1 A DISTINÇÃO ENTRE OS MANDARINS1 Pierre
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1 A DISTINÇÃO ENTRE OS MANDARINS1 Pierre
[TRADUÇÃO NÃO AUTORIZADA PELO AUTOR, PARA USO RESTRITO DOS ALUNOS DO PROF. FLAVIO HEINZ (PPGH-PUCRS) - NÃO CITAR] A DISTINÇÃO ENTRE OS MANDARINS1 Pierre-Étienne Will Bourdieu às vezes se aborrecia (ou se lamentava por fazê-lo)com a maneira pela qual alguns conceitos-chave popularizados por sua obra haviam passado para o domínio público, e mesmo para a linguagem comum - onde então eram utilizados sem nenhum rigor, e, sobretudo, sem referência à pesquisa e à démarche intelectual em que foram gerados. Assim, por exemplo, aconteceu com os conceitos de “habitus”, “campo”, “capital” (social ou simbólico) e, é claro, “distinção”. Ora, longe de propor uma análise da obra de Bourdieu ou de sua influência, é exatamente isso que me preparo a fazer aqui. Vou me apropriar de uma dessas noções passe-partout (ainda que tudo seja relativo) que ele deixou em sua passagem e ver como ela funciona, ou melhor, em que ela pode servir, em minha própria área de pesquisa. Esta se encontra extremamente afastada tanto da sociologia quanto do mundo em que vivemos e de suas “lutas” – outro termo onipresente em Bourdieu, embora seja verdade que ele não o tenha inventado –, já que se trata da história da China moderna. Mesmo sem ser, é claro, totalmente ignorante dos questionamentos e da démarche intelectual de Bourdieu, com quem compartilhei e mesmo realizei alguns projetos durante o breve período em que nos conhecemos, sem tampouco ignorar os trabalhos nos quais elaborou e desenvolveu o conceito de “distinção” – uma vez que é disso que se trata –, não me furtarei a utilizá-lo com uma certa liberdade, como veremos em seguida. Afinal, é também isso que faz a grandeza da personagem e de sua herança: além da obra científica monumental que deixou, existe Uma espécie de “Bourdieu para todos” – digo, acessível ao não especialista –, talvez mesmo um “Bourdieu popular”, quando não apenas um tipo de sensibilidade específica aos fatos sociais, quase instintiva, que ele próprio moldou e que, pude constatar com freqüência, está difundida nos lugares e nos meios mais inesperados. Até onde posso julgar, a influência da obra de Bourdieu sobre a sinologia contemporânea é muito limitada. Quero dizer que, fora alguns raros autores que o reivindicaram especificamente como inspiração, sobre os quais direi uma palavra, esta influência é percebida essencialmente nas publicações anglo-saxãs, por algumas citações tomadas de seus livros traduzidos para o inglês, citações não necessariamente fora de contexto ou gratuitas, mas que não são indispensáveis, intelectualmente falando: no limite, trata-se de um exercício um pouco forçado ao qual nossos amigos americanos nos foram tornando familiares, na medida em que apareciam por lá traduções de Foucault, Derrida ou Habermas, por exemplo (ainda 1 Originalmente publicado em ROCHE, Daniel & BOUVERESSE, Jacques (org). La liberté par la connaissance. Pierre Bourdieu (1930-2002). Paris: Odile Jacob, 2004, 215-232. 1 que Habermas tenha, durante alguns anos, produzido um pequeno abalo sísmico no mundo dos historiadores americanos da China moderna2). Entre as principais exceções que conheço está o livro não de um americano, mas de um britânico, Craig Clunas, que leva o belo nome de Superfluous Things, e um subtítulo que nos deixa com a pulga atrás da orelha: Material culture and social status in Early Modern China (1991).3 Historiador da arte e conservador de museu, Clunas se inspira diretamente em A distinção, de Bourdieu, para se interessar, com muita engenhosidade e erudição, por um problema de fato central neste último livro, o dos estilos de consumo (e, primeiramente, do consumo cultural) e dos discursos que estes suscitam, como marcadores de diferenciação social e, também, como indicadores dos movimentos que percorrem a estrutura social. A região e o período de que Clunas se ocupa – as prósperas províncias do Yangtzi inferior, da metade do século XVI à metade do século XVII – são incontestavelmente os mais refinados que se pode conceber no plano da cultura material. São também os mais obcecados pela distinção social, em função de uma grande proximidade e de uma imbricação inextricável de interesses entre uma classe letrada que se prevalece de uma tradição longa e gloriosa, e de uma classe mercantil sobre a qual, garanto, poderíamos dizer mais ou menos a mesma coisa, sem falar, é claro, de seu enorme peso econômico; ambas extremamente estratificadas. O que Clunas finalmente analisa neste livro, através do tema específico do consumo de luxo e da cultura material, são as conexões múltiplas entre capital econômico, capital cultural (ou simbólico), capital social e acesso ao poder.4 Encontramo-nos, então, efetivamente, em pleno Bourdieu. Mas é sobre outra coisa um pouco diferente que irei falar: não tanto de estratégias de distinção no seio da elite sócio-econômica (e, além disso, de uma elite em constante expansão e com grau elevado de mobilidade social, com suas velhas famílias e seus novos-ricos), mas das diferenciações que operam no interior de um setor desta elite, que se convencionou chamar “mandarinato”. Para começar, o termo mandarinato coloca alguns problemas de definição. O nome, ele próprio, não tem nada de chinês uma vez que se originaria de um termo em sânscrito significando “conselheiro”, de onde teria passado ao malaio e ao português antes de ser aplicado pelos primeiros visitantes europeus, em fins do século XVI, com o sucesso que conhecemos, aos membros da administração chinesa. Para esses primeiros missionários, os mandarins são, portanto, funcionários. Nos clássicos da literatura jesuíta sobre a China, com poucas exceções, os mandarins talvez nem sempre sejam irrepreensíveis, mas vistos coletivamente servem a um sistema admirável com dignidade, com grande sabedoria e manifestando uma idéia elevada de 2 Falo dos debates que se seguiram antes e depois de 1990 em torno da noção de “esfera pública”. Ver sobre isso Yves Chavrier, “La question de la société civile, la Chine et le chat du Cheshire”, Études chinoises, 14, 2 (1995), p.153-251, sobretudo p.158-159 para as principais referências. 3 CLUNAS, Craig. Superflous Things: Material Culture and Social Status in Early Modern China. Cambridge: Polity Press, 1991, em particular o capítulo 2 e 3. 4 Outros autores se interessaram pelos fenômenos da distinção sociocultural (mas sem se servir dessa noção) do Jiangnan sob os Ming: por exemplo, Miyazaki Ichisada, “Mindai Sô-Shô chihô no shitaifu no minshû – Mindai-shi sobyô no kokoromi” (Mandarins et masses populaires dans la région de Suzhou ET Songjiang à l’époque dês Ming) In: MIYAZAKI, Ajia-shi kenkyû, vol.4. Kyoto: Dôhôsha, 1975, 321-360; SMITH, Joanna Handlin. “Gardens in Ch’i Piao-chia’s social world: wealth and values in late-Ming Kiangnan”, Journal of Asian Studies, 51, 1 (1992), p.55-81; MESKILL, John. Gentlemanly Interests and Wealth on the Yangtze Delta. Ann Arbor: Association for Asian Studies, 1994. 2 sua missão. Aquele era, afinal, o que não se tinha medo de nomear, “um governo de filósofos”5; e é, bem entendido, essa aliança de poder, saber e competência ideológica que define, em primeiro lugar, o mandarinato. O tom, pode-se perceber de passagem, muda notavelmente – ainda que também haja exceções – com os missionários da segunda geração (os do século XIX), aos quais se juntaram negociantes, soldados, diplomatas e outros aventureiros. Sobre os funcionários do império, o missionário protestante Gutzlaff escreve, por exemplo, em 1838, que “mesmo que sejam mandarins, permanecem chineses no sentido pleno do termo, com ainda mais baixeza e esperteza”6. Mas são sempre mandarins – isto é, no uso que se fazia à época, que permaneceu popular e que utilizo – os administradores que pertencem aos escalões superiores do aparelho de Estado (em oposição à raia miúda de subalternos), saídos do meio superiormente instruído dos letrados e que chegaram onde se encontram graças às suas qualificações acadêmicas – ao menos em princípio, mas, como veremos, é um pouco mais complicado, e, de fato, é nesse nível que intercedem certos efeitos de distinção no interior do mandarinato. Em todo o caso, situam-se socialmente à distância do vulgum pecus, beneficiando-se de diferentes vantagens suntuárias, visualmente marcados por suas vestimentas e certas insígnias, como esses célebres botões de chapéus sobre os quais os tratados europeus farão a devida referência uma vez que é isso o que permite repertoriá-los na hierarquia, etc. E eu acrescentaria ainda que essa casta mandarim ultrapassa, amplamente, o efetivo de funcionários na ativa, pois ela inclui qualquer um que possua o status exigido e a ambição para entrar na administração (e é raro que, mesmo considerado como distinto, se tenha o status e não a ambição), portanto, os potenciais funcionários. Ela inclui também os números ex-funcionários, em licença ou aposentados, que continuam sendo líderes muito influentes no seio da sociedade em que vivem. Eu citava Clunas e vou agora mencionar outro autor, na verdade muito diferente, que também encontrou em Bourdieu conceitos e formulações que influenciaram profundamente sua análise da sociedade chinesa, ou pelo menos das elites chinesas. Em seu Zhi, filósofo maldito, publicado em 19797, Jean François Billeter se esforça para dar conta dos problemas que acometeram o herói de seu livro – um funcionário letrado de relativo destaque na segunda metade do século XVI, que conhece um destino trágico – em termos de inadaptação ao que chama “sociedade mandarim”, e mesmo em termos da recusa pura e simples de suas normas, e, mais precisamente, de suas hipocrisias. Citando então o Esboço de uma teoria da prática sobre a noção de capital simbólico, Billeter lembra que o capital simbólico é “conversível em capital econômico, ao mesmo tempo que faz aparecer o capital econômico como secundário, subsidiário, não essencial”, que ele “dissimula ou reprimindo o interesse econômico”, etc. Ora, qual é o capital simbólico dos mandarins? É, nos diz Billeter, “o saber e as qualidades morais 5 A noção aparece, pela primeira vez, numa versão das memórias do Padre Ricci publicada por Nicolas Trigault e amplamente difundida na Europa no início do século XVII. Cf. GERNET, Jacques. “Pour une traduction em anglais des Mémories de Matteo Ricci”, In: FORTE, Antonino & MASINI, Federico (Éd), A Life Journey to the East. Sinological Studies in Memory of Giuliano Bertuccioli (1923-2001). Kyoto: Scuola Italiana di Studi sull’Asia Orientale, 2002. PP.149-164 (p.154). 6 GUTZLAFF, Karl. China Opened, or, A Display of the Topography, History, Customs, Manners, Arts, Manufactures, Commerce, Literature, Religion, Jurisprudence, etc. of the Chinese Empire. Londres: Smith, Elder & Co., 1938, 2 vol., p.253-254. 7 BILLETER, Jean François. Li Zhi, philosophe maudit (1527-1602). Genebra: Droz, 1979, sobretudo páginas 74 a 98. 3 que lhes são próprias”; e se trata de um saber que reúne tudo e que não admite um saber concorrente, logo (poderíamos dizer), a interpretação da natureza humana que ele oferece e as conseqüências éticas e políticas que daí resultam têm, na China, o lugar daquilo que chamaríamos “pensamento único”. Ora, mais uma vez, “esta justificação pelo saber permitiu que se ocultasse de forma eficaz a natureza econômica dos privilégios mandarins”. É essa pretensa ocultação dos privilégios econômicos, tal como afirma Billeter, inspirado em Bourdieu, que me parece colocar um problema. Mesmo reconhecendo as tensões entre a beleza do discurso e os constrangimentos da vida real, Billeter segue fortemente tributário dos textos mais ideológicos produzidos pelo neoconfuncionismo: textos nos quais se trata, com efeito, de desprezar não apenas as riquezas, mas também a necessidade de se ter de geri-las, ainda que para servir o Estado; e mesmo, em alguns casos, se trata, simplesmente, de desprezar o poder. O grau zero de engajamento público – o eremitismo – é de fato o grau supremo da distinção: permanecer escondido em seu canto seja por aversão, asco aos compromissos, seja por simples dandismo, quando todo o mundo, o imperador à frente, quer lhe confiar o governo. De qualquer maneira, o mandarim de Billeter é um tipo ideal que se depreende de um discurso bem circunscrito, e de um discurso que – é preciso admiti-lo – tem efetivamente muita presença – mas, apesar de tudo, mais ou menos presença segundo as épocas e os contextos. E, em certas épocas e em certos contextos, não somente não se oculta o interesse econômico, como não se fala de outra coisa. Um pequeno desvio pela história me parece importante, antes de evocar essas coisas. A origem do mandarinato, em sua definição convencional (e limitante) de “funcionáriosletrados” – letrados formados nos clássicos que obtêm acesso ao poder após passarem nos exames – remonta à época dos Song, mais exatamente ao século XI. E, de fato, foi trabalhando com textos datados da emergência desta burocracia mandarim no século XI, há muitos anos, em companhia de meu colega Christian Lamouroux e de alguns outros, que a noção de “distinção” se impôs a nós: ela se impôs como uma ferramenta particularmente eficaz para compreender as trajetórias perseguidas por este grupo de homens novos, bem diferentes entre si, e por vezes separados por profundos antagonismos políticos, com o propósito de reforçar e de legitimar seu monopólio sobre o governo do império. Essas estratégias são intelectuais, culturais e sociais. Os novos mestres – poderíamos dizer –, os novos proprietários do aparelho de Estado, devem a todo preço se distinguir, enquanto homens de cultura cujo saber se relaciona diretamente aos antigos – e somente enquanto civis –, dos militares que haviam dominado as posições sociais superiores durantes os dois séculos que precederam ao advento dos Song, e de quem, infelizmente, se necessita mais do que nunca, no século XI, para defender um império permanentemente ameaçado por poderosos vizinhos. Da mesma forma, eles precisam distinguir-se das antigas aristocracias, valorizando as competências e as instituições (a começar pelo sistema de exames) que fazem deles uma meritocracia, e orgulhosa disso. Mas, no interior mesmo deste novo grupo – no “campo” atravessado por lutas que ele constitui, como teria dito Bourdieu, lutas por vezes implacáveis –, as distinções são inúmeras, todas conectadas, no fim das contas, à política e ao poder: distinção entre vulgaridade e elegância nos comportamentos, entre conformismo e não-conformismo na vida social, entre profundidade e superficialidade nos saberes, entre visões dos antigos e submissão à moda 4 literária, entre visões técnicas e ideológicas do governo, entre moral e economia, e ainda muitas outras. O que quer que seja, é da extraordinária vitalidade desse século XI que emergiu, na China, o mandarinato que por vezes chamamos “moderno”, destinado a dominar a sociedade até o final do império, tal como o definiram, particularmente, os historiadores japoneses, os quais não utilizam, é claro, essa palavra, mas sim o termo chinês, na verdade intraduzível, de shifadu8 O mandarinato dos shifadu talvez tenha conhecido seu apogeu na segunda metade dos Ming (nos séculos XVI e XVII), na época, portanto, de Li Zhi, o maldito. Com freqüência, tomamos esse discurso que o mandarinato tinha sobre si próprio, e que alimentava seu capital simbólico, sob o signo da hipocrisia. Ora, entre essas pessoas o discurso desinteressado, que de fato ocultava os constrangimentos materiais, funcionava sim até certo ponto, mas havia em seu modo de vida e em sua visão da sociedade outro nível, muito mais pragmático; e, quando olhamos aí de perto, percebemos que se passa de um nível a outro com a maior facilidade. De fato, para todo mundo, a começar pelos próprios interessados, aspira-se às funções públicas não apenas no propósito de “servir o mundo”, mas também porque tornar-se funcionário é considerado como o meio, por excelência, para aumentar seu capital econômico, direta ou indiretamente. Fora alguns ideólogos fanáticos e alguns originais, mal vistos, aliás, no meio, o conforto, possivelmente a riqueza, é ao que aspira todo burocrata, e o fato é que, sobre isso, se pode obter as melhores justificativas na moral confuciana: fazer sua família, seu clã e sua sub-prefeitura natal tirarem proveito dos dividendos econômicos do serviço do estado é engrandecer o prestígio de seus ancestrais, é respeito filial. Mesmo os mais austeros entre os funcionários, aqueles que se têm como modelo a seus colegas, o dizem: voltar de bolsos vazios é perder a face; mais uma vez, não é o indivíduo que está em questão, é toda a vasta linhagem da qual ele é um representante eminente, posto que mandarim. Mas uma vez isso dito, é preciso reconhecer que há muitas distinções possíveis na maneira de se ganhar dinheiro e também, aliás, de se falar sobre isso; e é aí que os fatores como a antiguidade do capital social acumulado têm sua importância. Como todos sabem, o mandarinato que se constituiu sob os Song possui o mérito de ser aberto. Não é o nascimento que conta, mas o mérito, e todo homem comum suficientemente talentoso e trabalhador (e de preferência tendo alguma base econômica, mas isso não é obrigatório, como o demonstram muitos percursos individuais) – mesmo a pessoa mais humilde –, pode ingressar nas fileiras da classe dirigente: os exames mandarins estão aí para isso. O paralelo prometido por nossa escola republicana não pode deixar de ser notado. A capacidade de absorção da elite mandarim é o que, de fato, lhe permite negar que se constitua em “classe”, no sentido sócio-econômico do termo (no sentido dos marxistas chineses, por exemplo, que quiseram associá-la à classe dos proprietários fundiários). Mas é no nível do acesso e, em seguida, da integração cultural e social, e da apropriação de símbolos, que os elementos de distinção, sobre os quais Bourdieu falou em abundância – em relação à nossa sociedade, no livro do mesmo nome e alhures –, intervêm massivamente. 8 Trata-se sobretudo da escola dita de Kyoto, cujo fundador foi Naitô Torajirô (1866-1934) e da qual Miyazaki Ichisada (mencionado acima, nota 3) foi um eminente representante. 5 Dito de forma sumária, há aqueles que nascem membros da elite dirigente, para quem aquilo que “distingue” na cultura e no habitus é um dado, que se trata de considerar como normal, como um tipo de “essência”; e há aqueles que se tornam membros da elite dirigente, tendo sucesso nos exames – mas não apenas desta maneira, como veremos na seqüência –, e para quem resta um longo caminho a percorrer antes de poder tratar os primeiros de igual para igual, um caminho que pode levar várias gerações. Em conseqüência disso, uma das questões que se colocam ao historiador é aquela do grau relativo de homogeneidade sociocultural do corpo de administradores em uma determinada época – a natureza do “campo”, as linhas de força que o atravessam, as oposições mais ou menos significativas que aí encontramos. Ora, houve enormes variações durante o segundo milênio do império, (que recobre mais ou menos a história do mandarinato), e, particularmente, ao final desse período; e, em função disso, os fatores de distinção mudaram muito. Os autores que falam em bloco da classe mandarim ou do governo dos shifadu, desde os Song e até o final do império – como os historiadores japoneses que eu mencionei antes –, simplificam demais, mesmo havendo uma indiscutível permanência nas representações e nos discursos. Sumariamente, no século XI temse uma profissão que se constrói e que, justamente, busca distinguir-se das antigas aristocracias militares; e este processo pode ser considerado como mais ou menos concluído já no período dos Song do sul, nos séculos XII e XIII. No final dos Ming (logo, à época das primeiras descrições dos missionários) tem-se um meio bem mais homogêneo que sob os Song, e, sobretudo, bem mais instalado em seus habitus. Isso se explica, em parte, pelo quase monopólio que exercem então os titulares do prestigioso doutorado sobre os postos da hierarquia regular (em oposição às funções subalternas); mas isso se explica igualmente pela oficialização de uma doxa – de uma ortodoxia intelectual – admitindo poucas variações desde o início do século XV. Por outro lado, depois da conquista manchu, portanto após 1644-1645, as coisas mudam completamente, e elas ainda irão variar muito até o final da dinastia, que, como se sabe, é também aquele do regime imperial, de uma maneira interessante para o tema que nos concerne. A sociologia do funcionalismo sob a dinastia manchu dos Qing é, com efeito, muito mais complicada do que jamais havia sido (salvo talvez durante a época mongol, mas se tem então um sistema bastante diferente), e isso mesmo que os “mandarins”, na definição tradicional do termo, continuem a dominar amplamente os níveis médios e inferiores do aparelho, sobretudo na administração territorial. Ela é mais complicada por que se vê aí, lado a lado, gente cuja origem, formação e percurso não têm, por vezes, grande coisa em comum. Assim, continua-se tendo os letrados chineses (digo, etnicamente chineses) de formação tradicional, mas também chineses chamados “das bandeiras”, vindos das famílias chinesas aliadas aos manchus antes da conquista e integrados à estrutura militar servindo diretamente o regime, e que, com freqüência, não possuem outra qualificação acadêmica que um título de estudante obtido contra pagamento (alguns subiram muito alto na hierarquia, sobretudo no século XVIII); há também manchus praticamente desprovidos de qualificação acadêmica – no início se encontram inclusive alguns iletrados –, mas que possuem, em princípio, qualificações militares, e que, como membros da etnia conquistadora, têm, em muitos aspectos, as posições mais elevadas; por outro lado, outros manchus (ou mongóis) receberam uma educação letrada chinesa, foram aprovados nos exames civis e seguem uma carreira burocrática convencional – eles são, portanto, mais integrados à elite tradicional, de forma quase exagerada, sem, 6 contudo, renegar seu pertencimento étnico nem os valores marciais que os caracterizam; e, sobretudo, tem-se também, em número cada vez mais elevado, a partir do início do século XIX, chineses e manchus que, graças a contribuições financeiras, obtiveram o título de estudante imperial, e que se inscrevem em listas de candidatos a uma nomeação, em seguida a um posto real, e que seguem uma carreira não necessariamente limitada aos níveis inferiores da burocracia. Eis então os “mandarins” com os quais missionários e outros europeus, entre fins do XVII e fins do XIX – desde que chegassem a encontrá-los –, se deparavam, e sobre os quais falam bem ou mal, mas quase sempre como um grupo homogêneo. Ora, como sugere a enumeração acima, havia muitas distinções a fazer, simplesmente muita distinção. Eu não falo aqui de distinções próprias a toda organização burocrática, quer dizer, essencialmente aquelas calcadas na hierarquia: do ponto de vista do poder de que se dispunha, da influência exercida, da superfície social e dos privilégios que a etiqueta conferia, é certo que a distância era incomensurável entre o universo dos altos dignitários que aconselhavam o imperador, os presidentes de ministérios, sátrapas provinciais, de uma parte, e magistrados de subprefeituras e seus assistentes, de outra, mesmo que todos fossem, de uma maneira ou de outra, mandarins. Estou falando dos elementos socioculturais da distinção, que não recobrem de forma alguma os elementos hierárquicos. O primeiro desses elementos, ao qual fiz alusão há pouco, é o dinheiro, ou, antes, o discurso sobre o dinheiro. Como todos sabem, há aqueles que possuem e aqueles que tentam possuí-lo, e entre aqueles que possuem existe o que se chama, em inglês, o velho dinheiro e o novo dinheiro. No mundo mandarinal (e aqui estou falando daqueles que integraram o aparelho de Estado), essas categorias, algo sumárias, implicam todos os tipos de distinções, primeiramente no que concerne à atitude dos interessados em relação às possibilidades de enriquecimento mais ou menos legais, e mais ou menos legítimas, tidas como oferecidas pelos postos administrativos. Não tenho aqui como desenvolver este problema infinitamente complexo, senão para especificar que fora um curto período, pela metade do século XVIII, sempre esteve fora de questão viver normalmente e fazer frente às suas despesas profissionais, a fortiori deixar algum dinheiro de lado, contentando-se apenas com seu salário oficial9. Assim, existiam fontes anexas, mas não oficiais, de renda, mais ou menos aceitas pelas populações, e, aliás, de um montante bastante variado segundo as localidades (era um grande tema de conversas na profissão); e, além disso, era um tema de ética profissional, de saber se e até onde seria possível avançar nas práticas de squeeze, de tráfico de influência, mesmo de corrupção pura e simples, para as quais havia tanta gente a encorajá-los. A integridade absoluta (em outros termos, contentar-se com seu salário) é o que há de mais distinto. Disso se encontram dois tipos de exemplos. Primeiro, tem-se uma pequena minoria de originais, sem fortuna pessoal, que deseja absolutamente se comportar assim, e que aceita então viver numa digna privação. É o que evocam as anedotas sobre este ou aquele funcionário que morre em posto e que, ao se fazer o inventário de seus bens se percebe que 9 Para mais detalhes, pode-se consultar minha súmula de curso no Annuaire du Collège de France, ano de 1999-2000. 7 não possuía mais do que alguns livros, algumas roupas velhas e alguns trocados10. O capital moral acumulado por tais personagens é imenso, e ele é suscetível de se transmutar em capital social e capital político (e, no final das contas, em capital político) em benefício de sua descendência. Mas, no caso mais freqüente, os modelos de integridade são pessoas que podem se permitir ser irrepreensíveis uma vez que já são ricas. Dito de outra forma, em tais situações o capital econômico da família as ajuda a reforçar ou manter seu capital sociopolítico, oferecendo a seus membros nomeados à administração o luxo da perfeita integridade. É bem conhecido que, no período Ming, era de bom tom, entre as grandes famílias de Suzhou – a capital econômica e cultural da China do sul e, em muitos aspectos, da China inteira, o lugar onde se criavam todas as modas –, se considerar, primeiro, os encargos públicos como uma atividade vulgar e como uma corvéia; segundo, quando se aceitava de nisso se sacrificar (Suzhou sendo, afinal, uma prefeitura do império, onde havia a maior densidade de laureados dos exames), era uma questão de honra não tentar enriquecer, sem o que se arriscava, uma vez tendo retornado à região de origem, virar a piada dos líderes culturais que eram os verdadeiros árbitros da distinção e cuja opinião era a que mais contava em termos de capital sociocultural11. Mas, ao lado desses prestigiosos e distintos modelos de ética pública há todos esses que eu chamarei os maculadores da integridade. Refiro-me a administradores que, sem estarem apoiados em um enorme patrimônio (e, por vezes, sem possuir nenhum patrimônio), se dizem estar e estão profundamente preocupados com a qualidade do governo e com a legitimidade da burocracia junto à população, e que, nos escritos que destinam a seus pares, expõem laboriosamente como preservar sua integridade limitando ao mínimo o recurso aos meios extra-legais – mas costumeiros – de aumentar sua renda oficial, sem sacrificar, no entanto, o decoro que cabe a um funcionário, nem a esperança de encerrar sua carreira com um honesto conforto12. Nesta última configuração, os fatores da distinção situam-se, me parece, no nível da ética profissional e do serviço do povo; por conseguinte, eles se apóiam numa venerável tradição de engajamento público e de bom governo, sabidamente colocada em dificuldades durante certos períodos – como no final do século XVIII e no XIX – por aquilo que era percebido como um tipo de relaxamento generalizado e pelo reino do dinheiro. O investimento em termos de “capital” é, inicialmente, político, com uma forte mais-valia simbólica, e ele só é social por extensão. A dominação do dinheiro, que era de bom tom lamentar, sobre aquilo que deveria concernir apenas vocações desinteressadas – o serviço do estado, a felicidade dos povos – me leva a 10 Tal é o caso de um governador do Jiangsu, Yu Chenglong, morto em função em 1684. Um memorialista da época – habitante da região, logo um “usuário” –, não hesita em considerá-lo como ainda mais extraordinário que seu ilustre predecessor, no século XVI, o famoso Hai Rui, ele também legendário por sua integridade: cf. Yao Tinglin (1628-após 1897), Linian Ji (Chroniques des années successives). Pequim: Zhonghua shuju, 1982, p.115, 118. 11 Este ponto é brilhantemente desenvolvido por Miyazaki no ensaio citado anteriormente. 12 Ver, num exemplo particularmente impressionante, as exortações de um certo Xie Jinluan, com freqüência citadas no século XIX, das quais traduzi longos excertos em: “Official ans Money in late imperial China. State finances, private expectations and the problem of corruption in changing envronment”. In: KREIKE, Emmanuel & JORDAN, William. Corrupt Histories. Rochester: University of Rochester Press, 2004, PP.29-82. 8 evocar outro fator de distinção fundamental sob a dinastia Qing, particularmente a partir dos primeiros anos do século XIX. É aquele que opõe os funcionários ingressados na carreira pela via real dos exames e aqueles que se aproveitaram das possibilidades daquilo que se poderia chamar venalidade legal, quer dizer, a venda de títulos e de nomeações pelo governo, que se chamavam “contribuições” (juan). Por todos os tipos de razões que não posso mencionar aqui – financeiras antes de tudo, mas não exclusivamente – o governo dos Qing recorreu amplamente a esse modo de recrutamento e, no século XIX, a ele recorre ainda mais. Com freqüência a distinção entre os detentores de títulos acadêmicos e aqueles que pagaram para ali estar não tem, na realidade cotidiana, um significado muito importante, na medida em que os primeiros não são necessariamente grandes conhecedores dos Clássicos, mas sobretudo animais de concursos que aprenderam o que era preciso fazer para neles serem bemsucedidos; ao passo que os segundos participam da mesma cultura letrada, mas não tiveram o gosto e, sobretudo, os meios para se dedicar ao longo treinamento necessário para aprender a redigir dissertações de exames, quando não os abandonaram após sucessivos fracassos. Mas se não se deve exagerar demasiado no plano da educação efetivamente recebida, nem, sobretudo, naquele da qualidade profissional, esta distinção possui no seio da função pública um valor simbólico muito forte: no discurso convencional, às vezes subjacente, às vezes o mais explícito possível, os “licenciados” e os “doutores” devem, por definição, ter integrado os grandes valores dos clássicos, e, portanto, possuir ao menos o sentido moral, mesmo quando seu comportamento cotidiano não está decididamente à altura; enquanto, em relação àqueles que pagaram para entrar na carreira, se presume nada conhecerem além do “fedor do cobre” (como se dizia), em outras palavras, serem de uma essência inteiramente diferente. E, note-se bem, o que conta é como se entra na função pública – o nascimento do burocrata, de certa forma –, pelo dinheiro ou pelo talento, já que uma vez na corrida todos recorreriam às mesmas facilidades de pagamento (as “contribuições”, sempre) para acelerar uma promoção, cancelar uma sanção, etc. No século XIX, a gestão das carreiras pelos burocratas de todas as origens é profundamente marcada pelo sistema de venalidade legal, assim como o é, claro, pelas práticas de venalidade ilegal, mas tolerada e considerada como sem conseqüências morais particulares, tais como a circulação mais ou menos obrigatória de presentes de alto a baixo da hierarquia e entre províncias e capital13. Seja como for, a maneira pela qual eles acederam à carreira constitui, visivelmente, um poderoso meio de distinção entre pessoas que, de resto, exercem o mesmo trabalho e portam as mesmas insígnias, e entre as quais – é importante sublinhar – a hierarquia do poder efetivo, da competência reconhecida e do prestígio burocrático vai, por vezes, no sentido contrário da hierarquia da distinção. De modo que, entre estes “funcionários por contribuição”, que, talvez, tenham pago para colocar o pé no estribo, mas dentre os quais há alguns que subiram muito alto na hierarquia dando provas no dia a dia de sua competência e de sua liderança, e dos quais um número nada desprezível era composto de verdadeiros administradores que se formaram trabalhando como conselheiros técnicos especializados ao serviço dos funcionários em posto. Eles haviam de fato ganho, nestas funções, com o suor de seus rostos, o dinheiro necessário para passar para o quadro oficial – de modo que não é excepcional encontrar-se, 13 Ver sobre esses pontos minha súmula de curso no Annuaire du College de France, ano 2000-2001, sobretudo no que concerne a autobiografia extremamente detalhada e de estilo livre de Zhang Jixing (1800-1878). 9 entre essas pessoas, uma certa arrogância de profissionais em relação aos colegas mais titulados e distinguidos, nos quais tendem a enxergar hipócritas conversadores sem qualquer senso prático. Encontra-se essa distinção ao reverso particularmente nas últimas décadas do império. É que nessa época, de fato, não apenas houve rápidos progressos no acesso venal à função pública, como também se vê chegar à ativa certo número de funcionários não titulados que não são, todos, ricos, ainda que este seja o caso de alguns, mas que fizeram suas aulas e, sobretudo, suas provas, e ganharam, graças a isso, o apoio de altos burocratas influentes, em dois tipos de circunstâncias particulares nesse fim de dinastia: o combate às rebeliões que destroem boa parte da China, entre 1850 e, mais ou menos, 1870, e as relações diplomático-comerciais com os estrangeiros14. O comércio e a guerra: em outras palavras, a antítese mesma, em termos de distinção sociocultural, das áreas em que se manifesta a superioridade do mandarim clássico. Ora, este não desaparece de forma alguma nessa época, muito pelo contrário; até o fim – entendamos até a abolição dos exames mandarins, em 1905 –, ele defende, com unhas e dentes, sua posição e seu capital simbólico e, em ampla medida, é ele quem continua a definir e a impor os termos da distinção. Há uma noção que, segundo Jean-François Billeter, desempenharia um “papel fundamental no pensamento mandarim”: a de “vulgaridade” (su), que permite distinguir o homem superior de todo o resto, e, portanto, o mandarim do mercador ou de qualquer outra pessoa ignorante e engajada na busca do lucro. Ora, este termo, su, é constantemente utilizado para marcar a distinção no próprio seio do mandarinato: distinção entre a inspiração elevada do “funcionário confuciano” e o pragmatismo do funcionário eficaz, mas “ordinário” (uma das traduções de su), entre o engajamento idealista e o carreirismo ou a indiferença, entre a integridade altiva e a obsessão do lucro, e assim por diante. E também, em um plano mais mundano, mas não menos importante, entre aqueles que têm maneiras e aqueles que não as têm. O que eu chamo aqui de maneiras é toda a coreografia social e mesmo corporal (diz-se, em geral, a etiqueta) consignada nos manuais de ritual, mas que as pessoas bem-nascidas interiorizam desde a infância. Mas é, também, uma infinidade de convenções relacionadas à linguagem, ao vocabulário, ao estilo epistolar, às formas de tratamento, às alusões literárias e todo tipo de coisa; é, ainda, o senso do estilo, de fato o senso estético, que permite revestir com elegância os atos menos recomendáveis da vida cotidiana dos mandarins, tais como solicitar um favor ou uma propina15. 14 As mudanças introduzidas pela guerra civil na sociologia do funcionalismo já se encontram assinaladas pelo célebre homem de Estado Li Hongzhang (1823-1901) em um prefácio de 1869: “O país esteve em guerra por mais de uma década, as despesas incorridas ultrapassam a dezena de milhões por ano; os homens que recompensamos por seus feitos e suas contribuições financeiras, fazendo-os ingressar na administração, foram repartidos por todas as províncias, contam-se, no total, centenas e milhares...”. O problema, tal como o percebe Li Hongzhang, é que seus talentos são “heterogêneos” (za) e que é necessário esforçar-se para neles inculcar os modelos de excelência administrativa que prevaleciam na primeira metade da dinastia. Ver seu prefácio à edição de 1869 do Muling shu jiyao, uma famosa antologia de textos pedagógicos para funcionários locais. 15 Vários autores, em diferentes épocas, se queixam não apenas de verem o favoritismo e a corrupção progredir, mas também – e talvez, sobretudo – das formas cada vez menos discretas e cada vez mais vulgares que tomam. Ver meu ensaio referido na nota 11 para citações de Gu Yanwu (1613-1682) e Hong Liangji (1746-1809). 10 Encontramos facilmente, no mandarinato do final do século XIX, alguns ex-militares rústicos e alguns ex-compradores∗ comportando-se em puros businessmen, que buscam cumprir as missões que lhes são confiadas no melhor dos interesses do país e do regime, sem se preocupar muito de se apresentar em mandarins estilizados, ou então que buscam simplesmente enriquecer, mas eles não são seguramente a maioria. Ao contrário, para a maioria de recém-chegados a grande angústia é não possuir as maneiras e passar por rústico junto a mandarins realmente educados, aqueles para os quais a desenvoltura literária, a erudição, o senso estético e a naturalidade em sociedade são, de certa forma, inatos. Com certeza é ilusório esperar ser aceito de pleno direito no círculo encantado da verdadeira elite, aquela para a qual o poder e seus rituais são naturais, mas se pode ao menos aprender, e é por isso que são publicados, por funcionários, no final do século XIX, muitos manuais cuja parte significativa, senão a totalidade, é dedicada às maneiras, tais como já esbocei o conteúdo: aos segredos que permitem evitar a falta de jeito, às visitas que precisam ser feitas, mas sem exageros, aos livros que se deve ter consigo, etc. Esses manuais, destinados àqueles que aspiram agregar-se às fileiras da elite, lembram, de certa maneira, os manuais de estilo de vida e de consumo de luxo que Craig Clunas estudou no livro ao qual me referi no início. Em um caso como no outro, e mesmo que não se trate absolutamente dos mesmos conteúdos, tem-se um mercado constituído por fragmentos de classe (como diria Bourdieu) buscando desesperadamente a subir, a se identificar a uma elite que comanda a moda e que define os critérios de distinção e que, por isso mesmo, consegue preservar seu monopólio simbólico e conservar o poder. Eis aí, portanto, alguns elementos sobre a distinção entre os mandarins. Não fossem as restrições de tempo, eu poderia analisar vários outros, e funcionando em todos os níveis16. Mas me pareceu útil fazer estas considerações por duas razões. Primeiro, para lembrar mais uma vez a visão, tão banal hoje como no passado, de uma China imperial governada por uma classe mandarim homogênea, legitimada pelo saber e pelo magistério filosófico-moral que ela exerce – o quanto esta visão herdada dos jesuítas e das Luzes é limitada, mesmo totalmente desconectada da realidade em certos contextos, como aquele que evoquei no final da minha exposição. E, em seguida, a presente ocasião permitiu-me convencer a mim mesmo, agora ainda mais do que antes, a que ponto os conceitos elaborados e popularizados por Pierre Bourdieu, ainda que a contragosto, se mostram estimulantes e fecundos, mesmo sem o socorro da aparelhagem científica sobre a qual se apoiava, para melhor compreender sociedades a priori tão afastadas quanto possível daquela a que dedicou suas análises mais famosas. Bourdieu possuía um sentido e uma cultura histórica raros. Quero crer que esta breve exposição pelo menos o teria divertido. ∗ Em português, no original Isto é, entre “metropolitanos” e “provinciais”, ou entre representantes de diferentes tradições ou modos na área da filosofia e da erudição. 16 11