
como tudo começou. O fato é que,
hoje, o jarê, segundo os próprios
habitantes locais, é o único tipo de
candomblé encontrado em cidades da região como Lençóis e Andaraí. A TARDE esteve nesses municípios em busca do jarê e teve
contato com alguns mestres.
Novembro é o mês dos mortos;
não há rituais. O jarê existe principalmente em Andaraí, mas sobrevive com dificuldade. A falta de dinheiro e até a ausência de pessoas
que assumam um jarê quando
morre um mestre fez com que, aos
poucos, o número de casas de "bater jarê" fosse diminuindo.
O livro Jarê - uma face do candomblé, resultado de pesquisa desenvolvida na década de 1980, é o
único grande escrito que trata do
assunto – existem apenas artigos –,
de autoria do antropólogo Ronaldo de Salles Senna, nativo de Lençóis e professor da Universidade
Estadual de Feira de Santana
(Uefs). Segundo dados desse livro,
na época da pesquisa, cerca de 12
municípios da Chapada possuíam
terreiros de jarê, calculados em
cerca de duas a três centenas. Passados mais de 20 anos, um levantamento realizado pelo professor
Emílio Ribeiro, pesquisador do jarê e morador de Andaraí, revela
que, atualmente, existem cerca de
12 jarês naquela cidade. Em Lençóis, são cerca de cinco casas.
Com a idéia de integrar os grupos que batem nessa linha é que a
ONG presidida pelo professor
Emílio, a Viver Cultura e Meio Ambiente, em parceria com a Casa de
Cultura Coronel Pitá, está organizando o I Encontro de Jarê da Chapada Diamantina. O evento acontece no mês de dezembro deste
ano, em Andaraí, e deverá contar
com mestres, adeptos e estudiosos
do assunto.
“O jarê não está morrendo, ele
existe. Mas houve épocas em que
ele esteve mais pujante”, acredita
Emílio Ribeiro. A idéia é que, com o
encontro, os mestres possam interagir e falar sobre a história do jarê.
Muitos mestres entrevistados por
A TARDE afirmam que antes esse
candomblé era mais forte. O motivo, para eles, é a falta de dinheiro,
pois “é preciso recurso para bater
jarê”, como diz Mãe Áurea, do Terreiro Palácio de Ogum, da cidade
de Lençóis.
Por esse motivo, os rituais, que
deveriam acontecer em intervalos
regulares de 15 dias, acabam acontecendo vez por outra, nas datas
mais importantes (Iansã, Cosme e
Damião...). O fato, no entanto, é
que o jarê é algo único no mundo
do candomblé. Segundo o professor Ronaldo Salles, essa originalidade está diretamente ligada à história econômica e de ocupação da
região; ou seja, o garimpo. Vêm daí
muitos dos mitos e guias dessa face
da religião.
Até os orixás, no Jarê, são “caboclarizados”, diz Salles. Em seu livro,
ele explica que “os que vieram do
Recôncavo baiano traziam o candomblé de orixás (jejê, keto, nagô,
banto, angola), já com os caboclos
incorporados à sua cosmogonia e
ao seu ritual. Os que chegaram de
Minas Gerais, além dos orixás, traziam elementos formativos da futura umbanda. Já os que vieram do
São Francisco chegaram com atitudes, pensamentos e valores do
catolicismo rural”.
Mais adiante, lê-se, sobre a origem: “Foram, porém, os negros
vindos do Recôncavo, que se intitulavam nagôs, aqueles que maior
influência exerceram na formação
do jarê, embora tudo indique não
ser o jarê uma religião de origem
nagô (...); sugerimos mais uma base angolana, à qual se superpôs a
influência religiosa dos nagôs”.
Nagô | denominação
usada para designar os
povos iorubás ❚
Encosto | Entidade
espiritual que atrapalha o
bem estar de alguém por
agir por força de energia
negativa ❚
O curador Wilson, no seu terreiro, às margens do Rio Paraguaçu, aponta a serra onde viu São Roque
Dona Carmosina acha dura a vida de mestre, mas agradece a Deus poder ajudar pessoas “com encosto“
Palácio de Ogum é uma referência
O Terreiro Palácio de Ogum tem
mais de 50 anos, fica em Lençóis,
num local chamado Capivaras, e
é uma das principais referências
do jarê: foi fundado por um
mestre identificado por todos
como Pedro de Laura, falecido
há oito anos. Ele iniciou boa
parte de quem hoje é mestre. O
terreiro está em processo de
tombamento pelo Instituto do
Patrimônio Artístico e Cultural
(Ipac). Maria Áurea de Jesus
Quaresma, 50 anos, era ogã do
mestre. Era a que mais sabia. Daí
porque, hoje, ela é a principal
líder espiritual do local.
A TARDE tentou mas não
conseguiu visitar o Terreiro
Palácio de Ogum. O acesso é
feito somente com permissão;
ritual ali, agora, só dia 4 de
dezembro (Santa Bárbara). O
terreiro ficou abandonado por
um tempo, pois não havia quem
o comandasse. Mas os guias
pediram para reabri-lo e Maria
Áurea tomou a frente espiritual.
O filho adotivo do mestre,
Sandoval Amorim, 30 anos, cuida
da administração através da
Associação Palácio de Ogum.
A idéia de fundar uma
associação veio da necessidade:
para conseguir verbas junto a
poderes públicos para se manter
é preciso de organização.
COSMINHO – A TARDE tentou
contato com outros mestres de
jarê em Lençóis, mas encontrou
somente dona Maria de Lourdes,
que ainda está sendo preparada.
Mesmo assim, comanda rituais
de jarê num cômodo de sua
casa, batizado de Centro Cosme
e Damião, numa rua escondida
no bairro Alto da Estrela: "O jarê
talvez esteja morrendo porque
muitas vezes a pessoa não tem a
condição de fazer". Maria de
Lourdes tem devoção direta com
Cosminho. Bateu tambor pela
última vez ali dias 4 e 5 de
novembro, porque faz um
calendário próprio. Mas
pretende bater novamente no
dia de Iansã.
Seu mestre, Raimundo Bruno
dos Santos, 56 anos, é curador de
um terreiro em Ubiraitá. Para
ele, o jarê pode até estar
diminuindo ("antes tinha muito
mais casas"), mas, pela força da
religião, "sempre vai ter alguém
batendo couro". Ele explica o
que, para ele, é a religião: "Jarê é
só o nome. Tudo é candomblé,
mas é candomblé de caboclo.
Jarê é nagô. Diferente da sessão
espírita mesa branca, onde não
pode bater couro".
Histórias de vocação e entrega
Cosme e Damião são reverenciados em todas as casas de “bater jarê“
Dona Lourdes faz rituais em um dos cômodos de sua casa, em Lençóis
O crucifixo de pai Wilson ”levanta sozinho“ da mão durante o ritual
Doze quilômetros de uma
estrada de terra levam a um local
chamado Praião, que é, na
verdade, o Rio Paraguassu. É
preciso atravessar o rio a pé e
caminhar 20 minutos numa
trilha para chegar ao Terreiro de
Obaluaiê, de Wilson Rodrigues
Oliveira, o pai Wilson, 63 anos,
há 18 anos com seu jarê. Ele
mora com a mulher e uma filha.
"O meu Obaluaiê é São
Roque. Era ele que eu via ali na
montanha", conta ele. "Eu via,
daqui, a uns sete quilômetros,
um homem descendo a serra de
bata cinza-chumbo. Todo dia. E
eu pensava: meu Deus, o que é
aquilo?”. O tempo passou até o
dia em que encontrou o mestre
Pedro de Laura, que terminou
sua iniciação.
FESTA – Pai Wilson hoje não só
é um dos curadores mais
procurados das redondezas
como seus jarês são dos mais
animados. O difícil acesso do
terreiro não impede que os
habitantes de Andaraí
participem da festa. Lá não tem
luz elétrica e os rituais começam
à noite. No jarê, as festas são
abertas a todos. Wilson, quando
manifesta seus caboclos, faz
coisas inusitadas, como andar
sobre brasas e mover um
crucifixo de madeira.
Enquanto rola o jarê, as
incorporações e rituais, os
visitantes bebem cachaça, vinho
ou dançam “o samba”, como
chamam a batida dos atabaques.
Quem conta é José Ailton Alves
❛
“Tem muitos que
queriam ter e não
têm. Tem muitos
que têm e não
queriam ter. Não
tem escolha. É o
guia que escolhe”
Wilson Rodrigues, mestre do
Terreiro de Obaluaiê, na cidade
de Andaraí, referindo-se à
missão de receber caboclos ❚
Santana, 27 anos, que já foi a
três jarês no Terreiro de Pai
Wilson. José não tem ligação
com o jarê, mas gosta da festa.
Ele viu, "com os próprios olhos":
"Ele cantava um bocado de
música e a cruz vinha
levantando devagarinho, ficou
empezinha na mão dele", conta.
Pai Wilson, na sua simplicidade,
apenas diz: "É o poder dos
caboclos". Agora ele só vai bater
jarê em dezembro: "Devia bater
de oito em oito dias, mas a gente
é fraco (de dinheiro) e não dá".
Por enquanto, o mestre não sabe
quem, no futuro, assumirá seu
terreiro. Os filhos de sangue não
deram para o jarê. "É, esse é um
problema que a gente tem", diz.
JOANA D’ARC– Na Rua da Casa
Branca, nº 49, vive dona
Carmosina de Jesus Reis, 40
anos, com marido, filhas e netos.
Carmosina entrou no jarê aos 16
anos, quando fugiu de casa
porque sentiu uma “necessidade
que não sabia explicar”. Tudo
começou quando ela começou a
ver uma mulher "muito bonita"
– que, segundo conta, era Joana
D’Arc. A história é longa, mas o
fato é que, depois de passar por
muitas pessoas, acabou no
mestre Pedro de Laura, que
também a “curou”.
Há 27 anos, dona Carmosina
mantém seu jarê em Andaraí.
Para ela, é uma obrigação que
não escolheu ter. Mas vê beleza
em sua missão: "É um orgulho
que eu tenho quando chega um
doente que eu recebo aqui nos
meus pés e as pessoas saem
boas", diz ela. Carmosina conta
que trabalha com Ogum de Lei e
Iansã. E explica: "Eles também
são caboclos". No seu peji – altar
onde se colocam imagens – há
reproduções de caboclos, orixás
e santos católicos, como Cosme
e Damião – em todos os terreiros
se cultua Cosminho e São Jorge.
Dona Carmô diz que sua
intuição aponta para o filho
caçula, que deverá seguir seus
passos: "Eu sinto isso nele, ele é
chegado, gosta".
EWÁ
Dia: sábado
Cores: vermelho e amarelo
Oferendas: acaçá, água,
feijão fradinho torrado com
coco.
6
|
ESPECIAL
| DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
❚
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
XANDO P.
quer dizer...
fala povo
Ialorixá | Grau máximo do
sacerdócio no culto afro de
nação ketu quando a
ocupante do cargo é uma
mulher ❚
Você assume
que é de
candomblé?
Ogã | sacerdote do
candomblé com funções de
serviço ritual sem transe ❚
12 pessoas ouvidas no dia 10
entre as 13h50 e 15h15, no fim
de linha do Garcia e no Alto da
Federação, e no dia 14 entre 15h
e 15h30 na travessa do Curuzu,
Liberdade ❚
WALTER DE CARVALHO
Sou ogã. Temos que assumir
nossa religião. É difícil
quando as pessoas não
compreendem. Acho que o
candomblé é a religião que
mais pratica caridade. Mas
há quem receie usar guias
com medo de discriminação.
Mãe Jaciara, em ritual com filhos-de-santo: “Todo dia vivo momento de intolerância. No carro, no elevador. Já estou me cansando”
Lázaro Boa Morte, 31, técnico
contábil ❚
EXEMPLOS ❚ Ser vítima de preconceito não abate quem tem fé e a exercita no
FOTOS MARGARIDA NEIDE
dia-a-dia. Mãe-de-santo e sargento da PM contam como enfrentam o problema
Sábios em dizer
não à intolerância
CRISTINA DE MORAES
[email protected]
Conviver com a intolerância religiosa é parte do cotidiano de Jaciara Ribeiro dos Santos, 39, a ialorixá
do Te rreiro Axé Abassá de Ogum,
no Abaeté. Toda vez que sai em seu
buggy, vestida com trajes de sacerdotisa, ela ouve desaforos. “Todo
dia vivo momento de intolerância.
No carro, no elevador. Tenho que
explicar que é meu direito, está na
Constituição, já estou me cansando”, explica.
Mãe Jaciara lembra que o preconceito atinge a educação, o trabalho e a saúde. “Se um enfermeiro
evangélico tem que me atender no
SUS, ele não atende. Professores
evangélicos não tratam as crianças
do candomblé com a mesma atenção. As pessoas se escondem com
medo de perder trabalho, de serem
agredidas”, conta. Ela mesma teve
que ocultar sua religiosidade durante o tempo em que trabalhou
com menores infratores em Curitiba. “Quando falei na rádio que
era do candomblé, perdi todos os
que se diziam amigos”, lembra.
Desde 2000, Jaciara enfrenta
uma guerra contra a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), por danos morais e uso indevido de imagem de sua mãe, a Mãe Gilda, morta no dia 21 de janeiro, um dia após
assinar a procuração para o processo que já tramita no Superior
Tribunal de Justiça em Brasília. Em
homenagem a Mãe Gilda, o dia 21
de janeiro foi decretado Dia Municipal de Combate à Intolerância
Religiosa em Salvador.
Em primeiro julgamento, o Judiciário estadual condenou a Iurd
a indenizar a família de mãe Gilda
em R$ 1,3 milhão e ainda determinou que o Ministério Público
abrisse inquérito criminal contra a
instituição por ter publicado a foto
de Mãe Gilda com uma tarja no
rosto sob o título Macumbeiros
charlatões lesam o bolso e a vida
dos clientes. “Não preciso do dinheiro. Quero a segurança de exercer minha religiosidade. O combate à intolerância não é uma ban-
deira deste terreiro, mas de todo o
povo-de-santo”, lembra.
O procurador Almiro Soares, da
Promotoria da Cidadania e Combate ao Racismo do Ministério Público da Bahia, conta que as pessoas que seguem as religiões de
matriz africana vão ao MP queixar-se de discriminação, principalmente por comunidades evangélicas. “Já recebemos denúncias
de ofensas proferidas por evangélicos dentro de ônibus, apenas
porque o rapaz portava adereços
do candomblé”, conta.
RESPEITO ÀS RAÍZES – Soares
explica que as denúncias de intolerância religiosa têm diminuído,
“não há uma pesquisa que identifique se os casos realmente diminuíram, ou se as notícias não são
trazidas até nós”, explica. “Percebemos que as lideranças religiosas, africanas e evangélicas, têm tido maior preocupação em respeitar as outras. Mas é verdade que
ainda existem casos pontuais.”
O trabalho da Pastoral Afro da
Igreja Católica visa resgatar a cultura negra preservada pelos rituais
das religiões de matriz africana. “A
cultura negra é um dom de Deus.
Apresentar o evangelho sob a ótica
da cultura negra é uma forma de
ensinar as crianças na diversidade,
aproximando a igreja católica da
nossa maneira de ver o mundo”,
explica o padre Fidéle Katsan, coordenador da Pastoral Afro. Natural do Togo, Padre Fidéle conta que
os elementos utilizados pelo candomblé na África são elementos
culturais, e não apenas religiosos.
“Atabaque, acarajé, pipoca, são patrimônio comum do negro. Introduzimos esses elementos na missa
para integrar a comunidade negra
na igreja e na sociedade”.
Na igreja anglicana, o respeito
entre as diversas religiões é o discurso corrente. “Nossa igreja é
ecumênica e inclusiva. Penso que
o evangelho é um instrumento de
paz. O melhor é respeitar a religiosidade de cada um”, ensina o reverendo Josafá Batista, pároco da
Igreja Anglicana de Itaparica.
Sou filha-de-santo do
Gantois. Minha família toda
segue minha religião. Não
de maneira forçada, seguem
porque gostam. Já tenho
filhos e netos na faculdade.
Nunca tivemos problemas
por causa do candomblé.
Antônia Castro de Lisboa, 70,
yamorô do Gantois ❚
Freqüento de vez em
quando o candomblé. Não
escondo que freqüento. Mas
sou católica. Quando o
pessoal me chama, vou
assistir. Não vejo problema
em assumir que gosto de ir
aos ritos do candomblé.
Julinda Maria Araújo da Silva,
45, dona-de-casa ❚
Nafro exercita reparação histórica
EDSON RUIZ
LOGUM-EDÉ
Dia: quinta-feira
Cores: azul turquesa e
dourado
Oferendas: acaçá, água,
feijão fradinho e milho amarelo
com côco.
A criação do Nafro – Núcleo de
Religiões de Matriz Africana da
Polícia Militar da Bahia, em
junho de 2005, foi uma grande
conquista contra a intolerância
religiosa no Estado, porque
materializa uma reparação
histórica da ação opressora do
aparelho policial. Não vai longe
o tempo em que a polícia
realizava batidas em terreiros,
prendendo sacerdotes e
confiscando ou até destruindo os
objetos sagrados de culto. As
festas de candomblé
necessitavam de licença da
polícia para serem realizadas.
“O Nafro nasceu da
intolerância religiosa e tem a
missão de proteger as tradições
das religiões de matriz africana,
defendê-las contra a intolerância
e promover a difusão do
conhecimento de seus
fundamentos, além de garantir o
exercício da prática religiosa de
policiais militares e servidores da
corporação”, explica o sargento
Eurico Alcântara, fundador e
presidente do Nafro.
O sargento Eurico solicitou ao
comandante-geral da PM baiana
a criação de um núcleo de
religiões de matriz religiosa ao
perceber que elas não tinham
sido incluídas no I Seminário
Religioso da PM, ocorrido em
junho de 2005, por falta de
representação. O seminário
anunciava a participação de
representantes católicos,
evangélicos e espíritas. “Nossa
presença foi tão marcante que
Sargento Alcântara fundou o núcleo que garante a prática na PM
no final do seminário o assunto
mais comentado eram as
religiões de matriz africana”,
lembra Eurico.
Em pouco mais de um ano de
existência, o núcleo já agrega 274
integrantes. No seminário, além
do sargento Eurico, o Nafro
contava apenas com mais um
participante. “O núcleo é de
importância vital para a PM. Se a
integração não acontecer no seio
da corporação, como vamos
tratar a população”, questiona.
“Estamos trabalhando para que a
PM olhe para o povo-de-santo
como irmãos. Essa atitude vai
mudar a cara da polícia”, conta.
Através de palestras e eventos,
o Nafro leva informações sobre
as religiões de matriz africana
aos policiais e à comunidade
civil. “Estamos trabalhando essa
desinformação de que o
candomblé é uma religião
maléfica. Queremos esclarecer as
pessoas, fazer com que
conheçam melhor os
fundamentos”, explica Eurico.
O Nafro é pioneiro no País e
está servindo de exemplo para
outros Estados. A convite, o
Nafro já foi apresentado às PMs
de Minas Gerais, Rio de Janeiro e
São Paulo. “Em apenas um ano,
conseguimos fazer muito.
Precisamos levar isso para todo o
País”, orgulha-se. Após a criação
do Nafro, foi implantado um
comitê inter-religioso dentro da
PM, para discutir a intolerância
religiosa. “A tropa está mais
unida”, conta o sargento.
Sou católico, mas gosto
muito do candomblé.
Adoro os rituais, não
escondo de jeito nenhum.
Sou nascido e criado aqui
perto do Gantois. De tudo
que existe no candomblé, eu
gosto. Pra mim é o paraíso.
Antônio Mário das Mercês, 54,
mecânico ❚
Sou de Oxóssi. Assumo
minha religiosidade, vou até
mandar fazer um pingente.
Tem um bocado de gente
que é incubado por causa do
preconceito. Eu, graças a
Deus, não enfrento
preconceito.
José Fábio Gomes de Souza, 29,
entregador ❚
❚
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA |
ESPECIAL
LIBERDADE ❚ Há 30 anos, rituais afros só podiam acontecer com autorização da polícia. A determinação caiu
por força do decreto assinado pelo governador Roberto Santos, mas luta por respeito continua ainda hoje
Tata de inquice | Título dado
ao mais alto sacerdote de
um terreiro angola quando
o ocupante do cargo é do
sexo masculino ❚
XANDO P.
[email protected]
Para realizar um ritual religioso, a
primeira parada era uma delegacia. No caso em questão, a de Jogos
e Costumes. Esse era o caminho
constrangedor que tinha que ser
percorrido por sacerdotes e sacerdotisas das religiões de matrizes
africanas para poder realizar os
seus cultos. O decreto que pôs fim a
esse desrespeito a um direito fundamental, que é o de escolher a sua
forma de relação com o sagrado,
foi assinado há apenas 30 anos, pelo então governador da Bahia, Roberto Santos.
Embora a intolerância religiosa
seja ainda um obstáculo a ser combatido, a batalha pela liberdade de
culto somou pontos: a Constituição Brasileira de 1998 considera
como direito fundamental o respeito à livre escolha de crença; o
Ministério Público da Bahia se prepara para comemorar no próximo
ano uma década de criação da promotoria que combate o racismo e
protege a independência da escolha de religião. A Polícia Militar,
que em outros tempos invadia terreiros para acabar com os cultos,
tem há um ano o Nafro, criado exatamente para defender a opção religiosa dos seus integrantes.
“A luta contra a discriminação
religiosa passou principalmente
pela batalha para que os cultos de
matrizes africanas fossem considerados religiões e respeitados como tais, uma luta incorporada ao
combate ao racismo pelos movimentos negros”, destaca o procurador-geral do Ministério Público
baiano, Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto, que foi o titular da
Promotoria de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa até o
ano passado, quando assumiu a
chefia da instituição.
Um outro avanço foi a criação
do Conselho de Desenvolvimento
da Comunidade Negra (CDCN),
criado em 1987 e que reúne representantes do governo estadual e
também da sociedade civil, totalizando 20 organizações. O combate
à intolerância religiosa é uma das
ações do órgão.
LIÇÕES – “Hoje, as coisas estão
bem melhores, mas quem nos garante que mais adiante não vamos
enfrentar problemas semelhantes
aos do passado? Daí que temos
procurado promover cursos e outras ações, pois a nossa partilha de
conhecimento é uma garantia para as coisas darem certo adiante”,
acrescenta Ferreira.
Inaugurar um núcleo de proteção às religiões de matrizes africanas foi uma daquelas iniciativas
para ficar na história. A simbologia
da fundação do Nafro na Polícia
Militar é maior para quem viveu o
preconceito também dentro da
própria corporação. “Quantas vezes não ouvi dos meus próprios colegas gozações, tipo a pergunta se
eu tinha o pé no azeite. Hoje, depois do Nafro e da nossa afirmação
como religiosos de candomblé,
avançamos muito”, relata o tata
de inquice e sargento da PM
Eurico Alcântara, coordenador do
Nafro-PM.
Embora tenha assumido o comando do Ilê Axé Oxumarê já no
período após a repressão, o babalorixá Silvanilton Matta guarda a
memória das histórias contadas
pelos mais velhos da casa.
Sua avó, a ialorixá Simplícia da
Encarnação, por exemplo, foi uma
das sacerdotisas que empreenderam ações para combater a intolerância religiosa.
“Ela não chegou a ir conversar
com Getúlio Vargas, como fez mãe
Aninha. Mas acabou convidada
para participar da preparação de
um jantar, com cardápio baiano,
para o presidente em Minas Gerais. Ela aproveitou, enquanto servia os pratos, para conversar com o
Getúlio sobre o absurdo do tratamento dispensado pela lei ao candomblé”, narra o babalorixá.
MUSEU – A mameto de inquice
Maria Lúcia Neves também preserva a memória desses tempos
como um ensinamento de resistência para as gerações futuras. No
Museu Comunitário, que funciona
no Terreiro São Jorge da Goméia,
em Portão, Lauro de Freitas, estão
arquivadas as autorizações para a
realização dos rituais como exigia
a lei.
Nelas, inclusive, estava o lembrete de que os rituais deveriam
ser encerrados às 22 horas. Além
disso, o cartão de autorização alertava que estava proibida a participação de jovens e crianças nas festas dos terreiros.
“Muitas vezes, minha avó, Mirinha do Portão, deixava de realizar o
ritual para não ter que se submeter
à lei absurda. A proibição caiu, mas
a gente continua a ter que tirar
uma licença anual na Federação
do Culto Afro, o que de certa forma
ainda nos faz lembrar dessa situação de ter que pedir licença de alguma forma para praticar a nossa
religião”, acrescenta mãe Lúcia.
Mãe Lúcia (à frente) preserva a memória como um ensinamento de resistência para as gerações futuras
*
Em 1937, aconteceu em
Salvador o 1º Congresso Afro
Brasileiro. Foi um momento
histórico, pois, no Instituto
Histórico e Geográfico da
Bahia, estiveram reunidos
grandes sacerdotes e
sacerdotisas da cidade, como
Mãe Menininha, Mãe
Aninha, Martiniano do
Bomfim, dentre outros . Os
representantes das religiões
de matrizes africanas foram
até o congresso para dizer
que a sua religião merecia
respeito, como discursou
Martiniano do Bomfim:
“Religião de negro é igual à
religião de branco”. O
encontro foi organizado
pelo pesquisador Edison
Carneiro.
Preconceito fundamentava
política repressiva do Estado
Por influência de Osvaldo
Aranha, chefe da Casa Civil do
governo, mãe Aninha do Ilê Axé
Opô Afonjá conseguiu um
encontro com o presidente
Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.
Nele, cobrou do presidente o
direito de exercer a religião que
aprendeu com seus
antepassados.
A iniciativa deu certo, e
Vargas assinou o Decreto 1.202,
que ao menos liberava o uso dos
atabaques nos terreiros.
Mas as coisas só se
acomodaram mesmo com o
Decreto nº 25.095, assinado pelo
governador Roberto Santos, que
acabou com a necessidade de
registrar a realização dos cultos
na polícia. Foi a vitória da
articulação política do povo-desanto. A iniciativa pôs fim a um
período de perseguição descrito,
inclusive por Jorge Amado em
seu livro Tenda dos milagres .
Nele, o escritor cita Pedro
Azevedo Gordilho, um delegado
auxiliar, extremamente temido
pelo povo-de-santo. Conhecido
como Pedrito, ele e suas batidas
policiais nos terreiros
transformaram-se no mais forte
ícone da época da repressão.
O motivo que legalizava essa
política repressora de Estado se
baseava apenas no preconceito.
“No princípio, não se sabia o que
tinha determinado essa
exigência. Foi preciso pesquisar
sobre o ato, até que se viu que
tinha sido um decreto muito
antigo, numa fase em que se
dizia que os candomblés
escondiam pessoas que tinham
problemas com a lei”, diz o
ex-governador Roberto Santos
(ver entrevista abaixo).
O decreto de Santos deu
ganho de causa à resistência. O
desafio agora é afirmar as suas
conquistas.
Roberto Santos | Governador da Bahia durante o período de
1975 a 1979. Ex-reitor da Universidade Federal da Bahia
MARCO AURÉLIO MARTINS
O
A TARDE | Quando o senhor foi
governador, qual era o quadro da
relação do Estado com as religiões de matrizes fricanas?
ROBERTO SANTOS | Os terreiros
tinham uma preocupação muito
grande e de certo modo se sentiam discriminados, porque,
quando estava para acontecer um
culto, eles tinham que fazer o registro na polícia, na Secretaria da
Segurança Pública. Com outros
cultos, isso não acontecia.
AT | Em que era baseada a exigência?
RS | O interessante era que no
princípio não se sabia o que tinha
determinado essa exigência. Foi
preciso pesquisar sobre muito sobre isso, até que se viu que tinha
sido um decreto muito antigo, numa fase em que se dizia que os
candomblés escondiam pessoas
que tinham problemas com a lei.
As associações e terreiros pediram para corrigir e concordei em
baixar o decreto. Com ele, acabou
aquela marca de que o terreiro era
um lugar de esconderijo de quem
tivesse cometido algum crime.
Babalorixá | Título do mais
alto sacerdote de um
terreiro ketu quando o
ocupante do cargo é do sexo
masculino ❚
Mameto de inquice | Grau
máximo do sacerdócio no
culto afro de nação angola,
quando a ocupante do cargo
é uma mulher. Há uma
variação do termo para
nengua, dependendo da
Casa, pois os povos angola
unem expressões de várias
etnias ❚
“Crença merece respeito”
Decreto
nº
25.095, assinado
pelo ex-governador Roberto Santos, que governou
a Bahia de 1975 a 1979, suspendeu a exigência para que
sacerdotisas e sacerdotes de
candomblé tivessem que se dirigir à Delegacia de Jogos e Costumes para retirar a autorização
para a realização das festividades nos seus terreiros.
quer dizer...
Ialorixá | Grau máximo do
sacerdócio no culto afro
de nação ketu quando a
ocupante do cargo é
mulher ❚
Tempo de gritar por
liberdade religiosa
CLEIDIANA RAMOS
7
|
A TARDE | O senhor encontrou
algum tipo de resistência ou dificuldade administrativa para
fazer essa mudança?
RS | Não. Eu acho que isso estava
sendo mantido mais por uma
questão de rotina, sem que se tivesse uma preocupação de se
analisar a fundo.
A TARDE | O Sr. convivia com a
comunidade de candomblé?
RS | Não muito. Passei a ter mais
contato depois do decreto. Mas
conheci religiosos como Mãe Menininha, uma pessoa muito interessante e de muita energia.
A TARDE | A Bahia teve outros
governadores antes do senhor,
mas a exigência de submeter a
realização do culto à polícia continuava. Sua decisão foi uma
conjunção de fatores que a permitiram?
RS | Não. Foi uma coisa de baianidade mesmo (risos).
A TARDE | Que mensagem o senhor deixa para os que ainda lutam pela liberdade religiosa?
RS | Acho que todos nós, brasileiros, devemos ter respeito à liberdade religiosa. Eu desejo, sinceramente, que desapareçam
quaisquer restos de discriminação que ainda existam.
EXU
Dia: segunda-feira
Cores: vermelho e preto
Oferendas: farofa com
dendê, feijão, água, mel,
aguardente, acaçá
8
|
ESPECIAL
| DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
❚
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
❚
DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA |
ESPECIAL
ARQUIVO A TARDE
quer dizer...
Inquices | Nome das
divindades do candomblé
de nação angola ❚
Voduns | Nome das
divindades do candomblé
de nação jeje ❚
Xicarangoma | sacerdote
músico no candomblé de
nação angola ❚
Oloê | Conselheiro no
candomblé de nação jeje ❚
Tata | Palavra no
candomblé de nação
angola que pode ser
traduzida por “pai” ❚
RESISTÊNCIA ❚ Palmares foi experiência
mosaico de povos, costumes e línguas
de Estado africano e combate à escravidão
Herança
religiosa foi
formada pela
diversidade
História de
Zumbi traz
boa lição de
luta política
[email protected]
Quando se fala em África, a idéia
presente no senso comum, não só
na Bahia, mas no Brasil, é a de uma
terra arrasada ou exótica. Pensa-se
na diversidade de um continente,
com suas línguas, costumes e povos, como uma coisa só. Com o
candomblé acontece o mesmo.
Sua complexidade costuma ser reduzida a uma única forma.
Para a maioria das pessoas, os
rituais são os mesmos em qualquer terreiro; pensam que candomblé e umbanda são iguais.
Além disso, inquices e voduns são
palavras desconhecidas se comparadas a orixás. Esse desconhecimento tenta unificar algo que é
completamente diverso até mesmo em relação a casas das mesmas
tradições.
“As religiões de matriz africana
têm um núcleo teológico e filosófico que não espelha apenas um
único aspecto. Se pensarmos nelas
como uma forma unitária, já incorremos no erro de negar a diversidade que é a África”, salienta o
doutorando em História Social Jaime Sodré. Ele conhece essa diversidade por sua própria experiência
religiosa. Sodré é xicarangoma, título para sacerdote músico, do terreiro Tanuri Junçara, de tradição
angola, e oloê, espécie de conselheiro, do Bogum, que tem herança
jeje-mahi.
“Mesmo entre casas da mesma
tradição existem diferenciações.
Elas têm um panteão de divindades semelhantes, mas guardam saberes que sofrem modificações,
como, por exemplo, na manifestação de determinado rito, nas terminologias mais gerais de divindades, nas suas subdivisões dotadas
de características muito personalizadas”, acrescenta Sodré.
Assim, os terreiros apresentam
características semelhantes num
primeiro e rápido olhar, mas possuem, cada um, suas características muito próprias. “Essa diversidade pode vir pelas características
das linguagens, mas também pela
via dos ritos”, diz o historiador.
Essa diversidade costuma ser
enquadrada numa divisão do que
se convencionou chamar de nação, onde a língua litúrgica é um diferenciador. Assim, aceita-se de
uma forma mais genérica três grupos: angola, com tradição herdada
dos povos de língua banto; jeje,
formada pela herança lingüística
ewé e fon; e ketu, que tem como
idioma o iorubá.
Essa classificação é importante
para clarear um pouco o nome que
se dá à essência da ligação entre divino e humano em cada tradição.
Na angola, ela se chama inquice;
na jeje, vodum; e na ketu, orixá.
RIQUEZA – Mas essa divisão não é
tão simples como aparenta. Entre
os angolas, por exemplo, há subdivisões como congo e congo angola;
no jeje existe a mahi e a savalu. Sem
falar em ramos da religião, como
ijexá, dentre outros.
Existem ainda os cultos ligados
aos eguns e eguguns, que se referem aos ritos pós-vida, pois na dinâmica do candomblé a morte é só
mais um ciclo. Há ainda a incorporação ao culto, em alguns terreiros,
da figura do caboclo, uma entidade que é própria do Brasil e começou pela relação entre os primeiros
escravos a chegar, os bantos, e os
indígenas.
“O candomblé é, antes de tudo,
uma forma de resistência negra e
um modo de vida. Ele engloba o
nosso modo de ver o mundo, o
meio ambiente. E todos esses saberes se uniram, com a contribuição de povos diversos, para criá-lo
como o conhecemos hoje”, destaca Tata Kommannanjy.
Tata lubitu, posto que significa
o “guardião de segredos” do terreiro Unzó Kwa Mpaanzu, localizado
no bairro de São Marcos, Tata
Kommannanjy é também o presidente da Associação Cultural de
Preservação do Patrimônio Bantu
(Acbantu).
A associação envolve terreiros,
candomblés e também quilombos, totalizando, aproximadamente, 700 organizações.
Aliança preservou o
culto aos caboclos
O caboclo é uma entidade que
simboliza a diversidade que
possui o candomblé. Embora
aparentemente possua maior
identificação com a herança
indígena, ele se tornou um
elemento religioso bem mais
complexo e foi preservado nos
cultos de candomblé.
A multiplicidade dos tipos de
caboclo identifica desde figuras
com características sertanejas, a
exemplo do Boiadeiro, às ligadas
à água, como o Marujo. São
entidades que possuem um lado
irreverente, mas estão sempre
prontas à realização da caridade,
principalmente ações de cura.
OBÁ
Dia: quarta-feira
Cores: vermelho e branco
Oferendas: acaçá,
água,milho
REPRODUÇÃO
PLURALIDADE ❚ O candomblé forma um
CLEIDIANA RAMOS
COMUNHÃO –As informações
sobre caboclos fazem parte de
um estudo acadêmico que já se
tornou referência sobre esse
tema. Intitulado O dono da terra,
ele foi realizado pelo doutor em
antropologia Jocélio Teles,
diretor do Centro de Estudos
Afro-Orientais da Ufba (Ceao).
“Não há registros específicos
sobre o começo dos cultos aos
caboclos. Mas há os de interação
dos grupos étnicos conhecidos,
como os povos bantos e
indígenas, já a partir do século
XVI”, completa Teles.
Teles destaca que, por esse
motivo, são os terreiros angola os
pioneiros a reivindicar a herança
de reconhecimento aos
primeiros habitantes do
continente americano. Além
disso, houve certa resistência de
sacerdotes das tradições jeje e
ketu a abrirem espaço para o
caboclo em terreiros.
Embora tenha ficado corrente
a expressão “candomblé de
caboclo”, Teles explica que é
mais correto se falar em “giro ou
sessão de caboclo”.
De acordo com Teles, mesmo
em terreiros ditos de caboclo, ao
se observar seus ritos,
percebe-se que eles seguem a
tradição angola. “À medida que
o candomblé foi se afirmando
como religião, a identificação
com a sua origem africana
torna-se mais forte. Isso não
significa que houve uma negação
do culto ao caboclo, mas sim
que, ao se falar em sua herança
básica, a identidade como
origem se dá pela via da herança
que veio da África”, explica.
RIQUEZA – A construção do
caboclo como um elemento
religioso passa também pela
fusão com a literatura e a
política. O índio foi um símbolo
forte na tradição literária
brasileira e, no caso da Bahia, ele
também acabou se fundindo
com a idéia de liberdade trazida
pelas guerras da Independência,
como acontece, por exemplo,
com o famoso Caboclo do 2 de
Julho.
“A tradição africana já traz o
componente de culto aos
ancestrais que, no caso do
caboclo, uniu-se a um sentido
histórico, político e também
literário”, acrescenta Teles. O
antropólogo Jocélio Teles aponta
a unidade de tradições distintas
na figura do caboclo, que até
mesmo na umbanda se faz
presente. (C.R.)
CLEIDIANA RAMOS
[email protected]
O caboclo Boiadeiro, identificado com o sertanejo, é exemplo da diversidade na religiosidade de matriz afro
Tradição tem variedade lingüística
Tata Kommannanjy, presidente
da Associação Cultural de
Preservação do Patrimônio
Bantu (Acbantu), diz que,
embora diferentes, as heranças
que formam o candomblé são o
resultado de uma aliança entre
vários povos, com seus costumes
e línguas. “A palavra candomblé,
por exemplo, vem do verbo
loomba, que é de origem
kikongo, uma das línguas banto.
Ele quer dizer pedir, cultuar,
rezar. Da conjugação desse verbo
surge a palavra kandoombelê,
que significa “eu peço a Deus, eu
rogo a Deus, eu cultuo Deus”. Ao
longo dos anos, a corruptela da
conjugação desse verbo levou à
palavra candomblé”, completa.
Kommannanjy destaca que a
diversidade é extremamente
complexa. “Mesmo em nações
de tradições iguais há diferenças.
A mesma energia tem nomes
diversificados. A energia que é
Kayango numa casa é
Bamburecema em outra.
Depende da língua usada pela
tradição da casa. Num evento,
realizado em 2003, identificamos
pelo menos cinco raízes
diferentes e isso só da tradição
angola. Em rezas e cantigas
aparecem, no mínimo, sete
idiomas, o que atesta a riqueza
de povos que compuseram o
candomblé”, completa.
Jaime Sodré, por sua vez, diz
que essa diversidade foi possível
pelo diálogo que existe entre as
várias tradições. Ele se baseia no
respeito ao outro e no
entendimento de que a
sabedoria é múltipla. “No
candomblé não se admite a
interrupção do diálogo. Tanto é
que pode acontecer no ritual de
uma determinada nação ser
acolhida a divindade de uma
outra”, completa.
FERNANDO AMORIM 19.5.2006
9
|
"Determinei se pusesse a cabeça
em um pau no lugar mais público
desta praça a satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam o Zumbi imortal, pelo que se entende que nesta
empresa se acabou de todo com o
Palmares." Essa expectativa do governador de Pernambuco, Caetano de Melo e Castro, numa carta
enviada ao rei de Portugal em 14 de
março de 1696, não se cumpriu,
afinal, hoje, 310 anos depois, Zumbi é o maior símbolo político dos
movimentos negros que lutam por
igualdade de direitos.
O dia 20 de novembro, dia da
sua morte, virou, no Brasil, o Dia
Nacional da Consciência Negra. O
que o governador de Pernambuco
pensou evitar com a crueldade só
reforçou a simbologia de um homem que não só desafiou a política
escravista de um Estado, mas
montou um sistema de poder alternativo. Palmares não era apenas
um agrupamento de escravos fugidos, mas uma estrutura de governo
que sobreviveu por um século, de
1595 a 1695.
“Zumbi comandou um projeto
de Estado africano. Por isso, se tornou símbolo de organizador político e ícone do movimento negro”,
destaca o doutor em História e presidente da Fundação Cultural Palmares, Ubiratan Castro.
INDEPENDENTE – Palmares,
com uma área estimada em 27 mil
quilômeros quadrados, localizado
onde hoje é o Estado de Alagoas,
mas que na época pertencia à capitania de Pernambuco, era uma
reunião de pequenas vilas chamadas mocambos. O quilombo tinha
uma economia baseada na agricultura, com a garantia de comercialização da sua produção em cidades vizinhas.
Na verdade, Palmares, com cerca de 20 mil habitantes, não incomodava tanto os fazendeiros locais, mas sim o poder central, afinal, sua estrutura desafiava a utilização de mão-de-obra escrava,
base da economia brasileira.
A tensão entre quilombolas e o
Estado formal era mais ou menos
intensa de acordo com o estágio da
quer dizer...
Axé | Força. Seu uso
também expressa
concordância com o que
foi afirmado ❚
Nzambi | Nome de
divindade suprema no
candomblé de nação
angola ❚
oferta de mão-de-obra escrava. Se
ela fosse grande, os quilombos não
eram incomodados. Mas se a importação de escravos estivesse diminuída, a preocupação em combatê-los aumentava.
BATALHA – Palmares tornou-se
uma dor-de-cabeça para a coroa
portuguesa por conta de fatores
como a disputa entre Portugal e
Holanda por colônias. A Guiné,
atual Gana, e Angola eram postos
fornecedores da mão-de-obra escrava trazida para o Brasil nos primeiros séculos do período da colonização.
Os holandeses passaram a dominar esse locais, o que se tornou
um problema para Portugal. Por
outro lado, o rei do Congo, Estado
também localizado nessa região,
decidiu não mais permitir a saída
de seus súditos para serem usados
como escravos.
“O padre Vieira, inclusive, passou a defender que Portugal abrisse mão do Brasil e o entregasse à
Holanda”, completa Castro. Embora tivesse chegado a ensaiar uma
aliança com os holandeses, em
1654, Portugal decide partir para a
briga para manter o Brasil e os expulsar daqui. Os donos da economia local decidem que Palmares é
um desafio aos seus interesses e a
guerra contra ele endurece.
É então que Palmares vive um
conflito em seu próprio núcleo de
poder. O chefe Ganga Zumba, tio
de Zumbi, recebe uma proposta do
governo da capitania de Pernambuco: eles deveriam sair da Serra
da Barriga, onde o quilombo estava abrigado, para ocupar uma parte plana, o que claramente facilitaria um futuro ataque; receberiam
terra em troca de não mais incitar
nenhum tipo de rebeldia ou fuga.
Zumbi é contra a decisão do tio
e decide ficar em Palmares. Ele organiza então o quilombo como
uma fortaleza, o que significa, inclusive, marcar posição territorial.
Sua avaliação política se revela
completamente correta: Ganga
Zumba é traído pelo poder colonial e acaba morrendo. Zumbi então emerge como governante absoluto de Palmares. "O quilombo
se fortalece como modelo de Estado e governo alternativo no lugar
de ser meio apenas para reunião de
fugitivos", completa Castro.
Morre o homem, mas sobrevive o
ícone de uma luta ainda necessária
Tata Kommannanjy diz que, no candomblé, saberes e contribuições de diversos povos se uniram
GILDO LIMA 16.7.2003
Antropólogo e pesquisador Jocélio Teles aponta a unidade de tradições distintas na figura do caboclo
O ano apontado como provável
para o nascimento de Zumbi é
1655. Ele nasceu livre, em
Palmares, mas ainda criança foi
capturado e dado de presente a
um padre. Foi batizado com o
nome de Francisco e aprendeu
latim e português. Mas a vida de
escravo do menino nascido livre
não durou muito. Aos 15 anos,
Zumbi conseguiu fugir e
retornou a Palmares para junto
do tio Ganga Zumba, que era o
chefe do quilombo.
Quando o tio morreu após ser
traído ao acertar um acordo com
o poder colonial, Zumbi assumiu
o comando, revelando uma
liderança política e militar
significativa. De 1680 a 1691, por
exemplo, todas as expedições
mandadas pelo Estado contra o
quilombo de Palmares foram
completamente derrotadas.
Acuado, o poder colonial
apelou. Contratou Domingos
Jorge Velho, um entradista
paulista conhecido pela
crueldade. Em 1694, Palmares
acabou sendo derrotado pelos
homens de Jorge Velho.
RETORNO – Ferido, Zumbi caiu
de um desfiladeiro, mas
sobreviveu. Um ano depois,
reapareceu retomando as lutas
*
Zumbi comandante
guerreiro/Ogunhê, ferreiro
mor/capitão da capitania da
minha cabeça/mandai a
alforria pro meu coração
Minha espada espalha o sol
da guerra/rompe mato, varre
céus e terra/ (...) (Trecho da
música Zumbi, de Gilberto
Gil e Wally Salomão
contra a escravidão. O seu
retorno fez correr a história de
que ele havia voltado como um
ser sobrenatural e guerreiro.
“É difícil trazer um perfil
preciso de Zumbi, afinal, as
informações que temos sobre ele
é o que foi retirado de
documentos policiais”, diz o
presidente da Fundação
Palmares, Ubiratan Castro.
Ainda assim, fica patente seu
FERNANDO VIVAS
perfil heróico, afinal, se o
próprio poder repressor deixou
passar informações sobre a sua
resistência, é uma boa pista de
que foi um homem
extraordinário.
Sua derrota seguiu o roteiro
típico da vivida por heróis de
movimentos de resistência: foi
traído por um companheiro,
Antônio Soares. Morto, foi
decapitado e sua cabeça
pendurada em praça pública não
só para servir de exemplo, mas
principalmente para anular o
mito de seu poder sobrenatural,
inclusive presente no apelido
que substituiu o nome cristão, e
que ainda intriga estudiosos.
Para alguns, Zumbi seria uma
corruptela de Nzambi, o nome
da divindade poderosa dos
povos bantos, classificação usada
para reunir as etnias
provenientes das regiões do
Congo e de Angola. Para outros,
é a tradução de uma palavra que
indica “deus da guerra” e, ainda,
em outras interpretações, “morto
vivo”. O certo é que a
importância política de Zumbi
persistiu. Em 1978, ela foi
completamente resgatada pelo
movimento negro ao
incorporá-lo à celebração da
Consciência Negra.
OSSAIN
Dia: segunda-feira
Cor: verde fosco
Oferendas: acaçá, água,
Presidente da Palmares, Ubiratan Castro destaca heroismo de Zumbi
milho amarelo, batata-doce.
10
quer dizer...
Ogã |Sacerdote do
candomblé com funções
de serviço ritual, sem
transe ❚
Ialorixá |Título do mais
alto grau de sacerdócio
num terreiro ketu, quando
o cargo é ocupado por
uma mulher ❚
|
ESPECIAL
| DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
❚
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
ORGANIZAÇÃO ❚ Comunidades religiosas mantêm a estrutura organizacional de solidariedade grupal
concentrada em um território, lembrando a configuração dos quilombos em grandes centros urbanos
Terreiros conservam a
tradição da resistência
LUCIANO DA MATTA
❛
Para Vovô, as ações sociais são inspiradas na solidariedade, que é uma marca dos terreiros de candomblé
CLEIDIANA RAMOS
[email protected]
Em 1974 nascia o bloco afro Ilê
Aiyê. Hoje, três décadas depois, ele
não é apenas uma entidade carnavalesca, mas um símbolo de resistência e combate à exclusão, luta
que passou pela estética, mas sem
deixar de lado a educação e, conseqüentemente, a construção de
cidadania. Mas não se pode falar
da história dessa associação sem ir
até o seu ponto de referência: o Ilê
Axé Jitolu, localizado no mesmo
endereço do bloco afro, no bairro
da Liberdade, o Curuzu.
O terreiro é comandado por
mãe Hilda Jitolu, mãe biológica e
espiritual de Antônio Carlos Vovô,
presidente do Ilê. “Todo homem
nasce com um sonho que vai crescer com ele. Eu ajudei meu filho a
realizar o sonho dele”, resume mãe
Hilda, principal referência do Ilê.
As ações sociais, por exemplo,
segundo Vovô, são inspiradas na
solidariedade que ele aprendeu no
Jitolu e que é uma marca dos terreiros de candomblé.
“A criação da nossa escola, da
Band‘Ayê e outras iniciativas vem
da inspiração de mãe Hilda e das
próprias experiências solidárias
do terreiro”, completa o presidente
do Ilê Aiyê.
As afirmações de Vovô trazem à
tona uma das características especiais dos terreiros: eles funcionam
como um importante território de
resistência negra, moldado por
fortes laços familiares, nem sempre relacionado a parentesco biológico e têm a solidariedade com a
comunidade onde estão inseridos
como uma das suas faces mais
marcantes. São traços que os aproxima da idéia de quilombo.
“Todo homem nasce
com um sonho que
vai crescer com ele”
“Eu ajudei meu
filho a realizar o
sonho dele”
Mãe Hilda Jitolu, ialorixá do
Jitolu e do Ilê Aiyê
“O modelo de vida africana, o
isolamento motivado muitas vezes pela perseguição do poder dominante, como aconteceu com os
candomblés da Barroquinha, a necessidade de ter um território para
se fixar são elementos que aproximam os terreiros das características de resistência como foram os
quilombos”, destaca o doutor em
história e presidente da Fundação
Cultural Palmares, Ubiratan Castro de Araújo.
Além disso, ele destaca que algumas pistas em documentos históricos deixam aberta a possibilidade de que ao lado de quilombos
sempre estavam presentes organizações religiosas, que, embora ainda não fosse chamados de candomblé, fazem referências a elementos presentes neles. “Há queixas de autoridades sobre o que
chamavam batuques de negro,
com comida, bebida e festa, inclusive em documentos relacionados
à Guerra da Independência na Bahia”, acrescenta Castro.
Ele destaca que, há pouco mais
de 20 anos tornou-se mais firme o
entendimento de que quilombos
não eram organizações excepcionais, mas sim presentes onde existissem vilas e cidades. “Um quilombo é entendido como uma comunidade de resistência. Onde
houve escravidão, houve resistência e assim houve quilombo”, completa Castro.
Assim, Salvador, estava cercado
de quilombos, áreas que não eram
fixas, mas tinham mobilidade de
acordo com a necessidade. “Com o
crescimento das cidades, áreas
que foram quilombos foram incorporadas pelas cidades, mas muitas
não perderam seu modelo de resistência”, diz Castro.
FERNANDO VIVAS
Santiago: apoio a bairros onde há terreiros
Liberdade: resistência, concentração negra e superpopulação
Calabar: apoio da Secretaria da Reparação
Poder público investe em infra-estrutura
OXALÁ
Dia: sexta-feira
Cor: branco
Oferendas: acaçá, água,
milho branco, inhame.
Nos terreiros, a organização
social constrói laços estreitos
entre a comunidade que o
forma, mas também com a do
seu entorno. Daí que esse espaço
de resistência é ampliado e
transforma a configuração de
bairros como Liberdade e
Engenho Velho no que se pode
chamar de quilombos urbanos.
“Os quilombos sempre foram
entendidos como áreas rurais,
mas esse entendimento pode ser
bem mais amplo”, destaca o ogã
do terreiro do Cobre, educador e
assessor especial da Secretaria
Municipal da Reparação
(Semur), Antônio Cosme.
O Engenho Velho da
Federação, por exemplo,
segundo levantamento da Semur
reúne 23 terreiros. “Não custa
lembrar que os terreiros foram
perdendo suas áreas por conta
da expansão urbana.
Assim, muitos deles perderam
a área física por causa da
ocupação que aconteceu por
conta da solidariedade dos seus
sacerdotes, o que faz com que os
laços com a comunidade se
mantenham firmes”, completa
Cosme. Mas a perda de muitas
dessas áreas aconteceu por conta
da especulação imobiliária,
inclusive ameaçando a
conservação de um patrimônio
essencial para uma casa de
candomblé: o meio natural.
Por esse motivo, os terreiros
tem sido uma das prioridades
nas ações da Semur. O
direcionamento de projetos não
se resume ao beneficiamento da
sua estrutura física, direção para
a qual a secretaria acaba de
assinar junto ao Ministério da
Cultura, um convênio no valor
de R$ 2,2 milhões.
Recursos também são
utilizados para o beneficiamento
de comunidades no entorno dos
templos de candomblé, como o
total de R$ 300 mil que será
utilizado para melhoramento da
mobilidade urbana no Engenho
Velho da Federação. A parceria
envolve prefeitura e governo
federal por meio da Secretaria
Especial de Políticas para a
Promoção da Igualdade Racial
(Seppir). As obras começam até
o final deste ano.
VITÓRIAS – “Conseguimos, do
ano passado para cá, um aporte
de R$ 10 milhões para
intervenções em bairros onde há
concentração de terreiros e, logo,
da população negra, como
Engenho Velho da Federação,
Calabar, Sussunga em São
Caetano, Bom Juá, Jaqueira do
Carneiro, para intervenção em
encostas, recuperação de
escadarias”, relaciona Gilmar
Santiago, secretário municipal da
Reparação. Os recursos são
provenientes de emendas
parlamentares.
SÃO BARTOLOMEU – Uma
vitória recém-conquistada pelo
povo-de-santo foi a
disponibilização de R$ 4 milhões
pelo Ministério da Cultura para a
revitalização do Parque São
Bartolomeu, considerado um
santuário para as religiões de
matrizes africanas.
Os recursos serão utilizados
para despoluição de mananciais
permitindo a recuperação da
beleza de cachoeiras, como a
que leva o nome da orixá Oxum,
senhora das águas. “O projeto
prevê a inclusão em atividades
de recuperação das
comunidades que ocuparam
áreas do parque”, acrescenta
Santiago.
A Semur está realizando o
mapeamento dos terreiros em
Salvador. No estudo que vem
sendo feito pelo Centro de
Estudos Afro-Orientais da Ufba
(Ceao), já foram catalogados, de
junho até agora, 800 terreiros
nos bairros Pau Miúdo, Uruguai,
dentre outros.
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
❚
DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA |
MARCO AURÉLIO MARTINS
EXUS ❚ Entidades de personalidade
controversa povoam rituais de umbanda
Caridade e
cura para
evolução do
espírito
SYLVIA VERÔNICA
[email protected]
Metade da casa da ialorixá Petrúcia
dos Santos, 62 anos, é uma residência comum, onde vive com filhos e netos, no bairro de Castelo
Branco. Atrás de uma das portas da
sala, dois salões forrados com palha-da-costa acomodam o terreiro
de umbanda no qual mantém a
tradição herdada da avó, povoado
de caboclos, orixás, exus e pombas-giras. O Centro Espírita Caboclo Laje Grande da Bahia leva o nome do “dono da cumieira da casa”,
explica a mãe Pel, como é chamada
pelos filhos-de-santo. “Para e le a
gente arreia abóbora, fumo e mel”,
revela a religiosa.
Laje Grande foi um índio guerreiro cuja imagem de louça é cuidadosamente guardada em um
dos roncós da casa. Carcomida pelo tempo – lá se vão mais de 50 anos
– representa o guia que, acreditam,
já realizou muitas curas. “Mas não
está mais entre nós. Teve o corpo
cremado”, diz a ialorixá, enquanto
mostra a decoração do terreiro. Em
um dos altares, os orixás obaluaê,
iansã e iemanjá; no barracão, o jogo de atabaques guardados pelos
ogãs são forrados de couro, referência ao “caboclo truvezeiro”, que
maneja o couro nas aldeias, faz
tambores e pandeiros.
As paredes do barracão onde
são realizados os rituais estão repletas de pinturas das imagens dos
orixás Ogum, Obaluaê, Ossain,
ADEPTOS
Porto Alegre e Rio têm
maior número de fiéis da
umbanda entre as capitais
Rio de Janeiro |
População: 5.857.914
Umbandistas: 72.946 pessoas
ou 1,25% da população ❚
São Paulo |
População: 10.435.546
Umbandistas: 35.782 pessoas
ou 0,34% da população ❚
Porto Alegre |
População: 1.360.590
Umbandistas: 29.944 pessoas
ou 2,2% da população
Salvador |
População: 2.443.107
Umbandistas: 3.033 pessoas
ou 0,12% da população
São Luís |
População: 870.028
Umbandistas: 610 pessoas ou
0,07% da população
Fonte ❚ IBGE: censo 2000
Iansã, Oxóssi e elementos da tradição do candomblé angola que convivem em harmonia com o culto
aos caboclos. Boiadeiro, o dono da
casa, para o qual dois bois são sacrificados todos os anos; Tupiniquim, o rei das cobras. “Ele cuida
para que nenhuma cobra se aproxime e nos ataque”, diz Petrúcia.
No pote da jurema do caboclo,
uma bebida feita com ervas, vinhos, mel e frutas.
A convivência das entidades
sob o mesmo teto termina aí. Os
escravos da umbanda são acomodados nos fundos da casa. Em um
pequeno e escuro cômodo construído no quintal, estão assentados exus e pombas-giras. É o quarto de Maria Padilha, Tranca-Rua,
Pomba-Gira, Caveirinha, Arranca-touco, Exu Morcego, que permanece fechado e seu conteúdo,
guardado em segredo. “Aqui é o
quarto dos que trabalham para o
mal”, afirma Petrúcia. Essa distinção afasta os exus que trabalham
pelo bem e que por isso ocupam
lugares separados. É o caso do escravo Zé Pelintra, muito querido e
conhecido pelas curas que promove, e da escrava Anastácia. “Ela só
faz o bem. Sofreu muito na mão
dos senhores de escravos”, comenta a mãe-de-santo.
A personalidade controversa
dos exus e seu duplo caráter exigem cuidados de quem lida com
essas entidades na umbanda, candomblé e na quimbanda, na qual
são associados ao demônio.
Mãe Petrúcia diz que exus não têm noção das consequências do mal
ESPECIAL
11
|
Acusação de
magia negra é
preconceito
quer dizer...
“Quando a pessoa pede algo que
vai prejudicar o outro, e às vezes
pedem coisas terríveis, trabalhos
de perversidade, o exu pergunta:
`você tem consciência do que
está me pedindo?´. Os exus são
interesseiros, fazem para quem
dá mais, pedem garrafa de
uísque, bode”, revela Petrúcia.
A mãe-de-santo Lígia Sales, 70
anos, reforça a dualidade que
envolve a crença. “O espiritismo
é uma faca de dois gumes. Pode
fazer tanto o bem quanto o mal.
A umbanda é magia branca, mas
é confundida com a quimbanda,
a magia negra. Daí vem o
preconceito, e nos confundem
com macumbeiras. A umbanda é
religião de culto a um só Deus,
indiana, esotérica, independente,
misto de tudo e, sobretudo, da
consciência de que estamos aqui
para crescer, evoluir, não fazer o
mal”, diz mãe Lígia, líder do
Centro Umbandista Caboclo
Itapuã desde 1978.
Todos os sábados, dia de
atividades no centro, Lígia
recebe a cigana Madalena e
passa o dia inteiro fazendo
consultas, chegando a atender
mais de 100 pessoas. “A cigana
faz caridade e limpeza para o
bem. Aqui nada é cobrado, mas
quem quiser ajudar é bem-vindo,
já que vivemos de doações”,
comenta.
O antropólogo Vilson Caetano
de Souza Júnior avalia que esse
universo vasto e complexo da
umbanda torna difícil defini-la.
Brasileira, foi estruturada no Rio
de Janeiro, em um centro
espírita onde começaram a
manifestar-se espíritos que
diziam ser caboclos.
O que dá identidade é a
grande matriz espírita, que
acredita na reencarnação, e a
idéia de que os orixás são guias.
Além de ser espírita, talvez seja a
religião que mais dialogue com
elementos do catolicismo.
Uma das principais
características da umbanda,
talvez a mais importante, é que
trata-se de uma religião de cura.
Roncó | Quarto de
recolhimento para rituais
sagrados ❚
Ialorixá |Título para o mais
alto grau de sacerdócio
num terreiro ketu, quando
o cargo é ocupado por uma
mulher ❚
Ogã | Sacerdote do
candomblé com funções de
serviço ritual, sem transe ❚
Tata | Palavra banto que
pode ser traduzida para o
português como pai ❚
Inquice | Divindade do
candomblé de nação
angola ❚
Universo de caboclos e padilhas
XANDO P.
O antropólogo Roberto
Albergaria faz questão de
ressaltar que seu interesse pelas
“moças” é mais pessoal que
profissional, mas faz uma
avaliação sobre o significado da
figura de Padilha enquanto uma
das facetas da personalidade
feminina. A manifestação
exuberante e voluntariosa e o
comportamento exemplar em
sociedade conviveriam como
dois lados de uma mesma
identidade. Nos terreiros, a
entidade está presente em
invocações demoníacas e nos
trabalhos para casos amorosos.
“O maniqueísmo herdado do
espiritismo e do catolicismo
soma-se às práticas da
astrologia, quiromancia e
heranças ameríndias, cultura
egípcia, indiana e remonta a
Atlântida. A umbanda é um
fenômeno da década de 20 e foi
criada por brancos da classe
média no Rio de Janeiro e em
Porto Alegre. É a única que
Albergaria e uma de suas voluntariosas padilhas: auto-estima feminina
rompe as fronteiras das religiões.
A diferença para o candomblé é
que este não tem no panteão a
fusão de crenças”, afirma o
antropólogo e diretor do centro
de estudos Afro-Orintais (Ceao),
Jocélio Teles.
Sem a idéia de reciprocidade,
mas de graça e caridade, o que
leva um guia de umbanda a
trabalhar pela cura de alguém é
estar em desenvolvimento
espiritual.
Com visão de mundo baseada
na matriz judaico-cristã e forte
discurso com relação à caridade,
a umbanda pretende ser religião
na qual só se faz o bem. A partir
daí cria-se outro modelo
religioso no qual se faz o mal, a
quimbanda.
“A quimbanda assume o mal
ou constróem essa imagem
sobre ela. O exu é interpretado
como diabo e trabalha não
necessariamente para o mal; ele
faz o que você pede”, afirma
Vilson Caetano.
A umbanda é religião quase
invisível em Salvador. A
preservação do candomblé no
quantitativo e no espaço físico
prevalece. A avaliação de Jocélio
Teles tem base no censo de
terreiros iniciado pelo Ceao no
qual, até agora, entre os 800
terreiros identificados, apenas
oito declararam-se de umbanda.
Em 1983, pesquisa da Secretaria
da Indústria e Comércio revelou
a existência de um terreiro de
umbanda no total de 1.018.
A falta de investigação
acadêmica sobre a umbanda
talvez seja uma das repercussões
desse cenário. “Faço pesquisas
nessa área há 20 anos e
desconheço estudos na Bahia
sobre o culto umbandista”, diz
Jocélio.
SAÚDE ❚
Corpo é morada de divindades
A saúde do corpo é imprescindível
para os adeptos do candomblé por
um motivo simples: o corpo tem
que estar bem para ser morada de
orixás, inquices e voduns, ou seja,
não há, para as religiões de matriz
africana, separação entre corpo e
espírito. Para preservar o templo
das divindades, o candomblé é
uma religião de cura na qual folhas, raízes e caules são utilizados
como remédios em banhos, chás,
defumadores, xaropes, uma farmacopéia básica de conteúdo precioso para quem o domina, mas
que não se encerra em uma lista de
receitas.
“É o jogo de búzios que revela
qual órgão está afetado, qual orixá,
vodun ou inkice pode ajudar e que
tipos de injunções devem ser feitas
para curar. Às vezes não podemos
fazer nada e a orientação é que a
pessoa procure a rede de saúde.
Terreiros são fonte de saúde, mas o
tratamento é individual. Somos
feitos de energia: divina e do nosso
corpo. Às vezes um banho de folha
recarrega de energia positiva. De
outra vez esse mesmo banho não
vai servir. O maior efeito colateral
dos remédios naturais é não fazer
efeito”, ensina Anselmo Santos, Tata de inquice do terreiro do Mokambo.
Há uma infinidade de defumadores para abrir caminhos, banhos
para descarregar o corpo e para o
amor, simpatias contra inveja e para nunca faltar dinheiro, xarope
para fortificar, para bronquite, asma, tosse.
RECEITA –“Toda a mãe-de-santo
tem seu caderninho com as receitas que aprendem ao longo dos
anos, mas a recomendação vem de
lá de cima. Na verdade, o conhecimento e a inspiração trabalham
juntos. Não é apenas em sonho
que o santo me diz que folha usar,
tenho que ter conhecimento teórico e prático também”, revela Anselmo.
Tata Kommannanjy, do Terreiro
Unzó Kwa Mpaanzo, no bairro de
São Marcos, assinala que assim como o candomblé, a umbanda está
fortemente ligada à cura, e é esse
seu significado na língua bantu.
Também é bantu a palavra candomblé, originada de kandoombele, que significa: “Eu peço a
Deus, eu cultuo a Deus eu rezo a
Deus. Candomblé é natureza, vive
da natureza e cuida dela. Mais não
se deve esquecer que toda a folha
tem dois lados, um faz o bem, o outro faz o mal”, aponta Kommannanjy.
Há um ano, o Grupo de Trabalho da Saúde da População Negra
(GTS), da Secretaria Municipal da
Saúde, iniciou trabalho de aproximação com os terreiros de can-
domblé da cidade para promover
um intercâmbio nessa área. Até o
final de 2006, serão realizadas 13
feiras da saúde em bairros populares, elaboradas a partir das conclusões de oficinas nas quais membros das comunidades apontavam
as principais necessidades de cada
uma delas. Nas feiras, as populações dos terreiros e do entorno
contam com diversos serviços, entre eles vacinas, medição de pressão arterial, orientações de saúde
bucal e higiene.
“Essas iniciativas fazem parte
do compromisso dos governos
com as ações afirmativas na área
de saúde. As práticas de saúde nas
religiões de matriz africana nunca
foram reconhecidas. Mas o povo
pobre de periferia tem acesso aos
terreiros e neles encontra a cura
das doenças. Procuramos ONGs
que já desenvolviam trabalhos
com terreiros, na Federação do
Culto Afro Brasileiro, e dessa forma
chegamos mais facilmente até
eles”, afirma Denize Ribeiro, coordenadora do GTS.
A intenção é articular a formação de uma rede municipal de terreiros e, ao tempo que a estrutura
da saúde pública chega até esses
locais, os saberes sobre fitoterapia
e práticas de cura serão compartilhados e disponibilizados. Semana
passada foi realizado o 1º Seminário Municipal de Religiões de Matriz Africana e Saúde, onde foram
discutidas formas de viabilizar esse intercâmbio.
“A intolerância religiosa e o preconceito ainda são obstáculos. Alguns terreiros já estão dispostos a
participar do projeto. Existem elementos da religião que vão continuar restritos, mas muito pode ser
compartilhado. É um processo que
requer tempo”, comenta Denize
Ribeiro. (S.V.)
NANÃ
Dia: terça-feira
Cores: branco e azul
Oferendas: branco e azul
Oferendas: acaçá, água, feijão
fradinho, milho branco, pipoca.
12
quer dizer...
Iorubás | Termo para
definir grupo étnico que
usa a língua iorubá ❚
Ijexá | Um dos povos que
vieram escravizados para
o Brasil e que também
construíram um
repertório religioso no
candomblé ❚
Oyó | Famoso reino
iorubá ❚
Egbás |Etnia africana ❚
|
ESPECIAL
| DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
❚
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
HISTÓRIA ❚ Atrás de uma igreja católica, um terreno abrigou, em fins do século XVIII, o local sagrado do
povo do candomblé, de onde surgiram casas de culto importantes para a consolidação da religião no Brasil
Os terreiros que vieram
a partir da Barroquinha
Ogã | Sacerdote do
candomblé com funções
de serviço ritual, sem
transe ❚
REPRODUÇÕES ARISTIDES ALVES
Vista do alto do bairro da Barroquinha, em Salvador, em 1800. À época, uma mãe-de-santo africana alforriada (provavelmente Iyá Adetá) fundou, na região, o primeiro culto a Oxóssi
volta de 1855, já estava onde permanece como o primeiro templo
de culto afro tombado na América
Latina, na antiga Estrada do Rio
Vermelho, atual Avenida Vasco da
Gama, Engenho Velho de Brotas.
No momento da fundação do
terreiro, por volta de 1807, um grupo formou o Ilê Maroiá Láji, mais
tarde famoso como “o terreiro de
Olga de Alaketu”. Entre 1850-60 foi
criado o Gantois. E, em 1910, o Ilê
Axé Opô Afonjá.
MARY WEINSTEIN
[email protected]
OGUM
Dia: terça-feira
Cor: azul marinho
Oferendas: acaçá,
água, inhame, farofa de
dendê, vinho
O único lugar do mundo, fora da
África, onde o candomblé se estabeleceu no centro de uma cidade
foi em Salvador, na Barroquinha.
“Aqueles africanos eram estrategistas muito espertos. Eles tinham democracia lá, que não é a
nossa democracia representativa”, diz o professor da Faculdade
de Comunicação da Universidade
Federal da Bahia Renato da Silveira, referindo-se aos que arrendaram um terreno atrás da igreja de
culto católico e ali fizeram o primeiro terreiro de candomblé da
Bahia, de onde saíram outros de
tradição inegável – o Ilê Maroiá
Láji, o do Gantois, e o da Casa
Branca.
Renato da Silveira escreveu 650
páginas sobre as comunidades de
santo que se fixaram na Barroquinha e que, de lá, foram expulsas,
em uma “limpeza étnica” promovida por perseguidores de negros.
O Candomblé da Barroquinha,
processo de constituição do primeiro terreiro baiano de keto é o
nome do livro dele.
Segundo conta, com base em
uma pesquisa de 21 anos, ali havia, originalmente, uma igreja,
fundada em 1726 por uma irmandade de brancos, a Irmandade de
Nossa Senhora da Barroquinha,
formada por artesãos, oficiais inferiores do exército e pessoas que
moravam nas redondezas. Em
1764, juntou-se a ela uma irmandade negra, a do Senhor Bom Jesus dos Martírios, de crioulos, ou
seja, de negros filhos de africanos
nascidos no Brasil, antes sediada
na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho.
A igreja ficava abaixo da Porta
de São Bento, que desapareceu no
século XVII, mas que na época era
na altura do início da Rua Chile,
hoje Praça Castro Alves, que se
chamava Largo do Teatro, por
causa do Teatro São João, posteriormente demolido. A Barroquinha era um bairro popular. A partir dos séculos XVII e XVIII, tinha
uma população misturada. Por
volta de 1790, foi morar por ali
uma mãe-de-santo africana alforriada que fundou o primeiro culto
a Oxóssi e que, na hipótese de Renato da Silveira, era Iyá Adetá.
Em seguida, no início do século
XIX, o perfil demográfico dos negros da Bahia começou a mudar e
a maioria passou a ser de escravos
vindos da África ocidental, in-
Tia Sussu foi a última africana a comandar a famosa Casa Branca
*
Recompor a história do candomblé na Bahia é
uma tarefa difícil por causa do incêndio que
destruiu vários livros da Igreja da Barroquinha,
em 1983. Por sorte, os pesquisadores João da Silva
Campos e Carlos Ott consultaram os arquivos
antes que eles fossem destruídos.
.
cluindo os iorubás nagôs. Os ijexás, oyós e egbás eram em maior
número do que os ketos, ao contrário do que muito se pensa.
“Essa turma começa a se filiar à
Irmandade dos Martírios, que fica
sendo de crioulos e africanos.
Com o aumento da importância
da irmandade, esse grupo decide
arrendar o terreno atrás da igreja,
que pertencia a um casal de brancos. Isso porque foi favorecido por
uma distensão política, a partir de
1810, com o Conde dos Arcos. Em
1812, a comunidade dos Martírios
construiu um salão, um consistório, onde atualmente deve ser o
Hotel Castro Alves”, vai dizendo
Renato da Silveira.
Tudo ia mais ou menos bem até
a década de 1850, quando se iniciou o governo do presidente da
província Francisco Gonçalves
Martins, que era progressista, mas
anti-africano. O candomblé foi invadido, profanado e expulso. Por
CONSOLIDAÇÃO – Silveira destaca o papel das três mulheres responsáveis pela consolidação da
prática do candomblé na Bahia.
Primeiramente, a responsável pela instalação do culto doméstico a
Odé Oxóssi, Iya Adetá, por volta de
1790; depois Iyá Akalá, quando o
terreno é arrendado e é fundado
um terreiro; por último, a estruturação do candomblé, do jeito que
conhecemos hoje, por Iyá Nassô.
Iya Nassô, emissária do imperador de Oyó – maior reino iorubá
até a virada do século XVIII para o
XIX, veio junto com Babá Assiká
para organizar o candomblé. Ela
reuniu as sociedades de africanos
que funcionavam clandestinamente e reestruturou o lugar de
importância litúrgica e política.
Iyá Nassô atraiu pessoas importantes da comunidade, que recebiam títulos de reconhecimento.
Concebia-se, então, a casa-de-santo, reunindo o culto aos
orixás e, ao mesmo tempo, associada a organizações civis secretas
e a irmandades. Para Silveira, não
existe outro exemplo de mistura
tão íntima entre candomblé e irmandade de leigos na história.
A urbanização da Barroquinha
foi uma “limpeza étnica”, resultante da “ideologia do progresso”,
diz Silveira. A Barroquinha se traduzia em um constrangimento
para a elite baiana, por ser uma sociedade ainda escravagista.
Na primeira metade do século
XIX, no governo de dom Pedro II,
os jornais exaltavam a chegada do
progresso ao País. “Aí vem toda
uma vergonha do atraso colonial,
e há políticas para fazer os africanos voltarem para a África. Francisco Gonçalves Martins se destacou porque tinha sido inclusive o
chefe da polícia durante a Revolta
dos Malês. Então, era um cara que
tinha o perfil de perseguição”, resume Renato da Silveira.
Para ele e outros estudiosos, a
Barroquinha é um marco da luta
do povo negro pela cidadania.
Livro resgata a
origem das casas
de santo na Bahia
O candomblé da Barroquinha,
processo de constituição do
primeiro terreiro baiano de Keto
tem 80 ilustrações associadas ao
texto. Imagens foram colhidas
em jornais franceses, que
noticiavam a África, no século
XIX. O autor restaurou retratos.
E, pela primeira vez, poderá ser
visto, por exemplo, o rosto de Tia
Sussu, última africana da Casa
Branca. Também foi feita uma
recomposição da vista aérea da
Barroquinha. E há o mapa da
Costa da Mina, na África
ocidental, que mostra de onde os
africanos daqui vieram, os rios
sagrados – o Niger, que é o de
Oyá (Iansã), a bacia do Rio
Oxum, e o Euá, que banha o
Reino de Keto. O livro está sendo
impresso em São Paulo, pela
Edições Maianga, para ser
lançado em janeiro em Salvador.
“A idéia que as pessoas têm
da África é a da floresta. Mas os
escravos jejes e nagôs da Bahia
vieram de regiões urbanizadas,
comerciais, bem organizadas,
com instituições políticas. Eles já
tinham o teatro profissional
desde o final do século XVIII”,
diz Renato da Silveira.
Segundo o professor, com
esse know-how, os africanos
começaram a organizar as
procissões mais espetaculares da
cidade. “Eles tinham a
capacidade de produzir festas
que tinham grande importância
e que eram moeda política
importante no mundo colonial”,
acrescentou Renato da Silveira.
O Professor da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da
Ufba, o antropólogo Ordep Serra,
que é ogã do Ilê Axé Iya Nassô
Oká, o terreiro da Casa Branca,
originário da Barroquinha, tem o
mesmo entendimento do
pesquisador Renato da Silveira.
“Como costuma acontecer,
houve um movimento das elites,
uma limpeza étnica, que jogou o
terreiro para bairros da periferia.
Foi assim que ele foi bater onde
está até hoje, no trecho da
Estrada do Rio Vermelho”,
localiza, para dizer que, hoje, o
terreiro “tem descendentes de
norte a sul do Brasil e até na
Argentina”.
❚
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA |
ESPECIAL
13
|
ARQUIVO A TARDE
quer dizer...
Babalaxé | Termo utilizado
para um sacerdote que
ocupa o comando do
terreiro num período de
espera pela transição de
governo ❚
Zambi | Designação para o
poder supremo no
candomblé de nação
angola ❚
Tata de inquice |Título para
o mais alto sacerdote de
um terreiro de nação
angola quando ele é do
sexo masculino ❚
Xicarangoma | Sacerdote
músico no candomblé de
nação angola ❚
Oloé | Conselheiro no
candomblé de nação jeje ❚
Emi | Sopro que anima a
vida ❚
Os rituais são a forma de aproximação com o sagrado. Como não prega a conversão, o caminho até essa crença deve ser motivado por decisão muito firme e iniciativa própria
COSMOVISÃO ❚ A religião vê ligação entre tudo que forma o mundo. Cada homem é responsável por seus
próprios atos, mas não pode esquecer que cada um deles interfere no equilíbrio da comunidade na qual vive
Candomblé cultiva a
crença no elo universal
CLEIDIANA RAMOS
[email protected]
O candomblé é chamado de religião ancestral, afinal sua base é a
crença de que tudo que passou ou
está no universo forma um elo indestrutível. Nele, o mal não existe
de forma personificada e cada um
é responsável por seus próprios
atos. Sem os laços de solidariedade
de grupo, um terreiro não funciona. Mesmo com as relações de hierarquia, cada membro tem sua
função na comunidade.
Na base dessa religião está a
idéia de um ser supremo, que é o
princípio da vida, mas também de
essências que são a sua revelação
no mundo, grupo no qual o homem está incluído. Inquices, orixás, voduns, encantados, nomes
que divergem por conta das diferenças das variadas tradições, são
as pontes acessíveis para a comunhão com o sagrado.
“As divindades são o rosto do
poder supremo. É assim que ele se
revela. Embora não sejamos deu-
ses, fazemos parte desse todo superior. Ele é maior do que a soma
entre as partes e se apresenta em
todos os princípios criadores, como na árvore que tem seu ramo
cortado e brota”, define o pós-doutor em antropologia Vilson Caetano, que é babalaxé do Ilê Axé Ori
Tarokê, terreiro situado em Valença. O babalaxé é o responsável pela
guarda da casa religiosa durante
um certo período.
O homem é também uma centelha dessa essência divina e comunga de forma mais próxima
com ela por meio dos seus rituais.
Por ser parte do todo que forma o
mundo, a humanidade é parente
de tudo o que a cerca. Cada pessoa
é animada por uma energia que está sempre em circulação e se reúne
ao todo quando se encerra seu ciclo de vida. Daí porque a morte não
oferece medo. Ela é encarada como uma etapa do ciclo da vida.
“Se formos começar a fazer o
encadeamento dessa porção criadora que há em todas as coisas vamos descobrir que fazemos parte
MARCO AURÉLIO MARTINS
Tata Anselmo: busca da harmonia que evita desequilíbrios
FERNANDO AMORIM
Caetano: crença-base da religião devolve o homem à terra
de uma cadeia que dará no próprio
Zambi, como chamamos a divindade toda-poderosa, na nossa tradição. Daí porque o culto aos antepassados está presente no candomblé, afinal celebramos o que
faz parte da nossa própria essência”, destaca o tata de inquice Laércio Sacramento do Mansu Kilembekweto Lembafurama. A casa é
também conhecida como Terreiro
de Jauá e fica na localidade que leva o mesmo nome.
ESCOLHA – Um princípio básico
do candomblé é a sua relação comunitária. Os rituais, por exemplo,
que são o canal de comunicação
com o divino, acontecem num ambiente conjunto, incluindo o sentido de partilha, por meio da distribuição de comida.
“No princípio o poder supremo
cria a taquara, que é uma espécie
de cana ou bambu. A humanidade
sai dessa taquara, ou seja, é um mito simples para nos dar a noção de
comunidade”, aponta Caetano.
Mas fazer parte dessa comuni-
dade requer aceitação de responsabilidades. A primeira delas é a
crença de que cada um é responsável pelos seus próprios atos e, como se vive num grupo, as ações individuais terão conseqüências para todo o grupo.
“Você faz tudo por sua conta e
risco. Cada homem atua sobre seu
próprio destino. Quando você elabora um pensamento abre a porta
para atos que terão suas conseqüências. Trilhar o caminho do
bem ou do mal é uma escolha sua,
cujos resultados você terá que
aceitar”, explica o doutorando em
história social Jaime Sodré.
Ele é xicarangoma do Tanuri
Junçara, nome que se dá ao sacerdote músico na tradição angola, e
oloê do terreiro Bogum, de herança jeje. Esse título é para quem atua
como uma espécie de conselheiro
da casa.
Aceitar essa responsabilidade é
o primeiro passo para fazer parte
da comunidade. Essa é uma decisão muito particular. “Cabe a você
escolher a sua forma própria de
dialogar com o mundo que lhe cerca”, acrescenta Sodré.
Ao se decidir por fazer esse
compromisso, o primeiro passo é
percorrer um processo de autoconhecimento, para saber que lugar
ocupar na estrutura comunitária,
que é o terreiro.
“O candomblé não é uma religião de conversão. O chamado para ele é muito pessoal, individualizado e respeita-se o que cada um
carrega consigo. Acreditamos no
princípio de forças que são energias. Quando há uma sobrecarga
delas torna-se prejudicial. Pode-se, por exemplo, por conta dessa sobrecarga chegar até o candomblé devido a um problema de
saúde ”, completa o tata de inquice
Anselmo dos Santos, do terreiro
Mokambo, localizado no Trobogy.
A palavra-chave então passa a
ser equilíbrio, com as próprias forças que lhe movem e que a convivência comunitária vai reforçar “É
por isso que se fala em desequilíbrio quando há um afastamento
do grupo”, destaca Caetano.
Morte é porta para o eterno retorno
Para os cristãos, enquanto Deus
é o símbolo do bem, o demônio,
que é entendido mais
genericamente com forma
tenebrosa, é o próprio mal. Para
o candomblé, não há essa
personificação do que é
imperfeito ou malévolo.
“O mal está no ser humano
como uma escolha ou nas
imperfeições do que forma o
mundo. O mesmo oceano que é
tão belo e calmo, num
determinado momento pode se
tornar fonte de destruição. A
nossa busca é pela harmonia que
evita esses desequilíbrios”,
explica o tata de inquice
Anselmo dos Santos.
O religioso destaca que uma
das habilidades dada aos
homens é o livre-arbítrio. “Cada
um traz dentro de si a essência
do bem e do mal. O que fazer
com elas é uma decisão pessoal”,
salienta.
Tata Laércio afirma que não
consegue compreender quando
algum religioso do candomblé
reforça a personificação dessa
dicotomia. “É lamentável que
alguns líderes do candomblé
ainda aceitem esses
penduricalhos de tradições que
nada têM a ver com a nossa. Vejo
isso mais como uma questão
comercial, afinal o diabo
alimenta o medo”, alfineta.
Para se chegar à concepção
que o candomblé possui sobre a
morte é necessário partir da
idéia de um elo entre as coisas
que formam o mundo. Como
❛
“Cada um traz
dentro de si a
essência do bem e
do mal”
Tata Anselmo, do Terreiro
Mocambo ❚
nele se crê que tudo que tem
vida faz parte de um ciclo
ininterrupto, a morte é apenas
mais uma fase do movimento
vital.
“O homem possui em seu
corpo elementos que existem
também fora dele. Temos em nós
água, minerais. Assim, somos
formados pelas mesmas energias
que também dão vida a outras
matérias”, completa tata Laércio.
O antropólogo Vilson Caetano
lembra que a crença base no
candomblé é que ao morrer o
corpo humano acaba se
decompondo e se unindo à terra.
Já o que o faz respirar e o
mantém vivo, o emi, volta para o
poder supremo. Ele então o
distribui de volta.
“A diferença em relação ao
espiritismo, por exemplo, é que
esse retorno à vida está
destituído de identidade. É a
minha essência que volta a se
reunir ao ciclo da vida, mas sem
as minhas memórias”, diz.
O historiador Jaime Sodré
conta que aprendeu uma lição
preciosa com sacerdotes de
candomblé com quem conviveu
e convive. É a concepção de
como o princípio da sabedoria
não segue exatamente as noções
do tempo cronológico.
“Andava sempre me
perguntando sobre essas
questões e, na convivência com
os mais velhos de candomblé,
eles me chamavam a atenção
sobre como nascemos com um
conhecimento que nos permite
satisfazer às nossas necessidades
mesmo sem a fala. Quando se
vai envelhecendo se adquire
coisas próprias de criança, um
estágio que liberta das
experiências individuais e nos
deixa prontos para mergulhar
nesse oceano do todo”, completa
Sodré.
Para o historiador, é esse
entendimento que faz a morte
ser encarada no candomblé com
maior serenidade. “Ela na
verdade é apenas mais um dos
nossos muitos ciclos de vida. E
esse é apenas um dos muitos
exemplos que podem ser
encontrados sobre a sofisticação
filosófica de um povo que foi
tratado de forma preconceituosa
como primitivo”, destaca.
OMOLU
Dia: segunda-feira
Cor: vermelho rajado
de preto
Oferendas: porco, galinha
d’angola, comidas com bastante
dendê, bode e pipoca
14
|
ESPECIAL
| DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
❚
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
FOTOS MARCO AURÉLIO MARTINS
quer dizer...
Inquice | Divindades no
candomblé angola ❚
Voduns | Divindades no
candomblé de nação jeje ❚
Xicarangoma |Sacerdote
músico no candomblé de
nação angola ❚
Ebomi | Título das iniciadas
que já cumpriram todo o
ciclo de obrigações e que,
portanto, são consideradas
mais velhas na sabedoria ❚
Iroko | Orixá do candomblé
de nação ketu ❚
Folhas para a cura e comida são pontes entre o homem e o sagrado; elas são usadas para garantir a saúde física e espiritual e também prosperidade, ou seja, equilíbrio completo
Tata lubitu | Título no
candomblé angola que
significa “a chave” ou
“guardião dos segredos ❚
CULINÁRIA ❚ Os filhos-de-santo seguem as interdições alimentares próprias dos seus orixás. Além de ser uma
forma de reforçar essa relação, o alimento é parte do ritual e pertence ao domínio do sagrado
Comida para união de
ofertantes e ancestrais
FABIANA MASCARENHAS
[email protected]
Assim como a literatura, a música e
a dança, a culinária tem importância reconhecida no candomblé.
Para o povo-de-santo, a comida representa um elo entre o ofertante e
seus ancestrais e é por meio dela
que se consegue o equilíbrio necessário para se ter saúde.
“Nos terreiros de candomblé, a
comida é vista como veículo de
axé, veículo de força. Ela é uma forma de comunicação entre o filho-de-santo e seus ancestrais. É
oferecendo a comida ao seu respectivo orixá que nós pedimos
paz, saúde, amor e agradecemos
pelo que nos é ofertado”, explica o
pós-doutor em antropologia e diretor do Centro de Estudos da População
Afro-Indo–Americana
(Cepaia), Vilson Caetano.
De acordo com Caetano, que no
final do ano lançará um livro intitulado O banquete sagrado, no universo afro-brasileiro tudo remete à
comida, ao comer e aos utensílios
da cozinha.
“Para nós, o mundo é a representação de uma grande panela. O
céu é a tampa, a terra é o fundo da
panela e nós somos os grãos, as raízes, as folhas dentro dela”, afirma
Caetano.
Ele explica que há diversos mitos que explicam como a comida
passou a representar um símbolo
sagrado no candomblé. Um deles é
o mito da fome dos orixás.
Numa certa ocasião, conta, os
orixás passaram uma grande fome.
Depois de já terem recorrido a tudo, Exu – que é o mensageiro de todos os orixás existentes – consegue
recolher coquinhos de palmeira
(de dendê), e, a partir deles, os homens passaram a se comunicar
com os orixás.
“Desde então, a comida é uma
das principais formas de comunicação entre o filho-de-santo e seu
orixá. Por isso, é tão importante seguir corretamente as interdições
alimentares dos seus santos”, afirma Vilson Caetano.
As interdições citadas por Caetano variam de acordo com o orixá
que rege cada pessoa. Um filho de
Oxalá, pai de todos os orixás, por
exemplo, não come azeite de dendê. O de Exu detesta óleo de coco. O
de Obaluaê não come crustáceo. E
assim segue com os outros orixás.
QUIZIL AS – Cada um deles tem
suas preferências e repulsas e desobedecê-las significa tornar-se
suscetível a sanções. São as chamadas quizilas de santo, que é tudo aquilo que o orixá rejeita, causando uma reação negativa que
atinge as pessoas.
“Toda iniciação ao candomblé
passa por tabus alimentares. As
quizilas são proibições rituais que
têm uma única função: lembrar
ao iniciado a sua relação com
aquele ancestral. Seguir essas restrições é uma forma de reforçar a
identidade com o seu orixá”, expli-
❛
“A função do ebó
não é fazer o mal,
mas restabelecer o
equilíbrio”
Vilson Caetano, pós-doutor em
antropologia e diretor do
Centro de Estudos da População
Afro-Indo-Americana (Cepaia) ❚
ca o antropólogo.
A Maié da Casa de Oxumarê, Tânia Bispo, conta que depois que
passou a ser filha de Oxóssi teve
que deixar de comer tangerina.
“Sempre gostei muito e não sabia
dessa quizila do meu santo. Continuei comendo, mas toda vez que
isso acontecia eu passava mal.
Sentia mal-estar, azia, diarréia.
Conversei
com
a
minha
mãe-de-santo e foi aí que ela me
disse que Oxóssi não gostava de
coisa ácida. Tive que parar de comer”, conta.
As proibições, contudo, não se
restringem apenas à alimentação,
mas a tudo o que o Orixá rejeita.
Muitas delas está ligada a ações cotidianas, como passar atrás de corda de animal, não deixar ninguém
passar com fogo nas nossas costas,
não passar embaixo de escadas,
não pagar nem receber dinheiro
em jejum, entre outras restrições.
De acordo com o antropólogo
Vilson Caetano, os tabus alimentares não ocorre de forma aleatória e
está sempre associado à história
do Orixá. Conta o mito que Oxalá
não gosta de azeite de dendê porque, em um dos encontros dele
com Exu, este entornou um pote
de azeite de dendê sobre o Orixá.
“Os filhos de Oxalá também não
comem muito sal porque num
desses encontros, Exu amarrou o
sal nas costas de Oxalá e ele acabou
ficando corcunda”, diz Vilson.
Há, no entanto, aqueles que
afirmam não sentir nada ao desobedecer a esses tabus, mas ele avisa que nem toda quizila se manifesta de forma imediata.
EBÓ – “É preciso lembrar que a
quizila, em alguns casos, é como se
fosse uma ‘alergia’ natural, que comemos alguma coisa, e imediatamente temos uma reação alérgica,
mas há aquela que não sentimos
de imediato alguma reação. Não
podemos comer imaginando que
algo irá nos fazer mal, porque isso
atrai, mas é preciso respeitar os
santos e lembrar sempre que a comida é uma maneira de reforçar a
nossa relação com ele”, orienta.
Segundo ele, as oferendas gastronômicas, também chamadas
de ebós, são preparadas dentro de
rigorosos preceitos e colocadas
nas moradas de cada Orixá – Iemanjá vive no mar, Xangô habita as
pedras, Oxóssi, as matas, e Exu, as
encruzilhadas.
Não há um chef, como num restaurante, mas quem zela pelo fogão é a iabassê, que, dentro da rígida hierarquia do candomblé, detém o cargo vitalício de responsável pela cozinha.
O antropólogo explica que os
ebós não se restringem à alimentação e são uma série de rituais visando corrigir várias deficiências
na vida de um ser humano – saúde,
amor, prosperidade, trabalho profissional, equilíbrio, harmonia familiar, etc.)
“Toda oferenda é um ebó, mas
nem todo ebó é uma oferenda. Há
ebós de agradecimento, de limpeza, no qual se faz um pedido, enfim, há vários tipos”, esclarece.
A composição de cada ebó depende de sua finalidade e seus
componentes irão desde bebidas,
frutas, folhas, velas, adornos, alimentos secos , mel, dendê, louças,
artefatos de barro ou ágata.
Para o antropólogo, há uma visão errônea e deturpada de algumas pessoas em relação ao sentido
do ebó. “Ao contrário do que muita
gente pensa e acredita, a função do
ebó não é fazer o mal, mas restabelecer o equilíbrio”, afirma Vilson
Caetano.
ADAPTAÇÃO ❚
Candomblé: invenção brasileira
ARQUIVO A TARDE
MEIRE OLIVEIRA
[email protected]
OXOSSI
Dia: quinta-feira
Cor: verde
Oferendas: acaçá, água,
feijão fradinho, milho amarelo
com côco.
Embora da mesma origem, os cultos às divindades de matriz africana diferem em vários aspectos. Na
África e no Brasil, a época, o contexto social, o poder político e outros fatores são determinantes na
visibilidade ou ausência de alguns
orixá, inquices ou voduns. Segundo o doutorando em História Social e xicarangoma do Tanuri Junçara e oloê do Bogum, Jaime Sodré
a aparição de cada divindade é
oportuna. “A dinâmica da sociedade é que vai caracterizar os mais ou
menos atuantes”.
A religião conhecida como candomblé é uma invenção tipicamente brasileira. É fruto da adaptação produzida pelos negros trazidos na época da escravidão que
se assemelha às religiões praticadas no continente africano. São
três as principais nações que norteiam a prática no Brasil: ketu, jeje
e angola. Na Bahia, os contatos
mais intensos foram com Angola e
Congo, desde o século XVI. Depois
vieram os negros daomeanos (jejes) e os iorubás (nagôs).
Dentre as principais diferenças
está a forma de cultuar. Enquanto
na África cada etnia adora uma divindade, no Brasil, no mesmo lugar são feitas cerimônias para várias delas. A conjuntura de perseguição favoreceu o culto coletivo
como forma de resistência.
A crença superou as diferenças
entre as etnias em prol da sobrevivência de todos e contra o inimigo
comum. É neste ambiente que
Divindidades assumem características diferentes de acordo com sua nação de origem
também negros e simpatizantes
(não negros) são unidos pela fé.
“Os adeptos formaram uma irmandade no candomblé na Bahia
que contribuiu para a sobrevivência de terreiros como Casa Branca,
Gantois e Afonjá”, afirma Sodré.
Da união, surgiu a estratégia de
preservar a religião: a associação
religiosa. As cerimônias paralelas
com as do catolicismo foram o
grande trunfo que manteve o candomblé.
Garantida a permanência, o
contexto vai definir a sobrevivência de cada divindade. Se na África
os deuses da agricultura eram venerados, aqui perderam prestígio.
Não existia o interesse em pedir
boa colheita em benefício do
opressor. Segundo Sodré, “a preferência se deu por divindades guerreiras, com espírito de libertação.
Alguns ganharam prestígio devido
ao indivíduo que o representava
ou adquiriram simpatia saindo do
espaço restrito do terreiro pela força de seu mito”.
DIVERSIDADE– E quando se torna popular, a sobrevivência é garantida, que, de acordo com Sodré,
depende da eficiência da divindade em resolver conflitos. Dentre os
primeiros colocados no rol da preferência estão: Oxalá, Iansã, Ie-
manjá, Oxóssi, Oxum e os Ibejis.
Obaluaê, Olokum, Mameto Kalunga, Azanadô,Kpo, Samba, Obá, Ossain, Zazi, Katendê estão entre os
raros.
Nos cultos às divindades, os terreiros obedecem um panteão obrigatório, além das cerimônias específicas de cada casa. Estas últimas
são celebradas de forma secreta.
“Ewá, por exemplo, era exclusivo
do Gantois porque as mulheres
que vieram da região onde existia
um culto dedicado a ela se uniram
lá”, explica ebomi Cidália que é filha de Iroko, outro orixá de culto
raro.
O repasse do conhecimento é
um segredo preservado pela maioria dos guardiões da religião. “Outros inquices somem pela falta de
materiais e locais para culto. Outros, nem chegaram aqui como
Kianda (sereia), Nkosi, Nzazi”,
conta o presidente da Acbantu e tata lubitu do Terreiro Unzó Kwa
Mpaanzo, Tata Kommannanjy.
O jeito de lidar com cada inquice, vodun ou orixá influenciou na
seleção. Cada um exige tratamento
diferenciado em relação à oferenda, cântico, nome, cor, e outros aspectos, que podem mudar de acordo com a etnia e suas variações decorrentes do dinamismo das religiões de matriz africana.
Esses conhecimentos, geralmente, são dominados por poucas
pessoas que os repassam através
da vivência quando assim desejam. Neste contexto, as festividades ou ciclo de obrigações mantêm viva a religião e os toques funcionam como veículos de preservação. “Neles são perpetuados os
nomes, o mito, além dos cantos e
do ritmo. É a melhor memória. Já
outras divindades permanecem só
na lembrança, pois completam o
ciclo ou faltam elementos para
realização do culto”, afirma Sodré.
Em muitos locais da África as religiões de matriz africana são minoria. Perderam o referencial com
a imposição das religiões como catolicismo e islamismo. “No Brasil,
o candomblé é ligado a identidade
do país. Muita gente vem aprender
o culto à Oxóssi que eles não têm
mais. Ficam encantados como
preservamos e respeitamos a religião”, lembra ebomi Cidália.
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006
❚
DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA |
ESPECIAL
15
|
ARESTIDES BAPTISTA 1980
ENCONTRO ❚ Na música e nas telas mora
quer dizer...
a amizade de artistas com o candomblé
Obá | Integrantes de um
conselho de ministros do
culto a Xangô no Ilê Axé
Opô Afonjá. Tem também
um orixá que possui esse
nome ❚
A arte abraça
o axé numa
troca que
vem de longe
CLAUDIO LEAL
[email protected]
Aurelina Cândida, dona Sinhá,
morava no Bângala, rua de casarões que se escoram uns nos outros, na incestuosidade arquitetônica da velha Bahia. Vez e meia, ao
lado, na delegacia, nasciam gritos
doídos. Sinhá ouvia. Na década de
1910, os terreiros de candomblé resistiam a perseguições diárias. Negros presos em rituais eram levados à autoridade policial. Mas alguns se rebelavam.
Certo dia, um deles, em fuga, resolveu pular o muro e cair na casa
de dona Sinhá. Assustada, mas
compadecida, ela ajudou o filho-de-santo a fugir, em vez de berrar a presença do delegado. Esse
exemplo de tolerância se cristalizou nos olhos de um dos filhos. Você o conhece, pode tirar o chapéu:
é Dorival Caymmi.
Nascia naquele instante uma
relação de enlevo e de mistério. Em
criança, o compositor se embebeu
das tradições africanas resistentes
na Bahia. “A ligação com o candomblé vem desde a infância. Ele
participava de festas populares e
havia uma curiosidade muito
grande entre os rapazes a respeito
dos terreiros”, conta Stella Caymmi, neta e biógrafa de Dorival. Até
hoje, ele prefere chamar terreiro de
roça, como em antanho. É contra
adulteração.
CONTATOS – A história da relação
dos terreiros com artistas e intelectuais está por ser escrita. As marcas
dessa troca simbólica, como dizem os sabidos, são sentidas na
música, na literatura, nas ciências
sociais e nas artes plásticas. Uma
narrativa das perseguições religiosas e políticas em Salvador explicaria, em parte, essa atração mútua.
A geração do sociólogo Édison
Carneiro (autor de Candomblés da
Bahia) e do escritor Jorge Amado
iniciou a batalha para romper a criminalização dos terreiros. No
aperto, encontravam refúgio nos
domínios das mães-de-santo. Para
evitar uma prisão política, na ditadura do Estado Novo, Carneiro foi
acolhido por mãe Aninha no Axé
Opô Afonjá. E não faltam exemplos
de comunistas que pegaram o caminho da roça.
O candomblé, porém, influenciou mais os músicos do que qualquer militante. “No caso de Maria
Bethânia, ela dialoga com a representação mítica de Iansã a partir
dos anos 70, tanto nas vestes como
no repertório”, esclarece Marlon
Passos, mestrando do Centro de
Estudos Afro-Orientais (Ceao),
que desenvolve a pesquisa Oiá-Bethânia – os mitos de um orixá nos
ritos de uma estrela. Antes dela,
Clara Nunes abrira caminhos.
Em Santo Amaro, ainda adolescente, a cantora freqüentava os rituais do caboclo de dona Edith do
Prato. Aprofundaria sua experiência religiosa em 1973, quando o
poeta Vinícius de Morais a apresentou a Mãe Menininha do Gantois, que a iniciou no candomblé e
indicou seu orixá: Iansã, também
conhecida por Oiá, mulher de Xangô, senhora dos ventos e das tempestades. Segundo Marlon, “ela
passa a tratar Mãe Menininha como uma divindade, a quem consultava para tomar decisões”.
A relação de Dorival Caymmi
com Mãe Menininha se assemelhava à de Bethânia. Em 1972, ele
lança o disco Caymmi, que traz na
capa um desenho dos instrumentos de Xangô. Gravou pela primeira vez a Oração de Mãe Menininha.
Mas não faltou quem criticasse a
canção. “Ele pôs Mãe Menininha
na categoria de santa, fez uma oração, e foi mal compreendido. Valorizava, sim, a cultura negra, coisa
que desenvolvia desde a década de
30, inclusive com a ajuda de Carmen Miranda”, avalia Stella.
Curioso é que o compositor
pertence a outra casa, o Ilê Axé Opô
Afonjá, onde é obá de Xangô. Pouco conhecido, para não dizer semi-inédito, há um samba de sua
autoria em homenagem a Mãe
Stella, sem a força da canção dedicada a Menininha.
Filha de Oxum, a ialorixá do
Gantois continua a ser reverenciada por Bethânia. “Ela se considera
uma protegida de Oxum, graças a
Menininha”, observa Marlon. Quase ninguém percebeu este detalhe
na hora de comentar o novo show
da intérprete, Dentro do mar tem
rio, dedicado aos rios e aos mares.
Oxum é senhora das águas. E, em
alguma parte, Menininha é a segunda voz de Bethânia.
África e Bahia, na
arte de Mestre Didi
Reconhecida em galerias
internacionais, a obra de Mestre
Didi ainda não alcançou a
merecida divulgação na Bahia.
Mas novos estudos sobre sua
arte, que analisam a apropriação
estética de elementos dos cultos
da ancestralidade africana,
contribuem para a compreensão
do artista que consegue
preservar a tradição numa arte
de vanguarda. Entre eles, está A
influência da religião
afro-brasileira na obra
escultórica de Mestre Didi, do
doutorando em história social
Jaime Sodré. Originalmente uma
dissertação de mestrado, o livro
será lançado no dia 29 de
novembro, às 18h, na Galeria
Canizares, da Escola de Belas
Artes da Ufba. Contou com o
apoio da Fundação Palmares e
foi editado pela Edufba.
“Procurei estudar as
possibilidades de intermediação
entre o sagrado e a inspiração
pelo sagrado. De certa forma, é
um reconhecimento à afirmação
de uma arte fundada na cultura
afrodiaspórica, que,
curiosamente, tem um
reconhecimento maior fora da
Bahia”, explica Sodré.
Nascido em 1916, Mestre Didi
foi iniciado aos 8 anos como Kori
Kowê Olukotun no culto dos
ancestrais Egun, na Ilha de
Itaparica. Em 1936, foi
confirmado supremo sacerdote
do culto de Obaluaê, no Ilê Axé
Opô Afonjá. Sua contribuição à
cultura brasileira não se resume
à arte escultórica. Publicou, em
1946, Yorubá tal qual se fala,
dicionário iorubá-português, e é
também autor de Contos negros
da Bahia, prefaciado por Jorge
Amado. Esculturas suas foram
abrigadas pelo Museu Picasso,
em Paris, e receberam uma sala
especial na XXIII Bienal
Internacional de São Paulo, em
1996, aos 80 anos.
Sodré destaca o caráter
vanguardista de Mestre Didi:
livre de amarras folclóricas,
soube valorizar a cultura
afro-brasileira. Os exemplos
baianos não são vastos, mas
incluem também o pintor
Rubem Valentim e Hélio de
Oliveira.
“Ele executa uma recriação
que não recebe o aparato místico
porque vai ser exibido fora do
lugar de culto”, avalia Sodré. À
época da exposição de esculturas
na galeria Prova do Artista,
Mestre Didi definiu a sua fonte
de inspiração: “Os orixás do
Panteão da Terra são os que nos
alimentam e nos ajudam a
manter a vida. Os meus
trabalhos estão inspirados na
natureza, na Mãe Terra-Lama,
representada pela orixá Nanã,
patrona da agricultura.”
Egun | Ancestrais que já
partiram para o mundo
espiritual e que, na Bahia,
tem um culto específico ❚
programação
Hoje | 15 horas – 27ª
Marcha Zumbi dos
Palmares, com saída do
Campo Grande (centro de
Salvador), organizada pela
Coordenação Nacional de
Entidades Negras (Conen);
16 horas – Caminhada do
Fórum de Entidades Negras,
com saída do Curuzu, na
Liberdade; 19 horas –
Câmara Municipal: entrega
da medalha Zumbi dos
Palmares ao ator Lázaro
Ramos. Na sede da Câmara,
centro de Salvador. ❚
Amanhã | 16 horas – O
Conselho Estadual da
Cultura e a Secretaria da
Cultura do Estado da Bahia
prestam homenagem a Mãe
Hilda Jitolu, ialoarixá do
Terreiro Ilê Axé Jitolu, e ao
ator Lázaro Ramos. No
Palácio da Acxlamação,
centro de Salvador. ❚
De terça a sábado | 6ª Feira
das Nações Africanas, que
este ano trabalha o tema
“Juventude Negra:
Ancestralidade e Políticas
Públicas”. A partir das 14
horas no Ceafro, Largo 2 de
julho. ❚
Maria Bethânia se rendia à força e ao carisma de Menininha
Existencialistas no reino dos orixás
Os terreiros baianos seduziram
três dos intelectuais franceses
mais influentes do século XX:
Albert Camus, Sartre e Simone
de Beauvoir. Sem inspirar obras
literárias, as experiências
deitaram em cartas e diários.
Em 1949, Camus viajou pela
América do Sul. Aborrecido,
vencido da vida, doido pra se
matar. Coisa de existencialista
durão. Na capital baiana, em 24
de julho, visitou um terreiro em
Itapuã. “Os ritos degradados
exprimem-se em danças
medíocres”, observou. Sentiu-se
entediado até que surgiu “um
grupo de jovens negras” em
estado semi-hipnótico. “Uma
delas, alta e esguia, me encanta...
Essa Diana negra é de uma graça
infinita. E quando ela dança,
essa graça infinita extraordinária
não se desmente.” Ficou por aí.
Voltou ao Hotel da Bahia e
tomou uísque numa boate “triste
como a morte”.
A experiência do casal Sartre e
Simone, em 1960, mereceu notas
mais alegres. No terreiro de Mãe
Senhora, descobriram seus
orixás. Em carta a Nelson Algren
– com todo o respeito, o escritor
que lhe apresentou ao orgasmo –
Simone vibrou: “A mãe-de-santo
descobriu em Sartre um filho do
mais poderoso dos deuses e, em
mim, uma filha da mais adorável
deusa.” Para quem acha que Mãe
Senhora fez uma média com o
casal de escritores: “Todos nos
garantem que, se ela assim o diz,
não pode subsistir qualquer
dúvida, é verdade verdadeira.”
Hum, hum.
Quinta-feira (dia 23/11) | 15
horas – Mesa redonda com
o tema Nzila Mu ngongo –
O caminho do mundo –
Terreiro São Jorge da
Goméia, Lauro de Freitas;
Lançamento da 1ª
Exposição do Museu
Comunitário Mãe Mirinha
de Portão Tema “Nzila”; ❚
Até dia 24 (sexta-feira) | A
Escola Aristides Novis, no
Jardim Federação, promove
a Semana da Consciência
Negra, com o projeto
didático A escola vai à
África. Aberto à
comunidade, o evento
inclui palestras, oficinas de
trança afro e visita ao
Terreiro Ilê Axé Oxumaré,
na Federação ❚
ARQUIVO A TARDE
OXUMARÉ
Dia: quinta-feira
Cor: arco-íris
Oferendas: batata doce,
Mestre Didi: trabalhos inspirados na Mãe Terra-Lama, representada pela orixá Nanã, patrona da agricultura
banana
16
|
ESPECIAL
| DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
❚
SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 20/11/2006