COLETÂNEA DE POESIA BRASILEIRA COLÉGIO PEDRO II

Transcrição

COLETÂNEA DE POESIA BRASILEIRA COLÉGIO PEDRO II
COLETÂNEA
DE POESIA
BRASILEIRA
COLÉGIO PEDRO II - SCII
9º ANO
1
Apresentação
A boa prática pedagógica recomenda que o ensino de Língua Portuguesa deve ter como meta
desenvolver as habilidades linguísticas e discursivas dos alunos, tornando-os usuários produtivos da língua.
Nesse sentido, o trabalho com os gêneros textuais constitui um interessante ponto de partida. Essa
abordagem pedagógica tem a vantagem de permitir aos alunos compreenderem o mecanismo de
funcionamento dos diversos gêneros. Em decorrência disso, os discentes tendem a aprimorar sua capacidade
de intervenção crítica e criativa nos próprios gêneros em função das diferentes demandas que surgem na
dinâmica social.
Sejam eles literários ou não literários, a principal característica dos gêneros textuais é sua capacidade
de adaptação e metamorfose. Se por um lado os gêneros apresentam marcas linguístico-discursivas que os
distinguem, não se ignora o fato de que eles dialogam o tempo todo, além de se apropriarem de
características de outros gêneros. Tal plasticidade fica evidente, por exemplo, no poema narrativo, gênero
híbrido que continua atuante no mundo contemporâneo. Nesse gênero, o trabalho com as múltiplas
dimensões da linguagem - típico da poesia - ganha vivacidade ao ser confrontado com o potencial de contar
histórias -inerente à narratividade.
Apostando no potencial pedagógico do encontro entre os diferentes gêneros textuais, a equipe de
Língua Portuguesa (Campus São Cristóvão II) do Colégio Pedro II elaborou a presente coletânea,
constituída por poemas narrativos. É importante destacar que estamos usando a terminologia “poemas
narrativos” em sentido amplo, que engloba não apenas poemas prototipicamente narrativos, tais como I-Juca
Pirama, Cobra Norato e Romanceiro da Inconfidência, como outros poemas, de menor extensão, nos quais
se destacam ações encadeadas numa sequência temporal, em que o eu lírico muitas vezes se apresenta como
personagem e/ou narrador.
Estabelecida a narratividade como critério norteador da coletânea, buscou-se fazer da variedade a sua
principal característica. Foram incluídos diferentes autores, pertencentes a diferentes estilos literários, numa
teia que enreda poemas como “Namoro a cavalo”, de Álvares de Azevedo; “Máquina breve”, de Cecília
Meireles; “Pequena crônica policial”, de Mário Quintana; e “O pavão invejoso”, de Ferreira Gullar. Os
poemas narrativos mais longos, em função do limite de páginas, não constam da coletânea. O leitor
interessado nesses poemas poderá consultar a lista de sugestões de leitura, incluída na parte final da
publicação.
Além da variedade de autores e estilos, foram incluídas também algumas letras de música nas quais a
narratividade desponta como traço marcante, como “Meu guri”, de Chico Buarque; e “Eduardo e Mônica”,
letra de autoria de Renato Russo, que ficou famosa na performance da banda Legião Urbana. Apesar das
polêmicas teóricas que ora incluem ora excluem a letra de música do universo da poesia, acreditamos que
seu acolhimento, na coletânea, é uma forma de levar os alunos a refletirem sobre os pontos de contato entre
os dois universos.
Marcelo de Souza Pereira
2
SUMÁRIO
Domingo no parque
Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones
Geni e o zepelim
Marvin
O calhambeque
Eduardo e Mônica
Vital e sua moto
Bastidores
Meu guri
Morte do leiteiro
Caso do vestido
Máquina breve
Namoro a cavalo
A serra do rola-moça
Sete anos de pastor
A valsa
Poema tirado de uma notícia de jornal
Nel mezzo del camin
Pequena crônica policial
Circulo vicioso
O pavão invejoso
Porquinho-da-índia
Balõezinhos
Trilha Sonora
Romance LIII ou das palavras aéreas
Ismália
Anhanguera
p. 04
p. 05
p. 06
p. 07
p. 08
p. 09
p. 10
p. 10
p. 11
p. 12
p. 13
p. 15
p. 15
p. 16
p. 16
p. 17
p. 18
p. 18
p. 19
p. 19
p. 20
p. 20
p. 21
p. 22
p. 23
p. 24
p. 25
3
DOMINGO NO PARQUE
Gilberto Gil
O rei da brincadeira
Ê, José!
O rei da confusão
Ê, João!
Um trabalhava na feira
Ê, José!
Outro na construção
Ê, João!...
A semana passada
No fim da semana
João resolveu não brigar
No domingo de tarde
Saiu apressado
E não foi pra Ribeira jogar
Capoeira!
Não foi pra lá
Pra Ribeira, foi namorar...
O José como sempre
No fim da semana
Guardou a barraca e sumiu
Foi fazer no domingo
Um passeio no parque
Lá perto da Boca do Rio...
Foi no parque
Que ele avistou
Juliana
Foi que ele viu
Foi que ele viu Juliana na roda com João
Uma rosa e um sorvete na mão
Juliana seu sonho, uma ilusão
Juliana e o amigo João...
O espinho da rosa feriu Zé
(Feriu Zé!) (Feriu Zé!)
E o sorvete gelou seu coração
O sorvete e a rosa
Ô, José!
A rosa e o sorvete
Ô, José!
Foi dançando no peito
Ô, José!
Do José brincalhão/ Ô, José!...
O sorvete e a rosa
Ô, José!
A rosa e o sorvete
Ô, José!
Oi girando na mente
Ô, José!
Do José brincalhão
Ô, José!...
Juliana girando
Oi girando!
Oi, na roda gigante
Oi, girando!
Oi, na roda gigante
Oi, girando!
O amigo João (João)...
O sorvete é morango
É vermelho!
Oi, girando e a rosa
É vermelha!
Oi girando, girando
É vermelha!
Oi, girando, girando...
Olha a faca! (Olha a faca!)
Olha o sangue na mão
Ê, José!
Juliana no chão
Ê, José!
Outro corpo caído
Ê, José!
Seu amigo João
Ê, José!...
Amanhã não tem feira
Ê, José!
Não tem mais construção
Ê, João!
Não tem mais brincadeira
Ê, José!
Não tem mais confusão
Ê, João!...
4
ERA UM GAROTO QUE COMO EU AMAVA OS BEATLES E OS ROLLING STONES
Engenheiros do Hawaii
Era um garoto que como eu
Amava os beatles e os rolling stones
Girava o mundo sempre a cantar
As coisas lindas da américa
Era um garoto que como eu
Amava os beatles e os rolling stones
Girava o mundo, mas acabou
Fazendo a guerra no vietnã
Não era belo, mas mesmo assim
Havia mil garotas afim
Cantava help and ticket to ride
Oh! Lady jane e yesterday
Cabelos longos não usa mais
Não toca a sua guitarra e sim
Um instrumento que sempre dá
A mesma nota, ra-tá-tá-tá
Cantava viva à liberdade
Mas uma carta sem esperar
Da sua guitarra, o separou
Fora chamado na américa
Não tem amigos, não vê garotas
Só gente morta caindo ao chão
Ao seu país não voltará
Pois está morto no vietnã
Stop! Com rolling stones
Stop! Com beatles songs
Mandado foi ao vietnã
Lutar com vietcongs
Stop! Com rolling stones
Stop! Com beatles songs
No peito, um coração não há
Mas duas medalhas sim
Ratá-tá tá tá, tatá-rá tá tá
Ratá-tá tá tá, tatá-rá tá tá
Ratá-tá tá tá, tatá-rá tá tá
Ratá-tá tá tá
Ratá-tá tá tá, tatá-rá tá tá
Ratá-tá tá tá, tatá-rá tá tá
Ratá-tá tá tá, tatá-rá tá tá
Ratá-tá tá tá
Ra-tá-tá tá-tá, ra-tá-tá tá-tá
Ra-tá-tá tá-tá, ra-tá-tá tá-tá
5
GENI E O ZEPELIM
Chico Buarque
De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni!
Joga pedra na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!
Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geleia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo: "Mudei de ideia!"
Quando vi nesta cidade
Tanto horror e iniquidade
Resolvi tudo explodir
Mas posso evitar o drama
Se aquela formosa dama
Esta noite me servir
Essa dama era Geni!
Mas não pode ser Geni!
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni!
Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
(E isso era segredo dela)
Também tinha seus caprichos
E ao deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai, Geni!
Vai com ele, vai, Geni!
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni!
Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!
Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!
6
MARVIN
Titãs (Compositor: R. Dunbar / G. N. Johson / Nando Reis / Sérgio Britto)
Meu pai não tinha educação
Ainda me lembro, era um grande coração
Ganhava a vida com muito suor
Mas mesmo assim não podia ser pior
Pouco dinheiro pra poder pagar
Todas as contas e despesas do lar
Mas Deus quis vê-lo no chão
Com as mãos levantadas pro céu
Implorando perdão
Chorei, meu pai disse: "Boa sorte",
Com a mão no meu ombro
Em seu leito de morte
E disse
"Marvin, agora é só você e
não vai adiantar
Chorar vai me fazer sofrer"
Três dias depois de morrer
Meu pai, eu queria saber
Mas não botava nem um pé na escola
Mamãe lembrava disso a toda hora
Todo dia antes do sol sair
Eu trabalhava sem me distrair
Às vezes acho que não vai dar pé
Eu queria fugir, mas onde eu estiver
Eu sei muito bem o que ele quis dizer
Meu pai, eu me lembro, não me deixa esquecer
Ele disse
"Marvin, a vida é pra valer
Eu fiz o meu melhor
E o seu destino eu sei de cor"
E então um dia uma forte chuva veio
E acabou com o trabalho de um ano inteiro
E aos treze anos de idade eu sentia
todo o peso do mundo em
minhas costas
Eu queria jogar mas perdi a aposta, e
Trabalhava feito um burro nos campos
Só via carne se roubasse um frango
Meu pai cuidava de toda a família
Sem perceber segui a mesma trilha
Toda noite minha mãe orava
"Deus, era em nome da fome
que eu roubava"
Dez anos passaram, cresceram
meus irmãos
E os anjos levaram minha mãe
pelas mãos
Chorei, meu pai disse: "Boa sorte"
Com a mão no meu ombro
Em seu leito de morte
Ele disse
"Marvin, agora é só você
E não vai adiantar
Chorar vai me fazer sofrer".
"Marvin, a vida é pra valer
Eu fiz o meu melhor
E o seu destino eu sei de cor".
7
O CALHAMBEQUE
Roberto Carlos (Compositor: John D. Loudermilk / Gwen Loudermilk - Versão: Erasmo Carlos)
Mandei meu cadillac pro mecânico outro dia
Pois há muito tempo um conserto ele pedia
Como vou viver sem meu carango pra correr
Meu cadillac, bip, bip, quero consertar o cadillac
Com muita paciência o rapaz me ofereceu
Um carro todo velho que por lá apareceu
Enquanto o cadillac consertava eu usava
O calhambeque, bip, bip, quero buzinar o calhambeque
Saí da oficina um pouquinho desolado
Confesso que estava até um pouco envergonhado
Olhando para o lado com a cara de malvado
O calhambeque, bip, bip, buzinei assim o calhambeque
E logo uma garota fez sinal para parar
E no meu calhambeque fez questão de passear
Não sei o que pensei, mas eu não acreditei
Que o calhambeque, bip, bip, o broto quis andar no calhambeque
E muitos outros brotos que encontrei pelo caminho
Falavam "que estouro, que beleza de carrinho"
E fui me acostumando e do carango fui gostando
O calhambeque, bip, bip, quero conservar o calhambeque
Mas o cadillac finalmente ficou pronto
Lavado, consertado, bem pintado, um encanto
Mas o meu coração na hora exata de trocar
O calhambeque, bip, bip
Meu coração ficou com o calhambeque
8
EDUARDO E MÔNICA
Renato Russo
Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?
Ela falava coisas sobre o Planalto Central
Também magia e meditação
E o Eduardo ainda tava no esquema
Escola, cinema, clube, televisão
Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar
Ficou deitado e viu que horas eram
Enquanto Mônica tomava um conhaque
No outro canto da cidade, como eles disseram
E mesmo com tudo diferente, veio mesmo, de repente
Uma vontade de se ver
E os dois se encontravam todo dia
E a vontade crescia, como tinha de ser
Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer
E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer
Um carinha do cursinho do Eduardo que disse
"Tem uma festa legal, e a gente quer se divertir"
Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia
Teatro, artesanato, e foram viajar
A Mônica explicava pro Eduardo
Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar
Festa estranha, com gente esquisita
"Eu não tô legal", não agüento mais birita"
E a Mônica riu, e quis saber um pouco mais
Sobre o boyzinho que tentava impressionar
E o Eduardo, meio tonto, só pensava em ir pra casa
"É quase duas, eu vou me ferrar"
Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer
E decidiu trabalhar (não!)
E ela se formou no mesmo mês
Que ele passou no vestibular
Eduardo e Mônica trocaram telefone
Depois telefonaram e decidiram se encontrar
O Eduardo sugeriu uma lanchonete
Mas a Mônica queria ver o filme do Godard
Se encontraram então no parque da cidade
A Mônica de moto e o Eduardo de "camelo"
O Eduardo achou estranho, e melhor não comentar
Mas a menina tinha tinta no cabelo
Eduardo e Mônica eram nada parecidos
Ela era de Leão e ele tinha dezesseis
Ela fazia Medicina e falava alemão
E ele ainda nas aulinhas de inglês
Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus
Van Gogh e dos Mutantes, de Caetano e de Rimbaud
E o Eduardo gostava de novela
E jogava futebol-de-botão com seu avô
E os dois comemoraram juntos
E também brigaram juntos, muitas vezes depois
E todo mundo diz que ele completa ela
E vice-versa, que nem feijão com arroz
Construíram uma casa há uns dois anos atrás
Mais ou menos quando os gêmeos vieram
Batalharam grana, seguraram legal
A barra mais pesada que tiveram
Eduardo e Mônica voltaram pra Brasília
E a nossa amizade dá saudade no verão
Só que nessas férias, não vão viajar
Porque o filhinho do Eduardo tá de recuperação
E quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?
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VITAL E SUA MOTO
Os Paralamas do Sucesso
Vital andava a pé e achava que assim estava mal
De um ônibus pro outro aquilo para ele era o fim
Conselho de seu pai: "Motocicleta é perigoso, Vital.
É duro de negar, filho, mas isto dói bem mais em mim."
Mas Vital comprou a moto e passou a se sentir total, sentir total
Vital e sua moto, mas que união feliz
Corria e viajava, era sensacional
A vida em duas rodas era tudo que ele sempre quis
Vital passou a se sentir total
Com seu sonho de metal
Vital passou a se sentir total
No seu sonho...
Vital passou a se sentir total
Com seu sonho de metal
Vital passou a se sentir total
No seu sonho...
Os Paralamas do Sucesso iam tentar tocar na capital, (na capital)
E a caravana do amor então pra lá também se encaminhou
Ele foi com sua moto, ir de carro era baixo astral
Minha prima já está lá e é por isso que eu também vou.
BASTIDORES
Cauby Peixoto (Compositor: Chico Buarque)
Chorei, chorei, até ficar com dó de mim
E me tranquei no camarim
Tomei um calmante
Um excitante e um bocado de gim
Amaldiçoei o dia em que te conheci
Com muitos brilhos me vesti
Depois me pintei, me pintei, me pintei, me pintei
Cantei, cantei
Como é cruel cantar assim
E num instante de ilusão,
Te vi pelo salão
A caçoar de mim
Não me troquei,
Voltei correndo ao nosso lar,
Voltei pra me certificar
Que tu nunca mais vais voltar, vais voltar, vais voltar
Cantei, cantei
Nem sei como eu cantava assim
Só sei que todo cabaré
Me aplaudiu de pé quando cheguei ao fim.
Mas não bisei,
Voltei correndo ao nosso lar,
Voltei pra me certificar
Que tu nunca mais vais voltar, vais voltar, vais voltar
Cantei, cantei
Jamais cantei tão lindo assim
E os homens lá pedindo bis
Bebâdos e febris a se rasgar por mim
Chorei, chorei até ficar com dó de mim.
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MEU GURI
Chico Buarque
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice, ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí! Olha aí!
Olha aí!
Ai, o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega
Chega suado e veloz do batente
Traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar
Olha aí!
Olha aí!
Ai, o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!
Chega no morro com carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos está um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar
Olha aí!
Olha aí!
Ai o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo eu não disse, seu moço!
Ele disse que chegava lá
Olha aí! Olha aí!
Olha aí!
Ai, o meu guri, olha aí
Olha aí!
É o meu guri!
Olha aí!
Ai, o meu guri, olha aí
Olha aí!
É o meu guri!
11
MORTE DO LEITEIRO
Carlos Drummond de Andrade
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.
Mas este entrou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.
Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro.
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto
Com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma pequena mercadoria.
E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.
Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada.
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. Rio de Janeiro: J. Olympio,
1978, p. 106.
12
CASO DO VESTIDO
Carlos Drummond de Andrade
Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?
que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...
Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.
Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.
Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?
Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.
Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai vem chegando.
Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.
Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.
Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.
Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.
E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.
O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.
Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.
Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!
Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,
Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.
só pra lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.
Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.
Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.
E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,
Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.
se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,
O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,
chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,
mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.
me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,
Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.
mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.
Sai pensando na morte,
mas a morte não chegava.
Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,
Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,
beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.
visitei vossos parentes,
não comia, não falava,
Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,
tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.
me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,
Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,
13
perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,
de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.
minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,
Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.
minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.
Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?
Vosso pai sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.
quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?
Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,
quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?
pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.
quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?
Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,
Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.
que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,
Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.
última peça de luxo
que guardei como lembrança
Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada
daquele dia de cobra,
da maior humilhação.
vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio,
Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.
mal reparou no vestido
e disse apenas: — Mulher,
Mas então ele enjoado
confessou que só gostava
põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,
de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,
comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,
fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,
comia meio de lado
e nem estava mais velho.
me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,
O barulho da comida
na boca, me acalentava,
me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,
me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito
bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,
de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.
dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.
Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.
Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito
Texto extraído do livro "Nova Reunião - 19 Livros de Poesia", José Olympio
Editora - 1985, pág. 157
14
MÁQUINA BREVE
Cecília Meireles
O pequeno vaga-lume
com sua verde lanterna,
que passava pela sombra
inquietando a flor e a treva
- meteoro da noite, humilde,
dos horizontes da relva;
o pequeno vaga-lume,
queimada a sua lanterna,
jaz carbonizado e triste
e qualquer brisa o carrega:
mortalha de exíguas franjas
que foi seu corpo de festa.
Parecia uma esmeralda
e é um ponto negro na pedra.
Foi luz alada, pequena
estrela em rápida seta.
Quebrou-se a máquina breve
na precipitada queda.
E o maior sábio do mundo
sabe que não a conserta.
Disponível em
http://sgcd.assis.unesp.br/Home/PosGraduacao/Letras/ColoquioLetras/Gise
le_Oliveira.pdf. Acesso em 29-9-13
NAMORO A CAVALO
Álvares de Azevedo
Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcineia namorada.
Alugo (três mil reis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
À minha namorada na janela...
Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito... mas furtado.
Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento...
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda Comédia – em casamento...
Ontem tinha chovido...Que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama.
Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada...
Mas eis que no passar pelo sobrado,
Onde habita nas lojas minha bela,
Por ver-me todo lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...
O cavalo ignorante de namoros
Entre os dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com as pernas para o ar, sobre a calçada...
Dei ao diabo os namoros. Escovando
Meu chapéu que sofrera no pagode,
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.
Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!...
15
A SERRA DO ROLA-MOÇA *
Mário de Andrade
A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não...
Eles eram do outro lado,
Vieram na vila casar.
E atravessaram a serra,
O noivo com a noiva dele
Cada qual no seu cavalo.
Antes que chegasse a noite
Se lembraram de voltar.
Disseram adeus pra todos
E se puserem de novo
Pelos atalhos da serra
Cada qual no seu cavalo.
Os dois estavam felizes,
Na altura tudo era paz.
Pelos caminhos estreitos
Ele na frente, ela atrás.
E riam. Como eles riam!
Riam até sem razão.
A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não...
As tribos rubras da tarde
Rapidamente fugiam
E apressadas se escondiam
Lá embaixo nos socavões,
Temendo a noite que vinha.
Porém os dois continuavam
Cada qual no seu cavalo,
E riam. Como eles riam!
E os risos também casavam
Com as risadas dos cascalhos,
Que pulando levianinhos
Da vereda se soltavam,
Buscando o despenhadeiro.
Ali, Fortuna inviolável!
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
Precipitados no abismo.
Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte,
Na altura tudo era paz ...
Chicoteado o seu cavalo,
No vão do despenhadeiro
O noivo se despenhou.
E a Serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.
* Título adaptado para efeito didático.
In: ANDRADE, Mário. Poesias completas. Círculo do Livro, s/d, p. 159 a 161.
SETE ANOS DE PASTOR
Luís de Camões
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia o pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se não a tivera merecida,
Começa de servir outros sete anos,
dizendo: Mais servira, se não fora
pera tão longo amor tão curta a vida!
16
A VALSA
Casimiro de Abreu
Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranquila,
Serena,
Sem pena
De mim!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...
Valsavas:
— Teus belos
Cabelos,
Já soltos,
Revoltos,
Saltavam,
Voavam,
Brincavam
No colo
Que é meu;
E os olhos
Escuros
Tão puros,
Os olhos
Perjuros
Volvias,
Tremias,
Sorrias,
P'ra outro
Não eu!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...
Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem ?!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas,..
— Eu vi!...
Calado,
Sozinho,
Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!
Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues
Não mintas...
— Eu vi!
Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida.
No chão!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
Eu vi!
Disponível em:
http://www.paralerepensar.com.
br/cassimiro.htm. Acesso em
25-9-2013.
17
POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL
Manuel Bandeira
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da
[Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 9. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p 107.
NEL MEZZO DEL CAMIN...
Olavo Bilac
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...
E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.
Hoje, segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.
(Poesias, Sarças de fogo, 1888.)
Disponível em: http://www.casadobruxo.com.br/poesia/o/olavo16.htm
18
PEQUENA CRÔNICA POLICIAL
Mário Quintana
Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grave beleza…
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, da bebida…
Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriam, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no Céu?!
Lá continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada…
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!
CÍRCULO VICIOSO
Machado de Assis
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
"Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
"Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela"
Mas a lua, fitando o sol com azedume:
"Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume"!
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta luz e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"...
Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.br/machado01.html#circulo
19
O PAVÃO INVEJOSO
Ferreira Gullar
À deusa Juno, o Pavão
Foi se queixar, certa vez,
Dizendo que quem o fez
Não o fez com perfeição.
― Tenho uma voz horrorosa.
Tanto assim que, quando canto,
Todos os bichos, de espanto,
Se escafedem em polvorosa.
Queixou-se a bonita ave:
― Causa inveja ao pôr do sol,
Ouvir o canto suave
E doce do rouxinol.
Por que, Juno, não me deste
Uma voz tão linda igual?
Rogo que me livres deste
Canto, que é um berro, afinal!
― Deixa de ser invejoso,
Pavão ― a deusa falou.
És o bicho mais formoso
Que a Natureza criou.
És uma ave elegante,
De plumagem delicada.
Tua cauda é deslumbrante,
De ricas gemas ornada.
Foi bem sábia a Natureza
Não dando tudo a só um.
Se o Rato não tem beleza,
Tem tino como nenhum.
Ao Macaco deu destreza,
Musculatura ao Leão;
Deu à Raposa esperteza,
Deu à Coruja atenção.
E nenhum deles se queixa,
Conformados com o que são.
Não estás contente? Pois deixa,
Vou te dar uma lição!
Queres ter voz maviosa?
Pois essa voz te darei.
Mas retiro a esplendorosa
Cauda com que te enfeitei.
Então o Pavão, aflito,
Achando a troca ruim,
Falou: ― Até que meu grito
Não é lá tão feio assim.
In: GULLAR, Ferreira. Fábulas, Lá Fontaine. Rio de Janeiro: Revan, 1997,
p 35 a 38.
PORQUINHO-DA-ÍNDIA
Manuel Bandeira
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas . . .
— O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.
In: BANDEIRA, Manuel. Antologia Poética. Coord. André Seffrin. S.P. Ed. Global: 2013. p. 107
20
BALÕEZINHOS
Manuel Bandeira
Na feira do arrabaldezinho
Um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor:
— "O melhor divertimento para as crianças!"
Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres,
Fitando com olhos muito redondos os grandes balõezinhos muito
[redondos.
No entanto a feira burburinha.
Vão chegando as burguesinhas pobres,
E as criadas das burguesinhas ricas,
E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza.
Nas bancas de peixe,
Nas barraquinhas de cereais,
Junto às cestas de hortaliças
O tostão é regateado com acrimônia
Os meninos pobres não veem as ervilhas tenras,
Os tomatinhos vermelhos,
Nem as frutas,
Nem nada.
Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor são a
[única mercadoria útil e verdadeiramente indispensável.
O vendedor infatigável apregoa:
— "O melhor divertimento para as crianças!"
E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem um
[círculo inamovível de desejo e espanto.
21
TRILHA SONORA *
Ana Cristina César
Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes
barganhando
uma informação difícil. Agora silêncio; silêncio
eletrônico,
produzido no sintetizador que antes construiu a ameaça
das
asas batendo freneticamente
Apuro técnico.
Os canais que só existem no mapa.
O aspecto moral da experiência.
Primeiro ato da imaginação.
Suborno no bordel.
Eu tenho uma ideia.
Eu não tenho a menor ideia.
Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.
Memória de Copacabana. Santa Clara às três da tarde.
Autobiografia. Não, biografia.
Mulher.
Papai Noel e os marcianos.
Billy the Kid versus Drácula.
Drácula versus Billy the Kid.
Muito sentimental.
Agora pouco sentimental.
Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que
o seu
amor de ontem.
Gertrude: estas são ideias bem comuns.
Apresenta a jazz band.
Não, toca blues com ela.
Esta é a minha vida.
Atravessa a ponte.
É sempre um pouco tarde.
Não presta atenção em mim.
Olha aqueles três barcos colados imóveis no meio do
grande rio.
Estamos em cima da hora.
Daydream.
Quem caça mais o olho um do outro?
Sou eu que admito vitória.
Ela que mora conosco então nem se fala.
Caça, caça.
E faz passos pesados subindo a escada correndo.
Outra cena da minha vida.
Um amigo velho vive em táxis.
Dentro de um táxi é que ele me diz que quer chorar
mas não
chora.
Não esqueço mais.
E a última, eu já te contei?
É assim.
Estamos parados.
Você lê sem parar, eu ouço uma canção.
Agora estamos em movimento.
Atravessando a grande ponte olhando o grande rio e os
três
barcos colados imóveis no meio.
Você anda um pouco na frente.
Penso que sou mais nova do que sou.
Bem nova.
Estamos deitados.
Você acorda correndo.
Sonhei outra vez com a mesma coisa.
Estamos pensando.
Na mesma ordem das coisas.
Não, não na mesma ordem das coisas.
É domingo de manhã não é dia útil às três da tarde.
Quando a memória está útil.
Usa.
Agora é a sua vez.
Do you believe in love...?
Então está.
Não insisto mais.
* Título adaptado para efeito didático.
22
ROMANCE LIII OU
DAS PALAVRAS AÉREAS
Cecília Meireles
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e se transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota…
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora…
e dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam…
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação, nem de hora…
– e estais no bico das penas,
– e estais na tinta que as molha,
– e estais nas mãos dos juízes,
– e sois o ferro que se arrocha,
– e sois o barco para o exílio,
– e sois Moçambique e Angola!
Ai, palavras, ai palavras,
leis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra…
Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois agora?
– Acusações, sentinelas,
bacamarte, algemas, escolta;
– o olho ardente da perfídia,
a velar na noite morta;
– a umidade dos presídios,
– a solidão pavorosa;
– o duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
– e a sentença que caminha,
– e a esperança que não volta,
– e o coração que vacila,
– e o castigo que galopa…
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão podíeis ter sido!
– sois madeira que se corta,
– sois vinte degraus de escada,
– sois um pedaço de corda…
– Sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeira, tropa…
Ai, palavras, ai palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem…
– sois um homem que se enforca!
23
ISMÁLIA
Alphonsus de Guimaraens
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava perto do céu,
Estava longe do mar…
E como um anjo pendeu
As asas para voar…
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…
24
ANHANGUERA
Cora Coralina
“... e no terceiro dia da
criação o Criador
dividiu as águas, fez os
mares e os rios e separou
a terra e deu ela ervas
e plantas.”
… e quando das águas separadas
aflorou Goyaz, há milênios,
ficou ali a Serra Dourada
em teorias imprevistas
de lava endurecida,
e a equação de equilíbrio
da pedra oscilante.
Vieram as chuvas
e o calor acamou o limo
na camarinha das grotas.
O vento passou
trazendo na custódia das sementes
o pólen fecundante.
Nasceu a árvore.
E o Criador vendo que
era boa multiplicou a espécie
em sombra para as feras
em fronde para os ninhos
e em frutos para os homens.
Só depois de muitas eras
foi que chegaram os poetas.
Evém a Bandeira dos Polistas...
num tropel soturno
de muitos pés de muitas patas.
Deflorando a terra.
Rasgando as lavras
nos socavões.
Esfarelando cascalho,
ensacando ouro,
encadeiam Vila Boa
nos morros vestidos
de pau-d'arco.
Foi quando a perdida gente
do sertão impérvio.
Riscou o roteiro incerto
do velho Bandeirante
e Bartolomeu Bueno,
bruxo feiticeiro,
num passe de magia
histórica
tirou Goyaz de um prato
de aguardente
e ficou sendo o Anhanguera.
25
VOCABULÁRIO
Legenda – Letreiro, inscrição
Alvo – Claro, branco
Quizilento – Implicante
Relento – Umidade atmosférica da noite
Redimir – Resgatar
Apólice – Título da dívida pública com valor monetário
Perverso – que tem malíssima índole, defeituoso, vicioso
Colo – pescoço, parte frontal e superior do tronco
Febre terçã – Febre cujos acessos se manifestam de 3 em 3 dias
Escalavrar – Golpear, esfolar, arranhar
Fel – Coisa muito amarga
Cintilar – Apresentar o brilho das faíscas
Camélia – Arbusto que fica sempre verde, mesmo no inverso, e que não tem cheiro
Delgado – Fino, magro
Acalentar – Consolar, confortar
Relva – Grama, erva rala e rasteira
Carbonizado – Queimado, torrado
Mortalha – Roupa que envolve o cadáver que será sepultado
Exíguo – De pequenas proporções, escasso
Alado – Que possui asas
Socavão – Grande cova, esconderijo
Cascalho – Lasca de pedra
Leviano – Que julga ou procede irresponsável, volúvel
Vereda – Rumo, direção, caminho
Despenhadeiro - Penhasco
Fortuna – Sorte ou azar que a pessoa pode ter independente de suas ações
Inviolável – que não se pode abrir ou invadir
Malfadado – infortunado, sem sorte, azarado
Dulcineia – musa imaginária e idealizada de Dom Quixote, célebre personagem do escritor espanhol Miguel de
Cervantes
Esparrela – armadilha de caça, enganação
Rocinante – cavalo do Dom Quixote
Ordenado – salário
Acanhamento – vergonha, timidez
Tafuis – luxuoso
Lodoso – lamacento, sujo de lama
Ventas – nariz, pop. cara, as fuças
Pagode – confusão
Devaneio – alucinação, delírio
Lascívio – sensual, lúbrico
Carmim – de cor avermelhada
Perjurar – Jurar falso
Volver – voltar
Silfo – gênio do ar na mitologia céltica e germânica da Idade Média
Mesquinho – que tem poucos recursos
Zelo – cuidado
Prostrado – lançado por terra
Turbado – perturbado
Cismar – pensar continuamente, andar melancólico e preocupado
Cruento – relacionado a sangue
Fatigar – cansar, aborrecer
De súbito – de repente
Deslumbrar – fascinar
Extremo – que está no ponto mais afastado, distante; que atingiu seu ponto máximo
Sina – destino
26
Lume – jato de luz, brilho, luz
Azedume – o que é azedo, amargo
Rútila – cintilante, tão brilhante que chega a ofuscar
Nume - ser ou potência divina; divindade, deidade
Enfarar – enfastiado, cheio, cansado
Umbela - qualquer objeto ou estrutura em forma de guarda-chuva
Arrabalde – parte de uma cidade ou povoação que fica fora ou nas adjacências de seus limites; subúrbio; lugar muito
afastado do centro de uma cidade ou povoação; arredor, cercania
Burburinho - ruído indistinto e prolongado de muitas pessoas falando ao mesmo tempo;
Regatear - questionar ou insistir para obter preço mais baixo; pechinchar
Acrimônia – estado ou qualidade do que é acre, azedo; comportamento indelicado; aspereza
Sugestões de leitura
Todas as indicações a seguir já dispõem de mais de uma edição em língua portuguesa, por isso não informamos a
editora de cada uma. As exceções são Faustino, publicado originalmente pela Agir, e o texto em cordel, que pode ser
acessado na web.
A peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho, de José Bernardo da Silva
Auto do Frade e Morte e vida Severina, ambos de João Cabral de Melo Neto
Cobra Norato, de Raul Bopp
Faustino, de Eliane Ganem
I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias
Máscaras, de Menotti del Picchia
O grande circo místico, de Jorge de Lima
O navio negreiro, de Castro Alves
Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles
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