scenas e quadros do fanatismo no no
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scenas e quadros do fanatismo no no
. · LOUREijÇO FILHO Joaseir4() do~ P: Cicero SCENAS E QUADROS DO FANATISMO NO NORDESTE COMP. MEUlORAMENTOS DE S. PAULO (Weiszllox Irmãos incorporada) S. PAULO - CA YF.IRAS - RIO I_ti - / l M. Bergstrom LOURENÇO FILHO L.nle do Escalo Normal d. S. Poulo: .,,·DirttC/or G.rol do Inlltrucção Publico 110 Estado do C.ará•• m commissão Joaseiro do P: Cicero SCENAS E QUADROS DO FANATISMO NO NORDESTE COMP. MELHORAMENTOS DE S. PAULO (Weiunog 1=40. incorporada) S. PAULO· CAYEIRAS • RIO A HODOLPHO rpHEOPHILO, o HISTOH.IADOR OA "SEDIÇAo DO JOASEIltO" JOASEIRO DO PADRE CICERO ~Esscs PO\'OS, que assim prd.ticam o cnlto consciente c sys/ematico da propriu iJlusü.o. cst;., condemnados a pcrecer. Quem (lg vue eliminar são Csscs rijos manipulaùores de factos e rcalidades, esses povos prat.ic.os e experimentalistas, enjo explendido scnso objectivo dus cousas da vída os escuùa contra. as suggestõcs ~ as insidias de um certo optimismo, que :10 en vez de ac· cci tar as \'crdades erueis ou ùolorosas para eorrigil-as ou elidil-n.s, preferem ùi!isimulaI-as, recobriudo-as ùo recamo fiorejante ùa~ ficções ama.veis ... ::» ° OLIVEIRA VJA1\~A, Poplllorùcs .•lIet"1'dÙmaes do B'"Obit. o N ardeste não só apresenta e:âranhos aspecto,'; da ten'a: faz emergir de seu seio, candente c adusto, casos soci.aes dos mais Ùnprevistos e singulares. É que não lhe tenz bastado o martyrio secular da i~erra. Sobre o 1'cfle'J::oinc'ù'itavel, no, existencia humana, das condições de 'oida possivel nessa atormentada 1'egião do paiz, ha incidido, irrcmediavelmente, por annos continuados, o peso fatal de erros e crimes politico':! da Republica. Um delles, por demais expressivo, porque não {ogra1'á nunca dissimular as grandes respo·nsabilidades dos gov'crnos do Estado, em que af/lorou, e da União, que o permittiu e o in8'uffla, é o do ] oaseiro do Padre Cicero, it Méca dos sertões cearenses arraial e feira, antro e offÙ3ina, centro de orações e hospicio enorme ... Num rapido esboço, como o deste lim'o, de singelas impressões, não cabe o estudo perfeito de !'al caso social, incrivel para o nosso tem- po. Pam fazel-a, de modo acabado, /alle(~eram mesmo, ao AIÛor, certos recursos de investigação, e os documentos necessarios a um julgœmento de!initÜ,o de ¡actos e pes~'oas. O Joaseiro é uma potencia, /óra da lei e da Tazão, ainda bem viva e poderosa, para que permitta o depoimento tranco dos que por ahi habita1n; e encontra-se guardado demais, paTa evitar a cornprovação irrefulauel dos vicios e delictos que mal esconde. Tempo v'irá, em que se possam colher todos os dados de est·u.do de tão extranho phenomeno, que é mais que um producto da terra, o fruelo tenebroso da inconsciencia dos homens ... O que o Autor deseja, sinceramente, é contribuir a seu modo, para a reno'vação social desse nucleo de população sertaneja que, mau grado tudo --- inda poderá ser um dia prospero, livre e feliz. E no tentar fazel-o, não defende Si1UlO o sentimento da gente culta do Ceará., que, enveryonhada desse lcysto sempre perigoso, já ha llarios armos inicioB, C01rt relativo exito, a sua reconquista á ci'!)ilisação ambiente. Essa obra não poderá ser levada a cab'o, com estrondos de granadas nem pontaços de bayouela ... As medicações heroicas não se applieam quasi nunca aos casos sociaes. Já E'u- PREFACIO clydes da Cunha, fechando com ama1'gura () .'leu liV'1'ogenial, sobre a campanha de Canudos, pedira um Maudsley pm'a os cdmes e as loucuras das nacionalidades, quando, por aca80, ellas se empenhem em acções iniquas, como o do c01nbate armado âmiser:ia e á ignorancia, O crhninologo e pathologista social que Euclyeles inv'ocava, tivemol-o neUe proprio, -- e de q'ue estatura!,., E, no emtanlo, 'volvidos os annos, nem uma só medida têm julgado necessaria as administraç(jes do paiz, pm'a a debellação dos casos semelhantes, 'reincidentes no organismo predisposto da nação .. , As «caatingas» do Nordeste continuam a ser, por muitos pontos, a (:selva; horrida», sem (¿gua e sem pão, sem tranquilidade e sem. justiça, sem ensino e sem Deus, com oasis mœravÛhosos de riquezas e energias malbaratadas. Nelles, um pov'o forte - . materia prhna excellente para Uimaraça de elite -- cumpre silenciosamente a pena de ser brasileiro, assaltado periodica'.rnJente pelos flagellas do clima e da politicagem. Pa.ra combater os effé~itos daquelles, a unica tenlativ'a, a do governo Epitacio, teve o.? impetos de urna con'vulsão epileptica, e Q. inanidade, sinão o resultado contrap1'oducente, de um desperdicio sem nome. Assistimol-o, 10 . l'REb'ACIO em meio ao descalabro, com o coração oppresso, e a alma desilludida quanto á efficacia de um grito de revolta ... Mais do que um Maudsley, portanto, que Euclydes reclamava em vão, fallece-nos um hygienista o'U um therapeuta social. O paiz procura urn politico digno desse }lome, avisado e au,.daz. que, sem se ater a soluções simplistas, filhas do empiris11w, lance seguras linhas de coordenação para as /orças dispersas do grande organismo. O Brasil não é « o gigante que dorme », dos tropos das plata! 0]'mas politicas ... Será: antes, um gigante com s/jstema nervoso, incompleto e incapaz, de molusco: um ,grande cm'po, caminhando á8 cegas, capaz de destruir-se a si mesmo. O problema b1'as¡'leiro é mais que tudo, no momento presente, um problema de coordenação, de cultuTa. Aponto~t-o já Alberto Tor'J'es, numa obra imb'uida ainda da nossa S(1cratissima illusão legiferante, aprioristica, de um nov'o p¡zcto constitucional, nUlS extremamente valiosa no seu tempo. E, rnais recentemente, um grupo de homens da geração que passa, levanta a voz, ainda não present'ida pelos politicos protissionaes, mas já iormidav-el nos écos que vae erguendo nas consciencias menos adormecidas de todo () PREFACIO 11 paiz, em prol da justa e verdadeira solução. Dessa mentalidade nova, menos romantica e metaphysica, modelada já ao influxo dos principias universaes da sciencia, Julio de ,lI esquilo' Filho deu ainda ha pouco 'U1nasynlhese admirafvel, num pequeno livro que é um catecismo digno da maior meditação. Á força suggest£va de algumas de suas paginas, como á palavra animadora de seu autor, deve-se a publicação em volume destes artigos de jornal, em que se juntam impressões de um caso social significativo, como symptmna alarmante do estado actual da evolução brasileira. Elles se destina;m a auxiliar, modestamente embora, a prepœração dl~ mentalidade popular ao entendimento d08 nossos grandes problemas, para facilidade da imperativa acç.ão organizadora, de uma solução que não pode tardar. É preciso, emfim, que todos concorramos para dar consciencia á « força da tetra» - « energia creadora sem consciencia definida, força esboçado, sem direcção precisa, energia inconsciente da raça em formação cahotica, torça emergente da propria terra em procura da consciencia sabia de seus guias mentaes, de 8eus directores sociaes, dos obreiros robustos da nacioí/.alidade incipiente » - - como já 12 PIŒE'AUW o afhrmou, num estudo precioso sobre os novos pontos de vista da historia patTia, outro moço pensador, dos maio-res de sua geração. Este livro, q'lU1ndo mais não valha, exprime essa força de bras ilidade, dia a dia mais sensível. CAPrrULO I EM CAMINHO Mcrgulhando no passarlo·O Nordeste, seio vivo da trallição - «Em assim no tcmpo do Imperio ... " - Desesperos de um drama {ormidavcl e sempre renovado - De Fortaleza, cidade do tempo presente, - ao .Toaseíro do Cariry, arraial de antanho. I Não ha necessidade de chegar ao verdadeiro recesso das terras, para descobrir, no Nordeste, o recondito de velhos costumes. Si é certo que, por toda a parte, penetrar o sertão é mergulhar no passado, porquanto nos modos sim pIes da gente provinciana, comn na graça rude e primitiva da natureza sem enfeites, transparece sempre alguma cousa do tempo ique foi - naquella singular região do paiz, não tem o viandante que procurar a alma da tradição, acolhida ao seio ele aldeias menos accessiveis, ou contida, a medo, em nucleos de crystalisação de costumes, de raio limitado. Todo o Nordeste é uma. chronica vivente, de facil e ininterrupta decifraçoo, desde as limpas areias da costa aos desmedidos « sertões» do centro. Para reatar-lhe o fio, não precisa o investigador das vistas severas da analyse, nem 2 Lour<'uço I+'ilho - Joosl'¡ru do P(1dJ'~ Cil'~ro. lB CAPITULO r dos esforços falliveis da imaginação. Porque é na lembrança mesma da vida de outróra que elle vê irem-se abrindo os caminhos, na orla das « caatingas », para que os povoados ainda proximos do littoral, entremostrem, em convidativo aceno, a calma saudavel de sua existencia repousada e ungida da mais suave poesia. f; o mesmo convite amavel que o leva, depois, pelas serras frescas e regiões de oasis, por culturas semiabandonadas, na melancolica apreciação de um esplendor economico de ha muito perdido ... E é a propria tradição que o empolga depois, arrastando-o, com mal fingidas promessas, por veredas incomparavelmente mais as peras, sobre o chão candente das « chapadas» interminas. Por fim, não ha luctar contra essa extranha força dominadora. Si, dantes, insinuava a adaptação ao meio, em cada dia de jornada, desde (I modo de conducção e o alimento, até o ve~tuario e a linguagem "-agora, implacavel senhora, junge o homem á terra, e o escravisa sem piedade ... Não lhe bastam as imposições da vida material, em expressões que se diriam as de uma rude civilisação de conquista: acaba por impõrlhe as menos suspeitadas idéas, acorda-lhe, E࣠CAMINHO 17 no intimo, em explosões selvagens, primitivas tendencias, quando não lhe ateia no sangue o alvoroço damninho de mal jarretados sentÍl;D.entos. Desse modo, ou o viajante se adapta, pondo-se ao serviç.o da tradição, ou corre o risco de desappaL'ecer, tragado por ella ... A um filho do sul - habituado a scenas de renovação constante de vida, á ebulição fervilhante de progresso das cidades cosmopolitas, theatro da agitação dos mais contraditorios interesses, em ancias e flutuações de urn: porvir ainda mal delimitado, mas tendente sempre á melboria da exi8tencia social -- a i.mpressão primeira, quando pelo Nordeste se interne, é a de que vae como num sonho recuando pelo tempo, li cada passo. A vida parece que desanda, e inicia um giro inverso, marcand.o para traz duas dezenas de annas, em cada dia de viagem ... Povo, habitações, aspectos de villas e cidades, processos de cultura da terra e meios de transporte .. modos de falar e vestir, manifestações de toda a existenci.a social e politica, de esthetica ou religiosidade - - tudo se lhe mostra sob espessa patina do tempo, ou lhe sõa n 'alma, com as vozes indefiniveis de um alongado pretel'ito. CA}'lTULJ I Ao avistar um adro de igreja, em freguezia pouco arredada da costa, em dia santo, à hora da missa, na vinheta cvocativa de um ren(fUc de coqueiros esguios, ou de mongubeiras frondosas, sob a sombra de cujas folhas largas e poeirentas, muit.o raro, um ford põe a unica escandalosa nota da vida presente, ha de dizer, por fo1'<;-,a:«Era assim, no tempo do Imperio ... » Ao verificar, pouco além, as condições da vida rural de muitos pontos do sertão, onde o factor «braço-humano» é de tal desvalia que chega a ser empregado, n0n11alment.e, no transporte dc cargas e serve de força motriz ás engenhocas de canna e « holandeiras de mandioca », ha de pensar comsigo mesmo, irresistivelmente: «Devia ter sido assim,. no tempo da escravidão ... » E, ao internar-se, depois, pelas vastidões semi-aridas, onde em cada um dos mal assignalados arraiaes, uma dezena de homens se entrega á exploração precarissima da criação de gado hovino ou caprin.o, onde a alimentação que lhe offerecem é as mais das vezes um prato de farinha secca (tu uma mancheia de fructos sylvestres, onde os tristes casebres, semelham «ocas», e os utensilios mais elementares reproduzem os dos tapuyas primitivos, com as mesmas de- K.\I CA.\HNHO 19 nominações originarias, ha de exclamar, convicto: «Havia de ter sido assim, na epoca da Independenci a ... » Taes exclamações são naturalissirnas. Noutros pontos do Brasil será necessario penetrar mil kilometros, talvez, e fugir leguas e leguas da dominação das zonas de influencia das estradas de ferro, para se presenciarem: identi.cos estados de primitiva civilisação ou para se ouvirem as mesrrlas vozes de antanho. Comtudo, em parte alguma, ellas terão igual poder impressivo, a nota commovedora, a expressão de lucta angustiosa contra o meio, que ahí encerram. Após a primeira impressão de espanto e de cDndemnação do llOmem, evocam um' sentimento.. mais que de piedade, de respeito profundo e justiÎicado. É que ellas reflectem desesperos de um drama formidavel e sempre renovado, que é mais que o da violencia da adaptação d<.tvida humana ao ambi/~nte physico, o da difficuldade diabolica que a essa adaptação têm acarretado as incertezas do meio cosmico, mutavel nas suas condições, sem rythma conhecido. Farto e doce, hoje, cornD uma seara, referto de tentadoras promessas., amanhã, para logo se transrnuda cm solidões estereis, impondo um regresso na 20 CAPITULO I sua conquista, com aca,brunhante necessidade da repetição de invariaveis processos de lucta ... Não são apenas as longas estiagens periodicas, grandes seccas ou « repiquetes », que impõem um limite ao progresso. Em cada anno, na chamada estação do verão ou da secca, o aspecto geral da natureza accentÚa a impressão de mergulho, numa vida já vivida e gasta ... As côres do novo e do presente, que são as do vestuario natural da vegetação, cedem lugar ao descolorido tristissimo das folhas mortas e dos galhos despidos, bracejantes em supplica para os céus sem clemencia ... Só viajando o sertão, por essas occasiões, é que o filho de outras ten'as poderá COIDprehender o heroismo e a resistencia do brasileiro do Nordeste. Fóra do littoral e das serras, o ar exsiccado fustiga a pelle como uma lixa; não ha sombras repousantes, nem riachos frescos, nem moitas floridas; a agua torna-se rara e má; a alimentação escassa e sempre a mesma. A paisagem, desnuda e monotana, não se anima com um vibrar de azas, nem se ado()a com cambiantes de crepusculo ... As primeiras caminhadas sobrevem, rapida, a fadiga. Depois, assalta o vian- E1\I CAi\IŒIIO 21 dante essa temivel psychose dos desertos, mais que tudo caracterisada por extrema excit.abilidade geral e impressionante hypertrophia da imaginação. As miragens não raro se s uccedem; e, n.o extremo d.os· ta boIeiros escaldantes, ou sobre .o emaranhado das caatingas resequidas, compõe a illusão os mais tentadores oasis, recortes de serras nunca existentes, mirific.os jardins e fartos pomares ... A explicação do primeiro phenomeno talvez esteja nas horas de sol, sempre ardente e caustico, na mesmice do ambiente, cujas ondulações se copiam descons()ladoramente, e na seccura do ar, intoleravel a principio, a quem não esteja acclimado. O segund.o, no contraste maravilhoso das noites, sobrevindas quasi de châfre, sem oceaso duradouro, com céus incalculavelmente diaphanos e profundos, buliçosos de vida. de astros incontaveis, sobre cuja luz hesitante, metooro.s fantasticos riscam constantemente, quando um luar embriagador não se derrama, como balsaIllo sobre as cousas da terras, transfeitas em quadros magicos das mais doces paragens ... Avisado dessas alternativas de angustia e de s.onho, o extranho se anima a transpor os sertões, no seio dos quaes irá notando que 22 CAJ>ITLTLO I civilisação daquellas paragens é nm prodigio de tenacidade, teia de Penelope entretecida de sacrificios e de renuncias sem llOmc, mantidos gerações afora, não se sabe bem por que razões profundas ... E comprehenderá, de um golpe, como a vida alli estacionou em apparente bocejo de cançaço ou desanimo, e como a primeira impressão contra o filho da terra é atrozmente descabida e injusta. il :\< ** Façamos tal viagem no Ceará, que é o coração do Nordeste. Antes de nos embarcarmos num trem da via ferrea Baturité, em Fortaleza, verifiquemos como realmente estamos em plena epoca do presente. A capital cearense é hoje uma cidade moderna, comparavel por muitos aspectos a qualquer das melhores do paiz, desde o excellente traçado das ruas e « boulevards» (1~. (1) Denominayão official e hoje pcrfcitamente popularisada. Avenida» que traduziria a palana franceza, corresponde lá, por curiosa translação de ~,entido, il idéa de jardim publico. II E}! CA~IlNIIO 23 até a viação urbana, as casas de ed.ucação e assistencia, os templos, os theatros, os jOl'naes, os jardins, a vida social e politica. Si, nalguma causa Fortaleza não aCJmpanhava, ainda ha dois annos atraz, o estonteante modernismo das nossas populaçõ'3s do littoral, era no recato geral de seus costumes, na pacatez e moralidade de sua gente. A vida nocturna dos grandes centros, com seus antras de vic~o ás escancaras, as tavernas que se não fecham, os conflictos e algazarras de cada instante, ainda não era lá conhecida. Isso não vem a significar, no emtanto, que o fortalexiense seja um casmurro ou um vencido: não ha, ao contrario, povo mais communicativo e alegre, mais prompto ás expansões naturaes de applauso e de zombaria. A expressão consagrada « Ceará-moleque », com que muitas vezes os jornalistas da terra têm profligado .os excessos de familiariedade dos « gavroches» e estudantes ceaœnses, se applica de modo particular aos de sua formosa capital. Esse espirito de affabilidade communicativa __ geral aliás, nas cidades do Norte facilita. a verificação em que nos empenhamos. Penetremos, por um instante, nos circulas sociaes mundanos, ou de classe; visio 24 . CAPITULO t temos as autoridades, sempre democl"aticamente acolhedoras; passemos pelas redacções dos jornaès, cujo serviço informativo nos põe em contacto directo com a capital do paiz e com o extrangeiro; verifiquemos como funcciona o commürcio, como se desenvolve a ind ustria, como o systema bancario, dispondo de fortes estabelecimentos locaes, os enlaça na sua trama de interesses; examinemos as escolas superiores, os collegios particulares e os estabelecimentos publicos de ensino primario; vejamos o que são os institutos de assistencia social, o fõro e a justit)a ... Estamos, realmente, em nosso tempo (1). (1) Fortaleza <'.Qnia mais de oitenta mil habitantes, sendo li. Sllxta capital do Brasil, em população. Possue boas edificações. extensa area call,'.ada, dez linhas de bondes electricos, serviço de agua o exgoltos, seis jomae'l diarios. A instrucção está representada por uma Faculdade de Direito, Instituto Polytechnico, Seminario Archiepiscopal, Escola de Pharmacia e Odontologia, Escola Nónnal, Lyceu, Collegio Militar, cinco Grupos Escolares, Es.:olas Reunidas em todos os suburbios, Escola de Aprendizes Arl ifices, Escola Profissional de São José, Escola de Aprendizes Marinheiros, c numerosos collegios particulares. Em 1924, 950;0 das crianças em idade escolar, de sete a doze annos, estavam matriculadas nas escolas primarias, publicas e particulares. Dentre as instituições de assistencia social, são dignas de menção a. Asslstencia á Infancia, a Maternidade dr. João Moreira, a Escola Pio X, e o Patronato dos Operarios Catholicos. Apenas não condizem com o progresso geral de Fortaleza o serviço de illuminação publica o a installação da Penitenciaria do Estado. f: sensivel igualmente li falta de hospilaes com installaçõcs modernas. KU CAMINHO 25 Mas, desde que o comboio se desloca e começa a arrastar-nos para o centro, desde que se somem atraz dos renques de cajueil'OS enormes e dos coqueiraes hirsutos, os vultos amigos das dunas que, em toda a região, ahi assignalam a costa; desde que, emfim, se perdem: no confuso do arvoredo e do casario á distancia, os recortes singulares das rosas girantes dos moinhoB de vento, erectos em um: sem numero de quintaes para a elevação da agua -- volta··se a primeira pagina das epocas de antanho, depois mItra, e depois outra, cada qual mais celeremente ... Deixamos, assim, construcções hygienicas c elegantes, e vamos topando, desde as primeiras paradas, mal entramos na, caatinga, com habitações que denunciam um atrazo de engenharia, de vinte, trinta, quarenta, cem annos ... Os modos de expressão do povo, o vestuario mais commum, os proC€ssos da lavoura e da industria, as idéas político-sociaes, vão condizendo, na certa, com o mesmo recuo chronologic.o. E, assim', tudo. A luz electrica se torna gaz acetyleno; depois, larnpeão belga; em seguida, candiei1'0; mais tarde, candeia de oleD de mamona ... Os muros se tornam successivamente cercas 26 CAPITVLO I de arame, cercados de varas pacientemente tranç.adas, vallados singelos, depois coisa nenhuma, pondo em commum todas aS terras ... O systema tributario chega ao imposto do dizimo «in natura»; a linguagem sustenta formas quinhentistas e denominações tapuyas das raças primitivas. Ao extrangeiro, rarissima nessas altmas, chama o povo ainda, colonialmente, «.o marinheiro»; a capital é assignalada com o nome de origem: o «Forte »; o diabo é o «cão» e o «capiroto»; (;aqui-deI-rei» se evoca na forma commum do pedido de soccorro; a moeda, por muitos pontos, apellida-se .o « dobrão»; « ir queixar-se aos da Bahia» é uma forma que ainda se ouve para significar reclamação ás autoridades; - os « reisados de bichos» e o « bumba meu boi» são o melhor divertimento popular ... Mil reminiscencias seculares, que marcam, pela constancia, uma extranha parada no tempo. A propria evolução ethnographica brasileira quasi pode ser estudada numa viagem de penetração: na costa predomina o branco, ou quasi branco, demonstrando a preponderancia aryana da nossa gente de hoje; a breve trecho, porém, surgem expressões do mais violento caldeamento das tres raças pri- }~~I CAMINHO 27 mitivas, CDma presença muito rara do preto puro; depois, mais extenso e generalisado, o caboclo, tanto ou quanto indigena, tanto all quanto aryano; emfim, noutros pontos, tapuyas extremes, indios puros, com a só diffcrença, junto aos seus primitivos, em não usarem tangas, terem idéas christãs e vestirem cal(;as de azulão ... De raro em raro, alguns aspectos da vida de cidades organizadas, que as ha - são como breves synalephas nessa mostra continua de l'etrogradação. Apresentam-se, para confirmar a regra, como indice de maior garantia á estabilidade das condiçêies de vida: crescem ao sDpé das serras frescas, como Maranguape, Pacatuba e Baturité; marcam, no curso dos rios, pontos de varzeas féracissimas, como o rcó, Quixeramobim e Lavras; quando não denunciam a existencia de grande lagoa üu açude, como no Iguatúe Qnixadá (1). Mas, embora reagindo contra as condições envolventes, esses nucl€os urbanos soffrem a influencia inevitavel do ambiente, de que representam a equação. ( 1) Esta Jltirna cidade está a jusante do A~'llde do Cedro, unico grande açude existente no Ceará, cuja cÜIlstrucção foi ordenada por Pl'.]ro II, mas só concluida em 19(19. Como é sabido, lIas « obras contra as seccas », que absorveram centenas ùe 28 CAPJTULO I Nellas se affirma, mau grado tudo, o val.)r do sertanejo. E, para maior comprovação, Õ epois de varios dias de viagem, insulados flOS valles da serra do Arari pe, vamos encontraI' a. seiscentos kilometros da costa, g:randes nuc1eos de população muito densa, E em muito maior contacto com as manifesta~ões de vida do presente. No Crato, por exemplo, que é como a capital da região chamada do Cariry, depara-se uma cidade que é uma tentativa quasi victoriosa para integrar o sertão na vida de hoje. Volta-se a ver iIluminação electrica, imprensa, bom hotel, cinema, geral preoccupação de hygiene e conforto (1). É impressionante, mas explica-se. A possibilidade de organização economica, mais ou menos esta\'el, da região, permittiu o accumulo e emprego de maiores capitaes (~seu consequente e continuo aproveitamento, ca'paz de sustentar o progresso. milhares de contos, no governo Epitacio Pessoa, não logroll ver o Ceará nenhuma no\'a grande represa. Apenas se concluiu a barragem do açude Acarape do Meio, de ha muito iniciada, a 47 kilometros de Fortaleza e que serve de resen"atorío para o abastecimento de agua ùessa I:apital. ( 1) O Crato conta quasi trinta mil habitantes" A cidade ao sopé da Chapada do Araripe tem bello aspecto e intensa vida commercial. É séde de bispado, possue grupo escolar e posto re prophylaxia rural. Parte da cidade é ealçada. E~I CAMINHO o que é impressionante e, it primeira vista não se explica, é a existencia, a tres leguas dessa cidade, do grande agglomerado humano que é o Joaseiro do Padre Cicew, onde, como que todo o atrazo dos sertões se condensou, permittindo ainda maior retrocesso e estabelecendo condições propicias para o desenvolvimento de psychoses, em que repontam mentalidades, atrazadas por secu]os, na evolução humana. Havemos de fixar algumas das :mpressões desse povoado «sui generis» - arraial e feira, antro e officina, centro de orações e hospicio enorme - que é a faElosa Méca sertaneja ... CAPITULO II A MÉCA DOS SERTÕES Scenas e quadros de fanatismo - Um caminho pontilhado de cruzes A faranduJa dos penitentes «Vae vivo O'l morto? .. , " - Inconscientes semeadores da morte e da JOU¡;uru,- Dois traços a respeito da natureza da região - O Cariry, um ca'lO de insu¡aridade ùas tercas habitadas. II - « E estas cruzes, tão repetidas? -- Não se assuste. É a indicação do caminho. Vamos seguil-as e não ha por onde errar ... » Numa 7.ort.ade muitas leguas em torno do .Joaseiro do Padre Cicero, os «romeiros» têm marcado assim, de facto, as arvores, os troncos das raras porteiras, as casas da beira da estrada, as proprias lages que aqui e alIi affloram da areia como lapides desc.om'munaes, as palmatorias dos « cactuS» sempre verdes, os paus mais fortes das cercas trançadas ... Ha cruzes de todos os feitios, de todos os tamanhos, nas mais diversas posiçôes. Algumas na casca tenra da cajazeira, rapidamente marcadas por quem' passou, apressado, em demanda da suspirada Méca dos sertões, sob o peso do crime ou na esperança de um ex-voto que o redima; ou- 34 CAPITULO Il tras, golpeadas a facão, fundas e duradouras, no tronco arroxeado da emburana ou impressas no dorso revolto da oiticica copada. Quasi sempre, estas coincidem com os pousos dos romeiros, e deixam ver acima deBas, os restos da corda de tucum, ou a trança de cipó, que alli sustiveram as rêdes de descanç,o em longa caminhada dos « afilhados» sem conta do milagroso « Padrinho ... » Algumas, de longe a longe, trabalhadas com filigranas pacientes, attestam a esthetica primitiva de algum rude artista desconhecido. Outras, e estas mais raras ainda, porque o analphabetismo é a regra, su perpõem ou enlaçam duas iniciaes que são uma senha sacratissima por estas brenhas: --P. C. A variedade da symbolisação mal resume os graus da estreita mentalidade dos seus autores submettida á mesma superstição grosseira, ao mesmo fanatismo cégo e doentio, que ahi resurge numa dolorosa expressão de atavismo. O signo piedoso nem sempre fCp;resenta um marco de fé: por vezes, é já o attestado de sacrificio sangrento. E quando o exicio se deu em eondições propicias, dois paus toscos, embrechados, reforçam o symbolismo ... Junto a estas, vão cair depois, \ MEcA DOS SERTÛl<;S 35 uma a uma as pedras da sympathia; os seixos piedosos da oração, que por costume religioso cada qual deve lançar. Não são raros il margem dos caminhos esses monticulos de seixos e cascalho, evocadores de mortes tragicas. E a sua repetição, mais frequente á medida que nos aproximamos do Joaseiro, acaba por ÎI~pressionar ... Commove tambem, fundamente, em tal scenario, játocado de superstição, o encontro com os romeiros, indo e vindo. Familias inteiras, ás vezes. O chefe á frente, Jnontando um triste e somnolento ca vallo, com uma eriança ao callo ou á garupa; ô. mulher, ao encalço, com um petiz escarranchado á ilharga; velhos caminhando penosamente, aferrados a um bordão; adolescentes de olhar vasio e cançado, conduzindo crianças, por sua vez, ou immundos « picuás ... » Os que vão doente:::. se transportam em l'êde, suspensa por um varapau. E como essa conducção é propria em todo o Nordeste, tambem dos defuntos, costuma-se perguntar á passagem: « Vae v ivo ou morto? .,. » Não raro uma cabeça macerada emerge de dentro, ou o braço nÚ acena em categorica negativa ... Não obstante, a zona não é propicia a expansões dos caminhantes. 36 CAPITü LO Ir A saudação ou cumprimento amical, classico entre os que viajam pelo interior do paiz, ahi se substitue por um olhar desconfiado ou ind"ifferente. E que se começa a entraI' numa zona de todo em todo fóra da lei e da razão ... Topam-se bandos sinistros, armados até os dentes; ranchos de fieis, seguindo um « beato», que arv,ora a cruz enfeitada, ou tem amarrado ao cano do rifle um simples lenço vermelho, a que se juntaram rosarios e bentinhos. Da sombra da matta, chega-nos, de espaço, um marulhar de vozes indistinctas, ou a plangencia de um canto lugubre, que o vento entrecorta em dolorosos soluços ... É um grupo de romeiros em oração. Outras vezes, essas manifestações de culto errante se abafam nos estampidos de um tiroteio cerrado, que os écos repetem ao longe, ou no berrei 1'0 de um endemoninhado que se revoltou contra os que o levam it benção do «Padrinho». Por isso, para estas caminhadas, em tal forçada companhia, mais depressa toma o sertanejo a arma de fogo, como utensilio indispensavel, do que o proprio sacco de farinha, o molho de rapadura e a purunga d'agua, que compõem a sua alimentação habitual em viagem. As tropas carregadas que demandam ü A :UÉCA. DOS SERTOES 37 ponto terminal da estrada de ferro, passam quasi sempre guardadas. A.o enc.ontr.o dellas, todos estacam, para ceder caminh.o. f~ um momento pr.opici.o para que, antes que a .onda de pó suffocante nos envolva, .observemos me~hor .os peregrin.os. A maioria arfa semi-'morta de cançaçü e de privações. Esqualidüs, suj.os e maltrapilhos, vão dominados pela idéa fixa da benção do « Padrinho », representativa de meio ingresso no céu ... 110meiros abastados, ou menos ignorantes, contam-se rarissimos; e quando apparecem, são manifestamente doentes do espirito, ou criminos.os em' demanda de h.omisio seguro; A farandula dûs penitentes provém de quasi todos os Estados do Brasil. Uma familia enc.ontramos, pr.oximo a Barbalha, a tres leguas da « cidade santa », e que viera do .Rio Grande do Sul. Ahi ficára, depois de cumprir o voto, sem recursos para tornar aos seus ridentes « pagos ... » Mas, dos sertões limitrophes, s.obretudo de um circulo de cincoenta ou sessenta leguas, é que elles acodem, vão e vêm, sem cessar. É curi.oso notar que os cearenses são em numero reduzido, confirmando assim que o santo de casa não faz milagre ... Deve-se isso ao mais directo conhecimento do Padre e de CAPITULO Il sua histol'ia, á campanha da imprensa e dos sacerdotes catholic.os esclarecidos. O grande i"anto dos cearenses é S. Francisco do Canindé, em cuja igreja se realizam imponentes festas a cada 4 de Outubro (1). (1) « Qu'~rn, da capital, l.;ortaleza, pelo caminho mais commodo, quer visitar Canindé, hoje poderá s~~uir em automovel, ou segue a estrada de ferro até llaúna (6 hs. de trem), dunde ~oderá dajar, em automovel (31/2 horas) até Canindé. Agua corrente, ùe riacho ou poço, nflo encontrará nem em Fortaleza l1em na viagem. Tem que contentar-se com agua de cisternas (cacimbas). Terá que atravessar rios seccos, isto é, leitos de río quo cheios de pesadas massas de areia, não contém mais uma sÓ gota que 'Seja, enchendo-se tão sómente no inverno, isto é. ra estação chuvosa, que começa, geralmente, no quente mez de janeiro. O proprio rio Canindé, em cujas margens antigamente habitavam os indios canindés, e que innunda tudo, na maior parte lO anno, e;;tá completamente secco, sem uma poça d'agua. Quasi toda a natureza parece morta. A maior parte das arvores estão ~em uma só folha verde. TJdo está queimado pelo sol, que, lomo o inverno na Europa, mata a d,la. Atra\'ez dessa natureza sem recur50s, annualmente passam oitenta mil pessoas á procura de São Francisco das Chagas, podendo sÓ os abastados servir-se de automoveis ou cava11os. Uma moça ahi segue, pé ante pé, leguas e leguas, levando como offerta a São l"rancisco, um papagaio. Ingenuidade? Oh, náo I Ella tinha feito promessa de .lar a São Francisco o ohjecto de maior estimação. Era o papa~aio ... Outra moça vem caminhando, dias, semanas, mezes, pois tem que vencer duzentas leguas até chegar a Canindé. Pucha atraz de si o seu cavallo ensilhado, na tentação continua pam montar, ùescançando os pés sangrentos. )'fas não. Continua a pé, l) só se servirá do cavallo para a ,·olta. Um homem dccente111Cntevestido, na viagem a Canindé, bate todos os dias á porta de algum rancho, pedindo algo para comer. É abastado, rico lIlesmo, mas lez a promessa de viajar sem dinheiro, ,"ivendo de Z,', 1'.,d,.I, l'lJ1./. dll I),', .\111';",. ¡J" II \('f¡('t'dor (H;I'(';/,(ll. dl' C,.:III). a ~1 d" ,l:llll,ir_, dl' 1011. .\ 1II.EOA Df)S SElrrOE8 A dar credito ás informações, notadamente fl'ey.uentam o Joaseiro, sertanejos alagoanos, filhos da Parahyba e Pernambuco; são muitos, tambem, os dos sertões bahianos, os do Piauhy, Goyaz e Matta Grosso e, menos £rel! lIente os ri J grandenses d.o Narte e mine iros, da ZOUét norte do vizinho Estado. Quasi lodos viajando a pé, acabam por apresentar identico aspecto de degradação physica, ele sujidade OH immundicie. Muitos yão doente~), atacados dos peores males, ou se contaminam em viagem. Vimal-os em promiscuitlade com leprosos e boubaticos. E esse vae\'em continuo, pelo interior dos sertões, explica porqlw certos pontos do sul do terrilorio cearense, de tão bom clima, apresentam uma verdadeira synthese da rwsologia dl' lodo o paiz. O trachoma, por exemplo, encontrou no Joasciro (' arredores, condições para um fóco I"ormidavel. A inspecção medico-escolar que :'iC procedeu nas escolas do Cariry, em 1923, assignalou a espantosa eifra de oitenta e qU~Iesmolas. Outro [{:¡: o contrario. Segue de antomol'e! a C¡¡l1ind,'" onde es'·asia os bolsos, ùeixanùo todo o seu dinheiro /lO mírl'. do santo, e Vil·C, na volta até a sua casa distante, de eSlllolas. " ':IlEI PEOHO SIK~H;, o. F. ~l. (Artigo no "O ~()flle~tp.", de Forl<tleza: :~ . l.{ll1n~n(;() Filh" - .loa$eil'o do Pad,..c {'icel·o. 40 CAPITULO Il por cento de contaminados. Escolas houyc em que a inspecção encontrou affectadas todas as crianças e mais o professor: cento por cento I E a bouba, e as molestias venereas são outro flagella de proporções inca1culaveis (1). Os romeiros são assim, em nome de Deus, inconscientes semeadores da morte e da loucura! tT'O li< '" * E, no emtanto, a regIao é o verdadeiro oasis do Nordeste, com fontes perennes, vegetação farta e sempre verde, culturas rendosas e abundante variedade de fruetos. Quem do sertão caminhe para a Chapada do Araripe, vê a caatinga ir-se transmudando em cerrados de melhor aspecto, no ultimo trecho da viagem, notadamente de Lavras em diante; e, transpostos os pouco e1e(]) Eotes algarislllOS ~ào ùe publicações officiacs. COAslam do « Hclatorio da Diredori:t aa Instrucção Publica », em 1923, quando se installoll a inspec<;.ão medico-escolar e \lo interessante livro « Nosclogia do Ceará" ùo dI'. A. Gavião Gonzaga, quc por muito tempo chcfion no ¡:slado a commissão de Prophrlaxia Rural. A }LECA. DOS SERTÕES -1-1 vados contrafortes da serra de São Pedra, ha de notar que a flora como se adensa e avulta, num mais rapido alento. Para as bandas de leste, occupando larga pontão dos municipios d.e Aurora e Milagres, it direita da ravina collectora das aguas, que os mappas pomposamente indicam com o nome de Rio Salgado, ha ainda a caatinga rala e enfermiça, com trechos de quasi deserto. Ali, as juremas se apresentam sempre tr='stes, as emburanas quasi desfolhadas; e a oiticica, e o proprio joaseiro, sem a copa altiva, com que noutros pontos domina e alegra toda a paisagem, es batida num tom acinzentado de acre sujo ... E, de espaços, se sobrelevam, ameudados, os desolados comoros de pedra e areia, em que só logram medrar o « chiquechique », de braços multiplos e fervilhantes de espinhos, os « cardeiros» rastejantes, o « facheiro» alteroso e solenne, ou a macambira de lanças aguçadas ... Ficaram longe, comtudo, aquelles impressionantes scenarios de mais profunda desolação, por entre os quaes se viajam dias inteiros, sem ouvir um vibrar de azas, e em que o ar limpidissimo, de urna transparencia ennervante, permitte contar, urn a um, os espinhos de cada cactus, e as riscas de cada pedra ... As mesmas C.ll' '1'1;1.0 j l cact<1ceas surgem aqui em grupos maiül'es (~ quebram a monotonia ambiente, com as ~,uas flores mais numerosas, sangrentas como chagas vivas, abert¿:l.s no proprio penhasco (.'lU que se abrigam, ou esplendentes de vi(,o, no milagre de uma alvura immacu lada; ( as bromeliacea8, d;~ vario porte, porfianùo entre si, no arrojar para o alto os pendôes hstivos de suas florescencias de Ollro, lemIram, por vezes, ao olhar cançado, um canto de jardim que mãos cuidadosas trataram ainda de vespera ... A fauna começa a represent.ax-se tambem, de modo "isivel. Sem falar das <: avoantes », pombas s(~hragens que, em dadas epocas do anno, enehern estes sertões, vêem-se agora bandos de meudas borboletas, cJnstrucçôes de termilas eada vez mais numerosos, passaras ri~cand() os ares, mesmo nas horas mais quelLtes, e it tarde, grupos de morcegos deixando o abrigo; surprehellclem-se mocós ligeiro e calangros espertos; e quando se viaja á noite, quasi sempre. enlhc-se o susto dOl:3 olhos phosphoreantes tl,tS l'aposas em caça ... A vida vae assim se revelando it medida ({.le se tomam as veredas do Cariry Novo . .\ sua enhada, desapparece quasi, ou se m;conde a vegetação xcrophyla dos sertões. SurJ gem, animando a paisagem, as copas rotundas, de um verde escuro, dos joaseiros extranhamentc vic;osos; a oiticiea, de hoa somhra, mede fOl'ças e elegancia com a cannafistula, de f1exuosa silhueta; os llmaryseil'OS se esgalham e afogam em verdura os mofumbos e marmeleiros; magestmia, se eleva a massaranduba, sombreando ás vezes o jucá, o pau-branco e a graÚna; emquanto que, todo vestido de flores, de um roxo SUétvissimo, o pau d'arco se ostenta, em pontos mais elevados, assignalando tl'iumphalmente os degraus da subida ... Breve, a flora toma perfeito caracter tropical: è a regiãu das « dryades», de Martius (I). Acompanhando-a, nos lugares mais humidos, vicejam bosques de 1ul'itys, sempre sussurrantes, e o babassÚ uLilissimo abre as palmas de muitos metros. Entre ondulações do terreno, manchas de cultura sempre aproveitadas; e, no valle do Batateira, em que entramos, os cartnaviaes deslumbram, agora, com os seus 1ençóes verde-claro, abertos á luz, como mal sonhada maravilha ... Esta região, está claro, não suffre os rigol'eS da secca. As estiagens prolongadas inC]) Sobn, u. !1úra llo Ccaril, I·ide nota Jill (¡m do I'oill/ue. CAPITULO II fluem, ao contrario, beneficamente, no seu desenvolvimento economico. Acossadas por ellas, as populações circumvizinhas, num raio de muitas leguas, pagam por alto preço os cereaes e o assuear, e offerecem-Ihe milhares de braços, pelo simples preço da subsistencia diaria, .. Para dar urna idéa de como seus habitantes julgam o periodico flagella, registemos aqui a simples resposta illustrativa, com que, a urna pergunta nossa, retrucou o Prefeito Municipal de Missão. Velha, bom homem, necessariamente, rico agricultor e cornmerciante: «Qu;(),l, vamosrnal... Pois imagine que já não ha U1/'lll; secca grande ha uns bons quat·ro ann08! ... » (1). A observação que depois ouvimos tambem, mais ou menos disfarçada, na bocca de pessoas de maior cultura, tem uma eloquencia decisiva: o Cariry, região fertilissima, entre sertões inhospitos, de cinco Estados, cumpre a sua funcção biologica de insularidade, que \Vallace tão bem definiu, na obra que se tornou classica: «Island Life» (2). Insulano8 (1) Sob,'c a historia ùas seccas, viùe nota no fim ùo volume. ( 2) A noção de insulal'idadc biologica não cabe só ás ilhas ,lo mar, mas á.s « ililas do deserto» - os oasis, e ás « ilhas das regiões habitadas»: os vDllcs íertt:is. Cf. BnuNHEs, La Gea~ çraphie Humaine, Paris, 1912. (2ème. cd.). A )rECA DOS SERTOES 45 omnes in/idos habere ... Toda a historia das ilhas e dos oasis é tecida de conflictos politicos e economicos. E o Cariry nÜ,o se tem podido furtar, mesmo ás manifestações daquelle genero (1). Pois é á entrada de uma zona, assim magnifica, num desvão da serra do Catolé, que surgiu e tem medrado, quasi parasitariamente, () mais singular povoado do Brasil: o .Toaseiro do Padre Cicero. Vamos penetrar nelle, resolutamente. (1) Já, por duas vezes, em 1834 e 1846, agitou-se a questão ùa separação do Cariry, em Provincia independente, com territorio que se tirasse em parte do Ceará e em parte de Pernambuco. A Capital seria a cidade do Crato. Como havemos de ver, DUOl dos cap. seguintes, a sedição do Joaseiro, em 1913, tomou vulto tambem por se apresentar a alguns foliticos da região como uma possibilidade de reivindicaçã.o politica. CAPITur JO III TRANSPONDO AS TRINCHEIRAS", A~ defesas do antro legua~, aberto - Um fosso de trl'~ ern sei~ dias -- No seio tia Méca As casas dos romeiros, por d~lltro c por fóra Uma cidade nasccnte, emmoldurada na miseria e na dÓI' -- A i~rcja dns « mila:;res )}. III Pam quem vae de Ingazeira, via Missão Velha, o J oaseiro não- se descortina á distancia. Tambem não apparece, de subito, apontando de dctraz de um capão de matta, ou de urna dobra de serra. O caminho se desenvolve, nas immediações, cortando apenas um' capoeirão que veste terreno de quasi imperceptivel declive. E, como se vêem' enchergando, de espaço a espaço, desde muitos kilometros atraz, miseraveis casebres ou mal assentados tugurios, .os que se notam agora, mais ameudadarnente, não impressionam como COiS'i nova, de merecer attenção. Em certo ponto, no emtanto, a vista dá com uma obra inesperada: um larg.o fosso se extend€:, transversalmente ao caminho, e não parece ter fim, para um e outro lado-, insinuando-se por entre arvores esgalhadas ('.-\i.'l'l'ULO III e toscas habitações. como uma fita vermelho sujo recalcada na IJaisagem. O viandante ha de parar curioso: , ~(Que é isto?» É o Joaseiro C'). , Como, o J oaseiro '? Estas são as trincheiras, pOIS não está yendo? ... E o guia solicito ajuntará outras informações preciosas: .-- Estas vallas rodeiam todo o povoado. Têm mais de quatro leguas de comprimento. Foram abertas numa semana, }Jar occasião da guerra do Rabello ... (2~,. E nunca mais se fecharam ... » Si alongarmos a vista de novo pelo fosso aberto, depois de um calculo ligeiro sobre a cubagem da terra cavada e revolvida, duvidaremos de parte da informação. Sem se conhecer o Joaseiro e a sua vida, não se pode acredit.ar, de facto, que tão formida\7el (1) .'\ denoIllina~:ãu « Joas€iro» ¡>l'O\'émniio do ({joá cio camconhecido no sul, mas de uma arvoro de grande porte -. Ziz-iphius jll<lseiro, Marl., cujas folhas re3islem mesmo ás maiore .• seccas. O Joaseiro c a Carnahuba poderiam ser tomado:; c<Jrno as duas plantas sagraclas do Xordeste, tacs 05 seus prestimos e resistencia. (2) O Cel. Marco~ Franco Habello, presidenle do Ceará, dl'pusto em Ul U, pelos [analkos do Padre Cicero, po l>, 'l'ltA X~P()" Dl) AS TmNCIŒIRAS ... ;j 1 trabalho se tenha realizado em seis dias. Não ~e trata de um vallado singelo, mas de uma verdadeira escavação de guerra, com cerca de dois metros de altura, nalguns pontos, por Olltr.o tanto de largo. Embora volví dos quasi dez annos, depois de sua construcção, podia lIotar-se ainda que a terra extrahida fora cuidadosamente atirada para o lado do arraial, de modo a formar em t.alude, um anteparo aos sens defensores. Obra de defcsa Hperfciçoada, de typo classico, tendo-se em vista a natureza do terreno e a possibilidade das :ll'mas dos combatentes. Sob tal impressão, vamos seguindo. Atl'a\Ocssamos () largo fosso, sobre qLe a estrada ínfleete desgraciosamente, e penetramos por entre casebres de pau a pique, mais adensados agora, de miseravcl a~,pecto. São ('In tudo semelhantes aos mais pobres que vinhamos observando em t:aminho. Não se acredite, porém, que sejam do typo característico das habitações ruraes do Nordeste, com pilares ou esteios rodeando toda a constl'ucção ar. sombreando-lhe a frente, e nos quaes os armadores da rêde esperam, sempre abertos e acolhedores, o leito transporlaveI e baJoiçante de qualquer caminheiro, para ° sllster, sem nenhuma retribuição ail 52 C.\PITCLO III agradeciment.o a.o dono da rasa. Ao envez, cada casucha dacruellas mostra vigilantes, sobre a unica p.orta da frente, dois buracos que são duas setteiras inconfundiveis ... Alguns minut.os mais, e estam.os no seio da Méca sertaneja. Arruad.os dos mesmos pardieir.os, extendidos por tres ou quatr.o mil metros, cruzam'-se em varias sentidos. As habitações quasi t.odas se copiam por fóra, em muros mal aoabados, despidos ordinariamente de qualquer intenção esthetica, quanto se parecem n.o interior, pobrissim.o e immundo. Por fóra, quasi que só as distingue a numeração: um cartapacio com' grosseiros algarismos, n.o geral seguido das mirificas iniciaes __ P. C. --, e de crm~es, signos de Salomão, .ou de ou tros symb.olos de uma cabalistica rudimentar. Não raro um «Vivva o meu Padim Ciço >~, esparrama-se a carvão pela parede mal caiada, com muito fervor e nenhuma orthogr2_phia. P.or dentro, uma sala em toda a largura da habitação. Duas alcovas, - as camarinhas '- e a cozinha, tudo sem outro piza sinão él terra batida, sem f.orr.o e sem pintura. A eozinha é de t.od.osos c.ommodos o mais interessante. Nella se vè, num canto, o « poiá», o TRANS?ONDO AS TRINCHE£HAS ... 53 com a sua craLéra sempre fumegante; no angula opposto, o « caritó », especie de prateleira tosca de tres ou quatro vara8, mettidas pelas extremidades no adobe das paredes; dFas panellas de barro, uma gamella, algumas cuias, eis toda a bateria. Uma trama fechada de teias de aranha, com pingentes baloiçantes de picuman, se distende par cima de tudo. Ninguem lhes toca: as aranhas dão sorte e annunciam as ch-.was ... Num ponto sombrio e protegido, descança a « jarra» da agua de beber. É un grande pote, ás vezes de mais de um metro de altul'a, em que se traduz a ultima expressão da ceramica sertaneja, tão aperfeiçoada que não pôde ainda passar da forma singela. do vaso etrusCD que o indio já copiava ... Elle representa, comtudo, na existencia do Nordeste, alguma coisa de sagrado: a agua, a vida, algumas vezes. Para os fanaticos, apresentase, alem disso, como uma fonte cie crendie-es. O lodo, que se lhe ajunta pOl' fÓl'a das paredes, é mézinha infallivel para a cura da sapiranga (1) sinão do proprio trachoma; as incrustaçõe¡:. provenientes da má qualidade da agua e que se possam formal' no fundo, ( 1~ InflalllrJla~'ãll LPnigna das l'alpebras. C'Al'IT{'LO III rccebem ouÜas applicações therapeutic.as diycrsas; e os tres carvõcsinhos, encontradi('.os um palmo ahaixo da terra, no mesmo lu~al', são talismans preciosos para a cura de todas as mazellas, « fechamento do corpo:, e espantalho infallivel do « Cão » ... Penduradü ti hocca da jarra, ou Hlcttido }>plocabo num buraco da parede, o « caneco de tirar agua» se destaca pelo polido de folha Tl()\Ta.Ninguem pode beber por elle. Recortado em pontas, na bocca. por toda a volta, num rendilhado paciente, sangraría os labias dos que o tentassem, inutilmente aliás, porque o liquido escorreria pelas aberturas intermediarias c por 11m pontilhado de furin has renleando-lhe OS bordos. Ainda nos mais miseraveis casehn~s, csse utensilio não falIa, sendo ás vezes o unico apetrecho domestico em que transparece a cxistencia da idade dos metaes ... Esse facto demonstra que :1. expcJ'iencia do caboclo não tem passado despercebida a idéa da transmissão dc muitas molestias pela agua contaminada. lViuií os não n'a bebem 'Sem ser « dormida;) e prelcndern csterilisal-.1 com a introdueção, nu sp.io do liquido, de um pedaço ùe ferro em brasa. Chamam a ist..o « fCITal' a agua », pratica que é usada mesmo pOI' gente pj'esumid:~- o tll/llJt. elu ¡"', Xa!'in- falIlll:-iO Bl.'ato cll' (Ilirei/'(o, 11:1 Crill, á pOl'la 1.1(' Ulll l'(>ll1iLl'rio. TRANSPONDO ..••S THlNCHEIRAS ... o);) mente culta, nas cidades e até nas c.apitaes IIordestinas ... (1) . Nada mais, ahi, de curioso. Na sala da frente e nas c<lmarinhas, armadores em cada canto ou pedaços de c-orda qu'e os substituem; presa •.. 1, um delles, a rêde, sobre si mesma enrola<la, suspensa por um dos «punhos ». Esse leito primitivo é a ultima palavra em econ:nnia de espaço; numa saleta ele poucos metros quadrados, podem se armar meia duzia delles, uns sobre os outros, em andares ... Quando viaja, o sertanejo o conduz por toda a parte, e, onde quer lque precise de repouso, em alpendrada extranha ou no seio da caatinga, acha sempre dois arrimos promptos a susteI-o. Nalguns casebres, uma caixa de madeira e uma esteira de palha de carnahuba são luxos que mal se imaginam. Apetreehos de trabalho, tambem rarissimos, e, nO' geral, mais constantes os de lavôr feminino. A almofada de fazer renda, com os seus centena( 1) Depois da publicação deste capitulo, em arlig no jornal ,( O Eslaùo ùe São ?aulo », recebemos uma carla de um illustrado cearense, em que se defende a efficacia da medida. Na mc:,ma carla affirma que a garapa de canna azeda e « ferrada» ,', u melhor remedio possh'el para a anchilostqmose. Falem os entendidos ... l) I...ourúnço lt'ilho - .rot'seiro do PadrB Oicerv. 56 CAPITULO III res de bilros pendentes, ou um bastidor muito tosco, onde sobre o xadrez de « pussá» já se entrevê uma dessas maravilhosas filigranas, de labyrintho; ou cuias, com sementes de mulungú, ou de outras arvores, para a feitura de rasarias, terços, collares, e enfeites primitivos ... Ordinariamente, não ha, nas pobres habitações, nem cadeiras, nem mesas, nem: camas. Em nenhuma deBas faltam, porém, pendurados á parede da sala, o rifle de tiro certeiro, e a effigie do Padrinho, em reproducção typographica, ou numa oleographia em que elle apparece miraculosamente rodeado de anjinhos, tangendo harpas celestiaes, entre nuvens de incenso ... * * :;: A medida que se caminha para o centro, as construcções melhoram na apparencia. Ha, em certos pontos, grupos de boas casas. Não é difficil notar, no emtanto, que mesmo nestas tudo continua a ter um ar de acampamento, em que os aspectos de improvisação e de ruina sempre se misturam. Parece que tudo é provisorio, levantado ás pressas, sem TRANSPONDO AS TRINCHEIRAS ... 67 grande esforço e sem esperança de longa permanencia no lugar. Aqui e alli, nos interminaveis arruados, quasi sempre á porta de uma « bodega », melancolicamente braceja suas palmas um coqueiro enfermiço ou um tamal'indeiro se esforça por formar copa, deplumado no aHa, onde os galhos semi-nús agitam ao vento os fruetos resequidos. Assim isoladas e poeirentas, essas pobres plantas parecem tambem contaminadas da miseria ambiente ... Sob o sol das onze horas, a desolação das extensas ruas, de alinhamento indeciso, parece mais dolorosa e acabrunhadora. Crianças núas passam correndo, sem gritos nem risos; romeiros acocorados á parea sombra da orla das casas, mastigando a. sua matalotagem de farinha d'agua e nacos de carne de bode, ou. « maginando», com o olhar fixo num ponto, aparvoalhado; porcüs fossam montões de lixo, com philosophica paciencia; cabritos ensaiam as suas defesas em simulacros de lueta, ou retoiçam, eom berras fanhosos, sob o olhar indifferente das cabras, que ruminam somnolentas; mulheres, sentadas ás portas, em saia e camisa, despenteadas, de aspecto repulsivo, quasi todas com a miseria impressa nas faces, dão-se á 68 CAPITULO III tarefa de catar insectos á cabeça dos filhos; numa esquina, um grupo mais animado 1'0ùeia o Beato de prestigio que celebra, ou 11m « penitente» quo profliga os costumes ... Ahi está o Joaseiro arraial, que contém cerca de vinte mil almas, a que se aggrega e de que se despede cada dia, uma grande multidão de romeims. É esse o Joaseiro temivel, o Joaseiro tradicional, a Méca do fanatismo sertanejo, que primeiro se depara ao viajante, se elle não avisou em tempo o 1>a'dl'e Cicero e os de seu grupo, ciosos em oceultal-o, mas solicitas em mantel-o. Porque ha um outro pequeno Joaseiro, abrolhando no seio desse arraial sordido e miseravel, sem hygiene e sem trabalho, abrigo de peregrinos e de cangaceiros da peor especie, de doentes e de malucos. E um verdadeiro milagre em tal moldura, mas existe. Duas ou tres ruas, a « do Padre Cicero», a « de São Pedro» e a « rua Naya», são calçadas a pedra bruta c dão-se ao luxo de ter alguma cousa parecida com passeios latemes, tres ou quatro construcções do sobrado, casas com platibandas grotescas, «jacarés» salientes (1) enumeração mais discre( 1) Galgul¡c;. • TR.\.NSPONDO AS TRlNCHl<;IRAI) ... ,-)9 ta. Habitações ha de relativo conforto e casas cornmerciaes de boa apparencia (1). É nessa parte que habitam propriamente os cearenses do Joaseiro, a população estavel entregue ao commercia e a pequenas e rudimentares indu~trias. Ahi fica tambem él casa do Padre, baixa e modesta, sempre fechada, tendo ao lado um sobrado tosco, pOl' elle construido, para mais commodamente 01'J'erece!' a « benção» diaria aos peregrinos. N uma larga praça, em ligeira rampa, assenta-se sobre um degrau a igreja de Nossa Senhora das Dores, cuja construcção muito simples, apresenta, no emtanto, certa imponencia de linhas. Não se pode dizer que obedeça rigorüsamente a nenhum e~tylo; mas as torres, hem lançadas, harmonisam com o amplo casarão que figura de nave e quebram a mono ton ia das casas de derredor, acaçapadas e inexpressivas. ( I) Com~. approxima{;ão da estrada ùe ferro, e Il. campnnltil da imprensa contra o desbarato daa rendas municipaes, fizeram-se nos tres ultimo5 annos al~uns melhoramentos materiaes no Joaseiro, segundo leio no « Ceará llIuslrado». Taes melhoramentos não existiam quando visitei il «MÚca do sertão)}; escrevendo, porém, gem nenhUlo presul'poslo de comhate aos llomen" realmel'.tc inter(!ssados pelo seu progresso, mas apenas para dar a puhlico um testemunho dos males sociaes quc lem permittirlo e fomentado a politien geral do paiz, .- é com () maior prner que ••qui con~igno ':sla nota. 60 CAPITULO nr Não pudemos visitar a igreja, porque se achava fechada e interdicta. Foi no mesmo local, primitivamente uma simples e pobre capella, que se deram em junho de 1890 os primeiros « milagres », que haviam de conferir a maior das famas ao Padre Cicero c que havemos de descrever num dos proximos capitulos. CAPITULO IV NO REINO DA INSANIA -em frenle a casa do « Padrinho}) - lIlatizes ùe fé e credulidade - Singularidades d" um culto sem ritual - Oração expressiva O « Beato da Cruz)} - Scenas de sabbat ail Rol do meio-dia ... - Acolhido ao tabernaculo. IV Chegámos ao centro do Joaseiro ás onze horas da manhã, e já não foi s·em difficuldade que conseguimos encostar o carro, em que viajavamos, junto á casa do Padre Cicero Homão Baptista. Todo o espaço da rua, naquelle quarteirão, estava tomado de gente, qll(~ ali se apinhava procurando lugar diante da porta ùo Padrinho, ou da janella gradeada, de onde elle costuma lançar a benção. Porta e janella estavam, porém, fechadas. Puzemo-nos de pé sobre o carro, para melhor observar aquella multidão agitada; e não logramos perceber, no primeiro instante, sinão a malta daquelles mesmos romeiros da. estrada, sujos e abatidos, com os seus « cassácos », os seus largos chapéos de COUl'O Oll de palha de carnahuba, os seus bordões e os seus hentinhos, o rifle inseparavel e as CAPITULO IV « pracatas» amarradas á cintura, ou pendentes do cano da arma. A primeira vista, aquel.~amassa tinha uma unidade; expressões d.os mais dispares caldeamentos de raça ali BC 4~onfundiam, e apenas um' ou outro semblante mais puro resaltava. Tal impressão não subsistia, porém, depois de mais demorado exa'J.ne.Podia notar-se que aquelle ajuntamento ululante se deixava dividir em varias castas, mais ou menos distinctas, segundo as condições de vida de cada um, sua raça e proveniencia, e de modo especialissimo, quanto ao estado de eHpirito do momento. Na mesma agitada atmosphcl'a de insania, havia matizes de credulidade como perceptiveis graus de fanatismo. Emquanto alguns se arrojavam ao sólo, na pratic.a das menos concebiveis mesuras, em penitencia ou oração, outros, numa imperturbabilidade de estatuas, não desfitavam os olhos da janella gradeada, á espera dR face veneranda do Padrinho, que alIi se não mDstrava já havia quinze dias. Sabia-se que estivera doente, mas que naquelle dia devia apparecer e abençoar seu tão numeroso rebanho. Estavam, por isso, .alguns, com as mãos postas, e tinham' nas faces uma expressão de suprema KO REIKO DA INSANIA 65 heatitude ... Entre estes, uma adolescente, cujo perfil quasi puro e a tez menos tisnada a destacavam eomo uma flor de estufa, em campo agreste, lívida e impassivel, lembrava uma imagem de Madona ... Sem attenção ao lugar, quasi sagrado, e aos companheiros contrictos, havia tambem quem conversasse em voz alta, sobre a colheita do algodão e o caso de uma rez perdida. Mas eram poucos, e attrahiam olhares de viva indignação dos circumstantes. Um pequeno grupo, só de mulheres, descançava de cócoras. Os homens em descanço não tornavam essa attitude: encostados á parede, deÍxavam cahir o peso do corpo sobre uma das pernas, e levavam o pé da outra, tam'bem ao muro, em flexão que realmente repousa. Este habito é tão commum aO sertanejo do Nordeste, que são poucas as paredes de esquina, de mercados, corredores, e até de igrejas, que não mostrem, á altura de meio metro, as marcas de lama dos pés descalços, e o arranhão do couro grosso das alpercatas ... Naquelle ajuntamento, havia crianças tamhem. Na maioria, inteiramente despidas, e pequeninas, ou se apegavam ás saias das mães, medrosas do que viam, ou circurnva- 6G CAI'I'l'ULO l" gavam o olhar por tudo, num deslumbramento. Fustigadas pelo calor, ou pela fome, talvez, que algumas ¡Iludiam roendo duras sementes de catolé, agitavam-se nervosamente e choravam de espa.<;...o a espaço ... E esse cllUro, atormentado e dorido, sensivelmente crescia. quando mais fortes se ouviam os estampidos de bombas e foguetes, que não eessavam de estoirar em logar proximo. Tal bombardeio -- soubemol-o depois representa uma das singu laridadcs do extranho e impreciso culto dos romeiros, em quc,_ ~wb o arremedo das cerimonias do rito cat holico, affloram as mais grosseiras praticas de superstição. Apenas chegados á Méca, por que tanto suspiram, os peregrinos se dirigem á frente da igreja, e ahi, seja dia OH noite, e com qualquer tempo, fazem queiHlar os rojões que podem. em louvor do Padrinho e pela alegria de chegar. Os mais pobres atiram meia duzia de bombas; os mais abastados, duas, tres, cinco, dez duzias de foguetões. E como são muitos, pois entram e saem, diariamente, cerca de tresentos romeiros, ha um espoucar qua.si descontinuado, e por vezes, um cerrado metralhar de batalha ... Por essa razão, o commercio dos pl'Odlld_ "W REINO DA INSANB. li7 elos pyrotech~llicos é activo, e pode :3er eornparado ao de medalhas, santos e orações. Destes ultimos objectos de devoção, chega a haver vendedores ambulantes, discretos c intelligentes. Ap.enas chegados, fomos abordados per um deIles: --- «Vigie, 1)WÇO, vossória amóde que vem ele longe, /Ù,ue com esta oraçãozinha de lernbrança do nosso santo J oasei1'o ... É sÓ . 't oes - .... (I \). d o~s Era um pedaçû de papel ordina.rio, tendo de um lado o retrato impresso do Padre Cicero, e de outro, ~sta prece: p.te. « Santa :Mãe de Deus e Mãe nossa, Mãe da::; Dores, pelo amor do nosso Padrinho Cicero, nos livre e nos defenda ele tudo quanto Cor perigo e miseria; dae-me pacicnci¡¡. para soffreI' tudo pelo vosso amor e do meu Paùrinho, ainda que nos custe mesmo a morte. Minha Mãe, trazei-me o vosso retrato e o do meu Padrinho no Vosso altar retratado, dentro do meu coração, daqui para sempre; r(~conhc(;o que vim aqui por vós e meu Padrinho; c1ae-me a sentença de romeiro da Mãe (1) O sertanejo di", «um tostãO»; e a<;sim por diante. porém, dois'Wes, tres'[õ()!';, 68 CAPITUI.ü IV de Deus, dae-me o vosso amor e a dôr dos peccados para nunca mais cahir no peccada mortal; dae-me a vossa graça que precisamos para amar com perfeição nesta vida e gosar na outro por toda a eternidade. Amen. Viva o meu Padrinho Cicero mCllS J) e~. De longe, isto pode parecer de um grotesco inexcedivel. Não o chega a ser, porém, naquelle ambiente de insania, porque é mais do que isso: é horrivell Sob a vibração do estrondo das bombas e foguetes, numa temperatura de forno, sentindo o fartum daquella pobre gente, .ouvindo imprecações e pedidos de misericordia, soluçar de preces e choro de crianças; não vendo ao redor sinão rostos de illuminadns ou de penitentes, faees maceradas, physionomias que movem a mais profunda piedade - o sentimento que ~e apodera do observador não no permittirá rir ou zombar ... O que se tem é um vehemente appello da razão, que o levaria a protestar, a gritar, a chamar á realidade aquel1e eHtupido rebotalho humano, ensandecido e explorado - si a mesma razão não lhe mos(1) No cap. sobre expressões do folclore, damos varias ou· h'a!; orações, nalgumas das quaes transparecem mais puras as illéas e a linguagem ùo sertanejo. NO REINO DA INSANIA trasse o perigo do desgraçado que ali ousasse esboçar um gesto, que fos8e, de critica' ou UIT. dito, apenas, de conderri'nação ... Diante de uma tal mostra de degradação humana, o da incapacidade em contel-a de prompto, não se pode deixar de sentir o maior acabrunhamento e desespero! ... Elle dura pouco, no emtanto. Transformase, ás vezes, em pasmo m'aio!' e dôr mais cruciante. Assim foi comnosco, pelo menos. Subitamente, um alvoroço extranho sacudiu toda aquella multidão. Houve um sussurr.o rapido, seguido de impressionador si1encio, a que cederam mesmo as preces dos devot.os. Imaginamos logo que o Padre tivesse apparecido c voltamo-nos para a janeUa gradeada das bençãos. Mas não era elle. Tratava-se de coisa differente. De uma esquina proxima, surgira esquisita personagem de barba nazarena, em trajes de amortalhado, soh comprida opa preta, ënfeitada de cadarços, rendas e galões de defunto. Trazia ás costas pesada cruz de madeira, quasi escondida na parte superi.or, por gravuras de santos, ahi pregadas, bentinhos, rasarias, conchas, imagens, esca,pularios, fitas, flores de papel, medalhas (j outras bugigangas. Cobria-lhe a cabeça um solidéo 70 CAPITliLO lV tambem preto, com uma espantosa cruz, desenhada a galão r€brilhante, o que lhe a1.1gmentava extranhamente a estatura e lhe im'primia ao todo urn. ar hieratico, inconfundivel... Caminhava inteiriç.ado, com aspecto de somnambulo; e a COI' terrosa da tez e o vasio do olhar davam-lhe um quê de sobrenatural, impressionante ... A multidão se comprimiu, deixando um espaço ao centro, por onde elle veio entran(lo, alheiado a tudo, hebetisado sempre. Chegado á porta da casa do Padrinho, que con tiIluava fechada, descarregou a cruz, e apoia'10 nella, ajoelhou-se com os mesmos gest.os duros e machinaes. Iniciou em seguida, com)rida ladainha, quasi incomprehensivel, mas it que todos os devotos iam respondendo, ungidos do maior respeito. E dentro de pouco Iodas as vozes se elevavam num só sussurJ'al' lamentoso, e cresciam depois, em me)opéa dorida e plang(~nte ... O sol do meio dia dardejava a pino, arrancando chispas das medalhas e contas que pendiam da cruz do beato. De repente, eis que elle se levanta de um salto, agita o pe::;ado madeiro, cujos enfeites tilintam e chocalham; e se abate depois, ao chão, com c3t.repito, abandonando o complicado instru- XO REINO DA INSANIA 71 mento de devoção, agitando os braços e as pernas, rolando e espumando, sob o terror reverente dos circumstantes ... E ainda não era tudo! A agitação de endemoninhado termina. por UITOS e gritos medonhos e um chôl'o convulso, nasalado e sacudido, como doloroso orneio ... E a multidão, a esse tempo, redobra a sua contricção, bate no peito, desfia rosarios, enxuga lagrimas, afervóra as preces ... A. physionomia dos iniciados mette medo, então! E como se é forçado a simular o maior acatamento a taes desproporções, acaba-se tendo a impressão de que se penetrou demais naque1le dominio de insania, no pesado e avassalador ambiente da demencia, no imperio do abracadabra, em que as idéas n01'maes das coisas e dos valores se esbatem e se obumbraIn, não mais se applicam com logica, e sr baralham e revoluteiam, e sarabandam, infernalmente! Corntudo, não era sonho. NÓs o vimos. Era uma realidade incontrastavel, á luz do dia, em plena via publica ... Scenas de barbarie num ambiente de demencia! Sob o dominio dessa emoçãJ crudelissima, recebemos attencioso recado do Padre. É qlle já foramos percebido, pelo « argus» oo. 72 CAPITU[l) 1\- da terTa e já tínhamos observado de mais, por certo ... Eramos convidado a entrar em casa do Padre apenas se entreabrisse a porta, que Jogo voltaria a fechar-se, para evitar a invasã:o dos devotos. E foi, de facto, em meio de soccos e etnpurrões, empuxõcs e blasphemias, que conseguimos transpôr o limiar do tabernaculo. Dois minutos depois, amavel e sorridente, recebia-nos o Padrinho. Tinha ao lado o seu medico de momento, e a beata « Mocinha », sua pupilla e cuidadosa governanta. Não os commovia, em absoluto, o tumultuar da populaça, que se manifestava, la fól'a, por furiosas pancadas na porta, em gri:os nervosos e insistentes chamadas. Quem viesse do meio daquella multidão em furia seria extl'anhamente impressionado pela serenidade do interi.or da casa, como se de um pateo de manicomio em revolta entrasse num Íi3mplo discretamente illurninado e silencioso, onde tudo f.osse harmonia e pureza ... A simplicidade dos moveis e ornamentos acclmtuava essa impressão. Depois de dois dedos de prosa, sobre as maçadas da viagem e a molestia de que o Padre convalescia, a conversação de\"ia interromper-se. Chegára (I barbeiro, e o Padre NO mm¡¡o DA INSA~IA 73 pedia licença para raspar os queIxos, como qualquer mortal... Convidam-nos a ver, por instantes, algumas curiosidades da casa, entre as quaes uma rica collecção de aves, onde não eram poucos os especimens da ornithologia amazonica. Deixamo-nos levar para um alpendre interior, muito ensombrado, com crotons vicejando em latas, e um sem numero de viveiros e gaiolas, arrumados em linha, pelas paredes. O calor era horrivel. No bochorno da hora, os passaras não cantavam e as aves maiores, entorpecidas pela calmaria, eriçavam as plumas variegadas, sus':entando-se num pé só. Chegavam até ali, em gritos distantes, os protestos interminaveis dos peregrinos. E sobre elles, uma voz se elevava de dentro da. casa ou do vizinho, entoando em voz esganiçada, ingenuas redondilhas. Percebia-se entre ellas, este refrão expressivo, que nos evoeava) em obcessão irritante, as scenas de que ha pouco haviamos sido testemunha: « Não tenho capacidade, Mas sei que não digo atôa Padre Ciço é uma pessoa Da Santissima Trindade! ... " CAPI'fULO V ECCE HOMO Lm homem? Não, uma sombra - Talvez j~ o milagre ... - Retrato physico do «Padrinho» e esboço de sua singular personalidade - Opiniões diversas - le Santo:> ou «demonio l) ••• -. O que diría um especialista. v. Não havia muitos dias ainda, Padre Cicero RomãD Baptista abandonára (I leito, depois de grave enfermidade; e essa circumstancia não podia deixar de influir, poderosamente, na impressâJo que nos devia dar, em primeiros instantes de palestra. Estava com a barba crescida, rD que lhe adoçava as feições, prolongando o rosto, ligeiramente, e disfarçando a saliencia visivel dos malares, angulosa, quasi em ponta. O abatimento que a molestia lhe trouxe havia-o curvado mais que de costume, e escDndia naql7.ella debilidade enfermíça - que accentuava a que os annos já de muito lhe deviam ter communicado - a gibosidade natural que o deforma. A voz, sempre branda e harmoniosa, mais se enfraquecera, até tomar a doçura e os accentos de uma faIR de crian- 7R C.l,l'ITULO V ça. E a sua mesma alacridade, tão conhecida e exaltada, como dadiva dos céus, enevoava:,;e com as sombras de um soffrimento que se não mitigara de todo ... Escorrida pelo corpo, a sotaina negra e larga augmentavalhe a brancura dos cabellos muito crescidos, e parecia reduzir-lhe ainda mais o porte, abaixo de mediano. Para levantar-se, apoiava-se com ambas as mãos a uma tosca bengala; e o seu andar era lent.o e arrastado ... Acreditamos ser victima de um engano, ou já, do milagre. Que era, com effeito, do homem que tangia as turbas, manejando um varapau famoso, cOrn o qual abria caminho a rijas bordoadas, soffregamente disputadas aliás, pelos devotos? ... Que era do caminheiro que jornadeava dez leguas sem descanço nem refeição, e que, estando em toda parte, a toda a hora, não abandonava, comtudo, o seu povoado? ... Que efa do exorcista sem par, a que nem mesmo o peaT dos demonios resistia, que era do dominador de loucos, e emfim, do revolucionaria destemerosa que tanto affrolltava ás autoridades da Igreja como aos senhores do Estado? ... Tudo quanto delle seria legitimo imaginarse, oppunha-se flagrantemente ao que ora tinhamos em presença. Aquella não era, por ECCE HOMO! 7!l certo, a figura esperada do dominador de um ambiente de delirio, como o do JoasEliro. Era logico haver supposto um personagem diabolico, uma figura impressionante; e, estavamos, no emtanto, face a face com um octogenario amavel, quasi timido, de uma simplicidade rustica, c que se accentuava no aspecto debil e na linguagem ás vezes imprecisa ... Nada podia denunciar a sua conhecida psychose, sinão os olhos pequeninos e movediços, de uma só expressão enigmatica, como se fossem de louça, e de uma eoI' indecisa, entre o '3ardo e o verde sujo. Esperavamos um homem, e, naquelIes primeiros instantes, não conseguíramos entrevêr sinão uma sombra ... Não obstante, aquella sombra devia fixar os contornos e revelar-se cruamente, meIa hora mais tarde. Depois de haver passado pelas mãos do barbeiro, refeito tambem, talvez, da surpresa da visita, de que não tivera aviso, o Padre mostrava outro facies e outros ademanes, capazes de alterarem profundamente a impres6 Lourenço Filho - JoaB.iro do Padre (!iura, 80 CAPITL"LO V sã.o anteri.or. Escanhaado, nãa podia escander agora, .os traços duros e angulasas, .os vinc.os f.ortes da face pergaminhada, a saliencia impressi.onante dûS malares, o ligeir.o prognatism.o de 1.000, .o rictus indisfarçavel e sinistr.o, que lhe envenena .o sorrisa ... N.o falar, .os labios se ret.orcem e descaem numa das cammissuras. O cabella, aparado, agora, e levantado em pôpa, descobre as .orelhas largas e abertas em leque, e lhe empresta um ar petulante. A cabeça chata, sabre .o pescoço curt.o e cheio, descamba para a direita, repuxando as feições, sensivelmente asymetricas. O nariz quasi recurva, entre .os .olhinhas irriquietos, campleta a singular physion.omia que uma vez percebida difficilmente se esquece ... A batina que vestiu, de men.or us.o, revela um tronco mal confarmada, de anão, e nã.o permitte, como a .outra, ia disfarce dos gestos ameudadarnente sacudidos ... Quando fala, os seus esgares assustam; <pIando .ouve, a sua mascara é de uma rigidez de granit.o. Si não f.oram .os .olhos movediços e rebrilhantes, dir-se-ia urna dessas fjguras enigmaticas em jazigos antigos ... Esses indices ref.orçam a sua significação á medida que .o Padre alonga a conversa. Os estigmas physicos de nada valeriam sem ECCE IlO:\IO! 81 a sua confirmação num retrato psychico que elle nos pudesse dar, e de que vamos tentar ligeiro esboço. * '" * Confessemos, desde logo, que a tarefa não Ó facil. Um espirito não é uma causa que se pinta com 1inhas fixas, nem uma entidade que se possa qualificar por qualidades sensiveis, ou medir por unidades determinadas e eonhec.idas. A mentalidade se attribue ao individuo como funcção de sua propria existencia, 'c só se comprehende perfeitam:ente, quando examinada desde a sua genese. Por outro lado, para avaliação de seu valor, ella necessita sempre de ser encarada em relaç.ão ao meio. Nada exprime sem a ~;ua localisação no ambiente que o produziu, e que o conserva ou altera, cada dia. Taes difficuldades de analyse, inherentes ao problema de cada alma humana, sobem de ponto em se tratando de individuos em que um processo morbido se venha lentamente desenvolvendo. Isso explica a diversidade de opiniões soblc a extranha personalidade do chefe do 82 CAPITULO V Joaseiro. Não nos referimos evidentemente aos apologistas que o têm cantado, em prosa e verso, sob preço variavel, nem aos politicos que rOtêm explorado, nem aos detractores cégos de paixão ... Uns e outros, partindo de um presupposto que não podem negar, chegam á conclusão de que o homem' é um santo rOuum demonio, um justo e sabio varão ou um paranoico, demente commum ou illuminado verdadeiro ... (1). >I< * '" Os differentes periodos da vida do Padre Cicero Romão parecem demonstrar o desenvolvimento de grave psychose, revelada desde a adolescencia. É assim que, quando alumno do Seminario, em Fortaleza, já demons( 1) o Padre Alencar Peixoto, ex-dgario ùo Joasciro, num livro publicaùo em 1913, attribue não poucos crimes ao Pa.dre Cicero, retratando-o systematicamentc movido pelos peores sentimentos. Ao contrario, o hllecido dcputallo Floro Bartholomcu, que aliás ùeveu a sua cadeira na Camara Federal ao prestigio do Padre, em diversos discursos naquella casa de Con~resso, pinta-o como o santo dos santos, não tendo tido nenhum constrangimento em attribuir-lhe actos benemerilos que o testemunho geral e as proprias publicações officiaes do Ceará desmentem cabalmente. Entre essas duas opiniões extremadas, outras correm mundo, nem sempre sinceras e justas. ECCE HOMO I 83 trava signaes tão evidentes de mythomania, que o reitor do estabelecimento, padre Pedro Chevalier, .oppoz duvidas á sua ordenação. Maso bispo D. Luiz d.os Santos não acho LI que .o exaggerado mysticismo do formigão fosse um perigo para .o futuro missionario. Achou que devia ser ordenado, e assim se fez. O Padre Cicero recebeu .ordens em 1870 e fûi residir no Crato, sua terra natal. Convidado para celebrar na capella da fazenda do Joaseiro, a tres leguas daquella cidade, em breve para ahi transferia a residencia. e iniciava um heroico trabalho de evangelisação, quo desde logo lhe attrahiu as syrn'pathias dos habitantes de toda a :redondeza. Estava então em plena phase mystica e, segundo o testemunho geral, não ha negar que por essa epoca, a acção que desenvolveu tivesse sido a mais benefica possi vel. É preciso conhecer o atraz.o do povo e a rudeza dû meio para comprehender o alcance inestimavel de semelhante tarefa. Em certos pontos do Nordeste, ha ainda verdadeira necessidade de catechese christã ... A actividade do Padre Cicero, pelos annos calamit.osos da grande secca de 77-79, a crer-se no depoimento desinteressado de alguns contemporaneos, foi UAP1TULO V de notavel benemerencia. Attribuc-se-Ihe a jniciativa do plantio da mandioca e da maniçoba, na serra do Araripe, verificada nessa 4:lpOCa, alem da construcção de poços e pequenos açudes. É de crer-se que assim fosse e que o proprio reconhecimento dos sertanejos tivesse facilitado o ambiente para o trabalho do fanatica, em que elle ia transmudar-se. Porque do mysticismo ao fanatism:o não vae sinão urn passo. O espirito mystico tem sêde do incomprehensivel, do mysterioso, sente-se mal no dominio da realidade. Conforme o tempo e o meio, a variedade da educação e"as suggestões do ambiente, elle se lançarápor completo na religião," na magia, nas sciencias occultas, na doutrinação politica. Certas idéas delirantes são o eixo de toda sua dynamica mental. .. Reconhece-se no fanatico, muitas vezes, de modo clarissimo, o mystico em acção. :Não lhe basta agora a ligação com os numes inspiradores. É precIso communicar suas idéas, fazer valer as suas concepções originaes sobre uma certa classe de phenomenos ou mesmo sobre toda a vida universaI; e, não lhe bastando a propaganda. anceia por levantar os homens á sua pala- ECCE HO.MO! 85 vra; lunda novas seitas, estabelece escolas politicas, descobre mysterios, julgando-se sempre encarregado de uma missão sobrenatural ou divina ... E para o exito da empreza, em que vê a explicação de sua propria vida, não recua diante de consequencia alguma. FavorecÍ<~o pelo meio, modificado talvez, a principio, pelos proprios 'homens a quem se dirigia, (I mysticismo do Padre Cicero tinha que fransformar-se no mais rude dos fanatismos. Os milagres operados na pessoa da beata Maria de Araujo, no anno. de 1890, marcam' o inicio desta nova phase de seu espirito. Data dahi tambem a aggLomeração dos romeiros e, dentro de pouco, de gente de toda a especie, que demandava anciosa a nova Jerusalem, «onde Christo para salvação düs homens, de novo derramava o seu sangue precioso» ... (1). O fanatica pode tornar-se com facilidade um revolucionario não só porque a victoria de suas idéas exige muitas vezes a reforma social como porque elle se distingue dos mais por uma interpretação moral especialissima. Para elle não ha perfeita sepa(1) Palavras tio Paùre Cicero. 86 CAPITULO Y ração entre o justo e o injusto, o licito e o illicito. Ou, melhor, a lei moral é o seu arbitrio, a sua resolução de momento, porquanto se julga um inspirado, investido do monopolio do bem ... Dahi, sendo sincero, o não recuar nunca diante dos actos mais odiosos, para cumprir ü que considera o seu dever. Encontra-se nos fanaticos essa inferioridade de consciencia caracteristica: são semiautomatos, seguindo cégamente, sem se aperceberem do seu est.ado, os dictames de uma tendencia morbida (1). Um especialista talvez pudesse dizer que os actos do Padre Cicero, posteriores aos milagres de Maria de Araujo, demonstram esse estado de espirito. Talvez visse, tambem, outros symptomas, não menos expressivos, no aleatorio de sua resignação diante das ordens das autoridades ecclesiasticas, na sua proscripção temporaria do Joaseiro, na viagem a Homa, para recorrer da excommunhão ern: que incidira. Combatido pelos superiores da igreja, suspenso de ordens, Padre Cicero lança-se, emfim, á politica militante. Bem acolhido, começa por exigir a criação do municipio do (1) Les frontières de Za folie, A. Culerre, pgs. 191 (} 196. ECCE HO.àfO! 87 Joaseiro, onde toma o lugar de prefeito; e em breve, animado por alguns sequazes, que se aproveitavam das condições favoraveis da politica geral do paíz, pretende o dominio de todo o Ceará, com a sedição de 1913... Um especialista talvez pudesse dizer mais ainda, verificando nelle uma phase final de megalomania. De facto, sua maior preoccupação é referir-se ás relações que mantem com .os poderosos de todo o mundo, que o prezam como a igual, e á constante e proveitosa interferencia sua nos grandes acontecimentos mundiaes e nacionaes ... Nas suas palestras, emprega sempre phrases como estas, e que raramente vêm' a proposito: -- « Como sabe, eu me carteio com o Epitaeio ... Ainda hontem recebi telegr;unma delle ... » - « O Bernardes me distingue mUito. Tambem é preciso não esquecer que eu fui o arbitro de sua candidatura ... }) - « Os extrangeiros me eomprehendem melhor. Ah.i está um telegram:ma do rei da Belgica ... » - « Naturalmente o senhor ouviu falar do meu telegramma sobre a terminação da guerra européa. Essa gloria ninguem me tira. Era 88 CAPITULO V um dever meu concorrer para a terminação da conflagração ... » E, assim, sobre outros assumptos. 'Nunca faz, porém, referencia alguma a pessoa de renome pelo saber, talento artistico ou cultura scientifica. Só o fascina o mando, o dominio das gentes ... Ainda agora isso ficou provado pela imposição de sua candidatura de deputado á Camara Federal... *** Nesse estado de decadencia physica e mental (1), claro está que o Padre Cicero não nos podia dar a impressão daquelle homem de « grande cultura », de que tanto têm falado os seus apologistas ... (2). Si o chefe do Joaseiro tivesse podido accumulaI' e manter, naquelle meio, um solido e brilhante cultivo do espirito, esse, sim, seria o seu maior e (1) Ê preciso não esquecer que o velho padre, doenle, com selenta e seis annos de ida-de (hoje orça pelos oilenla e dois) leve ùe galgar com a maio! diffir.uhlade a lai tribuna, no meio da praça» ... DR. FLORO BAnTHóLOMEU, « Joaseiro c o Padre Cicero », Imp. Nacional, 1923, pg. 69. (2) Não ha muito a « Gazeta de Noticias », (lo Rio, declarava, em editorial, que o Padre Ciccro escrevia melhor o portuguez que a maioria dos membros da Academia de Letras .... (t ECCE HOMO! 89 mais legitimo rnilagre! Vivendo, ha mais de meio seculo, em contacto apenas com o sertanejo bruto, e ademais, num ambiente de delirio; não dispondo de tempo siquer para lêr e meditar, pois que suas horas não bastam para attender a peregrinos e beatos; sem recurso de renovação de idéas, por livros e jornaes, que até sua casa só muito raramente chegam; sem necessidade alguma que o leve a exercitar o espirito, para um sadio objectivo cultural - é obvio. que só se possa encontrar nelle, ao termo de oitenta annos de vida, urna intelligencia mediocre e fatigada, adstricta aos mesmos abusões, preconceitos e desvios mentaes do sertanejo ... A priori, já seria inadmissivel uma elevada cultura em qualquer individuo sujeito á sua vida especialissima. E os factos o comprovam, com a maior crueza. Em toda sua longa carreira sacerdotal e politica, jamais pronunciou um discurso memoravel, uma conferencia ou serie de pregações que tivesse produzido écn; jamais escreveu um artigo de propaganda ou defesa, uma obra, modesta que fosse, de doutrina ou combate ... Porque, por exemplo, não explicou, num livro, que lhe seria facil compôr, se tivesse cultura, a sombria questão religiosa em que se envolveu? Porque não 90 CAPITlJLO V fundou uma seita, não consagrou a sua vida á propaganda dos meios scientificos de combate il. secca, não fez o estudo da historia ou das necessidades actuaes da região? Porque nunca obstou, por meios efficazes, a degradação social do burgo que sempre dominou? Porque não tem permittido que se desenvolya a instrucção publica no Joaseiro ? (1). Porque se deixou dominar, de modo absoluto, sem um reclamo ou desabafo, por meia du2ia de individuos que o têm manejado, e <[ueo manejam, no proprio proveito delles? .., Necessariamente, porque, sobre a hypothese de urna psychose que o desadapta a elevada funcção social, fallece-Ihe, por inleiro, a cultura do espírito (2). A maneira pela qual Padre Cicero se dirjge aos romeiros, ouve suas lamentações e queixas, recebe dinheiro e outras dadivas, aconselha e receita, não é só a de um homem que tivesse escapado á normalidade: é a de um homem manifesta'mente inculto. Vimol-o nessa tarefa hedjonda. Tivemol-o ao pé, e estavamos por detraz ( 1) A proposito, vide nola no fim do volume. (2) Veremos adiante que nem todas psychoses desadaptam homem a uma elevada. funcção social. o ECCE HOMO! 91 da mesma janella gradeada, junto aos batent~s na qual se comprimiam, da outra banda, dezenas de alucinados, de devotos e penitentes, de peregrinos que suaram até o sangue, para attingir a suspirada Méca do Cariry, de malucos que lhe levavam os ultimo s tostões, de mães afflictissimas que rogavam a benção aos filhos moribundos, e com os quaes iam affrontando, impavidas, num desespero de leôas feridas, aquelle ajuntamento dantesco, que as repellia e maltratava ... O Padre mal distingue, naquelle tumultuar, o que todos se esforçam por dizer-lhe, e contenta-se em receber as esporblas, os mimos por vezes valiosos, os rosarios, medalhas e bentinhos ... Aos mais proximos, que lhe rentêam as faces, exhibindo por vezes as chagas sangrentas, os labios carcomidos pela bouba ou extravagantement,~ entumecidos, em esgares horriveis, por essa molestia, as faces maceradas pelo jejum ou pela consumpção que os vae minando, os olhos desfigurados pelo trachoma - elle receita displicentemente ... Receita o quê? Nem elle sabe I Habitualmente, aconselha r·emedios caseiros, de todos muito sabidos -- uma cuia de agua q11ente em jejum, uma purga de jalapa, um chá de raiz de angelica, uma infu- CAPITn,o v :::.ãode «papaconha» (1). Para clientes mais importantes, realiza sessões particulares de Hlggestão c passes ... (2). Algumas vezes, distribue esmolas tambem; mas, mais recebe que dá. E quando se sente fatigado, quando as mãos em supplica já avançam pelas frestas da janella, e o attingem na sotaina, nos braços ou no peito, e já o empurram e já () empuxam, violentas e ameaçadoras, elle leFanta por sua vez a dextra descarnada, como signal de silencio, sllstenta-a no ar, por um jnstantes, os olhos postos no céu, reverentemente, e desee, emfim, sobre aquella miseria incrivel e aquella degradação inenarravel -él. benção que a todos, indistinctamente, consola e applaca ... Depois do que, aferrolhada por prudencia it janella, lava as mãos, tranquillo e satisfeito comsig.o 'mes'mo, e vae merendar ... (3). (1) Ipécacoanha. (2) Sobre a medicina do Padre, v. o t~stelllunho insuspeito de Floro EarthololllCU, ob. cit. (3) Uma das singularidallcs do Padre é o ~eu regimen alimentar. Ha muitos annos, segundo nos informou, "li se alimenta de leite, coalhada e arroz. Toma pOllCO café; niLo fuma; dorme liluito pouco. ECCE HOMO! 93 • * * E' o Padre: Cicero um paranoico? Não ousamos affirmaI-o. A paranoia é uma anomalia constitucional, que permanece latente na juventude, e que só com o perpassar dos annas, sob o influxo de influencias favoraveis, manifesta-se sob a forma de Uln delirio de lenta evolução, coherente e fanatica. Por vezes o diagnostico é difficil e enganoso. Porque as manifestações que lhe são proprias oscillarn, quasi sempre, entre os limites de um equilibrio normal das idéas e sentimentos, sem ultrapassaI-os, de modo perceptivel. Haurindo forças de cada circum:stancia da vida, apoia-se geralmente no farto subsidio de ulna mem'oria sempre prompta, de um poder de critica un ¡lateral, mas bastante aguçado, de uma obstinação fechada ás mais claras evid'encias. O delirio possue, assim, inteiram'ente o paranoico e torna-se a norma inspiradora de sua conducta. Ao lado da constancia dessas convicções de natureza morbida, offerecem' perturbador c.ontraste, sinão um grande poder de faei ocinio, ao menos a firmeza de acção e, 94 CAPITULO V muitas vezes, u ma estoica dignidade de vida(l). De modo que a.profunda suas raizes, mais que num defeito da intelligencia, numa singularidade de caracter, de que são elementos fundarnentaes o mais entranhado egoismo, um conceito sempre exaggerado do seu proprio valor, uma desconfiança permanente dos que o wdeiam, a inclinação aornysticismo expansivo e militante, um espirito cavalheiresco de protecção activa, ou devoção passiva, a um ideal religioso, uma intolerancia sophistica contra injustiças verdadeiras ou imaginarias ... Sobre esse terreno, se expande uma trama de preconceitos passionaes, que favorece as interpretações mais egocentrica.-, e extranhas dos factos, ampliando. de modo portentoso um nucleo de associações erroneas e fantasticas, num verdadeiro delirio systematizado. Os paranoicos são sempre lucidos. Não apresentam nunca essas tormentas da vida psychica que offuscam a consciencia, e desarvoram .o automatismo sobre que todas as interpretações da consciencia repousam. Não (1) Esta llescripç.ão da paranoia tomamul-a de Tanzi c Lugaru, Malat.lie Menlali, yol. II, ¡¡g. 7[¡G, 3.'1 cùi~·ão. ECCE HOMO! 95 são confusos; muito raramente alucinados. O delirio, que se movimenta dentro de um thema restricto, não altera o juizo normal sobre certas questões geraes, nem sobre a maioria dos factos da vida quotidiana. A' medida que envelhece, o paranoico nada perde de sua. lucidez habitual; pelo contrario, impellido pela singularidade de sua posição, em meio aos incredulos e contradictores, as mais das vezes é levado a melhorar as armas de sua dialectica, superando os mediocres de espirito normal... Suas paixões, suas emoções, mesmo quando explodem e'm paroxysmos de vio:encia, não differem; muita das reacções emocionaes violentas dos individuos sãos, excepto, está claro, por sua causa, que é, na maioria das vezes, parcial ou totalm'ente ... Imagmafla. A maior parte dos paranoicos evitam' o manicomio. Mesmo quando segue'm uma linha de conducta singular, ferozmente egois, tica ou anti-social e ridicula, os paranoicos, na sua lucidez, sabem impôr-se um freio c evitar as acções que os poderiam incompatibilizar com a sociedade ... Só em phases avançadas da molestia, e espicaçados pela força incoel'civel de suas paixões anormaes, se envolvem em acções compromettedoras. 6 LOlll'ençO Filho - Joa, ••'ro do Padre Cicero. 96 CAPITULO \' Existe mesmo uma categoria de paranoicos, que Lombroso encaixava entre os seus « matoides », cujo delirio é innocuo, sinão para si mesmo, ao menos para os outros, visto como só desenvolvem argumentos impessoaes: pesquizas pseudo-scientificas, invenções chimericas, systemas de philosophia, de mechanica, de theogonia, utopias sociaes, apostolados especialissimos - tudo debaixo da inspiração de uma fé solitaria e sem sombra de finalidade pratica ... (1). Os especialistas accordam em que os themas da paranoia são em numero. limitado. Accordam tambem em que todos dizem respeito aos caracteres geraes das paixões e dos instinctos humanos. E as suas repetições flagrantes, sempre as mesmas, ainda que entre individuos sem nenhum contacto historico ou geographico, permitte pensar que o paranoico apresenta o. typo da mentalidade primitiva do homem, abrolhada como uma reminiscencia, não se sabe bem por que leis de atavismo ... « E' realmente impressionante a identidade entre os elementos do delirio paranoico e os das aberrações individuaes e collecti(1) TANZI C LUGARO, ob. cit. pg. 757. ECCE IIOlVIO' 97 vas, de que está pontilhado o caminho da historia e que, ainda hoje, se repetem entre os selvagens e os civilisados. Posto que taes aberrações sejam o Irueto de uma suggestão extensa e continua, que tradicionalmente se perpetue, são inilludiveis e inevitaveis ... Os paranoicos são formalmente os mysticos do vulgo e dos selvagens; na realidaùe sãO', porém, mais mysticos do que aqueUes que o cercam, porque muitas vezes o seu mysticismo nasce, desenvolve-se e persiste, a despeito da opposição ambiente ... Sobre o que parece não haver duvida é em: serem: as manifestações do rnysticis:mo paranoico inteiramente semelhantes á da tendencia mystica do homem primitivo: a unica differença é a modalidade do meio historico em que surge. Os primitivos são filhos de seu tempo; os paranoicos são anachronismos viventes ... Comtudo, .{}sentimento mystico exaggerado do primitivo transparece em manifestações modestas, tranquillas e collectivas de um' pensamento imperfeito, que ainda se ensaia. O ardor fanatico do paranoico é uma explosão audaz, violenta, individual duma mentalidade retrograda e anti-social. o. atavismo se reve=a muit.o mais claramente na paranoia que noutras anomalias constitucio- 98 U.\l'ITULO V naes, especialmente porque as idéas se transformam' de modo mais preciso e visível do que a camada subterranea e mysteriosa dos sentimentos. Quem ousaria affirmar que os homens de hoje são moralmente melhores do que os antigos? Mas, quem poderá negar que sejam mais intelligentes ou pelo menos mais ricos no saber? » (1). Não será difíicil, um dia, traçar-se mais rigoroso perfil psychologico do Padre Cicero Romão, para verificação clínica de seu caso especialissimo. Nós não nos abalançamos a fazel-a, por ora. Em si mesmo, seu caso pessoal nos é, de todo em todo, indifferente; e, em' qualquer hypothese, a sua pessoa, como individuo humano apenas, é digna do maior acatamento, anormalissima que seja ou não ... O que nos importa é a situaçáo social que se creou no Joaseiro, com extensão facilmente verificavel por todos os sertões do Nordeste, sinão por quasi todo o interior do norte do paiz. O que nos importa é o phenomena social impressio( 1) I.l. iba. pg. 760. ECCE IIOl\IO! 99 nante que alIi se mantem', para demonstração inilludivel do desacerto com que têm agido a respeito os nossos preclaros homens de governo ... E' isso que pode interessar ao paiz e ao futuro. E' disso que tentamos tratar. Ademais, em qualquer momento historico considerado, o homem é um' nada, uma palha que o vento agita e conduz, eleva ou faz dcsapparccer no vortice dos acontecimentos ... Na sua corrente fatal, elle é elemento apenas apreeiavel. Nada pode e nada quér, si as circumstancias favoraveis do meio não n'a revelam o não n'o fazem' avultar ... ColIocado, pois, num meio differente ou, tendo surgido, em epoca totalmente diversa, o Padre Cicero teria tido, talvez, uma acção sempre igual de convencido e sincero ap-ostolo, e seu nome ~cria citado como um exemplo digno de imitar-se; não teria certamente descuidado tanto de seu espirito, não haveria fugido da Igreja, de que seria um digno filho ... Collocado, emtanto, naquelle ambiente de ignorancia geral, de superstição rude e grosseira, onde a condição da quasi totalidade do povo é a de um primitivismo manifesto, onde as taras de um caldeamento de raças inextricavel favorece ás explosões de todas as anormalidades, sem forças em si, e sem auxilio em derredor, 100 ( CAPITULO V eUe haveria de despenhar-se por onde, ineluctavelmente, o levavam as energias impond'~raveis da sociedade primitiva em que, por IT.eio secul0, agitou mas não conduziu ... Não n'a culpemos, pois, em demasia. Não lhe reprochemos, mesmo, o desenvolvi mento de uma anomalia constitucional de que elle não pode ser verdadeiramente culpado ... Fazel-a, sobre injusto e cruel, seria illiquo. E, do ponto de vista. social, ainda que averi¡suado qualquer desvio profundo de sua mentalidade, tomada valida, emfim, a sua pErsonalidade enigmatica - fazel-o seria um absurdo ... Seria desconhecer-se, primeiramente, a noção de normalidade psychica. Seria negar-se, por .outro lado, em determinados momentos historicos, o papel surprehendente, a funcção soeial innegavel dos degenerados. Não é ,() caso de discutir-se aqui, a these tão debatida da paridade do genio e da loucura. E' uma these extrema que não nos pode attrahir agora (1). Mas a verdade é que : 1) Aliás, ninguem pôde demonstrar ainda que a. these de Lombroso, sustentada. no seu « lJomo di genio 'l, fosse inteiramen~e falsa. A linha subtil e flutuante que separa o genio da loucura nunca será talvez determinada ... ECCE HOMO! 101 no constant.e esforço, para um augmenta rapido de intelligencia, na idade industrial que atra vessamos, têm sido mais frequentes que llunca, os casos de degeneração mental, de demencia e suicidio ... E o caso é que as sociedades tambem' fahricam, por assim dizer, intencionalmente, os degenerados de que sentem necessidade ém certos e determinados mom'entos de sua evolução. ,< Essa precisão é tão fortemente sentida, que alguns povos barbaras, entre os quaes a degeneração é escassa, acham-se na obrigação de creal-a artificialmente, com intoxicações especiaes, regimen de alimentação e p:::-ohibições. Os sacerdotes, 08 prophetas, as pythonizas, as vestaes, a quem os povos antigos davam tanta importancia como conselheiros politicos, eram frequentemen,te mantidos numa situação anomala de castidade, Olt num estado forçado de exaltação pela acção do fogo, perfumes, incensos, etc., que lhc8 alteravam as funcções nenrosas.» (1). Os habitantes das Ilhas Aléotas ainda hoje provocam directamente certas anomalias nos (1) G. LOMDROSO, no, 1923, P¡¡. 178. « I Vantaggi della ùegenerazione», Tori- 102 CAPITULO V individuos a quem desejam entregar os seus destinos politicos. « Os predestinados, homens ou mulheres, não importa, devem possuir caracteres differentes dos demais. Apenas nascida, a criança é posta sob esquisitas regras de vida, a abluções mais ou menos frequentes, a jejuns e vigilias. Deve ser taciturna e solitaria; desviada do convivia dos mais, raramente pode participar da caça e da pesca; passa depois por uma ~erie de iniciações que a devem pôr em communicação <~om os espiritos ... Criado em tal regimen, I) adolescente torna-se como maluco, tem Bympathias e antipathias demenciaes, estados de lucidez e hyperesthesia extranhas, acreditando estar sempre cercado de demonios ou de espíritos que lhe impõem ordens e insinuam conselhos ... Torna-se, assim, um mago Hangacook, que accumula muitas vezes as funcções de juiz, padre, arbitro nas questões publicas e privadas, poeta e medico, comico e minist.ro ... » (1). Nos povos antigos, o demente era quasi sempre considerado como um genio, cercado dl~ admiração ou adorado. Conforme cita (1) E. RECLt:S, « Lcs primilifs», br(·so, ob. rit. pg. 83 e "l'g.; cf. G. Lom- ECCE HOMO! 103 Lombroso·, no seu Uomo di genio, Platão considerava o delirio como uma dadiva divina ... Horacia dizia que nullus poeta sine mixtura dementiae, e Aristoteles proclamava que, sob a acção da hemicrania, ou do dl~lirio, qualquer individuo podia tornar-se adivinho, propheta ou artista ... (1). Essa verificação historica do papel dos degenerados, no aperfeiçoamento social, torna acceitavel a explicação de Deniker (2). « A media intellectual e moral dos selvagens em geral, diz elle, não é nada inferior á dos homens civilisados: não sei si possa desejar maior prova de habilidade de que a de produzir fogo com dois pedaços de pau, ou de tece:~' a mão uma dessas télas maravilhosas de finura e graça ... O que os d.ifferencia é unica e exclusivamente a capacidade de aproveitar e seleccionar as novas idéas ... » E ea mmentando-a, conclue razoavelmente Gina. (1) o que os antigos assim explicavam, pda intervenção de poderes sohrenaturaes, explica-o hoje a sciencia, pela noção do trabalho inconsciente, da dupla personalidade ou automatismo psychico. A provocação arti{icial de estados delirantes continua a ser feita, ainda. em nosso tempo, na maioria da!! chamadas «scssões espiritas», em que variam apenas os proc'lssOS de intoxicação. A esse rc-,speito, nenhum estudo é mais interessante ùo que a « Introduction à la Métapsychique humaine», de René Sudre, Payot, Paris, 1926. (2) 1<1.ihd. pg. 183. 104 CAPITULO V Lombroso: « Quando um eidadão europeu ou amerieano descobre u'ma nova verdade, ou um novo engenho, encontra immediatamente centenares de callaba radares, de continuadores, de detractores ou de enthusiastas que -se encarregam de verificar a nova idéa, de depuraI-a, de engrandecel-a, de applical-a, je propagal-a com o pro.prio nonl'e ou com 'Jutro, mas sempre de modo a diffundil-a, a tornal-a patrimonio commum de multidões de sères, que della possam aproveitar0s beneficias. A essa magnifica cooperação é que devemos o progresso. Ora, a este proposito de diffusão de idéas e de c.ollaboração, ao trabalho, hem pequena parte cabe á aurea medioC1'itas, abs.orvida sempre no gosar e manter unicamente os fructos do passado ... » Os mediocres difficultam, assim, o progresHO. São os desequilibrados, malucos, fanatiGOS, lunatic.os, santos ou genios que, desprezando a impopularidade e as perseguições inevitaveis, diffundem e propagam' os novos productos industriaes, com'mereiaes, as obras artisticas, as novas concepções da esthetica, as experimentações ousadas, as syntheses e as applicações que depois passamos a considerar como geniaes ... « São os degenerados, p.ortanto, que ali- 105 ECCE IIO:UO! mentam' .a fé sagrada do progresso" e a elles cabe a funcção de apressar a civilisação. Como'as bacterias da fermentàção,assumem muitas vezes um papel duplo de analystas e reconstructores: elles decompõem e reorganisam as instituições, activam ü intercambio de idéas, e él transformação incessante do assás complexo organismo que é a sociedade h umana». (1 \ '.;. li< * • A verificação de uma anomalia constitucional, meSlllO grave, não rebaixaria, portanto, qualquer papel social relevante que, em toda epoca, pudesse ter desempenhado o Padre Cicero Romão Baptista. Essa condição, como vimos, até podia ter-lhe facilitado a acção, fornecendo-lhe energias inauditas para uma formidavel tarefa constructiva, em meio ao sertão bruto, quasi sem lei, e sobre a massa plastica do caboclo rude e primitivo ... Esse não seria seu crime. E delle não ha. queixar-se da natureza. Si queixas lhe cabem, (1) où. cit. DE:'o:JKER, «The races 01 man )), cf. G. Lombroso. 106 CAPITULO V é á graça de sua. longevidade, e á facilidade lhe permíttiu accumulaI' com que a fortuna fartos cabedaes ... Com effeito, o Patriarcha do Joaseíro paga, hoje, com um estado de lamentavel decadencia, e na diminuição flagrante de seu prestigio sobre o meio, em que sempre viveu, o crime de ter existido demais ... Desapparecido pouco depois do milagre de Maria de Araujo, seu nome encheria aquelles rincões, como o de um santo verdadeiro, cuja evocação elevaría a alma opprímida do sertanejo, nas epocas de calamidade ... Vivo, embora, mas pobre, seria ainda o apostolo sem par, cuja palavra em' relação ás coisas do céu, havia de merecer sempre o maior acatamento. Encanecido e cheio de riquezas, aUrae sobre si mesmo não pequena dose de ridículo e o peso de maldições sem conta I E' que a natureza a ninguem perdôa vantagem alguma na vida ... CAPl TU IJO VI O « ALTER-EGO» ... A pena de dver demai" ... -- Um capilula difficil de escrever-se - O «incubo» do Pa.dre e historia de ~eu ll.ominio ... - Testemunho fid€digno. VI « g tanto que os rorncirinhos ingenuos, venùo com maravilha e com magua tuùo isto, dizem: « Aquelle hóme (muitos não dizem o nome) já butù foi ma~uineti3mo em Padrim Cirço» -- P. l\'1A:\OEL ~IACE['O, « Joa.seiro em fúco », Fechando o capitulo anterior, affirma'mos <-1 ne o Padre Cicero devia queixar-se, aos céus, de sua longevidade ... Ella tem permittido, de facto, que boa dose de ridiculo lhe haja mareado a figura: uma simples compara.ção das phases successivas de sua longa existencia reduz o apostolo inicial a uma grotesca caricatura de fanatica e m(jgalom'ano ... Por outro lado, a gerencia de seus negocias de millionario, cuja origem não discutim'os, attrahiu-lhe farta somma de maldições, como seria ínevitavel, e demonstrou, de modo cabal, que o seu reino não era o reino dos céus ... Mas, a pena de viver demais havia de ac- 110 CAPITULO VI cûntuar-se depois que o valetudinario se deixou empolgar por um peregrino, -- que, de afilhado e protegido, em breve havia de passar a seu « alter-ego», e depois, a senhor absoluto. Esse peregrino se chamou dI'. Floro Bartholomeu da Costa; era um medico bahiano, que surgira por volta de 1908, no Joaseiro, e que foi exercendo uma acção de dominio sempre crescente, até sua morte, occorrida ha ainda poucos mezes, no Rio de Janeiro. Esta ultima circumstancia assignala, claramente, as difficuldades que nos assaltam ao escrever este capitulo. Talvez seja muito cedo ainda para evocar a figura desse curioso expoente da politica ùo Nordeste. E alem disso, havia partido, pouco a,ntes da sua morte, com uma missão espeeialissima do governo federal, para defesa da legalidade nos sertões do Nordeste ... Sabiamos que seguia já enfermo. Sua morte, Jastimavel por muitos motivos, deu-se pouco depois de rctornado ao Rio, em apressada viagem. E ainda soam nos ares os écos das homenagens de general honorario do E'xercito, corri que o governo houve por bem consagrar-lhe, a memoria, para que se possa pretender exhumal-o. Floro Bartholomeu des- o « ALTER EGO »... 111 cança em paz, tendo sobre o esquife, passada em escudo uma bandeira da Republica. Seria preciso laneeal-a, a fundo, para tocar agora, o vulto do morto ... Mais razoavel e humano é esperar que ella se desfaça em' pó, o que não levará tanto tempo quanto hão de viver os effeitos da existencia trepidante do caudilho. Escrever-se-á, então, a sua chronica completa. Nem por isso, porém, havernos de deixar de nomeal-o, quando necessario á comprehensão dos factos, porque de certa epoca em diante a historia do Joaseiro é a das proprias desmedidas ambições do medico bahiano, euja figura dominadora envolve e apouca a do proprio Padre Cicero. Em' certos pontos, não será tambem sem uma aura de sympathia que havemos de mostral-o, como quando reprimia certos cxaggeros de fanatismo, embora com violencias excessivas. Tal se deu, por exemplo, no caso do «boi santo », episodio que é seguro indice do estado mental e moral dos «romeiros» c que relataremos num dos capitulas seguintes. O que não será possivel, nem nos parece opportuno neste momento, é um juizo seguro e definitivo sobre a acção de dominio que exerceu, e o balanço completo de suas res- 112 CAI'ITULO VI ponsabilidades, em episodios gravissimos da historia do Ceará. '" '" '" o dr. Floro Bartholomeu da Costa appareceu no Joaseiro em 1908, vindo da Bahia, pelo interior dos sertões, ao que dizia, fugindo de perseguições de seus inimigos. Acolhido em casa do Padre, de que se fez medico particular, em breve recebia delle as maiores provas de amizade e confiança. Sem grande cultivo, mas intelligente e audaz, comprehendeu logo a situação e o partido que· della podia tirar. Assim, tudo fez para que a povoação fosse elevada a séde de municipio, :O que conseguiu em 1911. Modificada a politica estadual do Ceará, com a deposição do velho governador Accioly, em 1912, e sentindo que a nova administração lhe frustrava .os planos habeis, preparou o famoso gûlpe que foi a sedição de dezembro dû auno seguinte, em resultado da qual se sagrou, em definitivo, .o ehefe da politica de todo o. Cariry. E' evidente que conseguiu tudo isso servindo-se sempre do nome do Padre e fazendo-o instrumento doeil a todas machinações ... o « ALTER EGO »... 113 A historia. desse dominio sobre o Padre Cicero está muito bem delineada numa interessante obra do P. Dr. Manoel Macedo, exvigario do Joaseiro, e um dos ornamentos do clero cearense. Emprestemos-lhe as proprias palavras, plenas de autoridade: «Vindo das bandas do sul, dos sertões da Bahia, depara-se no Joaseiro - refugio do Nordeste --- a entidade desconhecida e nulla do doutor Floro Bartholomeu. Pobre aventureiro (e não romeiro, como elle já se deu algures) vinha o bahiano atraz da sombra da sotaina mais antiga d.o Cariry, a unica que o podia furtar aos raios de uma justiça ultrajada lá em baixo. Não era este refugio um caso noya no Joaseiro. E lá estava o doutor, de chineUos de trança e de pyjama, habitando um quartinho minusculo, uma cella, no quintal do padre Cicero. Uma cella I Tanto bastava a quem não era causa alguma. Mas o Padre Cicero era tudo, como sem'pre foi, como sempre se gloriou de ser, na terra. que fizera, não tolerando nisto a menor competição. E porque, experiente, viu no advena instrumento apto para novas ousadas empresas, começou a dar-lhe prestigio, a emprestar-lhe poder, até fazel-o um alter,-ego, sem comtudo abrir mão da supremacia. Foi deste 114 CAPITULO VI prolongamento do proprio « eu » que o Padre Cicero engendrou este phenomena politico, unico no Brasil, e no mundo, de um só poder municipal etn duas pessoas distinctas, vindo a ser o padre o prefeito: mas exercendo a prefeitura o doutor ... » « O doutor, uma vez no solio .. esquecia-se de imitar o prefeit.o no disfarce da embriaguez do poder. O povo, vencido pela adoração do Padre, jazia inconsciente aos pés do doutor. E assim foi sempre. Si o Padre queria uma causa que lhe não ficava bem', com' a execução passava a imputabilidade ao doutor, menos escrupuloso, e o povo, sem saber mais distinguir um do outro, obedecia a este como si fora áquelle. Tal se deu na revolução de 1914. Que ninguem ouse dizer que a a batina decapitou o Estado, pois verá chover a desmentida, do alto da tribuna da Camal'a: « não a batina, mas a béca! ... » Ingenuos paes da Patria e os filhos da Patria, que não reconhecem a identificação de ambas. Triumphou a sedição. Nova embriague7. de poder e nova sêde tambem. Ao doutor já não bastava uma cadeira na camara municipal do .Joaseiro, não o contentava mais o commando de seus cangaceir.os sacrificados: sonhou com o parlamento estadual, com suas rendas, ·0 « ALTEH EGO »... 115 e lá se foi scntar numa cadeira do Congresso do Estado, por obra e graça do Padre Cicero que, descarregando nella sua gaveta de titulos eleitoraes, tinha em vista ganhar, junto ao governo, aquella posição de valia, na pessoa de seu lugar-tenente. Mas o poder é eomo cachaça: quanto mais se bcbe, rnais se qUCI' beber. Por isso, eis agora o doutor com os olhos no Congresso da Nação. Diffi.cil? ... E ha difficuldade para o Joasciro, quando o Padre Cicero quer? Si houvessem dois candidatos os títulos ainda sobravam. Doutor FIara, deputado federal! Ernquanto a sêde da cachaça não o mover para diante, ahi está, já em segundo mandato.» (1). Com perfeito conhecimento de causa, o P. Macedo informa que em paga de tantos beneficios, Floro Bartholomeu não correspondia sinão com o apertar as malbas de seu dominio ao redor da liberdade do Padre. Chegou até a impedir que o velho sacerdote readquirisse suas ordens de celcbrar, quando esteve no Ceará o Visitador Apostolico D. Bento Lopez. Por fim o Padre Cicero se queixava, aber(1) P. ~IANoEL 1925, pg. \J c seg. ~L\CEDO, «Joaseiro em lúco », Fortaleza, 116 CAPITULO YI tamente, da tyrannia do doutor. Dantes,. elle era tudo. Agora um espectro, tangido pelas mãos de Floro ... Dantes podia dizer, como disse, a um hospede interessado em questões do fôro: «Meu amigO': aqui, o prefeito, a Camara, o juiz, o delegado, o com'mandante, a policia, o carcereiro, - sou eu! ». Agora era forçado a confessar: « Menino, sobre governo do municipio, eu nada sei; quem faz tudo é o doutor ... » Aquella sua tyrannia foi tão absoluta, tão completa, que o Padre acabou por não ter mais vontade, nem pensamento ou acção (1). Pagou assim a pena de viver demais ... (1) « O doutor, a pretexto de que a casa do padre era antihygienica, foi buscal-o para a sua. Nós sabemos que a verdadeira razão era outra.. Ali ficou O pobre ancião em um carcere até, por coincidencia., parede e meia com a cadeia. {(Que captiveiro l)~ - ainda ehegúu a dizer baixinho. Quiz visitar sua casa na serra do Horto, passar lá. umas horas, mudar de ar, por-se á fr•..'sea, descançar. Depressa o pbarmaceutico José Geraldo, verdadeiro amigo de seu padrinho de baptismo, reune o povo, e vencendo o que nunca ninguem imaginou, conduziu o automovel ao Horta, por uma estrada modelo. Sentiu-se feliz o Padre, mas qua.ndo quiz subir, Floro o deteve: « não vae)) l ... E não foi. De outra feita quiz dar um passeio em casa de pessoa amiga, fôra da rua, e, quando já estava com o pé no estribo do automovel; « Volte, padre; não \'ae, não I» Era o Floro que, pelo braço, o puxava para dentro de sua casa. )) Id. ibd. pg. 32. CAPITULO VII OS MILAGRES ... « É o milagre que torna a autoridade patente ... » - A beata Maria de Araujo e seus milagres - Transforma-Be em sangue rubro e palpitante a hostia consagrada ... - Repercussão do phenomeno e suas intE,rpretações A acção de D. Joaquim Vieira, bispo do Ceará - Os « milagres» menores ... VII «t,¿ue proceder?» aprcsenta ~i~nal 1I0R (.loan. V. ~6). O que torna a autoridade par.:! aSSlill patente, dizia Santo Agostinho, é o milagre, e a autoridade é que impõe a fé. O prestigio do Padre Cicero Romão tinha que provir, pois, do rnilagre; e o milagre se deu. Foram os factos, á primeÜ-a vist.a inexplicaveis, operados na pessoa da beata Maria de Araujo, em junho de 1.890 e repetidos depois algumas vezes, quo complicaram o caso primitivo de simples mysticismo do Joaseil'o, dando origem a acontecimentos que deviam transmudar o humilde arraial do Cxl'il'Y na actual Méca dos sertões, e ampliar a figura piedosa, do obscuro presbytero de então, na sombra monstruosa do «Padrinho» ele hoje ... O meio certamente era o mais propicio; o heróe, um predestinado. Mas faltava o pl'OLourenço FillJO _. Jow:;eil'(J do Padre Cit'('¡'(). 120 CAPITGLO VII digio que o revelasse e circumstancias que o impuzessem, de vez, a crüdulos e incredulos. Depois disso, facil seria tornar-se o summo sacerdote e o desejado tyranno, concentI'ando, nesse caracter bifronte, de thaumaturgo sem par e chefe politico poderosissimo, um valor sem contraste no's sertões do Nordeste ... Vendo-o assim consagrado, tanto pelos poderes do céu, oomo pela vontade dos homens do goverllo, era natura.l que o habitante do sertão, sem cultura, sem amparo da justiça, muitas vezes sem pão, sem trabalho e sem guia, enxergasse nelle o redem'plor, o conselheiro e o mestre. O apostolo, tão somente, pode pouco, e acaba sempre vencido. O politico, apena3 politico, tem contra si todos DS de sua casta. Por muitas vezes já, o sertanejo tem visto ap.ostalos confundidüs t' politicos desmandados ... Um só homem, porém, que lograsse- nas mesmas mãos, as fol'~:as celestes e os empenhos dos poderosos, esse - - sim! seria «o propheta que ha de VII' » ... A consagração terrena foi dada ao Padre com a alliança politica, argam'assada com o sangue derramado na sedição. de 1913, que adiante descreveremos. O signal dos céus foi manifesto nos pretensos milagres de Maria OS :\I1LAGRES 121 de Araujo, que acabaram produzindo a fanatisação de toda uma vasta z.ona, como transf.ormaram tambem, talvez de modo inesperado para elle propri.o, o caracter então singelo, e a vida beatifica do heme. Sendo sacerdote cath.olico regular, ao tempo de taes casos mil'acuJoso.s, achou-se por elles envohrido numa séria questão religiosa. Sem forças espirii:uaes para uma reacção religiosa tambem, de reforma, c.om a fundação de nova seita, e sem' querer perder a influencia ~:ue decorria de sua condição natural de sacerdote, procurou defender-se como lhe era possivel.. . .Mas foi afir:.al arrastad.o pelo ambiente que elle t.ocou em forças mal previstas, para a charlatanice e o caudilhismo, em que depois se abysmou, e em que o seu « alter-.egn» leve papel relevante. Em resumo, a grave questão social de hoje se prende directamente a uma delicada questã.o religi,osa, e esta nasceu do milagre. Vejamos que milagre f.oi esse . • :I: :I: Na manhã do dia 11 de junho de 1890, numa humilde capellinha de Nossa Senhora 122 CAPITULO rI[ das Dores, padroeÏ1a do lugar, a beata l\Jal'ia. de Araujo, depois de receber das mãos do Padre Cicero Romão Baptista a hostia COllsagrada, cahiu por terra em violenta crise nervosa, Os fieis presentes, que a SOCC01'roram, notaram que um fiosinho de sanguc lhe escorria da bocca entreaberta; c, examillando melhor, verificaram, depois, que as mesmas especies eucharisticas se haviam transformado em sangue rubro e palpitante ... Na lithurgia ca1:holica, nenhum momento (~mais solemne e grandioso que o da eucharistia; {) pão e o vinho, como todos sabemos, symbolisam nesse sacramento o vcrdadeiro corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Christo, sacrificado para. reclempção do genero humano ... O transfazerem-se, portanto, em sangue authentico, quando commungava uma das mulheres de mais constancia na devoção e penitencia, era manifesto signal do amparo de Deus, que assim se revelava num dleito prodigioso. ,. Era {) milagre 1 OS 1tIlLAG IlES 123 *** Não será difficil imaginar a importancia. de tal successo naquelle meio predisposto ás mais mirificas interpretações, e ao temp.o e'm que o facto se deu. Basta considerar que sobre a ignorancia e o fundo supersticioso do caboclo, vige em seu es pirita, coordenando profundas tendencias, urna tradiçã.o indestructivel de messianismo e de sebastianismo (1). Era natura,l, portanto, que populaçõos in- teiras acorressem das vizinhanças. Si os crentes já se regosijavam, em caminho, e seguiam cantando hosannas, levando apertado ao peii.o um ex-voto, com a alma resplendente ao clarão divino que sentiam, os m'esmos in(1) « De meados para fins de 1819, installou->.(l na serra do llodeaùor, no Bonilo, urn fanatica au explorador de nome Sylvestre José dos Santos. Reuniu logo um grande sequito e pregon ao seu povo a resurreição de EI-Rei D. Sebastiilo, promettendo-lhes a partilha dos seus grandes thesouros; e, para ainda mais impor-se á gente que o acompanhava, explorou o espírito religioso, celebralldo solemnidades com cerimonial particular». PEREIRA DA COSTA, Folk-lore Pernambucano, in Revista do Insi ituto Historico Il Geographico Brasileiro, torno LXX, parle If. pg. 33. 124 CAPI'lTLO "II . credulos se abalavam tambem, t.angidos por uma desconhecida força, que os levava á imperiosa necessidade de se acercar do prodigio, e de vêr, ao menos, com os proprios olhos ... E como o milagre se repetía noutras communhões da beata, mais e mais era propalada a noticia e engrandecída de bocca cm bocca. Por fim cessou. Mas, já milhares de devotos se haviam estabelecido nas redondezas, certos de que era aquella a Chanaan promettida ... Ademais, o culto era facil e a liberdade dos costumes assás convidativa ... A idéa de se construir um grande templo, como agradecimento áqueIla graça ineffavDl, impunha-se a todos. Mas era natural que dentro de pouco um outro culto se corporizasse na adoração em pessoa do novo MesSIas ... Para o homem rude, pouco affeito a raciocinar sDbrc os factos da natureza, nada mais claro e acceitavel que o maravilhoso. Elle occupa mesmo, na sua mentalidade restricta, a maior zona de uma obscura explicação dos phenomenos. E a divindade não lhe apparece como a requintada abstracç,ão do justo e do perfeito, ma¡:;"acima de tudo, como o poder de mudar a l'ace das causas, ao seu OS :\IILAGRES arbitrio, só modificavel pela maior ou me-. nor vassalagem que se lhe preste ... No ~ordeste, então, em que dim; de calamidade 'marcam com angustias indescriptiveis a. vida da maioria de seus filhos, e em que o desconhecimento do proprio rythma de certos phenomenos naturaes impõem a idéa de que o universo não está sujeito a leis inflexiveis - essa mentalidade chega a dominar espiritos dos mais esclarecidos, que afervol'am su as crenças mais no temor que no respeito, numa supplica mais do que num culto ... Deus é ají mais temido que amado I E, como se procura nas menores cousas a expressão de seus designios, de que modo não se havia de avantajar aos olhos do povo um' sacerdote que acabava tendo nas m·ãos a prova indubitavel de sua misericordiosa preferencia? Envolvido, ùest'arte, nas auras ineffaveÜi dessa adoração sem limites, o Padre Cicero começou por guardar a severa discreção dos eleitos, a sere:'1idade e a simp1icida:1e das grandes forças que a si se conhecem ... Durante certo tempo, nenhuma referencia directa fez elle ao milagre, nas suas praticas habituaes. Foi ·JIn :outro sacerdote, muito de sua intimidade, aliás, monsenhor Francisco 121; C.\PI'ITLO \'Il Monteiro, (luem em varia~ igrejas proclamou o facto como revelação divina, cham'ando do alto ao pulpito as attençães elas proprias autoridades ecclesiasticas para o caso maravilhoso. As autoridades agiram incontinente. Era bispo do CearÚ" na epoca (1) o saudosissimo D. Joaquim Vieira (o paùre Vieirinlla, de Campinas) que incumbiu a uma com'missão de saeerdotes e medicos de Fortaleza a delicada incumbencia de verificarem o extraordinario phenomena. Depois de varias pesquizas, e segundo cremos, da observação repetida do proprio facto, essa commissão declarou, num primeiro memoravel documento, que o caso não podia ter explicação natural e devia ser tom'ado como expressão realmente miraculosa. U In dos medicas chegou mesmo, num arroubo inicial, de illuminado, a declarar á fé (le seu grau, em attestado escripto, « que o sangue ern que a hostia se transforma va não podia deixar de ser sinão o sangue de Nosso Senh01' .Tesus Christo ... ». Todavia, D. Joaquim Vieira, cujo espirito (1; o Ccaril cOffiprehcnde hoje 1I!ll arccLispado, com séde em FOl'tah'za e dois Lispallos cOIn séde respectivamente nas cidade. do C!':lto e ùe Sobral. OS ",[ILAGHES l'~ï culto e verdadeira fé deixaram no clCl'O brasileiro uma imperecivel lembrança, não pod ia acceitar ;-;~sprimeiras conclusã.es da COillmissão que nomeára. Ellas provavam demais! Nem sequer se referiam ás tres condições que São Thomaz, com alta sabedoria, estabelecen para a verificação dos milagccs: « o estudo da pessoa que opera, o intento com que ella opera c a maneira poterne o o pera» (1). Maria de Araujo era uma cacodemOlliae<l, euja tara sc advinhava nos proprios traças impressionantes da physionomia, na conducla sui generis de toda a sua vida, e no fanatismo militnnte em que sem'pre viveu (~;. (1) p, \\'. llE\ïVJEH, S, J" Curso de Apo¡o~elica Christã, I'ersão portugucza pelo P. M. lIbrlins, S, J" Cia, Melhoramento~, pg. 172. (2) Eis comll illaria ùe .\I'aujo é descripta 1>,;10 P. Alencar Peixoto yue loi, por muito tempo, "igario do Joaseiro: « :lIaria de "\raujo é de estatura regular; triste, vagarosa, int¡,nguida, essellcialmente cachetita, porque tem ella uma serie de ascendentes cacheticos ou tuherculosos. A cabcça que, por casa como por toda a parte, trar. sempre ùescoberta, tem a conliguraçâo de \till « corrcùor» de boi; escarnado. O cabello é cortado á esco\'illha. Os olhos pequcncs e som um raio siyucl' de expressão que lhe illumine o semblante mexem-se Lystericamente nas fahlas de tlloa testa estreita e )rotubcrante. O nariz ¡l'rompe d~ntre os olhos, sem base () levantando-se pouco a pouco alarga-s'~ de azas chatas, até os ossos malares, .. « Joaseiro do Cariry", Typ. 1I1udCl'Il a, 1913, pg. 4.2. 128 CAPITULO "II Porque Deus havia de revelar-se naquella mulher, e por aquella forma'? .. Parece que a comrn'issão voltou a falar, () desta vez, para uma retrataçil0 pura e simple3. Surgiram hypotheses naturalissimas para explicação do phenomena, prevalecendo, no emtanto, a de que o sangue proviesse das gengivas maltratadas da beata, ou de uma ferida na garganta, que sangrasse sob a intensa commoção do acto. A essas incertezas se apegou o povo para a sua conclusão favoravel ao milagre, prodigio que os olhos de todos viam, clarament.e visto, e que a alma dl~ todos sentia, sem vacillações ... Aos crentes bastava-lhes a existencia do facto: « ab esse ad posso valet illatio ... ». E alguns factos, que occorreram ao redor do milagre e em consequencia delle, não podiam deixar de impressionar vivamente a multidão. Monsenhor .Monteiro que foi quem primeiro denunciou () rnilagre e que depois o renegou, do mesmo pulpito, ceg<l;ra de momento para outro, inexplicavelmente ... Era o primeiro castigo! A seguir, outras maldições cahil'am do céu, sem ponpar o medico do sangue de Christo. Ainda vivem alguns ùos signatarios do laudo condernnatorio do OS lI-IILAORES 12D milagre, sob o peso de atroz infortunio. Outros se extinguiram na miseria, apontados como reprobos ... (l). O principal responsavel pelo desmascaram~nto do embuste, nada soffreu, porém. Vimol-o final-se, em Campinas, muito velhinho, entre as crianças e os doentes dos asylos que cr:.ou, abençoado por todos. Esse, sim, estava e está com Deus. (1) « José Marrocos, morreu elll'cnenatlo; ~lonsenhor Monteiro cegou (l ar.abulI os seus ultimas dias na maior indigencia; paùre João Carlos jit teria marrido ti. fome si lhe não valesscm suas bondosas parcntas; padre Vicente de Alencar, não teve mais aléu; padre Crimerio arrasta-se pauperrimo; padre dr. FWIIcisco Ferreira /I nthero, ùe tres em tres annos renova os sete passos de sua paixão; ùr. Marcos Rodrigues Madeira abandonou a familia e foi para o Amazonas onde falleceu pouco depois; dI'. Ildefonso Lima foi desapeado da alta posição que o'~cupava; Cel. Joaquim Secundo Chaves morreu de repente; Tenente Coronel José Joaquim de J\Ial·ia Lobo acha-se quasi cego c com a telbice de !;er um sabia como Ruy Barbosa; ;¡Iajor João Cyriaco está .reduzido ti. ~imples \'endilhão de feira, etc.» P. ALl<:~:CAR PE¡X01'P. ob. cit. pg. 81«A cegueira ,lo saUlloso Monsenhor .Francisco ;\lonteiro foi' tida como um castigo. Conta-se a respeito que ·;sse sacerdote certo dia, perante rrmita gente, incluindo-se alguns dos seus collegas, exu¡;geru.ndc-se em conceitos para justificar a sua convicção sobre as referi,las manifestações miraculosas», dissera «Si eu ne:;ar o 'lue I'i, cé:;uem meus olhos I)} DR. FLOIlO ll.\RTl!OLOMEU, ch. nt. CAPI'lTLO nr ::c o que custa é o primeiro milagro, como a primeira mentira.· .. Os mais decorrem delle, naturalmente, com a simplicidade de acção e a força incoercivel de uma pedra, que se desapruma e róla no abysmo. Contam-se, assim, muitos outros pequenos prodigios, alguns dos quaes, diga-se a verdade, são mesmo desconhecidos da parte do Padre Cicero. Mas o Padre sempre permittiu a idéa de que era capaz de realizar milagres (1). Casos simples, de um objecto que se perdeu, de urna rez sumida, de uma cultura de algodã.o ameaçada de praga, de uma parede de a{lude que ameaça romper-se ... Episodios mais complicados, como o do mudo que far: 1) O clr. Floro Bartholomeu, defendendo (l Padre Cicero, em discurso na Camara Federal, publicado depois em volume, cita varios casos em que elJe proprio se coniessou como compar~'a de pretensoB milagres do Padre. Tal o caso do homem « que niio sentia a mütade do corp0)l, e o de urn Illorador de :l-lissão Velha. Allude t::unhem ao mila~re das chuvas de 188~, quando já ~e c;;[lcra\'a ullla grande seCI~a, ob. cil. [lg. 11í. OS MILAGHES Ul Iou para mocrer, como a cura de paralyticos, de maniacos e enfeitiçados ... Mais amplos ainda, e denunciadores de um podel.' mais profundo, cemo o apressar da chuva que tarda, ou a repressão do inverno, demasiadamente copioso ... Houve uma epoca em que os milagres so multiplicaram espantosamente. Foi durante as luctas da revolução de fins de 1913. A. crença geral era a de que quem morria pelo Padrinho, on de quer que fosse, rcsuscitava, perfeito e são, no seio da Méca ... li: contamse casos para sua comprovação, como outros, não menos pittorescos. Para certa classe de crentes, nada por fim se passa de util ou bom, sem que nisso se veja a influencia do Padrinho; nada de mau, em que não descubra o castigo inexoravel por uma culpa gravissima, corno a d.e não se haver rozado uma oração de modo perfeito, um voto que se não cumpriu, uma esmola negada a um romeiro cm tran:sito ... Morta Maria de Araujo, a thaumaturgia tomou novos aspectos. Ella propria passou a attender os p,~didos de beatos e peaitentes, estabelecendo uma concorrencia por vezes proveitosa aos intentos dos fieis ... O seu 132 CAPITULO VII culto generalisou-se. E os fluidos inef£aveis de novas consolações celestiaes desceram a muitas almas ingenuas, que premidas sob a ameaça de outras tantas penas, afervoraram as preces e multiplicaram as penitencias ... ~[e(lalha que 05 fanat; ~os do Padre Ciee"o tm7.em ao pescoço, CAPITU LO Vin O «BOI SANTO» Lill caso de lolemismo? jl/ào, silllpll'~ ¡p.bú ... - Uma promessa curios:!. e seu ¡li:O menos curioso descIÙacc - A snnli£knçào (lu I"Ii, milagres, grandeza e decadencia ... VIU « POlque na lei de Moysés {lStá escriplo: ao boi que trilha não liarás Il bocca. PorventUfa tem Deus cuidado dos bois?» (S. Paulo aos Corinthios, IX, 9). Um boi ado.rado e tem'ido e1'3 ahi um caso que poderia parecer, a principio, manifestação curiosa de « tote mismo ». Era û « totem», entre os pOYOSprimitivos, e ainda hoje, entre certas tribus australianas, uma especie animal, na generalidade dos casos, ou uma variedade de plantas, noutros, a que se at.tribuiam influencias muito particulares na vida de um certo grupo- de pessoas - o- «clan ». Tido como unl antepassado, o « totem» representava, para os com'p.onentes do clan, o papel de guia e de.espirito protecto-l'. Por sua vez, essas pessoas se collocavam na sagrada obrigação de respeitarlhe a vida, abster-se de comel-o ou aprovei8 Lourcnço Filho - Jool\¡;iro do Pad,·c Cicero. 13G nPlTl'LO VII[ tal-o sob (lUa1quel' outra forma. O totemismo passa por ser a mais primitiva forma rie r!~ligião e o mais antigo dos codigos não escri ptos (1). Mas o boi do .foaseiro era um só, e nãü tinlla preferencias por pessoas. Operava mi1agres com todos os romeiros, indistinctamente ... Visto, a~sim, mais de perto, podia semelbar uma extranha encamação da divindade, uma especie de Apis, que figuras3~ para o caboclo o que foi o celebre nume dos antigos cgypcios. Aos olhos do povo inculto, o boi Apis procedia directamente de Phtah e Osiris, e a sua id,~ntidade devia patentear-se por signaes do pello, no dorso e na cabeça. Mas o «boi santo» do Padre Cicero não tinha tão notavel «pedigree», nem dos demais bois se distinguia por estygmas aprpciaveis ... Revelara-se já adulto, e inesperadamente, por milagre acabado. e perfeito, depois de ter cumprido, por muito tempo, com modestia e paciencia, as funcçõcs que a todo boi que se preza podem competir neste valle de lagrjmas. Ficou «santo» por ser propriedade do Padrinho e naùa mais ... (1) S, FREI'D, Obras Bibliotheca ~ UOI'a, 192?, completas, vol YIll, trad. hesp, ùa o « BOl SANTO) l'cm «totem», portanto, nem e.learnação da divi:Yldade. Simples « tabú» transilorio, transmittid.o pela· « mana» do Padre) pare'.,demonstrar aos pov.os ató onde poderiam chegal:' suas fO~'ças mysteriosas, e confi l'mal, por uma imagem de muito pittoresco, o llonto dç saturaç.ão dÛ' fanatismo dos romeiros. O téÜ)Ú suppõe apenas a emanação de força magica, inherente a certos espiritos de pessoas, c qne podo SC~I' exercida não só sobre sères vivos, mas ató sobre as coisas. O principal tabÚ do Joasë:iro é, hoje, a estatua do Padrinho, erguiûa numa praça publica, como o foi nout:os tempos, a sepultura de Maria de Araujo, a heroina dos primeiros milagros. O « boi santo» sobreexcedeu, porém, a todos, na grosseria do culto que fomentou, e nos esplendidos milagres que liberou áquella pobre genb.· ** l~ O boi vem sendo, atravez dos tempos, um animal em que se tem corporificado, muitas vezes, potentes divindades. Os touros alados dos assyrios r:ão só montavam guarda aos templos mas recebiam adoração. O bezerro C.\.PITVLO VIn de ouro, de que fala a Biblia, resumIa l) culto de uma velha reminiscencia totemica dos hebreus. E, maior que todos, o boi Apis, dos antig.os egypcios, representava a mais completa expressão da divindade sob a forma de animal vivo (1~. Ha, ainda hoje, na China~ um rito assás curioso, o do « boi da primavera», que é mencionado no l...i-ki, entre uS que se celebram no fim do inverno, para afastar as emanações pestilentas e as molestias graves ... Na tradiçã.o christã, o boi está presente ao nascimento de Christo; e é llella, naturalmente, que tirou corpo o f01guedo de « Bumba, meu boi », tão commUnI em todo o Nordeste, que o re1embra em cada Natal, com as toadas ingenuas dos sertanejo.3, suas danças e descantes. Naquellas as peras regiões, onde a maior riqueza é a industria pastoril, toda a psychologia do caboclo tinha de modelar-se pelas condições naturaes da criação. do gado. Nas suas idéas, na linguagem, na esthetica primitiva, nas superstições sinão no seu proprio culto, .o animal amigo e paciente, o companheiro de alegrias pelo « inverno» e amal'(1) Morto o boi Apis, passul'3. elle a ser Osiris e tom~ml. o llame de Osar Apis, ùonde se ori~inou lo deus Sarapis, ùos gre[;os. ú « BOI SA~TO» guras pela secca, devia acabar occupando um lugar consideravel. De certo modo, pois, seria naturalissima a acceitação do « boi santo» do Joaseiro. li' * * Demm, certa vez, ao Padre CicerO', um garrote mestiçado de zebÚ. Era o pagamento, como· tantos que diariamente recel~, de um milagre ou receita. Não desejando, em vista da diversidade de raça, juntal-o ao gado de sua fazenda, entregou-o a um de seus homens de confiança, afim de que o criasse. A.té ahi, nada de mais . .Mas esse individuo, um preto de nome José L.ourenço, beato muito conhecido e prestigioso na « ribeira», pertencente ademais á irmandade dos « penitentes», devia em breve santificar o boi. A. irmandade dos « penitentes» (que aliás ~xiste nalguns outros lugares do interior do Nordeste) claramente indica, por suas func(ôes, o estado mental dos homens que a compõem. Cabe-lhes, a obrigaçã,o de rezar pelos defuntos, nas noites de sexta-feira, junto aos cemiterios e ás cruzes das estradas, em tra- 140 CAPITuLO VIII jes de farricoco. De quando em quando, realizam tambem extranhas cerimonias de culto, (~m que ao simulacro da lithurgia catholica misturam-se muitrts vezes, crimes mommaveIS ... Aconteceu que, um dia, um dos amigos e companheiros de Zé Louren«(o fez promessa de offerecer ao boi do Padrinho um tenro feixe de capim, da melhor qualidade, caso fosse attendido num escabroso pedido em que a intercessão miraculosa do Padre Cicero se julgava necessaria. Alcan<;.-adaa graça, tinha de cumprir-se a promessa. Entretanto, estava-se na estação da secca, e por alIi, ao alcance da mão, nada mais se offerecia do que os gravatás resequidos, os mandacal'ús espinhentos, ou a rama já amarellecida das juremas agonisantes ... E a promessa fôra de um feixe de bom capim, tenro e fresco! Negal-a, ou tentar illudil-a, seria o castigo certo e desapiedado, com que, na interpretação grosseira dos crentes, tantas vezes já o Padrinho têm fulminado outros reprobos ... Nessas conjunturas, o cabodo resolveu caminhar alguns kilomet.ros e ir furtar a forragem de que carecia, em pastagem fechada, de propriedade exactamente do Padrinho, numa varzea sempre fresca e umbrosa. Foi, o « nor S.\)I"TO» 141 cauteloso, pela madrugada, sem que ninguem o pudesse vcr. Mas, traz ida a offeï:encla, rejeitou -(i 0 bo j. Quando c caboclo, ajoelhado, engrolando uma das mu;tas Oi'élyÕeSapropriadas ao acto, lh'a dopa:;; ciic:nte, o boierguQu para elle uns tristes oll..,os l'eprchcl1sivos c mugiu, em seguida, de um modo insolito e doloroso ... E ° devoto não tove sinão que atirar-so-lhe aos pés: - - « Miscr:cordia, meu Padrim] gemeu 0-' desgraçado. Eu furtei, mas não fll."to mais! Misericordia! » E como :fulminado, alIi jazeu por longo lempo, sem' poder articular mais palavra ... O guarda do bo,i, que já havia notado no animal uma::o tantas singularidades, e que se maravilhava especialmente com a giba· que elle dera de apresentar nos ultimas tempos, sommou os factos e delles tirou a eonclusão. de que o caso era um milagre legitimo. Isso exigia preliminarmente um desaggravo ao Padrinho, rezando-se-lhe uma novena em face dû bicha. Assim se fez, e o boi se tornou santo; e dahi por diante, até ao seu sacri.ficio impiedoso, não tiveram conta os milagres que produziu ... 142 CAPITULO vIn *** Com a exploração natural que comportava, por parte do preto fanatico, o caso tomou, imm'ediatamcntc, ulffiia alta significação. PoU(~{}sdias eram passados, e já o boi ruminava diante de mangedoura florida, rosarios de tucum pendentes ao pescoç',o, e bentinhos e laçarotes nas aspas ... Muitos romeiros, apenas saudavam o Padrinho, ou lhe beijavam' cO'mmovidos, o portal da casa, reencetavam caminho para o lugarejo onde esta'"a o hoi, na ancia de o vêr, e muitas vezes, de eumprir uma promessa. Todos se prosternavam em adoração e todos porfiavam em lhe cambiar o alimento, que variava das mail"> frescas hervas aos mingaus, papas c bolos. O boi ruminava e agradecia, com milagres ... Os mesmos seus productos naturaes operavam maravilhas therapeuticas. A urina, por exemplo, curava de modo infallivel a sapiranga e o trachoma. Um fragmento dos chifres, ou dos cascos, só consegu ido mediante alto preço, por felizes mortaes, punha fóra de perigo a qualquer pessoa atacada de quebranto, « espinhela cahida» ou « banha da o « ROI SANTO)} 143 legitima », que o trouxesse ao pescoço, num saquinho ... Tal incremento tomou, emfim, o fetichismo do bni, que {) proprio Padre Cicero ac.abou impressionado com o que delle se dizia. E o dr. Floro Bartholomeu, m'ais atilado e positivamente m'uito menos affeito a tolerar certüs exceS&JS de fanatismo dos romeiros, no regresso de uma das viagens ao Rio, ordenou que se desse fim ao indecoroso culto do ruminante. O caso, porém, já não podia ser resolvido com uma simples orderni, partisse embora do .Tupiter-tonante do Joaseiro ... Zé Lourenço revoltou-se, e com elle, sua familia e a casta dos penitentes. Houve conflicto sério e necessidade de prisão do homem. Recolhido o guarda do boi ao carcere, com alguns dOH seus comparças, mandou {) dI'. Floro que alIi mesmo, em frente á cadêa se imolasse o pobre cornipede. O sacrificio se deu, entre lamentações e lagrimas copiosas dos romeiros inconsolaveis, hav{~ndo quem affirmasse, depois, que um dos penitentes endoidecera ante a scena sacrilega e atrozmente sangrenta ... Poucos mezes depois do feito, estivemüs no Joaseiro e no Crato, e ahi ouvimos teste- I·H CAPJTlfLO Yll[ munhas oculares do caso. A « Gazeta do Cariry», a elle se referiu largamente, em seu numero de 26 de janeiro de 1 B22. Delle tratou, em memoravel discurso na Assembléa Legislativa do Ceará, o deputado dr .. losé Martins Rodrigues, conhecido advogado e jornalista. E o proprio dr. Floro Hartholomcll da Costa, tentando responder a ligeiros reparos que o dr. Paulo de Moraes BalTos fizera ao Joaseil'O, nas suas conferencias de impressões sobre o Nordeste, não pôde deixar de confirmar, na Camara Federal, que fora obrigado a mandar matar o «boi san to », exactamente nas condições qlle aqui descrC\r('mos (1). E, depois, nem siquer mandou buscar outro ... no Piauhy. (l) DR. FLORa BARTHOI.OMFT, ob. cit pg. 9í. CAPITULO IX A SEDIÇÃO DE 1913 (Causas) InHcrip<,:ôes sobrepostas de luto c de dóI' Houic rnihi cras tihi ... - Uma oligarchia baniria c \lm ~o\·crno promissor -- Campanha. contra o bamlitisrno e sna.s consequentias -- !leflexo da politiea de Pinheiro Machado - Onde se \-ê que Il corva sempre arrebenta <lo lado mais fraco ... IX « Não sei qual roi mais terrivel: si a secca de 1877 si a Sedição de. Joaseiro» (RODOLPHO TnEoPHILO, « A Sedição do Joaseiro», 1922). No aspeeto geral da maioria das villas e cidades do Ceará, cornu em certos pontos do seu proprio sertão bravio, vêem-se, ainda hoje, nas ruinas de casas e solares, no abandono de estradas, engenhos e culturas, os effeitos do drama lancinante que foi a secca de 77. Mesmo a Capital, derramada numa praia risünha, fóra da zona propriamente calamitosa, mas devendo sentir, como um' grande coração, 08 éstos da vida da provincia, mal pôde ainda mascarar-lhe de todo as consequencias. São grandes muros, l'Ôtas e pendentes; ca.sarões seculares, que não acompanhara.m a evolução das residencias modernas de derredor; arcos de pontes monumen- CAPITULO lX tacs; ruas, canstI'll idas pOl' aquellc tempo, com edificações de valor, que desfecham, de repente, na orla das areias cil'cumdautes, em an aiaes de palha e pau a pique ... Em muiias nucleos urbanos do interior, desequilibrio de vida foÎ maior c os signaes se ace-entuam em cada dia que passa. Parece que ali reinou o abandono por todo .o me~o-seculo volvido depois, e que a população, retransportada apenas de vespera, mal teve tempo de compor os telhados e disfarçar os desvãos das paredes ... Aracaty, Aquirás, Datul'ité, Paca tuba, IcÓ,Mal'anguape -como falam melancolicamente do esplendor antigo, nunca mais reconquistado! (l ~. Em muitos desses pontos, porém, não só se recordam os cffeitos da grande calamidade. Varias cidades e villas, como muitas propriedades ruraes de importancia revelam, como um palimpseBto, duas inscripções sobrepostas, de luto e de dûr. Nas reconstrucções interrompidas, nos tra(;os de um repetido abandono das causas, e na improvisação visivel de novas tentativas de trabalho, trans- ° (1) Para se ler idEIa do progresso do Ceará anles de n, Jasta confrontar as rendas de;;se Estado com as de S. Paulo, no dcccnnio anterior. N. .\ SF.l)[~'ÃO .!J¡'; HJW 14!1 paree o inapagavcl um segundo angustios~) hia~~): foi () que lhes imprimÍ1~ o sangue cia s8rll(.:UO de 1913. O¡; eIf3ilos matcriaes das duas desgraças não podian' ter tido a mesma extensão, oe:'Lamente. A S8cca dD 77 foi tei'riv31; :13.Q sc'; desorganisou o trabalho, como rcttingiu, ~m cheio e de modo profundo, as fontes de pl'Oducção, anniquilando mais que G'. lavoura, a industria pecuaria, que contava com um rcbanho de mais de um milhão de cabeças (1). Mas, nos eUeitos sociaes, sobretudo no moral das camadas cultas, a sedição sDbreexcedeu a do flagella periodico. Como todas as catastrophes geraes, contra que não é possivelluctar de modo directo, a secca une os homens. Aquella mesma hospitalidade habitual do caboclo tem as suas intimas raizes numa noção, m'odelada pelos vae-vens d~. sorte, talvez subconseiente mas innegavel, do valor transitaria da propriedade ... Hodie mike cras tibio E, no-s aspectos (1) Em 1719, já havia fazendeiros, nas immediações de Icó, que possuiam 4.000 rezes; e nos meados do seculo era tamanha a prodncção que além das remessas de gado para as feiras lIa Bahia e Pernambuco, se fundara, no Aracaty, um profm;o commercia ùe carne (xarqueada) que durou dé o fim desse sccnlo. J. BRIGIDO, « Homens e factos». • 100 CAPITULO IX permanentes <la vida rural, nos singelos ~u::;turnes primitivos, quasi biblicos, que a \-ida pastoril ahi tomou, não pode deixar de transparecer tambe'm',claramente, o poder de soe iabilidade, gerado pela desgraça eomm um (1). Está claro que essa união só existe de homem a homern sertanejo, de communidade él communidade do mesmo meio soffredor. Tres (fUintas partes do t.erritorio ccarense ahi se incluem, mas as duas rest.antes prosperam fóra della. O Cariry, ooa part.e do littoral e a sen'a de Ibial'aba são outro ambiente physico e social. O uberrimo valle Cariryense, ao fundo do sertão, onde o Joaseiro se estabeleceu, representa, typicamente, um caso de «insularidade das tenas habitadas». Oasis, tem como todos os oasis uma funcção biologica que se exprime numa historia de luctas politicas e economicas contra as zonas envolventes ... Ao tempo das grandes seccas essa animosidade se dilue nos sentimentos christãos ou se attenua de muit.o, pelo menos. Mas não n'a extingue. Ora, () que a sedi~~ão de 1913 logrou, at- (1) 1\esse admirareI lin'o que é :L « Terra de Su!>" GII~taro Barroso documenta com muitos [actos communs da \'ilhl pasloril cearensp., laI senlimento de fraternidaùe e honradt,z, .\ SEDIÇÃO DE 1913 1;)1 tingindo o Estado em circumstancias especialissirnas e delicadas, foi não só atirar uma zona contra a outra, num choque de velhos e cU'faigados preconceitos, mas anarchisar, pot' muitos annas, o espirito de harmoni2, social do Ceará, fazendo lavrar no espirito dos homens de escól o mais acabado. scepticismo pelo regimen. Ella se tornou possivel porque foi a explo,ração dos sentimentos duma multidão inconsciente, incarnados num tabÚ como o Padre Cicero Rom'ão. E attingiu consequencias moraes talvez não previstas peJos seus responsavcis, porquanto se deu depois de um pronunciamento de liberalismo notavel, que varreu do Ceará a oligal'chia que alli tinha assento, já havia mais de vinte annos. Compmhende-se assim, claramente agora, a affirmação que se podia tomar por apaixonada ou hyperbolica de Rodolpho Theophilo, nas primeiras paginas do seu livro sobre o inominaveI iIl1Jvimento armado. O conflicto ateado por po~iticos filhos de outros Estados c sustentado l.:.>clo governo federal dl~ então, representa na historia do Ceará um desequilibrio .organico de peores consequencias do que qualquer das suas grandes seccas. CAPI'flTr.O [.:{ Hememol'cm():; os factos que a precederam, rapidament<~, embora. O Ceará SUPP0l'tou durante vinte annos o governo de uma oligaJ'chia impenitente - () da familia Accioly. Não é aqui o lugar para o juizo definitivo do seu merecimento, ncm nos interessa directamente agora a sua obra. Demos como provado mesmo que as suas eulpas não tivcssCm' sido tão grandes como os clamare;") que contra ella se levantaram. O facto é que, pouco e pouco, veio a crPAr-se em todo o Estado uma situação de revolta insopitavel, que diariamente ganhava terreno e forças, e que culminou na deposição do velho governador por um legitimo movimento popular. Deposto o chefe da oligarchia, entrava o Ceará numa nova phase de vida política, agitada a principio pelos desmandos naturaes das circumstancias, mas auspiciosü sob muitos aspectos. A eleição do governador Franco Rabello, feita a seguir, f,oi ainda uma expressão, de verdadeira fé ci\-ica, uma demonstração da vontade popular integrada em si mesmo, en- .\ SEDIÇAO nE 1 \;1:3 trevista pelo povo como a aurora de uma redempção que já tardava. Mas, ou porque Franco Habcllo não fosse politico profissional ou estivesse de ha muito fóra de sua terra, em breve devia despertar contra si certos elementos ciosos de dominio. Transcrevamos de Rodolpho Theophila uma pagina que retrata claramente tal situação: « Os Acciolys haviam regressado e a11egavam que, pelo pacto feito com Franco Rabello, na occasião do reconhecimentc deste, tinham direi~o á metade dos lugares de eleição e nomeaçfto e nesta esperança tinham vindo e estayam. Desilludidos de se apossarem das posições perdidas, obstinados e audazes, uniram-se aos «manetas». João Erigido que havia sido o maior factorrnoral da queda dos Acciolys, que pela imprensa no seu jornal « Unitario» havia d.cnunciado tod.os os peculatos do governo Accioly, que havia atassalhado a vida privada do cornmendador Antonio Pinto Nogueira Accioly, cobrindo-o de todos os baldões, abraçou o seu antigo correligionario e com padre; perdoaram-se mutuas injurias e voltaram os velhos politiqueiros á antiga camaradagem. CAPITULO IX A Assembléa do Estado, que havia reconhecido presidente o coronel Marcos Franco Rabello, a mesma Assembléa convocou-se para lhe cassar o reconhecimento, mezes depois de Franco Rabello governar ... O partido rallell ista., que era quasi a totalidade da população da capital, comprehendendo o perigo que corria o eleito do povo e tambem a liberdade, a vida dos que o haviam eleito, decidiu impedir pelas armas a reunião da Assembléa». Comt.udo, renovada a Assembléa e normalisada a pouco e pouco a situação na Capital, Franco RabeUo eomeç>,Oua governar sériam~nte (1). Teve que tocar, então, num mal social agudo daquelle tempo que não podia esquecer: o banditismo do sul do Estado que tinha o seu quartel m~stre no Joaseiro. Certos chefetes do interior, cujo prestigio estava unica e exclusivamente no grupo de capangas que tinham ás suas ordens, allial'am-se aos politicos descontentes da Capi( 1:' Eram seus secretarias o dl'. .lOS,! Gctulio de Fra/..1 Pc;;soa e Joaquim Costa SOllsa. O dI'. Frota Pessoa, como secrptario do interior, muito fez Pillo ensino publico e hygiene. Na Prefeitura da capital, al;hava-sc o sr. Ildefonso .\Ibano, a qnem se deve a rcmodela~ão de Fortaleza. A. SEDIÇÃO DE 1913 tal, numa opposiçã.o agora signific.:ttiva. O governo a teria combatido, com vantagem, se um facto da politica nacional não viesse collocal-o numa, situa,ção de todo inesperada. Tal foi o da, successão presidencial tÍ Republica. Era de praxe que o candidato. á presidencia fosse indicado pelo syndicato que explorava a politica nacional, sob a chefia de Pinheiro Machado. Antes da reunião do P. R. C. para indicação do successor ao presidente Hermes da Fonseca, o governador, de então, em Pernambuco, general Dantas Barreto., protes',:ou c,ontra aquella praxe que aberrava de todos os preceitos dcmocraticos, lembrando que a in-:dicação se fizesse por uma convenção nacional. Ainda está na idéa de todos .o que foi a agitada política nacional daquelles dias sombrios. São. Pé.mIo, Minas, Rio, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Ceará colligaram-se para resistir ao arbitrio de Pinheiro Machado. Lançada, porém, a candidatura Wenceshu Braz os do.is primeiros grandes Estadüs se encolheram deixando que as pequenas unidades pagassem a culpa de sua fraqueza. E' facil SUpp0I' as c.ons8quencias em relação á politica cearense daquene tempo. Ella ('APITULO IX' é assim resumida pdo historiador de que nos soccorrcmos: «( Chegando ao Hia, os emissarios confcrenciaram com o chde elo P. R.' C. ficando asscntada a dcposi<,ão do Cel. Franco Rabel1o, quc._ caso não pv.desse ser feita pelos marretas de Fortaleza, começaria por um movimento sedicioso em Joaseiro promovido pelo Pe. Cicero Romão Baptista, c viria sobre a cap.ital do Estado. Fizeram parte desse conluio os senadores e os deputados cearenses em' ar; posição ao governo do Estado, os tres emissarios e mais q dI'. Gustavo Barroso, sendo que este foi o unico que se 0ppoz á conflagração do Ceará, porque amava mais a sua terra do que os proventos que pudesse tirar da sedição do Joaseiro. Era preciso de todo empedernido pela pratica de actos maus para provar o v,andalismo dos romeiros do Padre Cicero, que desceriam do sertão atÓ a capital do Estado, matando, roubando, incendiando, protegidos pelo presidente da Republica, ou antes por Pinheiro Machado» (1). Veremos no· capitulo seguinte as principaes phases da lucta desencadeada. '(1) RODOLPHO 13 e 36. ·TH1:OI'HJLO, «A Sedição do Joascil'o», pgs. CAPITULO X A SEDIÇÃO - INICIO DA LUCT A De uma comedia, mal ensaiada, ;: lInIa :-;anguinolenia íragedia -- O gov,~rno extra-legal de Joasciro, officializado pelo telcgrapho .. , -- Primt'ira tenlali\'a do governo lel!al para suflocar a f.edição - O milagre das trillch(iras construidas DlUlla só noite - ~, S. das Dores falou .. , - A retirada. x « Vendo passar o Padre, com o pesado bordão com que costumava andar, seguido de um bando de fanaticos, disse: « Alli vae um rnissionario; amanhã um grande usurario; depois um perigoso revolucionario,» E a proph€cia do sertanejo, feita quando o Padre Cicero era um santo, realisou-s~ », Dadas as causas a oue nos referimos, no ca pitulo anterior, era claro que a lucta contra o govemo legal do Ceará necessitava mascarar-se, por algum tempo, e jusLficar -se depois de qualquer fórma. O movimento era mais politico que militar; pretendia ser, mais do que um golpe pelas armas, uma farça bem ensaiada ... Assim' a imaginaram:, pelo menos, os seus organisadores. :\fas o caso tomou situações imprevistas. Niio se podia contar, a principio, com a pertinaz resistencia que á sedição oppoz o governo Franco Rabello, como não se previu que a interven9 Lourenço }'ilho - Joate;"o do Padre Ciorro, 160 CAPITULO X ção federal pudesse ser retardada. POT outro lado, não se calcularam perfeitam'ente as con:;equencias que adviriam do facto de se deslçaimar a horda dos fanaticos do Joaseiro ... A sedição devia apresentar, pois, feições lnesperadas. Do simples caso policial, do ini,~io, havia de degenerar em lucta civil e em « guerra santa » ... Ka descripção que esbo'iamos é esta, especialmente, que nos intc:~'essa, como indice ainda da diathese social dû Joaseiro. Ella não se entenderia, porem, ~;em o quadro geral do movimento, que temos de assignalar, nos seus pontos esseneiaes (1). A « guerra santa) era o que men os interessava aos « chefes ». Todavia, alcançado o objectivo inicial da depûsiç~() do governador Franco, Rabello, foi esse aspecto da lucta que avultou. Os vencedores foram, de facto, os fanaticos do Padre Cicero. Elles acabaram por inc,ommodar û proprio interventor federal, os mesmos exploradores do movimento, El firmaram, de uma vez para sempre, o predominio absurdo do Patriarcha do Joaseiro (1) Sen'imo-nos, para a descripçilo geral dos acontecimentos, além da corajosa obra de Rodolpho Theophila, sobre a sediçio, das notas esparsas de alguns outros livros e jornaes que vão ciladas, e dos depoimen',os pessoaes q'le pudemos colher in loco e em Fortaleza. INICIO 161 DA LUCTA sobre toda a politica cearense, directa, ou indirectamente, por seu « alter-ego», o dr. Floro Bartholomeu. (Desde então, o Joaseiro se tornou um Estado no Estado, sem outra lei sinão a do arbitrio de seus chefes, com forças armadas proprias, justiça propria, moral e religií'Lo especialissimas; e, nessa situaç.ão fantastica, ainda hoje permanece ... *** As ultimas combinações haviam dem'onstrado a conveniencia de só fazer explodir o movimento sedicioso, em data posterior a do encerramento do Congresso Nacional. Ao caudilhismo, que empolgava os destiaos da Republica, ainda fazia móssa a acção parlamentar de Ruy, de Irineu, Pedro Moacyr e Maurício de Lacerda, cujas vozes vibravam, formidaveis, sobre a consciencia adormecida da quasi unanimidade dos representantes da Nação (1). Não obstante, as condições internas da (1) V. Anna~s do Congresso Nacional, refererJes a 1913. 16a CAFIT ULO X política cearens.e precipitaram os acontecimentos. Tendo fracassado um' movimento prepuatorio de opinião, em Fortaleza, e havendo sido apprehendidos alguns documentos preciosos a respeito delle, o Padre Cicero Eomão deu inicio ás hostilidades no dia 9 de dezemhro de 1913, depondo as autoridades constituidas de sua povoação, e desarmando o pequeno contingente da força puhlica, alli estacionado. Acta continuo, «deu posse» a um novo governador do Estado, a curiosa figura do « romeiro» Floro Bartholomeu da Costa, me:lico bahiano, de sua inteira confiança, e seu «alter-ego» futuro. Compenetrado das elevadas funcções que lhe competiam', o « governador» chamou secretarios, transferiu, por um simples decreto, a séde do governo, de Fortaleza para a povoação de onde irrompia o movimento, dissolveu o Batalhão de Policia e a Guarda-Civica do Estado, e adiou o pagamento de impostos para época opportuna ... Simples e pratico. Os aetas do novo governo nem siquer se publicavam num jornal; telegraphavam-se ... De tudo dava elle conta, por meúdo, ás duas casas do Congresso, e ao Presidente da Republica, que agradeciam sempre os telegrammas recebidos. Ao Presi- INICIO DA LUCTA 163 dente da Hepublica telegraphou ainda, pedindo que recolhesse o armamento do Batalhão Policial, com séde na «antiga» capital, e que fizesse policiar Fortaleza por tropas do Exercito ... Gomprehender-se-á como foi facil organisal', assim, telegraphicamente, o novo governo: a estação do Telegrapho Nacional tinha ordem d8 Üanquia, para todas as estações do Brasil, aos despachos assignados pelo denodado caudilho ... A pressa em tomar armas, naquelle recanto, de sertão, sem que outras medidas complementares já pudessem ter sido ajustadas, tirou á lueta, no emtanto, o caracter fulminante que della esperavam os seus planejadores. Como si o panna de scena tivesse subido com precipitação, a comparçaria mal teve tempo de tomar os lugares; alguns fugiram de scena, ou se metteram, receiosos., atraz dos bastidores; o «ponto », mal treinado ainda, teve hesitações lamentav'2is, e {) proprio empresario, no conforto do «Morro da Graça», mal continha um gesto irritado, pelo açodamento com que se iniciava, em publico, uma peça sem ensaio geral... O prologo de acabrunhante comedia, sem igual, talvez" nas chronicas da Hepublica, ti- l64 CAPITULO X nha que ajustar-se, com o sacrificio de muitas vidas, a urna tragedia improvisada. Il< * " Assim foi, de facto. Quarenta e oito horas depois de conhecidas as noticias pelo governo legal do Estado, embarcava, em' trem especial, para Iguatú, que era nesse tempo o ponto terminal da via-ferrea Baturité, a 400 kilometros da Capital e a 180 do Joaseiro, o Batalhão Militar do Estado. Levava todo o seu effectivo, de quinhentas praças, e seguia sob o commando do Coronel Alipio de Lima Barros. Não ficava em Fortaleza um só de seus soldados, o que tanto basta para demonstrar a confiança que o governo mantinha no povo (1). (1) « No dia em que s'~guiu o Batalhão Militar, a sociedade de pescadores c trabalhadores da praia, mandou ao palacio do Governo o seu presidente dizer a Franco Rabello o modo de sentir da classe. Chegando o enviado á presença do Presidente do Estallo, ajoelhou-se, tomou-lhe a mão beijando-a, e disse: « DUt:entos homens do mar, meus companheiros, estão ao lado de V. Exa. na ùefeza de quem juram morrer». Este juramento todo espontaneo e solenne, foi cumprido com uma. lealdade de assombrar. O governo, desse dia em diante, estava mais bem guardado pelo povo do que pela sua milicia. « Deus e Mar», composta INICIO DA LUCTA 165 De Iguatú, rumou o Batalhão para a cidade do Grato, a 15 kilometros do Joaseiro, na qual entrou ás dez horas da manhã do dia 18. No dia 20, aa amanhecer, sem maior descanço, seguia para a povoação sublevada. Iam, officiu.es e soldados, convencidos de que o nucleD de fanaticos se renderia aos primeiros tiros ... Mas, já em caminho, os « jagunÇOS» perturbaram a marcha, com tiroteios dispersos, em varios pontos. Numa escala, bem menor, por certo, repetiam-se os factos das primeiras tentativas contra Canudos: os fanaticos, em grupos esparsos, confundidos nas moitas, dissimulados nas tocaias, atiravam, seguros, sem ser vistos nem poder ser attingidos. A tropa, affeita ao meio, dissimuo tiro 38, sob a presidencia do phannaceutico J·Jão da Rocha Moreira, um dos cheIes do movimento de 24 de J:meiro, foi um ùos grandes factores da guarda de palacio. Os operarias da Estrada de Ferro do Balurité, tendo il frente o Sr. João Gomes, iam á noite, por turmas, guardar a seu querido presidente, corno o chamavam. Os artistas, os carroceiros, os trabalhadores da rua dava.m ta1l1Uem contingentes para aquella guarda nobre. Moços das melhores familias, empregados do commercia, negociantes, á noite lá ialll, de carabina ao hombro, fazer sentinella nas cercanias da. casa. ùo Governo. Era edificante o civismo daquella gente. Patrulhas volantes, de populares, rondavam depois de dez horas da noite a cidade e os seus suburbios. Nunca IIllla capital foi tão bem policiada». RODOLPHO THEOPHILO, ob. cit. pg. 52. :.66 CAPITULO X lava-se tambem, respondia áquellas provocações, quasi sem consequencias, e zom'bando dos tiros frouxos dos rifles e « picapaus », avançava sempre. Animaya-a a idéa de almDçar na praça da matriz do Joaseiro ... Ao enfrentar as primeiras habitações do logarejD, uma decepção lhe atalhou o passo, no emtanto. A ,,Méca se achava fortificada I Em toda a face pDssivel do ataque, os caminhos haviam sido- interceptados, por vallados profundos e trincheiras bem guarnecidas, que lhe oppunham barreira inexpugnavel...(l) Essa obra de fortificação havia sido construida numa só noite, c devia, na semana seguinte, circumscrever todo o povoado num' circulo impenetravel. Só quem tenha visto o Joaseiro em dias de exaltação fanatica, poderá comprehender, como em' prazo Hia curto, sem apparelhamento especial, se pudesse tcr realisado tal maravilha. (1) « o \-allado, a trincheira inexpugna\"cl do Joaseiro tem de pro(undiùade dez c de lar~ura doze palmos. Toùa a terra foi carregada para a parte dc dentro, a a',guns metros de distancia, formando uma barreira de seis palmos ùe altura, bombeada a espaços regulares, prompla para receher o ataque. São tres leguas de vallado. E cinwcnla mil pessoas, homens, mulheres e meninQ£, o fizeram en. scis llias ... XAVIER DE OLIVEIRA, « Beatos e Cangaceiros», HiD, 1920, pg. "G. !l"Cl':.;a dl' Ulll:¡ (!:l." fr;!it:J¡¡,jr;l:-'l nil ataqllP 0_..; f:lnillit'll,'" dl' l~I¡;L ,h.'i\'~\dl'!ld(l-";I· \·~(,I·IIl~:":I· o,'" d •. lallld¡o;-, da:-: .rua:-f'iro, f(\n:íL~ dl'Ht!'" tb~ lHI{' nl'l';¡"i;~1I1 llo do ,r";l'l'iru, l,(ll' fa 1110,,:1 . .; rrifW}¡I·ilil.~ llll"\'llilll", prillWil'l1 1"l.(i/l·S, {/('c:hitli) qll!' da :'l'llil:.~ltl l'il(lp:\\':Ult tllolll INICIO DA LUCTA 1G7 Seriam homens, mulheres, velhos e moços, crianças ainda, todos animados de uma só idéa, galvanizados todos numa só suggestão de defcza do Padrinho, que se lançavam desesperados, como um só braço, 2,0 mesmo exhaustivo trabalho ... Gizara-o, rapida, um chefe. Dirigiam-no, depois, tres ou quatro beatos de maior prestigio. Os alviõ€:s se embeberam na terra solta, faceis a principio, ao mesmo passo em que as foices rebrilhantes, desbastavam num rythma apressado, o m.attagal de derredor, e abriam um aceiro sufficiente á comprchensão da empreitada ... Logo chegavam as enxadas, vibrando em cadencia, sob musculos de aço. E logo pás, e logo alavancas, e log) facões, varapaus, utensilios domesticas ·os menos apropriados, I::lachados, latas, baldes, panellas, taboas soltas ... E aquelles sapadores improvisados se extendem por muitos kilometros. Prevenidos de que o contingente do. governo não era pequeno, redobram () ardor do trabalho. Nado o sol, já as primeiras braças do vallado afundam, em varias pontos, os destemerosos caboclos, mettidos na terra cavada e fôfa até a cintura, sujos de poeira e lama por todo o corpo, semelhando extranhos animaes que, por encanto, afloTassem do sólo, á voz magica do Padri- 168 CAPITULO X nho ... E os primeiros gritos de enthusiasmo se levantam, então, e resôam em vivas repetidos em cada peito ... O trabalho avança. Aos que escasseia uma enxada, um ferro em' ponta, um varapau, um facão, as proprias unhas os auxiliam naquelle labor delirante ... Passase a manhã, e ninguem o abandona. O sol se eleva c diminue as sombras, e ninguem deixa o seu posto. Vergasta a pino, com chicotadas de fogo, aquella multidão allucinada, e ninguem esmorece ... E o trabalho avança! Subito, o d ia apaga-se, depois, sem mais crepusculo que uma vermelhidão que tinge de purpura a igreja do Horta, com os seU.3pannos de mu:ras rotos e nús, lá ao cimo da serra, que 'defende o arraial da outra banda - e ninguem desfallece ainda ... Uma mancheia de farinha, mastigada ás pressas, e um golo dagua, sorvida num átimo, reconfortam aqnelles titans. E o trabalho avança I Com as sombras da tarde, redobra de vigor. As mulheres e as crianças, entoando o « no céo, no céo, com Minha 'Af.ãeestarei)}, carregam a terra em latas, baldes, panellas e saGCOS,e modelam, alhures, sob as mãos fragilímas, barbacans formidaveis ... Sobre ellas, os « beatos)} passeiam já, brandindo o rifle, prompto para a descarga aos esperados assaltantes, ou agitando, em INICIO DA LUOTA 169 bençãos repetidas, a grande cruz de madeira que os distingue sempre, na lucta, como nos dias de serenidade ... E o trabalho avança I Aqui, é uma camada de argila, mole e pegagenta, que difficulta agora o cór1.e previsto; alIi, um bJóco de granito que desaffeiçoa os alviões e os repelle, fazendo-os retinir em vão ... Mas ninguem desanima. A noite desce e os vae encontrar naquella mesma actividade insana. Prosegue a empreitada formidavel ao brilho das estrellas, e se prolonga horas a fio, sem descanço, até a madrugada ... De modo que, ás pÚmeiras horas do dia seguinte, quando .os assaltantes começavam a varrer as cercanias com' os tiros seccos de mauser, podiam responder-lhes os fanaticos com as suas armas primitivas, numa superioridade de .quem se defende de dentro. da propria casa. Aquella cinta impenetravel tornava impossivel o assalto fulminante. E a primeira vaga armada, por mais impetuosa que fosse, teria que lhe vir morrer aos pés-, applacada e desfeita, como. uma onda de espuma, traduzindo uma desil1usão amarga aos assaltantes, e significando já, aos fanaticos, o triumpha· certo e definitivo ... ] 70 CAPITULO X * * * Confirma-o o movimento das tropas legaes. Depois de quasi exgottadas as munições, E:emproveito algum, ás cinco horas da tarde do dia 20, o Com'mandante Alipio reunia o E;euestado-maior e discutia as medidas a se'l'em tomadas. Optou-se pela retirada immediata, para o Crato, de onde se poderiam pedir novos recursos ao governo. E a retirada teve de fazer-se, cautelosa, por pelotões, apenas as trevas da noite a tornaram menos perigosa ... Podia dizer-se desde esse momento que estava victoriosa a « guerra santa». Tinha-se movido, para sua causa, uma desfas forças imponderaveis que, em todas as luctas sociaes, armadas ou não, decidem' da f.orte dos combatentes. Déra-se-lhe, com a imprevidencia no preparo do ataque, o maior dos contingentes: uma idéa - força invenci- yell Era certo que Deus estava com o P.adrinho. Nossa Senhora das Dores velava por ::eu povo ... E a circumstancia, sobre todas fuggestiva, de que as mesmas balas dos süldados do « Cão» nunca lograriam ferir ao povo eleito, tornada verosimil pela insignificancia dos ferimentos de que foram victimas INICIO DA L DCT A 171 os fanaticos, nesse primeiro ataque, elevava aquelles espiritos rudes á possibilidade dos mais fantasticos heroismos, das angustias mais cruas, como aos menos previsiveis excessos na furia do combate. A móle despenhára-se: ninguem mais lograria conteI-a ... Floro Bartholomeu, um dos prineipaes chefes intellectuaes do movimento, comprehendeu-o rapidamente. Si, nas primeiras horas do assalto, apezar de sua nunca desmentida coragem, já se apressava em' preparar um animal para a fuga, que lhe parecia inevitavel - agora, compenetrado da victoria infallivel daquella gente, irmanava-se com ella, bebia e rezava com os fanaticos, sob as mesm'as vestes rusticas, o mesmo chapen de couro, quebrado na testa, o mesmo rifle enfeitado de fitas, pendente a tiracollo ... *** Não é difficil imaginar-se o que do outro lado s,e seguia. Na milicia estadoal, com'posta quasi só de sertanejos ignorantes, incapazes de repellir as influencias da superstição ambiente, contando mesmo muitos individuos fanaticos 172 CAPITULO X pelo Padre, seus (~afilhados)), os animas se tinham abatido, de modo incrivel. Favoreciam o desanimo as noticias, dia a dia mais impressionantes, de novas remessas chegadas ao Joaseiro, em homens, armas, mÜniçães e dinheiro. Para ali tinham accorrido de todos ()S sertões limitrophes, os m'ais ferozes cangaceiros. Comboios interminaveis de rifles e mausers, chegavam cada noite, via Parahyba, ou via Recife ... Lá estavam homens que haviam gnerreado em Canudos, na defeza de Antonio Conselheiro (1), assim duplamente consagrados: fá estavam, ao que se dizia, officiaes valorosos do proprio exercito nacional, senhores da arte da guerra ... Sob a direcção destes ultimas, as trincheiras haviam sido melhoradas, os fóssos aprofundados, eriçados de pontas de madeira, agudas como punhaes ... E sobre todas as novas, feria imprevistamente o espirito do sertanejo o boato de que N. S. das Dores havia Be declarado em pessüa, ao Padre Cicero, confirmando a promessa de que as balas dos (1) Entre esses cita-se o destemido Pedra dos Anjos, vulgo que esteve em Ca.nudos até as vesperas da tomada dl ultimo reducto do « Conselliciro», Seria esse temivel {acin )ra ·descendente de João Pilé, o fanatica « Sebastianista» de Pedra Bonita, em Pernambuco? « Pedra Pilé» INICIO DA LUCTA 173 soldados do governo, mesmo que penetrassem no cor:ç¡o de seus homens, nenhum: mal lhes poderia fazer; os proprios mortos resuscitariam; depois de tres dias, mais fortes do que nunca, junto ao Padrinho, na sua casa do .Toaseiro, ou ern' meiü á m'ysteriosa igreja do Horta ... Esse estado de animo, aggravado dia a dia, embaraçavaquaesquer providencias do governo, para um novo e proficuo ataque . .Mas não era só. Faltavam 'munições ás forças do Crato, e a estação chuvosa, no seu apogeu, difficultava a movimentação de tropas ou quaesquer operações que se tentassem. Apesar de tudo, o governo de Franco Rabello agia, pedindo munições ao general Torres Homem~ da Inspectoria .Militar do Recife, e tentando outras providencias de 01'ganisaçfLo, para uma séria cxpcdiç,ù,o contra o reducto dos fanaticos. Respondendo ao pedido que lhe fora feito, o general Torres Homem mandou que se entregassem' ao governo cearense cem mil cartuchos 'mauser, e manifestou .o desejo da victoria das armas legaes. Esse official não quiz acreditar a principio que {) governo federal estivesse favorecendo, francamente, a sedição. Impressiosionado, porém, por alguns actos do Ministro 174 CAPITULO X da Guerra, mandou um seu emissario entender-se com o Padre Cicero, afin!' que delle colhesse, ern primeira mão., informações precisas e satisfatorias. Incumbido. dessa delicada tarefa, o tenente Jo.sé Armando de Oliveira conseguiu penetrar no Joaseiro, depois de uma licença especial, e ahi foi :recebido e informado da real situação. O Padre affirmou que agia por ordem do governo. federal e que bastaria urn gesto, de repro.vação. das autoridades da Republica para que depuzesse as armas, incontinente (1). Antes disso, luctaria até o fim, certo de que havia de vencer com as suas proprias forças, ou com as forças do Exercito ... .Nisso se escoavam os uUimos dias do anno. Já não seria para 1913 o segundo ataque aos sediciosos. (1) «O Paùre disse que agia por orùem do governo federal, que bastava um ge~lo de reprovação desle para que depuzesse as annas, que esla ùe~laração faria alé por escriplo, caso <jui:!:esse o enviado do gen',ral Tones Homem.» R. THEOPHILa, ob. cit. pg. 64. CAPITULO XI A SEDIÇÃO O FRUSTRADO ASSEDIO Á NlÉCA A segunda cxpedi~'ão - Ullia caricatura da campanha de Canudos - Plano que peccava por sua mesma simplicidade - f; mais difficil sitiar que atacar ... O famoso canhão da lucta lnexplicavel retirada ({MGneiro pdo, maneiro páo .... IIeu Padrim Cirço é quem gat/ha!» - O primeiro trophéo da «guerra santa), 10 Low·cnc;o Fallo - .1omeiro do Padre Ch'ero. XI «A primeira foi um desastre; (RODOLPHO investida coLtra o JoaseirJ a segunda, lima miseria.» THEOPHlLO), O termo das novas providencias, tomadas pelo governo do Estado, abriram á lucta uma segunda phase, nitidamente mareada. O commandante das tropas que des cançavam no Crato, já havia uni rnez, solicitara do governo, além de novos recursos, a regularidade de fornecimento de dinheiro, pois que os commerciantes da cidade se negavam a quaesquer fornecimentos a credito, certos da victoria dos sediciosos, e consequentes prejuizos. O governador enviou para agir in-locO', uma pessoa de sua inteira confiança, o seu proprio secretario da Justiça, DI'. Martins de Freitas. Acompanhavam-o, além de outras pessoas, algumas das figuras de maior relevo na campanha contra a oli- 17S CXP.'Tl'LO Xl garchia Accioly, e por is'3o mesmo, dos mais deùicaùos apologistas da situação. Tiverase a ídéa de mandar fundir, em Fortaleza, urn: pequeno canhão qlIe agora se levava para atirar bombas de dynamite ao acampamento inimigo. Os con tratempos determinados pela conducção dessa pe~'a primitiva, do ponto terminal da estrada de ferro á zona da lucta, lembra, por vezes, mutatis-mutandis, o canhão de costa que se juntou á expedição de Arthur Oscar, na cam panlra de Canudos ... (1) E não só nesse, como noutros aspectos, a lucta do Joaseiro semelha, no preparo mililar da expedição, uma caricatura grotesca da .'ucta ao arraial do « Conselheiro )). Chegada ao Crato a missão organisadora da nova phase da campanha, suspeitaram os ~:eus membros de que o Cel. Ali pio de Lima Barros, com:mandant,~ das forças estaduacs, contemporisava qualquer movimento, para hvorecer aos sediciosos. Urgia, pois, removel-a. E foi o que se fez. Chamado á Capital, (1) E¡;CLYDES DA CC:-IHA, Os sertões, 4.a eù., l!lU, pg. 3í? <\ O transporte da peç.:! ù(' Iguatú ao Cralo, por invios eaminhas, no rigor de copioso inverno, hi um acto heroico ... E qu~ caminhos I Trechos de estr3.da havia intransilaveis, alagados, UIT tremedal em que o vehicula que transportava a peça se atolava até o eixo ... » RODOLPHO THEOPHILO, pg. (jéJ, ob. cit. o FRFSTRADO ASSEDIO A H£CII lif) substituiu-o no commando o capitão Ladislito Lourenço de Sousa, promovidü a :major, pelo mesmo acto do governo. Algumas paginas adiante, verificaremos quão desacertada foi tal designação. * * * Cumprindo ordens, o Commandante Ladislito levantou acampamento do Cra':.o, a 15 de janeiro de 1914, para um segund.o ataque ao arraial dos fanaticos. Levava um contingente de s[~iscentos homens, entœ soldados de policia, guarda civil e populares. Desde a sahida, a tropa apresentava aspecto pouca recominendavel: sem unidade dé: instrucção, sem vestes e armamentos unífor:mes, não tlDha o aspecto marcial, luzidio, das forças militares organisadas. E as condições internas de disciplina, não eram tambem das melhores. Para demonstral-o, basta assignalar que no comboio de viveres, que seguia no coice da expedição, avultavan.i. as carg.as de aguardente ... Como preliminar a um futuro plano de ataque, imagina\ra-se fechar QS estradas do p')voado. Já se sabia que um assedio com'- 180 CAPITULO XI pleto exigiria forças muito mais numerosas, alguns mil homens, pelo menos. Mas seria possivel dividir-se o contingente em varios grupos, e fechar com elles as sahidas. Piquetes se destacaram, respectivamente, para as estradas de .Malvas e Burity. O grossO' das tropas, em que figurava o famoso canhão, marchou para Santa RO'sa, afim de occupaI' varias atalhos, entre S. José e o caminho de Malvas. A occupação desses pontos foi feita sem grande resistencia. Houve de parte das fO'rças legacs, uma baixa, apenas. E ficavam assim fecbadas as communicações do perigoso reducto, especialmente 3-..<> que levavam is estradas da Parahy ba, donde o arraial se havia abastecido de viveres e armamento. Nada mais havia a esperar, mantido o cereo, sinão a rendição do Joaseiro pela fome. :I< * * O plano peccava, porem, pela simplicidade. A tactica do movimento, das guerrilhas, das surpresas e dos triumphos inesperados, cabem melhor ás tropas do genero daquellas que alIi se empregavam, do que um intelli- o FRUSTRADO ASSEDIO Á lIIECA 181 gente projecto' de resistencia. O que ainda as poderia impellir á lucta, e mantel-as cahesas, seria justamente a sanha do combate, em que se agitassem livremente as hmdencias selvagens, aembl'iaguez de trucidar e saquear, sem: peias ... Não nos illudamos, neste particular, extremando demais a psychologia dos dois campos dos combatentes. O governo legal não contava com tropas militares dignas desse nome. Cançado de esperar qualquer reacção por parte dos fanaticos, eolhidos em seu antro, nã:o comprehendendo o alcance das medidas que lhe haviam sido determinadas, ou tendo já um plano preconcebido de defecção, o Major Ladisláo, depois de nove dias de espera, resolveu dar um ataque ás fortificações dos jagunços. Não. lhe valeram as objecções dos officiaes que commandava. O eonÙnandante a nada quiz acceder e dispoz as tropas para o assalto. A tentativa so fez a 23. O plano era o de concentrar a,s tropas, no lagar denominado Macacos, nê. estrada de Barbalha: e dahi avançar, por essa estrada, até onde fosse p03sivel... Nenhuma combinação de movimentos, nenhuma outra investida simulada~ nenhuma preoccupaçiio quanto ao lE2 CAl'I1TLO XI consumo de cartuchos e de homens ... Era a aventura! Ás tres hOlas da tarde a primeira parte havia sido rigorosamente cumprida, sem nimhum obstaculo. Uma columna legalista avançou, então, resolutamente, estacionando a quinhentos metros das primeiras casas. Os jagunços permaneciam mudos, nos seus fo1'tilS. De fóra, não se percebia qualquer ruido ou movimento. Dir-se-ia 'mesmo que a povoaçho fora abandonada ... Kovos contingentes se vieram juntar aos primeiros, num total de CErn homens. Animados, iniciaram, então, e~ses pelotões de vanguarda uma cerrada fuzi~aria, a esmo, sobre o casaria proximo e trincheiras visiveis. Eram cinco horas da tardt~ e os jagunços continuavam mudos. 01'd<mou o commandante que o tiroteio redobrasse de intensidade e que se ensaiasse o ca.nhão. Era enorme a curiosidade por observar o funccionamento daquelle engenho de guerra. E a ingenuidade dos atacantes ia a ponto de imaginar que alguns dos seus tiraçüs pudessem pôr abaixo as torres da matriz do povoado ... Atulhado de polvora e munido de um estopim sufficiente, o pezado obuz estoirou. Até ahi, só conheciam os combatentes os tiros seccos das mausers, o estralejar ùas winchesters e o 11OUCO commum das armas o :FRljSTHADü ASSEDIO Á ]1'!f~CA 183 primitivas dos jagunços. De sorte que aquelle estampido formidavel, prolongado em écos, pelas devezas de derredor, mysterioso e profundo, devia apavorar antes pela novidade, que pelo trabalho de destruição que pudesse envolver ... O bacazio se rep~tiu, algumas vezes, medonho como um trovão, mas innocuo, por entre o alarido festivo dos soldados que rodeavam a peça. Mas ainda assim os jagunços não respondiam. No arraial, tudo era silencio e calma. Nenhum movimento, nenhÜm ruido ... Já o sol se esCondia, quando 0'3 uUimos tiros dos assaltantes se fizeram ouvir. Cessaram depois tambem. E a noite Be passou em inteint calma, na Méca formidavel, com'o nos acampamentos (.fUe a sitiavam. Na manhã seguinte, porém, eram os assaltantes que despertavam, sobresaltados, debaixo de terrivel fuzilaria. Durante a noite, os fanatico3 tinham cavado uma trincheira mais proximo, € atacavam de flanco a posição do obuz. O commandante se via forçado a fazer avançar toda uma companhia para resguardar a peça, e destruia, assim, o s'Cu prim€:ro plano, concebido para outras condições de ataque ... Deviam começar a sentir, dahi por diante, 184 C.\.PI1TLO xr a força de engenho, a astucia e a coragem dos fanaticos. Ora era um grupo que se approximava, fardado em kaki, dando vivas a Franco Rabello, até guardar posição em que pudesse fazer funecionar, com vantagem, suas armas de pequeno alcance; ora, oito ou dez allucinadüs transpunham as trincheiras e vinha atirar, quasi a queima roupa, saltando depois, fugindo, como espectros, sum'indo-se em lócas, no chão, ou occultando-se, como fantasmas, no balnburral inextricavel; ora, era um morteiro que soava proximo, não se sabia de onde, e que arremedava o canhão legalista, pelo estampido formidavel. Após o .que, choviam sobre o acampamento proximo mancheias de pregos, seixos, pedaços de chifre, contas de rosarios, pedaços de cêra benta, atirados á mão, como sortilegios in£alliveis para afastar aquellas tropas do «Cão» ... (1) Impressionados já, os soldados respondiam a esmo, sem resultado algum, dispersando munição. Nalguns pontos, as moitas foram cortadas a bala, l'onto ao sólo. Era umn, lueta sem resultados. (i) « Soldados do Cilo », «gente do Anti-Christo», « Macae)s do Rabello» - taes eram os nome, que os fanatieos davam il tropas do governo. O FRUSTRADO ASSEDIO A M:£CA 185 A' tarde, apesar do pequeno numero 'de baixas, e sem que a totalidade dos seus homens tivesse entrado em acção, o Commandante Ladisláo ordenou a retirada para o 10garejo Macacos. Ahi acampadas as tropas, declarou então que estava resolvido a retirar-se para a cidade proxima de Barbalha. Em vão, objectaram os seus officiaes que o seu dever era o de proseguir o cerco; e, no caso de retirada, que o ponto de concentração devia ser a cidade do Crato, de communicações mais faceis com a Capital, e nunca Barbalha. Mas o commandante não os attend.eu e ordenou a marcha para esta ultima cidade. Antes disso, paz em liberdade todos os jagunços que aprisionara, conservando unicamente detido o Cel. Antonio Pinto de Sá Barreto, que fazia parte do governo extra-legal do dr. Floro Bartholomcu (1). Seria o seu refem'. (1) « o ,omm:mùante alcoolisado, não os atten:leu e seguiu para Barbalha, ponto este escolhido de preferencia ao Crato, onde estivera aquartelado e de onde viera. Porque essa. preferencia, até hoje não foi pcssivel descobrir». Id. ibd. pg. 81. 18G CAPI1Ti.O 0.' X[ :" Na Barbalha, el ]\Iajor Ladisiáo não attendeu a ponderação alguma dos homens de responsabilidade do logar. Debalde lhe mostraram que ali devia reorganisar as forças, para o que podia contar com mil populares dispostos a todos os sacrificios; que a cidade cra inexpugnavel, pda sua topographia, c que, entrincheil'ada, só podia ser tomada por artilharia; que tinha viveres para mais de um anno de cerco e que a.3 communicações directas com o Recife seriam facilmente mantidas. Nada o demoveu da intenção de dissolver as tropas e de fugir á lueta. O autor do curioso livro «Beatos e Cangaceiros », incidentemente descreve alguma~ das scenas da desorganisação das tropas legaes que ahi se deram. Talvez as tintas estejam um' pouco carregadas, mas, no conjuncto, a narração resuma verdade: « Chegado em Barbalha, com o seu ref~m, mandou tocar a reunir, e dos mil homens que commandava, ainda conseguiu, durante alguns instantes, apenas, pôr oS'olhos em cerca de quinhentos. O fRUSTRADO ASSEDIO A IIIfX.A 1:)7 Desses escolheu trinta dos de sua confiança, c, com elles, constituiu o seu estado 'maior, A seguir, trepado numa calçad8., tendo ao seu lado o deputado Pinto, falou il tropa nos seguintes t~rmos: - Camaradas, é triste confess'l.r; mas o Padre Cicero é quem ganha. Os soldados mais espertos, mais sabidos, foram logo dando costas a elle, e vendo o Ingar por onde deviam correr. G com'mandante, solemne, imperturbavel, continuou: - E' o caso de dizer: Deus é grande, o Padre Cicero é maior, m'as o maUo ainda é maior que os dois 1'eunidos.,. Nesse momento já eram pelo chiio não m'enos de trezentos fardamentos completos dos soldados fugitivos ... O cOffilm'andante insistiu calmo: - V océs já não têm mais commandante, pois que agora eu só commando aqui ao :meu amigo Antúnio Pinto, disse, batendo, amavel, no hombro do deputado. E proseguiu: - Cada um cuide de si e ganhe a capoeira. illasvejam como correm na macarr.bira: pisar bem no olho da b-icha, sinão tio(~m com a,s pernas lanlUldas pelos espinhos, e sem poderem correr, os 11'0'meirosos pega,m e os levam para J oase'Íro.., 188 CAPI'rULO XI Afóra o seu estado maior e o deputado Antonio Pinto, nem mais um soldado ouviu as ultimas palavras da arenga do impagavel commandante. Todos haviam já ganhado a capoeIra ... Este, porém, tendo como refem o vice-presidente da Assembléa do Joaseiro, sentiu-se garantido e com o seu estado-maior, deixouse ficar na cidade, ainda algum tempo, bebendo cachaça nas bodegas, até chegar ao ponto de, na sua retirada estrategica, á frente dos seus trinta soldados de confiança, e com o deputado á sua frente, cantar em voz alta, pelas ruas de Barbalha, a toada que ali ficou cognominada - da derrota: « illaneiro páo, maneiro páo, Meu padrim Cirço é quem ganha ... » E os trinta soldados do seu estado maior, como elle, todos embriagados, respondiam em côro, dansando á «bahiana» e num som brejeiro, e grave, e prolongado: - « Meu padrim Cirço é quem ganha ... » E o commandante - insistia: « Maneiro páo, maneiro pão ... » o FRUSTRADO ASSEDIO Á ~l£C.\. 189 E virando () rosto em sentido a Fortaleza, batia com o bordo da 'mão esquerda na curva do braço direito, e concluÎa: - Bananas pr' o Rabello. E os soldados, tambem virados para Fortaleza, e fazendo o mesmo gesto, arrem'atavam, numa suspensão grave: - Bananas pro Rabel ... lo. A cada in tervaUo da cantiga guerreira, o commandante dizia ao seu rcfem: - « Antonio Pinto, tu és a nossa salvação e, ao mesmo tempo o nosso unic'Û Christo. Ao primeiro tiro dos romeiros, és um i1Omem: morto. Eu mesmo me encarrego de te sangrar na guéla.» E lá se ia o cortejo: « Maneiro páo, manei1'o páo, Meu Padrim Cirço é quem ganha ... » o Major Ladisláo e algumas d3zenas de seus soldados subiram a serra do Araripe, de onde des~eram demandando Sant'Anna do Cariry; dahi, tomaram o rumo de Iguatú. De toda sua custosa expedição, ficava na zona da luc:a, apenas, o famoso canhão. Dei- lHO CAPlT (j LO XI xaram-no, abandonado, em frente á cadeia ùe Barbalha, onde o iriam buscar, dois días mais tarde, os fanaticos do Padre Cicero. Aquella peça, sobre que repousaram tantas esperanças, seria o primeiro grande tropheu da « guerra santa » ... CAPITULO XII A SEDIÇÃO A MARCHA SOBRE FORTALEZA Da «~ucrra sanla» á lucia politiea, com "scala pelo «cangaço» - Saques e depreda';ües - Marchando pelos serlões (,m llor ... TentatÏ\'a do governo legal para ¿:cter óL mar~ha dos sediciosos - Sacrilicio in'Jtil de bravo militar - O cerco de Fortaleza -- Es'do de sitio e intervenção - As respons;¡,bilidalies do gcyerno da HepubJica. XII A malta de criminosos não trazia bagagem, nem trem de especie alglma. Dormia no chão, ao relento, e se alimeatava do que ia roubando pelas estradas. Em caminho, pratica\'a toda a sorte de depredações, abrindo cadeias c soltando criminosos, que a seu bando se incorporavam para, juntos, « pacificarem o Ccará! ... » Era a este bando de ladrões, de malfeitores, quasi na sua totalidade de outros Estados, especialmente da l'aranyba, que o governo chamava « re\'olucionarios)) e á sedição - movimento politico (Rü[OLPHO THEOPHILO). Com a inexplicavel retirada do commandante Ladisláo, e consequente desorganisação das forças legaes, ficava todo o sertão do Ceará á cliscreção dos sediciosos. A lucta devia apresentar novos aspectos, portanto. Os odios damninhos e ambições furiosas, contidos até ahí no seu nucleo condensador e reducto famoso, deviam romper agora os diques frouxos e alastrar-se sem remedio, por 104 ('.\PI1TLO XII. todo o Estado, que cobririam de lucto e de dor ... Já assignalamos. paginas atraz, como se cümpunham as forças do Joaseiro. Não tinham a animal-as nenhum objectivo consciente, nenhuma idéa de liberdade, nenhuma aspiraçãü politica, Eram, sim, « essa rcscrva enorme de iustinctos aggressivos, que sc occulta, minaz, no fundo dos carrascaes calcinados e bravios », mas não se lC\¥antayam « como ameaça de oppDsição a uma oligarehia dominante) (1). O governo legal era exactamente successor de uma oligarchia ... Antes do caudilho, mal conhecido ainda, galvanizava aqueHa horda truculenta, e a agitava sem difficuldade, o thaumaturgo sem par ... Luctava-se, antes de tudo, por defender ao « Padrinho». Era natural que se luctasse, depois, para vingal-o. Mas ainda e sempre, o « Padrinho, nlais propheta que Messias, mais sacerdote que capitão ... Não desíraldavam uma bandeira; seguiam uma « veronica ». Não se agrupavam ao redor de uma espada; protegiam uma sotaina, e corn. fazel-a, proeuravam antes de tudo a sahração da propria alma. sib" (1: OLIVEIRA VIA:\:-;A; II l'orula~'ùe, S. Paulo, 1920, pg. a3.:í. ~!eritl.ionaes do Bra- A ~dARCHA SOBRE FORTALEZA i !l.) O grande corpo de combatentes era de fanaticos. Rodeavam-nos, mais intrepidos e ousados, todos os cangaceiros dos vastos sertões limitrop}les. Uma li'rnltada parcella, apenas, despertada e attrahida depois, figurava. a reivindicação politica. Os chefes desta pretensa reinvidicação nada mais faziam que explorar aqueIle fundo movediço e perigoso de superstiç~o e o rude espirito de combati-¡idade do caboclo ... * * * Fosse como fosse - na guerra, como na guerra - os sediciosos tinham que demandar Fortaleza, para a vindicta, uns, para o saque e pilhagem, a maioria. Os ataques ao Crato e a Barbalha demonstram-no, claramente. Essas cidades nem síquer estavam na rota a ser trilhada: ficavam aquem' do Joaseiro . .Mas eram presas faceis e magníficas. O Crato tem silla sempre a capital economica do Cariry e o seu commercia, muito desenvolvido, mantinha armazens consideraveis (1). (1) « O commercio do Crato era, depois do de Fortaleza, o mais forte do Estado. A casa do Sr. Coronel José F. Alyes Teixeira, por exemplo, negociava com centenas ùe contos de réiil. Hl6 CAPITl~LO XII o ataque a essa cidade deu-se a 24 de janeiro de 1914, havendo da parte de sessenta praças de policia, ali estacionadas, e de um grupo de populares, a mais heroica resistencia. Depois de vinte horas de fogo, a cidade rendeu-se por faUa de munição. E o saque começou I Não contentavam em atacar, quebrar, depredar, carregar: incendiavam. Mesmo QS moveis se espatifavam, os utensilios domesticas eram inutilisados, numa furia canibalesca, indescriptivel! De tudo quanto pudessem encontrar nas residencias dos adversarios, só uma coisa escapava: eram as imagens de santos e os quadros de parede. Não Os jagunços não se limitaram ao roubo: destruiram os movcis que encontraram. O saque da casa commercial de Teixeira e a destruiçflO dos moyeis de sua residencia foram presenciados. af(irmaram-me, por seu parente e inimigo politico, Coronel Antonio Luiz Alves Pequeno. Além da casa Teixeira havia muitos outros depositas de mercaùorias. A praça do Crato abastecia-se no Recife. As transacções commerciaes em Fortaleza eram poucas. Os commerciantes mais importantes eram rabellistas; o saque devia ser de preferencia em suas casas. :Xão se avalia o que praticou a horda de vandalos, faminta por seus maos instinetos, sem freio ás Silas paixões, entrqgue ás suas loucuras, sem commando, em umacidade rica, porém abandonada. A depredação ioi completa. Saquearam os haveres ùaquella gente laboriosa o honesta e destruiram o que não podiam conduzir I Os comboios das mercadorias roubadas seguiam para o Joaseiro, quartel general do banditismo:>. RODOLPHOTHEOPHILO, pg. 90, ob. cil. A MARCHA SOBRE FORTALEZA 197 podendo distinguir ao certo, entre as gravuras de santos e as photographias, ajoelhavam-se tambem deante destas, e reza"am contrictos ... Os retratos grandes e as oleographias de santos eram enfeitados com flores e fitas. Nessa minucia, respeitada sempre, deixavam os fanaticos um traço expressivo da mentalidade que os dominava. O saque a Barbalha, dois dias d:~pois, foi completo tambem. A noticia das depredações do Crato, a população abandünou a cidade, em massa. Os bandidos entraram pelas ruas desertas, sob ü commando do cang~,ceiro Canuto Reis e iniciaram o arrombamento das casas, para o roubo consequente ... Quando o trabalho se iniciava, em meio de enthusiasmo diaholico, um unico homem, fraco e desarmado, se dirige áquella multidão aUucinada, e a affronta, impavido - era o vigario da localidade, que vinha rogar, por Deus, que não mubassem aquillo de que não necessitavam para a continuação da lucta .... Apesar da sanha de que se achavam possuídos, a attitude inesperada do h'lmilde sacerdote commovera á maioria. O saque foi suspenso. Mas suspenso apenas por algumas c;~rnCLO XII horas, para continuar (lepois sob as ordens directas ùo dr. Floro Bartholomeu ... (l). A noticia dessas pilhagens francas attrahia todos os salteadores dos sertões do Nordeste. Era natural. E assim engrossadas as fileiras, começou a horda sinistra a mover-se em dirccção a Fortaleza.. * '" * A estação era a mais propIcIa a uma expedição desse genero. Tinha. entrado o mez de fevereiro, e o tempo corría magnifico. Depois de chuvas copiosas, Ilas serras como nos sertões, nos valles como nos desertos das chapadas, toda a natureza resplandecia em festa. Não podemos aqui no sul, imaginar perfeitamente () que seja essa transmutação miraculosa da secea para o «inverno ». Depois de oito dias de chuva, já os galhos tristes e resequidos começam a enfeitar-se de folhinhas delicadas) tenras e seivosas, pequcninas e brilhantes, de um verde claro e diapbano, sobre que a vista passeia com deli(1) Id. ibd., pg. 93. A MARCHA SOBRE FORTALEZA 199 cia ... Enfarta:n-se depois todos os gommos de cada planta; entumeseem, rebrilham á luz, como si fossem arrebentar, e desatam emfim, em brotos viridentes, em ramos já enfeitados de botões minusculos, nas curvas gracis dos topes das arvores e dos braços amorosos das trepadeiras ... Dentro de pouco, é tudo verde; verde, no chão humido ainda, que se recobre de uma alfombra tenuissima, no seio das moitas buliçosas, na caatinga que dissimula os gravetos e espinhos, nos valles que explende:n em quadros fantasticos de vida, á luz maravilhosa de um sol quente e bom ... Apenas as folhas to.mam mais c.ôr,dando relevo a um tal scenario, desatam-se as flores, em catadupas, em chuva de pequeninas petalas, em cachos, em corymbos, em guirlandas ... O pau-branco se enfeita como uma noiva; os bamburraes apressam-se em mostrar os seus broches de ouro vivo, vi,rissimos como raios de sol; as trepadeiras anonymas se estrellam todas de ilorinhas meúd.as, simples e modestas, ao lado dos calices elegantemente desenhados das ipoméas selvagens e das campanulas melancolicas da gitirana vestida de um roxo suavissimo ... Canç,ados de aguardar a agua reconfortadora, ou previdentes no lançar as semen tes que os dey'em:per11 Lourenço Filho - .Toa.,eiro do Padre Cicero. 200 CAPITULO XII petuar, os vegetaes todos se apressam ern' florir para fructificar. Por isso ha em todo o sertão e em especial nas varzeas baixas e ás margens das Ggoas e açudes, um' forte olôr selvagem, que convida a respirar forte, numa voluptuosidade sadia de vida no\"a... Só nos taboleiros arenosos de certos pontos, a flóra não muda. O chique-chique, o m'andacarú c o cardeiro apenas se enfartam de agua, mas não differençam muito o aspecto rígido e imlffiutavel de cactaeeas ... '" '" '" Sobre .o sertão assim, ameno e doce ia despenhar-se a horda dos fanaticos, para talar, ferir e matar. O alimento era encontrado em: cada « ribeira». O gado farto e nedio, fornecia-lhes o :repasto por toda a parte. A ninguem se pedia ou se requisitava. Os novilhos e vitellas eram abatidos a tiros repetidos e certeiros. Sacrificava-se ás vezes, demais, em: pura perda, os animaes ao alcance, porque havia uma ebriedade nunca satisfeita, de destruir e fazer sangue ... De aventura em aventura, de depredação .A MARCHA SOBRE FORTALEZA 201 em depredação, os fanaticos chegaram ao fim da primeira quinzena de fevereiro a Iguatú, ponto terminal da estrada de ferro. Ahi tiveram de estacionar pOTa:gum tempo. E' que apezar de todos os embaraços creados pelo gov-erno da Republica á administração legal do Ceará (1), conseguira o governador Franco Rabello organizar uma nova expedição para offerecer combate aos amotinados. * * * Realmente, não fora muito difficil recompor o Batalhão, Militar, tão mal succedido das primeiras vezes, augmental-o no effectivo, renovar-lhe o armamento e revigorar-lhe a precaria disciplina. Faltava, comtudo, um chefe. Seria preciso um homem de acção, energico e decidido, que inspirasse confiança ao governo e aos seus sllbordinadofi, numa cabeça intelligente e af( 1) «Se a1gnmas armas e munições conseguia occultamente receber, era por para o Aracaty alé Fortaleza. Emquanto prohibia que o gO'Terno legal se defendesse, l'arahyba aberto ô't passagem de recursos diciosos». Irl. ¡bd., pg. 98. o governo do Ceará via Mm:soró e dahi o governo da União deixav,l o porto da bellicos para os se- 202 CAPITULO XII feita ás luctas daquella natureza, e um coração dispDsto tambem a todos os sacrificios. EncQntrou-o o Ceará, na figura varonil desse bravo José da Penha Alves de Souza, capitão do Exercito, e por esse tempo, deputado á Assembléa Legislativa do, Estado. Depois de algumas providencias preliminares, o Capitão Penha encaminhou-se, com sua gente, para obstar a passagem dos sediciosos. Abriu trincheiras junto á estação de Miguel Calman, e ahi esperou o ataque, que não poderia tardar. De facto, a 22 de fevereiro, a. primeira columna de fanaticos choca-se de encontro ás suas posições. Os assaltantes, embora em elevado numero, foram rechassados com vantagem. Era domingo de carnaval, e as noticias transmittidas para Fortaleza alegraram o povo, que movimentou as ruas e praças, dando largas ao seu natural enthusiasmo ... Confiava-se no animo novo das tropas, ao com'mando agora de um officiaI experimentado, e na impressão que a resistencia devia causar aos homens do Padre Cicero. O enthusiasmû devia durar, porem, o curto espaço de algumas horas. Na manhã do dia seguinte, recebia .o governo, assignado pelos officiaes immediatos, A MARCHA SOBRE FORTALEZA 203 o seguinte laconioo despacho: « Hoje pela manhã foi encontrado o cadaver José da Penha. Forças legaes continuam' a occupar posições ». * '" * E a marcha sobre Fortaleza não pôde mais ser detida ... Aquella morte, até hoje não perfeit.amente explicada, animara os fanaticos, que viam em todas as coincidencias felizes da lucta, a força prodigiosa do « Padrinho », guardado entre trincheiras, lá no seu antro longinquo ... Quixeramobim, Quixadá, Baturité, Redempção - soffreram a seguir a depredação e o saque. Tinham agora os sediciosos -os trens da Baturité á sua disposição, e lhes seria facil, caso fosse necessario, accumular ás portas de Fortaleza alguns milhares de homens para o tri pudio final. Por onde passavam, nem' mais se respeitava agora o signal da « bandeira encarnada », que o povo afflicto, pendurava ás p-ortas das casas de residencia, para evitar {I ataque ... Alguns crimes da longa serie commettida, vêm descriptos, com grande vigor e coragem, 204 CAPITULO XII no livro de Rodolpho Theophil0 que temos Lmeudadamente citado. Não é preciso escolher. Abramos uma pagina aa acaso: « José de Barba chegou a Quixadá em trem da Baturité, com o seu bando. Sinistras e grotescas eram as figuras dos bandidos. «Na maioria eram mais antipathicas, mais repcllentes, mais sujas do que as recem-photographadas em Maranguape. Vestidos de mil maneiras, com chapeus de couro enfeitados de laços encarnados, uma medalha do Padre Cicero ao peito, ou no chapéo, armados de rifles e de compridos punhaes, invadiram a cidade que estava deserta de seus mais abastados moradores, mas com as casas enfeitadas de bandeiras vermelhas. Os poucos homens que ficaram' para os receber e com elles se banquetear, dispensaram-lhes carinhos e attençõcs, indicando as casas dos adversarios politicos a saquear. « A onda de malvados espalhou-se pela cidade e começou a pilhagem. As casas dos rabellistas eram arrombadas e saqueadas; furtavam o que podiam conduzir e destruiami o que não podiam levar. Assim aconteceu a todas, especialmente á do Sf. Costa Lima, que além de rabellista era intendente mÜnicipal. Este cavalheiro pagou mais caro. De- A MARCHA SOBRE FORTALEZA 205 pois de saqueada a sua casa cOnIDlercial, foram' á sua residencia e quebrararn' todos os moveis, inclusive o piano, que foi destruido a machado! ... » :\< '" * Aos ultimas dias de fevereiro, os sediciosos ameaçavam: Fortaleza. Tendo estabelecido o seu quartel-general em Maranguape apoderaram-se preliminarmente das villas de Soure e Mecejana, fechando assim as com'municações da Capital com o interior do Estado. 'Nada valeram os instantes pedidos do governo, das ,assoÓações de classe, das familias c cavalheiros de maioT representação, dirigidos ao governo federal, e ao Inspector Militar da região, presente, em FortaJeza, com' mil e quinhentas praças do exercito, ás suas ordens, e dois navios de guerra surtos no porto ... O que syndicato politico, que havia empolgado os destinos da Republiea, exigia era a renuneia do governador, que tivera o topete de contrapôr-se a Pinheiro Machado. Por isso, nada poderia fazer a União, que ° 206 CAPITULO XII não fosse para esmagar Franco Rahello (1). Foi assim' decretado o estado de sitio, para todo o Ceará, a 4 de março. E a 14 do mesmo mez, eram publicadas as instrucções para a intervenção federal,que se confiara ao então Cel. Fernando Setembrino de Carvalho, hoje general e Ministro da Guerra. Esse notavel documento vaü publicado, em nota, no fim d.o volume. A chronica dos dias sombrios porque o Ceará passou, por essa occasião, ja está magistralmente feita. Resta-nos apenas, demonstrar agora como realmente o movimento fora artificialmente insufflado com fim politico, e que a horda de fanaticos, ameaçando sempre a Capital, não obedecia sinão ao Padre Cicero Romão Baptista. Para isso, bastar-nos-á transcrever os seguintes telegram'mas trocados entre o Padre do Joaseiro e o Interventor Federal: (2) (1) Em nota, no fim do volume transcre\-emos alguns documenlos officiaes, sem commentarios, a proposito da conducta do governo federal. (2) « O Cel. Selembrino estava convencido de que os j3{lunços não eram politicos, nem belligeranles, nem revolucionarios, eram simplesmente bandidos. Ha\-ia. cessado o movimento revolucionaria, estavamos em estado de sitio e no emtanto nas cerr-anias da cidade continuavam elles em armas a roubar!» Id. ibd., 168. A MARCHA SOBRE FORTALEZA 207 « Joaseir.o, 16 de março de 191,1. ExIno. Sr. Cel. Setcmbrino de Carvalho. Congratu1ações com V. Excia. governo Marechal Hermes, patriotas pela libertação do Cea.rá e pelo restabelecimento da ordem constitucional do Estado. Sinto profundamente no momento actual não poder attender o pedido de V. Exc. de chegar a Fortaleza, pois motivos de ordem superior assim me obrigam, mas desde que o motiv.o principal seja tratar retirada nossas forças dahi, serão retiradas immediatamente se V. Exc. assim achar conveniente. Assim: pois, peç.o a fineza de dizer-me qu.ando quer que as faça vültar para eu ordenar neste sentido. Se, porém, além deste motivo, V. Exc. precisar de minha presença, eu n~i.opodendo ir, .o nosso amigo Dr. Floro p.or mim irá entender-se com V. Exc. e .o que elle assentar será o mesmo como se commigo fosse. Queira acceitar minhas felicitações de amigo e admirador de V. Exc. Cordeaes saudações. Padre Ciccro Romão Baptista.» «Exmo. Padre Cicero Romão Ba,ptista, Joaseiro - Urgente. Muito agradeço as congratulações que enviou ao patriotico governo federal representado na minha pesso.a e tambem me congratulo com V. Ex.c., um dos 208 CAPITULO XII maiores obreiros da restauração da ordem no Ceará. Urge a retirada e desarmamento de tropas de Joaseiro, sendo de absoluta necessidade ° concurso de V. Exc. para esse desideratum. Uma vez que o governo federal chamou a si a tarefa da pacificação deste Estado, não se torna mais necessario o concurso de tropas irregulares que devem ser desarmadas e dispersas, recolhendo-se todos a seus lares. Conto com o alto prestigio de V. Exc. para levar ao cabo essa obra sem grandes difficuldades e por isso espero as urgentes e necessarias providencias de V. Exc. nesse sentido, que auxiharei facilitando o transporte pela Estrada de Ferro, pois qualquer demora nesse mistér poderá trazer grandes di£ficuldades á acção do governofederal a pacificação do Ceará.» Estes documentos falam por mente ... SI, para dolorosa- CAPITULO XIII A SEDIÇÃO - CONSEQUENCIAS Duas palavras sobre os partidos politicos do Ceará - Em que se resume o prestigio do Patriarcha do Joaseiro: volos legitimos 011 rifles em mãos adextradas? -- As dolorosas consequencias sociacs da se:lição Os seus terriveis effcitos economico'3 e de perturbação administrativa « Lampeão», expoente da situação actual do Joa'leiro. XIII As sociedades possuem os criminosos que merecem. O meio social é o caldo de cultura da criminalidade; o microbio é o delinquente, elemento que não lem importancia sinão quando enconlra o ambienle favoravel á slla cultura. - (LACASSAGNE). No arrolar os factos do movimento sedicioso, abrolhado do Joaseiro, tivemos sempre o maior cuidado no evitar interpretações favoraveis a quaesquer das facções em que se dividiam, na época, os politicos do Ceará, e que ainda hoje os extremam, em campos oppostos. E' possivel que uma e outra tenham tido grandes e insanaveis culpas, no caso. E não o julgamos com preconcebida severidade, para armar effeito. E' que os chamados « partidos)}, desse Estado, como de outros, não o são de facto. Méro agrupamento de cabos eleitoraes, mais ou menos prestigiosos no sertão, ou de validos CAPITU La XIII junto ás situações do Estado ou da Republica, não os anima um programma, uma só idéa de renovação social, ou de melhoria politica. Ludam ambas, eternamente, pelo «pennacho», e quando de posse delle, contentam-se em partilhar com os amigos as vantagens que as posições officiaes possam offerecer-Ihes. E isso é tanto mais J.ament.avel, quando numa e noutra facção, ha elementos de incontestavel valor, pela intelligencia, pelo desejo de fazer prosperar ao Ceará, pela honradez tradicional. No caso da sedição, foi o chamado «Partido Marreta» quem se aproveitou da situação, quem insufflou o movimento, quem ajustou o golpe final, a que não era extranho, como vimos, o syndicato politico de Pinheiro Machado. Si acaso) porém, esse partido estivesse de cima, seria o outro que havia de aproveitar-se da agitação dos fanaticos, numa direcção equivalente, talvez. Não tenhamos iIlusões neste part.icular ... A maneira pela qual se tem conduzido- ambos os grupos, demonstra-o de sobejo. Ambos têm cortejado, mais ou menos abertamente, as graças do temivel Patriarcha do Joaseiro. Ambos se têm submettido a clle, incondicionalmente. Ambos o tem reconhecido, como soberano ab- A SEDlÇÃO - CONSEQUENCIAS 213 soluto de uma vasta região do Estado, talvez a mais rica de todo o Nordeste; ambos o têm sagrado como chefe de um « collegia eleitol'al», enorme, que é a mais affrontosa burla do systema eleitoral dos nossos tempos ... (1). ** :!: A mais evidente consequencia da sedição ahi está, clarissima. Erigiu-se no Padre Cicero, directamente, ou no grupo de seus apaniguados, a maior força eleitoral do Estado, á revelia do qual nada se poderá fazer, decidir ou construir, na politica interna do Estado. Della é principal responsavel, porém, o governo da União ( 1) « Que é o Joa.~eiro como governo? Um peq11eno imperiu absoluto dentro de uma das unidades da Federação Brasileira. É um territorio pequenino, que medirá quinze kilometros na sua maior dimen5ã.o, com uma população que Ill:rapassa as fronteiras e vive profusamente disseminada por meia duzia de Estados norùestinos. Observa-sc claramente csta geofraphia politiea sui generis nas eleições como nas romarias. Antes das eleições, corre a noticia pelo telegrapho sem fio do sertão e o dia dos votos no .loaseiro é como a paschoa dos el'èitores vindos desde os extremos de Piauhy com Maranh<1o até os confins ùe .\lagoas com Sergipe. É a população do Joaseiro que não cabe no territorio, ou, como me disse um dos prophetas dos de por aqui, « é o Joaseiro que já abrange tudo isso!» Esle organiflmo já é phenomena!>,. P. MANO EL DE MACEDO, ob. ciL pg. 22. 214 CAPITULO XIII que lhe tem emprestado força, contra tudo e contra todos ... Sendo esse o mais evidente effeito, não foi o peor, no emtanto. O peior, e já o assignalamos, rapidamente, num dos capitulas anteriores, foi a depressão moral que o facto devia levar a todos os cearenses de boa vontade, empenhados na melhoria da administração de sua terra, suas ga.rantias politicas e sociaes. Tendo-se banido do Estado uma oligarchia, ahi installada, havia vinte annas, era natural que os novos elementos chamados á direcção das coisas publicas se esforçassem por corresponder á confiança do povo; era natural tambem que o sentimento civico se fortalecesse, que as novas doutrinas avançassem, que os habitas politicos Tnelhorassem. O contragolpe da sedição, desferido com tamanha. brutalidade, deveria desanimar, sem remedio, aos mais bem intencionados, ás mais desinteressadas energias, aO;3 mais puros caracteres ... Desanimal-os, ou contaminaI-os á força, do mal que se pretendeu. corrigir um dia, ali mesmo, embora ao peso de violencias inauditas ... Num ambiente preparado a todas as rebeldias, onde apenas se ensaiava, com indecisões ainda, um regimen da liberdade coexis- ":111 :--11:1 l'c1i(:;Îo :Illtnl.!raldll) tif' Ill- :n ell' Illrtrl.'O 1.;llllIH';-lll. 11111':("1I1l11l1P/li:trÎo ,']11 tnrlll ..;j¡ni],'·' tI:l l'aria qlll' IIllitllll, IJ rOr¡-.';/j a(',)rnpallh~llldC)·(} el;) •• b."; LIIl!Jll';'IO i]Ufllllllid:td(, di['i~ilt . .: dl' dfl qllC' :\11 ...:;lrj.!.'1l1" do ('.-'11'/(, .;;¡, llf'lJl .in!!l:l ,Ill";," di"..;/) j,'ito k~(']llla: .":P!!l1¡llt~ '.\ ill\'l'-:I¡(lo .\III11tlio ,J(I;I~f·i:·I·I. L('ialll do qUf' .<';'1' ¡'!lhlie;) llllhlic;II,\-tCl do o :l1l1];¡Z (> 1'1lI prC'.":Plltl' fami!.!ï'r:lllo FOl't.11e7.."l, :lllt.ng-r:lpllO b:llldido, \':I.'Witrll'1I1o, ('1I1H11l;llld:¡llt.~ (' IJ:l-'IJICIfI ~ do t>SI;lllll'011 11¡:,,:pPIl~a Trata~s(' d(,~t;tl'amel1tn ('::;(l' (pl:11- du "(:1('polidal A SEDIÇÃO - CO~SEQUENCIA 21;) tindo com o da ordem legal, - a União abate de vez o «poder moral da idéa de Estado». Num meio, onde a justiça só muito lentamente V(l,e cvolven(10, dos instinctos cgoisticos it, comprehensão dos limites de acção da vida em com'munidaê.e, a União sagra os que perturbam essa marcha e põem-nos, extranhamente, á frente dos destinos do Estado ... Num ambiente em que a superstição e o ::lOmadismo de grande parte da população são males sociaes gravissimos, a Republica legitíma o Thaumaturgo, apoiando a manutenç¿io indesejavel de un: centro de romarias fanaticas ... Num meio, emfim, em que até certas oondições biologicas levam ao banditism'o, os mais altos magistrados da Nação apoiam e premeiam o regimen hediondo do bacamarte ... Outros effeitos tristissimos teve a sedição do Joaseiro. Da perturbação geral da vida economica do Estado, e dos particulares, ainda hoje se ouvem écos, profundamente justificados (1). ( 1) Alem do celebre projecto de lei e¡;ladoal mandando distribuir quatrocentos contos de réis aos fornecedores de dimen1~ LOllTPnço Filho· - Joost':ro do PodI'o Cicel'o. 216 CAPITULO XHI Da desorganisação administrativa, basta citar a perda de archivos e documentos, alguns de valor bistorico notavel, e a erecção do Joaseiro como Estado dentro do Estado. Do desequilibrio moral, a perpetuação da sua questão religiosa. Das perturbações jurídicas, sobre as consequencias incalculaveis da apologia do crime, o facto da Méca do Cariry tornar-se a um tempo o quartel-mestre dos cangaceiros de todos os sertões do Nordeste ... A este proposito, foram perfeitamente expressivas as declarações de seu chefe, quando, affrontando o proprio Batalhão Patriotico de Floro Bartholomeu, entrou no Joaseiro ostensivamente com toda sua gente, o temível bandoleiro Virgo lino f!'erreira da Silva, o celeberrimo «Lampeão» (1), o estripador de criantos aos fanaticos do Padre Cicero durante a rebeJlião, varias acções foram tentadas contra o Estado, pelos prejuizos deHa decorrentes. uma dessas acções, proposta por Antonio Ferreira Figueiredo, acha-se no Supremo Tribunal Federal, á espera de solução. O exercicio de 1!>12, hal"Ía deixado um saldo orçamentario de 1.211 :578S816. Em 1914, a receita <..rrecadada pelo Estado foi apenas de quatro quintos da recdla or,;ada, tendo siùo absorvido todo o salùo c havendo um deficit de 704 :732$468. (AnIluario Estalistko do Ceará, 1922). (1) « Os bandoleiros chegaram via Barbalha, acoitando-se nas irnmediaçães da fazenda do deputado Floro Bartholomeu, até :i.s dez horas da noite, quando se transportaram ao centro da <:idade, hospcdanllo-se em casa de um dos typos « sui generis» A SEDIÇÃO - COKSEQUENCIAS 217 ças e incendiario « rei do sertão», que ainda ha pouco « declarou guerra: offie ialmente » aos governos da Parahyba e Pernambuco. « Lampeão» é um expoente, aj3enaS, da ùo Joaseiro, o poela popular João !\fendes de Oliveira, que se intitula jocosamente « Historiador brasileiro e negociante». Ahi fomos encontrar o bando sinistro que se cOl:1põe de quarc.nta e nove homen,s e o {amoso facinora, perfazendo um total de cincoenta homens. Estão muito bem armados e municiados; vestcm na maioria, br:m kaki; trazem chapéos de Couro quebrado na testa e lenyos de lliversas cores, predominando o verde e o encarnado, amarrados ao pescoço. O armamento de cada um é rifle ou fuzil Mauser revolver c punhal; á cintura trazem tres ou quatro cartucheiras, acondicionando nellas, cada homem, um total dc quatrocentas lJalas! « As autoridade3 policiaes do Joaseiro quizeram agir á altura das circumstancias. Tiveram porém de recuar dos seus intentos cedendo fi. pressão dos « segredos da natura ... » « Não ha no vernaculo um adjectivo bastante forte que caustique a abjecção desse facto. A realidade é que lampeão, homem lora da lei, perseguido pelas policias dos Estados do Nordeste, em nome da honra, da familia e do socego puUico, da propriedade privada e do direito de vida, emlim dcs principias mais rudimentares t'a moral collectiva, estava no JOE-seiro com a conliam:.a de um cidadão que nada deve á justiça Il quasi com honra..<;de triumphallor.» O mesmo jornal mandou perguntar ao Padre Cicero Romão Baptista porque não mandava repellir ou prender « Lampeão» pois que tinha a seu dispor oitocentos homens, armados e municiado.s, do hatalhão patriotico. E elle respondeu textualmente: « Não meu amiguinho 1 Lampeão procurou o Joaseiro com intuitos patrioticos (sic I ); elle pretende se alislar nas forças legacs para dar combate aos revoltosos. Urna vez victorioso. espera que o governo lhe perdoe os crimes. Este :tlOmem que veio ao Joasciro, confiar em minha protecção, prcten:le se re!(cnerar. Se nã.o lor possivel alistal-o nas forças legacs, eu o cnca- 218 OAPITULO XIII malta de scelerados que tem feito do Joaseiro o seu quartel-general, como ha sido abundantemente provado. minha.rei para Goyaz, onùe levará vida honesta, como já fil CUIU Sinhô Pereira (J Luiz Padre. Está mais ou menos demcmstrado que os governos ùe Pernambuco c Parahyba não conseguirão prender Lampeão, entregando seu bando á. justiça. O povo é sempre prejudicado nestas coisas: é victima de Lampeão e muitas vezes da politica tambem ... Esse estado de coisas pode ser modi¡¡catlo facilmente; eu consigo que Lampeão se vá embora para muito longe, e, assim, ficaremos livres delles. (t Porém, mandar prendel-o aqui em Joaseiro, lIestas circumstancias? I era um acta de rcyoltante trail¡ão, indigno, de qualquer homem quanto mais de um sacerdote catholico. Eu prevejo que muita gente agora e prinei palmente meus desafectos, vão dizer que eu estou mancommunado com Lal11peão; mas, não é tal. Aqui 110 Joaseiro, (lU recebo todas as pessoas que me procuram e fico satisfeito em pre~.tar assistoncia a um transviado da sociedade procurando guial-o no bom caminho. - Mas Padre Cicero, o governo pode amnistiar ou perdoar criminosos communs? - l'ode, meu amiguinho, pode ... » (Do «O CEARÁ», diario de Fortaleza. dirigido pelo festejado jornalista dr. Julio Ibiapina). CAPITULO Xl V O JOASEIRO NO FOLK-LORE A grande alma do povo, agiuLda e confusa -- Um novo cyclo a detern:inar-se no folk-lore do Nordeste -- Lendas, canções e p:eces do Joaseiro -- Praticas dos « penitentes» e « beatos» - « ]lIeu Padim Cirço é o rei do mundo inteiro! ... » Sa.t:rras s()b a forma <le oração - Um « credo» origina.lis·simo. XIV Todo o folk-lore sertanejo mo~tra a formação perfeita das almas que haLitam aquelles paizes de sol ardente. (GuSTAVO BARROSO) « Ao som da viola»). Heflexo do pensar e sentimento collcctivos, á poesia popular não poderiam escapar os themas ou ideaes de religiosidade, tão arraigados na alma da gente. (LEONARDO MOTTA, « Violeiros do Nortc»). A grande alma do povo, agitada e confusa, nos é revelada pelo conjuncto das expressões da literatura oral, a que se dá o nome, hoje universal, de folk-lore. Por elle, vemos como surgem, crescem e se desenvolvem as lendas; como a cantiga popular reflecte, em epopéas ingenuas, mas muitas vezes de uma eloquencia admiravel, os episodios mais salientes dos casos extraordinarios, que deram origem aos mythos e crendices; sentimos como a propria intelligencia média da raça interpreta os factos histori- 222 CAPITULO XIV cos, critica-os, exalta-os ou os deprime, scgun-lo a orientação dominante dos sentimentos de uma dada época; como, emfim, no encyc1opedismo ingenito de todos os povos, corrleçarn a tomar corpo elementares doutrinas de um direito, de uma sciencia, de uma religião ... O folk-lore é, assim, a um tempo, a alma collectiva, o seu proprio clima e historja. Entre os povos illetrados, em que a literatura escripta, os livros e os jornaes não perturbam a crystalisação das lendas, e não coc.rdenam sentimentos e idéas communs, ha de ser sempre por elle que havemos de auscultar o extranho rythmo da vida da raça. Porque as verdadeiras manifestações do folklore são lavares repassados ao clarão de innumeras intelligencias, ou obscurecidas ao contacto de uma multidão de rudes mentalidades, como de outra parte tocados do carinho ou da revolta de infinitos corações ... Um capitulo, sobre o Joaseiro no folklore (1), impunha-se aqui, portanto. (1) Mais de setenta annos ha que appareceu pela primei fa Ve2 a palavra folk-lore, em um artigo do « Athenaeum» de Londns. l'ropunha-o W. Thoms, corno expressão technica apropriada ao estudo das lenùas, tradições c da literatura popular. A palavrh teve a fortt:na de se diífundir igualmente pelos povos latinos cU,:as línguas não possuem a faculdade plastica de <:rear neologimlOs senão em condições raras. Em geral, recorremos ao grego O JOASEIRO NO FOLK-LOBE 223 Sem que nos seja p06sivel uma abundante documentaç~ão, poderemos fornecer, no entanto, {)sufficiente para comprovaç.ão de muitas affirmativas, esparsas em: capitulos anteriores, sobre a primitiva psychologia do sertanejo. Ao mesmo tempo, lembraremos aos especialistas a necessidade da colheita e classificaç,ão de material para determinação de urn novo cyelo do folk-lore no Nordeste. Gustavo Barroso, no seu interessante livro « Ao som da viola» (1) diz que parece haver no sertão, bem determinados, seis cyclns de lendas e tradições: « o cyclo dos Bandeirantes, reunindo as lendas da penetração; o do Natal, agrupan20 todas as commemorações dessa data religiosa e já tradicional antes de ser religiosa; {)dos Vaqueiros, guardando os poemas derivados da vida pastoril, como as vaquejadas, a luta contra .o gado « amontado » ou contra as féras que devoram as rezes; () dos Cangaceiros, cyclo heroico, feixe de todas as admiraveis canções de « gesta », em nada inferiores ás « gestas» medievaes da em taes casos e o termo demologia seria o correspondente literal de folk-Iorc. JOÃO RIBEIRO, « O folk-lore», Rio, 1919, pg. 5. (1) GUSTAVO lJAnnoso, « Ao som da violu», Rio, 1921, pg. 19. 224 CAPITULO XIV Europa; o dos caboclos, resumindo as opiniões a respeito dos descendentes do indio fugido e incapaz de ser e3cravisado; emfim, urn Romance da Raposa, quasi tão vasto como o europeu, tendo identico fundo satyrico e referindo-se aos animaes do meio, como o outro; nelle personificando typos moraes da humanidade.» O cyclo do Messias, em que se juntassem as lendas, canções e prophecias do sertanejo, parece ir-se constituindo, tambem, ao Jada dos outros citados. Deram-lhe as raizes as lendas dos Jesuitas, que ahi peregrinaram em catechese; alimentamno, ainda hoje, as reminiscencias do caso de Canudos, a que os episodios da historia do Joaseiro se vão juntar, numa ordem sempre coherente com o pensamento central do mesSlanlsmo. Simples suggestão, porém, de quem, embora, acompanhando com grande amor os estudos do folk-lore do Nordeste, não é neIles especialista nem mesmo amador autorisada. :I< •• :!: As lendas sobre o Joaseiro são muitas. Algumas, ainda em estado bruto, vão se n- O JOASEIRO NO FOLK-LOIŒ 225 do transmittidas com: a sua grosseira fórma primitiva; outras, mais raras, já se enfeitam de ornatos poeticos, demonstrando a riqueza de imaginação do caboclo, ou a collaboraçãoevidente de espiritos mais cultivados. Aliás, os especialistas accordam em que as lendas recebem sempre essa collaboração necessaria. Não seria mesmo possivel explicar muitas dessas creações, no estado em que hoje se apresentam, sem fazer intervir um escól social: sacerdotes, poetas, sabios, philosophos quc por simples inclinação do espirito, ou pela natureza de suas occupações, sublimam G.S crenças populares, erige m a superstição em idéa metaphysica, dão mais eoherencia á narração e sabem revestil-a de fórma aprimorada (1). A lenda do Joaseiro que já soffreu essa transformação é a da vida de Maria de Araujo, que tem como episodio maximo os milagres de 1890. Facilitam-lhe os accrescimos poeticos os annos já volvidos sobre taes acontecimentos, a morte da heroina e a propria naturcza do milagre (2). (1) (2) Van Gennep, « Origine et formation V. Capitulo VI, « Os milagres)). de~ légendes}>. ~26 CAPITULO * '" Xl V * Todo romeiro acredita piamente nas communicações directas do Padre Cicero Romão wm N. S. das Dores, a padroeira do lugar. Essa lenda, que teve inicio no facto dos milagres de 1890, reaffirmou-se por occasião do inicio da construcção da igreja do Harto, fixando-se definitivamente durante a sedição de 1913. O caso da construcção da igreja do Horta .prende-se á prophecia de um diluvio, promettido pelo Padre, como se "ê df~ste trecho de sermão: « E' preciso continuannos com os trabalhos da igreja do 11orto. N ossa Mãe MS Dores assim o quer, e assim, por mais de 1tma 1)eZ, m'o tem revelado. A' obra, pois, á obra de Deus, meus amiguinhos! Quem sabe si não haremos de nos escapar ali de um enOrme aguaceiro semelhante ao d'iluvio?! Ah! quem sabe?!» (1:,. A crença de que o Padre recebe revelações de N. S. das Dores é arraigada. E' muito (1) p, Alencar Peixoto, ob, cito ¡-. I I I I I E;-;lil((l;l do Padl',' ('i{'cru. ~'IJI bI'OIlZ{'l t'ri~id;¡ lItlllliJ Jlr;¡~'; IJublir',1 Jo .Jo:1f:eil'o, l' IplC t', traln,d}¡o do (>:-'(,l1lptol' ('arioca I.aurllldo HatH(l~. qlll' :-;4' :Jl'lJa tiO l.lllo. E.,,!a phllltt¡lraldlia [ni IJbticln Ho ;11,.1[1'1' ell':'-:"{' ;1 1'1 i,..•1; l. 11r l~i r I l. o JOMŒIIW NO FOLK-LORE 227 oommum' ouvir-se ao caboclo: « Este « inverno» vae ser grande: Nossa Mãe das Dores disse ao meu Padim Cirço ... ». Ella encüntra ainda elementos para subsistir, nas medalhas e benfinhos, que representam de um lado a effigie da Santa e de outro, o Patriarcha do Joaseiro. Igualmente, nas orações e bemdictos, em que os dois nomes apparecem sempre juntos: Pad1'e N 0880 pequenim, lUe guiae no bom camim, Páde Cirço é meu padrim Mãe das Dores é méa madrim". - « Ao tempo da sedição contra o governo Franco Habello, muitas vezes Nos~;a Senhora deu ordens e conselhos ao Padre Cicero, permittindo que os seus homens viessem resuscitar na igreja do Horto, tres dias depois de mortos ... As lendas dos pequenos milagres, dos santos que mudam de lugar, das apparições do Anjo Gabriel c outras são numerosas. Falta-nos apenas uma catalogação paciente. 228 CAPITULO XIV Ninguem melhor do que Leonardo Motta, esse encantador espirito que já nos forneceu dois livros admiraveis sobre o folk-lore do Nordeste (1), poderá levar a cabo tal tarefa. Foi elle mesmo o primeiro que ousou publicar poesias e narrações dos sertanejos, colhidas in-loco, sobre a sedição de 1913 e os milagres do- Padre Cicero. Em suas ricas colleções, vamos colher, por exemplo, o naturalissimo depoimento de um fanatica sedicioso : « - Lembra-se como e porque começou a guerra? não começou isturdÙJ,? cumo é que eu não é de me alembrá? Vamincê não sabe que o Rebello inticava com meu Padrim Pade Cisso e só vivia de puxá arenga com nós no Juazeiro, querendo prendê, fazê e acontecê? Nós é que fumo aggredido no princípo. Isso dagora é carrêra que elles tão oondo. Apanháro no Crato, na Mutuca, no S. Bento (Miguel Calman) e tem que apanhá 1/0 Ceará. TÁ, sim, que o siÛseiro - !If eu, Deu,s! Isto (1) «Cantaùores», Paulo, 1925. Rio, HJ21, e «Violeiros do Norte», S. O JOASEIRO NO FOLK-LORE 229 uai sê grosso. Mas et£ só ton é ir/da, havé nesta íJl"'uvinça quem inóre que o Rebello é que é o causo de quanta desgraça hai no mtmdo, de tudo que é descontramantelo. - O Sr. é mesmo de Joaseiro? -- 8()U e não sou, sendo ... 3101'0 lá, há mtmtos anno. Natural eu sou doutro logá, mas percurei a potrecção de meu Padrim mode uma « vadiação» que eu fiz ... - Quantos homens estão em armas? - E eu sei?! E' gente cuma (f/Ûzéf Ninguem conta não. Anda tudo de magote ... Já vi dizê que mais Se1~ Curunéo e seu Doutô (Pedro Silvino e losé de Barba) tamos aqui mais de dois mil. Mas bastava a metade. Munta gente tá aqui só pm 1J'iade robações. Aqui hai « romeiro l' e hai « rombeiro ». Por certa gente eu não metto a mão no jogo ... Et/" quando me alembro do que meu Padrim recommeadou e vejo certos desprepóslo, só me reina na natureza é me largá p'r'o Juazeíro. - Então o Padre Cicero lhes deu conselhos e pediu que não saqueassem? -. E antão? f Deu, nM sim. Boni-t-o-tó macacheira mocoló! Cancei de vê elle dizê que quem bebe cachaça é raposa dôida, que se respeitasse lamía e não .'le bulisse no aléio. Mas aqni tem gente que só qué desgraçá os pisst£ido dos rabel· C.\PITULO XIV lista. Tou, amarello de vê se dizê: «Rabellista resistiu, matou! esmoreceu, perdoou 11l.aS estragou!» Tem delles que diz que no Ceará é que é! Não vê que lá tem um tal de Frota Gentil que é rabellisla e tem gazimira pra 7nand<Í p'r'o diabo? ! - Mas o Dr. Borba e o Cel. Silvino não podem conter esses que assim procedem, desattcndendo ás recommendaçães do Padre Cif~ero ? - Lá o que! Pra essa gente só mérmo sel~ Dr. Fulóro que é home de pouco conséio. Cabra p'r'o lado delle ou procede ou leva o (liaba. Pra suf)i:gá um, pra pegá ~tm pela amarra do chocáio, foi quem Deus deixou! Aquillo, sim, é que é sê home resolvido! - O Sr. luctou em Miguel Calmon? - Adonde? No São Bento? loitei, lIhô sim. O negóço úí foi brabo. Fo'i ttm istn~pisso. Os (;(1bra da, trinchéra de 8eu Zequinha Contenda, do Maitá, nos baixáro a ripa debaixo duns 1)é de jurema e tanta baZa nos jo.r¡áro que parecia que tavam sessando bagaço de fóia em riba da gente ... - Os srs. são todos do Cariry? -- Nhôr não. Aqui tem gente de toda parage. Da Parahyba tem, da pruvinça de Alagôa e tem O JOASEIRO !\O FOLK-LORE 231 o cab¡-uo,l do Riacho do Navio, de Pernambuco. que é damnÏl,co. Gente que só usa tomá trinchêra a punhau, gente iSp'romentada ... -E como foi que o Padre tou tanta gente? Cicero Jun- -- E toi lá elle que ajuntou o que! Tudo isso loi se o//rect, dizendo que queria dá c' () Rebello dentro d'agua do má ... ~h, seu moço, meu Padrim, pra defendê elle, tem gente que ~'ó pomba de bando! Elle disse que quando nós acabasse de impô o Rebello, quando nós acabassl~ de quebrá a castanha do bicho, nós só tinha seis mez de descanço. Adispois, eu acho que seu Pinheiro Machado qué que nós vá fazê um serviço c' o Danta Barrel:o no Pernambuco e eu acho que ahi nós grita a Monarchia! Vamincê nunca viu falá nas prophecia do Frei Vidal? ApoÙ~ 08 véio daquelle tempo diz que elle dizia que nestas éra dagora havéra de havê uma pendença, que prinspiava nO sertão e ia acabá na pancada do má. - Quaes são os mais valentes, entre os srs. ? Não ha alguns mais valentes do que os outros? - Seu moço, isso de disposição pra, brigá a occasião é quem dá. Não hai home mais home do que outro, não! ... Mas aqui tem munto cabra ditriminado: tem o Zé Terto, o Tempestade, o Balisa, o Mané Domingo, o Zé Pinheiro, o Bocca 232 de Sangue, o Jloita Braba, o C(Ûixto, tem uma '[l'ução delle.'!. -- E as tropas do Cel. Franco Rabcllo mostraram bravura? - - Qual! foi coisa que ('U nunca vi nelles foi vantage. Nós vimo vê home no S. Bento ... No Juazeiro nill.rJuem 1¡odia nem atirá nelles: chegávo, da.vo 'um tiro na gente e corria tudo pra traz. Parecia brincadêra de menino. Fo:¡mode isso que nós appellidemo elles de macaco, porque só faziam corré. Ninguem podia nem botá um cercalorenço nelles. Agora, a gente d(~ seu Zequinha Contenda e de seu Joco. da Penha, não! No 8. Bento, sim, nós topemo serviço ... -- E o canhão do Cel. Emilio Sá? -- Ah! bom, basta! Aquillo não valia um ,qirmum cheio d'a,qua. Tão bom era que elles interráro. E pra que era que nós havéra de querê aquella disgraça! 8ó si fosse pra vadiá de joãogalamarte em ribo. do cano. Aquillo lá era terem! Eu, queria munto mais ante uma lazarina, dessas de se passarinhá ... »(l) A sedição dos fanaticos é commentada com graça, ás vezes com ironias tremendas, por (1) Leonardo Motta, "Cantadores», pg, ,:37 e sego c JOASEIRO NO FOLK-LORE 233 cantadores do sertão. E' do cantldor cégo Aderaldo Ferreira de Araujo(l) a descripção mais completa na poesia popular, que conhecemos dessa lucta: « Deportou-se o Accioly Alas ninguem foi mais feliz! « Benito, bóbos, bem feito! (Assim todo mundo diz) Quando a gente tóra um pat~, Rejeta logo a raiz» ... Deixá1'o o velho Accioly Rico com muito dinhêro, Com pouco elle entrou, de novo, Que nem fogo no balsêro, E ainda mais um Doutó Floro, Esse lá no Juazêro. Esse Floro bahiano Com o Padre se alliou E um sinhô Pedro Sih-ino, Home muito brigadô, Silvino, José de Borba E um tal de Doutô Lavó, (1) O Cantador Aderaldo, di", Leonardo Motta, nos « Cantadores», contava em 1921, trinta e nove annos de idade. Por essa epoca «tinha. i.:lteirados quatro lustros de exercício na profissão d~ cantador, pois havendo cegado aos desoito annas, desde então se dedicou á vida de menestrel, atravez de todo o Norte. » 234 CAPITGLO xn' Então, o Franco Rabello, Vendo lt coisa ficá ruim, Preparou ~tm Batalhão, Disse ao C01nmanda,nte assim: -- « V oces veio ao Ju.azeiro Desgraçá do Padre o n'Ím!» Se!Jlte o Alipio de Barro Ditriminado a brigá, Elle mais o Ladislau, ,lIas, quando chegtÍl'o ltÍ, Déro qu.atro tiro á tôa, Somente para constá. Nisso espalhou-se a notiça Logo por todo lagá ... Depressa, ella. se espalhou Por todo este Ceará! Ahi, seguiu p'r'o sertão LV osso grande Emilio SIÍ. Pegando uma peça véia. Mandou para a fundição, Mandou que raspassem toda, Tirassem todo o cascão, Passassem graxa na bicha E areasse bem os latlio. Ao chegá no Quixadá, Muitas mocinhas formósa Fôro vê Emilio Sá E iam todas mimósa, Em cima de Emilio Sá J ogara cravos e rosa. () JOASElRO NO FOLK-LORE lá do I (JuatÚ Ficou de queixo na mão ... Vm dizia: -- « O que é aquillo i'» Outro dizia: - « Sei não!» E o¡Ûro: -- «Só si é 'lnachina De escaroçá algodão ...) .tÍ gente Outro disse:« Não, 1uio é Q-ue eu já estive em Maranhão, QtUlndo che,qt£ei lá no porto Vi aquella arrumação ... £Ou desconfio que é aquillo Que os rico chamam canhão ... N o Orato diz o Ernilio: -- «Et¿ não vim tonui consêio!); Mandou collocá a peça Em GÏnw do Alto Vermêio Para, quando detoná Cortá luazeíro ao meio. Ahí, o grande artileiro Fez 1.tma detonação, A peça se arrebentou E en'uergou todo latão, Matou uma pobre vêia Que andava vendendo pão ... N esta hora, o Padre Cisso Fazia lá o seu sermão E disse ao seu pessoal: - « Corram logo, meus irmãos, Me pe,flUem aquella peça, JIe traga á força de mão!» 2il5 236 CAPITULO XlV Correro trezentos home Numa carreira damnada, Que quando o artileíro viu Aquella gente espritada, Empurrou a peça véia Deixou rolá na quebrada.. N osso grande Emilio Sá Vendo a batam perdida, Correu para o a1"lileiro, Mas, vendo a peça rompida A visou que o povo todo Cuidasse em salvá a vida! Vinha um menino com elle, De quatorze anno de idade, Era chamado Domingo, Filho daquella cida.de, Disse: - « Coronel, não C01'ra Que jagunço é bestida.de!» o menino ainda disse: - «Eu não temo esses patife! Seu Emilio Sá bem sabe Que eu, emquanto tivé rife, De coração de jagunço Faço urubú comé bife!» Segue o grande Emilio Sá.,. E o menino o que é que fez? Prantou o joêio em terra E atirou por sua vez, N o meio da jagunçada lnda mato~~ trinta e tres! O JOASEmO NO FOLK-LORE Mas Emilio Sá se foi Chatinho como um tatú ... j}tlais tarde o menino o alcança Já rasgado e quasi nú ... Quando ninguem esperava, Chegaro no Iguat'Ú. N o 19uatú, Emilio disse: « Acabou-se a pabulage, Não qt~ero mais sê valente, De que serviu a viage? Parto para Portaleza, Vou num carro de bagage ». Nesse lempo, em Fortaleza Havia 'um rio-grandense Que uma vez disse: - « Eu me (,~trevo A comrnandá cearense! Si e1¿ commandá a poliça, A jagunçada não vence!» o Doutô Paula Rodrigue Disse: -- « Amigo, se detenha!» E correu, disse a RabeUo: - « Temos um que desempenha, Hame de muita corage, E' o nobre Jota da Penha!» Para o ¡¡egundo combate O pessoal se animou, liêio gente de toda parte, A esperança renovou, E o grande Jota da Penha Pediu um trem e marchou. 237 CAPITULO XIV Chegando em Jliguel Calman, Na estação não quiz ficâ, Seguiu com sen pessoal Procurando outro logâ Que prestasse p'ra trincheira, Servisse p'ra se brigá. Góesinho tirott do po'/.,'o Cincoenta cabra dos seu E disse a Jota da Penha,: -« Capitão, eu. sou judeu! Dê licença, eu VOlt adiante, Eu. vou tomá São Matheu!» Góesinho se,quin á tôa Pois não conhecia a terra ... ConheCelt o que era guerra: Fai bala, ?u'ioloi brinquedo Dentro do sacco da sert'a! Góesinho rolou no chão, Temendo as bala ferina, E quando elle conhecen Que ali havia ruina, Corrett com medo dos cabra Da Dona Federalina. Ahi morreu o menino De quatorze anno de idade, Morreu a pobre criança, Uma onç.a na verdade, ES8e que tinha botado Trinta e tres p'r'a eternidade! o ,JOASEIHO :\0 FULK-LOIn: FugÏl\ Góesinho ligeiro Em procura do 19uatú', Lhe disse Jota da Penha: - « Góesinho, que viste tú! Corrcsíe damnadamente, Chegaste aqui quasi nú ... » Então o Penha pensou: . -- « LVão tem um que seja bom .., Já sei que vocés não brigam, Não possuem o meu doml Vamo que eu vou collocá V océ8 no Miguel Calmon». o Penha, em Miguel Calmon, FaloM alto e sem segredo: - « O que não tivé corage, Quem de bala tivé medo, Quem não pudé brigá, Por lavô levante o dedo/» Quando disse' essas palavra, CausOl~ admiração, Fazia nojo e fez pena: Uma grande multidão, Tezent08 e oitenta e dois Alevantaram a mão. Então, o Jota da Penha Vendo aquillo, o que é que fez i' 'A1a1ulouque fossem á fava Todos elles de uma vez ... E para a lucla ficáro Só WIS duzentos e tres. 13 I.oorcnço Filho - JoabCi,'o do Padre Cice)'{J. 239 C.\I'ITULO XIV DesseH duzentos e tres Teve inda gente que «abrÍ1.p>... Certo que, ()hegando it noite, Um bocado conseguÏ1t Fazê a sua fugÙ1a: Fóro 1,inte os que fugiu! Ficou cento e oitenta e tres, Mas 11 omes ditriminado, Dizendo: - «nós sai daqui Só depois de es{raçaùtdo! Cor;'ê daqui ninguem corre! () baruio tá formado ... Cordeiro, do Batrité, Por sê um luctadó lorle, Se coUocau mais Góesinho Todos dois dentro de um corte.! O pessoal delles dois Nunca lez causo da morte ... O bravo Tenente ArthÚ, Esse ficon coUocado N o centro de ·urna trincheira, Muito bem e/ltrincheirado, Para não ficá Rosinho Ficou eUe c dez soldado. O grande j\iózim Contenda. Tomou conta da vanguarda, E tambem 8inhõ Zequinha Mandava urna reclaguarda; O nobre Jota da Penha Chefiava toda a guarda. O JOASEIRO NO FOLK-LOIn: Jota da Penha pegou Urru;¡;noite rigorosa; Como a1loite toi assim A rnanhã toi invernosa, Qu(Lt¡do o dia toi rompendo O' que manhã tenebrosa! Elle accordou muito triste, Comsigo deu um suspiro, Perr/untou á soldadesca: - « Vocês me digam si O'lwiro Na matta, ao lado direito, O d'isparo de algum tiro!» Elles disséro: -- « Não vimo!)) Mas seguiro na carrêra, Perto de Jota da Penha, Abraçando as cartuchera ... Elle disse: - « Meus amigo, Entrem p'r'as suas trinchéra!;) Depois disse: - «3feu8 a1n/go, Vamo brigá, tenham té, V o '3xplicá a Voces O combate como é: Eu vou na trente a cavallo C01'n quarenta home a pé ». Sua roupa era amarella, As bota da mesma crí. O chapeo - de aba deitada, Da torma de lmperadû; Pulw¡d o no se1£ cavallo, De 1£m só pulo montou. 241 242 C.\l'ITULO XI\" Depois, o Jota da Penha Ficou muito admirado De vê vi tanto jagunço ... O sertão tava encarnado! (1). TinluL muitos no caminho! E outros, pelos paus, trepado. Gritou o Jota da PenluL: « Fogo, fogo, Bataião! Atirem nesses jagunço, Jíão quero vê compaixão, Acabemo esta canalha, Esta corja de ladrão!» - Então, as quarenta pra(a Quarenta tiro mandaro; Depois, sem l)crda de tempo, Outros quarenta enviaro, Ao depois, com mais quarenta, Os cento e vinte interáro. Ahi, o povo (lo Padre Tres mil tiro lhe mandou, Mandando nwis tres mil tiro Viu-se logo o grande horrô, Enviando outros tres mil, Os nove mil completou. ( 1) Por motivo ùas cobcrlur:l>l escarlates dos chapéos e dos grandes lenços encarnados que guarneciam () pesco(:.() e peito dos romeiros. (; ,JOASEIRO NO .FOLK-LORE Dizia o Jota da Penha: - « TIoje aqui ning-uem se coça! Anima, bri,qa, negrada, a jagunçada é uma joça ... Fogo naquella canaia Vamo que a victoria é nossa!)1 Tinha um jagunço trepado (Esse atirava de ponto) Ta'Iv'atrepado num páu, Dizendo: - « O Penha ett aflronlo!» Cada tiro, dava t¿m grito: . - « Matei ton! lá deixei prompto.' \\ Tinha tlm tal Raul Bezerra Estirado num buraco, Este então se preparou, Ti.rou a bala do sacco Fez lJOntaria e gritou: --, « Botei-te abaixo, macaco!» o bravo Tenente ArthÛ mêi de tanto alvoroço Deitou-se e saiu rolando, Pois o baruio era grosso, Itolon de uma ribanceira g caiu dentro de um poço. iY? Com a carabilla moiada Mostrou a peT/ôeverança, Agachou-se delllro da agua, (Parecia uma creança) POí" cima da ribanceira illda lez grande matança. 244 CAPITULO XIV Jota da Penha a ca·vallo, P'r' 08 jaflUnç08 conheeel-o, Era um Roldiio destemido.o. So meio de tanto atropelo, Dava viva ao Ceará E a ;Wareo Fmneo Rabello! Tambem o po/.,'o do PadjOe, Fazendo grandes horróre, B1 igava gritando sempre Entre medonhos clamôre: - Viva o santo Padre Cisso, N OS8a Senhora das Dóre! 0 o pobre Frei Marcellino Implorava á multidão, Com uma image divina De Deus Nossenhor na m¿¡'o, Para os jaflUnço atirá Mas não sangrá 08 christão. Um jaflUnço viu o Penha E gritou: - « (tue grande testa! ,{quelle é o Jota da Penha, Agora o combate presta! Zé Pinheiro lhe lez toga, A bala pegou na testa. O nobre Jota da Penha Rolando caiu no chão, Ficou rolando ua terra Com o seu revolve na mão, Mas, coitado! o home morto ;Pd Iaze acçao. -!fI II ao po e A o o ••• O JOASEIRO NO FOLK-LORE O cavallo desde logo Com a queda se assustou, Deu uma grande carreira, Foi longe porem voltou, Pe,'lo de Jota (la Penha, Baixou a venla e cheirou. Zé Pinheiro lhe atirou Porem não acertou não, E o cavallo esparrou (¿ue licou rente no chão Pinheiro sai da trincheira IE mata o cavallo a mão. Poi, disse a Pedro Silvino O que linha succedido, COi/tau que Jota da Penha Na lueta tinha morrido; Pedro Silvino enlão disse: - « Antes tivesse-o prendido!;) J olÎo Gome achou o cadáve De Penha e se descobriu: - « Deus te dé a salvação, Bocca que nunca mentiu, Bra(:o de heroe destemido, Mão lorte q~le resistiu!» Estava perdida a guerra O' que horrorosa certeza! A soldadesca chorava ... Todos então com tristeza, Botáro Penha no expresso, Mandáro p'r'a Fortaleza. 245 2·I(1 Eu ta1.,w,na Capita! Naquella noile a/ftictiva, Na hora que foi chegamlo Aquella locomol'iva 'l'razendo Jota da Penha, Corpo morto e alma viva! Jagunço ahi tomou conta ... Anarchizclro o Maytá, Depois Quixeramobim, Véro cerco no luá, Logo nesse mesmo dia Desgraçáro o Quixadá. Com toda facilidade Entráro no Batrité, E corrêro toda sert'a, Escangalharo o Coité. Fizero cantá Bemdicto .Jo povo do Cani}{dé ... » o cégo Aderaldo foi empregado da ferrovia Baturité, antes do desastre que lhe tirou a vista. Nas viagens continuas que fez apanhou alguma coisa do sentimento popular contrario ao Joaseiro. E' evidente no modo pelo qual apresenta os acontecimentos e os commenta, com feliz ironia, quasi sempre. Aa contrario, o cantador Ionvaminhciro do o JOASEIllO NO FOLK-LORE 247 Padre Cicer.o é o poeta João Mendes de Oliveira} residento no Joaseiro. Tem-lhe cabido a tarefa de pôr em verso a santidade} feitos e prestigios do Padrinho. Adaptado perfeitamente á incLlltura ambiente,elle reflecte, como ningucrn', o sentimento popular dos sertões a respeito do Padre, como podemos verificar nestas composições: "Visita dos romeiros" « E' um pastó delicado, E' a nossa protecção, E' a salvação das alma O Padre Cisso Romão, E' a justiça divina Da Santa Religião. E' dono do "E' dOiw da E' uma das E' urn ¡ilha Manda mais MandiL mais Vem Vem Vem Vem Vem Vem Horta Santo, Sania Sé, l'Tes Pessoa, de São José, que o Wenceslau, que o loão Thomé. 'Jarta até lá de Roma, ca·rta do Ceará, carta de Pernambuco, carta do Paraná, carta de Cajazeira, carta do Quipapá. 24R ('.\ PI'lT LU X I" rem carla, do Jlaranhão, I'em carla do ,tracaty, T'em carta do CabroÓó. l'em carta do Piôhy, l'em carta do Bairité, E vem carta do ..lpod//. Quem não presta attenção Ao que mmi Padrinho diz Tambem não crê na Mal,.!;: Da Virgem da Conceição Nem no p1'opheta S. João, .vem poderá ser feliz. Um (;hega e diz: --- « Meg Padrim, Eu não sei ma-is o que fa,ça! Quero a vossa 1)rotecção Com sua divina graça! Com relaç.ão a virtude, Só aqui é ol/de se Qrha!)' (Jutro diz: - « Eu aqui eston. Quero que me ditrimine, Quando eu errá me r4stifl~le! (Juando eu não subé, me ensÎnp E' na vida e é na morte (.Juera que vós me domine' o Padre Cisso, então, diz Com ,'lUa voz ditterente: - «"A'ão queiram sê assos8illO, Não bebam mais agu(1J'{lente, :Vão queiram sé desordéro Que JesÚs não sai da frenie!)' o JOASEIRO :\0 FOLK-LORE Meu Padrim é quem possue Talento, força e podê Dado pela Providença! Quem duvidá - venha vê! Elle é quem dá a derecção Do que se tem de fazê ... (}om relação á sciença Elle é quem tem toda ella! Tudo elle faz differente, Até o benzê da vela, Sitio, fazenda de gado, Jlatriz, sobmdo e capella. Viva Dews primeiramente, Viva S. Pedro chavêro, Viva os seus sal/tos Ministro, Vi1:a o Diviuo Cordêro, l/ha a Santissima Virge, Viva o Sal/to h¡,azêro! VÎl;a a Sagrada Famia, N o céo a Divina Luz, Viva o Sinhó S. José, Vi'l:a o mystero da Cruz, Vi'm o Padrím Padre Ciço Para sempre, ¡hnem, J es'/.ts! Rom .TeS1.tsdos Passo, Vi1;.'l Salllo Antonio lambem, \!iva o sallto Juazéro Que é nosso Jerusalem, Viva o Padrim Padre Cisso Par'l lodo sempre, .4.mem!» Vi'/:!l. o 24D 2fiO CAPITCLO X! \" Não menos interessante é a SlJ.a cantiga « Protecção da Mãe de Deus », variando habilmente o mesmo thema~ sem o tornar monotono : « Logo 1/0 primeiro dia Que eu cheguei no Juazéro, Pegou a chegar roméro P'r'a uvi a voz do Messia. Este Pade é o nosso guia, E' a nossa satisfaçÜo, Consola todo christão, Ensinando o bom camirn, Trabalhando aqui sozim, Garantindo a salvaçiio. Cumo defensora e guia, Com um manto de ouro fino, Rogou a Jesus Menino A Santa Virge Maria, lI1ãe do rico c sem valia: - «Jes1u; Chtisto venha cá, Não prometti ¡ha faltá! Quando estive em Juazêl'o, Salvei a lodo roméro Que vp-iu, me visiliÍ. Eu sou a lïr,r¡e Cisso é o dalla A elle dou meu Conheçam bem. das VÔle, do SacrrÍ1'o; Rosáro, peccad{Îre: 1.)[I'O;"':"J':l¡,IIÎa 'llll' II -.l' \"'lltll' "::\\110 l,nI' (lIdo «l':lllrinhll I (l ;\11!'(ll',',\iI', ell) .Illil. .•.• "¡r,l. l'I'!,n'_""1I1:lllll" ü JOASEIRO NO FOLK-LOHE Quem a Cisso respeitá Ficará com Deus Eterno, Não consinto í p'r'o inferno Quem ouvi Cisso falá!» o meg Padrim Padre Cisso Protege a qualqué pessoa, T'em .fiente até de /llagôa, De mais longe e de mais 1Jerto. Tudo qu(>,elle di? é certo, Não tem quem prove o contrâro! Bispo, Páde e lIlissionáro Vão de encontro a meu Padrim: Elle, porem, tá sozim Na devoção do Rosáro! Viva o autô da Natureza, Fiva S. Miguel Archanjo, E viva a Côrte dos Anjo. Viva toda a realeza, Vi1;a /], santa luz acce8a, Viva esta boa semente, Viva Deus Omnipotente, Viva a cruz da Redempçiio, E o Padre Cisso Româo Viva! Viva, eternamente! Nada mais tenho a diz'ê. Sou, João Mendes de Olivéra, N esta lingua brasiléra Eu lIc~dapude aprendê. Porem 1)OS80 conhecê 251 252 CAPITULO XIV De tudo quanto é verdade! Não tenho capacidade, ollas, sei que não digo á tÔa: - - Páde C1:SS0 é uma pessoa Da Santissima Trindade! ... » Estas poesias, como outras parecidas, correm os sertões de hocca em bocca, e ,impressas em folhetos que o proprio autor vende em suas viagens. Figuram igualmente no já citado livro « Cantadores », de Leonardo Motta. * .:. o capitulo das orações é o mais vasto, talvez, dentre os da demologia sertaneja. Todas as difficuldades, todas as molestias, todos os perigos se afastam com preces, uma simples como esta, para curar braços e pernas destrancados, fracturas, ]uxações: « Carlle trilhada, .Vervo torcido, Ossos e ""eias, E co/'dovei.as, Tudo ¡.sso eu côso Com o louvor ne São Fruct1J.08o! >) o JOAS.è:mO NO FOLK-LORE Outras, complieadas já com exorcismos e benzimentos, corno as que transcrevc:mos abaixo: Oração contra o usagre Benzendo a parte elo corpo atacada pela molestia com um galho f1e arruda molhacla pm agua benta: Eu te benzo com a cruz, com a luz E com o sangue de Jesus! Usagre, fo,go selva,r¡em, foge d'aqui, Que estolt com nojo de ti! Oração "forte" contra os espíritos e avantesmas Jesus vae commigo B cuvou com JeSU8! Jesus vae commigo N o meu coração E ha de livrar~me De toda afflicção.' De toda afflicção, De Ioda agonia, Livrae-me Jesus, J osé é: Maria! J osé c Maria! E Sant'Anna lambem, E São Joaquim, Para sempre, Amem! 25·t CJ.l'ITL"V) XIV Oração para curar bicheiras dos animaes Jfal que (:omeis ./ Deus não louvaes! E nesta bicheira S¿¡o comerás mais! llas de ir cahÙzdo: De dez em dez; De /lave mn nove, De oito em oito, De sete em sete, De seis em seis, De cinco em cinco, De quatro em quatro, De tres em tres, De dois em dois, De um em um! E nessa bicheira .Yão licará nenhum! /la de ficar limpa e sã Como limpas e sãs ¡"icararn .1s cincos chagas De N osso Senhor! (Hisca-~e no ar uma cruz e os birhos cáem) (t). Estas orações não nasceram propriamente no Joaseiro, mas ali se praticam unidas a outras, com exito especial... Mas ha preces peculiares aos romeiros, ou adaptadas de mo(1) V. a proposilo ùe Gustaru Barroso. lIe ora~~õe~, o liao «Ao 30m da viola'), o JOAS¡,;mO ~ü FOLK-LORE 255 do a referir-se directamente ao Padrinho. Aqui está, por exemplo, a oração do «Justo .Jniz», para «fechamento do corpo », com essa evidente adaptação: « Justo Juiz de Nazareth, filho da Virgem Maria, que em Belem fostes nascido entre as idolatrias, eu vos peço, Senhor, pelo vosso sexto dia, e pelo amor de meu Padrinho Cicero ql~e meu corpo não seja preso; nem ferido, nem morto, nem nas mãos da justiça envolto. Pax Tecum, Pax Tecum, Pax Tecum. Christo assim se disse a08 seus Discípulos: Se os meus inimigos 'Vierem para n¡B prender, terão olhos, não me verão; terão Otwidos não me ouvirão; terão bocea, não me fallarão; com as al'mas de 8. lorge, serei armado; com a espada de Abrahão, serei coberto; com o leite da Virgem Maria, serei borrifado; na arca de Noé, serei arrecadado; com as chaves de São Pedra, serei fechado aonde nâo me possam ver nem ferir, nem matar, nem sangne do meu corpo tirar. Tambem vos peço, Senhor, por aquelles tres calices bentos, por aqlbelles tres padres 'lcvestidos, por aquellas tres Hostias consagradas, que consagrastes ao terceiro dia desde as portas de Bethlem até Jerusalem, e pelo meu Santo ] oaseiro qne com prazer e alegria elb seja tambem guardado de noite, como de dia, assim como andon lesus no ventre da Virgem Maria. Deus adiante, paz na guia, Deus me dé tI companhia que deu a sempre Virgem Mana, desde a casa sailta de Bethlem até Jerusalem. Dellll é ?IWU Pae, 251; C.\l'I'JTLO Xn" ,v. Mãe das Dôres minha Jlãc, com as armas de 8. Jorge sel'ei armado, cmn a espada de 8. 7'hiago serei ,gwlrdado para sempre, Amem (1),» o « fechamento do corpo », contra. armas du fogo de qualquer natureza, e perseguição pl)r parte da policia, se torna completo quand·) além da oração acima, cosida num bentinho, consegue o cangaceiro uma hostia consagrada, furtada por elle do altar de uma 19reJa. «E' sabido entre o povo, diz Xavier de Oliveira, que Joaquim Pinto Madeira, o ce1'3bre guerreiro imperialista de 1832, por ter tarnbem uma hostia, não no corpo, mas apeHas pendurada do pescoço, por mais que o 1rucidassem no patibulo erguido no Crato, especialmente para elle, só foi possivel ma~al-o, depois que o separaram della.! ... » (2). *** Ha, no Joaseiro do Padre Cicero, duas corporaçóes organisadas de fanaticos, com re( 1) Esta. oração é secular nos sertões, segunùo se deprchende do curiosissimo livro de milagres de Aderson Ferro, « O dedo de Dells», Fortaleza, 190'1. (2) X. de Oliveira, ou. cit. pg. 207. o JOASEIRO ~O FOLK-I,om~ 257 galias e £uncções especiaes: a dos «beatos» e a dos «penitentes». O «beato» é sempre um celibatario, «que faz votos de castidade, real .ou apparente, que não tem profissão, porque deixou de trabalhar, e qU3 vive da caridade dos bons e da exploração aos crentes. Veste á maneira de frade: uma batina de algodão tinto de preto, uma cruz ás costas, um cordão de São Francisco amarrado á cintura, uma dezena de rosarios, uma centena de bentinhos, uns saquinhos com «breves» religiosos e com orações poderosas, tud.o pendurado ao pescoço ... São geralmente individuos vagabundos, hYPocJ'itas, del irantes religiosos .ou bandidos I » (1). Os «penitentes» sã.o uma expressão mais accentuada de mania religiosa. Deixam crescer a barba, vestem uma longa tunica e proeUl'am viver longe dos povoados. Os do Joaseiro habitam na serra do Horta, soh a chefia do prestigioso penitente Elias. Sua funcção, conforme confessou o dI'. Floro Bartholomeu, é a de r8unirern'-se a alta hora da noite, em trajes de amwtalhados, junto aos cemiterios (1) Id. ibid, m;. No seu ja citado discurso ¡Je defesa ao Patlre Cicero, na CUlnara Federal, o dI', Floro BarthoJomell confessou a existencia dessas ordell~ de fanuticos, dando até o llome dos' sew; princi"aes chefes. (JAPITULù xn' e cruzes de estrada, para rezarem pela alma dos defuntos. As orações são intercalladas de <~ disciplina », isto é, de cast.igos phYEicos com ehicotes e cilicios (1). Funcção commurn a beatos e penitentes é a de «aj udal' a morrer» os agonisantes. E pode-se calcular facilmente o seu trabalho, neste particular, quando se c.onsiderar que a mortalidade attinge a cifras inauditas. No Rio de Janeiro, com um milhão de habitantes, morrem, em' media, sessenta pessoas por dia; no Joaseiro, diz o dI'. Xavier de Oliveira, medico, filho da região e perfeito conhecedor da grande Méca sert-aneja, - com quarenta mil habitantes, apenas, morrem diariamente trinta pessoas! Para « ajudar a morrer», juntam-se alguns romeiros, que seguem o beato até a casa do moribundo. Ahi chegados, accende-se uma (2) ({ o chicote com que be ferem ainùa hoje oS peniten.tes é uma tira de couro de 4 paJmoR de com¡Himenlo, tendo presas a uma das exlremidades <I a 15 pontas de faca de !llesa ou ùe cabo de colheres de latão, afiado~ de alabos os Jados, medinùo 6 centímetros mais all menos de comprimento. O eíliciu é uma faixa de sola, de 3 dedos de largura, lra!'ipassatla de tachas de sapateiro qne se aperta á cintura per baixo da camisa, c cujas ponlas se internam pelas carnes, occasionando dores 110rri\'cis ao menor mo\'imento ùo corpo! Mesmo assim, usam-n'(I por muitos dias.» - A. FERRP, ({ O Dedo de Deus», pg. 331;' () JOASElRO NO FOLK-LORE vela benta 3 o beato inicia ladainha, repetindo sempre: uma comprida - I esus vae comtigo e N assa Mãe das Dores é tua guia até a porta de São Pedra! ... E o archanjo Gabriel, com a sua espada na mão, te defenderá conlra os alaques do «Cão »!... Depois da morte, iniciam-se da sentinella». Vae um romeiro «tirando adiante}), e os mItras em côm, numa voz lam'entosa os « cantos ou romeira respondendo e :::n'ofunda: « N assa Mãe N assa Senhora, Virgem Santa e Mãe das Dores, H' ~ guarda de nós todos, De nós lodos peccadores. Oh! Oh! Oh! Oh! Mãe Mãe Mãe Mãe gloriosa, do loaseiro, virtuosa, dos romeiros ... « Tem duas beatas santas, Xa matriz do loaseiro, Jleu padrim Cirço Romão E' o 'rei do mundo inteiro! E o CÙl'O oo. repete, elevando a voz: JJeu padrim Cirço Ilomão E' o rei do mundo 'inteiro! ... 260 CAPITULO Xl V Muitas vezes apparecem no sertão, sob a fórma de preces, terriveis satyras contra homens e pess.oas. Não são sempre, evidentemente, creaçôes do sertanejo. Ahi, a calculada intervenção de que nos fala Yan Geenep, por parte de um escol social... Desde que a oração-satyra corresponda a um sentimento popular, ella carre Inundo, sempre fiel á prim'itiva fórma, porque o arranjo da «oração» facilita a sua memorisação. Do typo dessas orações, foi-nos fornecido por um dos mais conhecidos jornalistas cearenses, a copia da que vae abaixo transcripta, e que lhe foi dada por um alfaiate, em Cajazeiras, (Parahyba): Credo « Creio no Floro, todo poderoso, deus do rœngaço e em José Ignacio, sel~ primogenito filho, o qv..al foi feilo chefe politico por obra e graça da ¡'alta de vergonha dos governos do Ceará; naSCe1-¿da perversidade; padeceu sob o poder de h.tstiniano de Serpa" foi perseguido, preso e interrogado, desceu ao « Barro» onde, logo na primeira noite, resurgiu do medo, fugindo 17't·'oJoaseiro, Oilde está assentado á mão aÙ'eita do Padre Cicero c ele ollde ainda, ha de sahi" para roubar O JOASEIHO NO "FOLK-LORE 261 vivos e mortos; creio no ritle 44, na protecção aos criminosos, na communicação dos bandidos, na resurreição dos « barulhos» e na v,¡da aperreada do sertanejo. Amem!» José Ignacio, a que o «credo» se refere, foi chefe politico do municipio de Milagres; imputam-lhe muitos assassinios, roubos, assaltos e outros crimes. Foi elle o incendiador da villa de Aurora. Perseguido pela policia, durante o governo de Justiniano de Serpa, apezar de protegidissimo pelo deputado Floro Bartholomeu, (que chegou el discursar na Camara Foderal em defeza do «Major» José Ignacio) atravessou os sertões do N 01'deste e conseguiu internar-se em Goyaz, oncle segundo consta, foi morto num reeontro com os bandoleir,os de um caudilho goyano. «Bar1'0» era o nome da famosa fazenda de José Ignacio, por muito tempo velhacouto de sicarios da peior especie. Como se vê, portanto, o « credo» é uma satyra pel'loi tissima ... CAPYfULO XV CONCLUSÃO rill clamor que ~c le\"anta ... - Depoimentos in~uspeitos - As respnsabilidadcs da Nação O Joaseiro, UilI índice de incultura geral Quae.,> os rellledios? Considerações tail'ez opportunas -- Alphabe\o e cultura, alphabeto e adaptação -- Até onde nos podem le\"ur a.s considerações geraes ... - O problema hrasileiro de cultur:L não é, neste momento, o prohlema do alphaheto. ¡.! Lourenço Filho - .Joose;I'O do Perdre Cieel'o. xv Desse destino, de sua ralalidade, só escaparemos por um c:uninho: o 10marmas, a seria, a resolução corajosa d,~ mudar de metllOdos - melhodos de educa.çãa, melhodos de polilica, meUlOdos de legisla;ão, melhodos de governo. O problema de nOlsa !;ah'al;ão tem que ser resolvido com oulros crilerios, que não os crilerios até agora dominantes. Devemos dora avante jogar cem ractos, e não oom hypotheses, com realidldes e não com ficções, e, por um esforço de vontade heroica, renovar nossas idéas, refazer nossa cultura, reeducar nosso caracter (OLIVEIRA VIANNA). A educação publka é a medicina radical. Ella daria ao povo a po>sibilidade de curar-se por suas proprias mão:!, a despeito dos seus usurpadores. Mas a educação é tarefa demorada. (SAMPAIO DORIA). A simples enumeração dos fac.:os, que vimos narrando até aqui, confrange a alma de todo brasileiro culto. Áquelles que nunca deixaram a estreita orla de civilização litoranea, de emprestimo, ha de parecer mes'mo que exaggeramos. E foi por isso que, deli- beradamentc, tolhemos (I passo a muitos commentarios que estiveram no bico da penna, e substituimos scm'pre, onde possivel, o nosso desvalioso depoimento pessoal, pelas declarações insuspeitas dos filhos da terra, dos hons cearenses que se têm revoltado contra ü estado de coisas dos seus sertões, c clamaÚo, em vão, por urn remedio salutar Tendo Ieunido todo o material para estes escriptos, ha mais de um anno, nã.o os publicamos tambem, sinão agora, por um sentimento natural de rcspeito aos homens cultos do Ceará, de que havia de esperar-se mais dia, me1l0S dia, uma reacção impressio118,nte contra o Joaseiro. Essa tarefa, que exigirá ainda multi pIos e constantes esforços, iniciada desde muito por csse varão de Plutarco que é Hodolpho Theophilo, logrou recentemente a adhesão do Padre dr. Manoel lVIacedo, que num pamphleto que resôa por todo o Norte eomo um portentoso grito de revolta, diso" :;üca él, vida <la administração interna da Méca do Cariry, denunciando e provando crimes, com' uma coragem inaudita ... Nesta hora, outras vozes eloquentes e destemerosas se fazem ouvir, por toda a parte. Em Fortaleza, os tres jornaes independentes «O Nordeste», «O Ceará», e o « Correio do Cea- CONCLUSÃO 2G7 rá» - têm profligrado com frases candentes os erros administrativos e as torpes explorações politicas sobre o extranho phenomena social do Joaseiro, cada dia mais ameaçador e potente ... Poder-se- ia ainda sus pei tal' desses lIepoimento s ? Talvez, si fossem vozes isoladas. Elles concordam, porem, na sua essencia, com os quo têm partido do pessoas sem ligaç.ão algllmél, com a vida politica cearense, entro as quêtes so evidenciam Monsonhol' Tabos,-'t Braga, dr. Philipp von Luetzelburg, naturalista da Universidade de Munich, dI'. Paulo de Moraes Barros, e ainda ha poucos dias, a do dr. Zenon Fleury Monteiro, que, num ensaio economico-social sobre o Nordeste brasileiro, entre algumas opiniõe~3 talvez um pouco exaggeradas a respeito do sertanejo, estampou notas muito precisas sobre o Joasei1'o do Cariry (2) . (1) Vide em nota final como essa imprensa inùependente se manifestou contra a nomeação du Paùre Cicero Romão, para deputado federal, na yaga de Floro Bartholomcu, (2) DR, PAULO DE :\IORAES BARROS, « Illlpressiies do Nordeste», S. Paulo, 1923; ZE1I:ON FLECRY MO:\TEIRO, « A' ~Iargem dos Carirys», S. Paulo, 1926. 26~ CAPITULO XV :Masnão é só ao grande Estado do Nardeste que o caso interessa. Interessa a todo o Brasil, a toda a Nação. Porque o Joaseiro é um indice do absoluto empirismo com que hão agido sempre os nossos governantes, em face des maiores problemas sociaes do paiz. Incapazes de prevenir os males naturaes a que acuellas terras estão sujeitas, não só têm errado, muitas vezes, mas têm tripudiado sable a ignorancia e a miseria, procurando colher, sobre um caso tão clamoroso, seguros pIOventos pess,oaes ... E' uma verdade dolorosissima e mnegavel. Como dissimulaI-a? Este livro não tem, comtudo, a pretensão de ser um requisitorio contra os possiveis explorad.ores de tal situação. O requisitaria está, de ha muito, magistralmente feito, sem ter logrado levantar uma só palavra de contradicta séria e desinteressada ... O que se deseja, com a publicaçáo deste vülume, é contribuir, modestamente embora, para o diagnostico dos males apontados, na intenção de que' um dia o therapeuta 80- CO:.lCLUSÁO 269 cial, que nos tem fallecido, se descubra e se decida a cooperar para um rapido erguimento social dos sertões. Os remedios estão aos olhos de todos, e elles se resumem, numa palavra, em maior liberdade aos escravisados Estados do Norte, em distribuição de justiça e edLlcação. * * A palavra « educação» aquí não significa apenas ensino primario, ou trabalho alphabetizante. O problema educativo brasileiro é muito mais complexo dû uma simples alphabetização, que só poderá ser proposta como solução empirica tambem, pelos que desconheçam o meio e suas necessidades, ou os resultados sociaes da simples alphabetizaçào. ,Dadas as nossas fracas tradições de cultura, o pro~lema não pode ter uma solução sim'plis~a como essa. A leitura pod.e ser uma necessidade publica dû organisação e de progresso, um dos elementos de elevação do individuo, ninguem o nega, mas não é, no momento, nem' a necessidade mais urgente, nem o elemento essencial das bases da cultura brasileira. 2ïO C.\l'ITULO X\" Estas aífirmações podem chocar os nossos e~;pecialistas de gabinete. Tambem ellas me feriram desagradavelmente, antes de conhec~r por experiencia propria as condições de vida do interior do paiz. Comtudo, ellas devem ser discutidas. A questão da quanti¿ade e da qualidade de ensino, num paíz dp população rarefeita, como {) nosso, é muito mais seria do que a primeira vista possa parecer. Numa população muito disseminada, VIvendo em pequenos fócos dispersas, sem relação directa com Q progresso do littoral, ao sertanejü actual pouco ou nada lhE: valerá o saber ler, apenas. Mais valerá, para cada mil cabeças, dez cabeças hem formadas, adaptadas ás necessidades e ao desenvolvimento da regiilo, apetrechadas para luctar, "eneül' e impor-se aos demais, como exemplo e guia, que novecentos individuos que conheçam o «abc », sem .outra modificação sensivel de suas aptidões intellectuaes, sem habitas de observação c de trabalho, sem energias para prompta reacção de adaptação de sua gente ao seu lncIO. A iIlusão da necessidade e urgencia de alphabetização, está na falsa. analogia entre o grande organismo do paiz, tomado como CO:\(:L~SÃO 271 uma unidade, e o individuo. As.sim como o individuo necessita, para apparelhamento indispensaveI de cultura, em nossos dias, de saber ler e escrever, suppõe-se que a cultura nacional terá que começar pela imposição a todos os brasileiros, desse apparelhamento indispensaveI... O equivoco é manifesto. A unidade-nação não é uma simples somma arithmetica das unidades-individuo ... Si a vida mental do paiz fosse outraque não é; si as nossas tradições de cultura ou de pseudo-cuItura fossem mais naturaes, dirigidas ao estudo c aproveitamento do quo somos e do que podemos; si a sua assimilação fosse tomada pelo proprio povo comó uma necess;dade viva, imprescindível na lueta pela existencia, a panacéa do alphabeto teria outro valor - mas não seria tudo, ainda. A verdade, porém, é que esse ambiente de idéas-fol'ças nos fallece, completamente. Nossa pretensa cultura, isto é, nosso caricato ensino secundario, e superior (aliás « profissional-superior », pois não temos nenhum instituto de cultura superior desinteressada) ao envez de adaptar-nos á terra, de nol-a decifrar, - d.esadapta-nos c nos procura isolar della. Tivemos disto uma demonstração lmpres- 2ï2 CAPITULO XV ¡.anante, durante tOdoOo tempo que observamos o Nordeste, in-loco. No Ceará, como cm todos os demais Estados do Norte, a situação mental da popula~ão pode ser assim resumida: vinte por cent.o :;abe lêr; o resto nã.o .o sabe. Mas é o povo ignorante que lavra a terra, que planta, que colhe, cuida do gadoO,extráe as riquezas naturaes e as faí: transportar para os centros c.onsumidores. A população letrada faz esteril bur.ocracia, quando não criminosa politicagem. E quand.o o flag ello da secca ameaça a vida por tod.os os sertões, é ainda o analphabeto que lucta, que empiricamente descobre .os meioOsde defesa, cavando cacimbas, c;olhendo as pontas das arV.or(~sque sirvam de forragem, tangendo .o gado para as serras e .os campos frescos do Piauhy ... A esse tempo o letra.$:lo faz sonetos e appeIla para as subscripções doOsul... Não .o faz por mal: fal-o, por desaptação mental aos verdadeiros problemas de sua terra, por incapacidade de acção intelligente e efficaz. O sertanejo, embora analphabeto, é um sêr empiricamente adaptado ao meio. Tão adaptado que difficilmente emmigra, e quando o faz, volta sempre ao torrão natal. O letrado, ao contrario, é um sêr, desadaptado t CONCLuSÃO 273 em sua tena, pela qual é incapaz de praticar o minima acta de melhoria. As excepções, como a desse politico sui-generi'3 que é o sr. Ildefonso Albano, para citar um exem'plo, confirm'am a regra: não são productos da educação brasileira (1). O llOrnem do serlão, o «Mané-Chique-Chique », rude e ignorante, é o homem' da lucta, do valor, e mau grado a syphilis, a bouba, as verminoses e o trachoma, é ainda a vida e o verdadeiro progresso, embora lento como o seu carro de bois. E' a unica força economica daquellas regiões. O letrado actual é o parasita. E como a administração está em suas mãos, a situação tende a perp¡;tuar-se ... Longe estamos da intenção de fazer o elogio da ignorancia. Justamente por isso, até, é que estamos abordando aqui o assum'pto. O que é facto é que a ignorancia, sobredoirada com o alphabeto, desadapta, e extirpa, muitas vezes, as melhores qualidades m'oraes do individuo. Precisamos já, urgentemente, immediatamente, .- emquanto é tempo I - de appare- (1) O sr. Ildefonso Albano educou-se na Austria. Sua adiviùade de boa propaganda. pelos verdadeiros problemas do Nordeste fel-o con}¡ecido em todo o paiz. 27..Jo CAPITULO XY lhos de ,rerdadeira cultura, chamem-se institutos technicos .ou universidades, ern: que se preparem homens que decifrem os nossos verdadeiros problemas, á luz da sciencia experimental. Lampe}os dessa verdadeira cultura, no sentido normal da palavra, tem produzido, com o mesmo homem rude dos sertões, com o mesmo mestiço que os pseudo-letrados desabonam - maravilhas de vida e progresso, como essas surprohendentes cidades americanas que Frederico Lundgren e Delmiro de Gouveia fizeram surgir, uma, em plena matta virgem do litoral parahybano, e on tra dos carrascaes e penedos das margens do S. Francisco ... O problema cultural brasileiro se resume neste momento, mais que tudo, numa formação de elites. Porque, dado ainda, que elle se pudesse resolver com o mesmo exito, pela alphabetização extensa e pela formação de elites, a primeira solução nos seria impossivel, neste momento, pelas despezas Iormidaveis que acarreta. E' sabido que não ha ensino mais dispendioso que o ensino primario. Quanto nos custariam as escolas para os seis milhões de el'ianças brasileiras'! Ade- mais, ellas nada significariam, para a coordenação mental qne falta ao paiz, sem a CùNCLU:->Ao 275 mesilla creação urgente de um apparelho de cultura teehnica e superior, que fornecesse á grande massa os seus technicos, os seus guias, os seus administradores, os seus verdadeiros politicos, capazes de comprehendérem as legitimas necessidades e aspirações do paiz, e de resolveI-as praticamente. Porque não cOIYJ.eçarpelo que é possivel realÍsar já, dentro das nossas possibilidades actua-as ? Os resultados não tardariam a apparecer, como Julio de Mesquita Filho o demonstrou, no estudo a que alludimos no preJacio deste livro: « Como se verificou em todo o mundo, deveremos começar por formular o problema brasileiro - tarefa a que só os espiritos superiormente dotados e cultivados s,e poderão abalançar - para depois procurarmos a sua solução, pelo esforço conjugado e methodisado de toda a nação. Se nos resolvessemos de um instante para outro a criar, com' o concurs.o de personalidades seleccionadas entre os elementos tão abundantes nos ve;hos centros de cultura da Europa, tres universidades, no centro, no sul e no norte do paiz, attendendo ás differenças do meio brasileiro, em pouco tempo, em dez ou quinze annas, não ~'76 L\PlTULO xr mais, vertamos operar-se, estamos certos, milagrosa transformação na mentalidade brasileira. Refundida a nossa eultura e resiabelecida a disciplina na mentalidade do povo, s;ob a acção purificadora daquelles nucIeos de meditação e estudos, não tardaria que a nação se aquietasse e que desapparecessem os vicias innumeraveis do nosso apparelhamento politico-administl'ativû~ oriundos .. na sua quasi totalidade~ da assustadora insufficiencia cultural dos nossos homens publicas. Filtrada atravez dos varios estractos que constituem normalmente uma sociedade 01'ganisada e perfeitamente articulada, a acção das elites formadas no cadinho dos centros superiores de cultura reflectir-se-ia na consciencia popular. Esta não deixaria de reagir henefica e efficientemente ante as tentativas periodicas e cada :vez mais ousadas dos detentores do poder, hostis ás liberdades individuaes (1). » Sem se descuidar do ensino primaria e do ensinoprofissional, cuja extensão Ina tendo a marcha normal das nossas possibilidades economi~as, esses apparelhos de verdadeira cultura acabariam por produzir não (1) «A crise Nacíonal», S. Paulo, 1926. pg. 90. CONCLUSÃO 277 só a mais bcnefica coordenação rne:1tal, como criariam o ambiente propicio para um trabalho de educação popular extensa, pela esoola, pela igreja, pelo livro, pelo cinema, pelo radio ... . * ::: E nessa epoca, mal soarão, como evocações de um passado ominoso, as lembranças dos males sociaes que não podemos agora esconder, como esse, quasi incrivel, do Joaseiro do Padre Cicero ... NOTAS 1. 2. -3. 4. S. - A flora do Ceará. Noticia historica sobre as seccas. O Joaseiro e o ensim.opublico. A intervenção no Ceará. Padre Cicero deputalio. NOTAS 1. - A flora do Ceará A distribuição dos vegetaes espontaneos sobre um territorio é o reflexo fiel das condiç,ões physicas que nelle predominam, porque as planta~ são directamente dependentes da qualidade e da quantidade de nutrição no sÓlo, de combinação com a temperatura e o grau hygrometrico do ambiente e suas precipitaç,õcs. Possnem, é verdade, uma certa latitude de adaptação e, ás vezes, os extremos biologicc>s podem ter certa amplitude, mas sempJ'e dentro de limÎtes fixos. Cada vez, porem, que alguma mudança radical se opera em qualquer dos factores, influe isso no sentido de especializar a flôr !laquelle lugar, ainda que os outros factores permaneçam os mesmos. São essas tambem as razões por que na flóra cearem,e se distinguem tres principaes agrupamentos flori:3ticos: o do littoral, o das serras e o das planicies, üu do sertão correspondente-s a tres zonas climatericas cm que se divide o Estado. Mas, como dentro de cada uma destas zonas c1imatericas, os outros factores physicos nem sempre se conservam inalterados, as suas influencias sobre a vegetação se exercem de modos diversos, e 282 NOT AS os agrupamento~ floristicos soffrem modificações que se manifestam por differença~ correspondentes ás IIi· vcrsirlalles (laqllelks factores physicos. o LJTTOIL\L. -- Assim é C]ue na extensa zona do littoral, cujo clima é bem defini(lo e ccnstante, ató uma distancia mais ou meno" considel'[¡vel terra a dentro, a topogl'aphia e a constituição do solo determinam todavia. tacs varia~'ões na flora ([ue obrigam a uma divisão em sociedades floristicas, conforme a maior ou menor resistencia das especies ás emanações salinas maritimas ou capacidade para ada?tarem-se ás condições que resultam da pl'edominaneia da areia ou da argila. Influe ahi tambem a elevação, criando outras condições llas montanhas que so prolongam para dentro dessa zona. Ha, pois, a distinguir, no agrupamento (10 littoral, a soeiedalle floristica das plantas das areia,;;, ou psammophilas: a sociedade das que habitam os terrenos baixos, humidos e argilosos, ou hydrophilas, e a das que povoam as montanhas cost.eiras, ou plantas hygroJ1hilas, que, por isso mesmo, pertencem ao agrupamento das serras, ou dryaUco. Por delra? das dunas, onde as montanhas não irrompem, estende-se uma larga faixa de terrenos, ora le••. -emente ondulados, ora inteiramente planos c humidos, até muitas vezes alagadiços, de dez a trinta kilometros de largura, com uma flom peculiar curiosa, caraderizD.da pelo seu porte, mais arbustÍ\ro do que arborescente, e sua physionomia de pseudo xerophila. São vegeta es admiravelmente apparelhados para enfrentar as frequentes alternações de sêcca e de humidade, quer atmospheSOCIEDADE HYDROPHJLA. - 283 NOT AS riras, quer do solo. (Alberto tanicas do Ceará»). Loefgren « Nota::; Bo- As SEHHAS.- FLORA DAS MONTANIL\.S.-- Nas serras do Ceará, cujas altitudes variam de 600 a 1.100 metros, a matta se ostenta com os caracteres hydrophilos e dryaticos; a associação arborea é mais desenvolvida e rica em variedade, emquanto que a as.sociação herbacea é menos interessante. FLORA DOS ALTOSPINCAROS E ASSENTADAS.Consta ella principalmente de arbustos na sua maioria rasteiros e rie hervas. o SEHTiÏ.O.- E' o sertão o mais interessante sitio fJoristico, do territorio cearense, que:~ pela sua extensão, e pelo contraste frisante da vegetação, quer pela sua influencia em quasi todos os ramos da actividade industrial daquelIa vasta zona. 1.\ o serti'io distinguem-se: A CAATINGA.- A feição topograp;lica do inteterior do Ceará, limitada pelas cordilhoiras lateraes, é, corno vimos, a de uma grande planicie, suavemente inclinada do sul para o norte por degraus ou taboleiros, sobre os quaes as elevações tOJas emergem como outras tantas ilhas. Resulta desta disposição a grande unifOlmidade que se nota na sua flora porque contrihue es~encialmentepara igualar Bobre a area total as feiç{ies climatologicas em cada uma das estações do anno e tornar quasi que identicas as COIldições physkas de um extremo a outro da planicie. (Alberto Loefgren - Obra citada). NOTAS A caatinga que cobre tres quintas parles do territorio cearense e quasi completamente o :3ertão, assignala-se pela escassa apparencia da associaç-ão arbarca, embora persistente; como que esmaecida se reduz no porte c na variedade pela rudeza do clima e impropriedade do solo rijo e adelgaçado. A associação herbacea, variada e rica, quasi toda periodica, nistura-se áquella. No inverno misturam-se arvores f arbustos, entrelaçando-se numa confusão uberrima Le viço c força, formando uma unica associação mixta l: hydrophila, no estio se bem que permaneça lUna {, unica, a associação floristica torna-se ;œrophila e :'eduzida a especies arboreas ou arbustivas resistentes l~ ás poucas hervas rudes e coreaceas que conseguem \Tencer o quasi sempre longo tempo secco. A VEGETAÇÃO DAS conOAS. - Nas coroas frescas tie solo profundo e humifero dos rios e riachos, ve~ehun com mais vigor todas aS especies arborescentes, arbustivas ou herbaceas das c:aatingas; A ELORA DOS pES DE SERRAS E SERROTES DO cuja vegetação embora mais densa do que na caatinga, é mais baixa e a herva IDL'IlOS variada e pouco desenvolvida. Ás vezes as arvores apresentam notavel crescimento. SERTÃO, A FLORA DAS YARZ.EAS BA[XAS E LAGOAS possue uma vegetação herbacea: rica em especie:; cujas flores são de agrad~vel odor e bellas. A FLORA DOS TABOLEIROS GOSOS DO INTERIOR ARENOSOS é pouca e enfezada; OU PEDIŒ- neste sitio NOTAS 285 floristico o' que caracteriza o seu aspedo são as cactaceas e bromeliaceas destacando-se o chique-chique, o cardeiro, o mandacarú, o cabeça de fmde, a macambira, etc. A FLORA DO LEITO ARE~OSO DOS RIOS, com abundantes moitas de resistente jaramataia (Thomaz Pompeu Sobrinho - « Esboço Physiographico do Ceará»). (Do « Annuario Estatistico do Ceará », dirigido pelo DI'. G. de Sonsa Pinto, 1922). 2. -- Noticia historica sobre as seccas No Ceará, como em todo o Nordeste, não ha sinão duas estações no anno: o inverno (estaçáo das aguas) e o verão (estação da secca). A primeira vite de fevereiro a junho, nos annos normaes, principiando com o solsticio de março. O sertanejo aguarda ancioso o dia de S. .Tosé (19 de Março) mormnnte se nada. annunciou á~ suas esperanças o dia de Santa Luzia (13 de dezembro). Em setembro, mez de fortes ventanias, caem neblinas ou pequenas chuvas; são as chuvas que o povo chama « de caju », por prepararem a £loração dos cajueiros. Em dezembro: nos anTlOs normaes caem pequenas chuvas ou, si o inverno é forte, grandes aguaceiros. O phenom€lLo da secca terni flagellado periodicamente o Ceará, apparecendo sempre, com intervallos muito irregulares; sua duração tambem tem variado de um a quatro annos seguidos. O Barão de Studart, na sua « Geographia ùo Ceará» (typ. Minerva, Fortaleza, 19:~4) dá o seguinte quadro das seceas havidas desde 1605: 286 NOT AS DURA.ÇÃO UNO 1605-1606 1614 1692 1711 1721-1725 1736-1737 1745-1746 1754 1777 -1778 1790-1793 1804 1809 1816-1817 1824-1825 1830 1844-1845 1877-1879 1888-1889 1898 1900 1903 1907 1915 1919 2 annos 1 anno 1 » 1 » 4 annos 2 2 1 anno 2 annos » 3 1 anno 1 » 2 annos » 2 anno 1 2 annos » 3 )} )} 2 » 1 anno 1 1 » 1 » 1 » 1 » I} PERIÜDO INTERJlE:OU.RIO 8 annos 78 29 10 11 8 8 23 12 11 5 7 7 5 14 :32 9 9 2 3 4 8 4 ). l> » )} ;) ;) ;) ;.) .) ,} » >} ,) » » » » » }) » » l) Do quadro exposto vê-se que a secca acompanha o Ceará desde o inieio de sua vida historica. Experimentou-lhe os terriveis rigores Pero Coelho de Souza, o chefe da primeira bandeira, vinda ao seu descohrimento. NOTAS 287 A de 1721-1725 extendeu-se ao Pia.uhy c sertões de Pernambuco e Bahia. A' de 1745 referem-se as actas de vercações da Camara de Fortaleza· o os escriptos do jesuita João Brewer. Foi tremenda a de 1790 a 1793, conhecida na tradicção popular por secca grande. Nunca vista, disse della Feo Torres, inaudita, chamou-lhe Bernardo Manoel de Vaseonoollos, a que deixou mms tradicções tristes disse Pompou, a m.ais extensa e fatal affirmou Araripe, a maior das seccas escreveu Abreu e Lima. A esta sobrepujou todavia, a todos os respeitos a catastrophe de 1877-79. Extensa, profundamente devastadora. foi com effeito a secca de 1790 a 1793, que Ayres de CazaI na sua Chorographia colloca nos annOB de 1792 a 1796; no entretanto, como acontecera na de 1777 que foi precedida de copiosos invernos de 1775 a 1776, chovera regularmente em 1789 e até o Jaguaribe dera cheia. Tristes recorcla,'ões deixaram igualrr..ente as seccas de 1824-1825 e 1845, a primeira deUas vinda em epoca de tremenda ('fise politica e guerra civil e acompanhada de epidemias, mormente a da variola; umbas, porém, dão uma mui pallida idéa dos horrores da qne se lhes seguiu, a chrismada pelo povo de secca dos tres oito. 1877 -78-7H representam o acumen da desolação e elos soffrimcntos da população cearense, o reinado da variola soh todas as formas e com intensidade nunca vista em paiz algum do globo, havendo o obituario de Fortaleza em 1878 se elevado a 57.780 NOTAS .nortes 24.989 Ú. conta de variola. Custou ao Ceará :l. secca de 1877-79 a ruina de toda a fortuna particular, o desapparecimento total da industria eriador!l, 180.000 mortos, cabendo 67.267 a Fortaleza, e 125.000 expatriados. O inventario da secca de 1915, em que a caridade do Arcebispo D. Manuel Gome:,; tanto sobresaiu, deu as tristes notas seguintes; 30.000 cearenses mortos, 42.000 emigrados, importação de cereaes no valor de 14.443 contos de réis, perda de 680.000 bovinos, 2.441.000 caprinos e ovinos, 211.000 cavallares, 112.000 asininos e muares e 243.000 suinos, tudo no valor de 95.000 contos. Sabido, como é, que o Ceará tem as suas riquezas na agricultura e na industria pastoril facil é avaliar em que condições ficOll após o flagello desse anno. O arUlO de 1919 regista a ultima crise climatcrica com que a natureza inclemente tem infelicitado o Ceará. Seus effeitos crueis estão bem presentes fJ. memoria de todos. (Barão de Studart oh. cit.). A chronica pormenorisada das seccas, desde a de 1877, tem sido feita pelo grande escriptor cearense Rodolpho Theophilo, tambem apreciado romancista e naturalista. a. - O Joaseiro e o Ensino I)ublieo Que o Padre Cicero Romão Bapti~:)ta nunca se interessou pela instrucção, e mais - que a tem embaraçado algumas vezes - pode o autor deste modesto livro affirmal-o com o seu testemunho pessoal. Em 1922, sob a presidencia do saudoso DI'. Justiniano NOTAS 289 Serpa, iniciou o governo do Ceará um seria movimento em prÓI do ensino primario. Como medida preliminar, levantou a Directoria de InstruGção Publica, com o auxilio das municipalidades, o {(Cadastro Escolar », serviço que reunia os dados de recenseamento das crianças de 6 a 12 annas, sua localisaçãa, oHerecimentos de casas para escolas, pensão a professores, indicação dos paes dos alumnos Eob programmas, horario!'; e ferias, etc. Todas as municipalidades participaram do movimento oom notavel enthusiasmo. Em todos os municipios se fez o serviço do Cadastro, e, num graride numero delles o serviço foi quasi perfeito. No Joase:ro, porém, foi impossivel leval-o a cabo. O Padre Cicero Romão como Prefeito Municipal, não só se desinteressou da questão: prohibi'.l que ali se fizessem as indagações necessarias I Considers.ndo as informações de sells auxiliares como exaggeradas ou tendenciosas, o autor deste livro, que occupava em commissáo o cargo de director do ensino, foi entender-se pessoalmente oom o Prefeito ùo Joaseiro. Nada pôde conseguir. NãO' conseguiu, tambem, como era de seu desejo, estabelecer nessa localidade um grupo escolar, e futuramente um aprendizado profissional. A's repetidas objecções do director do ensino, o Padre respondia sempre que as duas escolas existentes não tinham sua matricula completa, e que, portanto, seria inutil creal' mais escolas ... Entretanto, lugares muito menores, mais afastados de estrada de ferro, possuem desde 1923 grupos escolares e escolas reunidas funccionalldo regularmente. 290 NOTAS A proposito convem insistir ;lllui sobre um engano de informação contido nas interessantes conferencias do Dr. Paulo de Moraes Barros, sobre o Nordeste (Impressões do Nordeste Brasileiro) engano esse que o eminente patricia clesfez quando estampou em volume o seu notavel trabalho. O DI'. Paulo de Moraes fôra informado de que no Joaseiro havia 82 escolas particulares, e sincero como sempre, referiu-se a ellas, com enthusia.c;mo, quando deu él publico as ~maR impressões sobre a Méca do Cariry. Essa falsa informação serviu como o maior argumento aos defensores do Padre Cicero, na occasião em que tentou responder ás conferencias do Dr. Moraes Barros, na Camara Federal, o fallecido dl'. Floro Bartholom('lI. O engano era evidentissimo. Em 1922, quando o dr. Moraes Barros passou pelo Ceará, havia em todo o Estado apenas 205 escolas particulares. Em Fortaleza, cidade de quasi cem mil habitantes, era de 28 o l';eu numero. Como seria possivel apresentar o Joaseiro 82? Aliás, no seu discurso de defeza, o dI'. Floro habilmente fugiu sempre a qualquer affinnação peremptoria a respeito. Na estatistica publicada em 1922._ pela Directoria de Instrucção do Ceará, ha as seguintes notas sobre o Joaseiro: «População total do municipio, 22.077; população escolar (calculada, porque o Prefeito Municipal obstou o recenseamento) 2.758; escolas estaduaes, 3; matricula, 178, frequencia, 114; escolas municipaes, O; esco]a.<; particulares, O; matricula geral, 177; frequencia. geral, 114. Crianças em edade escolar frequentando escolas, 6 % ; crianças sem escolas, 940/ù ll. Pela mesma estatistica. se vê que os municipios com menor porcentag{'m NOTAS 291 de crianças em escolas eram os de 1p ~Ieiras (5 Ojo) (' Joasciro (6 Ojo). Essa é que é a verdade sobre as escolas da Méca do Cariry. Depois de 1923, o governo do Ceará estabeleceu 16 grupos escolares no interior do Estadû. No Joaseiro, porem', nada foi possivel fazer até agora. :¡'. - A intervençãü nü Ceará Quando os fanaticos do Padre Cicero ccrcavam a capital de Fortaleza, a Associação Commercial dessa Capital se dirigiu ao Coronel Setembrino de Carvalho, inspector da Região Militar que ahi se encontrava, tendo á sua disposição 1.500 homens do exercito, pedindo que interviesse de qualquer modo, para evitar a invasão da cidade. Sua resposta foi a scguinte: Il' Região da Inspecção Permarlente. Quartel General de Fortaleza, 27 de Fevereiro de 1914, N.o 91. Illmo. Sr. José Gentil A. de Car'Talho. D. Presidente da Associação Commercial do Ceará. Em meu poder o officio n.O 17 de hontem datado que me dirigiu a Associação Commercial, que V. Exc. preside e no qual me consulta si o commercia, na conjectura de uma invasão desta capital pelas forças opposicionistas ao governo do Exmo. Sr. Cel. Marcos Franco Rabello, pode contar com gamntias e seguranças por parte da força federal aqui estacionada. Em resposta confirmo o que disse na conferencia a que se refere V. Exc., isto é, que a força feùeral ga« 2J2 NOTAS f;lntirá o direito de vida e de propriedade sempre que for ameaçada e quando a autoridade estadoal for impotente para assegural-o. Bem r~rto é, porem, que, s'~ vier travar-se alguma acção nas ruas desta capital c !tre as forças belligerantes, muito diíficil ¡:erá, senão li uasi impossivel, tornar effeçtivas aquellas garantias, rois a intervenção da força federal neste momento critico IaJ-a-hia assumir o papel de um terceiro comt atente envolvendo-se em uma luda á qual ella deve s~r extranha. Assim sendo mandam a prudencia, o patriotismo e o sentimento de humanidade, que os elementos conservadores desta capital, façam convergir os seus melhores esforços no sentido de evitarem que esta cidade venha a ser theatro de uma cruenta Iucta fratricida de lamenta veis consequencias. Devem todos honesta e dignamente buscar uma hl'mula que neste momento se impõe, capaz d~ rcsolver efIicazmente a contenda politica que empolga este Estado e que tanto tem perturbado a v,idá politica, economica e social. A proposito posso affirmaI' a V. Exc. que a representação cearense no Congresso Federal, propoz (j,O Exmo. Sr. Cel. .Marcos Franco RabeIlo, um alvitre (apaz de solucionar a crise. Aquella representação l'ropoz a renuncia dos cargos de presidente e vicepresidente, membros da assembléa legislativa tIo Estado, de ambos os partidos e entrega do poder ao Governo Federal, que resolverá a situação actual como melhor aconselharem o seu patriotismo e grandes interesses do Estado, ficando assentado que o futuro presidente será um politico extranho á a.ctual conlenda, e que as eleições serão feitas com toda a li- 293 NOTAS berdade perante mezas organizadas pelas municipalidades eleitas em Maio de 1912. Aproveito a opportunidade para apresentar a V. Exc. os protestos de alta estima e consideraçáo. Saude e Fraternidade. Cel. Fernando Setcmbrino de Carvalho: dou fé. Fortaleza, 4 de Março de 1914. Pergentino Augusto Maia. » «Instrucções expedidas pelo SI'. Ministro do Interior e Justiça. Ao Exmo. Sr. Cel. Fernando Setembrino de Carvalho. Sr. Coronel. De accorda com o lleereto de 15 do corrente, que determina a intervenção do Govarno Federal no Estado do Ceará, nos termos do n. 2 do art. 6.° da Constituição da Republica, c vos investiu da qualidade de represe.ltante do mesmo nesse acta de exercicio da autoridade nacional, para o fim de restabelecer ali a normalidade do governo repul¡licano, a efficacia das leis e a seguranç.a das garantias de todos os direitos, tenho a satisfação de commun:'.car-vos as instrucções que devem servir de norma ao vosso procedimento no desempenho da missão con2iada á vossa oompetenci1l., patriotismo, integridade e zelo republicano. O fim da Intervenção, que é restabelecer o govemo repul:Iicano, radicalmente deturpado em sua applicação no Ceará, e o imperio das leis, adormer:ido na sua acção garantidora e~tá expressamente determinado no decreto que a declarou. Para praticamente tarnal-a effectiva executareis o seguinte: 1.0 assumireis o exercício do poder executivo do EMado, publicando um decreto declarando a VOS3ainvestidura nelle por força da Intervenção decretada a 14 do mez eorrentc e consequente escolha da vossa pessoa para effcctival-a em nome do governo federal; 2. no exer0 294 NOTAS CII~IO do poder executivo vos limitareis aos actos de ulministração indispensaveis para evitar a solução de ccntinuídade na vida do Estado, tudo de aec:ordo com a Constituição e leis nelle em vigor; 3. as nomeações para os lugares vagos ou que forem vagando em virÜ: de de exonerações que julgardes necessarias para o bom desempenho de vossa misgão, deveís fazer COllsiderando os nomeados em commissão; 4.0 mandareis lego proceder ao balanço no Thesouro do Estado, en· cl~rrando a escripta dos livros do mesmo e abrindo-se ¡DVa e especial durante o periodo da Intervenção; 5.0 providencíareis para a manutenção da ordem de accordo com as leis e com a autoridade c·om que vos achaes investido como Inspector da Hegião MiJitar, em virtude do acta do Govemo Federal, qne declarou o estado de sitio para esse Estado, empregando para isso alem da força estadoal, a força federal sob vosso commando. bem eomo requisitando o a.uxilio das forças de mar, ahi destacadas, para iilto iflstruidas pelo ministro da marinha; 6. a acção do Governo Federal nesse Estado não podendo ea-existir com a situação revolucionaria em que o mesmo se acha fareis dissolver e desarmar quaesquer grupos ,rregulares que existam ou se apresentem sob qual'Iuer nome, ou em qualquer localidade, o mesmo fa:œndo se julgardes conveniente com as forças da policia local, que podereis reorganisar; 7." na vo:,;sa qualidade de representante do Governo Federal no acta da Intervenção nesse Estado gosareis de livre franquia para vossa correspondencia pelo Correio e 0 Telegrapho Nacional; 8. assegurada a ordem e garantidos os direitos ahí feridos pela anornala situaçã.o 0 0 NOTAS 2!J5 em que se eneontra esse Estado, providenciareis acerca da reorganisação dos seus poderes legislativo e executivo, marcando do accordo com a Constituição e leis do Ceará, eleiç.ões para dentro do mais breve praso possivel, expedindo instrucções e praticando todos os actos indispensaveis para que as mesmas se realizem, assegurando completa liberdade de voto e regular e honesta apuração dos suffragio~,; 9.° quando terminada a vossa missão de representante do Govemo Federal no acta da Intervenção no Ceará, apresentareis ao mesmo, por intermedio deste Ministerio, a que ficaes subordinado, na qualidade de delegado do Governo Federal na Intervenção, circumstanciado relatorio dos actos praticados durante a mesma. - Herculano de Freitas, ministro da Justiça e NegoCios do Interior. » ,3. - Padre Cicero Deputad.o Sob o titulo « Crueldade e ridiculo que deviam ser evitados », publicou o diario « O CeLrá », de Fortaleza, em seu numero de ~ de abril è.este anno, o seguinte arti;:;o editorial: « O Ceará em peso ficou certo hontem de que o padre Cicero acceitou a sua candidatura para representante do Estado. O seu telegramma ao deputado José Accioly, por nós divulgado, afastou a ultima esperança de que o conhecido sa~erdote, em um assomo de bom senso, recusasse um mandato a que não pode, por motivos diversos, dar cabal desempenho. S. s. não só acceitou o honroso posto mas t.am- 296 N OT AS bem aproveitou a opportunidade para manifestar o seu resentimento contra os que se insurgiram contra essa idéa. Estando nós entre os que pensam dever ser a representação de um Estado confiada a sua elite intellectual e aos seus valores sociaes, enfileirámo-nos por isso na legião contraria á indicação do nome do chefe politico do Joaseiro. Comnosco está, nesse caso, a quasi unanimidade da poplùação cearense, o que não impede a victoria da insignificante minoria do outro lado. Sempre fomos, e continuaremos a sÔ-]o por muito tempo, governados por essa parceIla diminuta do povo, constituida pelos politicos profissionaes. A falla de organização das classes, it ignorancia das massas, a ausencia de imprensa independente, todos esses factores permittirão que os detentores da::; posiç'ões de mando continÚem imperturbaveis a dirigir a coisa publica sem consultar o scntir popular. Pouco lhes importam as sympathias ou it execração da coIlectividade; o que lhes interessa é o monopolio dos cargos de ande possam eternizar o seu prestigio. De nossa parte, estamos certos de que os cearenses não nos farão a injuria de suppõr que os motivos determinantes da nossa attitude sejam dicta.dos por interesses partidarios ou por affeições ou inimizades pessoaes. E' -nos indifferente que o padre Cicero pertença á facção a ou b, e da sua pessoa jamais reeebemos scnão provas de attenção cavalheiresca. Distinguimos, porém, o homem publico do parti- ~OTAS 2\)7 cular. Devido a essa estranha confusão é que cada aggremiação politica que attinge o poder, divide entre os seu parentes e amigos do peito os cargos por sua natureza destinados aos mais capazes, aos mais dignos. Examinemos a candidatura do padre Cicero á luz desse criterio e a conclusão que se impÔe aos seus maiores admiradores é que, mais uma vez, fomos mal succedidos Ita escolha dos nossos representantes. Possúe o candidato conservador encqia physica e capacidade intellectual para desempenha.r com effÏciencia o mandato que se lhe vae confiar em nome elo povo? Evidentemente; não. Octogenario, de saúde profundamente combalida, faltar-lhe-á talvez a força para emprehender uma viagem ao Rio, onde tem de exercer as suas Ùmcções de nosso mandatario. Sob o ponto de vista cultural, por mais baixo que esteja o nivel da Camara, s. s. não está em condições de representar a inteHectualidade cearense. De inteHigencia não acima do commum, tendo a illustração theologiea dos seus pares, o pastor do Joaseiro, por ter confinado toda a sua vida na estreiteza do meio sertanejo, é hoje um cerebro anky los ado, :?ovoado Je imagens do fana.tismo e do cangaceirismo. Se, á semelhança do general Potyguara, o novo deputado pretende ficar-se por aqui, sem tomar parte nos trabalhos legislativos, nós temos o dire:ito de protestar contra essa transformação da bancada cearense em asylo de invalidas. Se, ao contrario, concentrando as suas ultimas energias, s. s. fôr ao Rio, assiste-nos tambem a razão ~OTAS de salientar o ridiculo que recairá sobre todos nós oorn a recepção do povo carioca ao legendario chcfe de fanaticos. Imaginemos, por instante, a scena grotesca que será o desembarque, na capital do paiz, do novo emis::;ario do povo cearensc. Annunciada por todos os jornaes a sua vinda, a população accorrerá ao caes para vêr a preciosidade que lhe envia o Ceará.. A figura do padrc, com o seu longo bastão de pastor de cinema, ao lado da beata «J{ocinha », de quem jamais se separa, constituirá «um numero », servirá de pasto aos jornaes e revistas cariocas, durante uma semana. E quando, sempre de bastão, sempre acompanhada da beata, fùr ao Cattete retribuir os cumprimentos <10 chefe da nação a que naturalmente chamará. «meu camaradinha », então a scena será de um pittoresco í rresisti vel. Tudo isso só não prevêe!Il os politicos do Estado porque a esses é indifferente o conceito em que possamos ser tidos. Se mais zelosos pelo nome do Ceará e mais amigos do padre Cicero, os chefes dos nossos partidos convenceriam ao velho sacerdote, para cuja vaidade agora appellaram, que se retrahisse na sua modestia joaseircllse e terminasse pacificamente os seus dias, entre os fanaticos, seus filhos predilectos, e os bandoleiros, nutridos da sua tolerancia.» INDICE Prefacio 7 CAPITULO I ç:ão - l" Em caminho. )fergull,anùo no pnssado - O Nordeste, spio yi,'o da tradi- : Era assim no tPll1PO do Imperio ... - - ùe um ùrama formidavel e sempre rcnovaùo ;la, ciùaùe <lo tempo presente, - ao Jousciro " De.;rsprfos De Fortaleelo C-nriry, ar- raial de aUlanho. CAPITLLO II - 31 A Méca dos sertões Seenas e quadros de fanatismo - (;m ",uuinho pontilhado de cruzes - A íarandula dos penitentes - ,Vae ..iyo ou morto '! - Il\conscientes semeaùores ùa morte c d,,- loucura. Dois traços a respeito ùa natureza da regiiío - O Corir)'. um caso de insularidade ùas terras hahitadas, CAPITULO III - Transpondo 47 as trincheiras.,. As defesas ,lo antro - Cru fosso de tres legu,,-s. ah)fto l'lu seis dias - No seio da )[éca - As casas dos romeiros por dentro c por fÔra. mi.:¡cria e na (l¡)r - CAPlTlJLO IV - Uma chiade nascp.nte, emmohlurüda. A irrrcja dos c: milagres ~. na 61 No reino da insania Em frente a casa do • Padrinho, . - :'I[ati?es ùe ff ( crcùulidaùe - Sin!)'ul,,-ridades de um culto SCIII ritual - Oração expressiva _. O ' Beato da Cru? - - Seen"-s de sahbnt no sol <10mcio-,lia .•. - Acolhido ao tabernaeulo, CAPITULO V - < Um homem l Ecce lIomo l. ;:;-t,o, uma sombra - Talvez RetrMo ph)'sico do • Padriuho, personalidade nio , '., - - Opiniões dh'ersas ï5 c esboço de su"- singular - O 'luP. diri", um especialista, c já o mial¡¡re", Sa.nto ou c demo .. 300 I:\DICE CAPlTrI.O YI - O • alter,ego , .,, 107 ..I rena ne dyer dl'rnais", - ('n: capitulo diffiril ne escre' vcr'se - O inrnho r elo P.l(lrC (' hbtoria de 3eu llominio ... TC''>{C'Illunhn fidedig-no. 1 CAPITI1LO VII - Os rnilagrrs, .. 117 .: ~ n milagre (tlH' torna H a.utoritlndr. patente ... 't - A bent:1. Marja de Araujo (' sell!=! rnil:1gre~ -- 'l'ransf()rma-~(' f'I1l ·':ln~llp. rubro I' palpitnntc a ho~tin com;af{radu ... - Repprf\l1s"lão tio plH~nomPJlo fi foll:Lq int'''rprrta.çf¡eS - A a('~'ão (]e' D. Toaquim Vif'ir1-, bispo dI) Cf':trá - ()~ Co milagre ...•~ m('norf'~..• CAPITULO VIII -. O «Boi Santo> 133 Um caso (Ir totpmismo -: São, sÎ1nples t3bÚ ... Uma proI1lc~.sa curio~n. P. Reu não Illeno~ curio.;;o c1("'('nlnc~ - A ~antifi<':lç;to no boi, mila.grf"~. frrnJlcl·"'>z:l. flo ùr(,~Hlen(~i.l ... CAPITULO IX - A sedição de H113 - Causas 14ó Illscripçùes "obrcpostas de luto " de .lûr - Hollie mihi eras t ihi, ., - Uma olygarchia. banida e um go\'erno promissor - Cn.mpa.nha contra o bnnditi!"mo e sua ...i eonsC'qll('nciu~. -~ Rcllexo na politi"a de Pilliwiro :\Iachado - and,' 'o vê quo a corda sempre arreurnta ·'lo Ind,') m:ti~ fraco ... CAPITULO X - A sedição - Inicio da luela 157 De uma corncrlia, mal ensaiada, a. uma. sanguinolenta. tra· ¡.:el.ia - O governo ""tm-leR',,1 <le Joaseiro, officidizallo Ilelo tcl"gl'llpho", - l'rimeirn tentativa do R'ovemo lel{nl parn ~uLocar 3. S('(liÇ;lO - O milagre tIas trin,~heira~ (~on!=ltruida9 numa Só noit<· N, S .• bs Dores falou". - A retir:l<la, CA PITULO XI - A sedição ' O frustrado asseùio á ~léca 1ï i) A seg-ul1(la expcùic;tlo -- Cmu- cnI"Ícatllra da campanha. de Canudos - I'lano q\lC peccava l'or S\la mesma s.Ulplicidaùe - :E IIlni~ difficil sitiar que atuc.'a.r ... - O famoso canhão da lueta, -- Tl\p-xplicavel retirada - '" l/a,lcÎí'O ¡orto! manei,'o ptio .•• Meu P"dt'iul Ch-ço r. qHt'lil ganha!» - O primciro trophl~o ùa .:guerra. sunta-. CAI'ITIJLO XII -- A Hedição - A marcha sobre Fortaleza. Da l guerra sn.ntn it. lneta. politica, COIll escala pelo -l enngal;o ~ - Saque.., e <1rpreda.()ões .- 1larehan<lo lJdos scrtõci f~ID flor .•• - Tentativa. tlo g"(Wer:10 ICRa) para ù~tcr a Ul:1relm d09 se.liciosos - Sacrificio iuutil de bravo militar O ccrco (le Fortale7.a - E~t.aùo de sitio (' illten"rll('ão - As responsabilidaùes do go"orna da ¡¡cpublica. ,J 1\J1 301 INDICE CAPITULO XIII - A sedição. 209 conseql1encias Dnas po.lo.vrn< "obre os partioos politicos do Ceará -- Em que se rC~Umf' o prestjgio do Patriarcha <10Joaselro: votos legitimos ou :'ifles P,ffi mãog adf>xtraoos? - As doloroqas cous('qucneiD~ );ociaes ,ln seõjçã.o - Os seu~ t~rriveiR ~fff'i· to~ cconnmioos e ùe pf'rturbo-çào nùministrativu 't Lam· fJP,lO expocnte d[l sitnaçrw actual do .Tonse-irn. ,"I, CAPITULO XIV -- O Joaseiro 219 no folk-lore A ~rnnde aIm" do po\'u, agitada e confuso. - Um llO'IO cyelo o. detprminar-se no folk-lore elo l'orùe,te Lendas, c3nçôeR fi: prrees do .Jo:1s~iro Praticas do~ p('n:t(·nt{'~· '(> ,heatns ~ - ",Jlleu radin¡ Circo é o ,"ci do lil/wdn jl¡te:ro •.• ;J - ~ Ratyr;ls" :job forma rlE" oração - Um ('r<,ùo·' origina lis~jmo. Q. 'f CAPITULO XV -- Sonclusão . 21j3 Um cl:l.rnur que se levanta ... Depoimentos insu"peitos - As responsabilidades da. Naçfw - O J03-.'Jeiro, um indice ùe incultnra ~eral - Quaes o. remedios? Considerações talvez opportun:!s - Alpbabeto e cultura, a¡phabeto ., adaptaç,LO A r.é onùe nos podem levar as consideraçÙes gemes ... O problema bra.sileiro <le cultura Dilo é. /lr .•te momento, o problema do alphabeto. NOTAS. 2i9 l. A fiara. do Ceará - 2. Noticia historica sobre as seccas 3. O ,Toa.~l!iro e o emÚllo publico - 4. A inten·er.ção llO ('e['lrá - 5. Padre Cicero ùeputado.