COLETÂNEA DE POESIA BRASILEIRA COLÉGIO PEDRO II
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COLETÂNEA DE POESIA BRASILEIRA COLÉGIO PEDRO II
COLETÂNEA DE POESIA BRASILEIRA COLÉGIO PEDRO II - SCII 9º ANO 1 Apresentação A boa prática pedagógica recomenda que o ensino de Língua Portuguesa deve ter como meta desenvolver as habilidades linguísticas e discursivas dos alunos, tornando-os usuários produtivos da língua. Nesse sentido, o trabalho com os gêneros textuais constitui um interessante ponto de partida. Essa abordagem pedagógica tem a vantagem de permitir aos alunos compreenderem o mecanismo de funcionamento dos diversos gêneros. Em decorrência disso, os discentes tendem a aprimorar sua capacidade de intervenção crítica e criativa nos próprios gêneros em função das diferentes demandas que surgem na dinâmica social. Sejam eles literários ou não literários, a principal característica dos gêneros textuais é sua capacidade de adaptação e metamorfose. Se por um lado os gêneros apresentam marcas linguístico-discursivas que os distinguem, não se ignora o fato de que eles dialogam o tempo todo, além de se apropriarem de características de outros gêneros. Tal plasticidade fica evidente, por exemplo, no poema narrativo, gênero híbrido que continua atuante no mundo contemporâneo. Nesse gênero, o trabalho com as múltiplas dimensões da linguagem - típico da poesia - ganha vivacidade ao ser confrontado com o potencial de contar histórias -inerente à narratividade. Apostando no potencial pedagógico do encontro entre os diferentes gêneros textuais, a equipe de Língua Portuguesa (Campus São Cristóvão II) do Colégio Pedro II elaborou a presente coletânea, constituída por poemas narrativos. É importante destacar que estamos usando a terminologia “poemas narrativos” em sentido amplo, que engloba não apenas poemas prototipicamente narrativos, tais como I-Juca Pirama, Cobra Norato e Romanceiro da Inconfidência, como outros poemas, de menor extensão, nos quais se destacam ações encadeadas numa sequência temporal, em que o eu lírico muitas vezes se apresenta como personagem e/ou narrador. Estabelecida a narratividade como critério norteador da coletânea, buscou-se fazer da variedade a sua principal característica. Foram incluídos diferentes autores, pertencentes a diferentes estilos literários, numa teia que enreda poemas como “Namoro a cavalo”, de Álvares de Azevedo; “Máquina breve”, de Cecília Meireles; “Pequena crônica policial”, de Mário Quintana; e “O pavão invejoso”, de Ferreira Gullar. Os poemas narrativos mais longos, em função do limite de páginas, não constam da coletânea. O leitor interessado nesses poemas poderá consultar a lista de sugestões de leitura, incluída na parte final da publicação. Além da variedade de autores e estilos, foram incluídas também algumas letras de música nas quais a narratividade desponta como traço marcante, como “Meu guri”, de Chico Buarque; e “Eduardo e Mônica”, letra de autoria de Renato Russo, que ficou famosa na performance da banda Legião Urbana. Apesar das polêmicas teóricas que ora incluem ora excluem a letra de música do universo da poesia, acreditamos que seu acolhimento, na coletânea, é uma forma de levar os alunos a refletirem sobre os pontos de contato entre os dois universos. Marcelo de Souza Pereira 2 SUMÁRIO Domingo no parque Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones Geni e o zepelim Marvin O calhambeque Eduardo e Mônica Vital e sua moto Bastidores Meu guri Morte do leiteiro Caso do vestido Máquina breve Namoro a cavalo A serra do rola-moça Sete anos de pastor A valsa Poema tirado de uma notícia de jornal Nel mezzo del camin Pequena crônica policial Circulo vicioso O pavão invejoso Porquinho-da-índia Balõezinhos Trilha Sonora Romance LIII ou das palavras aéreas Ismália Anhanguera p. 04 p. 05 p. 06 p. 07 p. 08 p. 09 p. 10 p. 10 p. 11 p. 12 p. 13 p. 15 p. 15 p. 16 p. 16 p. 17 p. 18 p. 18 p. 19 p. 19 p. 20 p. 20 p. 21 p. 22 p. 23 p. 24 p. 25 3 DOMINGO NO PARQUE Gilberto Gil O rei da brincadeira Ê, José! O rei da confusão Ê, João! Um trabalhava na feira Ê, José! Outro na construção Ê, João!... A semana passada No fim da semana João resolveu não brigar No domingo de tarde Saiu apressado E não foi pra Ribeira jogar Capoeira! Não foi pra lá Pra Ribeira, foi namorar... O José como sempre No fim da semana Guardou a barraca e sumiu Foi fazer no domingo Um passeio no parque Lá perto da Boca do Rio... Foi no parque Que ele avistou Juliana Foi que ele viu Foi que ele viu Juliana na roda com João Uma rosa e um sorvete na mão Juliana seu sonho, uma ilusão Juliana e o amigo João... O espinho da rosa feriu Zé (Feriu Zé!) (Feriu Zé!) E o sorvete gelou seu coração O sorvete e a rosa Ô, José! A rosa e o sorvete Ô, José! Foi dançando no peito Ô, José! Do José brincalhão/ Ô, José!... O sorvete e a rosa Ô, José! A rosa e o sorvete Ô, José! Oi girando na mente Ô, José! Do José brincalhão Ô, José!... Juliana girando Oi girando! Oi, na roda gigante Oi, girando! Oi, na roda gigante Oi, girando! O amigo João (João)... O sorvete é morango É vermelho! Oi, girando e a rosa É vermelha! Oi girando, girando É vermelha! Oi, girando, girando... Olha a faca! (Olha a faca!) Olha o sangue na mão Ê, José! Juliana no chão Ê, José! Outro corpo caído Ê, José! Seu amigo João Ê, José!... Amanhã não tem feira Ê, José! Não tem mais construção Ê, João! Não tem mais brincadeira Ê, José! Não tem mais confusão Ê, João!... 4 ERA UM GAROTO QUE COMO EU AMAVA OS BEATLES E OS ROLLING STONES Engenheiros do Hawaii Era um garoto que como eu Amava os beatles e os rolling stones Girava o mundo sempre a cantar As coisas lindas da américa Era um garoto que como eu Amava os beatles e os rolling stones Girava o mundo, mas acabou Fazendo a guerra no vietnã Não era belo, mas mesmo assim Havia mil garotas afim Cantava help and ticket to ride Oh! Lady jane e yesterday Cabelos longos não usa mais Não toca a sua guitarra e sim Um instrumento que sempre dá A mesma nota, ra-tá-tá-tá Cantava viva à liberdade Mas uma carta sem esperar Da sua guitarra, o separou Fora chamado na américa Não tem amigos, não vê garotas Só gente morta caindo ao chão Ao seu país não voltará Pois está morto no vietnã Stop! Com rolling stones Stop! Com beatles songs Mandado foi ao vietnã Lutar com vietcongs Stop! Com rolling stones Stop! Com beatles songs No peito, um coração não há Mas duas medalhas sim Ratá-tá tá tá, tatá-rá tá tá Ratá-tá tá tá, tatá-rá tá tá Ratá-tá tá tá, tatá-rá tá tá Ratá-tá tá tá Ratá-tá tá tá, tatá-rá tá tá Ratá-tá tá tá, tatá-rá tá tá Ratá-tá tá tá, tatá-rá tá tá Ratá-tá tá tá Ra-tá-tá tá-tá, ra-tá-tá tá-tá Ra-tá-tá tá-tá, ra-tá-tá tá-tá 5 GENI E O ZEPELIM Chico Buarque De tudo que é nego torto Do mangue e do cais do porto Ela já foi namorada O seu corpo é dos errantes Dos cegos, dos retirantes É de quem não tem mais nada Dá-se assim desde menina Na garagem, na cantina Atrás do tanque, no mato É a rainha dos detentos Das loucas, dos lazarentos Dos moleques do internato E também vai amiúde Com os velhinhos sem saúde E as viúvas sem porvir Ela é um poço de bondade E é por isso que a cidade Vive sempre a repetir Joga pedra na Geni! Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni! Um dia surgiu, brilhante Entre as nuvens, flutuante Um enorme zepelim Pairou sobre os edifícios Abriu dois mil orifícios Com dois mil canhões assim A cidade apavorada Se quedou paralisada Pronta pra virar geleia Mas do zepelim gigante Desceu o seu comandante Dizendo: "Mudei de ideia!" Quando vi nesta cidade Tanto horror e iniquidade Resolvi tudo explodir Mas posso evitar o drama Se aquela formosa dama Esta noite me servir Essa dama era Geni! Mas não pode ser Geni! Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir Ela dá pra qualquer um Maldita Geni! Mas de fato, logo ela Tão coitada e tão singela Cativara o forasteiro O guerreiro tão vistoso Tão temido e poderoso Era dela, prisioneiro Acontece que a donzela (E isso era segredo dela) Também tinha seus caprichos E ao deitar com homem tão nobre Tão cheirando a brilho e a cobre Preferia amar com os bichos Ao ouvir tal heresia A cidade em romaria Foi beijar a sua mão O prefeito de joelhos O bispo de olhos vermelhos E o banqueiro com um milhão Vai com ele, vai, Geni! Vai com ele, vai, Geni! Você pode nos salvar Você vai nos redimir Você dá pra qualquer um Bendita Geni! Foram tantos os pedidos Tão sinceros, tão sentidos Que ela dominou seu asco Nessa noite lancinante Entregou-se a tal amante Como quem dá-se ao carrasco Ele fez tanta sujeira Lambuzou-se a noite inteira Até ficar saciado E nem bem amanhecia Partiu numa nuvem fria Com seu zepelim prateado Num suspiro aliviado Ela se virou de lado E tentou até sorrir Mas logo raiou o dia E a cidade em cantoria Não deixou ela dormir Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni! Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni! 6 MARVIN Titãs (Compositor: R. Dunbar / G. N. Johson / Nando Reis / Sérgio Britto) Meu pai não tinha educação Ainda me lembro, era um grande coração Ganhava a vida com muito suor Mas mesmo assim não podia ser pior Pouco dinheiro pra poder pagar Todas as contas e despesas do lar Mas Deus quis vê-lo no chão Com as mãos levantadas pro céu Implorando perdão Chorei, meu pai disse: "Boa sorte", Com a mão no meu ombro Em seu leito de morte E disse "Marvin, agora é só você e não vai adiantar Chorar vai me fazer sofrer" Três dias depois de morrer Meu pai, eu queria saber Mas não botava nem um pé na escola Mamãe lembrava disso a toda hora Todo dia antes do sol sair Eu trabalhava sem me distrair Às vezes acho que não vai dar pé Eu queria fugir, mas onde eu estiver Eu sei muito bem o que ele quis dizer Meu pai, eu me lembro, não me deixa esquecer Ele disse "Marvin, a vida é pra valer Eu fiz o meu melhor E o seu destino eu sei de cor" E então um dia uma forte chuva veio E acabou com o trabalho de um ano inteiro E aos treze anos de idade eu sentia todo o peso do mundo em minhas costas Eu queria jogar mas perdi a aposta, e Trabalhava feito um burro nos campos Só via carne se roubasse um frango Meu pai cuidava de toda a família Sem perceber segui a mesma trilha Toda noite minha mãe orava "Deus, era em nome da fome que eu roubava" Dez anos passaram, cresceram meus irmãos E os anjos levaram minha mãe pelas mãos Chorei, meu pai disse: "Boa sorte" Com a mão no meu ombro Em seu leito de morte Ele disse "Marvin, agora é só você E não vai adiantar Chorar vai me fazer sofrer". "Marvin, a vida é pra valer Eu fiz o meu melhor E o seu destino eu sei de cor". 7 O CALHAMBEQUE Roberto Carlos (Compositor: John D. Loudermilk / Gwen Loudermilk - Versão: Erasmo Carlos) Mandei meu cadillac pro mecânico outro dia Pois há muito tempo um conserto ele pedia Como vou viver sem meu carango pra correr Meu cadillac, bip, bip, quero consertar o cadillac Com muita paciência o rapaz me ofereceu Um carro todo velho que por lá apareceu Enquanto o cadillac consertava eu usava O calhambeque, bip, bip, quero buzinar o calhambeque Saí da oficina um pouquinho desolado Confesso que estava até um pouco envergonhado Olhando para o lado com a cara de malvado O calhambeque, bip, bip, buzinei assim o calhambeque E logo uma garota fez sinal para parar E no meu calhambeque fez questão de passear Não sei o que pensei, mas eu não acreditei Que o calhambeque, bip, bip, o broto quis andar no calhambeque E muitos outros brotos que encontrei pelo caminho Falavam "que estouro, que beleza de carrinho" E fui me acostumando e do carango fui gostando O calhambeque, bip, bip, quero conservar o calhambeque Mas o cadillac finalmente ficou pronto Lavado, consertado, bem pintado, um encanto Mas o meu coração na hora exata de trocar O calhambeque, bip, bip Meu coração ficou com o calhambeque 8 EDUARDO E MÔNICA Renato Russo Quem um dia irá dizer Que existe razão Nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer Que não existe razão? Ela falava coisas sobre o Planalto Central Também magia e meditação E o Eduardo ainda tava no esquema Escola, cinema, clube, televisão Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar Ficou deitado e viu que horas eram Enquanto Mônica tomava um conhaque No outro canto da cidade, como eles disseram E mesmo com tudo diferente, veio mesmo, de repente Uma vontade de se ver E os dois se encontravam todo dia E a vontade crescia, como tinha de ser Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer Um carinha do cursinho do Eduardo que disse "Tem uma festa legal, e a gente quer se divertir" Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia Teatro, artesanato, e foram viajar A Mônica explicava pro Eduardo Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar Festa estranha, com gente esquisita "Eu não tô legal", não agüento mais birita" E a Mônica riu, e quis saber um pouco mais Sobre o boyzinho que tentava impressionar E o Eduardo, meio tonto, só pensava em ir pra casa "É quase duas, eu vou me ferrar" Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer E decidiu trabalhar (não!) E ela se formou no mesmo mês Que ele passou no vestibular Eduardo e Mônica trocaram telefone Depois telefonaram e decidiram se encontrar O Eduardo sugeriu uma lanchonete Mas a Mônica queria ver o filme do Godard Se encontraram então no parque da cidade A Mônica de moto e o Eduardo de "camelo" O Eduardo achou estranho, e melhor não comentar Mas a menina tinha tinta no cabelo Eduardo e Mônica eram nada parecidos Ela era de Leão e ele tinha dezesseis Ela fazia Medicina e falava alemão E ele ainda nas aulinhas de inglês Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus Van Gogh e dos Mutantes, de Caetano e de Rimbaud E o Eduardo gostava de novela E jogava futebol-de-botão com seu avô E os dois comemoraram juntos E também brigaram juntos, muitas vezes depois E todo mundo diz que ele completa ela E vice-versa, que nem feijão com arroz Construíram uma casa há uns dois anos atrás Mais ou menos quando os gêmeos vieram Batalharam grana, seguraram legal A barra mais pesada que tiveram Eduardo e Mônica voltaram pra Brasília E a nossa amizade dá saudade no verão Só que nessas férias, não vão viajar Porque o filhinho do Eduardo tá de recuperação E quem um dia irá dizer Que existe razão Nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer Que não existe razão? 9 VITAL E SUA MOTO Os Paralamas do Sucesso Vital andava a pé e achava que assim estava mal De um ônibus pro outro aquilo para ele era o fim Conselho de seu pai: "Motocicleta é perigoso, Vital. É duro de negar, filho, mas isto dói bem mais em mim." Mas Vital comprou a moto e passou a se sentir total, sentir total Vital e sua moto, mas que união feliz Corria e viajava, era sensacional A vida em duas rodas era tudo que ele sempre quis Vital passou a se sentir total Com seu sonho de metal Vital passou a se sentir total No seu sonho... Vital passou a se sentir total Com seu sonho de metal Vital passou a se sentir total No seu sonho... Os Paralamas do Sucesso iam tentar tocar na capital, (na capital) E a caravana do amor então pra lá também se encaminhou Ele foi com sua moto, ir de carro era baixo astral Minha prima já está lá e é por isso que eu também vou. BASTIDORES Cauby Peixoto (Compositor: Chico Buarque) Chorei, chorei, até ficar com dó de mim E me tranquei no camarim Tomei um calmante Um excitante e um bocado de gim Amaldiçoei o dia em que te conheci Com muitos brilhos me vesti Depois me pintei, me pintei, me pintei, me pintei Cantei, cantei Como é cruel cantar assim E num instante de ilusão, Te vi pelo salão A caçoar de mim Não me troquei, Voltei correndo ao nosso lar, Voltei pra me certificar Que tu nunca mais vais voltar, vais voltar, vais voltar Cantei, cantei Nem sei como eu cantava assim Só sei que todo cabaré Me aplaudiu de pé quando cheguei ao fim. Mas não bisei, Voltei correndo ao nosso lar, Voltei pra me certificar Que tu nunca mais vais voltar, vais voltar, vais voltar Cantei, cantei Jamais cantei tão lindo assim E os homens lá pedindo bis Bebâdos e febris a se rasgar por mim Chorei, chorei até ficar com dó de mim. 10 MEU GURI Chico Buarque Quando, seu moço, nasceu meu rebento Não era o momento dele rebentar Já foi nascendo com cara de fome E eu não tinha nem nome pra lhe dar Como fui levando não sei lhe explicar Fui assim levando ele a me levar E na sua meninice, ele um dia me disse Que chegava lá Olha aí! Olha aí! Olha aí! Ai, o meu guri, olha aí! Olha aí! É o meu guri e ele chega Chega suado e veloz do batente Traz sempre um presente pra me encabular Tanta corrente de ouro, seu moço Que haja pescoço pra enfiar Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro Chave, caderneta, terço e patuá Um lenço e uma penca de documentos Pra finalmente eu me identificar Olha aí! Olha aí! Ai, o meu guri, olha aí! Olha aí! É o meu guri e ele chega! Chega no morro com carregamento Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador Rezo até ele chegar cá no alto Essa onda de assaltos está um horror Eu consolo ele, ele me consola Boto ele no colo pra ele me ninar De repente acordo, olho pro lado E o danado já foi trabalhar Olha aí! Olha aí! Ai o meu guri, olha aí! Olha aí! É o meu guri e ele chega! Chega estampado, manchete, retrato Com venda nos olhos, legenda e as iniciais Eu não entendo essa gente, seu moço Fazendo alvoroço demais O guri no mato, acho que tá rindo Acho que tá lindo de papo pro ar Desde o começo eu não disse, seu moço! Ele disse que chegava lá Olha aí! Olha aí! Olha aí! Ai, o meu guri, olha aí Olha aí! É o meu guri! Olha aí! Ai, o meu guri, olha aí Olha aí! É o meu guri! 11 MORTE DO LEITEIRO Carlos Drummond de Andrade Há pouco leite no país, é preciso entregá-lo cedo. Há muita sede no país, é preciso entregá-lo cedo. Há no país uma legenda, que ladrão se mata com tiro. sempre se faz: passo errado, vaso de flor no caminho, cão latindo por princípio, ou um gato quizilento. E há sempre um senhor que acorda, resmunga e torna a dormir. Então o moço que é leiteiro de madrugada com sua lata sai correndo e distribuindo leite bom para gente ruim. Sua lata, suas garrafas e seus sapatos de borracha vão dizendo aos homens no sono que alguém acordou cedinho e veio do último subúrbio trazer o leite mais frio e mais alvo da melhor vaca para todos criarem força na luta brava da cidade. Mas este entrou em pânico (ladrões infestam o bairro), não quis saber de mais nada. O revólver da gaveta saltou para sua mão. Ladrão? se pega com tiro. Os tiros na madrugada liquidaram meu leiteiro. Se era noivo, se era virgem, se era alegre, se era bom, não sei, é tarde para saber. Na mão a garrafa branca não tem tempo de dizer as coisas que lhe atribuo nem o moço leiteiro ignaro. morador na Rua Namur, empregado no entreposto Com 21 anos de idade, sabe lá o que seja impulso de humana compreensão. E já que tem pressa, o corpo vai deixando à beira das casas uma pequena mercadoria. E como a porta dos fundos também escondesse gente que aspira ao pouco de leite disponível em nosso tempo, avancemos por esse beco, peguemos o corredor, depositemos o litro… Sem fazer barulho, é claro, que barulho nada resolve. Meu leiteiro tão sutil de passo maneiro e leve, antes desliza que marcha. É certo que algum rumor Mas o homem perdeu o sono de todo, e foge pra rua. Meu Deus, matei um inocente. Bala que mata gatuno também serve pra furtar a vida de nosso irmão. Quem quiser que chame médico, polícia não bota a mão neste filho de meu pai. Está salva a propriedade. A noite geral prossegue, a manhã custa a chegar, mas o leiteiro estatelado, ao relento, perdeu a pressa que tinha. Da garrafa estilhaçada. no ladrilho já sereno escorre uma coisa espessa que é leite, sangue… não sei Por entre objetos confusos, mal redimidos da noite, duas cores se procuram, suavemente se tocam, amorosamente se enlaçam, formando um terceiro tom a que chamamos aurora. ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1978, p. 106. 12 CASO DO VESTIDO Carlos Drummond de Andrade Nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego? que tivesse paciência e fosse dormir com ele... Minhas filhas, é o vestido de uma dona que passou. Nossa mãe, por que chorais? Nosso lenço vos cedemos. Passou quando, nossa mãe? Era nossa conhecida? Minhas filhas, vosso pai chega ao pátio. Disfarcemos. Minhas filhas, boca presa. Vosso pai vem chegando. Nossa mãe, não escutamos pisar de pé no degrau. Nossa mãe, dizei depressa que vestido é esse vestido. Minhas filhas, procurei aquela mulher do demo. Minhas filhas, mas o corpo ficou frio e não o veste. E lhe roguei que aplacasse de meu marido a vontade. O vestido, nesse prego, está morto, sossegado. Eu não amo teu marido, me falou ela se rindo. Nossa mãe, esse vestido tanta renda, esse segredo! Mas posso ficar com ele se a senhora fizer gosto, Minhas filhas, escutai palavras de minha boca. só pra lhe satisfazer, não por mim, não quero homem. Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se. Olhei para vosso pai, os olhos dele pediam. E ficou tão transtornado, se perdeu tanto de nós, Olhei para a dona ruim, os olhos dela gozavam. se afastou de toda vida, se fechou, se devorou, O seu vestido de renda, de colo mui devassado, chorou no prato de carne, bebeu, brigou, me bateu, mais mostrava que escondia as partes da pecadora. me deixou com vosso berço, foi para a dona de longe, Eu fiz meu pelo-sinal, me curvei... disse que sim. mas a dona não ligou. Em vão o pai implorou. Sai pensando na morte, mas a morte não chegava. Dava apólice, fazenda, dava carro, dava ouro, Andei pelas cinco ruas, passei ponte, passei rio, beberia seu sobejo, lamberia seu sapato. visitei vossos parentes, não comia, não falava, Mas a dona nem ligou. Então vosso pai, irado, tive uma febre terçã, mas a morte não chegava. me pediu que lhe pedisse, a essa dona tão perversa, Fiquei fora de perigo, fiquei de cabeça branca, 13 perdi meus dentes, meus olhos, costurei, lavei, fiz doce, de ofender dona casada pisando no seu orgulho. minhas mãos se escalavraram, meus anéis se dispersaram, Recebei esse vestido e me dai vosso perdão. minha corrente de ouro pagou conta de farmácia. Olhei para a cara dela, quede os olhos cintilantes? Vosso pai sumiu no mundo. O mundo é grande e pequeno. quede graça de sorriso, quede colo de camélia? Um dia a dona soberba me aparece já sem nada, quede aquela cinturinha delgada como jeitosa? pobre, desfeita, mofina, com sua trouxa na mão. quede pezinhos calçados com sandálias de cetim? Dona, me disse baixinho, não te dou vosso marido, Olhei muito para ela, boca não disse palavra. que não sei onde ele anda. Mas te dou este vestido, Peguei o vestido, pus nesse prego da parede. última peça de luxo que guardei como lembrança Ela se foi de mansinho e já na ponta da estrada daquele dia de cobra, da maior humilhação. vosso pai aparecia. Olhou pra mim em silêncio, Eu não tinha amor por ele, ao depois amor pegou. mal reparou no vestido e disse apenas: — Mulher, Mas então ele enjoado confessou que só gostava põe mais um prato na mesa. Eu fiz, ele se assentou, de mim como eu era dantes. Me joguei a suas plantas, comeu, limpou o suor, era sempre o mesmo homem, fiz toda sorte de dengo, no chão rocei minha cara, comia meio de lado e nem estava mais velho. me puxei pelos cabelos, me lancei na correnteza, O barulho da comida na boca, me acalentava, me cortei de canivete, me atirei no sumidouro, me dava uma grande paz, um sentimento esquisito bebi fel e gasolina, rezei duzentas novenas, de que tudo foi um sonho, vestido não há... nem nada. dona, de nada valeu: vosso marido sumiu. Minhas filhas, eis que ouço vosso pai subindo a escada. Aqui trago minha roupa que recorda meu malfeito Texto extraído do livro "Nova Reunião - 19 Livros de Poesia", José Olympio Editora - 1985, pág. 157 14 MÁQUINA BREVE Cecília Meireles O pequeno vaga-lume com sua verde lanterna, que passava pela sombra inquietando a flor e a treva - meteoro da noite, humilde, dos horizontes da relva; o pequeno vaga-lume, queimada a sua lanterna, jaz carbonizado e triste e qualquer brisa o carrega: mortalha de exíguas franjas que foi seu corpo de festa. Parecia uma esmeralda e é um ponto negro na pedra. Foi luz alada, pequena estrela em rápida seta. Quebrou-se a máquina breve na precipitada queda. E o maior sábio do mundo sabe que não a conserta. Disponível em http://sgcd.assis.unesp.br/Home/PosGraduacao/Letras/ColoquioLetras/Gise le_Oliveira.pdf. Acesso em 29-9-13 NAMORO A CAVALO Álvares de Azevedo Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça Que rege minha vida malfadada Pôs lá no fim da rua do Catete A minha Dulcineia namorada. Alugo (três mil reis) por uma tarde Um cavalo de trote (que esparrela!) Só para erguer meus olhos suspirando À minha namorada na janela... Todo o meu ordenado vai-se em flores E em lindas folhas de papel bordado Onde eu escrevo trêmulo, amoroso, Algum verso bonito... mas furtado. Morro pela menina, junto dela Nem ouso suspirar de acanhamento... Se ela quisesse eu acabava a história Como toda Comédia – em casamento... Ontem tinha chovido...Que desgraça! Eu ia a trote inglês ardendo em chama Mas lá vai senão quando uma carroça Minhas roupas tafuis encheu de lama. Eu não desanimei. Se Dom Quixote No Rocinante erguendo a larga espada Nunca voltou de medo, eu, mais valente, Fui mesmo sujo ver a namorada... Mas eis que no passar pelo sobrado, Onde habita nas lojas minha bela, Por ver-me todo lodoso ela irritada Bateu-me sobre as ventas a janela... O cavalo ignorante de namoros Entre os dentes tomou a bofetada, Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo Com as pernas para o ar, sobre a calçada... Dei ao diabo os namoros. Escovando Meu chapéu que sofrera no pagode, Dei de pernas corrido e cabisbaixo E berrando de raiva como um bode. Circunstância agravante. A calça inglesa Rasgou-se no cair de meio a meio, O sangue pelas ventas me corria Em paga do amoroso devaneio!... 15 A SERRA DO ROLA-MOÇA * Mário de Andrade A Serra do Rola-Moça Não tinha esse nome não... Eles eram do outro lado, Vieram na vila casar. E atravessaram a serra, O noivo com a noiva dele Cada qual no seu cavalo. Antes que chegasse a noite Se lembraram de voltar. Disseram adeus pra todos E se puserem de novo Pelos atalhos da serra Cada qual no seu cavalo. Os dois estavam felizes, Na altura tudo era paz. Pelos caminhos estreitos Ele na frente, ela atrás. E riam. Como eles riam! Riam até sem razão. A Serra do Rola-Moça Não tinha esse nome não... As tribos rubras da tarde Rapidamente fugiam E apressadas se escondiam Lá embaixo nos socavões, Temendo a noite que vinha. Porém os dois continuavam Cada qual no seu cavalo, E riam. Como eles riam! E os risos também casavam Com as risadas dos cascalhos, Que pulando levianinhos Da vereda se soltavam, Buscando o despenhadeiro. Ali, Fortuna inviolável! O casco pisara em falso. Dão noiva e cavalo um salto Precipitados no abismo. Nem o baque se escutou. Faz um silêncio de morte, Na altura tudo era paz ... Chicoteado o seu cavalo, No vão do despenhadeiro O noivo se despenhou. E a Serra do Rola-Moça Rola-Moça se chamou. * Título adaptado para efeito didático. In: ANDRADE, Mário. Poesias completas. Círculo do Livro, s/d, p. 159 a 161. SETE ANOS DE PASTOR Luís de Camões Sete anos de pastor Jacob servia Labão, pai de Raquel, serrana bela; mas não servia o pai, servia a ela, e a ela só por prémio pretendia. Os dias, na esperança de um só dia, passava, contentando-se com vê-la; porém o pai, usando de cautela, em lugar de Raquel lhe dava Lia. Vendo o triste pastor que com enganos lhe fora assi negada a sua pastora, como se não a tivera merecida, Começa de servir outros sete anos, dizendo: Mais servira, se não fora pera tão longo amor tão curta a vida! 16 A VALSA Casimiro de Abreu Tu, ontem, Na dança Que cansa, Voavas Co'as faces Em rosas Formosas De vivo, Lascivo Carmim; Na valsa Tão falsa, Corrias, Fugias, Ardente, Contente, Tranquila, Serena, Sem pena De mim! Quem dera Que sintas As dores De amores Que louco Senti! Quem dera Que sintas!... — Não negues, Não mintas... — Eu vi!... Valsavas: — Teus belos Cabelos, Já soltos, Revoltos, Saltavam, Voavam, Brincavam No colo Que é meu; E os olhos Escuros Tão puros, Os olhos Perjuros Volvias, Tremias, Sorrias, P'ra outro Não eu! Quem dera Que sintas As dores De amores Que louco Senti! Quem dera Que sintas!... — Não negues, Não mintas... — Eu vi!... Meu Deus! Eras bela Donzela, Valsando, Sorrindo, Fugindo, Qual silfo Risonho Que em sonho Nos vem! Mas esse Sorriso Tão liso Que tinhas Nos lábios De rosa, Formosa, Tu davas, Mandavas A quem ?! Quem dera Que sintas As dores De amores Que louco Senti! Quem dera Que sintas!... — Não negues, Não mintas,.. — Eu vi!... Calado, Sozinho, Mesquinho, Em zelos Ardendo, Eu vi-te Correndo Tão falsa Na valsa Veloz! Eu triste Vi tudo! Mas mudo Não tive Nas galas Das salas, Nem falas, Nem cantos, Nem prantos, Nem voz! Quem dera Que sintas As dores De amores Que louco Senti! Quem dera Que sintas!... — Não negues Não mintas... — Eu vi! Na valsa Cansaste; Ficaste Prostrada, Turbada! Pensavas, Cismavas, E estavas Tão pálida Então; Qual pálida Rosa Mimosa No vale Do vento Cruento Batida, Caída Sem vida. No chão! Quem dera Que sintas As dores De amores Que louco Senti! Quem dera Que sintas!... — Não negues, Não mintas... Eu vi! Disponível em: http://www.paralerepensar.com. br/cassimiro.htm. Acesso em 25-9-2013. 17 POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL Manuel Bandeira João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da [Babilônia num barracão sem número Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado. BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 9. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p 107. NEL MEZZO DEL CAMIN... Olavo Bilac Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada E triste, e triste e fatigado eu vinha. Tinhas a alma de sonhos povoada, E a alma de sonhos povoada eu tinha... E paramos de súbito na estrada Da vida: longos anos, presa à minha A tua mão, a vista deslumbrada Tive da luz que teu olhar continha. Hoje, segues de novo... Na partida Nem o pranto os teus olhos umedece, Nem te comove a dor da despedida. E eu, solitário, volto a face, e tremo, Vendo o teu vulto que desaparece Na extrema curva do caminho extremo. (Poesias, Sarças de fogo, 1888.) Disponível em: http://www.casadobruxo.com.br/poesia/o/olavo16.htm 18 PEQUENA CRÔNICA POLICIAL Mário Quintana Jazia no chão, sem vida, E estava toda pintada! Nem a morte lhe emprestara A sua grave beleza… Com fria curiosidade, Vinha gente a espiar-lhe a cara, As fundas marcas da idade, Das canseiras, da bebida… Triste da mulher perdida Que um marinheiro esfaqueara! Vieram uns homens de branco, Foi levada ao necrotério. E quando abriam, na mesa, O seu corpo sem mistério, Que linda e alegre menina Entrou correndo no Céu?! Lá continuou como era Antes que o mundo lhe desse A sua maldita sina: Sem nada saber da vida, De vícios ou de perigos, Sem nada saber de nada… Com a sua trança comprida, Os seus sonhos de menina, Os seus sapatos antigos! CÍRCULO VICIOSO Machado de Assis Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume: "Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!" Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme: "Pudesse eu copiar-te o transparente lume, Que, da grega coluna à gótica janela, Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela" Mas a lua, fitando o sol com azedume: "Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela Claridade imortal, que toda a luz resume"! Mas o sol, inclinando a rútila capela: Pesa-me esta brilhante auréola de nume... Enfara-me esta luz e desmedida umbela... Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"... Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.br/machado01.html#circulo 19 O PAVÃO INVEJOSO Ferreira Gullar À deusa Juno, o Pavão Foi se queixar, certa vez, Dizendo que quem o fez Não o fez com perfeição. ― Tenho uma voz horrorosa. Tanto assim que, quando canto, Todos os bichos, de espanto, Se escafedem em polvorosa. Queixou-se a bonita ave: ― Causa inveja ao pôr do sol, Ouvir o canto suave E doce do rouxinol. Por que, Juno, não me deste Uma voz tão linda igual? Rogo que me livres deste Canto, que é um berro, afinal! ― Deixa de ser invejoso, Pavão ― a deusa falou. És o bicho mais formoso Que a Natureza criou. És uma ave elegante, De plumagem delicada. Tua cauda é deslumbrante, De ricas gemas ornada. Foi bem sábia a Natureza Não dando tudo a só um. Se o Rato não tem beleza, Tem tino como nenhum. Ao Macaco deu destreza, Musculatura ao Leão; Deu à Raposa esperteza, Deu à Coruja atenção. E nenhum deles se queixa, Conformados com o que são. Não estás contente? Pois deixa, Vou te dar uma lição! Queres ter voz maviosa? Pois essa voz te darei. Mas retiro a esplendorosa Cauda com que te enfeitei. Então o Pavão, aflito, Achando a troca ruim, Falou: ― Até que meu grito Não é lá tão feio assim. In: GULLAR, Ferreira. Fábulas, Lá Fontaine. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p 35 a 38. PORQUINHO-DA-ÍNDIA Manuel Bandeira Quando eu tinha seis anos Ganhei um porquinho-da-índia. Que dor de coração me dava Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão! Levava ele pra sala Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos Ele não gostava: Queria era estar debaixo do fogão. Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas . . . — O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada. In: BANDEIRA, Manuel. Antologia Poética. Coord. André Seffrin. S.P. Ed. Global: 2013. p. 107 20 BALÕEZINHOS Manuel Bandeira Na feira do arrabaldezinho Um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor: — "O melhor divertimento para as crianças!" Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres, Fitando com olhos muito redondos os grandes balõezinhos muito [redondos. No entanto a feira burburinha. Vão chegando as burguesinhas pobres, E as criadas das burguesinhas ricas, E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza. Nas bancas de peixe, Nas barraquinhas de cereais, Junto às cestas de hortaliças O tostão é regateado com acrimônia Os meninos pobres não veem as ervilhas tenras, Os tomatinhos vermelhos, Nem as frutas, Nem nada. Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor são a [única mercadoria útil e verdadeiramente indispensável. O vendedor infatigável apregoa: — "O melhor divertimento para as crianças!" E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem um [círculo inamovível de desejo e espanto. 21 TRILHA SONORA * Ana Cristina César Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barganhando uma informação difícil. Agora silêncio; silêncio eletrônico, produzido no sintetizador que antes construiu a ameaça das asas batendo freneticamente Apuro técnico. Os canais que só existem no mapa. O aspecto moral da experiência. Primeiro ato da imaginação. Suborno no bordel. Eu tenho uma ideia. Eu não tenho a menor ideia. Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício. Memória de Copacabana. Santa Clara às três da tarde. Autobiografia. Não, biografia. Mulher. Papai Noel e os marcianos. Billy the Kid versus Drácula. Drácula versus Billy the Kid. Muito sentimental. Agora pouco sentimental. Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu amor de ontem. Gertrude: estas são ideias bem comuns. Apresenta a jazz band. Não, toca blues com ela. Esta é a minha vida. Atravessa a ponte. É sempre um pouco tarde. Não presta atenção em mim. Olha aqueles três barcos colados imóveis no meio do grande rio. Estamos em cima da hora. Daydream. Quem caça mais o olho um do outro? Sou eu que admito vitória. Ela que mora conosco então nem se fala. Caça, caça. E faz passos pesados subindo a escada correndo. Outra cena da minha vida. Um amigo velho vive em táxis. Dentro de um táxi é que ele me diz que quer chorar mas não chora. Não esqueço mais. E a última, eu já te contei? É assim. Estamos parados. Você lê sem parar, eu ouço uma canção. Agora estamos em movimento. Atravessando a grande ponte olhando o grande rio e os três barcos colados imóveis no meio. Você anda um pouco na frente. Penso que sou mais nova do que sou. Bem nova. Estamos deitados. Você acorda correndo. Sonhei outra vez com a mesma coisa. Estamos pensando. Na mesma ordem das coisas. Não, não na mesma ordem das coisas. É domingo de manhã não é dia útil às três da tarde. Quando a memória está útil. Usa. Agora é a sua vez. Do you believe in love...? Então está. Não insisto mais. * Título adaptado para efeito didático. 22 ROMANCE LIII OU DAS PALAVRAS AÉREAS Cecília Meireles Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência, a vossa! Ai, palavras, ai, palavras, sois de vento, ides no vento, no vento que não retorna, e, em tão rápida existência, tudo se forma e se transforma! Sois de vento, ides no vento, e quedais, com sorte nova! Ai, palavras, ai palavras, que estranha potência, a vossa! Todo o sentido da vida principia à vossa porta; o mel do amor cristaliza seu perfume em vossa rosa; sois o sonho e sois a audácia, calúnia, fúria, derrota… A liberdade das almas, ai! com letras se elabora… e dos venenos humanos sois a mais fina retorta: frágil, frágil como o vidro e mais que o aço poderosa! Reis, impérios, povos, tempos, pelo vosso impulso rodam… Detrás de grossas paredes, de leve, quem vos desfolha? Pareceis de tênue seda, sem peso de ação, nem de hora… – e estais no bico das penas, – e estais na tinta que as molha, – e estais nas mãos dos juízes, – e sois o ferro que se arrocha, – e sois o barco para o exílio, – e sois Moçambique e Angola! Ai, palavras, ai palavras, leis pela estrada afora, erguendo asas muito incertas, entre verdade e galhofa, desejos do tempo inquieto, promessas que o mundo sopra… Ai, palavras, ai, palavras, mirai-vos: que sois agora? – Acusações, sentinelas, bacamarte, algemas, escolta; – o olho ardente da perfídia, a velar na noite morta; – a umidade dos presídios, – a solidão pavorosa; – o duro ferro de perguntas, com sangue em cada resposta; – e a sentença que caminha, – e a esperança que não volta, – e o coração que vacila, – e o castigo que galopa… Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência, a vossa! Perdão podíeis ter sido! – sois madeira que se corta, – sois vinte degraus de escada, – sois um pedaço de corda… – Sois povo pelas janelas, cortejo, bandeira, tropa… Ai, palavras, ai palavras, que estranha potência, a vossa! Éreis um sopro na aragem… – sois um homem que se enforca! 23 ISMÁLIA Alphonsus de Guimaraens Quando Ismália enlouqueceu, Pôs-se na torre a sonhar… Viu uma lua no céu, Viu outra lua no mar. No sonho em que se perdeu, Banhou-se toda em luar… Queria subir ao céu, Queria descer ao mar… E, no desvario seu, Na torre pôs-se a cantar… Estava perto do céu, Estava longe do mar… E como um anjo pendeu As asas para voar… Queria a lua do céu, Queria a lua do mar… As asas que Deus lhe deu Ruflaram de par em par… Sua alma subiu ao céu, Seu corpo desceu ao mar… 24 ANHANGUERA Cora Coralina “... e no terceiro dia da criação o Criador dividiu as águas, fez os mares e os rios e separou a terra e deu ela ervas e plantas.” … e quando das águas separadas aflorou Goyaz, há milênios, ficou ali a Serra Dourada em teorias imprevistas de lava endurecida, e a equação de equilíbrio da pedra oscilante. Vieram as chuvas e o calor acamou o limo na camarinha das grotas. O vento passou trazendo na custódia das sementes o pólen fecundante. Nasceu a árvore. E o Criador vendo que era boa multiplicou a espécie em sombra para as feras em fronde para os ninhos e em frutos para os homens. Só depois de muitas eras foi que chegaram os poetas. Evém a Bandeira dos Polistas... num tropel soturno de muitos pés de muitas patas. Deflorando a terra. Rasgando as lavras nos socavões. Esfarelando cascalho, ensacando ouro, encadeiam Vila Boa nos morros vestidos de pau-d'arco. Foi quando a perdida gente do sertão impérvio. Riscou o roteiro incerto do velho Bandeirante e Bartolomeu Bueno, bruxo feiticeiro, num passe de magia histórica tirou Goyaz de um prato de aguardente e ficou sendo o Anhanguera. 25 VOCABULÁRIO Legenda – Letreiro, inscrição Alvo – Claro, branco Quizilento – Implicante Relento – Umidade atmosférica da noite Redimir – Resgatar Apólice – Título da dívida pública com valor monetário Perverso – que tem malíssima índole, defeituoso, vicioso Colo – pescoço, parte frontal e superior do tronco Febre terçã – Febre cujos acessos se manifestam de 3 em 3 dias Escalavrar – Golpear, esfolar, arranhar Fel – Coisa muito amarga Cintilar – Apresentar o brilho das faíscas Camélia – Arbusto que fica sempre verde, mesmo no inverso, e que não tem cheiro Delgado – Fino, magro Acalentar – Consolar, confortar Relva – Grama, erva rala e rasteira Carbonizado – Queimado, torrado Mortalha – Roupa que envolve o cadáver que será sepultado Exíguo – De pequenas proporções, escasso Alado – Que possui asas Socavão – Grande cova, esconderijo Cascalho – Lasca de pedra Leviano – Que julga ou procede irresponsável, volúvel Vereda – Rumo, direção, caminho Despenhadeiro - Penhasco Fortuna – Sorte ou azar que a pessoa pode ter independente de suas ações Inviolável – que não se pode abrir ou invadir Malfadado – infortunado, sem sorte, azarado Dulcineia – musa imaginária e idealizada de Dom Quixote, célebre personagem do escritor espanhol Miguel de Cervantes Esparrela – armadilha de caça, enganação Rocinante – cavalo do Dom Quixote Ordenado – salário Acanhamento – vergonha, timidez Tafuis – luxuoso Lodoso – lamacento, sujo de lama Ventas – nariz, pop. cara, as fuças Pagode – confusão Devaneio – alucinação, delírio Lascívio – sensual, lúbrico Carmim – de cor avermelhada Perjurar – Jurar falso Volver – voltar Silfo – gênio do ar na mitologia céltica e germânica da Idade Média Mesquinho – que tem poucos recursos Zelo – cuidado Prostrado – lançado por terra Turbado – perturbado Cismar – pensar continuamente, andar melancólico e preocupado Cruento – relacionado a sangue Fatigar – cansar, aborrecer De súbito – de repente Deslumbrar – fascinar Extremo – que está no ponto mais afastado, distante; que atingiu seu ponto máximo Sina – destino 26 Lume – jato de luz, brilho, luz Azedume – o que é azedo, amargo Rútila – cintilante, tão brilhante que chega a ofuscar Nume - ser ou potência divina; divindade, deidade Enfarar – enfastiado, cheio, cansado Umbela - qualquer objeto ou estrutura em forma de guarda-chuva Arrabalde – parte de uma cidade ou povoação que fica fora ou nas adjacências de seus limites; subúrbio; lugar muito afastado do centro de uma cidade ou povoação; arredor, cercania Burburinho - ruído indistinto e prolongado de muitas pessoas falando ao mesmo tempo; Regatear - questionar ou insistir para obter preço mais baixo; pechinchar Acrimônia – estado ou qualidade do que é acre, azedo; comportamento indelicado; aspereza Sugestões de leitura Todas as indicações a seguir já dispõem de mais de uma edição em língua portuguesa, por isso não informamos a editora de cada uma. As exceções são Faustino, publicado originalmente pela Agir, e o texto em cordel, que pode ser acessado na web. A peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho, de José Bernardo da Silva Auto do Frade e Morte e vida Severina, ambos de João Cabral de Melo Neto Cobra Norato, de Raul Bopp Faustino, de Eliane Ganem I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias Máscaras, de Menotti del Picchia O grande circo místico, de Jorge de Lima O navio negreiro, de Castro Alves Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles 27 _______________________________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________________________ 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