- Rede Mãos Dadas

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- Rede Mãos Dadas
Quando não se envolver na defesa de direitos?
Elsie Gilbert
1. Quando o direito não for legítimo
Ao pensar sobre o conteúdo da revista Mãos Dadas, Edição 17, “Garantindo os Direitos da Criança em
Defesa da Vida”, tomei como base dois textos bíblicos. O primeiro foi o relato da conversa de Deus com
Caim após o primeiro homicídio da história da humanidade registrado em Gênesis 4, e o segundo foi a
parábola sobre a viúva insistente registrada em Lucas 18.
Gênesis, capítulo 4, comentado no artigo Por que os cristãos precisam se envolver na defesa de
direitos?, mostra um Deus que se encarrega de lidar com o ser humano após a queda, quando a maldade
já faz parte constante das relações humanas, uma maldade que procede do interior do ser humano. Ao
mesmo tempo em que Deus é severo e pronuncia uma punição dura contra Caim, ele também busca
uma forma de conter a violência. No artigo, eu concluí:
“Porém Deus estabeleceu uma medida de contenção de danos: quem matasse
Caim sofreria sete vezes a vingança. Por quê? Porque a vida é um direito
fundamental para Deus. Se qualquer um pudesse matar Caim, qualquer um
poderia matar aquele que matou Caim, criando um efeito dominó destruidor
baseado no espírito de vingança.”
Ou seja, Deus concedeu a Caim um privilégio, ou seria melhor dizer, um favor, fruto de sua grande
misericórdia. Caim não merecia ser atendido em sua queixa. Não era um direito a ser reivindicado e
nem mesmo depois que Deus o ouviu e concedeu-lhe proteção especial, esta não era privilégio
adquirido que ele pudesse passar de geração em geração.
Empolgada com esta descoberta, (pois sempre achei estranho que Deus tivesse ouvido a queixa de
Caim), continuei a ler o texto. Rapidamente chegamos em Lameque, um descendente direto de Caim. E
aqui, sete gerações longe da presença de Deus, nós encontramos a violência já em estado avançado:
“E disse Lameque às suas mulheres: Ada e Zilá, ouçam-me; mulheres de
Lameque, escutem minhas palavras: Eu matei um homem porque me feriu e um
menino porque me machucou. Se Caim é vingado sete vezes, Lameque o será
setenta vezes sete”. (Gênesis 4.23-24.)
Você percebe a atitude prepotente de Lameque? Ele está se gabando de seu poder, de sua virilidade.
“Ninguém dá conta de mim!” E no seu delírio e vanglória ele alega um direito, direito supostamente
herdado de Caim. Ele julga que recebeu por herança o direito de matar sem ter de sofrer vingança!
Uma espécie de imunidade vitalícia. Em outras palavras, ele transformou um favor de Deus em um
direito exclusivo seu!
Como esse texto é real para nós hoje em dia! Existem pessoas, grupos de pessoas, até nações, que
rogam para si direitos. Direitos exclusivos, vitalícios, adquiridos na base da força bruta ou do abuso de
poder. Não é isto que tem acontecido com o nosso congresso? Eles não conseguiram argumentar em
favor de um aumento de salário absurdo em um contexto em que já recebem salários e benefícios
altíssimos quando comparados aos salários e benefícios do cidadão comum? Preste atenção no discurso
deles. Eles rogam para si mesmos muitos “direitos”.
Portanto, toda vez que ouvirmos um discurso de reivindicação de algum direito, é importante
pensarmos de forma crítica: quem está alegando tal direito? Ele vem de um grupo de pessoas que ocupa
posição vulnerável na sociedade? Em que se baseia o seu direito? Ele reflete algum valor fundamental
do Reino de Deus? Não sejamos ingênuos, há sempre um bom número de Lameques rogando para si
mesmos direitos com toda a arrogância de pessoas que se julgam iguais a Deus.
2. Quando houver abusos
Voltemos ao texto A ética da viúva. Em Lucas 18, Jesus nos conta a história de uma viúva que consegue
fazer valer a justiça por sua persistência. Essa parábola está dentro de um contexto em que era óbvio
para todos que fazer justiça envolvia zelar pelas viúvas, órfãos e pobres daquela sociedade.
O Antigo e o Novo Testamento alertam o povo de Deus incansavelmente para o seu dever com os mais
necessitados. Se você fizer uma busca usando as três palavras (viúvas, órfãos e pobres), encontrará
centenas de referências bíblicas. Certa vez, pedi a um grupo de alunos de um seminário para ler cada
uma dessas referências e decidir se aquela passagem usava o termo de forma positiva ou negativa. A
grande maioria das passagens bíblicas foi descrita pelos seminaristas como textos que expressam uma
visão benevolente de Deus para com a viúva, o órfão e o pobre. Não resta duvidas, como cristãos,
devemos sempre zelar pelo bem estar deles. “A religião que Deus, o nosso Pai aceita como pura e
imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo
mundo.” (Tiago 1.27.)
Tendo em vista esse contexto, fiquei muito surpresa quando descobri um trecho das “Constituições
Apostólicas”, texto compilado pelos líderes da igreja primitiva, provavelmente no segundo século
depois de Cristo, exortando a igreja contra um abuso cometido por certas viúvas:
“Porque há certas viúvas cujo único negócio é o seu próprio ganho; e já que
pedem sem vergonha e recebem sem nunca se satisfazerem, acabam por fazer
com que todos se sintam mais atrasados no ato de dar. Porque quando deveriam
estar contentes com a provisão que recebem da Igreja, tendo desejos moderados,
pelo contrário, correm de vizinho em vizinho, importunando-os, ajuntando para si
um bocado de dinheiro, e fazem empréstimos a juros altos, e têm boa vontade
apenas para com Mamon, cujo bornal é o seu deus.” (Constituições Apostólicas,
Livro 3, Seção 1, VII).
Será que é possível uma coisa dessas? Uma pessoa em situação difícil e vulnerável, conseguir dar uma
guinada de forma a explorar essa situação desfavorável com intenções impuras? Será que há pessoas,
grupos de pessoas, organizações, obtendo lucro com a miséria dos outros? É claro que sim! Um caso
evidente disso é a exploração comercial sexual de milhares de meninas e adolescentes brasileiras. Ou
ainda mais comum, é o uso que certas mães fazem de seus próprios filhos para nos comover e conseguir
a nossa esmola. Existem maneiras mais organizadas de se fazer isso, por exemplo: a investida do setor
de armas de fogo contra medidas que diminuam seu lucro como o desarmamento voluntário; ou as
campanhas de latifundiários contra o MST; ou a própria corrupção interna do MST, pervertendo assim os
seus primeiros ideais.
O que fazer, diante dessas coisas? Refletir e agir com sabedoria. Precisamos defender o direito dos
pobres, das crianças, das mulheres em situação de violência doméstica, dos povos indígenas, dos
trabalhadores rurais etc. Mas para fazê-lo temos de gastar tempo com eles, descobrir quais são suas
reais necessidades, refletir sobre as regras de dominação operantes naquele meio, entender bem o
contexto e pedir o discernimento do Espírito Santo para saber como agir. A tarefa não é simples, mas é
urgente.
*Elsie Gilbert é jornalista e missionária da Equip Inc. no Brasil. É editora da revista Mãos Dadas desde o
início do projeto em novembro de 2000.
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