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ISSN 1980—7430 REVISTA JURÍDICA DA FACULDADE DE DIREITO – V. 1 – N o. 4 – ANO III EOS — Revista Jurídica da Faculdade de Direito / Faculdade Dom Bosco. Núcleo de Pesquisa do Curso de Direito. — v. 1, n. 4 (jul./dez. 2008) – . — Curitiba: Dom Bosco, 2008 – . Semestral. ISSN 1980—7430 1. Direito – Periódicos. I. Faculdade Dom Bosco. Núcleo de Pesquisa do Curso de Direito. CDD 340 EOS Revista Jurídica da Faculdade de Direito ISSN 1980—7430 PRESIDENTE DO Sistema Educacional Brasileiro — SEB Chaim Zaher VICE-PRESIDENTE DO Sistema Educacional Brasileiro — SEB Adriana Baptiston Cefali Zaher DIRETOR-geral DO GRUPO DOM BOSCO Durval Antunes Filho DIRETOR geral da faculdade dom bosco Augusto César Tosin COORDENADOR DO CURSO DE DIREITO Prof. Msc. Evilásio Gentil de Souza Neto Prof. Msc. Luciano Tinoco Marchesini COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA Prof. Msc. Roggi Attilio Ercole Filho COORDENADORA DO NÚCLEO DE PESQUISA DO CURSO DE DIREITO Profa. Dra. Michele Catherin Arend COORDENADORA DO NÚCLEO DE MONOGRAFIA Profa. Msc. Carmen Pick Schimidt COORDENADORA DA REVISTA CIENTÍFICA DO CURSO DE DIREITO — EOS Profa. Msc. Melina Girardi Fachin COMISSÃO EDITORIAL Prof. Dr. Aloísio Surgik Profa. Msc. Ana Carla Hamatiuk Profa Msc. Carmen de Fátima Pick Schimidt Profa. Esp. Carolina Fátima de Souza Alves Prof. Msc. Cristiano Dionísio Prof Msc. Cristina Leitão Teixeira de Freitas Profa Esp. Denise Cristina Brzezinski Mansur Prof. Msc. Evilásio Gentil de Souza Neto Profa. Dra. Gisela Maria Bester Profa Dra. Iglair Terezinha Marquetto Chiamulera Prof. Dr. Ignacio Ara Pinilla Prof. Msc. José Antonio Z. Branco Garcia Profa. Msc. Katya Isaguirre Torres Prof. Msc. Maicon Guedes Hugo Prof. Msc. Marcelo Miguel Conrado Prof Msc. Marcos Alves da Silva Prof. Msc. Marcus Paulo Rycembel Boeira Profa. Dra. Maria Berenice Dias Profa. Dra. Marielda Ferreira Pryjma Prof. Msc. Maurilucio Alves de Souza Prof. Msc. Melina Girardi Fachin Prof. Esp. Robinson Marçal Kaminski Profa. Msc. Romualdo Flávio Dropa Profa. Dra. Rosalice Fidalgo Pinheiro Profa. Msc. Tais Martins Prof. Msc. Walter Guandalini Junior Prof. Dr. Zulmar Fachin ANÁLISE DE LÍNGUA Portuguesa Homero G. de Farias Jr. REVISÃO Homero G. de Farias Jr. DIAGRAMAÇÃO Marline Meurer Paitra GERÊNCIA DE PRODUÇÃO Heloisa Harue Takazaki EDITORA DA REVISTA CORRESPONDÊNCIA Faculdade Dom Bosco Coordenação do Núcleo de Pesquisa Campus Marumby Av. Wenceslau Braz, 1172 Guaíra 81010-000 telefone: 41 3213-5200 e-mail: [email protected] Tiragem 1 000 exemplares A P R E S E N TA Ç Ã O Eis que damos continuidade ao audacioso projeto de pesquisas e publicações das Faculdades Dom Bosco com o lançamento do 4.º volume da Revista EOS. As mudanças no projeto gráfico e na estruturação científica da revista vem a refletir a maturidade das preocupações científicas e acadêmicas da nossa IES. Prosseguimos em frente embalados pelas lições de Drummond: “Esse é tempo de partido, tempo de homens partidos. Em vão percorremos volumes, viajamos e nos colorimos. A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua. Os homens pedem carne: Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem das leis”. DRUMMOND, C. Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 2001. Boa leitura e até a próxima edição! Professora Melina Girardi Fachin Coordenadora da Revista EOS SUMÁRIO Artigo 01 O Controle de Constitucionalidade no Procedimento Arbitral Ana Carolina Weber 26 Artigo 02 Constituição Dirigente e Vinculação do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais André Karam Trindade Artigo 03 Prisão Cautelar como Pena: a Identidade na História André Ribeiro Giamberardino 83 64 Artigo 04 Contratações na Sociedade de Consumo e Tecnologia: função Social do Contrato de Boa-fé Objetiva Carolina Fátima de Souza Alves (Autora) Antonio Carlos Efing (Co-autor) Artigo 05 102 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988: 20 anos de Obscuridade nas Brumas do Senso Comum Teórico Daniel Wunder Hachem 08 Artigo 06 Apontamentos sobre a Ética Ambiental como Fundamento do Direito Ambiental Karin Kässmayer 147 128 Artigo 07 A Sucessão do Companheiro Maritza Franklin Mendes de Andrade Marcelo Kajiura Pereira Artigo 08 O Programa de Política Criminal Brasileiro, Funções Declaradas e Reais: Contribuições de Claus Offe para Fundamentação da Crítica Criminológica à Teoria Jurídica das Penas 173 Maurício Stegemann Dieter 195 Artigo 09 A Não-tributação das Indenizações Decorrentes de Danos Morais por Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza Rafhael Wasserman Artigo 10 Posse e Propriedade na Contemporaneidade Samir Namur 212 Artigo 1 o controle de constitucionalidade no procedimento arbitral Ana Carolina Weber Advogada no Rio de Janeiro 1 Introdução. 1.1 Lei aplicável ao mérito e ao Processo. 1.1.1 Lei aplicável ao Mérito. 1.1.2 Lei aplicável ao processo. 1.2 Lei aplicável ao Mérito e ao Processo. 2 Os modelos de controle de Constitucionalidade. 2.1 Controle Difuso. 2.2 Controle Concentrado. 2.3 O Controle Misto. 2.4 O Precedente Italiano. 3 A natureza Jurídica da Arbitragem. 4 Considerações finais. 5 Referências. Resumo Este artigo pretende analisar a possibilidade do exercício de controle de constitucionalidade pelo árbitro, seja em arbitragens internas ou internacionais. No intuito de desenvolver essa tarefa, utilizou-se teorias a respeito dos modelos de controle de constitucionalidade, a fim de verificar qual deles se adequa melhor à estrutura da arbitragem. Ademais, analisa-se a natureza jurídica da arbitragem, a escolha de lei aplicável ao mérito e ao processo arbitral, seus efeitos, e a analogia a precedentes legislativos e jurisprudenciais enquadráveis no tema. Por fim, reuniu-se as premissas anteriormente desenvolvidas a fim de estabelecer a tese central do estudo. Palavras-chave: Arbitragem; Leis imperativas; Poderes do árbitro; Controle de constitucionalidade Abstract This article aims to examine the possibility of exercising constitutional control by the arbitrators, either in domestic or international arbitration. In order to develop this task, is used theories concerning the constitutional models of control to verify which one best fits the structure of arbitration. In addition, analyze the legal nature of arbitration, the choice of law applicable to the merits and the arbitration process, its effects and the analogy to previous legislative previsions and precedents related to the subject. Finally, it meets the premises previously developed in order to establish the central thesis of the study. Keywords: Arbitration; Mandatory rules; Arbitrator’s powers; Judicial review O Controle de Constitucionalidade no Procedimento Arbitral 1 Introdução A arbitragem é um meio privado de solução de conflitos, relativos a direitos patrimoniais disponíveis, no qual as partes selecionam um ou mais especialistas na matéria controversa, para decidir as disputas que existam ou venham a existir. Marcada predominante pela autonomia da vontade, é dado às partes, na arbitragem, escolherem a lei que regerá o mérito do seu litígio. Os árbitros, escolhidos pelos litigantes, deverão seguir os ditames presentes em tais normas para solucionar a controvérsia. Entretanto, é preciso verificar se os árbitros estão vinculados à ordem constitucional da qual tais regras provêm. Ademais, é necessário saber se os árbitros podem deixar de aplicar a lei escolhida pelas partes por considerá-la inconstitucional, ou seja, em afronta ao texto superior. Para apurar essas questões, dedica-se o texto ao exame das características da arbitragem e de um de seus aspectos mais peculiares: a liberdade de escolha da lei aplicável ao mérito e ao processo pelas partes. Questiona-se ainda se o árbitro pode realizar o controle de constitucionalidade. Para isso, passa-se a um tema central de nosso estudo: os modelos de controle de constitucionalidade. Em razão das características de cada modelo é possível verificar quais os requisitos para que a verificação da compatibilidade constitucional seja efetivada. Aqui mais uma vez o estudo comparativo mostra-se necessário. É necessário verificar se os precedentes internacionais podem ser aplicados ao caso brasileiro, dentro das premissas da Lei de Arbitragem e da Constituição da República. A fim de concretizar as premissas anteriores passa-se à verificação da natureza jurídica da arbitragem e seus efeitos. A esses questionamentos debruça-se o presente artigo. Importante, desde já, efetuar ressalva quanto às arbitragens decididas por eqüidade. Em tais arbitragens, o árbitro não está adstrito ao exame de um diploma legal, podendo decidir ex aequo et bono. Por esse motivo, este estudo se dedicará tão somente às arbitragens de direito, nas quais há essa vinculação normativa dos árbitros. Também se destaca que a análise procurará enfrentar os diferentes sistemas jurídicos, entretanto, a base teórica será construída em conformidade com os sistemas constitucionais, nos quais as Constituições apresentam rigidez e supremacia frente aos demais diplomas legais. 1.1 Lei aplicável ao mérito e ao processo 1.1.1 Lei aplicável ao mérito As partes, quando da celebração da cláusula compromissória, inserta ou não em um contrato, ou quando da pactuação do compromisso, possuem o poder de estabelecer qual norma regerá eventuais litígios que advenham daquela relação jurídica. Artigo 1 A professora Carmen Tiburcio, em seu estudo sobre o tema, nos mostra que não é simples a questão da escolha da lei aplicável ao mérito. Diversas considerações podem ser feitas. Uma delas seria se o árbitro deve respeitar a escolha das partes, quando verifica que aquela lei escolhida não possui vínculos jurídicos diretos com a controvérsia. Com isso, outro questionamento surge: haveria algum limite ou parâmetro a ser seguido pelas partes quando da escolha dessa norma?1 A conclusão inicial é que deve ser respeitado, ao máximo, a autonomia da vontade, e, por esse motivo, o árbitro deverá, na análise do litígio a ele submetido, aplicar a legislação escolhida pelos litigantes. Destaca-se que essa decisão sobre a lei aplicável significa que as partes escolhem aquela norma em sua totalidade, com a interpretação que apresenta em seu país de origem, e com os vínculos constitucionais que a sustentam. Entretanto, percebe-se que se está tratando de lei material daquele Estado e não das suas regras de conexão. Diferentemente do que ocorre no judiciário, na arbitragem, as partes já estipulam qual a lei aplicável diretamente ao mérito, não é necessário recorrer a uma regra de intermediação para que se venha a descobrir qual a lei substantiva. Nesse sentido, diversas convenções internacionais foram elaboradas a fim de garantir essa ampla liberdade às partes e de diferenciar, nesse ponto, a arbitragem do processo judicial. A Convenção Interamericana sobre Direito aplicável aos Contratos Internacionais de 1994 determina: “Art. 17 Para os fins desta Convenção, entender-seá por direito o vigente num Estado, com exclusão das suas normas relativas ao conflito de leis.”2 1.1.2 Lei aplicável ao processo Diferentemente do que vínhamos tratando no tópico anterior, passamos à análise da lei aplicável ao processo arbitral. Inicialmente, cabe destacar que essa lei aplicável ao processo arbitral pode ser diversa da que rege a relação de direito material em conflito. As partes, ao disporem sobre a lei aplicável ao processo, estão estabelecendo as regras que irão reger a condução do procedimento arbitral. Essa previsão pelos litigantes pode ser feita tanto na cláusula compromissória cheia quanto no compromisso. TIBURCIO, Carmen. A lei aplicável às arbitragens internacionais. In: MARTINS, Pedro Batista, GARCEZ, José Maria Rossani (coord.). Reflexões sobre arbitragem: in memoriam do Desembargador Cláudio Vianna de Lima. São Paulo: LTr, 2002. p. 100. 2 Dispositivos no mesmo sentido encontram-se: na Convenção da Haia sobre Lei Aplicável às Vendas de Caráter Internacional de Objetos Móveis Corpóreos (1955), na Convenção da Haia sobre Lei Aplicável aos contratos de venda Internacional de Mercadorias (1986), e na Convenção Européia sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais (1980). 1 10 O Controle de Constitucionalidade no Procedimento Arbitral Ainda que haja uma liberdade de as partes estabelecerem a lei aplicável ao processo, há uma sensível diferença, nesse ponto, com relação à lei aplicável ao mérito. Nos processos judiciais, já está arraigado que a lei aplicável ao processo é a lex fori. Dessa forma, algumas vezes, um tribunal, ao enfrentar a impugnação de uma sentença arbitral, ou um árbitro, quando as partes não definiram claramente a lei aplicável ao processo, podem ter dificuldade em aplicar lei diversa a da sede da arbitragem – como uma forma de vincular a arbitragem à lex fori do Estado em que ela está sendo desenvolvida. Entretanto, apesar dessas dificuldades, as partes têm a liberdade garantida em grande parte das leis nacionais de arbitragem e convenções internacionais, tal como podem3: i) aderir a regulamento de Câmara arbitral, seguindo as regras procedimentais nele dispostas; ii) adotar a lei processual do país sede da arbitragem; iii) proceder à escolha de lei processual de país estrangeiro; ou iv) utilizar-se de sua autonomia e promover a criação de regras processuais específicas para o desenvolvimento daquela arbitragem, seriam regras sui generis. Entretanto, algumas vezes, as partes não escolhem a lei aplicável. Ao árbitro se dará, em tal caso, a mesma possibilidade, como se viu em lei aplicável ao mérito, de promover a escolha da lei processual mais adequada ao caso. 1.2 Lei aplicável ao mérito e ao processo Aos contratantes, que estabelecem a solução de seus litígios pela via arbitral, as legislações asseguram o direito de escolher a lei aplicável ao mérito e ao processo arbitral. Quando as partes convencionam a aplicação de determinada lei a um contrato de compra e venda de mercadorias, por exemplo a lei civil brasileira, não estão estabelecendo uma aplicação estanque do Código Civil brasileiro. Uma vez estabelecida a escolha da lei aplicável ao mérito do litígio, tem-se que as partes determinam a aplicação daquela norma em conformidade com o ordenamento jurídico no qual ela se insere4 . Essa conclusão inicial decorre predominantemente da relação que as leis desenvolvem com as normas constitucionais. Não é possível defender a posição de que ao definir certa lei como aplicável a um contrato, está se determinando sua aplicação em desconformidade com os preceitos constitucionais do ordenamento no qual ela se insere. 3 4 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 249. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 75. 11 Artigo 1 As normas constitucionais informam e condicionam o ordenamento no qual ela se insere5. As normas jurídicas, dentro das quais se inserem as normas constitucionais apresentam mecanismos próprios de aplicação, que lhes permitem obter sua observância obrigatória.6 Percebe-se, a partir dessas constatações, que, hoje, predomina o entendimento, acertado, de que as normas constitucionais gozam de imperatividade7 e eficácia8 , nos sistemas em que as Constituições são rígidas. O ato normativo será eficaz quando ele apresenta a aptidão para a produção de efeito, para a irradiação das conseqüências que lhe são próprias. Há, nesse plano, uma busca pela produção dos fins aos quais, inicialmente, se procurou atribuir ao ato. Essa discussão acerca da aplicação da norma elegida em sua totalidade já foi objeto de estudo dos internacionalistas, quando se discutia a aplicação da norma estrangeira determinada pela regra de conexão do foro. Essa, inclusive, foi a orientação consagrada no artigo 412 do Código de Bustamante9 . O professor Jacob Dolinger nos ensina: Ao aplicar o direito estrangeiro determinado por regra do D.I.P, o magistrado deverá atentar para a lei estrangeira na sua totalidade, seguindo todas as suas remissões, incluídas suas regras de direito intertemporal, normas relativas à hierarquia das leis, seu direito convencional, seu direito estadual, municipal, cantonal, zonal, seu direito religioso, suas leis constitucionais, ordinárias, decretos, etc. (grifo do autor)10 “El carácter normativo de la Constitución, unánimemente aceptado em nuestros dias, quiere significar que no estamos em presencia de um mero catálogo de princípios, sino de uma norma cuyo contenido material a todos (ciudadanos y poderes públicos) vincula de modo inmediato, siendo sus preceptos, como regla general, sin perjuicio de algunas matizaciones particulares a esta regla, aleglabes ante los tibunales y debiendo considerarse su infracción antijurídica.” SEGADO, Francisco Fernández. La teoría jurídica de los derechos fundamentales em la Constitución Española de 1978 y el su interpretación por el Tribunal Constitucional. RILSF, 121/77. 6 BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 7.ª ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003. p. 89. 7 A Convenção de Roma de 1980, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, traz em seu artigo 7.° referência ao que deve ser considerada norma imperativa para o direito internacional: “Artigo 7.º Disposições imperativas 1. Ao aplicar-se, por força da presente convenção, a lei de um determinado país, pode ser dada prevalência às disposições imperativas da lei de outro país com o qual a situação apresente uma conexão estreita se, e na medida em que, de acordo com o direito deste último país, essas disposições forem aplicáveis, qualquer que seja a lei reguladora do contrato. Para se decidir se deve ser dada prevalência a estas disposições imperativas, ter-se-á em conta a sua natureza e o seu objecto, bem como as consequências que resultariam da sua aplicação ou da sua não aplicação. 2. O disposto na presente convenção não pode prejudicar a aplicação das regras do país do foro que regulem imperativamente o caso concreto, independentemente da lei aplicável ao contrato.” 8 Sobre a aplicação de normas imperativas recomenda-se a leitura: ARFAZADEH, Homayoon. Ordre public et arbitrage international à l’épreuve de la mondialisation: une théorie critique des sources du droit des relations transnationales. Nouv. éd. Zurich: Schulthess, 2006 e RACINE, Jean-Baptiste. L’arbitrage commercial international et l’ordre public. L.G.D.J. 9 Código de Direito Internacional Privado dos Estados Americanos – Código de Bustamante – Havana – 1928, artigo 412. 10 DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado. Parte Geral. 6.ª ed. 2001. p. 277. 5 12 O Controle de Constitucionalidade no Procedimento Arbitral Tendo as partes, portanto, escolhido determinada lei para reger a solução do conflito, coloca-se para o árbitro o dever de aplicar a referida lei em sua totalidade, inclusive examinando sua compatibilidade com as normas constitucionais do sistema no qual se insere. Essa questão é recorrente nas arbitragens, tendo já sido estabelecida a aplicação sistêmica da lei aplicável ao mérito em diversos laudos arbitrais proferidos no âmbito da CCI. De plus, à montrer que la désignation em cours de procédure de la loi applicable au contrat n’est rien d’autre qu’une confirmation de regime juridique de celui-ci, on indique, s’il em était besoin que l’expression tardive de la volonté dês parties n’a pás créé de problèmes de droit intertemporel dont la solution serait dês plus délicates.11 Dessa forma, o que se percebe é que, também no âmbito das arbitragens, deve-se buscar uma aplicação sistêmica da lei aplicável ao mérito12 . Essa deve ser interpretada à luz da Constituição do seu sistema de origem. 2 Os modelos de controle de constitucionalidade A superioridade normativa do texto constitucional fez com que se desenvolvessem institutos capazes de assegurar sua observância. No pensamento jurídico moderno, expandiu-se o estudo desses meios. Interessa-nos, no presente estudo, a análise do controle jurisdicional de constitucionalidade. Sendo a norma constitucional uma norma de hierarquia superior, os intérpretes devem aplicar as normas infraconstitucionais em conformidade com a Constituição. Por conta disso, tivemos, nos diversos ordenamentos, a criação e evolução de modelos de controle de constitucionalidade. O controle de constitucionalidade surge e se afirma de forma diferenciada nos países, principalmente, em razão de divergências substanciais que caracterizam os sistemas jurídicos da common law e da civil law. Importante será estabelecer e minudenciar os aspectos específicos de cada modelo adotado, de modo a concluir pela possibilidade de utilização de um deles na via arbitral. Os sistemas constitucionais modernos consagraram três modelos de Controle de Constitucionalidade. São eles o sistema do judicial review, o dos Tribunais Caso CCI n.º 1 434, 1975. Collection of ICC Arbitral Awards 1974-1985. ICC Publishing S.A. No mesmo sentido, destacam-se os casos CCI n.º 8 385, 1995; CCI n.º 5 730, 1988; CCI n..º 1 422, 1966; CCI n..º 3 130, 1980; e CCI n.º 6 309, 1991. 12 Tratando da questão no âmbito do DIPRI, Nádia de Araújo discorre: “A valoração da aplicação da lei estrangeira ordenada pela regra de conexão deve ser analisada pelo magistrado à luz de uma metodologia principal, que utiliza os princípios como normas-chave de todo o sistema jurídico.” ARAÚJO, Nádia. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 111. 11 13 Artigo 1 Constitucionais e aqueles que consagram o controle difuso e concentrado de constitucionalidade, ditos sistemas mistos. 2.1 Controle difuso O sistema do judicial review é o adotado pelo Direito Norte-Americano. O sistema constitucional americano consagra a supremacia constitucional, a qual é efetivada através do controle de constitucionalidade efetuado pelo Judiciário. Esse controle é exercido pelo exame da constitucionalidade das normas por meio de casos concretos, cujos litígios são levados a juízo para serem solucionados. Ao magistrado cabe interpretar a Constituição americana, adequando, com ela, a aplicação de leis e atos normativos editados pelos poderes estatais. Convencionou-se chamar esse sistema de controle difuso de constitucionalidade. A origem do controle norte-americano provém de um caso concreto. Foi através do famoso precedente judicial Marbury v. Madison que se passou a consagrar a sistemática do controle difuso de constitucional no direito norte-americano. O sistema norte-americano, todavia, não se restringe ao controle dos juízes no caso concreto. Foi o intuito do legislador estabelecer uma sistemática, através da qual se evitasse decisões contraditórias ou em sentidos opostos sobre a declaração de inconstitucionalidade. Estabeleceu-se, desta feita, o que se denomina de sistema do stares decisis. Diferentemente do que, posteriormente, convencionou-se no modelo continental europeu, o sistema do stare decisis representa a consagração da força jurisdicional da Suprema Corte Norte-americana. Consagrou-se que a Suprema Corte tem a última palavra no que tange ao controle de constitucionalidade, não porque somente a ela caiba o exercício dessa função. Na verdade, estabeleceu-se que a Suprema Corte, como instância recursal, poderá prolatar decisões sobre a constitucionalidade de leis, em vistas da situação de um caso concreto, sendo que tais pronunciamentos terão a força de precedentes judiciais. O sistema do stare decisis, portanto, representa a ratificação do modelo de precedentes judiciais da common law. Isto é, também no que se refere ao controle de constitucionalidade cabe ao mais alto Tribunal do sistema judiciário norte-americano o pronunciamento sobre a compatibilidade das leis com o texto constitucional, de modo que a partir dessa prolação decisória os demais tribunais tenham uma linha jurídica segundo a qual deverão se orientar. A instituição dessa sistemática dos precedentes judiciais trará importantes conseqüências para a eficácia das decisões judiciais que exerçam o controle de constitucionalidade. 14 O Controle de Constitucionalidade no Procedimento Arbitral Em regra, nos países em que o controle de constitucionalidade é difuso e concreto, exercido pelos juízes de instâncias inferiores, a eficácia da sentença que reconhece a inconstitucionalidade é restrita às partes intervenientes no litígio. Ademais, a eficácia da declaração não estabelece a revogação da norma jurídica. Entretanto, como dito anteriormente, no direito norte-americano procurouse amenizar a possibilidade de decisões contrastantes no que tange o controle de constitucionalidade. A possibilidade de gerar insegurança jurídica fez com que se estabelecesse eficácia diferenciada para os acórdãos da Suprema Corte.13 Contudo, esse efeito vinculatório não se observa quando um juiz de primeira instância profere uma decisão deixando de aplicar uma norma que considerou infringente aos ditames constitucionais. Essa é importante característica que permitirá, ao fim deste trabalho, concluir pela possibilidade da mesma atuação por um árbitro. O árbitro, ao deixar de aplicar uma norma por vício de inconstitucionalidade, não estará criando um precedente capaz de vincular as demais instâncias decisórias daquele país, já que os efeitos daquela decisão restringem-se às partes em litígio. 2.2 Controle concentrado Em oposição ao sistema difuso de controle, tem-se a prática do controle de constitucionalidade concentrado. Atribui-se a Hans Kelsen a formulação teórica do modelo de controle, através do qual apenas um órgão, o chamado Tribunal Constitucional, poderia fazer o exame de compatibilidade das normas legais com o texto constitucional. A decisão desse órgão deveria ser tomada in abstracto, ou seja, sem ter por base a análise de um caso concreto. Kelsen ainda destacava que nesse modelo, a solução pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade produziria efeitos erga omnes, equivalente, no último caso, à revogação da norma infraconstitucional, de efeitos ex nunc14. Desta feita, Kelsen sustenta um respeito às situações jurídicas anteriores, afirmando que a declaração de inconstitucionalidade somente inquinaria a norma e, assim, as relações jurídicas por ela regidas, após a publicação do acórdão prolator do decisium. GALLOTTI, Maria Isabel. A declaração de inconstitucionalidade das leis e seus efeitos. Revista de Direito Administrativo. 170/87. FGV. 14 Eduardo Garcia de Enterría comenta: Hay aún outro ejemplo más inmediato al de nuestra justicia constitucional, y cuyos ecos son aún más visibles en la Sentencia que comentamos, el ejemplo de la justicia constitucional alemana. En el sistema austríaco de 1920, el gran jurista Kelsen, que lo configuro, estableciendo así el primer sistema europeo de justicia constitucional, se había apartado en este punto, como en otros, de la tradición norteamericana y había dispuesto expresamente que el vivio de inconstitucionalidad de una Ley determinaria siempre una simple anulabilidad y no una nulidad, de modo que la eficácia de la Sentencia que la dreclarese sería siempre ex nunc, a partir de su fecha, y no retroactiva o ex tunc. ENTERRÍA, Eduardo García de. Justicio constitucional: la doctrina prospectiva em la declaración de ineficácia de las leyes inconstittucionais. Revista de Direito Público. 92/89. RT. p. 08. 13 15 Artigo 1 2.3 O controle misto O terceiro modelo, ao lado do concentrado e difuso, seria o “misto”. Ele consagra o controle de constitucionalidade pela via incidental e pela via “em tese”, de modo a permitir o controle tanto pela via do caso concreto como o exercido por um tribunal específico15. O sistema misto foi adotado pela Constituição brasileira de 1988, mas vale salientar que nem sempre conviveram, no sistema jurídico brasileiro, o controle de constitucionalidade difuso e concentrado. 2.4 O Precedente italiano O direito italiano, seguindo outros países da Europa, adotou o modelo do controle concentrado de constitucionalidade. Na Itália, surgindo eventual questionamento sobre a constitucionalidade de uma norma, num caso concreto, impõese ao juiz da causa o poder-dever de suspender o processo e determinar a apreciação da possível incompatibilidade com o texto constitucional pela Corte Constitucional. A ela cabe, em última análise, o pronunciamento sobre a constitucionalidade das normas ordinárias. Em razão desse sistema adotado, a doutrina já vinha debatendo, no direito italiano, se um árbitro gozaria do mesmo poder-dever do juiz. Na verdade, discutia-se se as características da arbitragem permitiam enquadrar o árbitro como igual ao juiz, e por esse motivo ser detentor dos mesmos poderes e prerrogativas do magistrado.16 Passemos à análise das cinco correntes doutrinárias que se estabeleceram. A primeira delas sustentava que diante da possibilidade de inconstitucionalidade de uma lei, o árbitro deveria deixar de utilizar e aplicar aquela lei. Segundo Cerri, essa tese pode conduzir a problemas de exeqüibilidade da sentença arbitral: questa tesi conduce al paradosso di ritenere il solo giudice veramente soggeto allá legge (...). Occorre inoltre tener presente che il lodo acquista efficacia di sentenza; la tesi, dunque, conduce all’ulteriore conseguenza non ammissibile di sentenza che disapplica la legge.17 O que se observa no modelo difuso é a incorporação de conceitos e características básicas dos dois outros modelos. Por esse motivo, nem sempre haverá uma identidade perfeita entre o controle difuso, por exemplo, que é praticado no Brasil e nos Estados Unidos. “In sum, most Latin American countries have developed a system of constitutional justice that implies a concentrated, abstract and a priori control of constitutionality that is put into effect through constitutional courts and whose decisions benefit from erga omnes effects, as well as a diffuse concrete and a posteriori control of constitutionality applied by any state court with inter partes effects. In addition to these two aspects of the Latin American constitutional systems, everyone has the right to a direct recourse to uphold constitutional rights against the omission or acts of the executive, the legislative, the judiciary (vertical control) or private parties (horizontal control). This third action is commonly known as amparo constitucional.” JESÚS, Alfredo de. The Impacto f constitutional law on international commercial arbitration in Venezuela. In: Journal of International Arbitration. v. 1, n.º 24, 2007. p. 72. 16 PERLINGIERI, Pietro. Arbitrato e Costituzione. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2002. p. 41. 17 A. CERRI. Arbitrato e Constituzione. In: Arbitrato. Fondamenti e tecniche, a cura di E. Caterini e G. Chiapppetta. Napoli, 1995. p. 39. 15 16 O Controle de Constitucionalidade no Procedimento Arbitral A segunda tese doutrinária desenvolvida foi no sentido de afirmar que o árbitro deveria decidir sem levar em consideração a questão da constitucionalidade. Perlingieri critica essa formação teórica, pois se trata de uma tese formalista e antieconômica, já que a sentença arbitral nasceria fadada a ter sua nulidade declarada por não ter resolvido questão prévia o mérito do litígio. Para outros autores deveria ser aplicada a suspensão do processo arbitral, em analogia ao artigo 819 do Código de Processo Civil italiano, salvo a questão da constitucionalidade já foi sucessivamente decidida e pacificada no âmbito judicial.18 Há aqueles que afirmam que o próprio árbitro deve decidir a questão sobre a constitucionalidade da norma, e por conseqüência, proferir sua decisão com base nesse juízo anteriormente estabelecido por ele. Finalmente, destaca-se a tese adotada pela Corte Constitucional italiana. Trata-se de conferir ao árbitro os mesmos poderes do juiz ordinário: tem o árbitro o poder-dever de remeter à corte constitucional a apreciação daquele incidente constitucional que se estabeleceu na arbitragem. O precedente da Corte Italiana19 origina-se de litígio em que a corte arbitral submeteu à Corte Constitucional questionamento sobre a sua própria legitimidade constitucional para tal atuação. A fundamentação da Corte Constitucional ao analisar a questão foi no sentido de verificar se havia identidade possível entre árbitro e juiz, capaz de permitir ao primeiro utilizar-se da prerrogativa do juiz de submeter questionamentos constitucionais à Corte Maior. Seguindo por essa seara, o Tribunal acabou por concluir que o árbitro, numa arbitragem submetida aos ditames da lei aplicável ao mérito, pode e deve submeter eventual questionamento acerca da constitucionalidade de lei italiana a Corte Constitucional. Conclusivamente, dunque, va affermato, allá luce della richiamata giurisprudenza di questa Corte, che anche gli arbitri rituali possono e debbono sollevare incidentalmente questione di leggitimità costituzionale delle norme di legge che sono chiamati ad applicare, quando risulti impossibile superarei l dubbio attrverso l’opera interpretativa.20 Esse posicionamento também é objeto de críticas de Pietro Perlingieri: “Il meccanismo dell’art. 819 non sembra possa applicarsi ad uma questione che non è pregiudiziale e che si configura invece come un incidente nell’àmbito di uma questiona piú ampia che investa l’intero mérito del giudizio. Allora la soluzione prospettabile sarebbe quella che l’arbitro se dichiarasse incompetente rispetto all’intera questione, offrendo il fianco ad uma facile obiezione: ogni exxezione prestestuosa di costituzionalità protebbe, infatti, vanificare il giudizio arbitrale.” PERLINGIERI, Pietro. Arbitrato e Costituzione. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2002. p. 42. 19 Corte constituzionale, 22 novembre de 2001, n.º 376, Pres. Ruperto; Rel. Marini – Consorzio Ricostruzione (CO.RI) c. Comune di Napoli. 20 Comentando a decisão: “A delicada e controvertida questão foi recentemente enfrentada por uma importante sentença da Corte Constitucional (n.º 376, depositada em 28.11.2001), que se manifestou em sentido afirmativo: isto é, declarou-se favorável ao reconhecimento da legitimidade de um painel de árbitros privados para determinar, diretamente, a transmissão das questões pelos árbitros ao Palácio da Consulta, na hipótese de o próprio painel considerar relevante e não manifestamente infundada a questão da constitucionalidade de uma norma cuja aplicação seja requerida.” IUDICA, Giovanni. Arbitragem e questões relativas à constitucionalidade. Revista de Arbitragem e Mediação. n.º 1. p. 80. 18 17 Artigo 1 À primeira vista, essa decisão poderia significar uma negativa ao controle de constitucionalidade por parte dos árbitros. Contudo, tal assertiva não procede. O que se faz necessário é examinar o sistema constitucional italiano, como já visto. Nele, os juízes de primeiro grau não possuem a prerrogativa de realizar o controle de constitucionalidade no caso concreto21. Havendo nos autos, por eles examinados, questão constitucional, os mesmos devem suspender o processo e submeter à referida controvérsia constitucional à solução pela Corte Superior. Desta feita, o que a Corte Constitucional italiana consagrou foi a exata equiparação dos árbitros aos juízes de direito, permitindo aos primeiros, nos moldes do sistema italiano, suspender o procedimento arbitral para ter eventual questão constitucional decidida por aquela Corte. Entretanto, o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro não é idêntico ao italiano. No Brasil, vigem, com as suas particularidades, tanto o sistema do controle concentrado como do controle difuso de constitucionalidade. Assim, os juízes brasileiros não possuem o mesmo dever dos juízes italianos. Todavia, ainda que sejam sistemas diversos, essa decisão é de grande valia para nosso estudo, pois ela conferiu os mesmos poderes de juízes aos árbitros, reconhecendo que ambos desempenham função jurisdicional. Esse ponto é que deve ser transportado para o direito brasileiro. Quando da análise da natureza jurídica da arbitragem, iremos retomá-lo, pois significa argumento fundamental à conclusão do poder do árbitro exercer o controle de constitucionalidade de normas brasileiras. 3 A natureza jurídica da arbitragem Nos tópicos anteriores, foram traçados os pressupostos básicos para se atingir a conclusão acerca da possibilidade do controle de constitucionalidade pelo árbitro. Para isso, foram analisados os modelos de controle de constitucionalidade, a forma de escolha e de aplicação da lei material na arbitragem e a vinculação às normas constitucionais. A discussão sobre a natureza jurídica da arbitragem, que se travou e se trava sobre o tema, permitirá a definição da atuação do árbitro e os poderes daí decorrentes. No caso da arbitragem, o debate sobre a sua natureza jurídica não se restringe somente ao Brasil nem ao presente momento. Na década de 1920, Guido Zanobini, O que se verifica em tal situação é a incidência de normas imperativas, normas de ordem pública, que determinam o exercício exclusivo da jurisdição constitucional por um órgão estatal. Somente em tais hipóteses de norma de ordem pública expressa é que se pode pensar em não controle pelo árbitro. 21 18 O Controle de Constitucionalidade no Procedimento Arbitral como notícia Carlos Alberto Carmona22 , afirmava ser o laudo uma verdadeira sentença, de forma que a sua homologação é um mero visto para concessão de exequatur. Outros doutrinadores italianos também contribuíram para o debate. Chivenda resolvia a questão da natureza jurídica através da afirmação de um ato jurídico complexo. Para ele, o laudo arbitral integraria a sentença homologatória do juiz togado, formando com ela uma unidade23. Finalmente, Calamandrei afirmava que o fenômeno que se apresenta aqui não faz parte daquele da complexidade da sentença, mas sim de outro fenômeno, que poderíamos denominar de preparação privada da sentença, no qual não há qualquer fracionamento do poder jurisdicional entre órgãos diversos, porque o fato de valer-se o juiz, ao decidir, de elementos lógicos preparados por particulares não exclui que a atividade jurisdicional comece apenas onde inicie o trabalho do juiz sobre os materiais predispostos.24 O debate é, portanto, internacional e duradouro. Entretanto, é possível observar que se criaram quatro teorias sobre a natureza jurídica da arbitragem. A primeira teoria é a chamada teoria jurisdicional. Para os que adotam essa corrente a jurisdição não é monopólio do estado; uma vez que, sendo possível a escolha de um terceiro para compor um conflito de interesse, como se Estado fosse, é reconhecível haver aí manifestação da jurisdição. A segunda corrente25 a se destacar é denominada teoria contratual26. Tem por fundamento o fato de que a arbitragem tem sua origem na vontade das partes e dela depende para o seu prosseguimento. A opção pela arbitragem seria um acordo, cujo objetivo é a renúncia à jurisdição. Ademais, o poder atribuído pelas partes ao árbitro não tem cunho jurisdicional, uma vez que elas não possuem jurisdição. Era previsível que surgisse uma terceira corrente, a chamada tória mista. Ela tem por norte o fato de arbitragem não se desenvolver fora de um sistema jurídico e, assim, ligada a um sistema jurisdicional. Mas não deixa de reconhecer que a arbitragem tem origem na autonomia da vontade das partes. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei n.º 9 307/96. 2.ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004. p. 234. 23 CHIOVENDA. Principii di Diritto Processuale Civile. Napole: Ed. Jovene, 1980. p. 109. 24 CALAMANDREI. La setenza soggettivamente complessa. In: Studi sul Processo Civile. Pádua: Cedam, 1930. p. 211-256. 25 “A natureza do juízo arbitral, portanto, é contratual, pressupondo seu emprego sujeitos capazes e direitos disponíveis, ou seja, os mesmos requisitos da transação, pois a faculdade de renunciar ao objeto litigioso é indispensável para a operacionalidade de ambos os institos.” GOMES, Luiz Felipe Azevedo. A intervenção do Estado na arbitragem. Ajuris. Ano XXIV, s/n, março. Porto Alegre, 1997. p. 369. 26 “Para os defensores da corrente privatista, entre eles, no estrangeiro, Saltore Satta, Carnelluti, Alfredo Rocco, Chiovenda, Elio Fazzalari e no Brasil, Cezar Fiúza, Cláudio Vianna de Lima entre outros, a opção pela utilização de árbitros seria um acordo, cujo objetivo é a renúncia à jurisdição e, via de conseqüência, à ação, para solução de determinada controvérsia.” COUTINHO, Cristiane Maria Henrichs de Souza. Arbitragem e a Lei n.º 9 307/96. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 20. 22 19 Artigo 1 Por derradeiro, temos a teoria autônoma que advoga a idéia de que a arbitragem internacional tem fundamento e se desenrola com base em regras próprias, sem vinculação com qualquer sistema jurisdicional nacional: (...) em este equivalente jurisdiccional, que es el arbitraje, los árbitros no están sujetos a lãs misma normas que los jueces. El proceso arbitrl se rige por lo dispuesto por las partes o por las normas establecidas por el ente que administra el arbitraje.27 O legislador brasileiro acabou, acertadamente, perfilando a corrente jurisdicional28. Como destacado anteriormente, segundo a teoria clássica da separação de poderes, cabe ao Poder Judiciário a solução de litígios. Entretanto, em alguns momentos o próprio constituinte relativizou essa atribuição, ao conferir poder decisório a outros poderes. Dentro das atribuições conferidas ao Poder Judiciário, o constituinte optou por adotar as modalidades de controle de constitucionalidade concentrada e difusa. Em regra, o controle difuso é realizado pelo juiz de primeira instância ao solucionar o litígio a ele encaminhado. Desta feita, a princípio poderia se pensar que, tendo o judiciário o predomínio da atividade jurisdicional, caberia a ele exclusivamente o controle de constitucionalidade incidenter tantum, já que este é manifestação do “poder de dizer o direito no caso concreto”. Todavia, o próprio legislador nacional atribui à arbitragem a natureza jurisdicional, permitindo que os árbitros digam o direito no caso concreto, e, por assim ser, havendo necessidade, realizem o controle de constitucionalidade incidenter tantum. Ademais, não cabe alegar que o conceito de jurisdicionalidade pressupõe requisitos fixos e estanques. É necessário vislumbrar a ratio essendi daquilo que se considera jurisdicional. Por esse motivo, não nos parece acertado afirmar que a arbitragem não poderia ser jurisdicional, porque os árbitros não detêm a coercitividade natural aos juízes de direito. Na verdade, a coercitividade, para nós, não se coloca como elemento SAENZ, J. M. de la Cuesta. Introducción al Arbitraje de Consumo. Revista de Derecho Privado. s/n. 1997. p. 122-123. 28 Cabe destacar a posição sui generis do professor Alexandre Câmara, que por não aceitar a equiparação entre a sentença arbitral e a sentença judicial, faz as seguintes considerações: “Sendo a arbitragem que se realiza obrigatoriamente em contraditório (o que, aliás, é determinado de forma cogente pela lei de arbitragem, que impõe a observância de tal princípio no procedimento arbitral), faz-se presente o ‘módulo processual’, devendose considerar, pois, que a arbitragem é um processo. Não, porém, um processo jurisdicional, pois a jurisdição é monopólio do Estado, não podendo ser exercida pelo árbitro, o qual é um ente privado. Ademais, não se faz presente na arbitragem a relação jurídica processual jurisdicional, qual seja, aquela que se estabelece entre as partes e o Estado-Juiz. Não há, portanto, como se admitir a natureza jurisdicional da arbitragem, embora não se posa negar o múnus público exercido pelo árbitro, em sua atividade privada, de busca da pacificação social.” CÂMARA, Alexandre. Arbitragem. 4.a ed. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2005. p. 15. 27 20 O Controle de Constitucionalidade no Procedimento Arbitral essencial para a afirmação da natureza jurisdicional, uma vez que o próprio judiciário, muitas vezes, não se utiliza dela ao resolver o litígio no caso concreto. Dessa forma, a ausência de poder coercitivo dos árbitros não é obstáculo para a consagração da natureza jurisdicional da arbitragem. Destaca-se que esse poder atribuído ao árbitro decorre da necessidade que o árbitro tem de aplicar a lei indicada pelas partes em sua inteireza. Como salientado pelo professor Jacob Dolinger29, ao analisar a aplicação do direito estrangeiro pelo judiciário, o árbitro deverá aplicar a norma de acordo com o contexto do ordenamento jurídico na qual a mesma se insere. Cabe, contudo, deixar claro que está a se defender a possibilidade de controle de constitucionalidade por parte do árbitro na análise do caso concreto. É evidente que o papel atribuído ao Supremo Tribunal Federal, pela Constituição, para realizar o controle concentrado de constitucionalidade não pode ser usurpado pelo árbitro. Acrescente-se, ainda, que, no caso brasileiro, não se poderia aplicar, anteriormente mencionado precedente da Corte Constitucional Italiana30. A Constituição brasileira assentou que somente terão legitimidade para promover o controle concentrado de constitucionalidade aqueles que se encontram elencados no artigo 10331, dentre os quais não se incluem o juiz togado de primeira instância, nem os árbitros32. Apesar de o sistema brasileiro apresentar a modalidade concentrada do controle de constitucionalidade, ela não foi estruturada nos mesmos moldes do controle exercido pela Corte Constitucional Italiana. 4 Considerações finais O presente estudo procurou dedicar-se a um tema muito recente e inovador: a conjugação entre o direito constitucional e o direito internacional. Procurouse avaliar as relações entre esses ramos jurídicos através do exame do controle de DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado. Parte Geral. 6.ª ed. 2001. p. 277. Corte Constitucional Italiana, caso n.º 376, depositada em 28.11.2001. 31 Art. 103 Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. 32 Nesse sentido ver: Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999; Cretella Júnior, José. Comentários à Constituição brasileira de 1988. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994; Bastos, Celso Ribeiro; Martins, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. 29 30 21 Artigo 1 constitucionalidade na arbitragem. Ainda que não enfrentado diretamente pelos tribunais brasileiros, esse questionamento vem sendo tema recorrente nos debates internacionais, tendo sido inclusive objeto, como visto, de julgamento pela Corte Suprema da Itália. O instituto da arbitragem vem sendo amplamento discutido, principalmente a partir da publicação da Lei n.º 9 307/96. Entretanto, a sua aplicação e utilização de mecanismos naturalmente utilizados em procedimentos judiciais, como o controle de constitucionalidade ou ainda medidas liminares, ainda são pouco debatidos pela doutrina nacional. Apesar de tantas indefinições procuramos demonstrar que, por meio de precedentes internacionais e do cenário globalizado que hoje se instaura, a prática arbitral é uma verdade. Para isso, analisamos os princípios norteadores desse mecanismo de solução de controvérsias, dentre os quais a autonomia da vontade. O reflexo dela na escolha da lei aplicável ao mérito demonstrou que é preciso fazer um exame aprofundado e completo dessa lei, não bastando aplicá-la em desconexão com seu sistema de origem. A supremacia constitucional e a força mandamental das regras constitucionais fazem com que, inclusive na arbitragem, a sua observação se faça obrigatória. A partir desse ponto, construiu-se toda uma linha de raciocínio demonstrando a possibilidade da relativização da competência para o exercício do controle constitucional. A diversidade de sistemas de controle constitucionais também foi significativo argumento para sustentar a tese. Finalmente, a natureza jurídica da arbitragem e a demonstração de poderes do árbitro semelhantes ao de um magistrado serviram para fechar o raciocínio e, portanto, concluir que é possível o árbitro realizar o controle de constitucionalidade de uma norma, nos moldes de um controle difuso de constitucionalidade. 5 Referências ANGELATS, Luís Caballol. 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Membro Conselheiro e Pesquisador do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ/RS). 1 Introdução. 2 Constituição dirigente e vinculação do administrador: o exemplo privilegiado da discricionariedade no âmbito do direito administrativo. 3 O controle jurisdicional das políticas públicas e as condições de possiilidade para o acontecer do Estado social e democrático de direito. 4 O problema da legitimidade da jurisdição constitucional na concretização dos direitos fundamentais sociais. 5 Considerações finais. 6 Referências. Resumo O presente estudo tem como pano de fundo a idéia de que a Constituição dirigente ainda permanece viva e mostra-se imprescindível, sobretudo em realidades constitucionais como a brasileira. A partir disso, procura demonstrar de que modo o constitucionalismo dirigente-compromissário vincula não apenas o legislador, mas também o administrador, ao contrário da blindagem construída em torno da discricionariedade e do mérito administrativo. Apresenta, também, o controle jurisdicional das políticas públicas e as condições de possibilidade para a implementação do Estado social e democrático de direito. Por fim, desenvolve algumas considerações acerca da legitimidade – e do papel – da jurisdição constitucional na concretização dos direitos fundamentais sociais. Palavras-chave: Constitucionalismo dirigente; Administração pública; Direitos fundamentais sociais; Estado democrático de direito; Jurisdição constitucional 26 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais Abstract The background of this essay is the conception that the “normative-leader Constitution” is alive and indispensable, first of all, in constitutional contexts like brasilian one. And so on, it intents to show how the “leader-compromisse constitutionalism” binds not only the legislative branch but the public administration, differently of the “armour” discourse constructed around the discritionary powers and the administrative decisions. It shows, too, the judicial review of policies must be compreehence and the requirements to develop and implement the Welfaire State. At last, it explains same considerations about the legitimacy of judicial review of legislation in the sense to guarantee effectively the social rights. Keywords: Normative-leader Constitution; Public administration; Social rights; Welfaire State; Judicial review of legislation 1 Introdução O presente estudo tem como objetivo desvelar uma face normalmente ocultada da Constituição dirigente: aquela que vincula o administrador, impondo-lhe o compromisso de concretizar os direitos fundamentais sociais através da realização de políticas públicas. Na primeira parte, demonstrar-se-á que a idéia de Constituição dirigente ainda permanece viva – e atual –, sendo ainda imprescindível à realidade constitucional dos países periféricos, em especial à brasileira, e também que o constitucionalismo dirigente compromissário não vincula apenas o legislador, mas também o juiz e o administrador, em que pesem as dificuldades decorrentes, por exemplo, do mito do mérito administrativo. Na segunda parte, tentar-se-á justificar a necessidade de um efetivo controle jurisdicional das políticas públicas, bem como as condições de possibilidade para a devida implementação – e, antes disso, compreensão – daquilo que se entende por Estado social e democrático de direito, tendo em vista a crise de imaginário vivida pela grande maioria da comunidade jurídica pátria que, em pleno século XXI, permanece atrelada ao paradigma liberal-individualista-normativista porque refém do paradigma da filosofia da consciência. Na terceira parte, desenvolver-se-ão algumas considerações acerca do problema da legitimidade dos tribunais na materialização dos direitos fundamentais sociais, especialmente após o surgimento do neoconstitucionalismo, inaugurado com o advento dos textos constitucionais elaborados a partir do segundo pós-guerra. Por fim, à guisa de conclusão, apontar-se-á para algumas das características (con)formadoras de um regime jurídico administrativo – em que o administrador 27 Artigo 2 encontre-se efetivamente vinculado ao programa constitucional – capaz de corresponder às complexas expectativas de uma sociedade que se diz pós-moderna e, ao mesmo tempo, subdesenvolvida. 2. Constituição dirigente e vinculação do administrador: o exemplo privilegiado da discricionariedade no âmbito do direito administrativo A obra Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, de J. J. Gomes Canotilho, publicada em 1982, pode ser considerada, sem sombra de dúvidas, um verdadeiro marco na história do constitucionalismo1, tendo em vista que inaugura aquilo que se entende por dirigismo constitucional. Nela, Canotilho oferece ao leitor uma construção daquilo que ele denomina Teoria da Constituição constitucionalmente adequada, à medida que recupera as grandes teorias da Constituição então existentes e avança pelos estudos dos mais importantes teóricos do direito da época até alcançar o seu núcleo essencial – que é precisamente a discussão sobre a discricionariedade do legislador –, apresentando limites e imposições convincentes – tanto negativas como positivas – à atuação do poder legislativo2. Já no título da obra, Canotilho aponta para o núcleo daquela que será a principal questão – ligada às relações entre a Constituição e a lei – a ser colocada: o que deve (e pode) uma Constituição ordenar aos órgãos legiferantes e o que deve (como e quando deve) fazer o legislador para cumprir, de forma regular, adequada e oportuna, as imposições constitucionais3. Nesse contexto, a “Constituição dirigente pode ser entendida como o bloco de normas constitucionais em que se definem fins e tarefas do Estado, se estabelecem diretivas e estatuem imposições”4, aproximando-se, desse modo, da noção de Constituição programática5. Segundo a tese do renomado constitucionalista, em termos jurídicoprogramáticos, uma Constituição dirigente representa um projeto histórico pragmático Não se pode olvidar, contudo, que Peter Lerche, em 1961, já havia desenvolvido, em seu Übermass und Verfassungsrecht, uma idéia de Constituição dirigente (diferente da concepção elaborada por J. J. Gomes Canotilho) e, também, uma outra tipologia de classes de normas constitucionais, bem como enfrentado os problemas inerentes à sua operatividade, tanto em relação à sua teorização como à sua aplicação prática. 2 Ver CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra Editora, 1982, p. 154-158; e, ainda, GUEDES, Néviton. Prefácio. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 6. 3 Cf. CANOTILHO, Constituição dirigente..., op. cit., p. 11. 4 Id., ibid., p. 224. 5 No mesmo sentido, ver GRAU, Eros Roberto. Resenha do Prefácio da 2 ed. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 1 28 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais de limitação dos poderes do legislador – de questionar, da liberdade de conformação do legislador, de vinculação deste aos fins que integram o programa constitucional6. Nessa linha, a Constituição deixaria de ser concebida como um estatuto organizatório, como um simples instrumento de governo, definidor de competências e regulador de processos, transformando-se num verdadeiro plano global normativo do Estado e da sociedade, no qual estão determinadas as tarefas, estabelecidos os programas e definidos os fins7. Entretanto, recentemente, Canotilho reviu seu posicionamento e publicou a segunda edição de sua obra8 – Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador –, acrescentado prefácio, onde consta que a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, por si só, operar transformações emancipatórias. Também suportará impulsos tanáticos qualquer texto constitucional dirigente introvertidamente vergado sobre si próprio e alheio aos processos de abertura do direito constitucional ao direito internacional e aos direitos supranacionais. Numa época de cidadanias múltiplas e de múltiplos de cidadanias seria prejudicial aos próprios cidadãos o fecho da Constituição, erguendo-se à categoria de linha Maginot contra invasões agressivas dos direitos fundamentais. Alguma coisa ficou, porém, da programaticidade constitucional. Contra os que ergueram as normas programáticas, a linha de caminho de ferro neutralizadora dos caminhos plurais da implantação da cidadania, acreditamos que os textos constitucionais devem estabelecer as premissas materiais fundantes das políticas públicas num Estado e numa sociedade que se pretendem continuar a chamar de direito, democráticas e sociais.9 Justificando a nova postura adotada, Canotilho esclarece que a Constituição dirigente era um projeto – agora acabado – da modernidade, um projeto de transformação que triunfou, um projeto com sujeitos históricos determinados, no caso português: a classe trabalhadora e o movimento das forças armadas10. Ora, é preciso levar em conta que, diferentemente do que ocorre no Brasil, onde a força normativa da Constituição ainda enfrenta inúmeras e severas resistências, Ver CANOTILHO, Constituição dirigente e vinculação do legislador, op. cit., p. 215-287; e, também, CANOTILHO, J. J. Gomes. Videoconferência. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 15. 7 Id., Constituição dirigente..., op. cit.; e, também, BERCOVICI, Gilberto. A problemática da Constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 36, n.º 142, p. 35-51, abr./jun., 1999, p. 37. 8 Muito embora a segunda edição da referida obra só tenha sido publicada em 2001, J. J. Gomes Canotilho já vinha repensando sua tese desde a publicação de CANOTILHO, J. J. Gomes. Rever ou romper com a Constituição dirigente? Defesa de um constitucionalismo moralmente reflexivo. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, n.º 15, p. 7-17, abr./jun. 1996. 9 Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. 2.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. 10 Id., Videoconferência..., op. cit., p. 14. 6 29 Artigo 2 a obra Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador já alcançou adequadamente os seus propósitos nas terras d’além-mar11. Cumpre referir, ainda, que ninguém mais advoga, em Portugal, as teses de que a Constituição possui um caráter dúplice e de que o legislador esteja totalmente livre quanto aos fins que deve perseguir. Mesmo que atualmente se reconheça ampla margem de apreciação e de conformação do legislador, não há quem negue a existência de uma Constituição que disciplina a sua atuação política12. Segundo Canotilho, o problema que se coloca atualmente no cenário europeu é o de saber se uma geração pode sujeitar às suas leis as gerações futuras: deve-se, portanto, cristalizar políticas na Constituição ou manter uma abertura para as várias políticas possíveis: Hoje, penso que o momento de maior tensão é este. Tudo isto tem sido criticado em Portugal: diz-se que as políticas públicas devem ser abertas, porque as políticas públicas hoje são plurais, devem responder aos programas políticos dos vários governos possíveis.13 Nessa mesma linha, levando em consideração as particularidades do contexto europeu, Canotilho sustenta que a Constituição e o seu estado não respondem mais aos esquemas – sistêmicos – de organizações sem centro e sem diretividades, como é o caso da atual realidade política-econômica do novo velho continente14. Assim, quando Canotilho coloca a questão da morte da Constituição dirigente, mostra-se imprescindível esclarecer por que razão é que se ataca o dirigismo constitucional: Uma coisa é dizer que estes princípios não valem e outra é dizer que, afinal de contas, a Constituição já não serve para nada, já não limita nada. O que se pretende é uma coisa completamente diferente da problematização que vimos efectuando: é escancarar as portas dessas políticas sociais e econômicas a outros esquemas que, muitas vezes, não são transparentes, não são controláveis. Então eu digo que a Constituição dirigente não morreu.15 Observa-se, desse modo, sem embargo à nova posição defendida por Canotilho16, o reconhecimento expresso de que, quando está a falar em direito mitigado, Cf. GUEDES, op. cit., p. 7. Id., ibid., p. 7. 13 Cf- CANOTILHO, Videoconferência..., op. cit., p. 20. 14 Id., ibid., p. 23. E mais: para Canotilho, se, de um lado, pode-se falar da fraqueza das Constituições nacionais; de outro, quem passa a mandar, quem passa a ter poder, são os textos internacionais, de modo que a diretividade programática permanece, apenas transferindo-se para estes (id., ibid., p. 15). 15 Id., ibid., p. 31. 16 Id., ibid., p. 35. 11 12 30 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais em direito reflexivo, em direito pós-moderno, em direito mite, em direito desregulado, ele está a falar, em suma, de uma etapa que muito pouco – para não dizer absolutamente nada – tem a ver com aquela pela qual passa atualmente o Brasil e os demais países da América Latina17. Dito de outro modo, ao considerar a necessidade de uma teoria da Constituição pós-moderna, na qual não existe centro e em que os Estados nacionais tornaram-se apenas uma parcela de outro esquema organizativo, Canotilho evidencia que sua preocupação está voltada exclusivamente para a realidade européia18, ao reconhecer que Estamos a esquecer que no Brasil a centralidade é ainda do Estado de direito democrático e social, que a centralidade é ainda do texto constitucional, que é a carta de identidade do próprio país, que são estes direitos, apesar de pouco realizados, que servem como uma espécie de palavra ordem para a própria luta política.19 Assim sendo, parece que razão assiste a Eros Grau quando refere que “a morte decretada da Constituição dirigente é, como se vê, muito, extremamente relativa – se é que se pode morrer não em termos absolutos”20, haja vista que, segundo o próprio Canotilho, “as Constituições dirigentes existirão enquanto forem historicamente necessárias”21. Ora, é necessário, portanto, dar-se conta para o fato de que, quando se discute a problemática da Constituição dirigente – a Constituição que define fins e objetivos para o Estado e a sociedade –, é preciso que se fixe, sempre, ao texto de uma determinada Constituição, tendo em vista que o texto constitucional é aquele que regula uma ordem histórica e concreta, de modo que a definição da Constituição só pode ser obtida a partir de sua inserção na realidade histórica22. Contudo, ao contrário do atual cenário econômico-político-jurídico da União Européia, onde se arquiteta – não obstante o fracasso dos referendos – um projeto de supraconstituição dirigente, cumpre referir que, sobretudo nos países periféricos, a cessão do lugar da lei dirigente ao contrato pode acarretar o sacrifício da própria democracia, isso para não falar das nefastas conseqüências decorrentes dos processos de desconstitucionalização e desregulamentação, que reduziriam ainda mais os poucos espaços de cidadania e, ainda, contribuiriam para o aumento dos privilégios e desigualdades sociais. Ver, para tanto, NEVES, Marcelo. Entre subintegração e sobreintegração: a cidadania inexistente. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 37, n.º 2, p. 253-276, 1994. 18 Sobre o modo como os europeus preocupam-se unicamente com seus problemas, desconsiderando, por exemplo, as dificuldades verificadas nos países periféricos, vale lembrar a observação de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho no sentido de que “é preciso parar de brincar de seguir o chefe; vamos tratar de construir alguma coisa que seja mesmo nossa, porque eles têm toda a razão”. Cf. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 19 Cf. CANOTILHO, Videoconferência..., op. cit., p. 35. 20 Cf. GRAU, op. cit. 21 Cf. CANOTILHO, Videoconferência..., op. cit., p. 40. 22 Id., Constituição dirigente..., op. cit., p. 154-158; e, ainda, BERCOVICI, A problemática da Constituição dirigente..., op. cit., p. 35. Aliás, segundo Grau (op. cit.), “não existe a Constituição, do Brasil, de 1988, pois o que realmente existe, aqui e agora, é a Constituição do Brasil, tal como hoje, aqui e agora, esta sendo interpretada/aplicada”. 17 31 Artigo 2 Nesse sentido, a advertência feita por Dieter Grimm, que serve tanto para legitimar a revisão operada por Canotilho, em face do contexto europeu, como, também, para justificar a persistência na idéia de uma Constituição dirigente em países como o Brasil, em face necessidade da concretização dos direitos fundamentais mais elementares: A bondade das Constituições não se deixa determinar de uma forma absoluta e universal, mas apenas segundo um contexto histórico-concreto. O que tem êxito em um país, não serve necessariamente para um outro. O que era razoável no passado, pode perder seus objetivos no presente. Constituições apontam para o resultado no futuro e afirmam-se (historicamente) no tempo. Seu êxito depende por isso também dos problemas que se opõem a elas no curso do tempo. Tais problemas conclusivamente apenas podem ser previstos pelos autores da Constituição de forma limitada. Por conseguinte, as soluções também quase sempre não se encontram dispostas prontamente na Constituição. A diferença entre normas abstratas e problemas concretos precisa ser ultrapassada, pelo contrário, através do significado e aplicação das normas. Nesse ponto, o êxito de uma Constituição também [depende das] respostas que são extraídas pelos intérpretes das normas constitucionais e que são determinadas definitivamente pelo teor da Constituição.23 Desse modo, em que pese a referida morte da Constituição dirigente e a subscrição de tal tese por parte de alguns juristas brasileiros24, parece evidente que a Constituição brasileira é – e tem sido – uma Constituição dirigente25. Em outras palavras, a manutenção de um constitucionalismo dirigente-compromissário mostrase indispensável no Brasil, “porque somos a sociedade que hoje somos”, como diz Eros Grau26. Mais, e esse é o ponto que – para o presente estudo – parece ser o mais relevante: se a Constituição brasileira é dirigente e, além disso, ainda vincula o GRIMM, op. cit., p. 295. Entre aqueles que calorosamente recepcionaram a guinada proposta por J. J. Gomes Canotilho, destacam-se, sobretudo, Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Manoel Gonçalves Ferreira Filho. 25 Nesse sentido, ver STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 95-145, e, especialmente, STRECK, Lenio Luiz. A concretização de direitos e a validade da tese da Constituição dirigente em países de modernidade tardia. In: NUNES, António José Avelãs; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Orgs.). Diálogos constitucionais: Brasil/Portugal. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 301-371. onde o autor defende o desenvolvimento de uma Teoria da Constituição Dirigente adequada a países de modernidade tardia, tendo em vista que, consideradas as peculiaridades européias – locus da preocupação fundamental de Canotilho – e as diferenças entre o caráter revolucionário originário do texto constitucional português e o caráter social e (não-revolucionário) da Constituição brasileira, é possível afirmar que continuam perfeitamente sustentáveis as teses relacionadas ao caráter dirigente e compromissário do texto constitucional brasileiro. Na mesma linha, SCAFF, Fernando Facury. Mesa redonda. In: COUTINHO Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 88-89, entende que “ele [Canotilho] apenas retirou da sua dimensão de Constituição dirigente o aspecto revolucionário. Acho que este é o grande ponto. E a dimensão revolucionária foi ampliada, não mais sendo colocada dentro de um país soberano, mas sim dentro de um tratado internacional, de convenções internacionais”. 26 Cf. GRAU, op. cit. 23 24 32 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais legislador e, também, o juiz e o administrador, que não têm liberdade absoluta de conformação, mas, sim, devem mover-se dentro do enquadramento constitucional27, não é mais possível admitir que a doutrina tradicional e a jurisprudência majoritária do País ainda defendam, com base na separação de poderes, uma larga margem de discricionariedade do administrador, a blindagem do mérito administrativo e a necessidade de conceitos jurídicos indeterminados, sob o argumento de que, apenas assim, a Administração Pública pode atender às exigências de uma sociedade complexa e em constante transformação28. Segundo Krell, nos principais manuais de direito administrativo ainda prevalece a clássica distinção entre atos administrativos vinculados, definidos como aqueles para os quais a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização, os preceitos legais não deixam para o órgão nenhuma liberdade de decisão; e atos administrativos discricionários, definidos como aqueles que a Administração pode praticar com liberdade de escolha do seu conteúdo, de seu destinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização29. Cumpre referir, aqui, que o advento da Lei da Ação Popular (Lei n.º 4 717/65) contribuiu sobremodo para os (des)caminhos da doutrina administrativista brasileira, mediante a subdivisão de atos administrativos que estabeleceu e conceituou. Seguindo a referida legislação, a doutrina considera sempre vinculadas: a competência do ato (atribuição legal de um órgão administrativo habilitado para produzir o ato), a sua forma (revestimento exterior do ato) e a sua finalidade (resultado a ser alcançado com a prática do ato, o interesse público específico). De outro lado, entende que o motivo e o objeto do ato constituem a residência natural da discricionariedade administrativa e podem, portanto, agasalhar o mérito da decisão30. Segundo Canotilho (Constituição dirigente..., op. cit., p. 174-175, 294-295 e 363-380), o destinatário das imposições constitucionais – que se diferenciam das normas programáticas por serem imposições concretas, ao invés de abstratas – não é apenas o Parlamento (leia-se legislador), mas também o Governo, (leia-se administrador). 28 Cf. KRELL, Andreas. A recepção das teorias alemãs sobre “conceitos jurídicos indeterminados” e o controle da discricionariedade no Brasil. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica – (Neo)constitucionalismo, Porto Alegre, n.º 2, p. 33-78, 2004, para quem: “No antigo Estado de Polícia da Europa dos séculos XVI a XVIII, a discricionariedade ainda era considerada genuína expressão da soberania do monarca. Somente após muitos anos de debate, em face da desconfiança inerente à Revolução Francesa, a discricionariedade passou a ser aceita com verdadeira necessidade para habitar a Administração Pública a agir com mais eficiência na organização dos serviços públicos e do atendimento das múltiplas demandas e reinvindicações das sociedade industrializadas. Ficou evidente que, perante a dinâmica do mundo moderno, onde sempre vêm surgindo situações novas e imprevistas, que exigem uma atuação célere e eficaz da Administração, o legislador está impossibilitado de regulamentar todos os possíveis casos de modo antecipado e em detalhes” (id., ibid., p. 36). 29 Id., ibid., p. 38. Nesse sentido, ver MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 8.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 125, onde refere que é “freqüente encontrar-se na doutrina imagem utilizada para caracterizar o poder vinculado em contraposição ao poder discricionário: o poder vinculado teria seu exercício comparado ao da funcionária de um teatro a quem o espectador mostra sua entrada numerada, cabendo a ela somente indicar o lugar marcado no bilhete; o poder discricionário seria comparado à funcionária do teatro quando as entradas não são numeradas e então encaminha o espectador para onde quiser”. 30 Cf. KRELL, A recepção das teorias..., op. cit., p. 41-42. 27 33 Artigo 2 Contudo, ao contrário do sustentado pela maioria da doutrina e da jurisprudência, é necessário chamar a atenção para o fato de que tal distinção não subsiste. A vinculação dos agentes administrativos aos termos empregados pela lei apresenta, com efeito, uma variação meramente gradual: os atos vinculados não possuem uma natureza diferente daquela dos atos discricionários, de modo que a diferença, relativa ao grau de liberdade de decisão concedida pelo legislador, é apenas quantitativa, e não qualitativa31. A técnica legislativa do emprego de conceitos vagos, abertos e fluidos, que conferem à Administração a responsabilidade para avaliar questões técnicas, ponderar interesses contraditórios e decidir sobre quais políticas realizar, aponta, necessariamente, para a discricionariedade do administrador. Observa-se, assim, que aquilo que ocorre é a transferência de parte da liberdade de conformação do legislador para o âmbito da Administração Pública, resultando a discricionariedade em uma espécie de “ferramenta jurídica que a ciência do direito entrega ao administrador para que a gestão dos interesses sociais se realize correspondendo às necessidades de cada momento”32 . Os problemas aparecem, todavia, no momento em que a discricionariedade administrativa torna-se uma verdadeira carta branca da qual dispõe o administrador e cujo controle é demasiadamente restrito em razão da blindagem criada em torno do mérito administrativo. Dito de outro modo, tudo indica que, no Brasil, ainda se justifica a metáfora de Hans Huber de que a discricionariedade administrativa representaria no Estado de direito um verdadeiro Cavalo de Tróia, tendo em vista que os conceitos indeterminados, a discricionariedade administrativa e o mérito administrativo servem, até hoje, para encobrir as arbitrariedades da Administração Pública33. Ora, é necessário levar em consideração – retomando a idéia principal –, que o administrador, em que pese disponha de certa margem de liberdade de conformação, encontra-se vinculado, acima de tudo, ao projeto e à principiologia constitucional34. Id., ibid., p. 40-41: “A qualificação de um ato administrativo como plenamente vinculado – ainda comum na doutrina e jurisprudência do Brasil – parece remontar aos equívocos da Escola da Exegese, que pregava que normas legais serviriam de prontuários repletos e não lacunosos para dar solução aos casos concretos, cabendo ao aplicador um papel subalterno de autonomamente aplicar os comandos prévios e exteriores de sua vontade. Ao mesmo tempo, a idéia de conceitos tecnicamente precisos constitui um legado da Jurisprudência de Conceitos, que acreditava na definição da única solução correta do caso específico”. 32 Cf. FIORINI apud DI PIETRO, Maria Zanella. Legalidade e regulação. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, n.º 3, p. 59-68, 2003. 33 Cf. KRELL, A recepção das teorias..., op. cit., p. 65. 34 Nesse sentido, ver OHLWEILER, Leonel Pires. Teoria versus prática: em busca da função social da dogmática jurídica. O exemplo privilegiado do direito administrativo. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica – Crítica à dogmática, Porto Alegre, n.º 3, p. 129-164, 2005. 31 34 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais Nesse sentido, não se pode olvidar que, nesta nova quadra da história, o princípio da legalidade deve estar em harmonia com a noção de Estado social e democrático de direito35. Se, na fase inauguração do Estado de direito, o princípio da legalidade restringia-se à forma, na medida em que se limitava a proteger os indivíduos da atuação do Estado, através da submissão da Administração aos aspectos formais da lei, pode-se afirmar que, atualmente, o princípio da legalidade também abarca o conteúdo, a substância, devendo se mostrar, sobretudo, em consonâncias com as orientações constitucionais36. Dito de outro modo, a idéia de legalidade estrita como único dogma do Estado de direito apresenta-se absolutamente insuficiente; hoje, vive-se a legalidade que instrumentaliza ações políticas como o grande fator legitimador da ação políticolegal: Faz sentido hoje pensarmos no controle das leis único e exclusivamente a partir da sua adequação formal ao texto constitucional? Faz sentido buscarmos avaliar o controle de constitucionalidade colocando no oblívio, jogando no esquecimento, a circunstância particularíssima de que a legalidade de hoje, para usar uma expressão italiana, servenos como indirizzo, como um veículo conformador, transformador das estruturas sociais numa perspectiva essencialmente dinâmica, diversa daquela perspectiva estática da legalidade do final do século XVIII?37 Partindo deste pressuposto – de que o princípio da legalidade evoluiu e, atualmente, detém um caráter substancial, que transcende a mera formalidade –, resta mais uma vez evidente a vinculação do administrador à Constituição (dirigente). Todavia, alheia a isso, a discussão, no Brasil, continua a girar, compulsivamente, em torno da finalidade do ato administrativo, sendo pautada pela clássica doutrina francesa da teoria do “desvio do poder”38. Ocorre que esse tipo de controle – do desvio do poder – não resolve o problema da possibilidade de revisão das mais diversas decisões administrativas, tendo em vista que a grande maioria da doutrina e da jurisprudência sustenta a impossibilidade de o Ver, para tanto, OHLWEILER, Leonel Pires. Administração pública e a materialização dos direitos fundamentais: contributo da fenomenologia hermenêutica. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica – Em busca dos direitos perdidos, Porto Alegre, n.º 1, p. 147-172, 2003; e, também, TOJAL, Sebastião Botto de Barros. Controle judicial da regulamentação de políticas públicas. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, n.º 3, p. 185-194, 2003. 36 Ver, pra tanto, GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones del Estado contemporáneo. 3.ª ed. Madrid: Alianza, 1995. 37 Cf. TOJAL, op. cit., p. 190-191. 38 Cf. DI PIETRO, Maria Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991; MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001; FRANÇA, Vladimir da Rocha. Vinculação e discricionariedade nos atos administrativos. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 38, n.º 151, p. 109-123, jul./set. 2001. 35 35 Artigo 2 controle adentrar no mérito do ato administrativo, esfera esta que delimita o núcleo da discricionariedade, em que se dá o resultado de considerações extrajurídicas – juízos de oportunidade ou conveniência –, que seriam blindadas à revisão judicial39. É necessário, portanto, dar-se conta de que o Administrador não pode continuar a utilizar-se da discricionariedade administrativa, dos conceitos jurídicos indeterminados e do mérito administrativo como álibis para legitimar arbitrariedades, pois O que já está definido (está-se a referir aos direitos, princípios e objetivos). O como (como satisfazer os direitos, princípios e objetivos fundamentais), este, sim, é matéria residente no âmbito de decisão de natureza política. Alguns buscarão técnicas com determinada fisionomia, outros preferirão mecanismos dotados de natureza diversa. Mais intervencionistas ou menos intervencionistas, esses mecanismos decorrem de políticas que terão como compromisso último a satisfação dos direitos fundamentais, a consecução dos objetivos da República Federativa do Brasil e, ao mesmo tempo, o respeito aos princípios fundamentais.40 A grande questão, no entanto, é que a ineficácia dos direitos fundamentais sociais não se deve à falta de leis ordinárias, mas sim à ausência da prestação real dos direitos mais básicos pelo Poder Público. O problema, em síntese, reside fundamentalmente na formulação, implementação e manutenção de políticas públicas a serem prestadas pela Administração, nos termos do compromisso firmado na Constituição (dirigente) brasileira41. 3 O controle jurisdicional das políticas públicas e as condições de possibilidade para o acontecer do Estado social e democrático de direito Visto que as tarefas e fins do Estado inseridos no texto constitucional são propostas de legitimação material da Constituição de um país, que a compreensão material da Constituição passa pela materialização dos fins e tarefas constitucionais e que o Estado constitucional de direito não se identifica mais com o Estado de direito formal, mas quer legitimar-se como Estado social, aparece o problema do papel da Cf. KRELL, A recepção das teorias..., op. cit., p. 43. Destaque-se, ainda, que a origem da imunidade da conveniência e da oportunidade, inovocadas pela Administração Pública, remete a longa data. A Lei n.º 221, de 20 de novembro de 1894, em seu art. 13, § 9.º, alínea “a”, já estabelecia que: “a autoridade judiciária fundar-se-á em razões jurídicas, abstendo-se de apreciar o merecimento dos atos administrativos, sob o ponto de vista de sua conveniência ou oportunidade”. 40 Cf. CLÈVE, Clèmerson Merlin. O desafio da efetividade dos direitos fundamentais sociais. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, n.º 3, p. 289-300, 2003, p. 293. Ver, ainda, a lição de Canotilho (Constituição dirigente..., op. cit., p. 316-317) em relação ao “se”, ao “quê” e ao “como”. 41 Nesse sentido, ver KRELL, Andréas. Realização dos direitos fundamentais sociais mediante controle judicial da prestação dos serviços públicos básicos. Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito da UFPE, Recife, n.º 10, p. 25-62, 2000, p. 30-31. A respeito da composição – federativa – dos gastos nos orçamentos da União, dos Estados e dos Municípios, remete-se o leitor ao recente estudo desenvolvido por BERCOVICI, Gilberto. Dilemas do Estado federal brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. 39 36 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais Constituição dirigente na transformação da realidade social, mormente se se considerar que uma Constituição programática – que deixa de ser apenas do Estado, passando a ser também da sociedade – torna mais transparente a vinculação dos órgãos de direção política na medida em que lhes fornece as linhas de direção42. Ora, destaque-se, aqui, que não se quer dizer, com isso, que a Constituição dirigente estabelece uma única linha de atuação para a política, reduzindo a direção política à execução dos preceitos constitucionais. Muito pelo contrário: o que a Constituição dirigente pretende, antes de mais nada, é estabelecer um fundamento constitucional para a política, que deverá mover-se dentro dos limites que caracterizam esse projeto constitucional. A Constituição dirigente, na esteira do que ensina Bercovici, não substitui a política, mas se torna a sua premissa material43. Dito de outro modo, ao contrário da nomocracia estática do Estado liberal, a legitimidade do Estado contemporâneo encontra-se diretamente atrelada à capacidade de realizar – com ou sem a participação ativa da sociedade – os objetivos estabelecidos na Constituição44. Nesse contexto, a reorganização da atividade estatal, em razão das finalidades coletivas, torna-se indispensável, de modo que a progressiva constituição de condições básicas para o alcance da igualdade material e social exsurge como a maior das prioridades dos poder público, conforme aponta Comparato: O Estado social é, pois, aquela espécie de Estado Dirigente em que os poderes públicos não se contentam em produzir leis ou normas gerais, mas guiam efetivamente a coletividade para o alcance de metas predeterminadas.45 Com isso, pode-se afirmar seguramente que, se o constitucionalismo liberal voltava-se para o Legislativo, poder ao qual competia a tarefa de dar expressão legal à soberania popular, restando o Executivo e o Judiciário responsáveis tão-somente pela mera execução das normas legais, sem nenhuma iniciativa ou impulso próprios, as coisas mudaram de forma especialmente no século XX. Quando a legitimidade do Estado passou a fundar-se na realização de finalidades coletivas a serem alcançadas programadamente, o critério classificatório das funções estatais deslocou-se para a esfera das políticas públicas, alçando o Executivo à condição de ordenador das múltiplas estratégias e atividades estatais46. Cf. BERCOVICI, A problemática da Constituição dirigente..., op. cit., p. 38. Id., ibid., p. 40. 44 Ver COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 35, n.º 138, p. 39-48, abr./jun. 1998, p. 43. 45 Id., ibid., p. 43. 46 Id., ibid., p. 44. Na mesma linha, Karl Loewenstein desenvolve, em Political Power and the Governmental Process (1957), uma nova tripartição de poderes, ou reclassificação das funções do Estado, representada do seguinte modo: poliicy determination, policy execution e policy control. 42 43 37 Artigo 2 Observa-se, assim, que o Estado social não se legitima pela simples produção de direito, como ocorria com o Estado liberal, mas sim pela execução de políticas públicas, isto é, pela realização de programas de ação, que materializem os direitos fundamentais sociais: Os direitos fundamentais sociais não são direitos contra o Estado, mas sim direitos através do Estado, exigindo do Poder Público certas prestações materiais. O Estado, através de leis, atos administrativos e da criação real de instalações de serviços públicos, deve definir, executar e implementar, conforme as circunstâncias, as chamadas políticas sociais (de educação, saúde, assistência, previdência, trabalho, habitação) que facultem o gozo efetivo dos direitos constitucionalmente protegidos.47 Entretanto, e aqui residem as dificuldades, não se pode olvidar que, de um lado, a definição dos fins do Estado não pode – nem deve – derivar da vontade política conjuntural dos governos, pois os fins políticos supremos e as tarefas do Estado encontram-se normatizados na Constituição; enquanto, de outro, o programa constitucional não pode tolher a liberdade do legislador – e tampouco a do administrador –, nem impedir a renovação da direção política e a confrontação partidária. Cabe, portanto, ao governo selecionar e especificar sua atuação a partir dos fins constitucionais, indicando os meios ou instrumentos adequados para a sua realização48. Nesse contexto, governar deixou de ser a simples gerência de fatos conjunturais e tornou-se, sobretudo, o planejamento do futuro, com o estabelecimento de políticas a médio e longo prazo: com o Estado social, o government by policies substitui o government by law, típico do liberalismo49. Todavia, em terrae brasilis, o que ainda mais se verifica é que: Ao invés de buscar efetividade dos direitos fundamentais, a promoção do desenvolvimento e a construção de um Estado social, o Governo Federal patrocina a desfiguração do texto da Constituição. Em tese, a Constituição não poderia ser modificada para adaptar-se aos planos de governo dos governantes. O Governo está vinculado à Constituição, não o contrário. A pergunta que se faz é qual é o motivo desta sanha por reformar e desfigurar a Constituição? E a resposta é simples: apesar de todos os problemas, a Constituição de 1988 é um instrumento capaz de promover, por meio da atuação do Estado, a transformação social”.50 Cf. KRELL. Realização dos direitos fundamentais sociais..., op. cit., p. 27. Ver CANOTILHO, Constituição dirigente..., op. cit., p. 462-471; e, ainda, BERCOVICI, A problemática da Constituição dirigente..., op. cit., p. 40. 49 Cf. BERCOVICI, A problemática da Constituição dirigente..., op. cit., p. 40. 50 Cf. BERCOVICI, Gilberto. Dilemas da concretização da Constituição de 1998. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica – (Neo)constitucionalismo, Porto Alegre, n.º 2, p. 101-120, 2004, p. 102. 47 48 38 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais Partindo, portanto, das premissas de que o governo é que se encontra vinculado à Constituição, e não o contrário, e de que, não obstante a persistência em desfigurar o texto constitucional, ele deve ser visto como um instrumento capaz de promover a transformação da realidade social, exsurge inevitavelmente a questão de como fazer isso. A resposta, entretanto, advém da própria Constituição de 1988, que não só estabeleceu os direitos fundamentais sociais a serem prestados pelo Estado, mas51 também forneceu os mecanismos necessários para garantir e efetivar tais direitos, como, por exemplo, o mandado de injunção, a ação de inconstitucionalidade por omissão, o mandado de segurança coletivo, dentre outros instrumentos52. O problema é que, atualmente, ainda se encontra, no Brasil, considerável resistência ao controle jurisdicional do mérito dos atos administrativos, que reservam um amplo e blindado espaço de atuação discricionária, com base nos standards da conveniência e da oportunidade. Basta, para isso, observar que o Supremo Tribunal Federal, até não muito tempo atrás, assumia nitidamente uma atitude de auto-restrição judicial (judicial self-restraint), recusando-se a controlar pressupostos constitucionais da edição de medidas provisórias e negando-se a criar as normas necessárias para resolver os casos concretos, nos termos do mandado de injunção. Dito de outro modo, em que pese a necessidade de um efetivo controle jurisdicional das políticas públicas53, o Judiciário brasileiro ainda não assumiu o papel de arquiteto social a ele atribuído no modelo das contemporâneas democracias constitucionais. É imprescindível, pois, a revisão do clássico princípio da separação de poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos serviços sociais básicos, visto que os poderes Legislativo e Executivo, no Brasil, vêm se mostrando incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais54: Onde o processo político (Legislativo, Executivo) falha ou se omite na implementação de políticas públicas e dos objetivos sociais nelas implicados, cabe ao Poder judiciário tomar uma atitude ativa na realização desses fins sociais através da correição da prestação dos serviços sociais básicos.55 Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 6.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 210. Ver LEAL, Rogério Gesta. Controle da administração pública no Brasil: anotações críticas. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica – Crítica à dogmática, Porto Alegre, n.º 3, p. 241-262, 2005. 53 Sobre o tema, consultar APPIO, Eduardo. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005; CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa. Curitiba: Juruá. 2001; FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999; MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração pública. São Paulo: Dialética, 1999; mas, sobretudo, OHLWEILER, Leonel Pires. O contributo da jurisdição constitucional para a formação do regime jurídico administrativo. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica – (Neo)constitucionalismo, Porto Alegre, n.º 2, p. 285-328, 2004; e OHLWEILER, Leonel Pires. Direito administrativo em perspectiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. 54 Cf. KRELL, Realização dos direitos fundamentais sociais..., op. cit., p. 49. 55 Id., ibid., p. 56. 51 52 39 Artigo 2 Assim sendo, as questões ligadas à concretização das tarefas sociais, como a formulação das respectivas políticas públicas, não estão relegadas à arbitrariedade dos governos ou à vontade da Administração, mas têm o seu fundamento nas próprias normas constitucionais sobre direitos sociais, cuja observação pelo poder Executivo pode – e deve – ser controlada pelo Legislativo e, também, pelo Judiciário56. Nesse exato sentido, em consonância com o até aqui exposto, alguns exemplos que demonstram nem tudo estar perdido. Em primeiro lugar, merece destaque a liminar concedida pelo Juiz de Direito da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Joinville (SC), Alexandre Morais da Rosa, em ação civil pública (processo n.º 038.03.008229-0), ajuizada pelo Ministério Público contra o Município, na qual o Promotor de Justiça requereu fosse determinado à Secretaria Municipal de Educação e Cultura a criação de 2 948 vagas para as crianças em lista de espera por matrícula, após notícia, divulgada por propaganda oficial, que o Município destinara R$1.750.000,00 (um milhão e setecentos e cinqüenta mil reais) para a desapropriação de área destinada à construção de estádio de futebol dito municipal, mas cuja utilização dar-se-ia em proveito da sociedade desportiva privada local (Joinville Esporte Clube, que disputava, à época, a Série “C” do Campeonato Brasileiro de Futebol). Em segundo lugar, em que pese tenha restado prejudicada a apreciação do mérito, cumpre referir a decisão monocrática prolatada na ADPF n.º 45: “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da “reserva do possível”. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do “mínimo existencial”. Viabilidade instrumental da argüição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração)” (ADPF n.º 45, Rel. Min. Celso de Mello, Supremo Tribunal Federal, j. 29/04/04, DJ 04/05/04). Por fim, em terceiro lugar, para que não se cometam injustiças/esquecimentos, vale lembrar importante decisão, mesmo que ainda isolada, proferida no Superior Tribunal de Justiça: “Direito Constitucional à absoluta prioridade na efetivação do direito à saúde da criança e do adolescente. Norma constitucional reproduzida nos arts. 7. e 11 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Normas definidoras de direitos não programáticas. Exigibilidade em juízo. Interesse transindividual atinente às crianças situadas nessa faixa etária. Ação civil pública. Cabimento e procedência. 1. Ação civil pública de preceito cominatório de obrigação de fazer, ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina tendo [em] vista a violação do direito à saúde de mais de 6 000 (seis mil) crianças e adolescentes, sujeitas a tratamento médico-cirúrgico de forma irregular e deficiente em hospital infantil daquele Estado. [...] 4. Releva notar que uma Constituição Federal é fruto da vontade política nacional, erigida mediante consulta das expectativas e das possibilidades do que se vai consagrar, por isso que cogentes e eficazes suas promessas, sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel. Ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas menores como Circulares, Portarias, Medidas Provisórias, Leis Ordinárias tenham eficácia imediata e os direitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais da nação sejam relegados a segundo plano. Prometendo o Estado o direito à saúde, cumpre adimpli-lo, porquanto a vontade política e constitucional, para utilizarmos a expressão de Konrad Hesse, foi no sentido da erradicação da miséria que assola o país. O direito à saúde da criança e do adolescente é consagrado em regra com normatividade mais do que suficiente, porquanto se define pelo dever, indicando o sujeito passivo, in casu, o Estado. [...] 6. A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra suposta ingerência do judiciário na esfera da administração. Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea. [...] 8. Afastada a tese descabida da discricionariedade, a única dúvida que se poderia suscitar resvalaria na natureza da norma ora sob enfoque, se programática ou definidora de direitos. Muito embora a matéria seja, somente nesse particular, constitucional, porém sem importância revela-se essa categorização, tendo em vista a explicitude do ECA, inequívoca se revela a normatividade suficiente à promessa constitucional, a ensejar a acionabilidade do direito consagrado no preceito educacional. 9. As meras diretrizes traçadas pelas políticas públicas não são ainda direitos senão promessas de lege ferenda, encartando-se na esfera insindicável pelo Poder Judiciário, qual a da oportunidade de sua implementação. 10. Diversa é a hipótese segundo a qual a Constituição Federal consagra um direito e a norma infraconstitucional o explicita, impondo-se ao judiciário torná-lo realidade, ainda que, para isso, resulte obrigação de fazer, com repercussão na esfera orçamentária. 11. Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública implica dispêndio e atuar, sem que isso infrinja a harmonia dos poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada, assim, a ingerência entre os poderes, o judiciário, alegado o malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a realização prática da promessa constitucional” (REsp n.º 577836/SC, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, Superior Tribunal de Justiça, j. em 21/10/04, DJ 28/02/05, p. 200, RDDP, v. 26, p. 189). 56 40 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais Na esteira de Comparato, pode-se dizer, então, que o Judiciário possui competência, não obstante o princípio da separação de poderes, para julgar questões políticas, haja vista que a clássica – e falsa – objeção à judiciabilidade das políticas governamentais decorre de mau entendimento da political question doctrine da Suprema Corte norte-americana57. Com isso, o que se pretende é demonstrar que, ao contrário do que entende a maioria da doutrina e da jurisprudência, há a possibilidade de o poder Judiciário exercitar um controle de jurisdicidade latu e stricto sensu sobre a Administração Pública, alcançando inclusive os elementos constitutivos das ações e atos administrativos, isto é, a valoração administrativa que envolve os juízos de motivação, objeto, forma, oportunidade e conveniência para a prática do ato, bem como suas bases fundantes de moralidade, proporcionalidade e razoabilidade58. Tem-se, desse modo, que todo e qualquer ato praticado pelo governo, seja político ou não, sujeita-se à Constituição, subordinando-se aos requisitos formais e materiais nela estabelecidos. Em conseqüência, levando em conta que ao poder Judiciário compete velar pela constitucionalidade das ações estatais, nenhuma questão atinente à consecução dos direitos e garantias da sociedade brasileira pode ser subtraída de sua apreciação59. Nesse sentido, pode-se afirmar que, no modelo do Estado Democrático de Direito adotado e assumido pelo país, resta inadmissível atividade isenta de controle jurisdicional, não só quando viola direitos, mas também – ante a garantia da constitucionalidade – quando contraria princípios fundamentais e preceitos constitucionais. Portanto, impõe-se afirmar que não há ato estatal inscindicável pelo Poder Judiciário ou pelas formas institucionais de controle existentes, desde que viole direitos ou represente potencial risco às garantias asseguradas pelo sistema jurídico pátrio – através de suas regras e princípios fundacionais.60 Ver COMPARATO, op. cit., p. 46: “Esclarecida, assim, essa clássica falsa objeção à judiciabilidade das políticas governamentais, estabeleçamos, desde logo, que o juízo de constitucionalidade, nessa matéria, tem por objeto não só as finalidades, expressas ou implícitas, de uma política pública, mas também os meios empregados para se atingirem esses fins. No tocante a esta última hipótese, por exemplo, é de se assinalar que uma política de estabilidade monetária fundada na prática de juros bancários extorsivos e na sobrevalorização do câmbio, pode-se revelar, de modo geral, incompatível com os fundamentos constitucionais de toda a ordem econômica, quais sejam a valorização do trabalho humano e a exigência de se assegurar a todos existência digna (art. 170, caput), e, bem assim, com o princípio da busca do pleno emprego (art. 170, VIII). Da mesma sorte, uma política de indiscriminada concessão de incentivos fiscais a qualquer exploração agrícola pode se revelar incompatível com o princípio de defesa do meio ambiente (art. 170, VI)”. 58 Cf. LEAL, op. cit., p. 255. 59 Id., ibid., p. 258. 60 Id., ibid., p. 258. 57 41 Artigo 2 A pergunta que fica, porém, é se está o poder Judiciário brasileiro ciente daquilo até então exposto e preparado para exercer um papel mais expressivo no controle das políticas públicas, a fim de garantir e concretizar os direitos fundamentais sociais. Com efeito, a compreensão assume aqui um lugar de destaque61, aparecendo como um elemento central na busca do comprometimento efetivo dos atores jurídicos – e também do administrador – com a realização do Estado social e democrático direito. Contudo, o estudo da hermenêutica jurídica ainda é, sobremodo, deficiente no Brasil, tendo em vista que continua, predominantemente, vinculado aos cânones da hermenêutica clássica. Mergulhado – e conformado – no horizonte de sentido (pro)posto pela dogmática jurídica, os juízes, via de regra, não conseguem dar-se conta da radical transformação – virada ou guinada lingüística – ocorrida no campo da hermenêutica há mais de século62. Com a superação da ontologia clássica e da filosofia da consciência pelo paradigma da filosofia da linguagem, esta deixa de ser uma terceira coisa que se interpõe entre o sujeito cognoscente e o objeto a ser conhecido, tornando-se condição de possibilidade de todo o processo interpretativo. Interpretar passa, então, a ser um ato de atribuição de sentido (Sinngebung) – e não um ato de reprodução de sentido (Auslegung) –, abandonando-se a idéia de mero processo de subsunção, que nada mais é do que a repristinação metafísica de um dedutivismo-silogístico63. Rompe-se, assim, com o pensamento metafísico – de que a linguagem é um instrumento que fica à disposição do intérprete –, a partir da idéia de antecipação de sentido, que ocorre no interior do círculo hermenêutico, em que o intérprete fala e diz o ser na medida em que o ser se diz a ele. Desse modo, pode-se afirmar que, para interpretar, é necessário compreender; e, para que se possa compreender, ensina Gadamer, é preciso ter uma pré-compreensão, que é o produto da relação intersubjetiva do intérprete com o mundo, isto é, sua tradição, situação hermenêutica, historicidade, temporalidade, faticidade64. Ver, nesse sentido, STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica (jurídica): compreendemos porque interpretamos ou interpretamos porque compreendemos? Uma resposta a partir do Ontological Turn. Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS, São Leopoldo, p. 223-271, 2003; e, também, STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. 62 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 5.ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 51. 63 Id., Jurisdição constitucional..., op. cit., p. 180. 64 Em face da impossibilidade de desenvolver, aqui, maiores considerações a respeito da matriz da hermenêutica filosófica, remete-se o leitor às obras de GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método I. 10. ed. Salamanca: Sígueme, 2003; GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método II. 5. ed. Salamanca: Sígueme, 2002; e, entre nós, STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit.; e OHLWEILER, Direito administrativo..., op. cit.. 61 42 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais Isto significa que é a condição de ser-no-mundo que vai determinar a forma como os juízes irão exercer as suas funções, com todas as implicações de responsabilidade que compõem, inevitavelmente, o seu horizonte de sentido. Ocorre que, refratários aos avanços decorrentes do linguistic turn, os juristas continuam a falar (d)o Direito a partir do seu “já-sempre-sabido” sobre o Direito, ou seja, de como o Direito “sempre-tem-sido”65. Assim, são os pré-juízos do intérprete que acarretam prejuízos à compreensão do novo papel – e, portanto, da nova responsabilidade – que os mesmos assumem com a consolidação do neoconstitucionalismo. De modo mais contundente, Streck refere que os juristas – e, entre eles, os juízes –, imersos na crise do paradigma da filosofia da consciência, como já referido, parecem não ter se apercebido do próprio advento do Estado Democrático de Direito: não houve a devida compreensão do sentido do Estado Democrático de Direito, ou seja, o Estado Democrático de Direito não foi compreendido como (esse como é o hermenêutico als). Em face de uma baixa constitucionalidade, o ser do ente Estado Democrático de Direito – e suas possibilidades da realização da função social do Direito – ficou difuso, diluído, mal-compreendido.66 Ignora-se, portanto, aquilo que se entende por revolução copernicana do direito público, em que os Estados soberanos, com a redemocratização ocorrida após a Segunda Guerra Mundial, instituíram em suas cartas magnas uma série de valores e princípios vinculantes que representam o acordo e o consenso de uma comunidade política e moldam o denominado Estado constitucional, cujas bases estão fundadas nos ideais democráticos e no respeito aos direitos fundamentais67. Supera-se, desse modo, a concepção liberal de um Estado ordenador, no qual o que não é proibido é permitido, e cujo poder central é o Legislativo, bem como a concepção social de um Estado promovedor, em que se investe em políticas públicas e se intervém na economia, e cujo poder central é o Executivo68. Assim, o Estado Democrático de Direito, muito mais do que um novo modelo, é uma proposta emancipatória – e civilizatória –, visto que ultrapassa as formulações anteriores, impondo à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo de transformação da realidade (social) através do direito69, que passa a ser um instrumento de ação concreta do Estado: STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit., p. 217. Id., ibid., p. 43-44. 67 Id., ibid., p. 18. 68 Id., Hermenêutica jurídica..., op. cit., p. 44-45. 69 Ver STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do Estado. 3.ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 94. 65 66 43 Artigo 2 o Estado Democrático de Direito representa, assim, a vontade constitucional de realização do Estado social. É nesse sentido, que ele é um plus normativo em relação ao direito promovedorintervencionista próprio do Estado social de direito.70 Em outras palavras, no Estado Democrático de Direito, há um sensível deslocamento da esfera do poder Executivo e do poder Legislativo para o poder Judiciário71, que é guindado a um locus de destaque perante os demais, transcendendo a clássica – e moderna – teoria da separação de poderes72. Como se vê, todas estas questões encontram-se implicadas no alerta formulado por Cappelletti no sentido de que, mais cedo ou mais tarde, o Poder Judiciário terá de aceitar a realidade da transformada concepção do direito e da nova função do Estado. Todavia, para isso, os atores jurídicos deverão controlar e exigir o cumprimento do dever do Estado de intervir ativamente na esfera social. A atividade de interpretação e realização das normas de caráter social previstas na Constituição implica, necessariamente, um alto grau de criatividade do juiz, o que, por si só, destaque-se, não o torna legislador73. Nesse contexto, a jurisdição constitucional desempenha função imprescindível para a concretização do Estado Democrático de Direito. Isso significa dizer que compete, sobretudo, ao poder Judiciário, tornar efetivo o texto constitucional e fazer com que a Constituição deixe de ser uma simples carta de declarações, intenções e propósitos, ou, pior ainda, uma mera folha de papel. Em síntese, frente ao panorama descrito, resta evidente que a responsabilidade social dos juízes está diretamente atrelada à latente necessidade de superação da trilogia moderna indivíduo, liberalismo e democracia (formal), tendo em vista que, contemporaneamente, ao Poder Judiciário se atribui o papel de verdadeiro fiador dos direitos fundamentais e do regime democrático74. 4 O problema da legitimidade da jurisdição constitucional na concretização dos direitos fundamentais sociais O século XX, muito embora possa parecer um período de revoluções anticonstitucionais75 – em razão sobretudo do surgimento dos regimes totalitários –, é STRECK, Hermenêutica jurídica..., op. cit., p. 39. STRECK; MORAIS, op. cit., p. 98. STRECK, Hermenêutica jurídica..., op. cit., p. 43-45. 73 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Safe, 1993, p. 41-42 e 92. 74 Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia. O paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 6 e 316. 75 Cf. ACKERMAN, Bruce. O novo constitucionalismo mundial. In: CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (Org.). 1988-1998. Uma década de Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 18. 70 71 72 44 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais marcado, a partir do segundo pós-guerra, pelo advento dos Estados democráticos de direito76 e pelo desenvolvimento do constitucionalismo contemporâneo77. Segundo Jorge Miranda, com a redemocratização ocorrida após a Segunda Guerra Mundial, houve uma verdadeira revolução copernicana no direito público78, de modo que os Estados soberanos instituíram em suas Cartas magnas uma série de valores e princípios vinculantes, representando o acordo e o consenso de uma comunidade política e fundando o denominado Estado constitucional79, cujas bases são os ideais democráticos e o respeito aos direitos fundamentais80. Assim, não bastassem as dificuldades decorrentes da necessidade dos ordenamentos jurídicos passarem pelo devido processo de constitucionalização81, os textos constitucionais assumem um conteúdo político diferente, bem como têm seu campo ampliado para abranger não só o Estado, mas toda a sociedade82. Ver MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 43-102; LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitucion. 5.ª ed. Madrid: Tecnos, 1995, p. 212-231; STRECK; BOLZAN, op. cit., p. 92-99. 77 Tal constitucionalismo está impulsionando uma nova Teoria do Direito, cujas características que se sobressaem são: mais princípios do que regras; mais ponderação do que subsunção; a onipresença da Constituição em todas as áreas jurídicas e em todos os conflitos minimamente relevantes, no lugar de espaços isentos em favor da opção legislativa ou regulamentadora; a onipotência judicial no lugar da autonomia do legislador ordinário; e, por último, a coexistência de uma constelação plural de valores, às vezes tendencialmente contraditórios, no lugar da homogeneidade ideológica relacionada a um conjunto de princípios coerentes entre si e em torno, sobretudo, das sucessivas opções legislativas. Ver, para tanto, SANCHIS, Luis Pietro. Neoconstitucionalismo y ponderación judicial. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 131-132. 78 Cf. MIRANDA, Teoria do Estado..., op. cit., p. 49-54. 79 O Estado constitucional de direito é marcado pelas seguintes características: “a) por la pertenencia de las normas vigentes a niveles diversos y jerárquicamente ordenados, cada uno de los cuales se configura como normativo respecto del inferior y como fáctico en la relación con el superior; b) por la incorporación a las normas superiores de obligaciones y prohibiciones que disciplinan la producción de las normas inferiores y cuya observancia es condición de la efectividad de las primeras y de la validez de las segundas; c) por las antinomias producidas por las violaciones de las normas superiores por parte de las inferiores y por la simultánea vigencia de unas, aun cuando inefectivas, y de las otras, no obstante su invalidez; d) por la consiguiente ilegitimidad jurídica que en alguna medida afecta siempre a los poderes normativos, legislativo y judicial y que es tanto mayor cuanto más amplia pero inefectiva resulte la incorporación limitativa de los deberes a los niveles más altos del ordenamiento”. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro del Estado de derecho. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003. p. 13-14 e 18-20; FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. 4.ª ed. Madrid: Trotta, 2000, p. 872; e, no mesmo sentido, a leitura feita por CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade. Uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. 80 Cf. STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit., p. 18. 81 Segundo Guastini, “un ordenamiento jurídico constitucionalizado se caracteriza por una Constitución extremamente invasora, entrometida (pervasiva, invadente), capaz de condicionar tanto la legislación como la jurisprudencia y el estilo doctrinal, la acción de los actores políticos, así como las relaciones sociales”, sendo condições para tal fenômeno: (a) a existência de uma Constituição rígida; (b) a garantia jurisdicional da Constituição através do controle de constitucionalidade das leis ; (c) o caráter vinculante da Constituição; (d) uma sobreinterpretação das disposições constitucionais; (e) a aplicação direta e imediata das normas constitucionais pelos juízes comuns; (f) a realização de uma interpretação da legislação ordinária conforme a Constituição; e (g) a influência direta da Constituição nas relações políticas. Cf. GUASTINI, Riccardo. La constitucionalización del ordenamiento jurídico: el caso italiano. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconsti tucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 50-58. 82 Ver FIORAVANTI, Maurizio. Constitución. De la antiguedad a nuestros dias. Madrid: Trotta, 2001; e, também, BERCOVICI, Gilberto. A Constituição dirigente e a crise da Teoria da Constituição. In: BERCOVICI, Gilberto et al. Teoria da Constituição. Estudos sobre o lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 75-150. 76 45 Artigo 2 Neste contexto, conforme ensina Bonavides, o atual problema constitucional torna-se a ausência de uma fórmula que venha a combinar as dimensões jurídica e política da Constituição, pois, sempre que uma delas ocupa todo o espaço da reflexão e da análise, os danos e as insuficiências de compreensão do fenômeno constitucional tornam-se evidentes83. Aliás, parece indiscutível que, no Estado democrático de direito, a relação entre o direito e a política configura-se como uma das mais tensas84, mormente quando se debate sobre o papel da jurisdição constitucional85 – através do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis86 – na garantia da supremacia e da efetivação da Constituição87. Se o Estado liberal tem como protagonista o poder Legislativo, em face da institucionalização do triunfo da burguesia; e o Estado social exige a intervenção do poder Executivo, em razão da necessidade de realização de políticas públicas; é necessário reconhecer, como já referido, que o Estado democrático de direito deposita, sobretudo, no poder Judiciário os mecanismos capazes de assegurar as promessas incorporadas pelos novos textos constitucionais88. Dito de outro modo, a existência de uma jurisdição constitucional – confiada a tribunais constitucionais – passou a ser considerada elemento necessário da própria definição de Estado democrático de direito, tornando-se requisito de legitimação e de credibilidade políticas dos novos regimes constitucionais89. Contudo, em que pese a História – em especial a dos dois últimos séculos, nos quais ocorreram a inauguração do judicial review, através da célebre sentença da Suprema Corte Americana, no caso Marbury v. Madison (1803), baseado na doutrina de Sir Edward Coke90, e a criação do Tribunal Constitucional Austríaco (1920), que introduziu o controle concentrado de constitucionalidade – demonstrar não haver mais sentido questionar-se acerca da legitimidade da jurisdição constitucional91, muito a doutrina ainda debate sobre o tema92. Cf. BONAVIDES, op. cit., p. 77. Ver, nesse sentido. MORAIS, José Luis Bolzan de; AGRA, Walber de Moura. A jurisprudencialização da Constituição e a densificação da legitimidade da jurisdição constitucional. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica – (Neo)constitucionalismo, Porto Alegre, n.º 2, p. 217-242, 2004, p. 222. 85 Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7.ª ed. Coimbra: Almedina, 2003; e, entre nós, STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit. 86 Cf. CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Safe, 1984; e MORAIS, Carlos Blanco de. Justiça constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. v. 1. 87 Cf. CANOTILHO, Direito constitucional..., op. cit., p. 890; e, ainda, CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 45-46. 88 Cf. STRECK, Hermenêutica jurídica..., op. cit., p. 33-40; id., Jurisdição constitucional, op. cit., p. 101-106. 89 Cf. MOREIRA, Vital. Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites da justiça constitucional. In: MOREIRA, Vital et al. Legitimidade e legitimação da justiça constitucional. Colóquio no 10.º Aniversário do Tribunal Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 178. 90 Nesse sentido, ver MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad. Madrid: Trotta, 1998, p. 8997; CAPPELLETTI, O controle judicial..., op. cit.; STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit., p. 330-337; OHLWEILER, O contributo da jurisdição..., op. cit., p. 292-295. 91 Cf. MOREIRA, op. cit., p. 177. 92 Ver, por todos, STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit., p. 95-196. 83 84 46 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais Como é possível que juízes – não escolhidos pelo povo – possam controlar as leis elaboradas pelo Legislativo e aplicadas pelo Executivo, poderes estes que representam a vontade geral? Ou ainda: por qual razão devem os democráticos princípios da maioria, da soberania popular e da separação de poderes ceder diante do princípio da supremacia da Constituição? Por trás de tais questões, a toda evidência, exsurge o problema relativo à judicialização da política93, matéria que dividiu analiticamente a doutrina em dois eixos – substancialistas e procedimentalistas –, que, muito embora reconheçam o poder Judiciário como uma instituição estratégica às democracias contemporâneas, divergem a respeito do papel a ser desempenhado pelas modernas Constituições e, conseqüentemente, acerca da intervenção dos tribunais94. Por um lado, a corrente substancialista95 defende ser a Constituição uma norma diretiva fundamental96 – repleta de princípios, valores e conteúdos substantivos –, que orienta os poderes públicos e condiciona os particulares de tal maneira que assegura a realização das promessas constitucionais. Contudo, Cappelletti sustenta ser necessário, para tanto, que o poder Judiciário abdique da concepção tradicional, típica do século XIX, acerca dos limites da função jurisdicional e eleve-se ao nível dos outros poderes, erigindo-se em um verdadeiro terceiro gigante, capaz de controlar o legislador mastodonte e o leviatanesco administrador97. Cf. BERCOVICI, 2004; VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999; CITTADINO, Gisele. Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de poderes. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 17-42; e, ainda, BERCOVICI, Dilemas da concretização, op. cit. 94 Cf. STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit., 147-196; e VIANNA, A judicialização da política..., op. cit., p. 23-38. 95 Postura assumida por Paulo Bonavides, Dalmo Dallari, Lenio Streck, Ingo Sarlet, Clèmerson Clève, Eros Grau, Fabio Comparato, Celso Antonio Bandeira de Mello, entre outros, no Brasil; e Bruce Ackerman, Dominique Rousseau, Garcia Herrera, Jorge Miranda, Konrad Hesse, Laurence Tribe, Luigi Ferrajoli, Mauro Cappelletti, Ronald Dworkin, Robert Alexy, no exterior. 96 Ver, para tanto, FIORAVANTI, op. cit.; e STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit., 97 Cf. CAPPELLETTI, Juízes legisladores?, op. cit., p. 47 e 56-61. Nesse sentido, ainda, o jurista italiano radicaliza ao elencar os seguintes argumentos em favor de um ativismo judicial: (a) lideranças legislativa e executiva são complexa estrutura política na qual variados grupos procuram vantagem, não o retrato de organismos democráticos e majoritários que dão voz à vontade populares e são responsáveis perante ela; (b) a forma como ocorre a indicação e nomeação permite aos demais poderes certo controle da filosofia política da Corte, de forma que esta nunca estará em contraste, por muito tempo, com a filosofia prevalecente nas maiorias políticas; (c) os tribunais podem dar importante contribuição à representatividade geral do sistema, isto é, podem permitir o acesso ao judicial process e, desse modo, dar proteção a grupos que, pelo contrário, não estariam em condições de obter acesso ao political process; (d) o democrático “sentimento de participação” do povo, muito embora pareça ocorrer tão-somente através do sistema de governo, constituiu característica substancial da jurisdição, que se desenvolve com as partes interessadas – as quais podem não só iniciar o processo jurisdicional como também determinar o seu conteúdo, cabendo-lhes ainda o direito de ser ouvidas –, sem que haja aparelhos burocráticos longínquos e inacessíveis como acontece com os demais processos da atividade pública; (e) apenas em sistemas democráticos de governo os direitos do homem têm chance de ser preservados, e, conseqüentemente, a democracia não pode sobreviver em um sistema em que fiquem desprotegidos os direitos e as liberdades fundamentais (id., ibid., p. 94-107). 93 47 Artigo 2 Merece destaque, ainda nesse sentido, que a legitimidade dos tribunais constitucionais advém da própria Constituição – não sendo nem maior, nem menor do que a dos demais órgãos políticos –, e que as suas composições decorrem da escolha indireta realizada pelos poderes democraticamente legitimados para tal98. Desse modo, é possível afirmar que os tribunais desempenham o papel de regulador da própria identidade cultural da República e, ao exercerem a guarda da Constituição, assumem uma dimensão normativo-constitutiva dos compromissos pluralísticos nela pactuados, com a qual se relacionam questões político-constitucionais como a defesa das minorias perante a onipotência da maioria parlamento-governo, a primazia hierárquico-normativo da Constituição e do legislador constituinte perante a onipotência da maioria parlamento-governo, a prevalência do dogma tradicional da presunção de constitucionalidade dos atos legislativos e a legitimidade do desenvolvimento do próprio direito constitucional através da interpretação dada às normas da Constituição pelos juízes constitucionais99. Com efeito, não se pode olvidar que a determinação do conteúdo das normas constitucionais decorre diretamente daquilo que se entende por jurisprudencialização da Constituição100, fenômeno este que, ao possibilitar uma mutação das normas constitucionais, permite que o direito acompanhe as constantes modificações das relações sociais, através das sentenças interpretativas proferidas pelos tribunais101. Por outro lado, a corrente procedimentalista102 aduz que a Constituição não deve ser entendida como diretriz que regule materialmente a relação do Estado com os cidadãos, isto é, como ordem jurídica global que imponha à sociedade uma determinada forma de vida; mas, ao contrário, deve limitar-se a garantir os procedimentos políticos – através de regras de organização e de competência103 – necessários para que os cidadãos, exercitando igualmente sua liberdade e seus direitos de autodeterminação, possam desenvolver os projetos de estabelecer formas justas de vida, haja vista que apenas as Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, v. 6, p. 117121; id., Teoria do Estado..., op. cit., p. 533-536; e, também, SARLET, Ingo Wolfgang. O papel da jurisdição constitucional na realização do Estado social. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, n.º 3, p. 355-365, 2003, p. 361. 99 Cf. CANOTILHO, Direito constitucional..., op. cit., p. 681-682. 100 Ver, para tanto, MORAIS; AGRA, op. cit.; e, ainda, ROUSSEAU, Dominique. Une résurrection: la notion de constitution. Reveu du Droit public et de la Science politique en France et a l’Etranger, Paris, n.º 1, p. 5-22, 1990. 101 Cf. GUASTINI, op. cit., p. 63-67. 102 Postura atribuída a Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Menelick de Carvalho Netto, Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Rogério Gesta Leal, entre outros, no Brasil; e a Jürgen Habermas, John Hart Ely, Antonie Garapón, Ingeborg Maus, Christian Starck, Roberto Gargarella, no exterior. 103 Cf. STARCK, Christian. La légitimité de la justice constitutionnelle. In: STARCK, Christian et al. Legitimidade e legitimação da justiça constitucional. Colóquio no 10.º Aniversário do Tribunal Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 69-70. 98 48 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais condições procedimentais da gênese democrática das leis asseguram a legitimidade do direito estabelecido104. Dito de outro modo, trata-se de um modelo de democracia constitucional que não se fundamenta apenas em valores compartilhados e, tampouco, em conteúdos substantivos, mas em procedimentos que assegurem a formação democrática da opinião e da vontade e que exigem uma identidade política calcada em uma verdadeira “nação de cidadãos”105 . A ampliação e expansão da atuação da jurisdição constitucional, sob tal perspectiva, mostram-se como uma ameaça contra o regime democrático106, tendo em vista que confere aos juízes, em detrimento dos poderes Legislativo e Executivo, o poder supremo de definir para o resto da sociedade os valores fundamentais107. Sob essa perspectiva, o “monopólio” do Judiciário em precisar o significado do texto constitucional, mediante o exercício do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, equipara os tribunais ao próprio poder constituinte108, bem como enseja, a partir da valorização da Constituição como norma109, o surgimento da criticada “jurisprudência de valores”110 e do “positivismo jurisprudencial”111. Em suma, pode-se dizer que o debate apresentado encontra-se polarizado entre forma e substância, democracia liberal e democracia social, Constituição entendida como conjunto de disposições normativas procedimentais da gênese democrática e Constituição entendida como ordem concreta de valores intrínsecos à realização das promessas sociais constitucionalizadas112. Ademais, muito embora seja bastante provável que a legitimidade da atividade de controle exercida pelos tribunais constitucionais possa nunca deixar de ser objeto Ver HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia. Entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1 e 2, autor que, desde o início, sempre destacou ter como fio condutor de sua análise a teoria de Dworkin, nunca recaindo sua preocupação sobre países cuja realidade mostra-se radicalmente distinta daquele que se encontra nos países desenvolvidos, como, por exemplo, os Estados Unidos e a Alemanha. Sobre a postura procedimentalista, consultar as análises de STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit.; CITTADINO, op. cit.; e, ainda, VIANNA, A judicialização da política..., op. cit. 105 Cf. HABERMAS, Direito e democracia II, op. cit., p. 170-190. 106 Ver, para tanto, MAUS, Ingeborg. O judiciário como superego da sociedade sobre o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”. Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito da UFPE, Recife, n.º 11, p. 125-156, 2000. 107 Ver ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980; e HABERMAS, Direito e democracia I, op. cit. 108 Cf. LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Jurisdição constitucional: um problema da Teoria da Democracia Política. In: BERCOVICI, Gilberto et al. Teoria da Constituição. Estudos sobre o lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 199-261; e, ainda, MAUS, op. cit.. 109 Ver, nesse sentido, ENTERRÍA, Eduardo García de. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. 3.ª ed. Madrid: Civitas, 1994. 110 Cf. MAUS, op. cit., p. 134-140. 111 Cf. GARCIA apud BERCOVICI, Dilemas da concretização..., op. cit., p. 107-108. 112 Cf. MORAIS, Jose Luiz Bolzan de et al. A jurisprudencialização da Constituição. Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS, São Leopoldo, p. 297-349, 2002, p. 331. 104 49 Artigo 2 de discussão para as Teorias da Democracia e da Constituição, tal questão já não é o tema central da controvérsia, passando o debate a girar em torno, atualmente, do sentido, alcance e limites da jurisdição constitucional113. Todavia, não se pode olvidar que não há um constitucionalismo, mas vários constitucionalismos – modelos inglês, francês, americano, por exemplo –, o que levou Canotilho a optar por dizer que existem diversos “movimentos constitucionais”114, cada qual com suas especificidades e com alguns momentos de aproximação entre si115. Aliás, não se pode esquecer que, muito embora a revolução francesa possa ser considerada uma revolução antijudiciária116, em face da submissão sem reservas do juiz à lei – le juge est la bouche de la loi, nas palavras de Montesquieu117 –, que representa o dogma francês da vontade geral, é justamente com a Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen118 que se funda a idéia de Constituição como constituição da sociedade e, posteriormente, se desenvolvem a clássica Teoria Geral do Estado e, após o Debate de Weimar, aquilo se entende, mais contemporaneamente, por Teoria da Constituição119. Desse modo, em que pesem as incertezas a respeito do adequado lugar teórico da Teoria da Constituição120, sabe-se que não é possível referir-se à Teoria Geral da Constituição. No constitucionalismo contemporâneo, entender a existência histórica e concreta de cada Estado soberano – especificidades factuais, identidade cultural e inserção no cenário internacional, por exemplo – configura verdadeiro pressuposto indispensável, ou melhor, a própria condição de possibilidade para que se compreenda a sua respectiva Constituição121. Contudo, a admissão de tal premissa aponta, inevitavelmente, para a necessidade da construção de uma “Teoria da Constituição Dirigente adequada a países de modernidade tardia”, nos termos propostos por Lenio Luiz Streck122. Cf. MOREIRA, op. cit., p. 180. Cf. CANOTILHO, Direito constitucionai..., op. cit., p. 51. 115 Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, v. 1, p. 103-244. 116 Cf. AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, justiça social e neoliberalismo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 43; CAPPELLETTI, O controle judicial..., op. cit., p. 27-29 e 94-100; STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit., p. 342-352. 117 Sobre o tema, ver CAPPELLETTI, Mauro. Repudiando Montesquieu? A expansão e a legitimidade da justiça constitucional. Revista do Tribunal. Regional Federal da 4a Região, Porto Alegre, n. 40, p. 15-49, 2001. 118 “Art. 16. Toute societé dans laquelle la garantie des droit nést pas assurée ni la séparation des pouvoirs déterminée ná point de Constitution” (Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen, 26/08/1789). 119 Cf. BERCOVICI, A Constituição dirigente..., op. cit., p. 85-86 e 102-103. 120 Cf. CANOTILHO, Direito constitucional..., op. cit., p. 1333-1336. 121 Cf. STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit.,, p. 133-134; e, ainda, BERCOVICI, A Constituição dirigente..., op. cit., p. 132-137. 122 Cf. STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit.,, p. 114-145. 113 114 50 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais Não obstante as críticas realizadas recentemente às insuficiências da Teoria da Constituição123 – especialmente a anunciada “morte da Constituição dirigente”124 –, em consonância com as teses que sustentam o desenvolvimento de um direito de cunho reflexivo capaz de corresponder à complexidade das demandas oriundas da sociedade pós-moderna, deve-se ter sempre presente os riscos que se corre ao aplicar teorias científicas e posições transladadas dos países centrais a países periféricos, cuja realidade é absolutamente diversa e sem precedente125. No Brasil, a compreensão da Constituição de 1988 e do Estado democrático de direito, bem como o desenvolvimento de uma adequada Teoria da Constituição Dirigente exigem, portanto, que se leve em conta pelo menos três aspectos relativos à realidade brasileira126: (a) diferentemente do ocorrido nos países desenvolvidos, na América Latina houve o que se pode denominar simulacro de modernidade127, eis que o Estado nunca se empenhou, efetivamente, em cumprir com as promessas de reduzir as desigualdades, fazer justiça social, implementar os direitos fundamentais sociais etc.128; (b) em que pesem as fortes influências da Constituição portuguesa de 1976, o texto constitucional brasileiro não contém uma função normativo-revolucionária capaz de, por si só, operar transformações emancipatórias, o que significa dizer que, no Brasil, ainda é necessário que se conserve o seu caráter social, dirigente, compromissário e vinculante129; (c) a Constituição brasileira de 1988, além de elencar os objetivos da República, oferece inúmeros instrumentos capazes de concretizar as promessas da modernidade – mandado de injunção, mandado de segurança coletivo, ação direta de inconstitucionalidade por omissão, argüição de descumprimento de preceito fundamental, por exemplo –, atribuindo ao Judiciário a tarefa de efetivar os direitos fundamentais130. Cf. BERCOVICI, A Constituição dirigente..., op. cit., p. 77 e 119; e, especialmente, CANOTILHO, J. J. Gomes. O Estado adjectivado e a Teoria da Constituição. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, v. 3, p. 453-474, 2003. 124 Cf. COUTINHO, Canotilho e a Constituição dirigente..., op. cit. 125 Ver, para tanto, KRELL, Andréas. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Safe, 2002. 126 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Análise crítica da jurisdição constitucional e das possibilidades hermenêuticas de concretização dos direitos fundamentais. In: SCAFF, Fernando Facury (Org.). Constitucionalizando direitos. 15 anos da Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 125-173. 127 Segundo Hobsbawn, o Brasil, além de principal “candidato a campeão mundial de desigualdade econômica”, representa um “monumento à negligência social”, ficando atrás de países como o Sri Lanka em inúmeros indicadores sociais, como, por exemplo, analfabetismo e mortalidade infantil. Cf. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. 2.ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 334, 397 e 555. 128 Cf. STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit., p. 62-63; id., Hermenêutica jurídica..., op. cit. p. 21-32. 129 Id., Jurisdição constitucional..., op. cit., p. 133-145. 130 Id., ibid., p. 15, 85 e 135; BERCOVICI, Dilemas da concretização..., op. cit., p. 102; e, ainda, OLIVEIRA NETO, Francisco Rodrigues. O poder judiciário na concretização do Estado democrático de direito após 1988. In: SCAFF, Fernando Facury (Org.). Constitucionalizando direitos. 15 anos da Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 70-71. 123 51 Artigo 2 Diante de tal cenário, resta indagar: é possível que se deixe de assumir uma postura substancialista acerca do papel a ser desempenhado pela jurisdição constitucional em um país periférico como o Brasil, onde as positivadas promessas da modernidade ainda não foram cumpridas pelo Estado? Ora, o dilema brasileiro passa pelo fato de, por um lado, não se ter sufragado a tese substancialista, haja vista que o Judiciário ainda não demonstra estar preparado para corresponder às expectativas criadas desde o advento do Estado democrático de direito; e, por outro, também não se ter optado pela tese procedimentalista, em face da democracia delegativa, no interior da qual o Executivo legisla através de constantes medidas provisórias131. Os tribunais no Brasil, em especial o Supremo Tribunal Federal132, no argumento – alicerçado na clássica separação de poderes – de que não podem invadir a seara da política133, historicamente assumiram uma posição passiva no transcorrer da evolução constitucional brasileira, limitando-se a uma atuação de judicial selfrestraint134, fator este que, agregado às crises do direito e do ensino jurídico135, bem demonstra a existência de uma baixa compreensão acerca do sentido da Constituição e, conseqüentemente, implica aquilo que Lenio Streck denomina baixa constitucionalidade136. Neste contexto, pode-se afirmar, categoricamente, que a jurisdição constitucional, em que pese tenha sido alçada à condição de possibilidade do Estado democrático de direito, disponibilizando um dos mais ricos modelos de controle de constitucionalidade do mundo, ainda não tem desempenhado a função que lhe é atribuída de concretizar as promessas da modernidade previstas no texto constitucional137. Dito de outro modo, é necessário perceber que, com a promulgação da Constituição de 1988, na qual se positivou um novo projeto social para o país, o papel STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit., p. 190. Não se pode olvidar, aqui, os tremendos prejuízos causados pela generosidade do processo constituinte, que poupou o Judiciário, especialmente o STF, mantendo nas mesmas funções juízes e ministros nomeados e identificados com o regime militar que se encerrava (cf. LIMA, op. cit., p. 233-234). Na mesma linha, Ackerman (op. cit., p. 19) destaca que houve uma certa fraqueza dos tribunais no Brasil, mormente no cenário de recomeço inaugurado pela Carta de 1988, que marca uma verdadeira ruptura na experiência da sociedade brasileira. 133 OLIVEIRA NETO, op. cit., p. 68-70. 134 STRECK, Jurisdição constitucional..., op. cit., p. 387-453. 135 Id., Hermenêutica jurídica..., op. cit.; e, também, FARIA, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre: Safe, 1987. 136 Cf. STRECK, Hermenêutica jurídica..., op. cit. p. 217-220. A respeito, por exemplo, da inocorrência da devida filtragem constitucional do ordenamento jurídico brasileiro, passados já quase dezoito anos desde o advento da Constituição de 1988, ver CANOTILHO; MOREIRA, op. cit., p. 45-46; e, ainda, SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional. Construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Safe, 1999. 137 Cf. ADEODATO, João Maurício. Jurisdição constitucional à brasileira: situação e limites. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica – (Neo)constitucionalismo, Porto Alegre, n.º 2, p. 169-188, 2004. 131 132 52 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais do Judiciário alterou-se significativamente em relação às tradicionais atribuições e competências que lhe eram delegadas nos modelos constitucionais anteriores, de matriz eminentemente liberal-individualista, passando da posição de mero aplicador da lei – e, quando muito, de contralegislador – à posição de protagonista na transformação social quando da inércia dos demais poderes. Ademais, pode-se inclusive afirmar que, no caso do cenário brasileiro – onde, repita-se, ao contrário dos países desenvolvidos, as promessas da modernidade ainda não foram cumpridas –, o legislador e o administrador gozam de uma margem ainda muito restrita de liberdade de conformação138, estando intrinsecamente vinculados aos ditames estabelecidos na Constituição, em especial à implementação dos direitos fundamentais sociais. Entretanto, sustentar que a jurisdição constitucional goze de uma legitimidade ainda maior – adquirindo novo sentido e alcance – nos países periféricos, não significa dizer que ela também não se encontra limitada pela própria Constituição139. Da mesma forma como o legislador e o administrador, o juiz também se encontra vinculado à Constituição, de tal modo que a tarefa de concretizar o texto constitucional e de, conseqüentemente, efetivar as promessas da modernidade não autoriza os juízes a agirem discricionariamente e, tampouco, significa admitir qualquer espécie de voluntarismo ou decisionismo judicial140. 5 Considerações finais 5.1 Muito embora as tendências de cunho global e reflexivo que vêm ganhando força no cenário político-jurídico europeu, o constitucionalismo dirigente e compromissário permanece válido, sobretudo nos países periféricos – como o Brasil, cuja realidade social carece de precedentes –, onde os direitos fundamentais sociais ainda estão por se materializar, o que demonstra a cada vez mais evidente necessidade da construção de uma teoria da Constituição dirigente adequada a países de modernidade tardia, capaz de concretizar as promessas positivas no texto constitucional e, até então, não cumpridas pelo Estado. 5.2 Em permanecendo válida a tese da Constituição dirigente, é de se reconhecer que o administrador – da mesma forma que o legislador – também está vinculado à Cf. CANOTILHO, Constituição dirigente..., op. cit., p. 215-287 e 487-488; e, ainda, MOREIRA, op. cit., p. 181. 139 Nesse sentido, a célebre frase do Justice Hugues – “a Constituição é aquilo que os Juízes da Suprema Corte que dizem que ela é” – deve ser relida, haja vista que os Juízes da Suprema Corte apenas dizem o que é a Constituição dentro dos limites permitidos pela própria Constituição. 140 Ver, para tanto, QUEIROZ, Cristina. Interpretação constitucional e poder judicial. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. 138 53 Artigo 2 Constituição, dispondo de uma margem muito estreita de liberdade de conformação, tendo em vista a necessidade de concretização dos direitos fundamentais sociais. Dito de outro modo, os princípios, os objetivos e os direitos fundamentais vinculam os órgãos estatais como um todo: vinculam o Executivo (leia-se administrador), que terá não só que respeitar os direitos de defesa, mas, ao mesmo tempo, propor e realizar as políticas públicas necessárias à satisfação dos direitos prestacionais; vinculam o Legislador, que haverá de legislar para proteger e preservar, normativamente, os valores constitucionais e, ainda, fiscalizar, eventualmente, a atuação dos demais poderes; e, por fim, vinculam também o Judiciário, que, ao decidir, há certamente de levar em conta os princípios, os objetivos e os direitos fundamentais. 5.3 Estando os agentes públicos brasileiros comprometidos – absolutamente vinculados – com os parâmetros constitucionais, visto que a Constituição, desde logo, retirou do mundo político, da esfera da disputa política, aquilo que é nuclear para a sociedade brasileira, é de se concluir que, no Estado social e democrático de direito, não há mais espaços para as arbitrariedades cometidas pela Administração Pública sob o álibi da discricionariedade administrativa, da blindagem do mérito administrativo e da abertura proporcionada pelos conceitos jurídicos indeterminados. 5.4 Ademais, com a passagem do Estado liberal para o Estado social, ocorre um verdadeiro deslocamento das esferas do poder. Da centralidade do Legislativo, representante por excelência da soberania popular, passa-se à centralidade do Executivo, ordenador das múltiplas estratégias e programas de ação, isto é, responsável pela realização de políticas públicas que concretizem os direitos fundamentais sociais, promovam a igualdade material e consolidem a democracia substancial. 5.5 Nesse contexto, parece indispensável que se faça a devida distinção entre Estado e Governo: o primeiro é permanente e constituído pelo texto constitucional, no qual se encontram previstos os seus fins e as suas tarefas; o segundo é passageiro e vinculado às diretivas e imposições estabelecidas na Constituição. Isso significa dizer que os governos não dispõem de uma carta branca capaz de lhes permitir, uma vez no poder, desenvolverem a política que bem entenderem. A Constituição – do Estado e, repitase, da sociedade – deve ser compreendida como o bloco de normas constitucionais em que se definem fins e tarefas do Estado, se estabelecem diretivas e estatuem imposições, de modo que a política deverá mover-se, obrigatoriamente, dentro dos limites que caracterizam o projeto constitucional. A Constituição dirigente, desse modo, vincula o governo, e não o contrário; ao invés de substituir a política, é sua premissa material; é, paradoxalmente, seu ponto de partida e seu ponto de chegada. 54 Constituição Dirigente e Vinculada do Administrador: breves considerações acerca do papel dos Tribunais na concretização dos Direitos Fundamentais Sociais 5.6 Diante dos históricos fracassos, falhas e omissões dos poderes Legislativo e Executivo, o controle jurisdicional da Administração Pública assume lugar de destaque em um Estado que se diz social e democrático de direito – mormente com o crescimento do Judiciário, verificado no período subseqüente à Segunda Guerra Mundial –, sendo, contudo, imprescindível a compreensão (hermenêutica) daquilo que este novo paradigma inaugura. Assim, ao contrário do que sustenta grande parte da doutrina e da jurisprudência, o Judiciário pode – e deve – controlar os atos editados pela Administração Pública, garantindo, sempre que necessária, a efetividade dos direitos fundamentais sociais. 5.7 É preciso, portanto, que se inverta a lógica do Estado brasileiro para que se compatibilize a sua ação com os princípios fundamentais, com os objetivos constitucionais e com a idéia de satisfação, ainda que progressiva dos direitos fundamentais sociais. Encontra respaldo constitucional a política fiscal adotada pelos governos brasileiros através da qual o Estado continua a funcionar, exclusivamente, como uma máquina de expropriação dos recursos públicos para pagar a dívida externa? Tudo indica que não. E mais: tal vinculação apenas impossibilita a realização de políticas públicas, inviabilizando o projeto constitucional do Estado social e democrático de direito. O Estado deveria, antes disso, funcionar como uma máquina voltada, eminentemente, para a implementação dos direitos fundamentais sociais mais básicos (saúde, educação, moradia, trabalho, previdência, etc.), em consonância com aquilo que foi consagrado no art. 3.º da Constituição Federal como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalidade e diminuir as desigualdades sociais e regionais). 5.8 Uma alternativa para a realização progressiva desses direitos está nos mecanismos inseridos no texto constitucional – ação civil pública, por exemplo –, mediante os quais é possível compelir o Poder Público a adotar as políticas públicas, a fim de que, dentro de um universo temporal determinado, possam ser implementados os direitos fundamentais sociais mais elementares. Não se desconhece, aqui, o problema relativo ao pacto federativo e, sobretudo, às reservas orçamentárias. No entanto, deve-se exigir – judicialmente, se necessário – que o Poder Público contemple no orçamento dotações específicas para tais finalidades e, também, exigir que o Poder Público cumpra a lei orçamentária, evitando os remanejamentos de recursos. É necessário, portanto, desmi(s)tificar a idéia de que o orçamento é meramente autorizativo; o orçamento é programa, ou seja, é lei que precisa ser cumprida pelo Executivo. 55 Artigo 2 5.9 Ocorre que o Judiciário, alicerçado no judicial self-restraint e na political questions doctrine, parece ainda não ter se dado conta da realidade social que o país vive. Ora, é preciso que o Judiciário assuma verdadeiramente a condição de fiador dos direitos fundamentais e do regime democrático, à qual foi erigido no Estado social e democrático de direito. 5.10 Por fim, cumpre referir que a manutenção da tese de dirigismo constitucional encontra-se indissociavelmente ligada a uma postura substancialista, no que diz respeito ao papel da Constituição e da jurisdição constitucional. Assim sendo, mostrase necessário fortalecer a legitimidade da jurisdição constitucional, mormente nos países de modernidade tardia, como o Brasil. Dito de outro modo, impõe-se uma análise profunda acerca da capacidade de se transformar a realidade social através da atividade exercida pelos tribunais. Todavia, não se pode olvidar que a ampliação do raio de ação do poder Judiciário não pode representar qualquer incompatibilidade com os ideais democráticos. Para que o surgimento deste novo espaço da esfera pública – construído em torno do direito – e o redimensionamento do clássico princípio da separação dos poderes não impliquem concorrência com o sistema de representação política, mas complemente os novos regimes democráticos, deve-se, além de estabelecer o sentido e o alcance da jurisdição constitucional em países como o Brasil, fixar os seus limites, a fim de que a judicialização da política não se transforme em uma espécie de ditadura do poder Judiciário, ao qual simplesmente se transfira as discricionariedades legislativa e administrativa aqui combatidas. 6 Referências ACKERMAN, Bruce. O novo constitucionalismo mundial. In: CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (Org.). 1988-1998. Uma década de Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 11-31. . We the People. Foundations. Cambridge: Harvard University Press, 1991. ADEODATO, João Maurício. Jurisdição constitucional à brasileira: situação e limites. 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A carência de uma fundamentação consistente a justificar a aplicação de medida idêntica à punição sem condenação definitiva desemboca no argumento inaceitável que a trata como um “mal necessário”; seja em vertente mais autoritária, que expande sua aplicação dela fazendo medida de segurança pública, seja por via mais liberal, a qual entende ser a medida admissível quando cumpridora de escopos exclusivamente voltados à “tutela do processo” e limitada por princípios de excepcionalidade e proporcionalidade. O presente trabalho é uma adaptação de parte de dissertação de mestrado sobre o tema, enfocando-se a via do discurso histórico para buscar a identidade entre o cárcere cautelar e sua utilização como local para cumprimento de pena, não obstante se tratarem de fenômenos distintos. Há, nesse sentido, um entrelaçamento entre custódia cautelar e prisão penal no processo histórico que fez da pena privativa de liberdade a modalidade hegemônica de punição na sociedade capitalista, destacando-se os aspectos concernentes à consagração da hipótese do internamento/isolamento e da educação para o trabalho através das casas de correção. Palavras-chave: História da prisão; Casas de correção; Pena; Prisão cautelar Adaptação de parte da dissertação de mestrado apresentada em 29 de setembro de 2008 ao Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, intitulada “Crítica aos obstáculos epistemológicos da prisão cautelar”. * 64 Prisão Cautelar e Prisão como Pena: a Identidade na História Abstract The effectively critical understanding of the issue of processual prison requires the research and the identification of the epistemological obstacles that distort their study and limit the visualization of the real functions objectively performed by it. The lack of a consistent justification for a measure identical to punishment without final conviction ends in unacceptable argument that deal it as a “necessary evil”; both inside a authoritarian or a liberal vision: the first expands its utilization as a measure of public security and the last one admits the measure when complying scopes exclusively focused on “processual interest”, limited by principles of proporcionality and excepcionality. This is an adaptation of part of a master’s dissertation on the subject, focusing on the path of historic speech to seek the identity between the processual prison and its utilization as location of punishment, despite being distincte things. There is therefore an interlacing between processual prisons, or jails, and the penal prison in the historical process which converted the deprivation of liberty into the hegemonic form of punishment in capitalist society. It focuses on the aspects concerning the consecration of the hypothesis of isolation and education to work through the houses of correction. Key words: History of prison; Houses of correction; Punishment; Processual prison 1 Introdução É possível abordar a temática da custódia cautelar para além de enfoques meramente normativos, identificando não apenas sua identidade substancial com a pena de prisão, mas também uma equivalência quanto às funções reais objetivamente exercidas na forma de mecanismo central nas novas estratégias de controle social. Identifica Hassemer, desde logo, problemas epistemológicos no debate sobre a prisão cautelar, na medida em que críticos e defensores da medida geralmente argumentam em planos de análise distintos1 ; e é preciso bem diferenciar quando se trilha dentro de um modelo explicativo, em dimensão diversa daquela própria de modelos normativos ou valorativos. Só assim se bem compreenderá a tensão entre aqueles que querem fazer da medida uma política de luta contra o crime e os que enfatizam sua natureza estritamente processual, defendendo o respeito aos seus princípios limitadores. O embate, entretanto, não se resolve com a “vitória” de um ou outro lado, mesmo porque dentro do marco da filosofia da linguagem já se reconhece a insuficiência do controle interno que pretende efetivar garantias apenas pelo direito formal, ou seja, com meras palavras. 1 HASSEMER, Winfried. Crítica al derecho penal de hoy. p. 105-106. 65 Artigo 3 A questão que se coloca é se ainda se pode honestamente conceber a hipótese de, uma vez observados e respeitados os princípios informadores voltados à limitação da utilização da prisão cautelar, utilizá-la enquanto medida estritamente processual, marcada pela excepcionalidade e pela proporcionalidade. Assim reflete e adverte Hassemer: Apenas a partir dos fatos jurídicos não se pode deduzir nem a significação ‘real’ da prisão preventiva como instrumento de política criminal, nem o papel ‘real’ dos pressupostos da detenção. Com relação aos fundamentos da detenção não sabemos, estritamente, quais são os ‘verdadeiros’ fundamentos da prisão, tampouco quais foram ‘realmente’ conduzidos ao juiz, senão apenas aqueles apontados no decreto de prisão preventiva. Só a partir de parâmetros normativos é possível julgar quais são os pressupostos legítimos da prisão preventiva, onde estão seus limites, e se atualmente estes limites estão sendo ultrapassados.2 Na medida em que o controle interno pelo qual tanto se luta é todo fundado em parâmetros normativos, vê-se que há uma operacionalidade real em outro plano a prevalecer. Por isto é que a crítica se deve dar neste plano, não sendo suficientes os parâmetros normativos; optando-se, aqui, pela perspectiva segundo a qual, dentro das novas estratégias de controle social, marcadas por um modelo tecnocrático de gestão das penalidades, a prisão cautelar exerce papel assaz central que não se coloca passível de limitação pelas garantias formais. Em outras palavras, significa dizer que a prisão cautelar existe para ser abusiva; e negá-lo sob as teses processualistas, mesmo que com a boa intenção de limitá-la e reduzir sua aplicação, implica risco de ocultar o desempenho de sua real função: Em síntese, na América Latina há um desdobramento do sistema penal oficial em sistema penal cautelar e sistema penal de condenação, sendo o primeiro mais importante que o segundo, dado que abarca a imensa maioria da criminalização, produto de infrações de média e pequena gravidade. O direito penal autoritário reconhece a natureza penal e procura ampliá-la, ou melhor, sem reconhecer-lhe esse caráter, nega toda vigência ao princípio de inocência, ao passo que a doutrina liberal lhe nega caráter penal, com o objetivo de reduzir seu âmbito, sem perceber que, ao mesmo tempo, o está legitimando, sem que isso redunde em resultados práticos redutores.3 HASSEMER, Winfried. Crítica al derecho penal de hoy. p. 113. Trad. livre. No original: “sólo a partir de los hechos jurídicos no pueden deducirse confiablemente ni la significación ‘real’ de la prisión preventiva como instrumento de política criminal, ni el papel ‘real’ de los presupuestos de la detención. Con relación a los fundamentos de la detención no sabemos, tomado estrictamente, cuáles son los ‘verdaderos’ fundamentos de la prisión, ni tampoco cuáles son han conducido ‘realmente’ al juez, sino sólo cuáles son los que él ha asentato en el decreto de prisión preventiva. Sólo a partir de parámetros normativos es posible juzgar cuáles son los presupuestos legítimos de la prisión preventiva, dónde se encuentram sus limites, y si actualmente estos limites están siendo sobrepasados”. 3 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no Direito Penal. p. 114. 2 66 Prisão Cautelar e Prisão como Pena: a Identidade na História A aproximação ao marco da realidade não pode ignorar as transformações no próprio modelo de Estado e da economia, não obstante se tratem, estes, de temas à parte e que mereceriam reflexão bem mais aprofundada. O essencial aqui é que fique claro como se abandona a utopia corretiva inerente ao projeto do cárcere como instituição punitiva e se passa a concebê-lo como instrumento administrativo de gestão tecnocrática da criminalidade segundo parâmetros de eficiência, mais do que nunca pautados na neutralização daqueles tidos como socialmente perigosos.4 A legitimação da prisão penal esteve e está ligada àquela da prisão processual, não podendo se conceber sua análise de forma distanciada: E aí se encontra, em potencial, a tese que propomos, não para justificar a prisão preventiva, mas para explicar sua persistência enquanto instituição redentora de um sistema falho. (...) A prisão preventiva é uma peça satisfatória em um sistema penal no qual o encarceramento para eliminar é a sanção por excelência.5 Sabe-se que o direito penal e o direito processual penal têm objetos de estudo próprios e distintos, sendo, por isso, disciplinas autônomas e vinculadas por uma relação mútua de complementaridade funcional6 , marcada pela instrumentalidade do processo com a qual se tem que qualquer punição só se realiza pelo intermédio da dimensão processual.7 A criminologia, por sua vez, consiste em um sistema de conceitos voltado à explicação e não à imputação de culpa ou mediação para a punição. Com o câmbio levado a cabo pelas teorias interacionistas, em um primeiro momento, e com a criminologia crítica, em especial, deixa-se de lado, ao menos parcialmente, o enfoque etiológico8, passando-se a um olhar externo e político que toma por objeto de estudo o próprio sistema constituído pelo direito penal, pelo processo penal e por suas agências operacionais; cambiando-se o objeto de estudo e o próprio método de estudo do objeto: BORGES, Clara Maria Roman. Jurisdição e normalização: uma análise foucaultiana da jurisdição penal, p. 174: “Sabe-se que para o neoliberalismo os anormais e criminosos são aqueles que não consomem e representam algum perigo a esta ordem mercadológica excludente e as prisões neste contexto são verdadeiros mecanismos de contenção das massas excluídas”. 5 VÉRIN, Jacques. La detention preventive et la Criminologie. Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal Comparé. p. 919. Trad. livre. No original: “Et on trouve là, en puissance, la thèse que nous proposons, non point pour justifier la détention préventive, mais pour expliquer sa persistance comme institution de secours d’un système défaillant. (...). La détention préventive est une pièce satisfaisante dans un système pénal où l’emprisonnement éliminatoire constitue la sanction essentielle”. 6 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. p. 28. 7 VÁSQUEZ ROSSI, Jorge Eduardo. Derecho Procesal Penal (La realización penal). p. 106. 8 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal. p. 711-712: “A Criminologia etiológica tem por objeto de estudo o criminoso e a criminalidade, concebidos como realidades ontológicas preexistentes ao sistema de justiça criminal e explicados pelo método positivista de causas biológicas, psicológicas e ambientais”. 4 67 Artigo 3 O objeto de estudo é deslocado do criminoso e da criminalidade, como dados ontológicos preexistentes, para o processo de criminalização de sujeitos e fatos, como realidades construídas pelo sistema de controle social, capaz de mostrar o crime como qualidade atribuída a comportamentos ou pessoas pelo sistema de justiça criminal (...).9 É o que fez Becker quando definiu o desvio não como uma qualidade do ato, mas como um ato qualificado ou criado pela reação social.10 Segundo Baratta, ainda: O ponto de vista do componente criminológico deixa de ser interno; a investigação se distancia da função auxiliar própria da criminologia etiológica. Adotar um ponto de vista externo ao sistema penal significa, entre outras coisas, que as definições de comportamento criminal produtos da instância do sistema (legislação, dogmática, jurisprudência, polícia e senso comum) não são mais consideradas como ponto de partida, mas como problema e objeto de estudo.11 Vale observar que se toma função em uma acepção sociológica, referente ao papel objetivamente verificável exercido, distinguindo-se, assim, da finalidade meramente querida ou desejável12 . Desta forma, o discurso crítico criminológico faz a diferença e esclarece que há, por um lado, finalidades declaradas do sistema penal e, por outro, funções reais diferentes. A análise da pena criminal não pode se limitar ao estudo das funções atribuídas pelo discurso oficial, definidas como funções declaradas ou manifestas da pena criminal; ao contrário, esse estudo deve rasgar o véu da aparência das funções declaradas ou manifestas da ideologia jurídica oficial, para identificar as funções reais ou latentes da pena criminal, que podem explicar sua existência, aplicação e execução nas sociedades CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal. p. 712. Também BARATTA, Alessandro. Che cosa à la criminologia critica? Dei delitti e delle Pene. p. 53: “Si è tenuto conto, in effetti, che ‘devianza’ e ‘criminalità’ non sono qualità ontologiche o ‘naturali’ di comportamenti e persone, ma piuttosto qualità che sono loro attribuite attraverso processi di definizione e di reazione sociale, informali ed istituzionali”. 10 BECKER, Howard S. Outsiders: saggi di sociologia della devianza. p. 22. 11 BARATTA, Alessandro. La Política Criminal y el Derecho Penal de la Constitución: Nuevas reflexiones sobre el modelo integrado de las ciencias penales. Revista Brasileira de Ciências Criminais. p. 34. Trad. livre. No original: “el punto de vista del componente criminologico deja de ser interno; la investigación toma distancia del rol auxiliar próprio de la criminologia etiológica. Adoptar un punto de vista externo al sistema penal significa, entre otras cosas, que las definiciones del comportamiento criminal producto de la instancia del sistema (legislacion, dogmática, jurisprudência, policia y sentido común) no sean consideradas más como punto de partida, sino como problema y objeto de estudio”. 12 Nesse sentido, v. VÁSQUEZ ROSSI, Jorge Eduardo. Derecho Procesal Penal (La realización penal). p. 107: “Enquanto os fins se referem a um aspecto programático da normatividade e acentuam um aspecto valorativo e de sentido geral da sistemática prescritiva e institucional, a função tende mais a compreender a operacionalidade real. A função é o exercício ou ação própria de um órgão, seu dinamismo, as particularidades que caracterizam uma determinada atividade”. Trad. livre. No original: “Mientras los fines refieren a um aspecto programático de la normatividad y acentúan un aspecto valorativo y de sentido general de la sistemática preceptiva e institucional, la función tiende mayormente a comprender la real operatividad. La función es el ejercicio o acción propia de un órgano, su dinamismo, las particularidades que caracterizan uma determinada actividad”. 9 68 Prisão Cautelar e Prisão como Pena: a Identidade na História divididas em classes sociais antagônicas, fundadas na relação capital/trabalho assalariado, que define a separação força de trabalho/meios de produção das sociedades capitalistas contemporâneas.13 No âmbito de estudo da prisão cautelar, sob o presente enfoque, escapa-se de um plano estritamente legal, pois se toma sua própria existência e legitimação como objeto de estudo.14 Busca-se, assim, os lineamentos de um discurso crítico criminológico sobre a prisão cautelar que compreenda suas funções reais ou ocultas, objetivamente exercidas, de forma coerente ao que se faz com a pena de prisão. 2 Observações sobre a perspectiva histórica Estudar a prisão cautelar como tema que reside ao lado da prisão como pena é uma opção que exige, em primeiro lugar, observações metodológicas do ponto de vista histórico, a começar pelo cuidado no manejo de conceitos sem atentar ao período, ao contexto e à experiência jurídica própria da civilização em que se inserem: Realmente, conceitos como pessoa, liberdade, democracia, família, obrigação, propriedade, contrato, roubo, homicídio, são conhecidos como construções jurídicas desde os inícios da história do direito europeu. Contudo, se avançarmos um pouco na sua interpretação, logo veremos que por baixo da superfície da sua continuidade terminológica existem rupturas decisivas no seu significado semântico. (...) Por detrás da continuidade aparente na superfície das palavras está escondida uma descontinuidade radical na profundidade do sentido.15 O risco em não se tomar tais cuidados é incorrer na comparação leviana de conceitos, noções e instituições jurídicas com significados absolutamente diferentes, pressupondo-se sua evolução e continuidade. A observação vale para o próprio termo imputado, que segundo Marchetti pode ser considerado uma invenção tipicamente moderna: SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. p. 460. Observa PAVARINI que “desde o momento em que a pena veio a se ‘emancipar’ do ‘castigo divino’, foi ameaçada permanentemente pelo risco de ser descoberta pelo que, contingentemente, está por trás da ficção do que se quer fazer crer que é”; cf. PAVARINI, Massimo. La justificación imposible. La historia de la idea de pena entre justicia y utilidad. Capitulo Criminologico, p. 31. Trad. livre. No original: “desde el momento que la pena se ha venido que ‘emancipar’ del ‘castigo divino’, ha estado amenazada permanentemente por el riesgo de ser descubierta por lo que, contingentemente, está detrás de la ficción de lo que quiere hacer creer que es”. 14 No mesmo sentido: VÉRIN, Jacques. La detention preventive et la Criminologie. Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal Comparé. p. 917: “Não é a questão aqui determinar as razões que puderam conduzir neste ou naquele caso um juiz de instrução a prender um acusado, mas considerar a prisão preventiva como um fenômeno global. (...) não é à lei nem às disposições regulamentares que se deve imputar o uso extensivo da prisão preventiva”. Trad. livre. No original: “Il n’est pas question ici de déterminer les raisons qui ont pu conduire dans tel ou tel cas un juge d’instruction à incarcérer un prévenu, mais de considérer la détention préventive comme un phénomène global. (…) ce n’est pas à la loi ni aux dispositions réglementaires qu’il faut imputer l’usage extensif de la détention préventive”. 15 HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura Jurídica Européia. p. 26-27. 13 69 Artigo 3 É claro que um sujeito a ser julgado (é o que entendemos por imputado) sempre esteve presente no processo penal. Mas há algumas considerações incontornáveis que levam a concluir que o reus do processo do antigo regime fosse coisa diversa do imputado do século XIX.16 Por outro lado, a redução da dimensão histórica à mera referência da existência de determinado instituto em outros tempos e em outras civilizações contribui tãosomente para sua naturalização, atribuindo-o legitimidade pela afirmação implícit a de “haver sempre existido”. Por todos no Brasil, neste sentido, vê-se como Almeida Jr se refere rapidamente à prisão preventiva como medida existente nas legislações ática, romana e visigótica17 , antes de adentrar no estudo da medida nas Ordenações portuguesas e na legislação brasileira a partir do Império; ou fazendo uma mera referência ao caráter excepcional da custódia cautelar no direito romano e nas monarquias da Baixa Idade Média18 , explicando a prisão cautelar daqueles períodos e sociedades tão-somente como locais onde as pessoas aguardavam uma decisão final da justiça para receberem, depois, suas penas.19 A conclusão a que se acaba por chegar é que a “prisão preventiva, na sua configuração legal e alcance ou desiderato, foi evoluindo ao longo da história, sendo que a sua função é, hoje, de cariz estritamente processual”.20 Tratam-se, porém, de estratégias glorificadoras do presente, próprias de um método historiográfico positivista, fundado na adoção de um modelo evolucionista crente no contínuo e constante progresso das instituições jurídicas: Esta teoria do progresso linear resulta freqüentemente de o observador ler o passado desde a perspectiva daquilo que acabou por acontecer. (...) promove uma sacralização do presente, glorificado como meta, como o único horizonte possível da evolução MARCHETTI, Paolo. Testis Contra Se. p. 5. Trad. livre. No original: “Certo un soggetto da giudicare (ed. è questo que noi intendiamo per imputato) è sempre stato presente nel processo penale. Ma ci sono alcune considerazioni che non possono esse eluse e che portano a concludere che il reus del processo di antico regime fosse cosa diversa dall’imputato del XIX secolo”. 17 ALMEIDA JR, João Mendes de. O Processo Criminal Brazileiro. vol. I, p. 343-345. No mesmo sentido: ROCHA, João Luís de Moraes. Ordem Pública e Liberdade Individual. p. 23: “Mais antiga, como se referiu, do que a prisão como pena, a prisão hoje denominada de preventiva, usada por gregos e romanos, existia na península ibérica desde os tempos da reconquista. Importada do direito romano foi adaptada aos usos e costumes nacionais, mais tarde vertida nas Ordenações Afonsinas, destas para as Ordenações Manuelinas e assim sucessivamente”. 18 ALMEIDA JR, João Mendes de. O Processo Criminal Brazileiro. p. 344: “o principio geral dominante, nos primeiros tempo da Republica, era que o accusado, cidadão romano, devia ficar em liberdade até o julgamento, desde que désse fiadores idôneos como caução do seu comparecimento em juízo”. V. também: LUCA, Giuseppe. Lineamenti della Tutela Cautelare Penale. p. 12. 19 V. por exemplo: ROCHA, João Luís de Moraes. Ordem Pública e Liberdade Individual. p. 22: “A prisão foi durante muitos séculos um lugar onde se guardavam as pessoas até uma decisão final de justiça. A privação de liberdade física servia para evitar a fuga do criminoso entre a captura e a execução da sentença. (...) Será assim possível afirmar que na antiga legislação pátria [N. A.: referindo-se a Portugal] a prisão era sobretudo preventiva”. 20 ROCHA, João Luís de Moraes. Ordem Pública e Liberdade Individual. p. 183. 16 70 Prisão Cautelar e Prisão como Pena: a Identidade na História humana e tem inspirado a chamada ‘teoria da modernização”, a qual propõe uma política do direito baseada num padrão de evolução artificialmente considerado como universal.21 Assim se faz da história um discurso legitimador do presente que ignora a autonomia do passado, reduzindo-o a uma espécie de estágio preparatório daquele. Tais “estratégias” são utilizadas com freqüência no trato do tema da prisão cautelar e da própria pena de prisão, compreendendo a primeira como uma necessidade inquestionável e natural e esta última como um também natural e inevitável resultado de uma evolução22 da “barbárie à modernidade”. A premissa evolucionista marca o processo penal quando se crê na modernidade como o início de uma era distinta da escuridão da Idade Média, como se o processo inquisitório ali gestado representasse um período “não civilizado”, mas já findo.23 Com a modernidade e o pensamento liberal a prisão preventiva teria enfim se assumido como medida destinada a fins “estritamente processuais e sem significado ético”.24 Já se referiu que a distinção entre uma prisão para punir e outra para manter sob custódia vem de longa data, o que não significa que se possa invocá-la de outros tempos e civilizações sem se ater ao contexto específico em que se insere cada conceito e teoria. É necessário, com efeito, abordar-se o tema com cuidado, sob pena de se supor que falar em função cautelar signifique o mesmo, por exemplo, na sociedade atual e na sociedade romana de séculos atrás; ou de se investigar a prisão como pena e a prisão cautelar, institutos absolutamente vinculados, em planos e abordagens distintas e distantes. A partir de tais ressalvas é que se pode ver como a custódia cautelar ocupa um lugar muito importante no processo histórico pelo qual a prisão passa a ser a modalidade hegemônica de punição da sociedade capitalista25 , nestes termos colocados por Morris e Rothman: HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura Jurídica Européia. p. 29. Registre-se a posição, em outro sentido, de LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e a sua Conformidade Constitucional. p. 3: observa o autor não se poder falar em “evolução histórica” da pena de prisão, cujo histórico é marcado por descontinuidades. 23 V. por exemplo: LUCA, Giuseppe. Lineamenti della Tutela Cautelare Penale. p. 14. 24 ROCHA, João Luís de Moraes. Ordem Pública e Liberdade Individual. p. 24. 25 PAVARINI, Massimo. Fuori dalle mura del carcere: la dislocazione dell’ossessione correzionale. Dei Delitti e Delle Pene. p. 256: “o cárcere era já uma realidade conhecida também pelos sistemas penais (...) terminava por cumprir deveres de natureza endoprocessual, ou mesmo de medidas político-administrativas, ou mesmo, em algumas hipóteses, foi lugar onde podia vir aplicada uma pena corporal”. Trad. livre. No original: “il carcere era una realtà già conosciuta anche dai sistemi penali (...) esso finiva per adiempere a compiti di natura endoprocessuale, ovvero di misura politico-amministrativa, ovvero, in alcune ipotesi, fu luogo in cui poteva venire irrogata una pena corporale”. 21 22 71 Artigo 3 Aplicar a distinção norte-americana entre prison e jail (cárcere preventivo) auxilia a investigação acerca dos propósitos da prisão. Simplificando, jails se destinam especialmente àqueles aguardando julgamento e aguardando punição; prisões são para os criminosos condenados cumprirem a pena. Por evidente, alguns criminosos devem ficar presos até serem trazidos a julgamento e, se condenados, até cumprirem a pena. Neste sentido o sistema de julgamento pressupõe a existência da jail. Se a prisão existe e se não sabemos o que mais fazer com um criminoso condenado para o qual não cabe a pena de morte, de açoitamento ou de exílio, ou ainda que não pode ter a permissão de fugir das conseqüências adversas de seu crime, por que não manter a prisão? Assim, sugerimos, a justificação original para a prisão pode ter sido a incapacitação. Seja como for, o encarceramento serve para remover um criminoso em potencial da comunidade.26 O contexto específico no qual se quer tratar da incapacitação ou neutralização como escopo primário hoje exercido pela prisão, penal e processual, é aquele marcado pelas transformações políticas e econômicas sintetizadas no termo neoliberalismo27 , no qual, no âmbito das estratégias de controle social, o princípio da eficiência ocupa o vazio deixado pela crise dos ideais de ressocialização. MORRIS, Norval; ROTHMAN, David J. Introduction. The Oxford History of the Prison. p. IX. Trad. livre. No original: “Applying the American distinction between prison and jail helps to launch the inquiry into the purposes of prison. Oversimplifying, jails hold mainly those awaiting trial and awaiting punishment; prisons hold convicted offenders as a punishment. Of course, some alleged criminals have to be held secure until brought to trial and, if convicted, until punishment. In this sense the system of trials presupposes the existence of the jail. If the cage exists, and if we do not know what else to do with a convicted offender who does not need to be killed or whipped or exiled yet who cannot be allowed to escape adverse consequences for his crime, why not continue the caging? So, we are suggesting, the original justification for the prison may have well been incapacitation. Whatever else, incarceration serves to remove a potencial offender from the community”. 27 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do pensamento economicista no direito criminal de hoje. Revista da Faculdade de Direito da UFPR. p. 38: “O nome deve-se a Lippmann, mas os fundamentos, no nascimento, estão marcados pela Sociedade de Mont Pèlerin (1947), encabeçada por Hayek, a qual vem fincada na inimizade de morte com o Estado de bem-estar europeu e com o New Deal norte-americano (Anderson). Embora o radical (neo) pudesse sugerir um novo liberalismo, em suma o que nele se tem uma negação do verdadeiro pensamento liberal, onde a liberdade não pode ser tomada desacompanhada da igualdade. Agora, o inimigo a ser combatido era – e segue sendo – o excesso de igualitarismo que permeia o Estado de bem-estar, fonte da sua hipertrofia”. Concentrando-se, ainda, na dimensão econômica do termo “neoliberal”, há, segundo José Carlos Valenzuela Feijóo, três acepções possíveis: “Às vezes, ‘neoliberal’ diz respeito às características comumente assumidas pela política econômica na fase recessiva do ciclo econômico. Nesse contexto, lidamos com um pacote muito característico de medidas e diretrizes de política econômica. Por exemplo: i) redução das despesas e do déficit públicos; ii) congelamento dos salários nominais e queda do salário real; iii) liberação de preços; iv) restrições no crédito e elevações das taxas de juros; v) desvalorização da moeda e liberalização do comércio exterior, etc.[...]. Uma segunda acepção possível do termo aponta em direção àquilo que poderíamos denominar uma ideologia ou filosofia econômica, cujo conteúdo básico reside numa visão (e pregação) ultraapologética do mercado. No plano estritamente ideológico, defende-se que o mercado (ou, para sermos mais precisos, a lei do valor) assegura um aproveitamento pleno e eficiente dos recursos econômicos. Pela mesma razão, também garante o crescimento mais acelerado da produção. A isso, costuma-se acrescentar que um mercado livre de interferências garante estabilidade econômica e uma justa distribuição de renda, [...]”, sendo a terceira acepção a compreensão de “neoliberal” como “um determinado padrão de acumulação, cf. FEIJÓO, José Carlos Valenzuela. O Estado neoliberal e o caso mexicano. Estado e políticas sociais no neoliberalismo (Organização de Ana Cristina Laurell). p. 12-14. 26 72 Prisão Cautelar e Prisão como Pena: a Identidade na História 3 A prisão como pena A instituição penitenciária surge quando a privação de liberdade passa a ser o mecanismo punitivo central da sociedade capitalista, há pouco mais de dois séculos. Uma primeira observação se deve dar sobre a necessidade de se distinguir a compreensão do cárcere como prática de exclusão e isolamento, de um lado, e as teorias justificadoras da privação de liberdade como pena, de outro, na medida em que “o modelo carcerário se realiza como ‘pena’ em um tempo cronologicamente sucessivo à sua oferta enquanto lugar de práticas de exclusão”.28 Rejeitando-se qualquer perspectiva que pretenda explicar as transformações decorrentes do pensamento iluminista enquanto signo de uma “evolução” ou mesmo “humanização” da punição, é certo que o tema deve ser abordado sob a ótica de “uma profunda ruptura com relação à historiografia jurídico-penal tradicional. As transformações históricas da pena representam não o resultado do progresso da sociedade, mas, pelo contrário, a evolução das estratégias com as quais a primeira das ‘duas nações’ sempre impôs sua própria ordem social à segunda”.29 Um primeiro marco neste sentido é o trabalho de Rusche e Kirchheimer, cuja hipótese é a de que “todo sistema de produção tende a descobrir punições que correspondem às suas relações de produção”.30 Foucault, pouco mais tarde, identificou nas mudanças a estratégia de uma nova economia do castigo e uma nova gestão das ilegalidades31, voltando-se o sistema à proteção prioritária dos bens e da propriedade. Assim, antes “o corpo dos condenados se tornava coisa do rei, sobre a qual o soberano imprimia sua marca e deixava cair os efeitos de seu poder. Agora, ele será antes um bem social, objeto de uma apropriação coletiva e útil”32 , devendo ser o castigo um signo visível e que servisse como sinal decifrável de lição a todos. PAVARINI, Massimo. Fuori dalle mura del carcere: la dislocazione dell’ossessione correzionale. Dei Delitti e Delle Pene. p. 255. Trad. livre. No original: “il modello carcerario si realizza come ‘pena’ in un tempo cronologicamente successivo al suo offrirsi come luogo di pratiche dell’esclusione”. 29 GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. p. 38. 30 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. p. 18-19: “Portanto, se uma economia escravista acha que o suprimento de escravos é insuficiente e a demanda pressiona, não se despreza a penalidade da escravidão. No feudalismo, por outro lado, não apenas esta forma de punição cai em desuso, quanto nenhum outro método foi descoberto para o uso da força de trabalho do condenado. O retorno para antigos métodos, pena capital ou corporal, foi então necessário, uma vez que a introdução de pena pecuniária para todas as classes era impossível em termos econômicos. A casa de correção foi o ponto alto do mercantilismo e possibilitou o incremento de um novo modo de produção. A importância econômica da casa de correção desapareceu, entretanto, com o aparecimento do sistema fabril. (...) na transição para a moderna sociedade industrial, que requer o trabalho livre como condição necessária para o emprego da força de trabalho, o papel do condenado foi reduzido ao mínimo”. 31 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 69-70. V. também GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. p. 26: “Diante do espetáculo da mendicância, da pobreza e da dissolução moral oferecida pelos pobres na Europa entre os séculos XVII e XVIII, as estratégias do poder mudam lentamente, passando de uma função negativa, de destruição e eliminação física do desvio, a uma função positiva, de recuperação, disciplinamento e normalização dos diferentes”. Para uma análise da jurisdição penal a partir da visão deste autor, v. BORGES, Clara Maria Roman. Jurisdição e normalização: uma análise foucaultiana da jurisdição penal. Tese (Doutorado). UFPR – Universidade Federal do Paraná, 2005. 32 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 91. 28 73 Artigo 3 O cárcere convivia, até então, com a imposição de sanções que geralmente sacrificavam bens do condenado: a riqueza, a integridade física, a vida, a honra, sem se considerar a perda da liberdade por um determinado período de tempo um castigo apropriado: E isto, simplesmente, porque a liberdade não era considerada um valor cuja privação pudesse ser considerada um sofrimento ou um mal. Certamente existia o cárcere, mas como simples lugar de custódia onde o imputado aguardava o processo: antes da aparição do sistema de produção capitalista não existia a prisão como local de execução da pena propriamente dita (...). Apenas com a aparição do novo sistema de produção a liberdade adquiriu um valor econômico: com efeito, apenas quando todas as formas de riqueza social foram reconhecidas no denominador comum do trabalho humano medido pelo tempo, ou seja de trabalho assalariado, foi concebível uma pena que privasse o culpado de um quantum de liberdade, ou seja, de um quantum de trabalho assalariado.33 De fato, o encarceramento de indivíduos até a “invenção penitenciária” guardava finalidades outras que a punição em si mesma.34 De acordo com Foucault, “a prisão assegura que temos alguém, não o pune. É este o princípio geral”.35 Não se pode, porém, conforme referido, pretender falar das diferentes formas de expressão desta “prisão processual” sem concentrar sobre cada período, sociedade e contexto específico um estudo com a dedicação e a atenção merecidas36 , pois o isolamento de indivíduos pode guardar significados substancialmente muito próprios e diversos. A transformação da prisão em locus de punição surge acompanhada de um ideal de transformação do sujeito, o que pode ser visualizado, no recorte aqui relevante e sem se preocupar com uma linearidade entre os diferentes períodos históricos, tanto quando a internação e o isolamento se tornam a modalidade hegemônica de punição como quando se estrutura o Estado de Bem-estar (Welfare State), após a Segunda Guerra Mundial. PAVARINI, Massimo. Control y dominación. p. 36. Trad. livre. No original: “Y esto, simplesmente, porque la libertad no era considerada un valor cuya privación pudiese considerarse como un sufrimiento, como un mal. Ciertamente existía ya la cárcel, pero como simple lugar de custodia donde el imputado esperaba el proceso: antes de la aparición del sistema de producción capitalista no existía la cárcel como lugar de ejecución de la pena propriamente dicha (...). Sólo con la aparición del nuevo sistema de producción la libertad adquirió un valor economico: en efecto, sólo caundo todas las formas de riqueza social fueron reconocidas al común denominador de trabajo humano medido en el tiempo, o sea de trabajo asalariado, fue concebile una pena que privase al culpable de un quantum de libertad, es decir, de un quantum de trabajo asalariado”. 34 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. p. 21: “Pode-se dizer que a sociedade feudal conhecia o cárcere preventivo e o cárcere por dívidas (...). Esta tese, que tende a sublinhar a natureza essencialmente processual do cárcere medieval, é acolhida quase unanimemente pela ciência histórico-penal”. 35 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 98. 36 Ver, neste sentido, o excelente MORRIS, Norval; ROTHMAN, David J. (org.). The Oxford History of the Prison: the practice of punishment in western society. New York: Oxford University Press, 2005; especialmente, sobre o tema, “Prison before the prison: the ancient and medieval worlds” (p. 3-43), de Edward M. Peters. 33 74 Prisão Cautelar e Prisão como Pena: a Identidade na História Algo a se anotar, em primeiro lugar, é que a forma de se compreender e tratar a questão da pobreza foi um fator determinante na configuração das políticas que levaram à “invenção penitenciária”. O marco desta é a experiência chamada de grande internamento37 , resultado direto, por sua vez, das mudanças de tratamento do pauperismo entre os séculos XVII e XIX. No Medievo se assumia a pobreza como fenômeno natural e sobre o qual se valorizava sobremaneira a caridade. Também nos Estados Unidos do século XVIII, com uma economia ainda predominantemente rural, interpretava-se a pobreza como um fenômeno natural à comunidade, tratada com políticas de assistência, ao mesmo tempo em que se legislava com rigor em relação a imigrantes pobres e clandestinos. Pois muda, e muito, a visão que se tinha sobre a pobreza e a mendicância quando mudanças na estrutura econômica produzem a demanda por força de trabalho. Tendo por base uma nova ética de exaltação ao labor, passa-se inclusive a se tomar a caridade como prática negativa: Em fins do século XVI, a crescente escassez de força de trabalho pressionou a mudança no tratamento dos pobres. (...). Em toda parte havia queixas amargas sobre a escassez de força de trabalho causada pela mendicância. As leis de repressão aos pobres consideraram este problema. Ao contrário da política do início do século XVI, cuja principal meta era a eliminação da mendicância, o novo programa tinha propósitos mais diretamente econômicos.38 Discrimina-se, assim, entre uma pobreza inocente e outra culpável, tomando por critério a aptidão para o “trabalho subordinado”.39 Quis-se aplicar para a primeira, não apta para o trabalho, tais como velhos e crianças, políticas assistenciais, e para a segunda, que poderia, mas não estava trabalhando, a coerção através de um vasto arquipélago institucional. Assim emerge a hipótese institucional, definida como o “internamento compulsório das massas dos pobres, ociosos e vagabundos nesses espaços definidos, onde a administração pública devia encarregar-se da sua educação através do trabalho”40, a partir da qual nascem as instituições denominadas casas de trabalho ou de correção, locais de internamento para o trabalho forçado. Segundo Rusche e Kirchheimer, a “primeira instituição criada com o propósito de limpar as cidades de vagabundos e mendigos foi, provavelmente, a Bridewell, em PAVARINI, Massimo. Control y dominación. p. 36. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. p. 59-60. 39 PAVARINI, Massimo. Control y dominación. p. 32. 40 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. p. 181. V. também: GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. p. 41. 37 38 75 Artigo 3 London (1555)”41; mas se atribui à Holanda a criação do modelo mais influente na Europa, aberto em 1596 e denominado Rasp-huis.42 O modelo se alastra pela Europa43 e também, mais tarde, nos Estados Unidos, com a função de “socializar a disciplina e a ética manufatureira a quem era, por origem e educação, diferente”.44 Identifica-se, assim, uma dupla finalidade: “por um lado, havia uma tentativa puramente disciplinar (...); por outro lado, a escassez de mão-de-obra na primeira metade do século XVII levava a enfatizar a necessidade de fornecer aos internos uma preparação profissional”.45 Em outras palavras, visava-se “transformar a força de trabalho dos indesejáveis, tornando-a socialmente útil. (...) Uma vez em liberdade, esperava-se, eles procurariam o mercado de trabalho voluntariamente”.46 No Brasil o modelo chegou em 1850, com a construção, no Rio de Janeiro, da Casa de Correção da Corte, tida como “a primeira penitenciária brasileira, dentro de um projeto de aproximar a estrutura repressiva do país com os modelos europeus e norte-americanos”.47 Paulatinamente, o internamento se torna a pena propriamente dita. Constatou-se nos EUA e na Inglaterra “os cárceres propriamente ditos – referimonos aqui aos jails como institutos de custódia preventiva – vazios ou quase vazios, enquanto as houses of correction ou workhouses abarrotadas por uma população extremamente heterogênea”48, o que apenas demonstra a vinculação estabelecida entre pobreza e questão criminal. Com as transformações econômicas que encerram o período mercantilista, inverte-se a situação do mercado de trabalho, agora com excedente de mão-deobra. Sem mais demandar por trabalhadores, “as classes dirigentes não tinham mais necessidade das medidas coercitivas que foram empregadas no período mercantilista para substituir a ausência de pressão econômica sobre as classes trabalhadoras”.49 Logicamente, as casas de correção perderam sua razão de ser, sendo substituídas pela fábrica e pelo trabalho livre.50 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. p. 61. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 100; MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica, p. 43: “A casa de trabalho holandesa era conhecida por toda a parte pelo termo Rasp-huis, porque a atividade de trabalho fundamental que ali se desenvolvia consista em raspar, com uma serra de várias lâminas, um certo tipo de madeira até transformá-la em pó, do qual os tintureiros retiravam o pigmento usado para tingir os fios”. 43 Ver MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. p. 48 e ss. Entre outros exemplos, surge a Casa di lavoro y correzione (Itália), o Hôpital Generale (França), e as Workhouses (Inglaterra). 44 PAVARINI, Massimo. Control y dominación. p. 33. Trad. Livre. No original: “socializar a la disciplina y a la ética manufacturera a quien era, por origen y educación, extraño”. 45 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. p. 57-58. 46 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. p. 63. 47 CASARA, Rubens R. Interpretação retrospectiva. p. 42-43. A instituição foi posteriormente transformada no Presídio Frei Caneca, implodido no final de 2006. 48 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. p. 185. 49 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. p. 118. 50 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. p. 126. 41 42 76 Prisão Cautelar e Prisão como Pena: a Identidade na História Nesse momento, os locais utilizados como cárcere cautelar são “convertidos” em espaço para cumprimento de pena: “As prisões existentes não encontraram novas demandas. Em sua maioria, os edifícios previamente utilizados pelos prisioneiros que esperam julgamento eram agora usados para a execução da sentença de prisão”.51 Tal relação histórica com a custódia cautelar é bastante nítida nos Estados Unidos. Observa-se preliminarmente, porém, que esta ali se identifica com a jail, “uma prisão distrital ou municipal”52, especialmente voltada à custódia de acusados à espera de julgamento, e que convivem, hoje, com as prisões federais e estaduais. As primeiras medidas de isolamento adotadas na sociedade norte-americana, séculos antes, destinadas aos imigrantes ilegais, já remetiam aos cárceres preventivos. Neste sentido anota Pavarini que foi a legislação de Nova York, em 1683 e em 1721, que previu “as primeiras formas de internamento obrigatório por um período determinado nas jails, os primeiros cárceres preventivos”.53 Mais tarde, a paradigmática Alburn Prison, criada em 1787 na Filadélfia, Pensilvânia, nasce de uma prisão originalmente destinada a abrigar acusados à espera de julgamento, a Walnut Street Jail.54 Embora teleologicamente voltadas a finalidades diferentes e mesmo considerando terem se contraposto em determinados momentos, é importante reconhecer o liame entre as casas de correção e os locais de custódia com finalidades oficialmente processuais: As houses of correction ou workhouses se apresentam, originalmente, como apêndices arquitetônicos da jail. Nelas, a disciplina é praticamente a mesma imposta no cárcere preventivo. Todavia, a população internada nessas instituições é bem diferente. A maior parte dos prisioneiros é constituída por pequenos transgressores da lei aos quais não era aplicada nenhuma pena corporal, por aqueles que tinham infringido a lei sobre a imigração e, sobretudo, por ociosos e vagabundos.55 Pondera-se, assim, que “se a jail havia mantido a sua finalidade original de cárcere preventivo, era bem outro, de um ponto de vista factual, o sistema de controle social que se baseava na hipótese institucional da house of correction ou, dada a flexibilidade terminológica com a qual este instituto era designado, workhouse”.56 As RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. p. 138. McCONVILLE, Sean. Local Prison: The Jail. The Oxford History of the Prison: the practice of punishment in western society. p. 267. Trad. livre. No original: “a county or municipal prison”. 53 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. p. 157. 54 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. p. 187: “Com base numa lei, foi determinada a construção de um edifício celular no jardim interno do cárcere (preventivo) de Walnut Street, no qual ficariam internados, em solitary confinement, os condenados à pena de prisão; a velha construção preexistente deveria continuar servindo de cárcere preventivo”. 55 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. p. 161. 56 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. p. 184. 51 52 77 Artigo 3 finalidades oficiais eram, evidentemente, diferentes57; porém, há de notar como ambas se entrelaçam, do ponto de vista funcional, no processo histórico que produziu a instituição penitenciária e conferiu caráter de pena ao cárcere. Neste sentido, a jail passa de “rival” das outras instituições também voltadas ao controle da vagabundagem58, para a assimilação da casa de correção como uma instituição só. Em outras palavras, pode-se dizer haver uma relação de continuidade entre ambas: A sobreposição e uma relutância dos municípios em prover os recursos necessários resultaram em uma assimilação gradual da casa de correção na jail [cárcere preventivo]. Havia uma tentativa de revitalização das casas de correção no fim do século XVIII, mas elas eram, então, simples apêndices da jail, utilizadas para a punição de contraventores e em regra compartilhando o mesmo guarda. (…) Em 1865, a legislação inglesa reuniu as casas de correção e as jails. Estritamente falando, depois dessa data a Inglaterra não teve mais jails mas apenas a jail e a casa de correção equiparados, mais adequadamente conhecidos pelo termo genérico ‘prisão’.59 Com a consagração da prisão como pena, abandona-se uma política criminal de aniquilação em prol de um modelo penitenciário legitimado pela finalidade de reintegração de quem se pôs fora do pacto social, delinqüindo. Foucault tem a prisão, desde o início, como um lugar de correção e “transformação técnica dos indivíduos”.60 O sujeito abstrato, violador da norma penal, torna-se “sujeito concreto de necessidades materiais, em algo que finalmente poderia ser observado, espiado, estudado, em última instância, conhecido”61, o qual será tomado como objeto de estudo pelas teorias criminológicas etiológicas. McCONVILLE, Sean. Local Prison: The Jail. The Oxford History of the Prison: The Practice of Punishment in Western Society. p. 271: “Até tempos relativamente recentes a noção da jail para reformar o criminoso era desconhecida e de fato pareceria bizarra. Pessoas eram presas para aguardarem seu julgamento e a execução da sentença, fosse ela o flagelo, a morte ou o banimento”. Trad. livre. No original: “Until relatively recent times the notion of using a jail to reform the offender was unknown and indeed would have seemed bizarre. People were held to await their trial and to await the execution of sentence, whether that be flogging, death, or banishment”. 58 McCONVILLE, Sean. Local Prison: The Jail. The Oxford History of the Prison: the practice of punishment in western society. p. 281. 59 McCONVILLE, Sean. Local Prison: The Jail. The Oxford History of the Prison: the practice of punishment in western society. p. 282. Trad. livre. No original: “The overlap and a reluctance of the counties to provide proper funding resulted in the gradual assimilation of the house of correction into the jail. There was an attempted revival at the end of the eighteen century, but by then most houses of correction were simply wings of the jail, used for the punishment of misdemeanants and usually sharing the same keeper. (…). In 1865, legislation amalgamated the houses of correction and jails in England. Strictly speaking, after that date England no longer had jails but only the assimilated jail and house of correction, which ought more properly to be known by the generic ‘prison’”. 60 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 196. 61 PAVARINI, Massimo. Control y dominación. p. 37-38. Trad. Livre. No original: “sujeto concreto de necesidades materiales, en algo que finalmente podia ser observado, espiado, estudiado, en última instância conocido”. V. também: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 212-213. 57 78 Prisão Cautelar e Prisão como Pena: a Identidade na História O modelo correcional apresenta uma obsessão pedagógica62, com a qual “a punição é uma técnica de coerção dos indivíduos; ela utiliza processos de treinamento do corpo – não sinais – com os traços que deixa, sob a forma de hábitos, no comportamento”.63 Trata-se de, sob a égide do poder disciplinar, produzir sujeitos através do treinamento de seus corpos até se tornarem dóceis e úteis: A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita.64 O objetivo da pena de prisão foi, portanto, fazer do criminoso um proletário, ou seja, “educar (ou reeducar) o criminoso (não-proprietário) a ser proletário socialmente não perigoso, isto é, ser não-proprietário sem ameaçar a propriedade”.65 Tendo-se, então, a base para a construção de um sistema para a reintegração social do preso, observa Coutinho que o sistema foi criticado por conservadores e progressistas: Estes, porque a recuperação, quando realizada no modelo idealizado, tinha cariz ortopédico e, portanto, buscava a ‘docilização’ do apenado, conformando-o ao poder, em visível violação dos seus direitos fundamentais (...) Os conservadores, da sua parte, nunca viram com bons olhos as tentativas de recuperação porque elas implicavam gastos, a seu ver desnecessários, mormente em razão de jamais terem sequer imaginado a mínima responsabilidade da sociedade – e do Estado – na situação individual do criminoso.66 Vê-se, em suma, que a teoria da pena moderna é a história de sua justificação, em especial de como a pena justa (meramente retributiva) passa a pena útil (com finalidades preventivas).67 Com a crise do chamado Estado de Bem-estar e do modelo penal fundado no paradigma da ressocialização, o que se vê é a emergência de modelos PAVARINI, Massimo. Un arte abyecto. p. 64. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 108. 64 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 119. 65 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. p. 216. 66 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O gozo pela punição (em face de um estado sem recursos). Estudos Constitucionais. p. 139-140. 67 V. sobre o tema PAVARINI, Massimo. La justificación imposible. La historia de la idea de pena entre justicia y utilidad. Capitulo Criminologico. n.º 21, 1993, Maracaibo: Universidad del Zulia, p. 29-41; e também: PAVARINI, Massimo. Un arte abyecto, p. 57: “Perdida essa razão universal de justiça, sobre a qual se havia fundado, sua sobrevivência esteve marcada pela precariedade: para existir deve demonstrar agora servir para alguma outra coisa. Ao não estar mais em condições de expressar um ideal universal de justiça, em seu processo de laicização a pena termina por se poder justificar apenas e enquanto meio de alcançar uma finalidade”. Trad. livre. No original: “Perdida esa razón universal de justicia, sobre la que se había fundado, su supervivencia estuvo signada por la precariedad: para existir debe demostrar ahora servir para alguna otra cosa. Al no estar más en condiciones de expresar un universal de justicia, en su proceso de laicización la pena termina por poder justificarse sólo por y en cuanto medio para alcanzar un fin”. 62 63 79 Artigo 3 justificativos que atribuem à prisão a estrita função de prevenção especial negativa, ou seja, de incapacitação, até então submersa pelos ideais de intimidação geral e correção do delinqüente. 4 Considerações finais Não obstante, a admissão pelo “discurso oficial” de que a prisão não corrige, mas tão-somente retira do convívio social aqueles a quem se considera “perigoso”, pode se explicar como um momento de excepcional sinceridade: segundo Pavarini, “o sistema penal já não tem necessidade de mentir”.68 A pena, agora, é a pena sem utilidade, é a pena que não transforma, é a pena que não se justifica: “não é expressiva, não é programática, não deseja produzir intencionalmente sofrimento. Intenta apenas reduzir o risco social da criminalidade, pondo quem se tem como perigoso em condição de não causar dano, neutralizandoo”69 ; sem embargo de permanecer, sempre, o gozo coletivo com a punição de alguns.70 A categoria da “perigosidade” remete a uma tipologia criminológica ligada à criminalização da pobreza, o que de todo se coaduna com a ação eficiente que no âmbito da justiça penal se traduz, em uma palavra, na exclusão, em definitivo e no sentido mais radical de neutralização física, senão eliminação, dos em regra já excluídos71 do acesso aos bens fundamentais para viver e crescer com dignidade, e especialmente nos países periféricos como o Brasil. 5 Referências ALMEIDA JR, João Mendes de. O Processo Criminal Brazileiro. 3.ª ed. v. 1. Rio de Janeiro: Typ. Batista de Souza, 1920. BARATTA, Alessandro. Che cosa à la criminologia critica? Dei delitti e delle Pene, n.º 1, 1991, Bari: Edizione Scientifiche Italiane, p. 53-81. PAVARINI, Massimo. Un arte abyecto. p. 20. Trad. Livre. No original: “el sistema penal ya no tiene necesidad de mentir”. Sobre o “fim das utopias” punitivas, ver também GARLAND, David. The Culture of Control, p. 14: “Recent years have witnessed a remarkable turnaround in the fortunes of the prison. An institution with a long history of utopian expectations and periodic attempts to reinvent itself – first as a penitentiary, then a reformatory, and most recently as a correctional facility – has finally seen its ambition reduced to the groundzero of incapacitation and retributive punishment”. 69 PAVARINI, Massimo. Un arte abyecto. p. 26. Trad. Livre. No original: “no es expresiva, no es programática, no desea producir intencionalmente sufrimiento. Intenta sólo reducir el riesgo social de la criminalidad poniendo en condición de no dañar a quien se advierte como peligroso, neutralizándolo”. 70 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O gozo pela punição (em face de um estado sem recursos). Estudos Constitucionais. p. 147. 71 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do pensamento economicista no direito criminal de hoje. Revista da Faculdade de Direito da UFPR. p. 41: “Incluído, da sua parte, é aquele que está dentro do mercado, consumindo e, de conseqüência, produzindo. O excluído, por seu turno, sobrevive das migalhas porque, à margem do mercado (é um não-consumidor), coloca-se na condição de descartável e, portanto, no quadro atual, mostra-se como um empecilho, dado continuar demandando pelas necessidades básicas”. 68 80 Prisão Cautelar e Prisão como Pena: a Identidade na História . La Política Criminal y el Derecho Penal de la Constitución: nuevas reflexiones sobre el modelo integrado de las ciencias penales. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n.º 29, 2000, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 27-52. BECKER, Howard S. Outsiders: saggi di sociologia della devianza. Tradução de Mauro Croce, Claire-Lise Vuadens e Diego Brignoli. 4. ed. 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Rio de Janeiro: Revan, 2007. 82 Contratações na Sociedade de Consumo e Tecnologia: função Social do Contrato e Boa-fé Objetiva Contratações na sociedade de consumo e tecnologia: função social do contrato e boafé objetiva Carolina Fátima de Souza Alves (Autora) Professora Titular do curso de Direito da Faculdade Dom Bosco de Curitiba/PR. Antonio Carlos Efing (Co-autor) Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Professor Titular de Direito do Consumidor e Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. 1 Introdução. 2 A nova concepção social do contrato – massificação das relações contratuais. 3 Os novos princípios contratuais. 3.1 Da função social do contrato. 3.1.1 Noções introdutórias. 3.1.2 Conceituação de função social do contrato. 3.2 Boa-fé. 3.2.1 Noções introdutórias. 3.2.2 Boa-fé objetiva vista como dever de conduta (Cláusula geral). 3.2.3 Boa-fé objetiva e suas funções: principiológica e interpretadora. 4 Equilíbrio contratual. 5 Consequência legal (sanção) pelo desrespeito aos princípios da função social do contrato e boa-fé objetiva. 6 Conclusão. 7 Referências. Resumo Os contratos, pactos ou convenções têm diversas raízes etimológicas. No Direito Romano havia o “pacto” e o “contractus”. Através dos “pacta”, o vínculo criava apenas obrigações naturais. As obrigações jurídicas decorriam do “contractus”. Assim também o é no sistema jurídico atual: há convenções e pactos que não geram obrigações jurídicas. Estas decorrem dos contratos, que são vínculos que merecem proteção jurídica, por sua importância social e por estarem atendidos os requisitos legais que lhe conferem validade. Na acepção clássica vigente até o século XIX, a relação contratual se amparava no tripé autonomia da vontade, obrigatoriedade e relativização dos efeitos contratuais. Entretanto, as transformações sociais advindas no pós Revolução Francesa, especialmente a industrialização, demonstraram que 83 Artigo 4 o contrato, desta forma compreendido, servia como instrumento de afirmação da classe mais abastada, fomentando a desigualdade entre os contratantes, não mais se adaptando a realidade socioeconômica do século XX. Foi diante desse quadro que se deu a travessia do Estado Liberal para o Estado Social, deixando o Estado sua posição absenteísta para atuar positivamente sobre os contratos celebrados, visando assegurar o predomínio dos interesses sociais sobre os individuais, fomentando a criação de novos princípios contratuais, dentre eles o da boa-fé objetiva e da função social do contrato, hoje, indispensáveis na leitura e compreensão de toda relação contratual. O objetivo do presente artigo, mediante utilização do método positivista dedutivo, será demonstrar as alterações sofridas na acepção jurídica do contrato, mormente a criação dos princípios da boa-fé objetiva e função social, fulcrando-se ao final, no estudo de seu emprego nas relações consumeristas. Palavras-chave: Contrato; Alterações; Boa-fé Objetiva; Função Social Abstract The contracts, pacts or conventions have several etymological roots. In the Roman Right there were the “pact” and the “contractus.” Through the “pacta”, the bond just created natural obligations. The juridical obligations elapsed of the “contratus.” Likewise it is it in the current juridical system: there are conventions and pacts not to generate juridical obligations. These elapse of the contracts, that are bonds that deserve juridical protection, for his social importance and for they be assisted the legal requirements that check him/her validity. In the effective classic meaning until the century XIX, the contractual relationship if it aided in the tripod autonomy of the will, compulsory nature of the contractual effects. However, the transformations social comes from the powders French Revolution, especially the industrialization, they demonstrated that the contract, this way understood, it served as instrument of statement of the wealthiest class, fomenting the inequality among the contracting parties, no more adapting the socioeconomic reality of the century XX. It was before of that picture that felt the crossing of the Liberal State for the Social State, leaving his State position absentee to act positively on the celebrated contracts, seeking to assure the prevalence of the social interests on the individual ones, fomenting the creation of new contractual beginnings, among them the one of the good-faith aims at and of the social function of the contract, today, indispensable in the reading and understanding of all contractual relationship.The objective of the present article, by use of the method deductive positivist, will be to demonstrate the suffered alterations in the juridical meaning of the contract, especially the creation of the beginnings of the good-faith aims at and social function in the study of his job in the relationships. Keywords: Agreements; Alterations; Good-faith Aims; Social function 84 Contratações na Sociedade de Consumo e Tecnologia: função Social do Contrato e Boa-fé Objetiva 1 Introdução Reflexo da passagem do Estado Liberal para o Estado Social, o contrato ganha nova dimensão social, o que requer seja analisado de acordo com os novos princípios que lhe dão conteúdo. Como se sabe, como outros institutos jurídicos, o contrato também foi utilizado, até o século XIX, como instrumento de afirmação econômica da classe burguesa. Na época, com esteio no tripé que amparava a base contratual – autonomia da vontade, obrigatoriedade e relativização dos efeitos contratuais – a classe burguesa utilizava-se do contrato para se auto-favorecer. Enzo Roppo1 anota que “esta ideologia novecentista da liberdade de contratar corresponde, sem dúvida, as orientações e valores positivos, de progresso, afirmados na evolução das sociedades ocidentais, tornando-se, inclusive, sua promotora direta. Contudo, de outro lado, configura de facto, um instrumento funcionalizado para operar do modo de produção capitalista, e neste sentido, realiza institucionalmente o interesse da classe capitalista (que é justamente interesse particular de uma classe, e não interesse geral de toda a sociedade, ainda que as ideologias do capitalismo tentem, interessadamente, fazer crer a sua coincidência”. Na concepção clássica do contrato, a tutela jurídica limitava-se a proteger a vontade criadora e a assegurar a realização dos efeitos desejados pelos contraentes, desconsiderando-se por completo a situação econômica e social dos contraentes. Contudo, esse modelo contratual não tardou a revelar a desigualdade real que escondia. Com a industrialização e a massificação das relações contratuais, especialmente através da conclusão de contratos de adesão, ficou evidenciado que o conceito clássico de contrato não mais se adaptava à realidade socioeconômica do século XX. Em muitos casos, o acordo de vontades era mais aparente do que real; os contratos pré-redigidos tornaram-se a regra e deixavam clara a desigualdade entre os contratantes – um, autor efetivo de clásulas, outro, simples aderente –, desmentindo a idéia de que, assegurando-se a liberdade contratual, estaria assegurada a justiça contratual. No dizer de Claudia Lima Marques2, ”a crise na teoria conceitual do direito contratual3 era inconteste”. ROPPO, Enzo. O Contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes, Coimbra: Almedina, 1988. p. 36. 2 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. o novo regime das relações contratuais. 5.ª ed., São Paulo: RT, 2006, p.163. 3 Que para muitos estudiosos, ficou conhecida como Crise do Dogma da Autonomia da Vontade. 1 85 Artigo 4 2 A nova concepção social do contrato – massificação das relações contratuais Foi diante desse quadro que se deu a travessia do Estado Liberal para o Estado Social, deixando o Estado a sua posição absenteísta de lado para atuar positivamente sobre os pactos celebrados, visando assegurar o predomínio dos interesses sociais sobre os individuais. Paulo Nalin4 leciona que o “caos” do conceito de contrato surge na pósmodernidade, momento no qual “a desconstrução dos dogmas se apresenta como inevitável” e o repensar “do modelo contratual, ou o reconhecimento de sua crise institucional, surgem em razão do desajuste entre o modelo contratual e as relações de massa” eis que “as relações plúrimas, coletivas, difusas ou mesmo massificadas não se encaixam nos moldes das codificações modernas”. De acordo com a nova concepção de contrato – na sua vertente social – não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa mas, outrossim, e principalmente, os efeitos do contrato na sociedade deverão ser considerados. Conceitos tradicionais como autonomia da vontade5 e obrigatoriedade do pacto serão relativizados ante a intervenção, cada vez maior, do Estado, nas relações contratuais, no intuito de mitigar o antigo dogma da autonomia da vontade privada face às novas preocupações de ordem social. “É o contrato, como instrumento à disposição dos indivíduos na sociedade de consumo, mas, agora, limitado e eficazmente regulado para que alcance sua função social”6. Darcy Bessone7 comenta que “se passou a exigir do Estado um diverso papel no campo jurídico – que fosse não apenas de proteção do direito, inclusive por meio da repressão a sua violação (Estado garantidor), mas sim e também contemplativo de uma função positiva, de promoção de objetivos determinados (Estado dirigista) –, novos valores ganharam relevo na esfera dos contratos particularmente mercê do fenômeno do dirigismo contratual, em que o Estado intervém, por meio do legislador e do juiz, para assegurar o predomínio dos interesses sociais sobre os individuais”. Assim, nas palavras de Antonio Junqueira8 “impõe ao Estado e ao jurista, a proibição de ver o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais”. NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno. Em busca de sua formulação na perspectiva civilconstitucional. 1.ª ed., Curitiba: Juruá, 2001, p.113/115. 5 Ou “autonomia privada”. 6 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. o novo regime das relações contratuais. 5.ª ed., São Paulo: RT, 2006, p. 211. 7 BESSONE, Darcy. Do Contrato: teoria geral. 3.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 44 8 JUNQUEIRA, Antonio de Azevedo. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado – Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 750, p.116, abr. 1998. 4 86 Contratações na Sociedade de Consumo e Tecnologia: função Social do Contrato e Boa-fé Objetiva Pelo contrário, a nova concepção do contrato é uma concepção social deste instrumento jurídico, para a qual não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, como também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão considerados e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha importância. Segundo Cláudia Lima Marques9 “hoje o contrato é o instrumento das riquezas da sociedade, é também um instrumento de proteção dos direitos fundamentais, realização dos paradigmas de qualidade, de segurança, de adequação dos serviços e produtos no mercado”. Assim, o contrato deixa de ser somente a auto-regulamentação dos interesses privados das partes para, também, preencher função social, bem como ser regido pela boa-fé objetiva, destinando-se o presente trabalho a analisar, mais enfaticamente, os novos princípios norteadores do contrato. 3 Os novos princípios contratuais Segundo a visão clássica, três eram os pilares fundantes da doutrina contratual: a) princípio da autonomia da vontade de contratar; b) princípio da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda) e c) princípio da relatividade dos efeitos contratuais. De acordo com a teoria contratual clássica e, segundo Humberto Theodoro Junior “a idéia tradicional de contrato vê na vontade dos contratantes a força criadora da relação jurídica obrigacional, de sorte que nesse terreno prevalece como sistema geral a liberdade de contratar, como expressão daquilo que se convencionou chamar de ‘autonomia da vontade’”. Diante da evolução histórica e legal já comentada, apercebeu-se que a autonomia da vontade ou liberdade de contratar não mais poderia ser o elemento central do pacto, tampouco compreendida de modo absoluto e ilimitado. Isto porque vezes há em que o contratante não tem a opção de contratar ou com quem contratar, casos dos serviços prestados em caráter de monopólio, como o fornecimento de água e energia elétrica. De outro verte, por um longo tempo entendeu-se que os pactos deveriam ser religiosamente respeitados, pois refletiam um ato de liberdade individual, o que se convencionou chamar de princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda). MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 5.ª ed., São Paulo: RT, 2006, p. 180. 9 87 Artigo 4 Contudo, já no século XX, com a expansão do capitalismo e diante da adoção de conceitos como “ordem pública” e “fim social”, ou seja, com o fortalecimento do princípio da Justiça Social, o pacta sunt servanda também foi relativizado, inclusive com a criação das Teorias da Onerosidade Excessiva10 e da Imprevisão11, visando superar eventual desigualdade ou fatos imprevisíveis que tornassem o pacto celebrado extremamente oneroso a uma parte contratante. Urge notar que a mitigação da força obrigatória dos pactos também deveuse a maciça intervenção do Estado, de forma política e econômica, nos contratos celebrados entre particulares, no intuito de acautelar objetivos sociais eventualmente atingidos por referidos pactos. De idêntica forma, não mais vinga a noção de que o contrato celebrado produz efeitos somente entre as partes contratantes – conceito apregoado pelo princípio da relativização dos efeitos contratuais – mas, outrossim, por vezes, produz efeitos difusos e coletivos, mormente diante da adoção do princípio da função social do contrato. Embora relativizados tais princípios ainda subsistem; porém, consoante lição de Antonio Junqueira de Azevedo12, há que se acrescentar a estes novos princípios norteadores do contrato: 1) função social do contrato; 2) boa-fé objetiva e 3) equilíbrio econômico do contrato. Inserções cuja análise compreende o estudo do tema ora em comento. 3.1 Da função social do contrato 3.1.1 Noções introdutórias Além de figurar como novo pilar do novel direito contratual, a função social do contrato figura também como princípio estruturante da ordem econômica previsto no artigo 170 da Constituição da República, traduzindo-se o contrato em verdadeiro instrumento de promoção da dignidade da pessoa humana constante no artigo 1.º, inciso III, da Carta Magna. Antes de adentrar na análise da função social do contrato, urge salientar que, hodiernamente, a função social do contrato tem sido vista muito além de simples A Teoria da Onerosidade Excessiva defende que a excessiva onerosidade imposta a uma das partes contraentes não pode sobrepor aos objetivos almejados no momento da contratação. Na maioria das vezes, as partes contratantes tem como fator decisivo para a formação do vínculo contratual, a equivalência e equilíbrio das obrigações ou prestações assumidas. 11 Teoria invocada quando a onerosidade excessiva decorrente de fatos extraordinários, cuja consequência náo se poderia prever na celebração do contrato, repercute em efeitos supervenientes, imprevistos e não correspondentes aos interesses iniciais das partes. 12 JUNQUEIRA, Antonio de Azevedo. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado – Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 750, p.115, abr. 1998. 10 88 Contratações na Sociedade de Consumo e Tecnologia: função Social do Contrato e Boa-fé Objetiva cláusula geral normativa (normal legal impositiva) mas, outrossim, como verdadeiro princípio jurídico que embasa não somente a ordem econômica da República como, também, os objetivos constitucionais, dentre eles, o respeito e a valorização da pessoa humana, objetos da moderna relação contratual. Celso Antonio Bandeira de Mello13 conceitua princípio como sendo “por definição, mandamento nuclear do sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. Conclui renomado jurista que “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer”. Portanto, a violação de referido princípio contratual é muito mais gravosa do que o desrespeito à norma legal posta. 3.1.2 Conceituação de função social do contrato Mas o que é função social do contrato? Sem olvidar a respeito da flexibilização do conceito de “contrato”, urge salientar que embora o Código de Defesa do Consumidor não preveja, expressamente, a função social do contrato em seu texto, é ponto pacífico que tal princípio também aplicar-se-á às relações de consumo. Aliás, segundo entendimento de Antonio Carlos Efing14, em verdade, o Código de Defesa do Consumidor foi criado com o intuito de efetivar a função social do contrato, conferindo maior proteção jurídica à parte mais débil da relação contratual. De acordo com os ensinamentos de Antonio Carlos Efing, qualquer ato que ofenda o preceito contido no artigo 3.º da Constituição Federal da República15 fere frontalmente a função social que todo contrato deve possuir. De outro verte, atendendo a anseios sociais previstos em seara constitucional, o artigo 421 Código Civil de 2002, prevê expressamente a função social do contrato nas relações civis, inclusive como limitador da autonomia privada, verbis: MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 12.ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 747-48. 14 Expresso em sala de aula por ocasião do Seminário e Debates sobre o artigo ora apresentado. 15 “Art. 3.º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. 13 89 Artigo 4 Art. 421 – A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Feita tal ressalva, importa salientar que, considerando a vagueza da expressão legal “função social do contrato”, a conceituação desta não é matéria das mais simples. Consoante assevera Claudio Luiz Bueno de Godoy16, indicando a lição de Fábio Konder Comparato17, “em rigor, quando se fala em função tem-se, em geral, a noção de um poder de dar destino determinado a um objeto ou a uma relação jurídica, de vinculá-los a certos objetivos; o que, acrescido do adjetivo “social”, significa dizer que esse objetivo ultrapassa o interesse do titular do direito – que, assim, passa a ter um poder-dever – para revelar-se como de interesse coletivo”. Neste sentido, a função social do contrato significa a funcionalização dos direitos subjetivos detidos pelos particulares que, de acordo com a nova hermenêutica e formação contratual, devem ceder ou harmonizar-se com os interesses sociais constitucionais embasadores da República Federativa do Brasil. Noutras palavras, da redação do texto legal supratranscrito, dessume-se que qualquer direito ou prerrogativa detido pela parte deve harmonizar-se a um fim social. Donde se pode constatar que o princípio da função social do contrato esta intimamente ligado ao princípio da autonomia privada, sendo aquele limitador deste. Isto porque o contrato deve atender ou, ao menos, harmonizar-se com as exigências sociais, e não somente servir como instrumento de entabulação de negócios egoísticos visando o atendimento exclusivo da vontade das partes contratantes. Neste sentido, o princípio da liberdade contratual e autonomia da vontade passa a ser limitado pela crescente intervenção estatal na economia, visando assegurar a função social de todo e qualquer pacto celebrado. Portanto, no afã de conferir maior igualdade material inter pars, o Estado poderá (deverá) intervir para equilibrar o poder das partes contratantes, por meio de normas imperativas; limitando a autonomia privada, protegendo o lado mais fraco da relação jurídica patrimonial. É o que se verifica, por exemplo, nos contratos de consumo e locação, dentre outros. Há que se concluir, portanto, que a função social do contrato importa na relativização dos direitos subjetivos visando sua integração ao sistema social; ou, na GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. Os novos princípios contratuais. 1.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004 – (Coleção Prof. Agostinho Alvim, Coordenação Renan Lotufo), p. 111. 17 COMPARATO, Fabio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. v. 63, p. 71-9, jul/set. 1986. 16 90 Contratações na Sociedade de Consumo e Tecnologia: função Social do Contrato e Boa-fé Objetiva lição de Ruben Stigliz18 “significa conceber e proteger direitos subjetivos contratuais somente enquanto instrumentos úteis a serviço do desenvolvimento social”. Assim, no hodierno direito contratual brasileiro, a função social do contrato significa que sua composição clássica – com origens individualistas e voluntaristas – deverá ceder lugar a um novo modelo de ajuste, voltado a preservar os valores e princípios constitucionais de dignidade, solidarismo e livre desenvolvimento da pessoa humana, nos exatos termos do artigo 1.º, da Constituição da República Federativa do Brasil. Aliás, convém dizer que foi neste sentido a promulgação do novo Código Civil Brasileiro (Lei n.º 10 406, de 10/01/2002) que, segundo Miguel Reale19, fulcrado no princípio da socialidade ou socialização, buscou através de diversas previsões legais, mormente a contida no seu artigo 421, exterminar o modelo individualista de contrato apregoado pelo Código Civil de 1916, modificando seu eixo interpretativo, de modo a garantir que o contrato celebrado seja recebido pelo ordenamento desde que cumpra nova função atinente à proteção do interesse comum. Através de referida legislação, previu-se, então, a mitigação do princípio da relatividade dos efeitos do contrato frente aos valores constitucionais básicos. Ou seja, hodiernamente, face a sua função social, o contrato encontra-se voltado ao prestígio e respeito de valores primários eleitos pela Constituição, redundando na constitucionalização do direito civil. Segundo Maria Helena Diniz20, a consequência da criação do artigo 421 do novo Código Civil redunda no fato de que “a liberdade de contratar não é absoluta, pois está limitada não só pela supremacia da ordem pública, que veda convenção que lhe seja contrária e aos bons costumes, de forma que a vontade dos contratantes está subordinada ao interesse coletivo, mas também pela função social do contrato, que o condiciona ao atendimento do bem comum e dos fins sociais. A função social do contrato prevista no art. 421 do Código Civil constitui cláusula geral que impõe a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros; reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas e não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance deste princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”. STIGLITZ, Ruben. Autonomia de la coluntad y revision del contrato. Contractos: teoria general. Buenos Aires: Depalma, 1993. v. 2, p. 275. 19 REALE, Miguel. Visão geral do projeto de Código Civil. Cidadania e Justiça. Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros. v. 5, n.º10, p. 61-73, 1.º semestre/ 2001. 20 DINIZ, Maria Helena. Jornada de direito civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, setembro/ 2002. 18 91 Artigo 4 Portanto, a função social do contrato – vista como cláusula geral ou princípio – é decorrência lógica do princípio constitucional dos valores da solidariedade e da construção de uma sociedade mais justa (CF, art. 3.º, I) e significa que não mais se pode conceber o contrato apenas do ponto de vista econômico: é imprescindível verificar se o contrato celebrado cumpre sua função social para, somente então, ser eficaz. 3.2 Boa-fé objetiva 3.2.1 Noções introdutórias Inserida no conceito de função social do contrato21 e como novo paradigma, encontra-se a boa-fé, componente indispensável de todo e qualquer pacto celebrado. Como novo paradigma nas relações contratuais, a moderna teoria do direito contratual propõe o renascimento de um princípio geral de direito: o princípio da boafé objetiva, aplicável obrigatoriamente a todos os contratos. Previamente à explanação sobre o conceito de referido princípio, urge salientar a flagrante distinção existente entre boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva, esta última positivada no Código de Defesa do Consumidor e na legislação civil vigente. Nas palavras de Claudio Luiz de Bueno Godoy22 “diferente da boa-fé subjetiva, que é um estado psicológico, um estado anímico de ignorância da antijuridicidade ou do potencial ofensivo de determinada situação jurídica, a boa-fé objetiva é uma regra de conduta, uma regra de comportamento leal que se espera dos indívíduos, portanto, que com aquela não se confunde”. Assim, enquanto a boa-fé subjetiva implica em estado de espírito ou ânimo interno da pessoa, a boa-fé objetiva, no campo contratual, significa um padrão de conduta leal que deve ser respeitado pelos contratantes, eis que legitimado pelo Direito. A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva do fornecedor ou do consumidor. Feita tal distinção, mister salientar que o novo paradigma da teoria contratual é o respeito ao princípio da boa-fé objetiva que, inclusive, contra-se positivada no artigo 422 do Código Civil vigente, bem como no Código de Defesa do Consumidor, no seu artigo 51, inciso IV – como cláusula geral impositiva de deveres contratuais às partes contratantes –, e no artigo 4.º, inciso III – como regra de hermenêutica contratual. Nas palavras de Waldírio Bulgarelli “a função social do contrato e a boa-fé objetiva são como salvaguardas das injunções do jogo do poder negocial”. 22 GODOY, Claudio Luiz Bueno De. Função Social do Contrato. Os novos princípios contratuais. 1.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004 – (Coleção Prof. Agostinho Alvim, Coordenação Renan Lotufo), p. 89. 21 92 Contratações na Sociedade de Consumo e Tecnologia: função Social do Contrato e Boa-fé Objetiva 3.2.2 Boa-fé objetiva vista como dever de conduta (Cláusula geral) O artigo 422 do Código Civil vigente determina expressamente que: Art. 422 – Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Previsão similar contida nos artigos 4.º, inciso III e 51, inciso IV do Código de Defesa do Consumidor: Art. 4.° – A Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade. Como boa-fé objetiva, prevista no Código Civil bem como no Código de Defesa do Consumidor, compreende-se a cooperação e respeito, a conduta esperada e leal das partes contratantes, tutelada em todas as relações contratuais. É a exigência de comportamento leal dos contratantes. Cláudia Lima Marques23 conceitua boa-fé objetiva como sendo “uma atuação refletida, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes”. Segundo o doutrinador italiano Betti24 boa-fé objetiva “é o compromisso expresso ou implícito de fidelidade e cooperação nas relações contratuais, é uma visão mais ampla, menos textual do vínculo, é a concepção leal do vínculo, das expectativas que desperta (confiança)”. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 5.ª ed., Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006, p. 216. 24 BETTI. Teoria general de las obligaciones. T. I, p. 84. 23 93 Artigo 4 A imposição, pela hodierna teoria contratual, do princípio de boa-fé objetiva na formação e execução dos contratos obteve como resultado imediato a modificação do modo de visualizar a relação contratual. Antes vista como uma relação estática, o contrato passa a ser visto como uma relação dinâmica que “nasce, vive e morre”, vinculando por tempo pré-determinado as partes contratantes. Por intermédio desta visão dinâmica do contrato passou-se a enxergar que o contrato não envolve somente a obrigação de prestar nos termos pactuados mas, envolve também, uma obrigação de conduta das partes contratantes! Assim, a relação contratual nada mais é do que um contrato social, que vincula pessoas que, necessariamente, deverão respeitar deveres gerais de conduta apregoados pela boa-fé e pelo direito. Desta forma, a relação contratual impõe aos contratantes deveres de agir conforme boa-fé e os constumes, servindo o contrato para reforçar tais deveres e tal vínculo! Isto porque liberar os contratantes do cumprimento de seus deveres de conduta implicaria em legitimar a má-fé na celebração e execução do contrato, com o que não se coaduna a atual teoria contratual, tampouco o ordenamento jurídico vigente. Como exemplo, no particular, destaca-se o dever de informar previsto no artigo 30 e 31 do Código de Defesa do Consumidor, por intermédio do qual incumbe ao fornecedor, já nas tratativas contratuais25, informar ao potencial consumidor sobre os riscos do serviço a ser executado ou sobre a forma de utilização do produto, pena de inadimplemento contratual. De fato, o vínculo contratual não vige somente da celebração ao cumprimento do contrato mas, outrossim, como observa Carlyle Popp26 a boa-fé objetiva como novo princípio contratual importa “no surgimento de deveres de conduta, desde antes da celebração do contrato, em que se desenvolvem as negociações contratuais, mas regidas pelos princípios do contrato, mesmo em termos de responsabilidade, de resto como sucede, na lembrança do autor, com a oferta e publicidade, e o que se estende à fase posterior ao ajuste”. Mas não somente nesta fase, como também na fase pós-contratual, incumbe ao fornecedor informar ao consumidor sobre riscos do serviço ou produto (bem) adquirido, no que se convencionou chamar recall. Segundo Antonio Junqueira de Azevedo, em Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 775, p. 13, maio de 2000: “Obrigação há, como imperativo da boa-fé contratual, da lealdade dos contratantes, mesmo já findo o ajuste”. 26 POPP, Carlyle. Responsabilidade civil pré-negocial: rompimento das tratativas. Curitiba: Ed. Juruá, 2001, p. 149. 25 94 Contratações na Sociedade de Consumo e Tecnologia: função Social do Contrato e Boa-fé Objetiva Assim, consoante leciona Claudia Lima Marques27 “a relação contratual obriga não somente ao cumprimento da obrigação principal (prestação), mas também ao cumprimento de várias obrigações acessórias ou dos deveres anexos ao contrato, como a boa-fé objetiva”. Portanto, expandiu-se a boa-fé objetiva como uma exigência de “eticização das relações jurídicas”28, a ponto de elastecer sua abrangência a outras áreas do direito privado – que não somente a contratual – bem como ao direito público. 3.2.3 Boa-fé objetiva e suas funções: principiológica e interpretadora Das funções outorgadas ao princípio da boa-fé objetiva, a mais utilizada é a função interpretadora prevista expressamente no artigo 47 do CDC, que prevê: Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor. Rizzato Nunes29 salienta que a função da boa-fé objetiva não se limita exclusivamente a proteger a parte mais fraca da relação contratual: também possui como basilar função “orientar a interpretação garantidora da ordem econômica, em harmonia com os princípios constitucionais do art. 170, sua razão de ser”. Assim, ao contrário do Código Civil de 1916, que no seu artigo 85 previa que nas declarações de vontade devia-se atentar mais à intenção do declarante do que ao sentido literal das palavras, o Código Civil vigente (2002), no seu artigo 113, a exemplo do que prevê o Código Civil Alemão, determinou que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Isto significa dizer que o contrato, de acordo com a boa-fé objetiva, deve ser interpretado de forma a preservar a confiança e a justa expectativa dos contratantes ou, nas palavras de Claudio Luiz de Bueno Godoy30 “as cláusulas contratuais devem ser entendidas de acordo com seu sentido objetivo e aparente, interpretando-se-as sempre em função de um significado que o standard de conduta leal aponte ser o mais razoável, ou seja, as declarações de vontade, no contrato, devem ser interpretadas de acordo com o que seria o razoavelmente esperado de um contratante leal”. Portanto, a boa-fé objetiva utilizada como regra hermenêutica possibilita ao julgador interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir vícios da relação contratual. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 5.ª ed., São Paulo: RT, 2006, p. 220. 28 Transcrevendo frase de Adolfo di Majo. Obbligazioni in genere. Bologna: Zanichelli, 1985, p. 312. 29 NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. 2.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 128. 30 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. Os novos princípios contratuais. 1.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004 – (Coleção Professor Agostinho Alvim, Coordenação Renan Lotufo), p. 77. 27 95 Artigo 4 Assim, além do princípio da boa-fé objetiva impôr deveres de conduta às partes contratantes, tanto na fase de tratativas, quanto na fase pós-contratual, exigindo-lhes atuação leal e recíproca, referido princípio também pode ser utilizado pelo julgador como regra de hermenêutica, visando suprir ou alcançar o real alcance do pacto. Vale notar que a inserção do Princípio da Boa-fé Objetiva e da Função Social do Contrato como novos paradigmas contratuais, ao lado de outros clássicos princípios contratuais mencionados no início deste trabalho, possui ambiciosa finalidade: o equilíbrio contratual que, para ser alcançado, outorga ao Estado poderes para intervir maciçamente na relação contratual privada, limitando a autonomia da vontade e relativizando os efeitos contratuais. 4 Equilíbrio contratual Como conseqüência do respeito à função social do contrato e à boa-fé objetiva, somados aos clássicos princípios contratuais – devidamente relativizados frente aos novos paradigmas da teoria contratual, consoante já exposto durante todo este trabalho – ter-se-á o equilíbrio ou equidade contratual. Efetivamente, com o advento do Código de Defesa do Consumidor o contrato passa a ter seu conteúdo e equilíbrio mais controlado, valorizando-se o seu sinalagma, este compreendido como bilateralidade na qual prevalece a vontade da lei sobre a vontade externada pelas partes, evitando-se assim o desequilíbrio contratual. Nesse diapasão, o Estado passou a interessar-se pelo sinalagma das relações privadas, revisando os excessos contratuais, justamente porque, convencido da desigualdade entre os contratantes, deseja proteger o equilíbrio mínimo das relações sociais e a confiança do contratante mais débil. Portanto, o que se busca através da justiça contratual é uma equilibrada repartição, entre os contratantes, de benefícios e encargos contratuais. Segundo Paulo Nalin31, o Princípio da Justiça ou Equidade Contratual “deverá imperar no contrato, seja ele de longa duração ou não, uma vez que as parcelas reciprocamente devidas nunca poderão estar desajustadas ou sofrer perdas ou ganhos, ao longo a execução avençada”, sendo meio legítimo para se “alcançar a justiça contratual32”. Urge notar que tanto no Código Civil, quanto no Código de Defesa do Consumidor, fartas são as normas positivadas que apregoam o Equilíbrio Contratual. NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno. Em busca de sua formulação na perspectiva civilconstitucional. 1.ª ed., Curitiba: Juruá, 2001, p. 142. 32 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 5.ª ed., São Paulo: RT, 2006, p. 391. 31 96 Contratações na Sociedade de Consumo e Tecnologia: função Social do Contrato e Boa-fé Objetiva Em especial no que tange a legislação consumerista, insta salientar que o Código de Defesa do Consumidor, no seu artigo 51, parágrafo 1.º, inciso II, consagrou explicitamente o princípio do equilíbrio contratual, verbis: Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: § 1.º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual. Assim, considerando que, consoante palavras do doutrinador francês Jacques Ghestin33 “só o contrato justo obriga” a inobservância do Princípio do Equilíbrio ou Justiça Contratual poderá redundar na declaração de nulidade da cláusula abusiva, na revisão da cláusula ou contrato que imponha obrigações desproporcionais entre as partes, no reajustamento de parcelas ou do contrato ou, quiçá, no reconhecimento de que referida avença ou cláusula contratual não obriga aos contratantes. 5 Consequência legal (sanção) pelo desrespeito aos princípios da função social do contrato e boa-fé objetiva Vistos os novos princípios norteadores da Teoria Contratual moderna, incumbe indagar: considerando que as disposições legais mencionadas neste trabalho, à primeira leitura, figuram como cláusulas gerais normativas e principiológicas, haveria alguma penalidade legal a ser imposta aos seus violadores? Efetivamente, sob a égide do Código Civil de 1916, não havia previsão expressa de preceito sancionatório ou punitivo ao violador dos princípios da teoria contratual – embora não se olvide que, na época, tais preceitos não eram tão fortificados como nos dias atuais. Tampouco se falava sobre a nulidade/anulabilidade dos contratos, haja vista que, considerando ausência de expressa previsão legal, bem como o fato de que o Código Civil de 1916, no seu artigo 145, previa que a nulidade do ato jurídico somente poderia ser reconhecida “quando a lei taxativamente o declarar nulo ou lhe negar efeito34”, a ineficácia (nulidade ou anulabilidade) do contrato não poderia ser reconhecido pelo Judiciário. Sobre tal prisma, Paulo Nalin menciona que surgiu, assim, “a necessidade de se buscar no seio da doutrina mais especializada, uma solução que se mostre adequada e possibilite que se conclua pela nulidade do negócio contratual que escapa de sua 33 34 GHESTIN, Jacques. Traité de droit civil: la formation du contrat. 3.ª ed., Paris: LGDJ, 1993, p. 225. “Pas de nulittés sans texte” – Não há nulidade sem previsão legal. 97 Artigo 4 função social. A resposta que se afigurava mais adequada é o reconhecimento da nulidade virtual como uma hipótese aceitável no contexto da teoria das nulidades35”. Ao contrapor a nulidade virtual com a textual, Orlando Gomes deduzia ser aquela implícita, decorrente da função da norma jurídica e não de texto sancionatório expresso, reconhecendo a dificuldade de sua determinação, na ausência de texto legal que a sustente. Contudo, a entrada em vigor do Código Civil de 2002, em especial o parágrafo único de seu artigo 2035, pôs fim à celeuma ao determinar: Art. 2035 – (...) Parágrafo único – Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos. Por sua vez, o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 46, prescreve que “os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance”. Assim, havendo afronta a quaisquer dos preceitos contratuais, o contrato celebrado poderá ser considerado ineficaz. Resta saber que tipo de ineficácia ser-lhe-á imposta: nulidade ou anulabilidade do pacto. Nulidade parece ser a sanção mais adequada ao quadro em questão pois, consoante lição de Pietro Perlingieri36, o regime de nulidade parte de um prisma de intensidades sancionatórias variadas, sendo a nulidade a mais grave e, a anulabilidade, a menos grave. Segundo Perlingieri, a nulidade se dirige à salvaguarda de valores superiores tutelando interesses gerais, ao passo que a anulabilidade se dirige à proteção de interesses individuais das partes. Neste mesmo sentido, Luiz Antonio Rizzato Nunes37 leciona que: Diferentemente do Código Civil que dispõe sobre dois tipos de nulidade: a absoluta e a relativa, a Lei 8078 apenas reconhece as nulidades absolutas de pleno direito, fundadas no seu art. 1.º, que estabelece que as normas que regulam as relações de consumo são de ordem pública e interesse social. Por isso, não há que se falar em cláusula abusiva que se possa validar: ela sempre nasce nula, ou, melhor dizendo, foi escrita e posta no contrato, mas é nula desde sempre. NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno. Em busca de sua formulação na perspectiva civilconstitucional. 1.ª ed., Curitiba: Juruá, 2001, p. 238. 36 PERLINGIERI, Pietro. Manuale di diritto civile. Nápoles: ESI, 1997, p. 409. 37 NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. 2.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 622. 35 98 Contratações na Sociedade de Consumo e Tecnologia: função Social do Contrato e Boa-fé Objetiva Neste diapasão, considerando os interesses sociais tutelados pela boa-fé objetiva e pela função social do contrato, havendo ofensa a tais princípios, o contrato celebrado ou cláusula em específico poderão ser reputados como nulos, haja vista a gravidade da ofensa que representam. A jurisprudência tem se manifestado nesta linha: Banco. Contrato de mutuo e abertura de crédito rotativo. (...) Juros que constituem o preço pago pelo consumidor. Cláusula prevendo alteração unilateral do percentual previa e expressamente ajustado pelos figurantes do negócio. Nulidade pleno iure. Possibilidade de conhecimento e decretação de ofício (Ap.193.051.216, 7.ª Câm. Do TJRS, rel. Dês. Antonio Janyr Dall´Agnol Junior, JTJRS 697/173) – (Grifo nosso). Note-se que, considerando que as cláusulas contratuais abusivas importam em violação à matéria de ordem pública e interesse social, tais além de serem nulas de pleno direito e possuírem efeito ex tunc38, poderão ser reconhecidas ex-officio pelo Julgador. 6 Conclusão Diante do exposto, pode-se concluir que é o Princípio Protecionista – previsto já no artigo 1.º da Lei n. 8 078, que inaugura e prevalece sobre o sistema legal consumerista: todas as normas instituídas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) têm como princípio e meta a proteção e defesa do consumidor. E é exatamente por isso que, no que tange as relações contratuais de consumo, não se pode olvidar o protecionismo da parte mais débil da relação (consumidor), que deve sempre ser levado em consideração na ocasião do deslinde do feito. Assim, a concepção clássica e histórica do contrato, fulcrada no tripé autonomia da vontade, obrigatoriedade e relativização dos efeitos contratuais é hodiernamente relativizada muito além da seara do consumidor, como também na legislação civil geral, preocupando-se o legislador não somente com a vontade ou obrigatoriedade do pacto celebrado mas, sim, se este o foi estando as partes imbuídas de boa-fé (objetiva e subjetiva) e se tal cumpre sua função social, evitando-se assim o desequilíbrio contratual, tão maléfico à ordem social, mormente quando se tem em consideração que o contrato é visto, hoje, como “instrumento de proteção dos direitos fundamentais do consumidor, dentre eles garantindo-lhe a segurança, qualidade, adequação de serviços”39. Vez que a nulidade é reputada existente desde o nascimento/prática do ato ou fechamento do negócio. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 5.ª ed., São Paulo: RT, 2006. p. 258. 38 39 99 Artigo 4 7 Referências AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil. RT, v. 775, p. 13, maio de 2000. BESSONE, Darcy. Do Contrato: teoria geral. 3.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 44. BETTI. Teoria general de las obligaciones. T. I, p. 84. COMPARATO, Fabio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. v. 63, p. 71-79, jul/set. 1986. DINIZ, Maria Helena. Jornada de direito civil. Promovida pelo centro de estudos judiciários do conselho da justiça federal, setembro/2002). GHESTIN, Jacques. Traité de droit civil: la formation du contrat. 3.ª ed., Paris: LGDJ, 1993, p. 225. GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. Os novos princípios contratuais. 1.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004. (Coleção Professor Agostinho Alvim, Coordenação Renan Lotufo). 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Presidente do Centro Acadêmico Hugo Simas (2007/2008). 1 Introdução. 2 Os direitos fundamentais nos ordenamentos constitucionais contemporâneios. 3 A multifuncionalidade dos direitos fundamentais e a Constituição brasileira de 1988. 4 Aplicabilidade dos direitos fundamentais e dependência de regulamentação infraconstitucional. 4.1 Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais. 4.2 A aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. 4.3 Mediações concretizadoras e regulamentação do exercício de direitos fundamentais. 5 Considerações finais. 6 Referências. Resumo O constituinte de 1988 inseriu no art. 5.º, §1.º da Lei Fundamental um inovador e importante dispositivo, estabelecendo que “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Contudo, nos últimos vinte anos, as interpretações doutrinárias conferidas a essa disposição constitucional foram múltiplas, havendo, de um lado, uma indiferença quanto às especificidades dos direitos fundamentais, engendrando acentuadas confusões com a teoria da aplicabilidade das normas constitucionais em geral e, de outro, equivocadas associações automáticas entre determinado grau de aplicabilidade das normas definidoras de direitos fundamentais e a classificação de tais direitos como direitos de defesa e direitos a prestações. O presente estudo consiste numa breve investigação acerca do significado e alcance do princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, insculpido no art. 5.º, §1.º da CF. Problematizando a polêmica discussão acerca da aplicabilidade de tais direitos, buscarse-á demonstrar que todos os direitos fundamentais podem demandar regulamentação 102 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988: 20 anos de Obscuridade nas Brumas do Senxo Comum Teórico infraconstitucional para produzirem seus efeitos, não se restringindo aos direitos fundamentais prestacionais, ou aos direitos previstos em normas constitucionais entendidas como normas de “eficácia limitada”, como pretende grande parte da doutrina. No entanto, isso não significa dizer que esse processo de densificação das disposições constitucionais definidoras de direitos fundamentais que detêm um caráter abstrato tenha de ser necessariamente realizado através da expedição de normas pelo legislador e pela Administração Pública. Pelo contrário, por força do princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, a sua concretização constitui um dever dirigido a todos os órgãos do Estado, inclusive ao Poder Judiciário. Palavras-chave: Direitos fundamentais; Aplicabilidade imediata; Constituição Federal de 1988 Resumen El constituyente de 1988 insertó en el artículo 5.º, §1.º de la Carta Mayor un innovador e importante dispositivo, estableciendo que “Las normas que definen los derechos y garantías fundamentales tienen aplicabilidad inmediata”. Sin embargo, en los últimos veinte años, las interpretaciones doctrinarias dadas a este dispositivo constitucional fueron variadas, teniendo de un lado, una indiferencia respecto a las particularidades de los derechos fundamentales, engendrando acentuadas confusiones con la teoría de la aplicabilidad de las normas constitucionales en general, y de otro lado, equivocadas asociaciones automáticas entre determinado grado de aplicabilidad de las normas que definen derechos fundamentales y la clasificación de tales derechos como derechos de defensa y derechos a prestaciones. El presente estudio consiste en una breve investigación acerca del significado y alcance del principio de la aplicabilidad inmediata de los derechos fundamentales, dispuesto en el artículo 5.º, §1.º de la Constitución Federal. Problematizando la polémica discusión acerca de la aplicabilidad de tales derechos se buscará demostrar que todos los derechos fundamentales pueden demandar regulación infra-constitucional para producir sus efectos, no restringiéndose a los derechos fundamentales prestacionales, o a los derechos previstos en normas constitucionales entendidas como normas de “eficacia limitada”, como pretende gran parte de la doctrina. Todavía, eso no significa que ese proceso de densificación de las disposiciones constitucionales que definen derechos fundamentales y detienen un carácter abstracto tenga de ser necesariamente realizado a través de la expedición de normas por el legislador y por la Administración Pública. Por el contrario, debido al principio de la aplicabilidad inmediata de los derechos fundamentales, su concretización constituye un deber dirigido a todos los órganos del Estado, incluso al Poder Judiciario. Palabras-clave: Derechos fundamentales; Aplicabilidad inmediata; Constitución Federal de 1988 103 Artigo 5 1 Introdução Os direitos fundamentais, em que pese tenham assumido um papel de primordial relevância nos Estados contemporâneos, recebendo atenção reforçada pelo constituinte brasileiro de 19881 , não conseguiram alcançar de forma satisfatória a sua efetividade2. Conquanto não se possa deixar de reconhecer os significativos avanços perpetrados pela doutrina e jurisprudência pátrias nesta seara, é preciso reconhecer que a impossibilidade do exercício de determinados direitos estabelecidos pela Constituição constitui um sério problema na realidade brasileira, ocasionado pela omissão do Poder Público em implementar a sua regulamentação mediante atos administrativos e legislação infraconstitucional. Ocorre que, a despeito de a regulamentação infraconstitucional ser muitas vezes imprescindível à produção dos efeitos dos direitos fundamentais, o legislador constituinte de 1988 inseriu na Lei Fundamental um inovador e importante dispositivo, estabelecendo que “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”3. Contudo, nos últimos vinte anos, as interpretações doutrinárias conferidas a essa disposição constitucional foram múltiplas4, havendo, de um lado, uma indiferença quanto às especificidades dos direitos fundamentais, engendrando acentuadas confusões com a teoria da aplicabilidade das normas constitucionais em geral (mormente com base na classificação proposta por José Afonso da Silva5 ) e, de outro, equivocadas associações automáticas entre determinado grau de aplicabilidade das normas definidoras de direitos fundamentais e a classificação de tais direitos como direitos de defesa e direitos a prestações. A partir de tais concepções, parcela da doutrina defendeu que em matéria de direitos fundamentais as normas constitucionais independiam de qualquer processo de concretização6, podendo ser diretamente aplicadas. Outros autores, De acordo com Ingo Wolfgang Sarlet, ao referir-se ao cuidado do constituinte de 1988 para com os direitos fundamentais, “é possível afirmar-se que, pela primeira vez na história do constitucionalismo pátrio, a matéria foi tratada com a merecida relevância. Além disso, inédita a outorga aos direitos fundamentais, pelo direito constitucional positivo vigente, do status jurídico que lhes é devido e que não obteve o merecido reconhecimento ao longo da evolução constitucional”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9.ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 73. 2 Reflexo desse quadro revela-se na afirmação já clássica de Norberto Bobbio, ao assinalar que “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Tratase de um problema não filosófico, mas político”. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 24. 3 Art. 5.º, §1.º da CF. 4 Conforme se verificará no tópico 4.2. 5 A ser presentada no tópico 4.1. 6 Na conceituação de J. J. Gomes Canotilho: “A concretização seria a «densificação», ou «processo de densificação» de normas ou regras de grande «abertura» – princípios, normas constitucionais, cláusulas legais indeterminadas – de forma a possibilitar a solução de um problema. Através da «especificação» de soluções ou da «tipicização» de regras jurídicas e movendo-se num certo espaço de «discricionariedade concretizadora», o juiz «clarificaria», de forma «produtiva» e «criadora», o sentido material dos preceitos abstractos na aplicação ao caso concreto”. CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 321-322. 1 104 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988: 20 anos de Obscuridade nas Brumas do Senxo Comum Teórico diferentemente, associaram a modalidade de eficácia plena às normas definidoras de direitos fundamentais de defesa, garantidores de liberdades individuais, ligando a modalidade de eficácia limitada aos direitos fundamentais a prestações positivas, que exigem um agir estatal – subordinando a produção dos efeitos desses últimos a uma regulamentação normativa elaborada pelos Poderes Legislativo ou Executivo. Essas interpretações acabaram por gerar uma obscuridade na teoria dos direitos fundamentais, suscitando temerárias dúvidas, tais como: se todos os direitos fundamentais gozam de aplicabilidade imediata, elemento que compõe o seu regime jurídico especial, por que razão a natureza prestacional seria capaz de tolher a sua aplicação direta? Ou ainda: como seria possível dizer que todos os direitos fundamentais podem ser diretamente aplicados, se há situações em que a especificação da forma como será exercitado o direito é realmente imprescindível para a fruição dos seus efeitos? Com vistas a essa névoa instaurada na dogmática dos direitos fundamentais brasileira, a presente pesquisa consiste numa investigação acerca do significado e alcance do princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, insculpido no art. 5.º, §1.º da CF. Problematizando a polêmica discussão acerca da aplicabilidade de tais direitos, buscar-se-á demonstrar que todos os direitos fundamentais podem demandar regulamentação infraconstitucional para produzirem seus efeitos, não se restringindo aos direitos fundamentais prestacionais, ou aos direitos previstos em normas constitucionais entendidas como normas de “eficácia limitada”, como pretende grande parte da doutrina. O que não significa dizer que esse processo de densificação das disposições constitucionais definidoras de direitos fundamentais que detêm um caráter abstrato tenha de ser necessariamente realizado através da expedição de normas pelo legislador e pela Administração Pública; pelo contrário, a sua concretização constitui um dever dirigido a todos os órgãos do Estado, inclusive ao Poder Judiciário7. Para tanto, faz-se mister, preambularmente, observar atentamente o panorama em que se situa a problemática da inefetividade dos direitos fundamentais em face das omissões estatais, de modo a identificar os contornos da situação-problema de direito material para possibilitar uma interpretação adequada do princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, sempre comprometida com a realização prática de tais direitos. Em um segundo momento, após pontuar as peculiaridades dos direitos fundamentais no ordenamento constitucional brasileiro, adentrar-se-á no tema Isso porque os direitos fundamentais incidem diretamente sobre o Estado, gerando um dever de proteção ao legislador, ao administrador e ao juiz; sobre o magistrado, portanto, recai também o dever de proteger os direitos fundamentais, prestando tutela àqueles que não forem protegidos pelo legislador ou pelo administrador. Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: RT, 2006. p. 81. 7 105 Artigo 5 específico da eficácia das normas constitucionais, buscando os aspectos identificadores do regime jurídico reforçado conferido aos direitos fundamentais pelo princípio da aplicabilidade imediata. Finalmente, será trazida à baila a discussão acerca das mediações concretizadoras necessárias à efetivação dos direitos fundamentais e da forma como o Estado deve empreendê-las para assegurar a sua realização plena. 2 Os direitos fundamentais nos ordenamentos constitucionais contemporâneos As Cartas Constitucionais dos Estados Democráticos contemporâneos, além de organizar o exercício do poder político estatal8, definem os direitos fundamentais dos cidadãos9. Tais direitos nascem em determinadas circunstâncias históricas, marcadas por “lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, (...) de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”10. Embora tenham sofrido a influência das doutrinas jusnaturalistas surgidas a partir do século XVI11, a origem dos direitos fundamentais tal como são conhecidos nos dias atuais deita raízes nos processos revolucionários do século XVIII12. O seu reconhecimento na esfera do direito positivo deu-se a partir dos documentos normativos expressos na forma de declarações de direitos, tais como a Bill of Rights de 1776 e a célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, fruto das conquistas obtidas pelos burgueses com a Revolução Francesa13. O processo de absorção dos direitos plasmados nessas declarações pelas Constituições dos Estados modernos significou uma ampliação da sua proteção no âmbito interno. Os primeiros direitos recepcionados pelas declarações ao longo do século XVIII, e conseqüentemente pelas Constituições promulgadas desde então, foram os chamados direitos individuais de liberdade ou direitos de defesa14, assim “Historicamente, mesmo antes de sua formulação sistematizada em um documento escrito, estes eram os únicos aspectos versados nas leis de natureza constitucional. A constituição compunha-se, tão-somente, de elementos orgânicos. Não foi senão após a Revolução Francesa que a elas se incorporou um elemento novo: os direitos fundamentais”. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade das suas normas. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 91. 9 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Normas constitucionais programáticas: normatividade, efetividade, operacionalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 52. 10 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 5. 11 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9.ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 44. 12 Aduz Antonio Enrique Pérez Luño que o termo “direitos fundamentais” (droits fondamentaux) surge na França nos idos de 1770, em meio ao movimento político e cultural que rendeu ensejo à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Cf. LUÑO, Antonio Enrique Perez. Los derechos fundamentales. 6.ª ed. Madrid: Tecnos, 1995. p. 29. 13 Sobre a formação e evolução histórica dos direitos fundamentais, ver LUÑO, Antonio Enrique Perez. Op. cit., p. 29-43 e SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 44-52. 14 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 2.ª ed. Madrid: CEPC, 2007. p. 165. 8 106 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988: 20 anos de Obscuridade nas Brumas do Senxo Comum Teórico considerados aqueles que, para a sua realização, demandam uma abstenção, um nãoagir estatal, uma não-ingerência na esfera individual do seu titular, ditos direitos de primeira geração15, produto do pensamento liberal-burguês. Já no desenrolar no século XIX, com as conseqüências da industrialização, caracterizada por graves problemas econômicos e sociais, somadas à percepção de que a liberdade e igualdade concebidas sob um ponto de vista formal eram insuficientes para o gozo efetivo dos direitos16, o Estado sofre uma reconfiguração, passando-se de um modelo Liberal para o modelo de Estado Social17. Nesse período, surgem movimentos reivindicatórios de novos direitos, que se convencionou denominar de direitos fundamentais de segunda geração, direitos sociais18 ou direitos a prestações19, os quais requerem ações positivas dos Poderes Públicos para a sua satisfação, incumbindo ao Estado a função de propiciar aos cidadãos condições materiais que lhes permitam exercer efetivamente as liberdades fundamentais20 . Com o passar dos anos e com o aumento da complexidade entre as relações humanas e as relações do homem com a natureza, no fim do século XX começam a ser reconhecidos direitos fundamentais cuja titularidade não recai sobre o indivíduo, mas sim sobre uma coletividade, tais como os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento e ao meio-ambiente21. São os chamados direitos de terceira geração, ou direitos de fraternidade ou de solidariedade22. Contemporaneamente, a referência às gerações ou dimensões de direitos23 tem função meramente histórica (relativa ao momento de surgimento de determinados “Os direitos da primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente”. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 563. 16 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9.ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 55. 17 Sobre a passagem do Estado Liberal ao Estado Social, ver BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, passim. 18 “Os direitos econômicos, sociais e culturais, identificados, abreviadamente, como direitos sociais, são de formação mais recente, remontando à Constituição mexicana, de 1917, e à de Weimar, de 1919. Sua consagração marca a superação de uma perspectiva estritamente liberal, em que se passa a considerar o homem para além de sua condição individual”. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade das suas normas. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 97. 19 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 2.ª ed. Madrid: CEPC, 2007. p. 171. 20 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9.ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 204. Fazendo uma contraposição entre a primeira e a segunda geração ou dimensão de direitos, aduz Flávia Piovesan: “Frise-se que, enquanto os direitos clássicos do Liberalismo eram direitos à proteção e à limitação jurídica do poder, os direitos sociais são direitos à promoção, direitos que apontam à organização da solidariedade. Se no Estado liberal buscava-se fazer valer direitos contra o Poder Público, no Estado Social insurgem-se direitos ante o Poder Público”. PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. 2.ª ed. São Paulo: RT, 2003. p. 36. 21 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 569. 22 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 56. 23 Há ainda parcela da doutrina que menciona uma quarta geração de direitos fundamentais, à qual estariam relacionados direitos como o direito à democracia, o direito ao pluralismo e o direito à informação. Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 571. 15 107 Artigo 5 direitos) e didática, não devendo ser compreendida como alusão à substituição de uma geração por outra, haja vista a relação de complementaridade entre todos os direitos, que de modo gradual e cumulativo passaram a ser reconhecidos pelos ordenamentos jurídico-constitucionais24 . O que importa ressaltar é o papel de centralidade e primordial relevância dos direitos fundamentais nos Estados Democráticos de Direito. Nos dizeres de Ingo Wolfgang Sarlet, a “história dos direitos fundamentais é também uma história que desemboca no surgimento do moderno Estado constitucional”, uma vez que a essência e a razão de ser desse modelo estatal encontrase exatamente no reconhecimento e na proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais25. Paralelamente à forma de Estado, ao sistema de governo e à organização do poder, os direitos fundamentais compõem o cerne do Estado Constitucional, configurando não somente parte da Constituição formal, “mas também elemento nuclear da Constituição material”26. Tal importância conferida aos direitos fundamentais justifica-se pelo fato de representarem o conjunto de valores ou decisões axiológicas básicas de uma sociedade27, revestidas da máxima normatividade de que gozam as disposições constitucionais. Vale dizer, os direitos fundamentais constituem “os pressupostos do consenso sobre o qual se deve edificar qualquer sociedade democrática”28, o que lhes atribui um conteúdo legitimador das formas constitucionais do Estado de Direito. Eles imprimem a substância axiológica que deve obrigatoriamente marcar um Estado material de Direito, em que a mera existência de determinadas formas e procedimentos atinentes à organização do poder e às competências dos órgãos estatais não se afigura suficiente para a garantia da legitimidade estatal, tornando-se necessário fixar metas, parâmetros e limites da atividade do Estado, a partir dessa vinculação de cunho substancial29. Assim, os direitos fundamentais, por constituírem a principal garantia com que contam os cidadãos de um Estado de Direito de que o sistema jurídico se orientará no sentido da promoção da dignidade da pessoa humana30, desencadeiam uma eficácia dirigente sobre todos os órgãos do Poder Público, fazendo espargir uma ordem dirigida ao Estado como um todo, incumbindo-lhe a obrigação constante de realizá-los em sua máxima potencialidade31. Para uma crítica à utilização do termo “geração” de direitos fundamentais, por suscitar a falsa impressão da substituição paulatina de uma geração por outra, sugerindo a substituição pela expressão “dimensão”, de modo a ilustrar o caráter de complementaridade de tais direitos, ver SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9.ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 52-54. No mesmo influxo, BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 571-572. 25 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 42. 26 SARLET, Ingo Wolfgang. Idem, p. 67. 27 LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Op. cit., p. 21-22. 28 LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Idem, p. 21. 29 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit.., p. 68 e 70. 30 LUÑO, Antonio Enrique Perez. Los derechos fundamentales. 6.ª ed. Madrid: Tecnos, 1995. p. 20-21. 31 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9.ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 163. 24 108 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988: 20 anos de Obscuridade nas Brumas do Senxo Comum Teórico Nesse contexto, os direitos fundamentais podem ser considerados a partir de duas perspectivas distintas: uma subjetiva, referente à posição jurídica subjetiva assumida pelo titular do direito, que pode ser reclamada em juízo; e outra objetiva, concernente ao sistema axiológico por eles composto, que funciona como fundamento material da ordem jurídica32, espraiando seus efeitos sobre todo o ordenamento. A perspectiva objetiva33 dos direitos fundamentais exsurge da constatação de que, além de impor determinadas prestações positivas e negativas aos poderes estatais e à sociedade, eles consagram os principais valores em uma comunidade política34, irradiando seus efeitos para todas as direções do sistema jurídico e deixando de constituir meros limites ao agir estatal para se transformar em verdadeiro norte da atuação do Legislativo, Executivo e Judiciário. No que diz respeito à perspectiva subjetiva, os direitos fundamentais ensejam ao seu titular a possibilidade de postular judicialmente a sua tutela em face do destinatário, formando-se uma relação trilateral entre o titular, o objeto (prestação) e o destinatário do direito35. Contudo, insta consignar que os direitos fundamentais subjetivos comportam um leque de variações no tocante ao seu grau de exigibilidade judicial, levando em consideração a sua função, seu conteúdo e sua forma de positivação, tema sobre o qual doravante se passará a debruçar. 3 A multifuncionalidade dos direitos fundamentais e a Constituição brasileira de 1988 Na visão de Robert Alexy, os direitos fundamentais devem ser encarados como feixes de posições jusfundamentais, ou seja, é preciso observar cada direito fundamental enquanto um “direito fundamental como um todo”36. O autor parte da premissa de que os direitos fundamentais são multifuncionais37, não se podendo SARLET, Ingo Wolfgang. Idem, p. 70. Prefere-se aqui o termo “perspectiva objetiva” à expressão “dimensão objetiva”, para que não haja confusão com o termo “dimensão de direitos fundamentais” utilizado por Ingo Sarlet e Paulo Bonavides como substitutivo da expressão “gerações de direitos fundamentais”. 34 SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In: MELLO, Celso de Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo. Arquivos de direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 64-65. 35 Luís Roberto Barroso, asseverando ser válida a aplicação da categoria “direito subjetivo” aos direitos previstos constitucionalmente, assinala as características essenciais do direito subjetivo: “a) a ele corresponde sempre um dever jurídico por parte de outrem; b) ele é violável, vale dizer, pode ocorrer que a parte que tem o dever jurídico, que deveria entregar uma determinada prestação, não o faça; c) violado o dever jurídico nasce para o seu titular uma pretensão, podendo ele servir-se dos mecanismos coercitivos e sancionatórios do Estado, notadamente por via de uma ação judicial”. BARROSO, Luís Roberto. A doutrina brasileira da efetividade. In: BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 74. 36 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 2.ª ed. Madrid: CEPC, 2007. p. 214. 37 Tal aspecto é ressaltado por Ingo Sarlet, ao mencionar que “várias das normas definidoras de direitos fundamentais exercem simultaneamente duas ou mais funções, sendo, neste sentido, inevitável alguma superposição”. Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9.ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 184. 32 33 109 Artigo 5 lhes associar somente uma função; a cada direito fundamental podem ser agregadas variadas funções, servindo a função primordial por ele exercida como critério para classificá-lo. Para Alexy, conforme a sua principal função, os direitos fundamentais se classificam em dois grandes grupos: direitos de defesa e direitos a prestação. Estes últimos, por sua vez, dividem-se em direitos a prestações fáticas (ou direitos a prestação em sentido estrito) e em direitos a prestações normativas (ou direitos fundamentais em sentido amplo). Os direitos fundamentais em sentido amplo dividem-se em direitos à proteção e direitos à participação na organização e no procedimento. O professor alemão ilustra bem a multifuncionalidade dos direitos fundamentais ao exemplificar com o direito fundamental ao meio-ambiente hígido: El derecho fundamental al medio ambiente responde más bien a aquello que antes se denominó «derecho fundamental como un todo». Está constituido por un conjunto de posiciones de tipos muy diferentes. Así, quien propone el establecimiento de un derecho fundamental al medio ambiente, o su adscripción interpretativa a las disposiciones de derecho fundamental existentes puede, por ejemplo, incluir en este conjunto o haz de posiciones, un derecho a que el Estado omita determinadas intervenciones en el medio ambiente (derecho de defensa), un derecho a que el Estado proteja al titular del derecho fundamental frente a intervenciones de terceros que dañen el ambiente (derecho de protección), un derecho a que el Estado permita participar al titular del derecho en procedimientos relevantes para el medio ambiente (derecho al procedimiento) y un derecho a que el propio Estado emprenda medidas fácticas, tendientes a mejorar el ambiente (derecho a una prestación fáctica).38 Embora o autor classifique os direitos fundamentais de acordo com a sua função predominante, o que poderia levar ao equívoco de se pensar que ele não exerceria outras funções que não aquela primordial, a menção à sua classificação é válida para pensarmos nos diferentes papéis que tais direitos podem exercer, o que acaba por demandar tratamento diverso aos casos de inefetividade, conforme a função que estiver em foco. Observe-se então que a referência à classificação de Alexy é feita com a consciência dos problemas, da complexidade e das dificuldades dela decorrentes, mas faz sentido na medida em que pode ser útil para a fixação de parâmetros para a sua interpretação e para a determinação do regime jurídico aplicável em cada caso39. “O direito fundamental ao meio ambiente responde bem àquilo que antes de denominou «direito fundamental como um todo». Está constituído por um conjunto de posições de tipos muito diferentes. Assim, quem propõe o estabelecimento de um direito fundamental ao meio ambiente, ou sua inclusão interpretativa às disposições de direito fundamental existentes pode, por exemplo, incluir neste conjunto ou feixe de posições, um direito a que o Estado omita determinadas intervenções no meio ambiente (direito de defesa), um direito a que o Estado proteja o titular do direito fundamental frente a intervenções de terceiros que lesionem o ambiente (direito de proteção), um direito a que o Estado permita ao titular do direito participar de procedimentos relevantes para o meio ambiente (direito ao procedimento) e um direito a que o próprio Estado empreenda medidas fáticas, tendentes a melhorar o ambiente (direito a uma prestação fática)”. (Tradução livre). ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 2.ª ed. Madrid: CEPC, 2007. p. 392. 39 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 176. 38 110 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988: 20 anos de Obscuridade nas Brumas do Senxo Comum Teórico A função de defesa dos direitos fundamentais liga-se à perspectiva adotada pelos já mencionados direitos de liberdade, ou de primeira geração ou dimensão. Diz respeito à proibição de interferência indevida na esfera particular do seu titular, seja em decorrência de ações do Poder Público seja de sujeitos privados. Pelo fato de vincular-se a uma das primeiras funções reconhecidas aos direitos fundamentais, são múltiplos os mecanismos colocados à disposição dos seus titulares pelo ordenamento jurídico para proteger a função de defesa desses direitos. Pode-se citar como exemplo o habeas-corpus40 e o mandado de segurança41, ambos assegurados na forma de garantias fundamentais pelo art. 5.º da Constituição Federal. A faceta prestacional dos direitos fundamentais revela-se nas posições jurídicas que impõem ao Estado a persecução de determinados objetivos42, exigindose a criação dos pressupostos fáticos e jurídicos necessários para o exercício dos direitos. O aspecto prestacional pode se apresentar de variadas formas, conforme a natureza da prestação exigida pela norma de direito fundamental. Poderão ser prestações em sentido estrito, englobando os direitos do indivíduo frente ao Estado a algo que, se ele possuísse meios financeiros suficientes e se encontrasse no mercado uma oferta suficiente, poderia obter também dos particulares43, tais como o direito fundamental à educação e à saúde. No campo desses direitos parece morar a situação mais problemática no que toca à sua efetividade, sobretudo em função da dificuldade relativa à escassez de recursos44. As ações positivas exigidas por esses direitos poderão, por outro lado, constituir prestações no sentido amplo, também compreendidas como prestações normativas. São os direitos à elaboração de normas pelo Poder Público, necessárias à proteção de determinados bens jurídicos (direitos de proteção) ou à criação de organizações e procedimentos que auxiliem na promoção e na proteção dos direitos fundamentais (direitos à participação na organização e no procedimento). A função de proteção, como já visto, decorre da própria perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, a qual impõe aos Poderes Públicos o dever de protegê-los Art. 5.º, inc. LXVIII: “conceder-se-á ‘habeas-corpus’ sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. 41 Art. 5.º, inc. LXIX: “conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por ‘habeas-corpus’ ou ‘habeas-data’, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”. 42 ALEXY, Robert. Op. Cit., p. 393. 43 ALEXY, Robert. Op. cit., p. 443. 44 A propósito do tema, ver, entre outros, BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 40 111 Artigo 5 contra ações de terceiros45. São diversos os bens jurídicos que podem exigir proteção jusfundamental, tais como a saúde, a vida, a dignidade e a liberdade, e são variadas as formas mediante as quais o Estado promoverá essa proteção (v.g., normas de direito penal, de direito civil, de direito processual e de direito administrativo)46. Quanto à função de participação na organização e procedimento, parte-se do pressuposto de que “a fruição de diversos direitos fundamentais não se revela possível ou, no mínimo, perde em efetividade, sem que sejam colocados à disposição prestações estatais na esfera organizacional e procedimental”47. É o caso do direito fundamental ao sufrágio universal e ao voto direto e secreto: não se pode exercitar o direito de votar previsto pelo art. 14 da CF se o Estado não propiciar a previsão normativa da organização e do procedimento eleitoral. Nada obstante a diversidade de funções que podem ser atribuídas aos direitos fundamentais, o que assinala as suas diferenciações, pode-se identificar em dois elementos essenciais a unidade em torno da qual gravitam esses direitos no nosso ordenamento: a proteção contra a ação erosiva do legislador (que lhes é conferida pelo art. 60, §4.º, IV, da CF, por constituírem cláusulas pétreas) e o princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (art. 5.º, §1.º, da CF)48. Dessa constatação não se pode deduzir que todos os direitos fundamentais possam ser aplicados e protegidos da mesma forma, embora todos eles estejam sob a guarda de um regime jurídico reforçado, conferido pelo legislador constituinte. São justamente as peculiaridades da aplicação desse regime de acordo com a natureza, a função e a forma de positivação dos direitos fundamentais que engendram acirradas polêmicas no campo doutrinário e jurisprudencial, o que impõe dirigir as atenções ao estudo da eficácia jurídica e aplicabilidade das normas constitucionais. 4 Aplicabilidade dos direitos fundamentais e dependência de regulamentação infraconstitucional Após a observância acerca das diferentes funções que podem assumir os direitos fundamentais, cumpre analisar as repercussões que a sua forma de positivação no texto constitucional suscitam no campo da sua realização. ALEXY, Robert. Op. cit.., p. 398. Importa assinalar a distinção entre a função de defesa e a função de proteção dos direitos fundamentais. Enquanto a primeira impõe ao Estado o dever de omitir intervenções, a segunda outorga-lhe o encargo de impedir, por meio de prestações positivas, que terceiros pratiquem intervenções. Cf. ALEXY, Robert. Op. cit.., p. 404 47 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit.., p. 214. 48 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit.., p. 85. 45 46 112 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988: 20 anos de Obscuridade nas Brumas do Senxo Comum Teórico Determinados direitos fundamentais são previstos em disposições constitucionais dotadas de alta densidade normativa, isto é, em enunciados normativos caracterizados por um alto grau de determinação, e portanto aptos a produzir seus efeitos essenciais diretamente, sem a intervenção de uma regulamentação do legislador ordinário49 ou da Administração Pública50. A doutrina costuma associar essa característica aos direitos fundamentais ditos de primeira geração ou direitos de defesa, com base na suposição de que a mera abstenção estatal é suficiente para que os seus efeitos sejam alcançados no plano fático51. Em contrapartida, podem ser encontrados no texto constitucional direitos fundamentais definidos em normas caracterizadas por uma baixa densidade normativa, necessitando de concretizações no plano infraconstitucional para poderem engendrar seus principais efeitos52, embora apresentem sempre certa dose de eficácia jurídica53, 54 . A essa situação a doutrina em geral afirma enquadrarem-se os direitos fundamentais de segunda geração ou direitos a prestações, pressupondo-se a necessidade de ações positivas dos Poderes Públicos para a sua satisfação55. Entretanto, uma apreciação atenta da temática da densidade normativa das disposições constitucionais definidoras de direitos fundamentais parece desfazer essa correlação entre alta densidade/direitos de defesa e baixa densidade/direitos a prestações. Para tanto, impõe-se o exame prévio da teoria da aplicabilidade das normas constitucionais em geral, para em seguida adentrar nas especificidades das normas que prevêem direitos fundamentais. SARLET, Ingo Wolfgang. Idem, p. 268. Pode-se mencionar, por exemplo, o direito à liberdade de expressão, estabelecido pelo art. 5.º, IV, da CF: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. 51 Advertência assinalada por Gustavo Amaral. Cf. AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 60. 52 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 268. 53 V.g. art. 5.º, VII da CF: “é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”. 54 “As normas constitucionais sempre produzem uma ‘eficácia jurídica de vinculação’ (decorrente da vinculação dos poderes públicos à Constituição), e, por isso, contam com aptidão para deflagrar, pelo menos, os seguintes resultados: (i) revogam (invalidação decorrente de inconstitucionalidade superveniente) os atos normativos em sentido contrário; (ii) vinculam o legislador, que não pode dispor de modo oposto ao seu conteúdo (servem como parâmetro para a declaração de inconstitucionalidade do ato contrastante); (iii) ‘conferem direitos subjetivos negativos ou de vínculo (poder de se exigir uma abstenção ou respeito a limites)’. Esta é a dimensão negativa da eficácia mínima produzida pelas normas constitucionais, mesmo as inexeqüíveis por si mesmas. Mas elas operam, igualmente, uma eficácia positiva. Em virtude da ‘eficácia de vinculação’, as normas: (i) informam o sentido da Constituição, definindo a direção do atuar do operador jurídico no momento da interpretação e da integração da Constituição (identificando-se o Estatuto Constitucional com um sistema, a rede de significação definidora do seu sentido – conteúdo – é formada por todas as normas constitucionais, inclusive, as de eficácia limitada); e (ii) condicionam o legislador, reclamando a concretização (realização) de suas imposições; se nem sempre podem autorizar a substituição do legislador pelo juiz, podem, por vezes, autorizar o desencadear de medidas jurídicas ou políticas voltadas para a cobrança do implemento, pelo legislador, do seu dever de legislar”. CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: RT, 2000. p. 320-321. 55 Cf. AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 60. 49 50 113 Artigo 5 4.1 Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais Considerando as peculiaridades e diferenciações relativas ao grau de aplicabilidade das normas constitucionais56, a doutrina buscou reuni-las em grupos distintos, mediante classificações que, via de regra, utiliza(va)m como critério de análise o aspecto da sua eficácia jurídica57. A concepção clássica quanto à aplicabilidade das normas constitucionais no Brasil foi trazida por Rui Barbosa, que, inspirado na doutrina norte-americana encabeçada por Thomas M. Cooley58, distinguia as normas constitucionais em auto-aplicáveis (self executing) e não auto-aplicáveis (non self executing). Essa primeira concepção, acolhida durante muitos anos pelo direito pátrio59, entendia como auto-aplicáveis as normas constitucionais que não requerem qualquer complementação no plano infraconstitucional para serem aplicadas, e como normas não auto-aplicáveis aquelas que dependem de complementação legislativa para produzirem seus efeitos60. Tal entendimento, embora reconhecesse a força imperativa das normas constitucionais, partia da premissa de que a maior parte dessas disposições requeria a intervenção do legislador infraconstitucional para ser aplicável, o que correspondia à realidade das Constituições de matriz liberal, afastando-se do contexto contemporâneo, em que adquire importância a natureza programática de parcela das normas constitucionais, que determinam aos Poderes Públicos uma atuação positiva na seara socioeconômica61. A crítica quanto à insuficiência dessa teoria no tocante às normas programáticas é registrada por Regina Ferrari, com a ressalva da necessidade de compreensão da realidade histórica em que foi construída: Fato que não lhes retira, de forma alguma, a nota de suprema imperatividade ou força normativa. Nesse sentido, FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Normas constitucionais programáticas: normatividade, efetividade, operacionalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 80. 57 Sobre a relação entre eficácia jurídica e aplicabilidade, ver a clássica formulação de José Afonso da Silva: “eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais são fenômenos conexos, aspectos talvez do mesmo fenômeno, encarados por prismas diferentes: aquela como potencialidade; esta como realizabilidade, praticidade. Se a norma não dispõe de todos os requisitos para sua aplicação aos casos concretos, falta-lhe a eficácia, não dispõe de aplicabilidade. Esta se revela, assim, como possibilidade de aplicação. Para que haja esta possibilidade, a norma há que ser capaz de produzir efeitos jurídicos”. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 60. 58 BARROSO, Luís Roberto. A doutrina brasileira da efetividade. In: BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 64. 59 Entre os seus adeptos encontra-se Pontes de Miranda, que sugeriu nova terminologia para a classificação das normas constitucionais, distinguindo-as em normas constitucionais bastantes em si mesmas (que não dependem de complementação legislativa para produzirem seus efeitos) e normas constitucionais não bastantes em si mesmas (dependentes de concretização por parte do legislador para alcançarem sua plena eficácia). Cf. MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 (Com a Emenda n.º 1 de 1969). v. I. 2.ª ed. São Paulo: RT, 1970. p. 126. 60 BARBOSA, Rui. Commentários à Constituição Federal Brasileira. v. II. São Paulo: Saraiva & Cia, 1933. p. 488-489. 61 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9.ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 259-260. 56 114 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988: 20 anos de Obscuridade nas Brumas do Senxo Comum Teórico Isso posto, é preciso reconhecer que difícil é localizar, na teoria clássica norteamericana, a importância e eficácia das normas programáticas reveladoras de valores que possibilitam a realização de ideais políticos e sociais, voltados para a concretização do bem comum. Porém, não se deve olvidar que a doutrina clássica não conhecia os direitos sociais e econômicos, sociais e culturais, tais como os contemplados pelas constituições atuais e que os direitos de liberdade e igualdade, conhecidos à época, eram previstos por meio de normas auto-aplicáveis.62 Posteriormente, adotando o pressuposto de que todas as normas constitucionais revestem-se de eficácia jurídica vinculante, surge a proposta classificatória de João Horácio Meirelles Teixeira, dividindo os mandamentos constitucionais em normas de eficácia plena e normas de eficácia limitada ou reduzida63. Ao final da década de 60, apresenta-se pela primeira vez a clássica sistematização de José Afonso de Silva, largamente difundida pela doutrina e tribunais pátrios até os dias atuais, classificando de forma tricotômica as normas constitucionais quanto à sua eficácia64. O autor, aprofundando e desenvolvendo o tema, classificou as normas constitucionais em: (a) normas de eficácia plena65 – capazes de, por si só e desde a sua entrada em vigor, produzirem seus principais efeitos; (b) normas de eficácia contida66 – aptas a produzirem seus efeitos essenciais, mas passíveis de restrição pelo legislador; (c) normas de eficácia limitada – caracterizadas essencialmente pela sua aplicabilidade indireta e reduzida, por não terem recebido do legislador constituinte a normatividade suficiente para serem diretamente aplicáveis e produzirem seus efeitos primordiais, carecendo, para tanto, de intervenção legislativa67. Parece, no entanto, que grande parte das classificações das normas constitucionais elaboradas pela doutrina brasileira68 acabou passando ao largo do FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Op. cit., p. 102. A proposta de classificação do autor pode ser encontrada em TEIXEIRA, João Horácio Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 317 e ss. 64 A obra encontra-se atualmente em sua 7.ª ed.: SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. 65 “(...) aquelas que, desde a entrada em vigor da constituição, produzem, ou têm a possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular”. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 101. 66 “(...) aquelas em que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do poder público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nela enunciados”. SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 116. 67 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 117-166. 68 Outras propostas metodológicas foram elaboradas após a contribuição de José Afonso da Silva; contudo, em razão dos limites metodológicos e de espaço deste trabalho, remete-se à leitura das seguintes obras: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Eficácia das Normas Constitucionais sobre a Justiça Social. Revista de Direito Público, São Paulo, v. 57/58, 1981; BASTOS, Celso Ribeiro; BRITTO, Carlos Ayres. Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1982; DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 7.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006. 62 63 115 Artigo 5 tratamento específico da eficácia dos direitos fundamentais69. Em razão disso, as especificidades acerca da aplicabilidade dos direitos fundamentais foram envolvidas pelas brumas do senso comum teórico que se formou sobre a eficácia das normas constitucionais em geral e sobre a aplicabilidade dos direitos fundamentais em particular. Faz-se necessário, por conseguinte, buscar esclarecer as particularidades pertinentes à temática da aplicabilidade dos direitos fundamentais, à luz do princípio da aplicabilidade imediata consagrado pelo art. 5.º, §1.º da CF. 4.2 A aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais O §1.º do art. 5.º da Constituição Federal dispõe que “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. O aludido dispositivo encontrou diferentes interpretações na doutrina brasileira. Em um dos extremos, defende Eros Roberto Grau: Dizer que um direito é imediatamente aplicável é afirmar que o preceito no qual inscrito é auto-suficiente; que tal preceito não reclama – porque dele independe – qualquer ato legislativo ou administrativo que anteceda a decisão na qual se consume a sua efetividade.70 Ora, com base na norma em questão e na classificação das normas constitucionais proposta por José Afonso da Silva, poder-se-ia pensar, em um primeiro momento, que todos os direitos fundamentais são definidos por normas de eficácia plena, que não carecem de regulamentação infraconstitucional para gerarem seus efeitos. Porém, assim não o é; havendo determinados direitos fundamentais cujo exercício demanda mediações concretizadoras, eis que a sua previsão constitucional não contém os elementos mínimos indispensáveis que lhe possam conferir pronta aplicabilidade. Talvez por essa razão, no outro extremo, Manoel Gonçalves Ferreira Filho sustenta que a norma sob exame não pode contrariar a “natureza das coisas”, restando inviável a aplicação imediata de todo e qualquer direito ou garantia fundamental, de modo que parcela desses direitos só alcançará sua eficácia nos termos e na medida da lei71. Situando-se em posição intermediária, e levando em conta que os direitos fundamentais podem estar previstos em normas que não reclamam concretização Constatação feita por Ingo Wolfgang Sarlet. Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 273. 70 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica da Constituição de 1988. 12.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 318-319. 71 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. “A aplicação imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais”. In: Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n.º 29, 1988. p. 35. 69 116 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988: 20 anos de Obscuridade nas Brumas do Senxo Comum Teórico para produzir seus efeitos, ou em normas que carecem de uma interpositio legislatoris para serem plenamente aplicadas, Ingo Wolfgang Sarlet atribui sentido diverso ao dispositivo em discussão. Tomando como base a distinção entre disposições constitucionais de alta e baixa densidade normativa, o autor conclui que o art. 5.º, §1.º da CF contém uma norma de cunho principiológico72 , no sentido conferido ao termo por Robert Alexy73, constituindo um mandado de otimização cuja função seria estabelecer aos órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais74. A norma da aplicabilidade imediata não incidiria consoante a lógica do “tudo-ou-nada”, como se regra fosse75, ficando o seu alcance (quantum em aplicabilidade e eficácia) na dependência das peculiaridades da norma de direito fundamental em questão (ressaltando-se que em favor de sua aplicação milita sempre a presunção de plenitude eficacial76 ). Entendimento semelhante é compartilhado por Flávia Piovesan77. Outro posicionamento, ao que tudo indica fundamentado nas dificuldades enfrentadas quanto à aplicação direta de direitos fundamentais que têm por objeto prestações estatais, é advogado por Sérgio Fernando Moro, lastreado no entendimento de João Pedro Gebran Neto78. De acordo com o autor, a melhor interpretação ao art. 5.º, § 1.º da CF é aquela segundo a qual o dispositivo teria o condão de autorizar o juiz a suprir eventuais omissões do Poder Público para aplicar imediatamente as normas de direito fundamental, restringindo-se, contudo, em razão da sua localização topográfica, aos direitos arrolados no art. 5.º, “em sua maioria compostos de liberdades, direitos de Em razão dos limites de espaço, não se adentrará neste trabalho na discussão em torno das distinções entre princípios e regras, cabendo apenas mencionar a compreensão de ambos como espécies do gênero “norma jurídica”, com todas as implicações que tal concepção acarreta na seara jurídico-normativa. Para um aprofundamento em relação a essa distinção, ver ALEXY, Robert. Op. cit., p. 63-150; DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 23-72. Na doutrina brasileira, não se pode deixar de mencionar a interessante contraposição de idéias entre ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. e SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. 2005. 370f. Tese apresentada para o concurso de provas e títulos para provimento do cargo de Professor Titular. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 49-77. Ver, ainda, sobre o tema da eficácia jurídica dos princípios constitucionais, BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 73 Na conceituação do autor, “los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los princípios son mandatos de optimización, que se caracterizan porque pueden cumplirse en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales, sino también de las jurídicas.” p. 67-68. 74 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 288. 75 No sentido atribuído ao termo por Ronald Dworkin. Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 39. 76 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 289. 77 PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 105 e 107. 78 GEBRAN NETO, João Pedro. A aplicação imediata dos direitos e garantias individuais: a busca de uma exegese emancipatória. São Paulo: RT, 2002. 72 117 Artigo 5 defesa e de participação”79 . Quanto à aplicação dos demais direitos fundamentais, situados fora do catálogo do art. 5.º, não incidiria a disposição insculpida no art. 5.º, §1.º da CF, mas sim o princípio da máxima efetividade, norteador de toda a interpretação constitucional80. Conforme mencionado anteriormente, este último posicionamento parece alinhar-se ao pensamento que contrapõe as normas definidoras de direitos de defesa ou direitos de liberdade, entendidas como normas de eficácia plena, às normas que prevêem direitos a prestações, compreendidas como normas de eficácia limitada. A partir dessa contraposição, procura-se demonstrar que os direitos de defesa não dependem de regulamentação e intervenção estatal, pois requerem apenas uma abstenção do Estado, enquanto os direitos a prestações, por demandarem ação estatal, têm sua eficácia jurídica comprometida81. Entretanto, tal contraposição ignora a multifuncionalidade dos direitos fundamentais, que podem assumir ora a função positiva, ora a função negativa82. Do mesmo modo que um direito de defesa pode ter uma dimensão positiva, um direito prestacional pode apresentar uma dimensão negativa83. Desta sorte, como bem esclarece Virgílio Afonso da Silva, não existe norma constitucional que não dependa de algum tipo de regulamentação e que não seja suscetível de algum tipo de restrição. Assim, se a distinção entre as normas de eficácia plena e as normas de eficácia limitada reside na necessidade, no caso das segundas, de atuação estatal no sentido de lhes completar a eficácia, a distinção cai por terra se se aceita que, da mesma forma que todas as normas estão sujeitas a restrição, todas elas dependem, também, de regulamentação.84 MORO, Sérgio Fernando. Desenvolvimento e efetivação judicial das normas constitucionais. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 72-73. 80 Sobre a incidência do referido dispositivo sobre os direitos fundamentais situados fora do art. 5.º da CF, compartilhamos com o entendimento de Ingo Wolfgang Sarlet, quando afirma que: “Em que pese a circunstância de que situação topográfica do dispositivo poderia sugerir uma aplicação da norma contida no art. 5.º, §1.º, da CF. apenas aos direitos individuais e coletivos (a exemplo do que ocorre com o § 2.º do mesmo artigo), o fato é que este argumento não corresponde à expressão literal do dispositivo, que utiliza a formulação genérica ‘direitos e garantias fundamentais’, tal como consignada na epígrafe do Título II de nossa Lex Suprema, revelando que, mesmo em se procedendo a uma interpretação meramente literal, não há como sustentar uma redução do âmbito de aplicação da norma a qualquer das categorias específicas de direitos fundamentais consagradas em nossa Constituição, nem mesmo aos – como já visto, equivocadamente designados – direitos individuais e coletivos do art. 5.º”. SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 278. No mesmo sentido, PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 106-107. 81 Advertência feita por Virgílio Afonso da Silva. Cf. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. 2005. 370f. Tese apresentada para o concurso de provas e títulos para provimento do cargo de Professor Titular. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 306; e por AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 60. 82 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9.ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 222 83 KRELL, Andreas J. Controle Judicial dos Serviços Públicos Básicos na base dos Direitos Fundamentais Sociais. In: Ingo Wolfgang Sarlet. (Org.). A Constituição Concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 39. 84 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. 2005. 370f. Tese apresentada para o concurso de provas e títulos para provimento do cargo de Professor Titular. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 304-305. 79 118 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988: 20 anos de Obscuridade nas Brumas do Senxo Comum Teórico Depreende-se daí que mesmo os direitos de defesa podem reclamar interposição legislativa para que possam ser exercitados, uma vez que a necessidade de regulamentação pode ser expressa no texto constitucional ou implícita85. Tome-se como exemplo o já referido direito ao sufrágio universal e ao voto direto e secreto (art. 14, CF). Conquanto se afigure como um direito político, previsto em dispositivo constitucional considerado por muitos como norma de eficácia plena, seu exercício não pode ser assegurado sem a criação e a manutenção de seções eleitorais e de juntas de apuração, sem a elaboração de uma legislação eleitoral e partidária que impeça fraudes, entre outras86. No mesmo influxo, afigura-se o direito de propriedade (art. 5.º, XXII, CF). Não obstante considerado como direito de defesa, ou direito de primeira geração, que exige a não interferência na esfera individual do seu titular, sua plena eficácia depende de normas de direito civil, tal como as disposições da Lei de Registros Públicos, do Código Civil, entre outras, sem as quais não se poderia garantir a fruição dos efeitos pretendidos pela norma que o prevê87. Destarte, pode-se inferir que, “se toda norma garantidora de direitos fundamentais necessita, para produzir todos os efeitos a que se propõe, de algum tipo de regulamentação, a distinção entre normas de eficácia plena e normas de eficácia limitada perde o seu sentido”88. Por conseguinte, no que concerne aos direitos fundamentais, seja qual for a sua natureza, o seu exercício pode depender de regulamentação infraconstitucional89. Assim, no âmbito dos direitos fundamentais a melhor forma de classificar as disposições constitucionais que os definem parece ser aquela que as distingue entre normas de alta densidade normativa e normas de baixa densidade normativa, proposta nos seguintes termos por Ingo Wolfgang Sarlet: Em face do exposto, pode-se falar em normas constitucionais de alta densidade normativa, que, dotadas de suficiente normatividade, se encontram aptas a, diretamente e sem a intervenção do legislador ordinário, gerar seus efeitos essenciais (independentemente de uma ulterior restringibilidade), bem como em normas constitucionais de baixa densidade normativa, que não possuem normatividade suficiente para – de forma direta SOUZA, Luciane Moessa de. Normas constitucionais não-regulamentadas: instrumentos processuais. São Paulo: RT, 2004. p. 81. 86SILVA, Luís Virgílio Afonso da. Op. cit., p. 308. 87 “(...) o direito de propriedade só é pleno se, de fato, o Estado cumprir o seu dever de protegê-lo. Para tanto, é necessário legislar, criar e manter organizações – polícia, poder judiciário etc. –; é necessário criar um registro de imóveis; é necessário pensar em procedimentos para a aquisição da propriedade, dentre outras várias ações necessárias.” SILVA, Luís Virgílio Afonso da. Op. cit., p. 313. 88 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. Op. cit., p. 315 89 Importa advertir que a necessidade de desenvolvimento legislativo dos direitos fundamentais não pode levar a interpretações que reduzam sua significação normativa, ou comprometam a possibilidade de se promover sua aplicabilidade judicialmente antes de sobrevirem leis que os regulamentem. A idéia será retomada nos próximos tópicos. Nesse influxo, LUÑO, Antonio Enrique Perez. Los derechos fundamentales. 6.ª ed. Madrid: Tecnos, 1995. 63-64. 85 119 Artigo 5 e sem uma interpositio legislatoris – gerar seus efeitos principais, ressaltando-se que, em virtude de uma normatividade mínima (presente em todas as normas constitucionais), sempre apresentam certo grau de eficácia jurídica.90 Destarte, para possibilitar a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, podem ser necessárias “mediações concretizadoras”91, capazes de estabelecer a regulamentação do seu exercício. 4.3 Mediações concretizadoras e regulamentação do exercício de direitos fundamentais A Constituição, ao definir a estrutura e as diretrizes básicas de uma sociedade, não possui uma pretensão de completude, detendo, pelo contrário, uma abertura que lhe possibilita conciliar a estabilidade jurídica com o desenvolvimento político92, permitindo a mutação constitucional, conforme a permanente transformação da ordem social93. Logo, nem todas as normas que a integram são capazes de incidir imediatamente sobre as situações fáticas por elas reguladas94. Pode se apresentar imprescindível a edição de outra norma ou conjunto normativo (seja de caráter legislativo, seja de caráter administrativo) para que a sua plena aplicação possa ocorrer de modo satisfatório95, inclusive, como já visto, no âmbito dos direitos fundamentais. O principal exemplo desse tipo de norma constitucional consiste naquelas disposições que estabelecem fins, definindo o objetivo a ser alcançado pelo Estado, sem determinar os pressupostos de fato, o “quando” se deve atuar e o conteúdo da atuação, deixando-se uma margem de liberdade para a escolha dos meios adequados à consecução do fim determinado96. São as chamadas normas constitucionais programáticas97, aqui compreendidas na acepção averbada por Regina Ferrari: Dessa forma, as normas programáticas determinam uma finalidade a ser cumprida obrigatoriamente pelo Poder Público, sem apontar os meios a serem adotados para atingi-la, isto é, sem indicar as condutas específicas para que se alcance a satisfação do bem jurídico consagrado na regra, em que pese a forca imperativa do comando normativo.98 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 268. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4.ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1124. 92 PIOVESAN, Flávia.Op. cit., p. 23. 93 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Op. cit., p. 26-27. 94 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Op. cit., p. 96-97. 95 O que não significa dizer que tal regulamentação não possa ser preenchida pelo Poder Judiciário, conforme se tentará demonstrar ao longo deste trabalho. 96 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Op. cit., p. 175. 97 Em sentido semelhante ao aqui adotado, segundo José Afonso da Silva, são “aquelas normas constitucionais através das quais o constituinte em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades visando à realização dos fins sociais do Estado” SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 138. 98 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Op. cit., p. 184. 90 91 120 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988: 20 anos de Obscuridade nas Brumas do Senxo Comum Teórico Durante muito tempo, conforme atesta Eros Roberto Grau, a doutrina entendeu que as normas programáticas consubstanciariam somente mandamentos dotados de força jurídica reduzida, que apenas assumiriam plena eficácia quando complementados por lei ordinária; não configurariam direitos, objeto de garantia jurídica, bastando a omissão do Poder Legislativo para torná-las letra morta99. Hodiernamente, em especial após o advento da atual Constituição, passou-se a reconhecer a possibilidade de se extraírem autênticos direitos subjetivos das normas constitucionais programáticas, passíveis de postulação perante o Poder Judiciário quando faltarem os elementos infraconstitucionais necessários para a fruição dos seus efeitos100. E mais do que isso: não apenas se reconhece a possibilidade de tais normas albergarem direitos subjetivos, como também direitos fundamentais subjetivos, dada a abertura material prevista pelo art. 5.º, §2.º da CF, acima referido. É o caso do direito fundamental social à saúde, que além de estar previsto no art. 6.º da CF, pode ainda ser extraído de seu art. 196, norma constitucional que ostenta, simultaneamente, caráter programático e definidor de direito101. Nesse sentido, a necessidade de regulamentação infraconstitucional não se limita às hipóteses de normas de cunho programático, podendo estar presente em todos os tipos de normas constitucionais. A título de ilustração, utilizando-se a classificação de Luís Roberto Barroso, que divide as disposições constitucionais em normas constitucionais de organização102, normas constitucionais definidoras de direitos103 e normas constitucionais programáticas104, é possível vislumbrar em todas as espécies situações de dependência de complementação infraconstitucional para a produção dos efeitos da norma. Para citar alguns exemplos: o art. 134, § 1.º, da CF (“Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos GRAU, Eros Roberto. A constituinte e a constituição que teremos. São Paulo: RT, 1985. p. 44-45. Concorda-se com a contundente lição de Regina Ferrari: “Tais normas, além de traduzirem um efeito inibitório para o Legislativo, Executivo e Judiciário, conferem ao seu destinatário o direito de exigir o cumprimento da prestação nela prevista, de modo que não altere o seu significado original, gerando, portanto, efeitos jurídicos, situações subjetivas. (...) Aceitar que todas as normas constitucionais ditas programáticas estão completamente destituídas da possibilidade de propiciar a figura do direito subjetivo, é imaginá-las recheadas de inoperância, e, ainda mais, com o perigo de ocorrer que interesses poderosos contrariados venham encontrar aliados para propiciar a constância do imobilismo capaz de influenciar o curso dos acontecimentos, bloqueando a sua efetividade, de tal modo que a supremacia constitucional ‘sucumbiria diante do efeito paralisante irradiado pela omissão de órgão de um poder constituído’”. FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Op. cit., p. 222-223. 101 Art. 196 da CF: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. 102 “Normas constitucionais que têm por objeto organizar o exercício do poder político”. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade das suas normas. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 90. 103 “Normas constitucionais que têm por objeto fixar os direitos fundamentais dos indivíduos” Idem Ibidem. 104 Normas constitucionais que têm por objeto traçar os fins públicos a serem alcançados pelo Estado: Idem Ibidem. 99 100 121 Artigo 5 de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais”)105 ; o art. 5.º, VII, da CF (“é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”)106; e o art. 215 (“O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”)107. Ressalte-se que nem sempre a regulamentação da disposição constitucional será imprescindível para garantir a eficácia do seu conteúdo, havendo casos em que a norma infraconstitucional apenas facilitará o seu modus operandi, como é o caso do art. 5.º, XXXIV da CF, que assim dispõe: “são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. A lei poderá especificar um prazo para a resposta do Poder Público, regulamentando o direito de petição, o que não se apresenta como algo imprescindível ao seu exercício108. Há, todavia, situações em que a regulamentação da disposição constitucional será inexorável à produção dos efeitos da norma, situando-se aqui o principal objeto de análise desta pesquisa. Refere-se, de um lado, aos direitos definidos em normas que apresentam expressões como “na forma da lei”, “nos termos da lei” ou “a lei estabelecerá”109, e de outro, aos direitos que, apesar de não haver exigência expressa de regulamentação do seu exercício, demandam mediações concretizadoras para a plena produção dos seus efeitos110 . Assim, um dos principais problemas que se apresenta no que tange à efetividade111 dos direitos fundamentais reside exatamente na inércia do Poder Legislativo ou Executivo112, quando a ausência de normas regulamentadoras desses Na classificação de Barroso, situar-se-ia entre as normas constitucionais de organização, por criar órgão público. Idem, p. 94. 106 Norma constitucional definidora de direito. 107 Normal constitucional programática. 108 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Op. cit., p. 134-135. 109 Como o direito do trabalhador assegurado no art. 7.º, XII, da CF: “salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei”. 110 Por exemplo, o direito fundamental à proteção do mercado de trabalho da mulher, previsto no art. 7.º, XX da CF. 111 O conceito de efetividade, que se identifica com a noção de eficácia social e se diferencia do conceito de eficácia jurídica – compreendida esta como aptidão da norma em produzir efeitos jurídicos –, foi delineado por Luís Roberto Barroso nos seguintes termos: “A efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social”. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade das suas normas. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 82-83. 112 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Normas constitucionais programáticas: normatividade, efetividade, operacionalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 138. 105 122 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988: 20 anos de Obscuridade nas Brumas do Senxo Comum Teórico direitos os impede de produzir seus efeitos113. Isso porque a atribuição da tarefa de concretizar o exercício de tais diretos ao legislador pode, muitas vezes, chocar-se com os interesses de determinadas maiorias parlamentares que resolvam, deliberadamente, retardar a sua regulamentação114 ,115. A inércia do Poder Público em tais circunstâncias, sobretudo quando se tratam de direitos fundamentais, demonstra-se injustificável, uma vez que, segundo J. J. Gomes Canotilho: Os domínios em que é mais reduzido o âmbito da conformação do legislador são aqueles em que os interesses públicos se acham previamente determinados pela constituição, ficando o legislador simplesmente autorizado a concretizar esses interesses.”116 Significa dizer que o órgão competente para elaborar a norma regulamentadora do exercício do direito não tem a opção entre fazer e não fazer, ou fazer à sua maneira117. O legislador ou o administrador tem a obrigação de criar a regulamentação do direito, escapando da sua “liberdade de conformação” ou “discricionariedade” a possibilidade de fazê-lo ou não, devendo concretizar118 as matérias que demandam densificação normativa, sempre norteado pelo conteúdo material estabelecido pelos princípios e regras constitucionais119. Nesse contexto, as omissões do legislador e do administrador passam a adquirir relevância jurídica, visto que podem ocasionar graves conseqüências no que toca à realização dos direitos fundamentais. A existência de omissões juridicamente relevantes, no pensar de Jorge Miranda, verifica-se sempre que, mandando a norma reguladora de certa relação ou situação praticar certo acto ou certa actividade nas condições que estabelece, o destinatário não o faça, não o faça nos termos exigidos, não o faça em tempo útil, e a comportamento se liguem consequências mais ou menos adequadas.120 Conforme já dito, em tais situações as posições jusfundamentais assumem a feição de direitos a prestações normativas, chamados por Robert Alexy de “direitos a prestações no sentido amplo”, para distingui-los dos direitos a prestações fáticas, também denominados “direitos a prestações no sentido estrito”. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 2.ª ed. Madrid: CEPC, 2007. p. 172. 114 LUÑO, Antonio Enrique Perez. Los derechos fundamentales. 6.ª ed. Madrid: Tecnos, 1995. p. 75. 115 Impende ressaltar que a Constituição não delega ao legislador competência para conceder esses direitos: ela própria os concede, cumprindo ao Legislativo, tão somente, materializar a forma do seu exercício. Aos entes encarregados de regulamentar os direitos fundamentais a Lei Maior confere apenas a possibilidade de escolha e adaptação dos meios, consistindo a obtenção dos fins por ela traçados em imposição vinculativa e obrigatória. Cf. SILVA, Anabelle Macedo. Concretizando a Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 165-166. 116 CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 253. 117 CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 317. 118 “O processo de concretização consiste em adicionar componentes, determinar conceitos, ao passo que a tipificação, a positivação normativa importa em excluir, prescindir de componentes, num processo de abstração (...). A concretização encerra uma atividade de determinação e especificação”. SILVA, Anabelle Macedo. Concretizando a Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 79-80. 119 CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 316. 120 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo VI. 2.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 292. 113 123 Artigo 5 Para essas situações, o próprio texto constitucional promulgado em 1988 previu instrumento específico destinado a este desiderato: o mandado de injunção – ação constitucional assegurada entre os direitos e garantias fundamentais do art. 5.º, LXXI da CF121 . Assim, em todas as hipóteses em que o exercício dos direitos fundamentais exigir uma regulamentação infraconstitucional e esta não tiver sido elaborada pelo órgão competente, o Poder Judiciário assume o dever de promover as mediações concretizadoras necessárias à sua realização, dando sentido ao princípio da aplicabilidade imediata previsto no art. 5.º, §1.º da CF. 5 Considerações finais Por todo o exposto, conclui-se que: (i) o princípio da aplicabilidade imediata incide sobre todos os direitos fundamentais previstos no ordenamento jurídico, não se limitando àqueles do artigo 5.º da CF ou aos direitos de defesa, ou de liberdade, nem aos direitos definidos em normas consideradas de “eficácia plena”; (ii) tal princípio não significa que os direitos fundamentais não demandem regulamentação infraconstitucional, pois qualquer desses direitos, independentemente da sua natureza, pode reclamar uma concretização para a produção dos seus efeitos; (iii) o dispositivo instituído no art. 5.º, §1.º da CF impõe ao Estado como um todo o dever de promover a efetivação dos direitos fundamentais, cabendo ao Judiciário quando for provocado, nas hipóteses de omissão do órgão competente (dos Poderes Legislativo ou Executivo), estabelecer as mediações concretizadoras necessárias a viabilizar o exercício do direito fundamental, definindo e especificando o modo como será exercitado, com base nos demais mandamentos constitucionais; (iv) para a realização dessa concretização judicial, o titular do direito fundamental cujo exercício encontra-se inviabilizado poderá lançar mão do mandado de injunção, de modo a incitar o Poder Judiciário a concretizar o seu direito. Art. 5.º, LXXI, da CF: “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. Sobre o tema do mandado de injunção, ver, entre outros: PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. 2.ª ed. São Paulo: RT, 2003; SILVA, José Afonso da. Mandado de injunção e habeas data. São Paulo: RT, 1989; PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Mandado de injunção. São Paulo: Atlas, 1999; SOUZA, Luciane Moessa. Normas constitucionais não-regulamentadas: instrumentos processuais. São Paulo: RT, 2004. 121 124 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988: 20 anos de Obscuridade nas Brumas do Senxo Comum Teórico 6 Referências ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 2.ª ed. Madrid: CEPC, 2007. 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Concretizando a Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. 2005. 370f. Tese apresentada para o concurso de provas e títulos para provimento do cargo de Professor Titular. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. SOUZA, Luciane Moessa de. Normas constitucionais não-regulamentadas: instrumentos processuais. São Paulo: RT, 2004. TEIXEIRA, João Horácio Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. 127 Artigo 6 Apontamentos sobre a ética ambiental como fundamento do direito ambiental Karin Kässmayer Doutoranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR e Universidade de Tübingen, Alemanha. Professora do Curso de Direito da UniFAE. Advogada. 1 Introdução. 2 A consolidação de uma consciência moral em relação à natureza. 3 A ética ambiental: a ação moral do homem face ao meio ambiente. De qual meio ambiente está a se tratar? 4 Um panorama das tendências da ética ambiental. 4.1 Fisiocentrismos. 4.2 Antropocentrismos. 5 Argumentos éticos sob a perspectiva do Estado Ambiental: conclusões. 6 Referências. Resumo O artigo tem como objetivo tecer comentários sobre o fundamento ético das normas jurídicas ambientais. A problemática ambiental é inicialmente apresentada como base fática para a criação do Direito Ambiental. São discutidas, no âmbito filosófico, as vertentes da ética ambiental à busca de fundamentos para a proteção da natureza. Por fim, a legislação ambiental é interpretada a partir das vertentes expostas. Palavras-chave: Ética ambiental; Justiça ambiental; Direito ambiental Abstract This article has its goal to comment on the ethic foundations of the environmental law. The environmental problem is initially presented as the reality basis to the creation of the Environmental Law. Are discussed, in the philosophic level, the possibilities of the environmental ethics in the search of foundations to the nature’s protection. In the end, the environmental law is interpreted in the light of the possibilities exposed. Keywords: Environmental Ethics; Environmental Justice; Environmental Law 128 Apontamentos sobre a Ética Ambiental como Fundamento do Direito Ambiental 1 Introdução O Estado de Direito Ambiental consagrou-se com o art. 225 da Constituição Federal ao dispor sobre o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A sociedade atual retrata desgastes ambientais que, somados aos desajustes sociais, geram quadros dramáticos. O processo de urbanização descontrolado nas últimas quatro décadas é um dos exemplos fatídicos da problemática envolvendo os novos riscos sócio-ambientais cujos efeitos, além de dimensionados localmente, tendem a se configurarem como globais, em razão de ações acumulativas de danos. Com o desiderato de prevenir os danos ambientais, preservar e conservar o meio ambiente necessário à vida humana, bem como fiscalizar as atividades passíveis de gerar poluição (de risco), além de planejar e gerir os espaços e as atividades que potencialmente interfiram na qualidade ambiental, o Direito Ambiental torna-se uma disciplina transversal a todo o ordenamento jurídico, e seus princípios, diretrizes interpretativas do texto constitucional. O Estado, além de gestor e controlador de riscos sócio-ambientais, passa a exercer a competência exclusiva de regulamentar o espaço urbano e rural. E o Direito, ordem normativa legítima e instrumento regulador dos conflitos, somente terá sentido se designado a servir à justiça1. Desse modo, da análise da legislação ambiental vigente, depara-se com o desafio do alcance de uma justiça ambiental. Otfried Höffe aponta que a justiça é o fio-condutor da humanidade, que une as diferentes culturas e épocas. Como princípio da ética, a justiça possui em seu núcleo conceitual o preceito da igualdade ou da imparcialidade. Sendo assim, a condição objetiva de aplicação de justiça cifra-se no litígio ou no conflito2. “Busca-se justiça em todo o âmbito das relações humanas, tanto nas de cooperação quanto também nas de concorrência, no caso de aqui surgirem interesses, pretensões e deveres conflitantes”3. O termo “justo” é comumente utilizado por esse autor sob duas formas distintas de justiça: a justiça distributiva, cujo escopo é a distribuição de bens como preenchimento das intenções de justiça (Gerechtigkeitsintuition) e a justiça de oportunidades (Chancengerechtigkeit), compreendida como a possibilidade de realização de chances igualitárias a todos (capabilities). Dessa divisão, resultam discrepâncias entre as reflexões sobre a justiça normativa, que conduz à ética, por um lado, e à apresentação fática de justiça levantada pelas ciências sociais, por outro. O “Recht, auch positives Recht, gar nicht anders definieren « kann » , denn als eine Ordnung und Satzung, die ihrem Sinn nach bestimmt ist, der Gerechtigkeit zu dienen“. RADBRUCH, Gustav. Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht. p. 12. 2 Cf. HÖFFE, Otfried. O que é justiça? p. 1-37. Vide também HÖFFE, Otfried. Gerechtigkeit. In: HÖFFE, Otfried; LIEBIG, Stefan; VON MAYDELL, Bernd. Zukunftsorientierte Nutzung ländlicher Räume – LandInnovation. Fachgespräch Gerechtigkeit. p. 7-8. 3 HÖFFE, Otfried. O que é justiça? p. 30. 1 129 Artigo 6 direito e, respectivamente, a jurisprudência, encontram-se no meio termo entre essas duas frontes. O ideal de justiça socioambiental engloba o acesso igualitário a todos a um meio ambiente equilibrado, a justa distribuição do ônus em preservar e conservar o meio ambiente, bem como a distribuição equânime do uso do bem ambiental, de modo a restar garantida às futuras gerações tal uso. Entretanto, a apresentação fática da realidade socioambiental visível por todos nós, seja no cotidiano das grandes cidades ou por intermédio do noticiário nacional e internacional, denuncia o imenso desafio da aplicação prática da ética, da justiça no caso empírico. Os preceitos da ética ambiental inseridos, em sua maioria, na legislação, entram em conflito com a injusta distribuição do bem ambiental (quem de fato usufrui o meio ambiente “equilibrado”?), a desigual responsabilidade na tarefa de proteção do meio ambiente (quem de fato arca com os custos da proteção ambiental?) e a incerta designação do objeto da justiça ambiental (de que justiça está a se tratar? Qual o valor moral da natureza?). O objetivo deste ensaio é apresentar – em uma visão macro – as variadas tendências da ética ambiental a fim de possibilitar uma interpretação aprofundada e crítica dos princípios e normas do Direito Ambiental. 2 A consolidação de uma consciência moral em relação à natureza Em busca de respostas para as questões acima aludidas e, a fim de buscar o fundamento moral do Direito Ambiental, uma abordagem da ética ambiental torna-se necessária. Suas principais correntes e desafios serão apresentados neste artigo. Com efeito, assiste-se à consolidação de uma consciência moral sobre a conduta do homem em relação ao mundo natural que o rodeia e o acolhe. Sob diversas perspectivas, questiona-se qual o dever da humanidade em alterar o seu comportamento com o mundo natural: animais, plantas, águas, ar. Os debates envolvem desde a reflexão moral que deve ampliar seus horizontes não somente ao incorporar, ao seu repertório, assuntos concernentes à conduta do homem em relação à natureza, mas também novos recursos teóricos, procedentes da filosofia da natureza, da biologia e da ecologia, bem como a necessária e urgente revisão do antropocentrismo, aceito como pressuposto e suporte dos sistemas morais vigentes no Ocidente.4 O cenário de destruição e ameaça ao meio ambiente traz para a filosofia questionamentos sobre o valor da natureza, o sentido do progresso científico e a necessidade da criação de um novo paradigma da moral, no qual o autor principal deixa de ser o homem e passa a ser a natureza, ou a biosfera. O fundamento da Cf. GÓMES-HERAS, José Maria G. Presentación. In: GÓMES-HERAS, José Maria G. Ética del Medio Ambiente: problema, perspectiva, historia. p. 9-10. 4 130 Apontamentos sobre a Ética Ambiental como Fundamento do Direito Ambiental ação preventiva em prol do meio ambiente levanta o questionamento da análise da dimensão moral a ser atribuída à natureza, a ponto de se justificar uma atuação ética em seu benefício. Com efeito, “a crise ecológica acende uma nova luz sobre a herança da modernidade e suas patologias”5. Diante dessa perspectiva, o novo agir, o novo “relacionar-se” com o meio ambiente traz questões essenciais à compreensão de uma moral aplicada que desenvolve um modelo de ética ambiental e coloca em xeque a práxis econômica racional e realista. Até então, o ato de dominar a natureza significou o triunfo do homem que a deslocou das próprias leis de desenvolvimento para configurá-la segundo espaços e tempos regulados por leis de racionalidade geométrica que inspira arquitetos e urbanistas, que transformou seus produtos em nome de leis do mercado. Triunfo do homo technicus, que nos últimos séculos explorou suas energias, organizou os seus espaços e manipulou os seus fenômenos.6 Hoje, em busca de um novo agir – e principalmente em busca de seus fundamentos – questiona-se: “por que proteger o meio ambiente?”; “possui o meio ambiente uma relevância moral?”; “quais são os principais vieses filosóficos que fundamentam a ética ambiental?”; “como agir eticamente para com o meio ambiente?”; “como conciliar a civilização contemporânea, caracterizada pela ciência, pelo desenvolvimento da técnica e pela economia industrial, com os ditames da ética ambiental?”; “como o ordenamento jurídico, sob uma estrutura de um Estado de Direito Democrático, insere tal reflexão na forma de normas jurídicas?”. Não obstante, a discussão quanto ao conteúdo da justiça ambiental torna-se relevante. Um plano de transposição da discussão sobre distribuição justa e injusta de bens para o desnivelamento e desigualdade ambiental é capaz de evidenciar o conflito meio ambiente versus sociedade. Afinal, “concebe-se a justiça ambiental a quem? Espécies, Ecossistemas, Humanidade – geração atual e futuras gerações?”; “justiça ambiental: a que custo e sob quais condições?”; “há distribuição justa do uso GÓMES-HERAS, José Maria G. El problema de una ética del “medio ambiente”. In: GÓMES-HERAS, José Maria G. (coord.) Ética del Medio Ambiente: problema, perspectiva, historia. p. 23. (Tradução livre do Espanhol). 6 Cf. GÓMES-HERAS, José Maria G. El problema de una ética del “medio ambiente”. In: GÓMES-HERAS, José Maria G. (coord.) Ética del Medio Ambiente: problema, perspectiva, historia. p. 18. Como dominador do cosmos, criador do saber científico e do instrumental tecnológico, descreve o citado autor as caractersíticas do poder do homem perante a natureza: “Frente a la voluntad como <poder> se sitúa una naturaleza reducida a mero objeto, extraña al hombre y vaciada de calidad ontológica y axiológica, mediante un proceso de desencantamiento, impuesto por el antropocentrismo de la cultural occidental. Tal antropocentrismo, a través de procedimientos de desmitificación en el pensamiento clásico griego, de historificación de la existencia humana en el Cristianismo y de formalización matemática del cosmos durante la modernidad, habría sustraído todo soporte ontológico para que la naturaleza pudiera ser descobierta como sujeto de derechos y soporte de valores.” GÓMES-HERAS, José Maria G. El problema de una ética del “medio ambiente”. In: GÓMESHERAS, José Maria G. (coord.) Ética del Medio Ambiente: problema, perspectiva, historia. p. 19. 5 131 Artigo 6 do ambiente e acesso a todos ao uso do bem ambiental?”; “há possíveis compensações quando verificada a desigualdade ambiental?”, “quais as prerrogativas para o Estado realizar a justiça ambiental como tarefa essencial?”; e, por fim, “a demarcação e organização territorial tal como a existente, pode vir a alcançar a justiça ambiental?”. Esses são os desafios que o Estado tem diante de si ao propor políticas ambientais e ao estabelecer leis e parâmetros ambientais. Tarefas estas por si só complexas, dada a amplitude dos problemas que abrange. Os problemas ambientais não questionam tão somente a relação homem–natureza, mas sim, as relações entre os homens e suas conseqüências à natureza. Os problemas ambientais são, na verdade, questões socioambientais. Assim, a perspectiva que o homem tem da natureza se transforma. Dois mundos se colidem: um mundo sustentado pela racionalidade axiológica, e outro, pela racionalidade técnico-estratégica. Este está centralizado na idéia de domínio e exploração da natureza pelo homem. A atividade humana integra-se progressivamente neste mundo, perdendo sua dimensão subjetiva-teleológica, motivada por valores, e adquirindo um caráter causal-mecânico, centrado em um “poder fazer”. Tudo é lícito e a arbitrariedade de condutas quando da exploração da natureza, colocando em risco a sobrevivência da própria espécie humana, demonstra a perversão de uma racionalidade imanente a uma racionalidade neutra a respeito de valores, voltada unicamente a resultados. Dissociamos o que “podemos fazer” do que “devemos fazer”; e, neste momento, estamos em busca de uma norma moral que oriente a ação ao bom e ao justo.7 3 A ética ambiental: a ação moral do homem face ao meio ambiente. De qual meio ambiente está a se tratar? A proteção ao meio ambiente é destaque na agenda política, além de representar, junto com outras questões, um ponto de inflexão na ética tradicional8. O meio ambiente constitui um bem essencial à vida humana e às futuras gerações. A esse respeito não há dúvidas, inúmeros são os estudos consagrados que diagnosticam a crise ambiental e o risco advindo de catástrofes ambientais, originárias da perversão Cf. GÓMES-HERAS, José Maria G. El problema de una ética del “medio ambiente”. In: GÓMES-HERAS, José Maria G. (coord.) Ética del Medio Ambiente: problema, perspectiva, historia. p. 22-23. 8 A ética tradicional, na visão de James Sterba (Three challenges to Ethics. p. 1-2), possui três importantes desafios que advém do ambientalismo, do feminismo e do multiculturalismo. O ambientalismo afirma que a ética tradicional possui um viés humano e pretende corrigi-lo, o feminismo afirma possuir a ética um viés masculino e o multiculturalismo, um viés ocidental. Para o citado autor, a ética tradicional falhou ao procurar solucionar esses problemas, colocando-a em questionamento. Assim, em seu capítulo introdutório, descreve os três problemas principais na ética tradicional: o relativismo, a racionalidade (se a moral é racionalmente requerida) e a questão dos requerimentos práticos. 7 132 Apontamentos sobre a Ética Ambiental como Fundamento do Direito Ambiental imanente da racionalidade neutra9. Com a acumulação dos danos, a aceleração do tempo, dos meios técnicos e suas desconhecidas profundezas, a destruição ambiental se expande a uma ordem global, que clama por respostas10. Nesse contexto, indústria e técnica são tidas como os principais vilões causadores da poluição ambiental e da degradação da qualidade do meio ambiente. Muitas vezes, reduzem-se o conceito de modernidade ao de técnica e natureza, marco referencial para a oposição “executor e vítima”.11 Há um esforço em fundamentar um agir moral para com o meio ambiente, sem olvidar que a ética ambiental se estende ao campo da moralidade política, constituindo-se em um novo princípio para a ordem jurídica. Com efeito, a ética ambiental surge como pólo oposto às intervenções negativas da ação humana diretamente na natureza, com a finalidade de protegê-la e conservá-la, sob os auspícios de um interesse intergeneracional.12,13 Vide BECK, Ulrich. Políticas ecológicas en la edad del riesgo: antídotos. La irresponsabilidad organizada. Barcelona: El Roure Editorial, 1998. p. 74. Dieter Birnbacher entende que justificar uma ação de proteção ao meio ambiente é algo indiscutível, pois todos já sabem dos riscos que a humanidade corre com a destruição da natureza. Para o autor, a dificuldade está em se justificar a ação moral em favor da Natureza por si mesma. Ou seja, se o dever para com o meio ambiente é um dever primário ou se é constituído como um dever secundário. 10 Cf. HÖFFE, Otfried. Moral als Preis der Moderne, p. 115. 11 Cf. BECK, Ulrich. Políticas ecológicas en la edad del riesgo: antídotos. La irresponsabilidad organizada. Barcelona: El Roure Editorial, 1998, p. 75. 12 Uma consideração merece ser apontada. De acordo com Krebs (Naturethik im Überblick. In: KREBS, Angelika. (hrsg.) Naturethik: grundtexte der gegenwärtigen tier – und ökoethischen Diskussion. Frankfurt: 1997. p. 339), a ética filosófica subdivide-se em duas subdisciplinas: a ética eudemonística e a filosofia moral. Enquanto aquela atém-se à concepção da boa vida, esta na ação moral, na fundamentação da consideração para com a vida alheia. Nesse sentido, ao se questionar sobre a correta relação homem-natureza, sob o ponto de vista eudamonístico, será questionada até que ponto a natureza contribui para a boa vida do homem, para a felicidade, e ao se questionar se a ação moral compreende o interesse dos homens ou se leva em consideração à Natureza, está a se tratar do valor moral da Natureza, ou seja, do viés da filosofia moral. 13 Kirsten Meyer (Der Wert der Natur. Paderborn: Mentis, 2003. p. 23-41) aponta duas motivações para a proteção da natureza: as finalidades globais (tais como a proteção da segurança de grandes ecossistemas) e as locais (a proteção da natureza de um país, por exemplo, a atenção voltada a uma espécie animal). Ele atémse a esse viés e diferencia cinco objetivos quando da proteção ao meio ambiente, dentre os quais a proteção de espécies (especificando que nos anos 70 a IUCN compilou um livro com todas as espécies ameaçadas de extinção) e proteção do solo – Flächenschutz – (paisagem e natureza intocada). Como critério para a proteção da natureza, apresenta o autor a naturalidade (Natürlichkeit), pressupondo a proteção do que for natural, o que for genuíno, mas havendo a dificuldade em se definir o que se compreende por natural. Uma definição seria “aquilo que o homem ainda não influenciou” (p. 31). Todavia, a dificuldade está em se encontrar um ecossistema não influenciado ou modificado pelo homem. Kirsten trata, então, dos critérios de naturalidade, ou seja, da possibilidade de áreas serem mais “naturais” que outras e, por esse motivo, merecerem mais proteção. O critério da raridade e da ameaça identifica as espécies ameaçadas de extinção, classificando o perigo em local ou global. Se há um perigo local, há ameaça de populações específicas na região. Quanto ao critério de ameaça, o autor fala que ele entra em conflito com outros, como o da naturalidade, uma vez que um ambiente artificial pode auxiliar na contenção da ameaça. O critério da biodiversidade é analisado como fim e como meio de proteção. Nesse caso, a espécies ameaçadas, por exemplo. Mas esse critério igualmente leva a contradições, pois um ambiente poluído pode muitas vezes conter mais biodiversidade de algas e bactérias do que um ambiente sem poluição. É o caso do Passaúna. A unicidade (Eigenart), apesar de ser um critério de difícil definição, encontra-se como fundamento na lei alemã ambiental, em seu parágrafo primeiro. Geralmente, a intenção é a de proteger uma paisagem que não foi alterada há tempos e acaba por criar uma identidade própria. A idade é outro critério utilizado pelo autor. 9 133 Artigo 6 Tendo como marco inicial a publicação, em 1973, do artigo de Peter Singer intitulado “Animal Liberalism”, inicia-se esse debate14. Seu primeiro desafio é fundamentar a ação moral para com o meio ambiente. Nesse sentido, discute-se se o meio ambiente (sejam espécies consideradas individualmente, coletivamente ou ecossistemas como um todo) detém valoração própria, abrindo-se o debate acerca da qualificação moral da natureza. Em outras palavras, questiona-se a possibilidade de um tratamento moral igualitário do homem ao meio ambiente. Dieter Birnbacher realiza uma similar questão, ao afirmar que há uma concordância geral com o fato de a natureza necessitar de proteção. Menos concordância há, entretanto, nas causas dessa proteção. Protege-se a natureza devido a sua pureza, ou ela é protegida por mostrar outras qualidades, de interesse aos homens, como recurso de uso econômico ou fonte de prazer estético?15 Gómes-Heras afirma, por sua vez, que a dimensão moral do problema ecológico se inicia na década de setenta, quando alguns assuntos ganham relevância ético-política, tais como o processo de tecnicização e racionalização do mundo, os riscos do conceito convencional de progresso e o afã consumista. Assim, a necessidade de debater e compreender a questão ambiental fundamenta-se por duas razões: os avanços da biologia, que descobre a interdependência entre os seres vivos do planeta, e a conscientização dos poderes destrutivos do instrumental tecnológico nas mãos do homem.16 A revalorização do natural é característica para o pensamento bio-fisiocêntrico da ética ambiental dos últimos trinta anos; sendo essa ética compreendida como o conjunto de enunciados que tratam dos princípios normativos do meio ambiente, da natureza e da proteção dos animais17, e a questão se “existe uma responsabilidade unicamente para com a natureza, que seja concebida de forma independente de nossa responsabilidade para com a humanidade da geração atual e futura”18, é preponderante. SINGER, Peter. Animal Liberation. New York Review of Books, 1973. Conforme Streba (op. cit, p. 28), Singer concentra sua ética na consideração igualitária entre todas as espécies, ou seja, ele é contra o especiecismo. Da mesma forma que somos contrários ao racismo e ao sexismo, ao conceder maior valor a uma raça em detrimento de outra, os especiecistas violam a regra moral ao dotar mais valor ao interesse dos humanos em comparação ao animais, em casos de conflitos. Para o autor, os animais possuem interesses, já que eles têm a capacidade de sofrer e de se alegrar, ou seja, possuem sentimentos. Não nos concentraremos nessa teoria, pois o presente trabalho visa a discussão de uma ética ambiental e não uma ética restrita à ação moral em relação aos animais. Angelika Krebs cita outras obras que iniciam a discussão ambiental, como por exemplo “Man´s Responsibility for Nature”, de John Passmore (1974), “The Shallow and the Deep, Long-Range Ecology Movements”, de Arne Naess (1973) e na Alemanha, “Das Prinzip Verantwortung”, de Hans Jonas (1979). Vide Naturethik im Überblick. In: KREBS, Angelika. (hrsg.) Naturethik: Grundtexte der gegenwärtigen tier – und ökoethischen Diskussion. Frankfurt, 1997. p. 338. 15 Vide BIRNBACHER, Dieter. Natürlichkeit. Berlin: De Gruyter, 2006. p. 65. 16 GÓMES-HERAS, José Maria G. El problema de una ética del “medio ambiente”. In: GÓMES-HERAS, José Maria G. (coord.). Ética del Medio Ambiente: problema, perspectiva, historia. p. 25. 17 Cf. BIRNBACHER, Dieter. Natürlichkeit. Berlin: De Gruyter, 2006. p. 29. 18 BIRNBACHER, Dieter. Sind wir für die Natur verantwortlich? p. 103. O autor procura a resposta para a seguinte questão: existe uma fundamentação ética para que a Natureza seja protegida e valorada por si mesma e, no contexto civilizatório, se comporte de forma correspondente? p. 114. 14 134 Apontamentos sobre a Ética Ambiental como Fundamento do Direito Ambiental Em outras palavras, objetiva-se responder se há uma responsabilidade direta e exclusiva para com a natureza, devido à relevância moral a ela destinada, de modo que não haja uma contextualização com a vida e sobrevivência do homem, com a felicidade e sofrimento humanos. Essa questão é o ponto de partida para o debate acerca da saturação (ou não) do viés antropocêntrico, já que ao argumentar que a ação moral (ética) considera a ação do homem consigo mesmo ou com respeito a seus semelhantes, torna-se difícil fundamentar um novo paradigma ético biocêntrico. Birnbacher entende ser impossível, através de normas deontológicas, fundamentar uma moral que tenha a natureza como um fim em si mesma. Se as normas deontológicas visam proteger os valores da moral, o fim em si mesmo para esta será sempre a perfeição moral do homem, nunca a natureza extra-humana19. A natureza somente será um fim em si mesma sob o quadro de uma ética teleológica, que se retrate a fatores extramorais. O utilitarismo de Jeremy Bentham será a primeira corrente filosófica a proibir a tortura de animais, pois não se está a questionar se os animais são racionais ou se são aptos a falar, mas sim se são seres sensíveis. Ora, sendo seres sensíveis, o princípio utilitarista da minoração da dor é cabível, mesmo sem responder se essa dor é comparável à dor sofrida pelo homem20. Todavia, o problema se inicia em não haver um consenso quanto ao saber acerca do início da dor e dos limites dessa dor.21 Nesse exemplo, a responsabilidade se direciona a seres sensíveis. Os homens possuem deveres perante tais seres, mas resta aberta a questão se os animais, ao mesmo tempo, possuem um direito de serem protegidos contra sofrimentos, se são sujeitos de uma relação moral. O citado autor afirma, então, que o fator decisivo para responder a tal pergunta é o uso correto da preposição “perante”. Um ser “X” terá direito perante “Y”, se “Y” possuir um dever perante “X”. Nesse sentido, teríamos um dever perante os animais, e eles um direito de não sofrerem lesões ou danos, mas o mesmo não poderia ser dito da paisagem ou da natureza não sensível, uma vez que o dever não é perante ela, em favor dela, mas sim, diretamente perante as futuras gerações ou perante os seres que a habitarão.22 Percebe-se, pois, que um dos pressupostos para a compreensão da ética ambiental é a delimitação do conceito de natureza ou meio ambiente e a relevância moral a ela concebida. Como conseqüência, haverá teorias focadas na ação moral apenas em relação a certas formas de vida, como os seres sensíveis ou seres dotados BIRNBACHER, Dieter. Sind wir für die Natur verantwortlich? p. 117. BIRNBACHER, Dieter. Sind wir für die Natur verantwortlich? p. 118. 21 BIRNBACHER, Dieter. Sind wir für die Natur verantwortlich? p. 119. O autor afirma que embora haja consenso quanto à proibição da tortura, não há o mesmo consenso, por exemplo, quanto ao conhecimento sobre o momento do início da dor ou sobre o estágio de desenvolvimento do sistema nervoso dos animais. 22 Idem, p. 125. 19 20 135 Artigo 6 de experiência de vida23. A depender do que se compreenda por natureza relevante à moral, surgem tendências éticas, tais como a que considera o princípio fisiocêntrico – ao conceder valor intrínseco aos indivíduos naturais, na maior parte também coletividades naturais como biótipos, ecossistemas, paisagens – ou o biocêntrico, cujo enfoque está apenas nos seres com vida, sejam individuais e coletivos. O conceito de natureza, portanto, é pressuposto básico para a o estudo da ética ambiental. Krebs, partindo do estudo etimológico da natureza, afirma que esse conceito corresponde a tudo aquilo não realizado pelo homem, tendo como sentido contrário os artefatos24. Entretanto, esse sentido hoje é motivo de controvérsias, pois não há uma natureza pura, intocada, a não ser nas profundezas do oceano, ou planetas distantes. Ao existirem dois pólos, a natureza pura e o artefato (ou o produto do trabalho humano) em seu meio termo há uma série de gradações. Nesse aspecto depara-se com um obstáculo à formulação de uma ética ambiental, justamente por ela necessitar de um objeto definido, de um conceito de natureza, o qual geralmente é formulado como “aquilo no nosso mundo, que não foi objeto de feitio pelo homem”25. Dieter Birnbacher constrói sua tese justamente com base na idéia de “naturalidade” (Natürlichkeit), como contraposição à artificialidade (Künstlichkeit). Essa diferenciação é importante para a compreensão do conceito de natureza26. Ao buscar distinguir o que é natural do artificial, ou a naturalidade da artificialidade, se estabelece que, ao se deparar com “espécies”, há uma separação total, por não existir – até o presente – um meio termo entre o que é um homem e um “não” homem. Sob essa perspectiva, há como classificar e distinguir sem dificuldades o homem de um ser não humano27. Essa análise é interessante, pois a moral, na ética ambiental, tende a ser ampliada ao ser não humano. Todavia, se for levada em conta a diferenciação entre a naturalidade ou a artificialidade de objetos, não haverá uma precisão na resposta, pois somente é possível afirmar se algo é mais ou menos natural ou artificial, em razão do amplo campo Vide as teorias de Peter Singer (utilitarismo ambiental) e Paul Reagan (ambientalismo kantiano de Reagan), que fundamentam a ação ética respectivamente para com os seres sensíveis – sentient beings – ou para com os sujeitos com vivência (ou noção ou experiência de vida) – experiencing subjects of live. De acordo com STERBA, op. cit., 29. 24 Naturethik im Überblick. In: KREBS, Angelika. (hrsg.) Naturethik: grundtexte der gegenwärtigen tier – und ökoethischen Diskussion. Frankfurt: 1997, p. 340. 25 Naturethik im Überblick. In: KREBS, Angelika. (hrsg.) Naturethik: grundtexte der gegenwärtigen tier – und ökoethischen Diskussion. Frankfurt: 1997, p. 340. 26 BIRNBACHER, Dieter. Natürlichkeit. p. 1-7. 27 Essa diferenciação entre o homem, ou o humano, e o não humano é de interesse da bioética, principalmente. 23 136 Apontamentos sobre a Ética Ambiental como Fundamento do Direito Ambiental intermediário existente. Como exemplo, uma paisagem já transformada devido ao uso do solo, ou a construção de um reservatório. Serão esses ambientes naturais ou artificiais?28 A importância dessa observação se justifica pelo modo como os homens se orientam no mundo. Uma das principais diferenciações para a ética é a realizada entre as espécies, ou seja, se o objeto de análise pertence ou não à espécie humana, sem deixar de considerar a diferenciação – também fundamental para a orientação no mundo – entre aquilo que foi objeto de alteração humana e aquilo que é e sempre foi da forma que se encontra, sem intervenção do homem, ou, em outras palavras, entre o que se “tornou’ (Gewordenen) e o que foi feito (Gemachten)29. O homem necessita dos recursos naturais e, enquanto prescindir de processos metabólicos com o meio ambiente, continuará a alterá-lo30. Partindo dessa diferenciação inicial, o autor categoriza a naturalidade e a artificialidade, cada uma, em duas dimensões: a genética e a qualitativa. O sentido genético é definido como algo que tem sua origem natural e o qualitativo, a atual natureza da coisa, a atual forma de sua aparência31. Para avaliar a naturalidade, é necessário avaliar o seu histórico, reconstruir sua gênese ou sua origem. Ou seja, se algo for natural geneticamente, será igualmente natural em sua aparência, qualitativamente. Mas o objeto pode ser qualitativamente natural (ter a aparência, a forma natural), mas em seu sentido genético não ser natural, mas sim, artificial (a exemplo de algum aroma artificial). A importância dessa discussão está em contradizer a idéia da existência de uma natureza intocada, não modificada pelo homem e acentuar o fato de que há a possibilidade, sim, de remodelar, de refazer o natural, de compensar uma perda da naturalidade através de uma possível reparação ou reposição do dano. Conforme BIRNBACHER, Dieter. Natürlichkeit. Berlin: De Gruyter, 2006. p. 4. O autor afirma inclusive que hoje a discussão entre o que é naturalidade e artificialidade possui um papel de fundamental importância na ética prática e na moral diária. “Weder auf der Ebene der außermoralischen Bewertungen (der Einstellungen dazu, was erstrebenswert, wünschenswert, gut ist), noch auf der Ebene der moralischen Bewertungen (der Einstellung dazu, was richtig, erforderlich, angemessen ist), werde die Kategorien des Natürliche und Künstlichen als irrelevant betrachtet. Im Gegenteil, wird das Natürliche dem Künstlichen, das Vorgegebene dem Gemachten durchweg vorgezogen. Dem von Natur aus Seienden wird gegenüber dem vom Menschen Hervorgebrachten oder Bewirkten ein systematischer Bonus eingeräumt.” p. 21-22. 29 De acordo com BIRNBACHER, Dieter. Natürlichkeit. Berlin: De Gruyter, 2006. p. 1: “Im idealystischen Fall ist das ‘Gewordene‘ das, was vor und unabhängig vom Menschen da ist und unabhängig vom Menschen eine bestimmte Beschaffenheit hat, das ‘Gemachte‘ – wenn wir von Bienenwaben, Termitenhügeln und anderen von nicht – menschlichen Wesen hergestellten Weltdingen absehen – das, was nur durch den Menschen da ist oder nur durch den Menschen eine bestimmte Beschaffenheit hat.” 30 Afirma BIRNBACHER, Dieter. Natürlichkeit. Berlin: De Gruyter, 2006. p. 60: “Die Natur ist in der Entwicklung und Praxis der Technik ganz überwiegend nicht als Akteur beteiligt, mit der der Mensch einer ‘Allianz‘ zum gemeinsamen Vorteil eingeht, sondern als passives Objekt menschlicher Manipulationen.” 31 “Was einen natürlichen Ursprung hat” e “aktuelle Beschaffenheit und Erscheinungsform“, de acordo com BIRNBACHER, Dieter. Natürlichkeit. p. 8. 28 137 Artigo 6 A concepção de naturalidade é igualmente relevante, pois variados âmbitos da discussão ética se diferenciam de forma significativa em sua função. Sendo assim, a naturalidade pode ser compreendida como norma (sentido deôntico), através da qual os argumentos se fundem aos princípios da ação, que prescrevem ou sugerem um comportamento humano, ou como valor (sentido axiológico). Neste último, postulamse determinadas situações ou condições do mundo como valoradas, desejáveis ou conserváveis. Como norma, postula juízos de dever, já como valor, não indica a ação, mas o conhecimento dos valores, ou a ciência dos valores. A diferença entre ambas está na regulamentação direta ou indireta do comportamento. Ademais, postulados de valor sozinhos não fundamentam deveres por meio do qual um comportamento será proibido ou imposto, recomendado ou desaconselhado, já que, para fundamentá-los, necessita-se de outras premissas. Em contrapartida, os postulados de argumentos em sentido deôntico implicam diretamente em juízos de dever.32 O autor realiza uma segunda diferenciação: entre argumentos naturalísticos em sentido axiológico quando da naturalidade em sentido genético ou em sentido qualitativo. A naturalidade em sentido genético somente pode ser conquistada por meio de uma omissão, de um não agir, do ato de conservar, e não de forma ativa, pois o homem não tem o poder de agir de forma a gerá-la. Abre-se mão das ações ativas e os deveres surgidos serão de omissão. “Por esse motivo, derivam do reconhecimento da naturalidade em sentido genético as normas de inviolabilidade e indisponibilidade.”33 Em sentido qualitativo, por outro lado, há um espaço muito maior concedido à ação. Os deveres de omissão não serão os mais importantes, pois se houver uma perda, será necessária a reconstrução, a reparação. A justificativa dessa posição é que não se está a valorar a gênese, a autenticidade, a identidade do objeto, mas sua característica externa. Posiciona-se o autor ao afirmar que uma norma da naturalidade em sentido genético não necessita ser formulada em sentido tão rigoroso, de forma que ela proíba toda e qualquer intervenção. Assim como a naturalidade possui gradações (algo está mais próximo da naturalidade pura ou não), também podem as normas se diferenciarem, a exemplo do replantio de uma floresta34. A pergunta a se fazer no momento de criação da norma seria a definição dos limites e dos âmbitos de atuação nos quais esses tipos de argumentos de naturalidade sejam plausíveis. A partir dessa diferenciação, é possível questionar se a ética ambiental tem como objeto a natureza Cf. BIRNBACHER, Dieter. Natürlichkeit, p. 39. BIRNBACHER, Dieter. Natürlichkeit. p. 39. Tradução livre do original, em alemão: “Deshalb begründen die Annerkennung von Natürlichkeit im genetischen Sinn Normen der Unantastbarkeit und Unverfügbarkeit.” 34 Idem, p. 40. 32 33 138 Apontamentos sobre a Ética Ambiental como Fundamento do Direito Ambiental intocada ou a natureza manipulada, sendo possível o questionamento acerca do objeto de proteção: se a natureza originária ou a natureza em sua forma qualitativa. Do exposto, a justificativa ética para com seres não humanos, especificamente a ação moral direcionada a ecossistemas já transformados, como é o caso da maioria existente, poderá ocorrer sob uma análise da concepção de naturalidade de Birnbacher, que tem como pressuposto uma natureza manipulada. 4 Um panorama das tendências da ética ambiental Angelika Krebs, em seu artigo “Naturethik im Überblick”35, apresenta um panorama geral das diversas posições defendidas na formulação de uma ética ambiental, especialmente quanto às diferenças a respeito do valor moral concedido à natureza.36 De início, são necessárias duas explanações: a primeira chama atenção ao fato de que à relação homem-natureza é conferida uma nova abordagem, dada a problemática ambiental. Inúmeros questionamentos florescem sem que haja unicidade quanto às respostas tendentes a responder esses novos desafios. Citemos as seguintes questões: É a natureza, enquanto habitat do homem, matéria moral? Há urgência para que a reflexão moral amplie seu campo de reflexão à nova fenomenologia da ação humana, derivada da aplicação da técnica à transformação da natureza? Os sistemas tradicionais éticos estão capacitados a dar conta dos problemas derivados da crise ecológica ou há necessidade premente de um novo paradigma moral? Existem obrigações e deveres que exijam dos homens a adequação de suas condutas quando se relacionam com espaços naturais, animais e plantas? Se existem tais obrigações, quais leis as impõem e qual legislador as sanciona e as promulga? A natureza é capaz de gerar deveres? Qual é a origem da obrigação moral: Deus, Homem (razão) ou a Natureza? São os animais, plantas e espaços naturais sujeitos de direitos? O que está ameaçado: a liberdade do homem ou a liberdade da natureza?37 Utilizar-se-á principalmente o esquema realizado pela citada autora no que diz respeito à diferenciação das tendências filosóficas da ética ambiental. Mas não serão transcritas todas as dimensões apresentadas pela autora, apenas as mais importantes para o presente trabalho. Faz-se necessário explicar que pelo fato de termos optado em realizar esta análise sistemática das diversas tendências da ética em relação ao meio ambiente com base no artigo de Nagelika Krebs, isso não significa que segue-se o seu posicionamento quanto à temática. Complementar-se-á as explanações de Angelika Krebs com outros posicionamentos teóricos. 36 KREBS, Angelika. Naturethik im Überblick. In: KREBS, Angelika. (hrsg.) Naturethik: grundtexte der gegenwärtigen tier – und ökoethischen Diskussion. Frankfurt: 1997. p. 337-379. Dieter Birnbacher, Natürlichkeit. Berlin: De Gruyter, 2006. p. 65-98, igualmente procura tecer comentários quanto aos motivos de proteção à natureza e diagnostica uma série de tendências da ética. Vide, ainda, GÓMES-HERAS, José Maria G. El problema de una ética del “medio ambiente”. In: GÓMES-HERAS, José Maria G. (coord.) Ética del Medio Ambiente: problema, perspectiva, historia. p. 17-70. e MEYER, Kirsten. Der Wert der Natur. 37 Tais questionamentos, e outras de conteúdo similar, de acordo com GÓMES-HERAS, José Maria G. (coord.) Ética del Medio Ambiente: problema, perspectiva, historia. p. 27-29, fazem parte do assim denominado “problema da ética do meio ambiente”. Afirma o autor que alguns traços da civilização técnico-industrial atual, tais como o interesse por energias renováveis, a reelaboração da biomassa, a reciclagem de materiais, dentre outros, denotam claramente uma mudança na percepção do problema ecológico e anunciam uma nova fase das sociedades industriais. 35 139 Artigo 6 A segunda diz respeito à possibilidade de uma dupla perspectiva da ética: a eudamonística e a filosofia moral. Esta analisa a ação moral entre os homens, aquela, o conteúdo da boa vida do homem. Adicionada a problemática ambiental a essas duas posições, há duas questões, ou dois pontos de partida. Primeiramente, sob o ponto de vista da ética eudamonística, questiona-se em qual medida a natureza contribui para a boa vida do homem; e em segundo lugar, sob a perspectiva da filosofia moral, se a ação moral com relação à natureza considera o interesse dos próprios homens ou o interesse da natureza. Da perspectiva da filosofia moral surgem, portanto, duas posições: ou se aceita a concepção antropocêntrica – segundo a qual o homem descreve o mundo sob a perspectiva de seus interesses e atribui um valor instrumental à natureza, como recurso – ou a ecocêntrica (também usualmente denominada fisiocêntrica), a qual, resumidamente, concede um valor próprio à natureza (natureza como fim em si mesma) e busca ultrapassar as fronteiras da visão antropocêntrica 38, fazendo emergir uma nova ética, a ética da natureza. Krebs aponta no viés antropocêntrico uma subdivisão quanto à conotação moral ou epistêmica dada. O antropocentrismo moral questiona quem são os detentores de valores morais, enquanto o antropocentrismo epistêmico parte do pressuposto de o homem captar ou descrever o mundo tão somente sob a sua perspectiva, a que leva em consideração os interesses dos homens. A descrição das coisas como boas ou ruins, sob a perspectiva exclusivamente humana, faz parte do antropocentrismo epistêmico valorativo. Em contrapartida, há o fisiocentrismo epistêmico, para o qual existem valores na própria natureza, independentemente ou não da presença humana.39 Tecidas tais considerações, passar-se-á à descrição das principais correntes tão somente da filosofia moral, com a finalidade de permitir uma possível reflexão acerca de qual tendência prepondera no ordenamento jurídico ambiental brasileiro. 4.1 Fisiocentrismos Os fisiocentristas buscam justificar a proteção da natureza de forma a afirmar que dado à naturalidade um valor em si, a natureza é passível de valoração própria, independente de interesses econômicos, estéticos ou científicos. a) Argumento patocêntrico: Nessa corrente, leva-se em consideração os seres sensíveis. Atribui-se a sensibilidade auferida aos homens a determinados animais e plantas, que são respeitados devido ao valor moral que lhes Vide Cap. 6 de Kirsten Mayer, Der eigenwert der Natur. In: Der Wert der Natur, p. 74-91. De acordo com KREBS, Angelika. Naturethik im Überblick. In: KREBS, Angelika. (hrsg.) Naturethik: grundtexte der gegenwärtigen tier – und ökoethischen Diskussion. Frankfurt: 1997. p. 342. 38 39 140 Apontamentos sobre a Ética Ambiental como Fundamento do Direito Ambiental fora concedido. A sensibilidade é o pressuposto para o valor moral, diferenciando-se da percepção. Trata-se de uma qualidade subjetiva da vida, sendo possível afirmar que as sensações positivas contribuem para uma boa vida, enquanto as negativas, para a degradação tanto da vida dos homens, bem como a dos animais, que possuem um interesse – em sentido amplo – em uma boa vida. Ao revidar o especiecismo, o patocentrismo advoga a inclusão dos animais na consideração do agir moral e pressupõe que não haveria um motivo moral para que os homens sejam considerados seres superiores.40 b) Argumento teleológico: O argumento teleológico leva em consideração os fins, dado que a busca de finalidades é objeto de valor moral. Há variações de finalidades, a depender de se tratar dos fins de todas as espécies vivas – como a busca da auto-sobrevivência (variante biocêntrica) ou até mesmo de um ecossistema (variante radical fisiocêntrica individualista) ou da terra como um todo – busca da biodiversidade e harmonia (variante radical fisiocêntrica holística). Krebs aponta que a principal crítica a essa vertente constitui-se no sentido dúbio de finalidade ou fins. Há um conceito de finalidade prática (que seria levada em consideração pela moral e pode orientar ações) e outro de finalidade funcional (sem valor moral, por serem acontecimentos por si sós). c) Argumento “natura-sequi”: Para essa corrente, a existência de valores na Terra é independente da presença dos homens e há que se transcender a perspectiva humana valorativa. Contrários são também aos argumentos anteriormente tecidos (sensibilidade, finalidade ou vida). Sob essa perspectiva, a natureza é constituída por valores absolutos. Desfavoráveis ao antropocentrismo epistêmico valorativo, para o qual o homem concebe e valora o mundo em sua visão (sendo, portanto, os valores relativos), são os valores, para essa corrente, absolutos, já que pré-constituídos à existência do homem no mundo.41 Albert Schweitzer defende o argumento do respeito pela vida. Há uma ampliação do respeito necessário à vida dos homens para toda a vida na natureza, de forma análoga ao argumento patocêntrico, todavia considerando a ação moral como aquela que leva em consideração não a subjetiva boa vida, mas a vida em si mesma. Vide Naturethik im Überblick. In: KREBS, Angelika. (hrsg.) Naturethik: grundtexte der gegenwärtigen tier – und ökoethischen Diskussion. Frankfurt: 1997. p. 355-357. GÓMES-HERAS, José Maria G. (coord.) Ética del Medio Ambiente: problema, perspectiva, historia. p. 26-27 e 47-48, ao realizar sua tipologia acerca do posicionamento e pontos de vista da ética ambiental, entende que A. Schweitzer, em seu projeto de “ética com respeito à vida”, cria a ética biocentrista, a partir do princípio de que os homens são vida que querem viver com outros seres viventes que querem viver. Assim, a partir de pressupostos não provenientes da biologia ou das ciências ecológicas, mas carregada de religiosidade oriental, Schweitzer proclama o valor da vida como absoluto, não admitindo classes ou estratificações. Vide, a respeito, Schweitzer, Albert. Kultur und Ethik. München: 1960. 41 Trata-se do argumento apresentado por Hans Jonas, Klaus Michael Meyer-Abich, Holmes Rolston e Vittorio Hösle, cf. Krebs, Angelika. Krebs, Naturethik im Überblick. In: KREBS, Angelika. (hrsg.) Naturethik: grundtexte der gegenwärtigen tier – und ökoethischen Diskussion. Frankfurt: 1997. p. 358-360. 40 141 Artigo 6 d) Argumento holístico:42 Na perspectiva holística, há uma crítica à concepção de que o homem seja parte externa à Natureza, em confronto a esta, já que ele é parte do sistema natural e a sua “auto-realização está de mãos dadas à auto-realização do todo”43 , portanto, não dependente do uso exclusivo dos recursos naturais. Pelo fato de realizar uma assertiva um tanto quanto aberta e passível de variadas interpretações (a que afirma ser o homem parte da natureza), há críticas justamente referentes a esse plurisignificado. Com efeito, há inúmeras similitudes e dependências entre o homem e a natureza, mas tal fato não leva em consideração a criação de identidade ontológica. Ademais, falar de uma harmonia eudamonística é uma contradição, pois o homem destrói a natureza para o seu bem–estar. Por fim, defender que o homem é parte da natureza significa dizer que sua sobrevivência depende da mesma, mas esse argumento, por sua vez, faz parte da concepção antropocêntrica.O holismo busca, como as anteriores posições fisiocêntricas, conceder um valor próprio à natureza. Dessa forma, não se está a afirmar que todos os seres são iguais, mas em afirmar que não podem ser contrapostos. O holismo contrapõe-se diretamente à dicotomia homem versus natureza e lembra que há propriedades comuns a ambos, uma idéia de unidade de essência. Ocorre que haveria certa ingenuidade em acreditar na harmonia entre a natureza e o homem, pelos motivos já anteriormente expostos. 4.2 Antropocentrismos Compreendidas como parte da concepção da moral segundo a qual somente o homem é capaz de realizar atos morais e somente ele pode ser sujeito de direitos, obrigações e responsabilidades. Sua legitimidade, garantida pela razão e poder de liberdade de vontade (próprias à espécie humana), também se expressa em fenômenos culturais, tais como a linguagem, a liberdade de decisão, o conhecimento científico, o desenvolvimento e o uso da técnica, a reciprocidade de deveres e obrigações e, principalmente, mas não exclusivamente, a habilidade em perceber valores morais nos comportamentos alheios e adequar a própria conduta a um determinado tipo de racionalidade. Por conseqüência, somente o homem será sujeito moral44 . Passar-se-á Nesta perspectiva encontra-se os partidários do “deep ecology”, eco-feminismo e land ethic. Tradução livre de Krebs, Naturethik im Überblick. In: KREBS, Angelika. (hrsg.) Naturethik: grundtexte der gegenwärtigen tier – und ökoethischen Diskussion. Frankfurt: 1997. p. 362: “Die Selbstverwirklichung des Menschen gehe Hand in Hand mit der Selbstverwirklichung des Ganzen.” 44 Descrição do antropocentrismo de acordo com GÓMES-HERAS, José Maria G. El problema de una ética del “medio ambiente”. In: GÓMES-HERAS, José Maria G. (coord.) Ética del Medio Ambiente: problema, perspectiva, historia. p. 45. 42 43 142 Apontamentos sobre a Ética Ambiental como Fundamento do Direito Ambiental à análise das diversas vertentes do antropocentrismo, ou melhor, dos argumentos que fundamentam as diversas vertentes desse viés filosófico. a) Argumento das necessidades básicas: Grosso modo, esse argumento possui dois fundamentos: o interesse próprio e a consideração moral à boa vida de outros homens, incluindo as futuras gerações. Como os homens necessitam de alimentos, moradia e saúde, e como os pressupostos para essas necessidades se encontram na natureza, estando ela em perigo, automaticamente estarão os homens em um estado de vulnerabilidade. A partir daí fundamenta-se a proteção e a prevenção aos riscos. Krebs apresenta motivos pelos quais esse argumento não obteve um êxito absoluto: em primeiro lugar, faltam aos homens instintos biológicos, que lhes confira capacidade de perceber o perigo, sendo essa lacuna compensável com a racionalidade. Em segundo lugar, grande parte do conhecimento acerca das causas do perigo deriva de dados estatísticos, e não de um conhecimento qualitativo. Ainda, outra dificuldade está na limitação de nossos conhecimentos quanto às conseqüências tecnológicas. Ao decidir “sob incertezas” surge o perigo de decisão irracional. O argumento das necessidades básicas é uma das vertentes da posição utilitarista. Inclusive as decisões sob risco são direcionadas ao bem-estar dos homens, mesmo que não haja certeza quanto aos seus efeitos. Ademais, a omissão, por si só, faz gerar situações de risco. Ou seja, mesmo que aparentemente algumas espécies não sejam valoradas como importantes de modo imediato aos homens, elas o podem ser, futuramente. Esta incerteza quanto ao uso futuro de uma espécie ou ecossistema justifica uma ação preventiva à destruição do potencial de uso dos mesmos. “Se não fazemos nada contra a perda de uma espécie, então estaremos aumentando o risco de perder essa espécie, que pode ser valiosa”45. b) Argumento estético: O argumento estético é analisado sob a perspectiva de que a natureza é fonte de sensações físicas agradáveis46, sendo, nesse caso, o homem responsável pela minoração delas por meio da destruição acelerada do meio ambiente. Um segundo fundamento – na mesma linha – prescreve a proteção ao meio ambiente, sob a circunstância de 45 46 Cf. Meyer, Kirsten. Der Wert der Natur. p. 56. (Tradução livre). Argumento aistésico, experiência passiva, sendo a natureza recurso estético. 143 Artigo 6 que a contemplação – não direcionada funcionalmente – da natureza sublime e bela contribui para uma boa vida humana (argumento estético propriamente dito), sendo essa uma opção universal.47,48 5 Argumentos éticos sob a perspectiva do Estado Ambiental: conclusões Após realizar a subdivisão dos principais posicionamentos sobre a ética ambiental, conclui Krebs que os extremos – posição antropocêntrica ou fisiocêntrica – acabam por se configurar como vieses não atrativos, já que entre ambos há um “interessante território de um antropocentrismo eudamonístico rico e não reduzido e de um fisiocentrismo epistêmico-antropocêntrico”49. Com isso, ao se tomar apenas uma posição como correta, estar-se-á agindo de forma ingênua ao perseguir um posicionamento unilateral, pois somente diante de ambas as posições será possível compreender e justificar a ampla ação humana e os sentimentos em relação à natureza. Quanto ao valor da natureza, Krebs constata ser ela essencial às atividades vitais do homem, para o seu bem-estar físico e intelectual, para o seu caráter moral. Mas a natureza também possui seu valor eudamonístico no sentido de possuir um valor estético próprio, valor sacro, correspondendo os valores morais à vida dos animais sensíveis ou capazes de agir. Tratar de valores absolutos não faz sentido, já que, de acordo com a autora, nada no mundo é assim valorado50. Não seria escandaloso analisar a relação com a natureza sob o prisma de uma boa vida humana no mundo de hoje ou no futuro. E a função do Direito, em conjunto com a economia e política, é justamente possibilitar a melhora do padrão de vida, seguindo-se de uma exigência moral51. Vide KREBS, Angelika. Naturethik im Überblick. In: KREBS, Angelika. (hrsg.) Naturethik: grundtexte der gegenwärtigen tier – und ökoethischen Diskussion. Frankfurt: 1997. p. 369. 48 Kirsten Meyer (Der Wert der Natur. p. 48-51), aponta que o argumento estético que fundamenta a proteção da natureza pode ser encontrado no debate da filosofia contemporânea com Carlson, Böhme e Seel. Ademais, Gödde encontra na beleza da paisagem um fundamento para a proteção da flora e vegetação. E Scherzingen mostra a alegria, o prazer decorrente da beleza, da biodiversidade, da pureza e das grandiosas paisagens naturais. Bierhals (1984, p. 118), citado por Meyer (Op.cit., p. 50) questiona-se sobre os argumentos pelos quais os homens se convencem a proteger à natureza. Assim, questiona se são pensamentos voltados ao ecossistema, à estabilidade, a funções desempenhadas, alertas de extinção, usos econômicos, potencial genético ou se sequer são esses os motivos, mas sim uma percepção presente em todos os sentidos. Uma sensação indescritível que sempre se repete quando tomamos em consideração o selvagem, o original, o não conquistado ou feito pelo homem. Afirma ainda Bierhals que os argumentos utilizados para a proteção da natureza não são aqueles que para nós são os mais importantes. 49 KREBS, Angelika. Naturethik im Überblick. In: KREBS, Angelika. (hrsg.) Naturethik: grundtexte der gegenwärtigen tier – und ökoethischen Diskussion. Frankfurt: 1997. p. 378: “Denn zwischen den beiden unattraktiven Extremen, dem instrumentell verkürzten Anthropozentrismus auf der einen Seite und dem zum Absoluten aufgeblähten Physiozentrismus auf der anderen Seite, liegt das wirklich interessante Terrain des unverkürzten, eudämonistisch reichen Anthropozentrismus und des epistemisch-anthropozentrismen Physiozentrismus.” 50 KREBS, Angelika. Naturethik im Überblick. In: KREBS, Angelika. (hrsg.) Naturethik: grundtexte der gegenwärtigen tier – und ökoethischen Diskussion. Frankfurt: 1997. pp. 378-379. 51 KREBS, Angelika. Naturethik im Überblick. In: KREBS, Angelika. (hrsg.) Naturethik: grundtexte der gegenwärtigen tier – und ökoethischen Diskussion. Frankfurt: 1997. p. 379. 47 144 Apontamentos sobre a Ética Ambiental como Fundamento do Direito Ambiental Defender um desses posicionamentos, portanto, não parece ser um ato razoável, uma vez que a transição, a linha tênue entre um e outro, é também um campo um tanto quanto “movediço”. Da análise das normas ambientais vigentes, pode-se identificar em certos momentos um discurso protecionista voltado a um argumento holístico, como a preservação de uma espécie. Todavia, a própria Constituição Federal dispõe que o meio ambiente é um meio ao alcance de uma vida sadia e digna, finalidade esta direcionada a interesses humanos. A criação legal de áreas de proteção ambiental, por sua vez, ao restringirem o uso do solo a determinadas atividades, evitam a poluição de mananciais para suprir interesses de moradores locais. Gómes-Heras52 observa que a proliferação de normativas tendentes a proteger espaços naturais ou espécies naturais em vias de extinção implica no reconhecimento fático dos direitos das coisas protegidas. Assim, poder-se-ia inclusive, nesse caso, tratar de “entidades naturais de direito” para referir-se a espaços protegidos, como um parque natural. As sociedades com consciência ecológica desenvolvida se comportam nesta hipótese “como se” as coisas protegidas tivessem direitos, que devem por sua vez, ser tutelados. Persiste a questão acerca de a tutela ser exigida em razão do valor “em si” da coisa, independentemente da intervenção humana, ou do “valor de utilidade” das mesmas, em prol do bem-estar e da felicidade dos homens. 6 Referências BECK, Ulrich. Políticas ecológicas en la edad del riesgo: antídotos. La irresponsabilidad organizada. Barcelona: El Roure Editorial, 1998. p. 74. BIRNBACHER, Dieter. Sind wir für die Natur verantwortlich? p. 103. GÓMES-HERAS, José Maria G. El problema de una ética del “medio ambiente”. In: GÓMES-HERAS, José Maria G. (coord.). Ética del Medio Ambiente: problema, perspectiva, historia., p. 53. . Presentación. In: GÓMES-HERAS, José Maria G. Ética del Medio Ambiente: problema, perspectiva, historia. p. 9-10. HÖFFE, Otfried. O que é justiça? p. 1-37. GÓMES-HERAS, José Maria G. El problema de una ética del “medio ambiente”. In: GÓMES-HERAS, José Maria G. (coord.) Ética del Medio Ambiente: problema, perspectiva, historia. p. 53. 52 145 Artigo 6 . Gerechtigkeit. In: HÖFFE, Otfried; LIEBIG, Stefan; VON MAYDELL, Bernd. Zukunftsorientierte Nutzung ländlicher Räume – LandInnovation. Fachgespräch Gerechtigkeit. p. 7-8. . Moral als Preis der Moderne. p. 115. KREBS, Angelika. (hrsg.) Naturethik: Grundtexte der gegenwärtigen tier – und ökoethischen Diskussion. Frankfurt: 1997. p. 339. MEYER, Kirsten. Der Wert der Natur. Paderborn: Mentis, 2003. p. 23-41. SINGER, Peter. Animal Liberation. In: New York Review of Books, 1973. 146 A Sucessão do Companheiro A sucessão do companheiro Maritza Franklin Mendes de Andrade Mestranda em Direito Civil pela PUC-SP, professora da UNIP, advogada em São José dos Campos. Marcelo Kajiura Pereira Pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pelo INPG, advogado em São José dos Campos. 1 Evolução histórica dos direitos sucessórios do companheiro até o código civil de 2002. 2 A sucessão do companheiro no Código Civil de 2002. 2.1 Artigo 1.790 do Código Civil – caput. 2.2 Artigo 1.790 do Código Civel – inciso I. 2.3 Artigo 1.790 do Código Civil – inciso II. 2.4 Artigo 1.790 do Código Civil – hipótese de filiação híbrida. 2.5 Artigo 1.790 do Código Civil – incisos III e IV. 2.6 Constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil. 2.7 Direitos reais: usufruto e direito real de habitação. 2.8 Artigo 1.830 do Código Civil. 3 Conclusão. 4 Referências. Resumo O objetivo do presente trabalho é apresentar uma abordagem crítica das previsões do Código Civil de 2002 relativas à sucessão do companheiro, em especial do artigo 1.790, que restringe essa sucessão aos bens adquiridos onerosamente durante a vigência da união estável, afastando a participação do companheiro supérstite quanto aos bens particulares do companheiro falecido. Essa regulamentação está prevista de forma diversa da efetuada nas leis anteriores ao Código Civil e, ainda, de forma diversa da atual sucessão do cônjuge, objeto do artigo 1.829 do Código Civil. O assunto é de extrema relevância, pois a união estável está cada vez mais presente em nossa sociedade, tendo sido elevada à condição de entidade familiar constitucionalmente protegida desde a Carta Magna de 1988, especificamente no artigo 226, §3.º, o que leva parte da doutrina 147 Artigo 7 e das decisões jurisprudenciais a defender a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, com a aplicação das mesmas regras previstas para o cônjuge, nos artigos 1.829 e seguintes, ao companheiro. Por outro lado, há relevante e considerável número de doutrinadores que, apesar de ressaltar a necessidade iminente de modificação da Lei, defendem a constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, dando-lhe, contudo, diversas formas de interpretação. Apresentar-se-á, após análise doutrinária e jurisprudencial, a interpretação que os autores consideram correta, efetuada sob a ótica do direito civil constitucional, perspectiva metodológica que propõe a releitura dos institutos do direito civil com base nos princípios constitucionais, que informam o ordenamento jurídico como um todo. Palavras-chave: Companheiro; Sucessões; Herdeiros Abstract The present study’s objective is to present a critical approach of forecasts of the 2002’s Civil Code relating to the succession of companions, in particular of Article 1.790, which restricts the succession to property purchased during the stable union, ruling out the participation of the surviving companion on the private property of deceased companion. This regulation is different from the laws made prior to the Civil Code, and also different from the current succession of spouse, subject to Article 1.829 of the Civil Code. The matter is of extreme importance as the stable union is increasingly present in our society, having been elevated to the condition of family entity constitutionally protected since the Magna Carta of 1988, specifically in Article 226, paragraph 3, which brings part of the doctrine and the decisions to defend the unconstitutionality of Article 1.790 of the Civil Code, in applying the same rules provided for the spouse, in articles 1.829 and below, to the companion. On the other hand, there are considerable number of relevant authors that, while emphasizing the need for imminent change of law, uphold the constitutionality of Article 1.790 of the Civil Code, giving it, however, various forms of interpretation. After jurisprudential analysis and also the analysis of doctrine, the interpretation taken by the authors will be presented, from the perspective of constitutional civil law, which proposes the methodological perspective rereading of the institutes of civil law based on constitutional principles that inform the juridical ordain as a whole. Keywords: Companion; Succession; Heirs 1 Evolução histórica dos direitos sucessórios do companheiro até o código civil de 2002 A evolução do tratamento legislativo e jurisprudencial das relações concubinárias no Brasil é marcada por fases (1), iniciando-se pela total rejeição 148 A Sucessão do Companheiro do concubinato1, passando à aplicação do direito obrigacional a fim de evitar o enriquecimento ilícito de um dos concubinos2 , posteriormente atribuindo o legislador efeitos jurídicos ao concubinato puro, nas esferas assistencial, previdenciária e registral3 , e inserindo, por fim, a união estável na tutela constitucional. A Constituição da República, ao prever no artigo 226, § 3.º, a figura da união estável, expressou com todas as letras o seu caráter de entidade familiar, afastando por completo seu tratamento pelo direito das obrigações, outorgando-lhe especial proteção pelo Estado. Importante ressaltar que não houve plena equiparação entre casamento e união estável pela Constituição da República, já que, conforme aceito amplamente na doutrina, a referida norma constitucional não fez surgir direitos subjetivos diretamente exigíveis, mas vinculou o legislador “para efeito da proteção do Estado”, motivo pelo qual medidas protetoras, eventualmente adotadas pelo Estado em benefício da família, também deveriam proteger a união estável, o que não significava, contudo, que o companheiro teria situação jurídica totalmente equiparada à do homem ou da mulher casada(2), entendimento que se aplica ao direito sucessório, que até então não estava regulamentado para o companheiro, em legislação infraconstitucional. Muito clara, nesse ponto, é a distinção feita por Francisco José Cahali, que afirma haver equiparação plena entre união estável e casamento para efeito de proteção do Estado, motivo pelo qual, ressalta o referido autor: os efeitos externos da união estável, para o Estado e para a sociedade, são idênticos ao do casamento. Entretanto, para os efeitos internos da relação, especificamente quanto aos direitos e obrigações recíprocas entre os conviventes, em razão do silêncio da norma constitucional, não há como se aplicar as mesmas regras destinadas ao casamento, sendo imprescindível a edição de legislação própria e específica sobre o universo de efeitos pessoais e patrimoniais aos partícipes da relação.(3) Lembre-se que o Código Civil de 1916 previa somente o casamento como entidade familiar, e tratava apenas do concubinato impuro, em que ao menos uma das partes era casada, impondo sanções a esse tipo de convivência, como o impedimento de se fazer doações e testamento em favor da concubina por parte de seu parceiro casado (arts. 1.177 e 1.719, inciso III do CC/1916). 2 É nesse sentido a Súmula 380 do STF, ao prever que “comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”, visando a impedir o enriquecimento indevido de uma das partes, ressaltando-se que, inicialmente, esse esforço deveria ser comprovado por meio da participação direta na aquisição do patrimônio, mas posteriormente, passou a ser presumido, pela assistência recíproca, caracterizada como participação indireta. 3 Podem ser citados: Decreto-lei n.º 7.036/44, que confere à companheira a possibilidade de receber indenização em virtude da morte do companheiro por acidente de trabalho, o que foi afirmado também pela Súmula 35 do STF; os direitos previdenciários da companheira foram garantidos pela Lei n.º 4.297/63 e Decreto n.º 77.077/76, inclusive determinando a Súmula 159 do extinto TFR a divisão da pensão previdenciária entre a companheira e a esposa; ainda, a Lei n.º 6.015/73, no art. 57, §§ 2.º a 4.º, passou a permitir à companheira a adição do sobrenome do companheiro. 1 149 Artigo 7 Ainda, se a própria Constituição previu a facilitação da convolação da união estável em casamento, na parte final do § 3.º do artigo 226, resta evidente não serem idênticos os institutos, caso contrário, não haveria por que estimular a concretização do casamento. Esse estímulo da convolação da união estável em casamento decorre da própria insegurança gerada pela união estável, que raramente é regulamentada por um contrato entre as partes, e normalmente depende de provas fáticas, de testemunhas e análise subjetiva por parte do julgador, a quem caberá decidir quanto à caracterização ou não do instituto na hipótese singular levada ao Judiciário, ao contrário do casamento, que representa um dos atos mais solenes previstos no nosso ordenamento. O direito sucessório do companheiro foi previsto pela primeira vez na Lei n.º 8.971/94, especificamente no artigo 2 .º , passando a assegurar ao companheiro sobrevivente: (i) o usufruto de quarta parte dos bens do companheiro falecido se houvesse descendentes deste ou comuns; (ii) o usufruto de metade dos bens do falecido, se não houvesse filhos, mas apenas ascendentes do de cujus – sendo que tais usufrutos apenas se manteriam enquanto não fosse constituída nova união estável ou casamento; (iii) na ausência de descendentes e ascendentes, o direito à totalidade da herança. Além do direito ao usufruto e, na falta de descendentes e ascendentes, do direito à própria sucessão patrimonial do companheiro falecido, acima descritos, posteriormente, a Lei n.º 9.278/96 passou a prever em seu artigo 7 .º , parágrafo único, o direito real de habitação do companheiro sobrevivente, relativamente ao imóvel destinado à residência da família, enquanto vivesse e não constituísse nova união ou casamento. Por fim, em acréscimo aos direitos sucessórios acima analisados, na esteira da Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, já havia previsão expressa no artigo 3.º, da Lei n.º 8.971/94, do direito de meação – que não se confunde com herança – do companheiro sobrevivente quanto aos bens deixados pelo autor da herança que resultassem de atividade para a qual o sobrevivente houvesse colaborado, o que foi fortalecido pela posterior previsão do artigo 5.º, da Lei n.º 9.278/96, que inseriu presunção (relativa) da meação dos bens adquiridos a título oneroso durante a união estável, caracterizandoos como fruto do trabalho e da colaboração comum dos companheiros. Já na época em que entrou em vigor a Lei n.º 9.278/96, surgiram discussões acerca da manutenção ou revogação das previsões de direito sucessório da lei anterior, de n.º 8.971/94, prevalecendo o entendimento no sentido de que a lei posterior, publicada em 1996, não regulou a mesma matéria tratada na Lei de 1994, especificamente em seu artigo 2.º, trazendo, na verdade, regra de caráter especial, restrita ao direito sucessório de habitação (artigo 7 .º , parágrafo único), enquanto a Lei n.º 8.971/94 estabeleceu, de 150 A Sucessão do Companheiro forma ampla, os direitos sucessórios do companheiro, convivendo ambas as previsões concomitantemente. (4) Antes do Código Civil de 2002, portanto, o companheiro tinha direito: (i) à meação – o que não se confunde com herança – dos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, com a presunção relativa da colaboração comum; (ii) ao usufruto de parte – 1/4 ou 1/2 – do patrimônio do de cujus no caso de haver, respectivamente, descendente ou ascendente deste; (iii) direito real de habitação; (iv) direito à totalidade da herança, ou seja, todo o patrimônio do falecido, na hipótese de ausência de descendente ou ascendente, situação em que nada era transmitido aos demais parentes do de cujus. 2 A sucessão do companheiro no Código Civil de 2002 Atualmente, a união estável encontra-se definida no artigo 1.723 do Código Civil, que indica como elementos caracterizadores dessa entidade familiar a convivência pública, contínua e duradoura, entre um homem e uma mulher, com objetivo de constituir família. Aplicam-se a esse instituto os impedimentos do casamento previstos no artigo 1.521, salvo o do inciso VI, sendo possível a união estável se a pessoa casada estiver separada judicialmente ou de fato, conforme expressamente previsto no § 1.º do artigo 1.723. Já as causas suspensivas do casamento, elencadas no artigo 1.523, não se aplicam à união estável, conforme disposição expressa do artigo 1.723, § 2.º. O Código Civil prevê no artigo 1.725 que, inexistindo contrato entre os companheiros, aplicar-se-á às relações patrimoniais o regime da comunhão parcial de bens4. Nota-se, portanto, nítida modificação com relação à sistemática adotada pelo artigo 5.º da Lei n.º 9.278/96, pois ao aplicar-se o regime da comunhão parcial de bens ficam incorporados na meação do companheiro não apenas os bens adquiridos a título oneroso durante a união estável, como também os adquiridos por fato eventual e os frutos dos bens particulares de cada companheiro, conforme previsto no artigo 1.660 do Código Civil. Já a expressão “no que couber”, prevista no artigo 1.725, demonstra que apesar de serem aplicadas às relações patrimoniais as regras da comunhão parcial de bens, fica afastada, por exemplo, a exigência de autorização para venda de imóveis por um dos conviventes ao outro, prevista para os cônjuges no artigo 1.647 do Código Civil. E ainda, diversamente do que se aplica ao casamento, perante o Cartório do Registro de Imóveis não basta a comprovação da união estável para se transferir a O Enunciado 115, aprovado na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF), prevê, quanto ao art. 1.725, que “há presunção de comunhão de aquestos na constância da união extramatrimonial mantida entre os companheiros, sendo desnecessária a prova do esforço comum para se verificar a comunhão dos bens”. 4 151 Artigo 7 propriedade ou influenciar a titularidade nele indicada, sendo inviável a regularização do acervo no Registro de Imóveis, com eficácia erga omnes, pela simples afirmação da existência de união estável. (5) Especificamente quanto aos direitos sucessórios, houve uma significativa mudança na sucessão do companheiro com a entrada em vigor do Código Civil de 20025, que passou a ser regulamentada no artigo 1.790, abaixo transcrito: Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei foi atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a 1/3 (um terço) da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. Nesse ponto, antes de se adentrar à análise específica do artigo em apreço, revela-se essencial destacar a importância da interpretação, que nas palavras de Gustavo Tepedino é “o grande desafio do jurista de hoje, consistente na necessidade de harmonização de fontes normativas a partir dos valores e princípios constitucionais”, complementando o renomado jurista carioca que: o novo Código Civil deve contribuir para tal esforço hermenêutico – que em última análise significa abertura do sistema –, não devendo o intérprete deixar-se levar por eventual sedução de nele imaginar um microclima de conceitos e liberdades patrimoniais descomprometidas com a legalidade constitucional. (9) Ressalte-se que se revela totalmente ultrapassado o esquema da subsunção na aplicação da lei, em que a premissa maior é o texto normativo e a premissa menor o fato e a conseqüência jurídica, ficando o intérprete adstrito a esta atividade mecânica. Nos dizeres do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Roberto Grau, “a Existe acirrada polêmica quanto à data de início da vigência do Código Civil (Lei n.º 10.406, publicada no D.O.U. de 11.01.02), que entendemos ter ocorrido em 12.01.2003, tendo em vista o disposto no art. 2.044, prevendo vacatio legis de um ano, interpretado de acordo com o art. 8.º, § 1.º da LC n. 95/98, com a redação dada pela LC n.º 107/2001, que em sua parte final determina o início da vigência no dia subseqüente à consumação integral do prazo, e com o art. 3.º da Lei n.º 810/49, que define a contagem de ano, considerado como período de doze meses contados do início ao dia e mês correspondente do ano seguinte. Portanto, se o prazo de um ano é contado até 11.01.2003, o início da vigência da Lei é no dia seguinte, 12.01.2003. Nesse sentido, o entendimento de Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery (6); Antonio Cláudio da Costa Machado, Juarez de Oliveira e Zacarias Barreto (7); e Zeno Veloso (8). 5 152 A Sucessão do Companheiro interpretação do direito envolve não apenas a declaração do sentido veiculado pelo texto normativo, mas a constituição da norma, a partir do texto e dos fatos (...) é atividade constitutiva e não meramente declaratória”6 . (10) E a simples análise do artigo 1.790 do Código Civil, acima transcrito, permite a conclusão de que a nova previsão regula a sucessão do companheiro de forma totalmente diversa da previsão anterior ao Código Civil de 2002 – objeto do tópico anterior do presente trabalho –, como também de forma diversa da atual sucessão do cônjuge, levando a determinadas situações anacrônicas e injustas, como aquela prevista no inciso III, devendo o dispositivo legal ser interpretado de forma construtiva e sistemática, a partir de outras previsões do Código Civil e dos preceitos constitucionais, como se passa a expor. A primeira crítica ao artigo 1.790, levantada de forma unânime pela doutrina, é relativa à sua localização no Código, e nesse ponto cabe lembrar que o referido dispositivo foi introduzido pela Emenda n.º 358 ao Projeto de Código Civil, de autoria do Senador Nélson Carneiro, inspirada no artigo 668, do Projeto Orlando Gomes, e prévia à Constituição da República (11), representando um atraso se comparado às regras mais igualitárias ao casamento introduzidas pelas Leis n.º 8.971/94 e 9.278/96. Referido artigo encontra-se nitidamente mal posicionado, pois trata de regra de vocação hereditária, e portanto deveria estar no Capítulo I, do Título II, do Livro V, e não no Capítulo I, do Título I, do Livro V, que prevê as disposições gerais da sucessão.7 Apesar da crítica, mesmo não estando a sucessão do companheiro na ordem de vocação hereditária, o artigo 1.790 interfere diretamente naquela ordem, motivo pelo qual a sucessão legítima se faz pela conjunção dessas previsões (15). Afirma o autor que “se recusa a concepção da interpretação como mera subsunção (v. Engisch 1967:57 e ss.). Pois a interpretação do direito não se reduz a exercício de comprovação de que, em determinada situação de fato, efetivamente se dão as condições de uma situação jurídica (um dever-ser). Nesse mero exercício não há absolutamente nenhuma criação de direito”. Especificamente quanto à subsunção, afirma referido autor, citando Canosa Usera, que esta “implica apreciar-se como, da generalidade de um dever-ser, de suas ‘implicações gerais’, são obtidas as proposições concretas desse dever-ser. Ultimar essa operação é aplicar o direito; sua mecânica está fundada em um silogismo: a premissa maior é o texto normativo, a premissa menor são os pressupostos de fato e a conseqüência jurídica” (p. 67). E conclui que seu ponto de partida encontra-se na afirmação de que “a interpretação do direito não é uma atividade de conhecimento, mas sim constitutiva, portanto decisional, embora não discricionária” (p. 62). 7 Para José Luiz Gavião de Almeida, “o normal era que tratasse da companheira na sucessão legítima, quando regulasse a ordem de vocação hereditária. Talvez ainda por preconceito contra a inclusão da companheira entre os herdeiros, preferiu regular a matéria no capítulo referente às disposições gerais sobre a sucessão” (12). Ainda, no sentido do mau posicionamento do referido artigo, vide Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (13) e Zeno Veloso (14). 6 153 Artigo 7 Também é objeto de severas críticas a previsão do inciso III do artigo 1.790, pois, enquanto na vigência das Leis anteriores, o companheiro, na ausência de ascendentes e descendentes, herdava sozinho todo o patrimônio do falecido sem a concorrência com os parentes colaterais do de cujus, a partir do Código Civil de 2002, caso se adote uma interpretação puramente literal, o companheiro concorrerá com esses parentes, tendo direito a apenas 1/3 (um terço) da herança, que se restringe ao patrimônio adquirido onerosamente durante a união estável, o que representa um retrocesso e se distancia do previsto ao cônjuge herdeiro que, em situação semelhante, herda a totalidade da herança (artigo 1.829, inciso III). Ainda não há qualquer previsão do companheiro como herdeiro necessário, ao contrário do cônjuge, cuja condição de herdeiro necessário, introduzida pelo Código Civil de 2002, está expressamente prevista no artigo 1.845, juntamente com descendentes e ascendentes. Contudo, apesar dessas críticas, não se pode negar o avanço que representou a nova previsão de concorrência do companheiro com os descendentes ou ascendentes do falecido. Isso porque, o companheiro que, anteriormente, herdava (todo o patrimônio) apenas na ausência de descendentes ou ascendentes do companheiro falecido, agora passou a ter direito, quanto aos bens adquiridos onerosamente na constância da união, à denominada sucessão concorrente, herdando conjuntamente com descendentes ou ascendentes do falecido, nas proporções previstas nos incisos do artigo 1.790, o que, sem dúvida, foi um avanço em favor do companheiro. Assim, após abordar de forma genérica as críticas e, posteriormente, o avanço que o novo artigo 1.790 representou para a sucessão do companheiro, passa-se à análise específica das disposições do referido artigo, que prevê conjuntamente os critérios de convocação dos herdeiros e de distribuição da herança, ao contrário da sucessão do cônjuge, cujos critérios de convocação e de distribuição estão regulados em normas diversas, facilitando a aplicação da lei. 2.1 Artigo 1.790 do Código Civil – caput O caput do artigo 1.790 modificou por completo a sucessão do companheiro porque passou a limitá-la aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, não importando, ressalte-se, o regime de bens adotado pelos companheiros. Dessa feita, na hipótese de inexistência de pacto de convivência em união estável prevendo regime de bens diverso, aplicar-se-á o regime da comunhão parcial, conforme previsto no artigo 1.725, ficando incorporados na meação do companheiro não apenas os bens adquiridos a título oneroso durante a união estável, como também, por exemplo, os adquiridos por fato eventual (inciso II), por doação, herança ou legado 154 A Sucessão do Companheiro em favor de ambos (inciso III), e os frutos dos bens particulares de cada companheiro (inciso V), conforme previsto no artigo 1.660 do Código Civil. Contudo, apesar de ser meeiro desses bens, o companheiro sobrevivente somente herdará da meação do falecido os bens adquiridos onerosamente durante a união estável. Não se aplica, portanto, a lógica de que o companheiro terá direito à herança sobre o que também tiver meação, já que, nas hipóteses dos bens descritos nos incisos do artigo 1.660, o mesmo apenas terá meação, mas não herdará, já que não foram adquiridos a título oneroso. E quanto às uniões estáveis reguladas por pactos prevendo regimes de bens diversos do legal, até mesmo mistos (mistura de dois ou mais regimes), a regra será a mesma, pois independentemente de haver meação entre os companheiros, o sobrevivente terá direito à herança quanto aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável8, lembrando-se que a previsão do artigo 1.790 é de caráter cogente e não pode ser afastada pelas partes no pacto de convivência em união estável, prevendo outra forma de sucessão, nem mesmo por meio de prévia renúncia à herança, o que representaria pacta corvina, proibido expressamente pelo artigo 426 do Código Civil. O que é possível, por não haver previsão de o companheiro ser herdeiro necessário, é a diversa destinação da herança pelo falecido, por meio de testamento, excluindo o companheiro da herança.9 Quanto aos bens adquiridos em sub-rogação de bens anteriores à união estável ou de bens adquiridos não onerosamente, não serão meados nem herdados pelo companheiro, pois não representam qualquer acréscimo real ao patrimônio, mas apenas a substituição de outros bens excluídos da sucessão do companheiro. Nesse sentido, Agravo de Instrumento n.º 70012256038, TJ/RS, 7.ª Câm. Cível, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. em 24.08.2005, V. U. 9 Interessante fazer referência ao similar entendimento de Francisco Cahali (16), em sua obra clássica sobre pacto de convivência em união estável, afirmando que: “a única forma para se excluir o convivente da sucessão, como assim o é para qualquer outro herdeiro, é através de disposição de última vontade, rejeitando-se, para essa finalidade, a sua realização por contrato de convivência”. E após citar o art. 426 do Código Civil, prevê referido autor que “o direito hereditário, por parte de seu titular, só passa a estar disponível, para exercício ou mesmo negociação em favor de terceiros, após o falecimento do autor da herança; até então, este direito à sucessão representa expectativa de direito sobre a qual há expressa vedação à livre disposição pelo interessado em contratos ou mesmo por atos unilaterais. Daí, também, afastar a possibilidade de ‘renúncia’ da herança em contrato de convivência”. Apesar de se concordar com o entendimento de que o companheiro, diversamente do cônjuge, não é herdeiro necessário, o que é defendido, entre outros, por Eduardo de Oliveira Leite (17), é importante fazer referência ao entendimento diverso, no sentido de aplicar ao companheiro a regra do art. 1.845 do Código Civil, com fulcro no art. 1.850 do Código Civil, c/c arts. 1.º, inciso III e 226, §§ 3.º e 8.º da CF, tema abordado por Ana Luisa Maia Nevares (18). Ainda, cita-se o seguinte enunciado do I Encontro dos Juízes de Família do Interior do Estado de São Paulo, aprovado em novembro de 2006: “Enunciado 51. O companheiro sobrevivente, não mencionado nos arts. 1.845 e 1.850 do Código Civil, é herdeiro necessário, seja porque não pode ser tratado diferentemente do cônjuge, seja porque, na concorrência com descendentes e ascendentes, herda necessariamente, sendo incongruente que, tornando-se o único herdeiro, possa ficar desprotegido.” 8 155 Artigo 7 Verifica-se, portanto, que o primeiro passo para a aplicação do artigo 1.790 é a identificação da parte do patrimônio que pode ser herdada pelo companheiro, já que esse dispositivo incidirá, em princípio, apenas quanto à massa de bens adquiridos onerosamente durante a união estável, aplicando-se à massa dos outros bens (doação, herança, fato eventual, adquirido onerosamente antes da união estável etc.), o artigo 1.829, com a ordem de vocação hereditária. Identificado o patrimônio, passa-se à análise dos critérios de convocação e de distribuição, elencados nos incisos do artigo 1.790. 2.2 Artigo 1.790 do Código Civil – inciso I O inciso I, do artigo 1.790, é claro no sentido de que, caso o companheiro sobrevivente concorra com filhos comuns, ou seja, filhos dos companheiros falecido e sobrevivente, deverá receber o mesmo valor que couber a cada um dos filhos. Nesse ponto é importante esclarecer que, embora no dispositivo conste “filhos” comuns, na verdade, a previsão versa sobre a concorrência do companheiro sobrevivente com descendentes comuns.10 O cálculo é realizado por meio da divisão da herança (lembre-se, os bens adquiridos onerosamente durante a união estável) em partes iguais, considerando os descendentes e o companheiro sobrevivente. Esse, portanto, receberá quota idêntica à recebida por cabeça pelos descendentes comuns, não se aplicando ao companheiro a regra do artigo 1.832, parte final, que reserva ao cônjuge, no mínimo, o quinhão de um quarto da herança caso concorra apenas com descendentes comuns. Dessa feita, o legislador deu tratamento privilegiado ao companheiro sobrevivente quando concorrer com descendentes comuns dele com o falecido, situação em que receberá quantia igual à recebida pelo descendente (19), ao passo que na concorrência com descendentes apenas do falecido, regulada no inciso II, do artigo em estudo, receberá metade do que couber a um descendente, conforme será adiante explanado. 2.3 Artigo 1.790 do Código Civil – inciso II O inciso II do artigo 1.790 regulamenta a concorrência do companheiro sobrevivente com descendentes exclusivos do companheiro falecido (autor da herança), devendo ser interpretado no sentido de que a quota do companheiro sobrevivente será equivalente à metade da que couber a um descendente, afastando-se a interpretação Neste sentido é o Enunciado 266 da III Jornada do CJF, de que “aplica-se o inciso I do art. 1.790 também na hipótese de concorrência do companheiro sobrevivente com outros descendentes comuns, e não apenas na concorrência com filhos comuns”. 10 156 A Sucessão do Companheiro literal de que caberia ao companheiro a metade do que coubesse a cada herdeiro, o que levaria a uma quota invariável de 1/3 (um terço) do total da herança ao companheiro. (20) Os incisos I e II, do artigo 1.790, do Código Civil, isoladamente, não são acometidos de qualquer inconstitucionalidade, pois somente dão tratamentos diferentes a situações diversas, quais sejam, a concorrência do companheiro sobrevivente com descendentes comuns, seus e do companheiro falecido, e a concorrência do companheiro sobrevivente com descendentes exclusivos do companheiro falecido, tratando-se, portanto, de famílias distintas, sendo que os filhos de uma mesma família não serão em hipótese alguma tratados entre si de forma diferenciada, o que configuraria a inconstitucionalidade. 2.4 Artigo 1.790 do Código Civil – hipótese de filiação híbrida Contudo, não há previsão legal para o caso de o companheiro sobrevivente concorrer, simultaneamente, com descendentes comuns dele com o falecido e com descendentes apenas do falecido, situação denominada de filiação híbrida. Essa situação é muito comum atualmente, sendo freqüentes as separações e constituições de novas entidades familiares, havendo, portanto, filhos da primeira relação e, posteriormente, filhos em comum, dos dois companheiros. Apesar de complexa e presente, o Código não a prevê e regula, o que pode gerar insegurança e interpretações discrepantes, motivo pelo qual abordar-se-á abaixo o entendimento de alguns autores, para concluir o que se defende como aplicável. No sentido da aplicação da regra do inciso I, do artigo 1.790 do Código Civil, às situações de filiação híbrida, com a divisão igualitária do patrimônio adquirido onerosamente pelo de cujus, entre os dois tipos de descendentes e o companheiro sobrevivente, é a posição, entre outros, de Francisco José Cahali (21), com base na exclusão literal do inciso II que prevê a concorrência só com os descendentes do autor da herança, limitação esta que não existe no inciso I que, portanto, deveria ser aplicado também à filiação híbrida.11 Tal solução, data venia, não deve ser a mais adequada, uma vez que o companheiro sobrevivente receberia valor igual ao cabível aos descendentes exclusivos. Assim, o companheiro sobrevivente herdaria, com relação aos descendentes exclusivos do companheiro falecido, quota maior do que a prevista no inciso II do artigo 1.790, já que, caso ele concorresse somente com descendentes exclusivos No mesmo sentido, Sílvio de Salvo Venosa (22), defendendo que “se houver filhos comuns com o de cujus e filhos somente deste concorrendo à herança, a solução é dividi-la igualitariamente, incluindo o companheiro ou companheira. Essa conclusão deflui da junção dos dois incisos, pois não há de se admitir outra solução, uma vez que os filhos, não importando a origem, possuem todos os mesmo direitos hereditários”. 11 157 Artigo 7 do companheiro falecido, caber-lhe-ia quota igual à metade do que recebesse um descendente, sendo que, por meio da adoção dessa proposta, o companheiro supérstite receberia valor idêntico ao cabível aos descendentes exclusivos do companheiro sucedido, o que, certamente, não foi a intenção do legislador. Cumpre notar que a diferenciação de tratamento dos descendentes prevista nos incisos I e II do artigo 1.790, estabelecendo, por um lado, igualdade de quotas entre descendentes comuns e companheiro supérstite, e por outro lado, recebimento de quota pelo companheiro equivalente à metade da atribuída aos descendentes exclusivos do de cujus, tem como ratio a expectativa de herança dos descendentes comuns com relação aos bens herdados pelo companheiro ascendente, o que não ocorrerá com os descendentes exclusivos do falecido. A aplicação da regra do inciso I traria, portanto, grande desvantagem aos descendentes exclusivos do companheiro falecido, pois receberiam somente o valor igual ao cabível a todos (descendentes comuns e companheiro supérstite) sobre a herança, e para que o companheiro recebesse o mesmo valor cabível aos descendentes, necessariamente a quota destes seria reduzida. Ainda, como aos descendentes comuns haveria a expectativa de sucessão dos bens que foram recebidos pelo companheiro ascendente, caracterizar-se-ia efetiva disparidade no tratamento entre os descendentes, já que os descendentes exclusivos tiveram sua quota parte diminuída para aumentar a do companheiro (comparandose à hipótese do inciso II), quota esta que no futuro, provavelmente, passará aos descendentes comuns, verificando-se um aparente e irreal respeito ao artigo 1.834, do Código Civil. Entendemos, portanto, não ser adequada a aplicação do inciso I à hipótese de filiação híbrida, uma vez que promoverá a diferenciação no tratamento entre os descendentes, com o nítido privilégio do companheiro sobrevivente e, conseqüentemente, dos descendentes comuns, caracterizando-se o desrespeito ao artigo 1.834, do Código Civil, e ao artigo 227, § 6.º da Constituição, que consagra o princípio constitucional da igualdade entre os filhos. Uma abordagem detalhada do referido tema é feita pela autora Giselda Maria Fernandes Hironaka (23), que apresenta quatro soluções possíveis para a hipótese de companheiro que falece deixando companheiro sobrevivente e filiação híbrida: a) aplicação do inciso I; b) aplicação do inciso II; c) aplicação concomitante dos incisos I e II, atribuindo-se uma quota e meia ao companheiro e quotas iguais aos filhos; e d) aplicação concomitante dos incisos I e II, com a subdivisão proporcional da herança entre descendentes comuns e exclusivos, recebendo os descendentes de cada tipo quinhões diversos. Contudo, a doutrinadora conclui afastando uma a uma estas 158 A Sucessão do Companheiro possibilidades, não indicando qual seria a aplicação devida, frisando a importância da modificação da lei. Especificamente quanto à proposta de aplicação concomitante dos incisos I e II do artigo 1.790 do Código Civil, destinando ao companheiro sobrevivente quantia equivalente a uma quota e meia do que vier a receber cada descendente, cabe fazer os seguintes comentários. Tal proposta seria efetivada por meio da soma do número de descendentes, com o companheiro sobrevivente, mais 1/2 (metade), conforme abaixo exemplificado, na hipótese de 05 (cinco) descendentes, sendo a quota cabível a cada descendente representada por “X” e o total da herança de 1.300 (um mil e trezentos): X + X + X + X + X + X + 0,5X = 1.300 X = 200 De acordo com o cálculo acima apresentado, caberia a cada descendente o valor correspondente a 200 (duzentos), e ao companheiro sobrevivente 300 (trezentos), pois ele receberá a sua quota mais a metade. Essa solução, conforme analisado acima para se afastar a aplicação do inciso I, aparentemente respeita a previsão do artigo 1.834, do Código Civil, pois todos os filhos receberiam valores iguais e, quanto à participação do companheiro, atenderia, ao mesmo tempo, aos comandos dos incisos I e II, do artigo 1.790, do mesmo diploma legal. Todavia, não há respeito à essência do artigo 1.790 que prevê, em seus incisos I e II, valores inferiores a serem recebidos pelo companheiro sobrevivente com relação aos descendentes do de cujus. Assim, o inciso I prevê que a quota do companheiro sobrevivente será igual à que couber ao descendente, e o inciso II prevê que a quota do companheiro será igual à metade do que vier a receber o descendente, não prevendo nenhum dos incisos que ao companheiro sobrevivente caberia o quinhão igual a uma quota e meia do que viesse a receber cada descendente, pelo que entendemos não ter sido esse o intuito do legislador. Haveria diminuição da quota de todos os descendentes, acarretando grande privilégio ao companheiro sobrevivente, que receberia quantia superior a todas estabelecidas em lei, motivo pelo qual se afasta essa proposta12, que se revela inaplicável. Ainda, cumpre afastar a proposta de aplicação simultânea dos incisos I e II, do artigo 1.790 do Código Civil, por meio da subdivisão proporcional da herança, segundo a quantidade de descendentes de cada grupo (comuns e exclusivos). Também nesse sentido, entendendo não ter sido esse o desejo do legislador, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (24). 12 159 Artigo 7 A efetivação dessa proposta seria realizada por meio da divisão igualitária entre os descendentes, ou seja, o valor da herança seria dividido pelo número de descendentes. Depois seria introduzida a regra do inciso I para os descendentes comuns, e a regra do inciso II para os descendentes exclusivos do sucedido, conforme abaixo exemplificado, para a hipótese de cinco herdeiros, sendo três comuns e dois exclusivos, e a herança no valor de 1.000: Descendentes comuns: “a”, “b” e “c”. Descendentes exclusivos: “d” e “e”. 1.º passo: por meio da divisão entre os descendentes, caberia a cada um deles o valor de 200. 2.º passo: aplicação do inciso I aos descendentes comuns, considerando que cada descendente e o companheiro sobrevivente receberiam “X”. X + X + X + X = 600 X = 150 Assim, cada descendente desse grupo receberia 150, e o companheiro sobrevivente, sobre esse montante, receberia igual quantia. 3.º passo: aplicação do inciso II aos descendentes exclusivos do companheiro falecido, considerando que cada descendente receberia “X” e o companheiro sobrevivente “0,5X”. X + X + 0,5X = 400 X = 160 Logo, cada descendente exclusivo receberia 160, e o companheiro sobrevivente, sobre esse montante, receberia 80. Soma de todos os valores recebidos: Valor recebido pelo descendente “a”.................................................... 150 Valor recebido pelo descendente “b”.................................................... 150 Valor recebido pelo descendente “c”.................................................... 150 Valor recebido pelo descendente “d”.................................................... 160 Valor recebido pelo descendente “e”.................................................... 160 Valor recebido pelo companheiro sobrevivente na concorrência com os descendentes comuns (“a”, “b” e “c”)...................................... 150 Valor recebido pelo companheiro sobrevivente na concorrência com os descendentes exclusivos (“d” e “e”)............................................ 80 Valor total recebido pelo companheiro................................................ 230 TOTAL .............................................................................................1 000 Conforme se observa facilmente, nessa proposta há flagrante desrespeito à regra do artigo 1.834, do Código Civil, e ao artigo 227, § 6.º, da Constituição da República, pois os quinhões dos descendentes seriam diferentes entre si, o que não 160 A Sucessão do Companheiro pode ser admitido. E ainda, o companheiro receberia mais do que os descendentes, o que contrariaria o espírito do legislador, conforme já analisado acima. Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira (25), após citarem as propostas abordadas pela professora Giselda Hironaka, aventam ainda a solução de atribuição ao companheiro sobrevivente de valor equivalente a 75% (setenta e cinco por cento) do que couber a cada descendente, em virtude de se estabelecer uma média das quotas destinadas ao companheiro sobrevivente nos incisos I e II, do artigo 1.790. Contudo, esses autores afirmam que essa solução encontraria óbice na ausência de previsão legal, concluindo que seria mais adequado, nessa hipótese de filiação híbrida, atribuir ao companheiro a metade do que couber a cada descendente, conforme previsto no inciso II. No mesmo sentido, entende-se que o companheiro terá direito de herança na proporção de metade do que couber a cada um dos descendentes, tanto comuns quanto exclusivos, aplicando-se a regra do inciso II, do artigo 1790. Isso com base na aplicação dos artigos 4.º e 5.º da Lei de Introdução ao Código Civil, combinados com artigo 227, § 6.º, da Constituição da República e artigos 1.596 e 1.834 do Código Civil, prevalecendo, portanto, o princípio da igualdade jurídica entre os filhos, conforme defendido pela professora Maria Helena Diniz (26). Assim, será priorizado na sucessão o vínculo de filiação com o de cujus e não o existente com o companheiro sobrevivente, que receberá a metade do que couber aos descendentes. Cumpre frisar que, com o Código Civil de 2002 houve, quanto à herança concorrente, efetivo avanço para o companheiro, que passou a herdar de forma concorrente com os descendentes do de cujus, hipótese em que, no passado, nada herdaria. Todavia, não se pode interpretar, na lacuna da lei, que a intenção do legislador tenha sido a de promover, na situação de filiação híbrida, a equiparação entre o companheiro e o descendente exclusivo, o que leva, portanto, ao afastamento do inciso I e à necessária aplicação do inciso II a ambos os tipos de descendentes, que não podem herdar de forma diversa sob pena de se incidir em inconstitucionalidade, cabendo ao companheiro metade da quota atribuível a cada descendente.13 Assim, não nos parece lógico que a modificação da legislação tenha sido no sentido de direcionar a mesma quota da herança aos descendentes e ao companheiro sobrevivente, que anteriormente nada recebia, realizando-se tão grande mudança. Entendendo pela aplicação do inciso II na hipótese mista, Zeno Veloso (27) defende que: “ocorrendo o caso acima apontado, o inciso II deve ser aplicado, cabendo ao companheiro sobrevivente a metade do que couber a cada descendente do autor da herança. A solução que proponho, tentando remediar a falha do legislador, enquanto a lei não é reformada, pode prejudicar o companheiro sobrevivente – que estaria mais gratificado se o escolhido fosse o inciso I –, mas não desfavorece os descendentes exclusivos do de cujus, não se devendo esquecer que os filhos do companheiro sobrevivente ainda têm a expectativa de herdar deste”. 13 161 Artigo 7 Tal proposta nos parece ser a que mais respeita o princípio constitucional da igualdade, gravado no artigo 5.º, inciso I, da Constituição da República, igualdade esta substancial, pois trata de forma igual os iguais (descendentes comuns e exclusivos) e de forma desigual os desiguais (descendentes e companheiro). Ainda, em que pese o respeitável entendimento de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (28), no sentido de que essa solução contrariaria o espírito do legislador do Código Civil, uma vez que não respeitaria a diferenciação de tratamento na concorrência do companheiro sobrevivente com os descendentes comuns ou com os descendentes exclusivos do falecido, entendemos que não há, na hipótese em tela, que ser analisado o espírito do legislador, uma vez que não houve, por parte deste, espírito algum, pois não houve previsão para o caso híbrido. Houve intenção de diferenciação nos tratamentos entre a concorrência do companheiro sobrevivente com descendentes comuns ou exclusivos do companheiro falecido de forma isolada, ou seja, quando ocorrer esta ou aquela situação, e não as duas concomitantemente, e como não houve essa previsão, não há que se considerar suposta “mágoa” ao espírito do legislador. Nesse ponto, é importante fazer referência à fórmula recentemente desenvolvida por um professor de matemática, que solucionaria a presente problemática, pois possibilitaria o cálculo proporcional da quota do companheiro levando em conta o número de filhos comuns e o número de filhos exclusivos do de cujus, sendo que todos os filhos receberiam o mesmo valor. A fórmula é a seguinte: [(2a+b)/2]/(a+b)= c a = número de filhos comuns b = número de filhos exclusivos c = parcela do companheiro A título de exemplificação utilizamos a seguinte hipótese: situação de filiação híbrida em que o de cujus deixou três filhos comuns e um exclusivo, onde, portanto, a = 3, b = 1. A fórmula será: [(2×3+1)/2]/(3+1) = c, resultando que c = 0,875 Nessa situação, portanto, se a herança for de 1.000, por serem quatro filhos, para se chegar ao valor de cada herdeiro faz-se o seguinte cálculo, onde “X” é a quota de cada descendente: 4X + 0,875X = 1.000, concluindo-se que X = 205,1282. Desta feita, do total de 1.000, cada filho receberá 205,1282, e o companheiro receberá 0,875X, ou seja, 179,4871. Para esclarecer que o valor do companheiro e dos herdeiros muda de acordo com o numero de descendentes de cada tipo, faremos o cálculo também de uma 162 A Sucessão do Companheiro herança de 1.000 em que, agora, o de cujus deixou três filhos exclusivos e um comum, onde, portanto, a = 1, b = 3. A fórmula será: [(2 x 1+3)/2]/(1+3)= c , resultando que c = 0,625. Nessa situação, portanto, sendo a herança de 1.000, por serem quatro filhos, para se chegar ao valor de cada herdeiro faz-se o seguinte cálculo, em “X” é quota de cada descendente: 4X + 0,625X = 1.000, concluindo-se que X = 216,2162. Desta feita, do total de 1.000, cada filho receberá 216,2162, e o companheiro receberá 0,625X, ou seja, 135,1351. Verifica-se, ainda, que com a utilização da fórmula, a quota do companheiro será de, no mínimo, a metade da quota dos descendentes e, no máximo, o equivalente à quota dos descendentes (quando só houver descendentes comuns) e, na hipótese de números semelhantes de descendentes comuns e exclusivos, a quota do companheiro será de 75% (setenta e cinco por cento) da que caberá aos descendentes, incidindo, portanto, as mesmas restrições para a utilização desse cálculo, já citadas acima, apresentadas por Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim, pois a solução encontraria óbice na ausência de previsão legal. Assim, apesar de a idéia ser bastante interessante e chegar bem próxima ao objetivo de se respeitar ao mesmo tempo os incisos I e II nos casos de filiação híbrida, não se entende que seja prática e aconselhável a utilização de uma fórmula matemática em um processo judicial, quando sequer a lei aventou essa possibilidade. Assim, não há qualquer solução parecida no Código Civil, não sendo aconselhável, ainda, a “mistura” de duas previsões legais, o que, portanto, deve ser afastado. 2.5 Artigo 1.790 do Código Civil – incisos III e IV Os incisos III e IV do artigo 1.790 são ainda mais polêmicos, pois restringem sobremaneira a sucessão do companheiro, se comparados com a previsão vigente anteriormente à entrada em vigor do Código Civil. Assim é que, segundo a previsão do inciso III, o companheiro passa a receber apenas um terço da herança caso concorra com outros parentes sucessíveis, e aqui se inserem não só os ascendentes como também colaterais até quarto grau, segundo a previsão do artigo 1.839 do Código Civil, aplicável analogicamente. E lembre-se, o caput restringe tal herança aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável. Em situação semelhante, de companheiro concorrendo com parente colateral do de cujus, na vigência da Lei n.º 8.971/94, o companheiro herdaria todo o patrimônio, independentemente da forma de aquisição. 163 Artigo 7 A única justificativa para se entender a previsão retrógrada da referida norma foi a sua inserção posterior no Projeto de Lei que resultou no Código Civil, conforme já ressaltado acima, representando um atraso se comparado às regras mais benéficas ao companheiro e igualitárias ao casamento, introduzidas pelas Leis n.º 8.971/94 e 9.278/96. E nesse ponto faz-se gritante a importância da interpretação, cabendo ao intérprete, enquanto não houver a modificação legal, corrigir o problema trazido pela lei que retroagiu à época anterior à Lei de 1994 e passou a prever que o companheiro passe a receber menos do que os parentes colaterais do de cujus, em nítida infração aos princípios constitucionais, da família fundada no afeto e na solidariedade.14 E isso se afirma porque devem ser protegidos os entes que compõem a família nuclear, próxima do falecido, composta por descendentes, ascendentes e companheiro, excluindo-se desta maior proteção o colateral, de até quarto igual, que deve ser preterido em face do convivente, com quem o falecido dividiu sua vida, as suas dificuldades e vitórias, desgostos e sucessos. Não se esqueça, ainda, que caso o falecido quisesse beneficiar o colateral, nada impediria que fizesse um testamento, não sendo possível, contudo, que a lei presuma, na ausência de testamento, que o falecido preferiu beneficiar parentes colaterais ao seu próprio companheiro. Com base nesses argumentos, portanto, que defendemos a inaplicabilidade do inciso III do artigo 1.790, especificamente quanto aos parentes colaterais, restringindose a incidência desse inciso à hipótese de concorrência do companheiro com os ascendentes, aplicando-se, nesse caso, analogicamente, as regras do artigo 1.836 do Código Civil. Os demais parentes sucessíveis, portanto, apenas herdarão na hipótese de inexistência de descendentes, ascendentes e companheiro ou cônjuge, quando incidirá o artigo 1.829, inciso IV, do Código Civil. Nesse sentido, é a decisão da 6.ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, prolatada em 02.06.2005 nos autos do Agravo de Instrumento n.º 386.577-4/3-00, de relatoria do Desembargador Magno Araújo, em que foi afastada a aplicação do inciso III do artigo 1.790 do Código Civil, com base no seguinte fundamento, entre outros: Na medida, portanto, em que as regras previstas para sucessão entre companheiros pelo atual Código Civil violam, em última análise, os princípios fundamentais da igualdade e da dignidade, sendo mesmo inconstitucionais resta, na hipótese, fazer incidir a orientação legal, jurisprudencial e doutrinária anteriormente vigente e que Essencial, quanto à crítica ao inciso III, a referência à esclarecedora lição de Zeno Veloso (29). 14 164 A Sucessão do Companheiro assegurava ao companheiro sobrevivente, na ausência de descendentes e ascendentes, a totalidade da herança, afastando da sucessão os colaterais e o Estado.15 Mais uma vez, agora quanto ao inciso IV, revela-se essencial a correta interpretação, pois, embora o caput do artigo 1.790 limite o direito hereditário do companheiro aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, no nosso entender tal regra não se aplica ao referido inciso, em que há previsão expressa de que na ausência de parentes sucessíveis, o companheiro “terá direito à totalidade da herança”. A essa previsão se soma aquela do artigo 1.844 do Código Civil, que estabelece a devolução da herança ao Poder Público apenas na hipótese de não haver cônjuge, companheiro ou parente sucessível, com nítida demonstração de que independentemente de o patrimônio do de cujus ter sido adquirido a título oneroso e durante a união estável, o companheiro, na hipótese do inciso IV, o herdará integralmente. Apesar de concordarmos plenamente com o argumento acima explanado, o mesmo não se dá quanto aos outros fundamentos da decisão, que constam na ementa, ora transcrita: “Agravo – Arrolamentos de bens – Morte do companheiro – Ausência de ascendentes ou descendentes, existência, porém, de colaterais noticiada pela própria companheira. União estável iniciada na vigência da Lei 8.971/94 e que perdurou até o falecimento do companheiro, fato ocorrido em 2004. Inaplicabilidade da disciplina sucessória prevista no Novo Código Civil. Atribuição à companheira sobrevivente do mesmo status hereditário que a lei atribui ao cônjuge supérstite. Totalidade da herança devida à companheira, afastando da sucessão os colaterais e o Estado. Inaplicabilidade da norma do art. 1.790, III do Código Civil em vigor – Recurso provido”. (Agravo de Instrumento n.º 386.5774/3 – São Paulo – 6.ª Câmara de Direito Privado – Relator: Magno Araújo – 02.06.05 - V.U.). Assim, decidiu-se no sentido de igualar a sucessão da companheira à do cônjuge e ainda, de que se a união estável se iniciou antes do atual Código Civil e o óbito ocorreu em 2004, seria inaplicável a disciplina sucessória do Código Civil, mas a da Lei n.º 8.971/94. No nosso entender, contudo, aplica-se o art. 1.787 do Código Civil como regra de direito intertemporal, incidindo quanto à sucessão, independentemente da lei vigente quando da formação da união estável, a lei da data do óbito, momento da abertura da sucessão. Assim, se o falecimento ocorreu anteriormente à vigência da Lei n.º 8.971/94, não haverá direito sucessório entre os companheiros, apenas meação, se comprovada a sociedade de fato. Se o óbito ocorreu na vigência da Lei n.º 8.971/94, haverá meação e usufruto ou direito integral à herança, dependendo da existência ou não de descendentes ou ascendentes do de cujus. Se, por outro lado, faleceu o companheiro durante a vigência da Lei n.º 9.278/96, haverá presunção da meação dos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, e direito sucessório, nos termos previstos na Lei n.º 8.971/94, mais direito real de habitação. Se, contudo, faleceu após a vigência do Código Civil de 2002, aplicam-se as regras analisadas no presente tópico desse trabalho. Nesse sentido, as seguintes decisões: Agravo de Instrumento n.º 70009491499 TJ/RS, 8.ª Câmara Cível, Relator Des. Antonio Carlos Stangler Pereira, j. em 23.09.2004, V. U., e Agravo de Instrumento n. 102.275-4, TJ/SP, 8.ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. César Lacerda, j. em 07.04.1999, V. U. Em sentido contrário, julgando pela aplicabilidade literal do inciso III do art. 1.790, as seguintes decisões, cujas ementas transcrevem-se: “Agravo de Instrumento. Inventário. Sucessão aberta após a vigência do novo Código Civil. Direito sucessório da companheira em concurso com irmãos do obituado. Inteligência do art. 1.790, III da novel legislação. Direito a um terço da herança. Inocorrência de inconstitucionalidade. Não há choque entre o Código e a Constituição na parte enfocada. A norma do art. 226, §3.º da Constituição Federal não equiparou a união estável ao casamento nem tão pouco dispôs sobre regras sucessórias. As disposições do Código Civil sobre tais questões podem ser consideradas injustas, mas não contêm eiva de inconstitucionalidade. Reconhecimento dos colaterais como herdeiros do de cujus. Provimento do recurso”, (Agravo de Instrumento n.º 2003.002.14421, TJ/RJ, 18.ª Câmara de Direito Civil, Relator Des. Marcus Faver, j. em 16.03.04 – V.U.). E ainda: “Agravo de instrumento. Inventário. Sucessão da companheira. Abertura da sucessão ocorrida sob a égide do novo Código Civil. Aplicabilidade da nova lei, nos termos do artigo 1.787. Habilitação em autos de parentes colaterais. Possibilidade. Incidência do disposto no artigo 1790, III, do CCB, que confere direitos sucessórios à companheira na proporção de um terço. Recurso desprovido”. (Agravo de Instrumento n.º 70013996293, TJ/RS, 7.ª Câmara Cível, Relator Des. Ricardo Raupp Ruschel, j. em 15.03.2006). 15 165 Artigo 7 Ora, se conforme acima analisado, quanto à interpretação do inciso III, demonstrou-se ferir os princípios constitucionais da família fundada no afeto e na solidariedade o fato de se transferir a herança aos colaterais, em prejuízo do companheiro, o que se dirá da interpretação puramente literal, que afirma estar o inciso IV limitado ao caput do artigo 1.790, preterindo-se o companheiro, para se transferir os bens adquiridos a título gratuito ou anteriormente à união estável, ao Poder Público. Tal interpretação revela-se inconcebível e representa afronta direta à Constituição da República, devendo o direito civil ser estudado, analisado e interpretado com fulcro nos princípios constitucionais, que informam todo o ordenamento, buscando-se, sempre, a proteção plena da pessoa humana, nos termos do artigo 1.º, inciso III, da Constituição da República, lembrando-se que a família será protegida na medida em que seja um espaço de promoção da pessoa de seus membros, motivo pelo qual o patrimônio integral do de cujus deverá passar ao membro da sua família, seu companheiro.16 2.6 Constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil Após analisada de forma detalhada a sucessão do companheiro, quanto às regras previstas no artigo 1.790 do Código Civil, é importante ressaltar que as diferenças sucessórias entre companheiros e cônjuges, v. g.: limitação do caput do artigo 1.790 aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável; ausência de garantia de uma parcela mínima de um quarto do patrimônio, na hipótese de o companheiro concorrer com mais de três filhos havidos com o de cujus; não qualificação do companheiro como herdeiro necessário, entre outras; geraram polêmica na doutrina, fazendo com que inúmeros juristas levantassem as vozes contra a previsão do artigo 1.790. Ocorre que, ao contrário do que é defendido por alguns juristas17, o tratamento diferenciado entre cônjuge e companheiro dado pelo Código Civil, apesar de não ser aconselhável e estar na contramão da equiparação que a legislação anterior havia buscado, não permite a conclusão no sentido da inconstitucionalidade do artigo 1.790, com a aplicação das regras sucessórias previstas para o cônjuge ao companheiro, o Também defendendo a interpretação de que caberá ao companheiro todo o patrimônio, nada sendo transferido ao poder público, entre inúmeros outros autores, está a lição de Maria Helena Diniz (30). 17 Vide Guilherme Calmon Nogueira da Gama (31) e Ana Luisa Maia Nevares (32). E ainda, os seguintes enunciados do I Encontro dos Juízes de Família do Interior do Estado de São Paulo, aprovados em novembro de 2006: “Enunciado 49. O art. 1.790 do Código Civil, ao tratar de forma diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não permite diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável, nos aspectos em que são idênticas, os vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores da sucessão legítima”. E “Enunciado 50. Ante a inconstitucionalidade do art. 1.790, a sucessão do companheiro deve observar a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge, com os mesmos direitos e limitações, de modo que o companheiro, na concorrência com descendentes, herda nos bens particulares, não nos quais tem meação”. 16 166 A Sucessão do Companheiro que seria nitidamente contra legem e se afastaria da intenção do legislador ao aprovar referida lei. Nesse ponto, é relevante lembrar que o tratamento diferenciado entre o companheiro e o cônjuge, no âmbito das regras sucessórias, não foi necessariamente prejudicial àquele, já que em hipótese bastante comum, de companheiros que adquirem todo o seu patrimônio, ao longo da união estável e de forma onerosa, falecendo um dos companheiros e deixando filhos, o outro companheiro receberá não só a meação de todo o patrimônio, como também herdará parte da metade do de cujus, o que não ocorrerá com o cônjuge casado em regime de comunhão parcial de bens que, em situação semelhante, apenas receberá a sua meação, ficando a metade do falecido inteiramente para os descendentes (artigo 1.829, inciso I). Da mesma forma com que esse privilégio do companheiro em face do cônjuge não caracteriza a inconstitucionalidade do artigo 1.790, o benefício do cônjuge em outras situações também não levará à inconstitucionalidade do referido dispositivo, concluindo-se que apesar de desaconselhável o tratamento diferenciado, esse será mantido, com as interpretações acima defendidas, até a eventual modificação do dispositivo legal, a ser implementada, com o que se concorda, o quanto antes. Complementa-se referida fundamentação, no sentido da constitucionalidade do artigo 1.790, apesar desse dispositivo não prever ao companheiro as mesmas regras endereçadas ao cônjuge, constatando-se que a Constituição de 1988 não equiparou essas entidades heterogêneas, devendo ser feita a análise da ratio da lei interpretada para se concluir pela constitucionalidade ou não do tratamento diferenciado. Assim, se a lei foi informada por princípio relativo à solenidade do casamento, como é o caso do conferição de título sucessório, nítido efeito patrimonial do casamento, tal regra não deverá ser necessariamente aplicada ao companheiro, salvo se houver previsão expressa nesse sentido. Ao contrário, se a ratio da norma for um princípio próprio da convivência familiar, como por exemplo, a legislação relativa à previdência social, a não aplicação dessa regra ao companheiro contrariaria a Constituição da República (33). 2.7 Direitos reais: usufruto e direito real de habitação Quanto aos direitos reais sobre coisa alheia, em favor do companheiro supérstite, anteriormente regulamentados nas Leis n.º 8.971/94 e 9.278/96, consubstanciados no usufruto de parte do patrimônio do de cujus e no direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, não há previsão no Código Civil de 2002 relativa à manutenção ou revogação dos mesmos para o companheiro. 167 Artigo 7 Partilha-se do entendimento no sentido de que, quanto ao usufruto, que era previsto no artigo 2 .º , da Lei n.º 8.971/94, a qual inseriu especificamente os direitos sucessórios do companheiro, houve a revogação tácita pelo Código Civil de 2002, que regulou esta matéria de sucessão de forma diversa.18 Assim é que, no artigo 2 .º , incisos I e II, da Lei n.º 8.971/94, havia o direito real de usufruto em favor do companheiro supérstite em virtude da existência de descendentes ou ascendentes, que herdavam o patrimônio do de cujus sem a participação do companheiro sobrevivente. Logo, já que o companheiro não tinha herança concorrente, lhe era assegurado ao menos o usufruto de parte do patrimônio do falecido. Contudo, no atual Código Civil, o companheiro sobrevivente divide a herança – apenas dos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, é verdade – com os descendentes ou com os ascendentes, motivo pelo qual não se faz mais necessária a previsão do direito real de usufruto que existia exatamente em virtude do não recebimento de herança pelo companheiro sobrevivente. Ainda, a corroborar a inaplicabilidade do usufruto ao companheiro, o atual Código Civil suprimiu o usufruto vidual anteriormente existente em favor do cônjuge supérstite (artigo 1.611, § 1 .º , do Código Civil de 1916), que, por também passar a herdar conjuntamente com os descendentes ou os ascendentes do de cujus, deixou de precisar dessa garantia de sobrevivência. Por outro lado, quanto ao direito real de habitação, previsto na Lei n.º 9.278/96, artigo 7 .º , parágrafo único, não houve revogação tácita ou expressa no Código Civil de 2002, o qual o previu para o cônjuge (artigo 1.831), sendo correta a interpretação no sentido da manutenção desse direito real sobre coisa alheia em favor do companheiro sobrevivente, que, lembre-se, na hipótese em que o patrimônio foi adquirido pelo falecido apenas anteriormente à união estável ou de forma gratuita e que haja descendente ou ascendente do de cujus, não tem meação nem direito à herança, ficando garantida ao menos a sua habitação quanto ao imóvel destinado à residência da família.19 Dessa feita, resume-se a situação atual do companheiro, regulamentada pelo Código Civil e disposições anteriores que continuam em vigor como: a) direito à meação dos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, não por mera presunção Nesse sentido, Agravo de Instrumento n.º 336.392-4/8, TJ/SP, 9.ª Câm. de Direito Privado, Rel. Des. Ruiter Oliva, j. em 29.06.2004, V. U. 19 Nesse sentido, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (34) e, ainda, o Enunciado 117 da I Jornada de Direito Civil do CJF: “Art. 1831: o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei n.º 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1831, informado pelo art. 6.º, caput, da CF/88”. 18 168 A Sucessão do Companheiro relativa, mas sim pela aplicação do regime de comunhão parcial de bens (artigo 1.725), salvo expressa previsão das partes em contrário; b) ao invés do usufruto, que deixou de existir, o companheiro passou a herdar o patrimônio adquirido onerosamente durante a união estável, em concorrência com descendentes ou com ascendentes do falecido, afastando-se a concorrência com parentes colaterais; c) na hipótese de ausência de descendentes e de ascendentes, herdará a totalidade do patrimônio, não se aplicando as regras da herança jacente; e (d) possui direito real de habitação, mantida a previsão do artigo 7.º, parágrafo único, da Lei 9.278/96. 2.8 Artigo 1.830 do Código Civil Quanto à polêmica previsão do artigo 1.830 do Código Civil, merece severas críticas. Isso porque, como levanta a doutrina de forma unânime, não se justifica a ênfase na culpa na separação, quando o direito caminha a passos largos em sentido oposto, afastando esse tipo de verificação, buscando-se o fortalecimento da separação por ruptura da vida conjugal. Ainda, o artigo, ao prever a possibilidade de o cônjuge separado de fato herdar o patrimônio do cônjuge que falece – direito a ser mantido por dois anos após a separação de fato, ou por prazo ilimitado após esta, se se provar a culpa do falecido – colide de frente com a previsão do artigo 1723, § 1.º, que reconhece a união estável, mesmo quando um dos conviventes estiver apenas separado de fato. Assim, será possível uma situação em que, um cônjuge, separado de fato, logo após a separação, passe a viver em união estável, falecendo um ano e onze meses após a separação de fato. A quem caberá a herança, à esposa, separada de fato, ou à atual companheira? A referida previsão legal representa nítido retrocesso, uma vez que já se entendia no direito anterior que a mera separação de fato, desde que nitidamente demonstrada, era suficiente para afastar da sucessão o cônjuge sobrevivente20, motivo pelo qual entendemos, da mesma foram que Francisco Cahali, que: mesmo contrariamente à expressa previsão na norma, deve ser ignorada a condição imposta, retirando a condição de herdeiro do cônjuge separado de fato, independentemente do prazo da ruptura ou de sua causa, em qualquer situação (beneficiando ascendentes ou descendentes), mas especialmente se para a herança for convocado o companheiro sobrevivente.21 (35) Interessante a referência ao acórdão proferido no Recurso Especial n.º 108.706-RJ, em que foi Relator designado o Min. Cesar Asfor Rocha, da 4.ª Turma do STJ, j. em 04.05.2000. Referida decisão foi, por maioria, no sentido de não reconhecer direito sucessório (usufruto vidual) ao cônjuge que estava separado de fato, inclusive com separação de corpos, há mais de quatro anos quando do falecimento da esposa, que deixou uma filha menor com terceiro. 21 Acrescente-se que a questão fática que leva à aplicação do art. 1.830 ensejará discussão em ação própria, e não nos autos do inventário, conforme decisão proferida nos autos do Agravo de Instrumento n.º 70014190227, do TJ/RS, 8.ª Câm. Cível, Rel. Des. Luiz Ari Azambuja Ramos, j. em 30.03.2006, V. U. 20 169 Artigo 7 3 Conclusão Foram apresentadas no presente trabalho as soluções de interpretações entendidas como corretas para as previsões legais relativas à sucessão do companheiro no Código Civil de 2002. Concluiu-se, de forma sucinta que, enquanto não for efetivada a modificação legal, incluindo o companheiro na ordem de vocação hereditária, será essencial a atitude do intérprete, no sentido de que: (a) na hipótese de filiação híbrida, aplique o inciso II do art. 1.790; (b) afaste da sucessão o parente colateral do companheiro falecido, caso haja companheiro sobrevivente, interpretando-se nesse sentido o inciso III do art. 1.790; (c) defira-se ao companheiro a integralidade do patrimônio do de cujus, na hipótese de ausência de descendentes e ascendentes, afastando a participação do Poder Público na herança (inciso IV). Ainda se concluiu pela não caracterização, na legislação atual, do companheiro como herdeiro necessário e pela constitucionalidade do art. 1.790, apesar de tratar o convivente de forma diversa do cônjuge, equiparação que não foi feita na Constituição da República. Quanto aos direitos sucessórios, mantém-se o direito real de habitação, na forma prevista na Lei n.º 9.278/96, restando revogado, contudo, o usufruto, pela nova previsão do art. 1.790, de herança concorrente do companheiro com descendentes e ascendentes do de cujus. 4 Referências TEPEDINO, Gustavo. Novas Formas de Entidades Familiares: efeitos do casamento e da família não fundada no matrimônio. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 327-337. TEPEDINO, Gustavo. Novas Formas de Entidades Familiares: efeitos do casamento e da família não fundada no matrimônio. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 337. CAHALI, Francisco José. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso Avançado de Direito Civil. v. 6. 2.ª ed. São Paulo: RT, 2003. p. 223-224. ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil Comentado. v. XVIII. AZEVEDO, Álvaro Villaça (coord.). São Paulo: Atlas, 2003. p. 68. CAHALI, Francisco José. Contrato de Convivência da União Estável. 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Curso Avançado de Direito Civil. v. 6. 2.ª ed. p. 222. 172 O Programa de Política Criminal Brasileiro, Funções Declaradas e Reais: Contribuições de Calus Offe para Fundamentação da Crítica Criminológica à Teoria Jurídica das Penas O Programa de Política Criminal Brasileiro, Funções Declaradas e Reais: Contribuições de Claus Offe para Fundamentação da Crítica Criminológica à Teoria Jurídica das Penas Maurício Stegemann Dieter Mestre e doutorando pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadorconvidado do Instituto Max-Planck (Freiburg, Alemanha). Professor de Criminologia da Faculdade Metropolitana de Curitiba. Advogado Criminal. 1 Introdução. 2 Breve síntese das contribuições de Claus Offe na definição de dominação política de classe em Estados capitalistas. 3 O atual estado do debate crítico sobre o programa de política penal brasileiro. 3.1 A pena como reprovação do crime. 3.2 A pena como possibilidade de prevenir futuros crimes. 3.2.1 A função de prevenir o condenado de praticar novos crimes (prevenção especial). 3.2.2 A função de prevenir que a sociedade se motive no crime alheio (prevenção geral). 3.3 As verdadeiras funções da pena: uma reflexão a partir da criminologia radical. 4 Considerações finais: a convergência de sentido entre as conclusões da criminologia crítica e a proposta teórica de Claus Offe. 5 Referências. Resumo Claus Offe define a dominação política em sociedades capitalistas como dominação de classe. Sua construção teórica afirma que as ações políticas de formulação e implementação dos fins capitalistas gerais são realizadas pelas atividades estatais de regulação e repressão. Ambas são marcadas pela seletividade, definida como exclusão não–eventual de possibilidades alternativas (e eventualmente contrárias) aos interesses capitalistas. Como atividades seletivas orientadas aos fins do mercado, as ações estatais devem ter seus objetivos reais ocultos; a tarefa de escamotear os reais fins da atividade 173 Artigo 8 estatal cabe ao discurso oficial, traduzido pela legalidade e legitimado pelo argumento democrático. O programa de política criminal é uma ação estatal, sujeita como tal às contribuições teóricas do sociólogo alemão. O Direito Penal – como formulação legal do programa de política penal do Estado – justifica-se na teoria jurídica das penas, que atribui à sanção criminal a função de reprovar e prevenir o crime. Entretanto, diante da falência estrutural do sistema de execuções penais no Brasil, compreende-se o discurso oficial da pena criminal como mera retórica, criada com o propósito de ocultar suas funções reais, identificadas pela Criminologia Radical. A pena, aplicada e executada de acordo com a utilidade do condenado, evidencia o Direito Penal como instrumento de garantia das relações de produção capitalista, por meio da gestão diferencial da pobreza. Palavras-chave: Teoria da pena criminal; Teoria Crítica; Seletividade e regulação estrutural Resumen Claus Offe define la dominación política en sociedades capitalistas como dominación de clase. Su construcción teórica afirma que las acciones políticas de formulación e implementación de los fines capitalistas generales son realizadas por las actividades estatales de regulación y represión. Ambas son marcadas por la selectividad, definida como exclusión no–eventual de posibilidades alternativas (y eventualmente opuestas) a los intereses capitalistas. Como actividades selectivas orientadas a los fines de mercado, las acciones estatales deben tener sus objetivos reales ocultos; la tarea de esconder los reales fines de la actividad estatal es responsabilidad del discurso oficial, traducido por la legalidad y legitimado por el argumento democrático. El programa de política criminal es una acción estatal, sujeta como tal a las contribuciones teóricas do sociólogo alemán. El Derecho Penal – como formulación legal del programa de política penal del Estado – se justifica en la teoría jurídica de las penas, que atribuye a la sanción criminal la función de reprobar y prevenir el crimen. No obstante, considerando el fallo estructural del sistema de ejecuciones penales en Brasil, se comprende el discurso oficial de la pena criminal como mera retórica, construida con el propósito de ocultar sus funciones reales, identificadas por la Criminología Radical. La pena, aplicada y ejecutada de acuerdo a la utilidad del condenado, demuestra el Derecho Penal como instrumento de garantía de las relaciones de producción capitalista, por medio de la gestión diferencial de la pobreza. Palabras-clave: Teoria de la pena criminal; Teoria Critica; Selectividad y regulación estructural 174 O Programa de Política Criminal Brasileiro, Funções Declaradas e Reais: Contribuições de Calus Offe para Fundamentação da Crítica Criminológica à Teoria Jurídica das Penas 1 Introdução O ensaio tem por objeto uma releitura da crítica criminológica ao programa de política criminal brasileiro a partir de algumas categorias propostas por Claus Offe. Tendo em vista a compreensão do domínio político como domínio de classe na sociedade capitalista, o referente teórico é identificar a convergência de sentido entre as conclusões do autor e da criminologia crítica sobre as funções reais e declaradas da pena criminal nos Estados capitalistas, enfrentando o papel problemático da legitimação da ação estatal e do uso da repressão criminal para realização dos fins de mercado. A metodologia consiste de sucinta revisão bibliográfica de excertos da obra “Problemas Estruturais do Estado Capitalista” de Claus Offe, apresentação sintética do atual debate criminológico sobre o programa de política penal no Brasil e, finalmente, análise que complemente com os conceitos do autor alemão à teoria crítica sobre os fins da pena. Justifica-se o texto na necessidade permanente de atualização teórica da Criminologia Crítica, especialmente pela contribuição sociológica contemporânea. Além disso, sem uma teoria crítica do Estado é difícil compreender o percurso do labelling approach, como categoria fundamental para uma criminologia crítica, do interacionismo simbólico para as relações estruturais. O método consiste na dedução lógica a partir de premissas teóricas críticas. Como procedimento metodológico, segue-se o seguinte roteiro: primeiro, apresenta-se a teoria que caracteriza dominação política como dominação de classe em Claus Offe; segundo, descreve-se em linhas gerais o atual estado do debate científico sobre o programa de política penal brasileiro; terceiro, faz-se sucinta revisão sobre a teoria jurídica da pena; quarto, considera-se a crítica radical às funções da pena em Estados capitalistas; por último, aponta-se para uma adequação de sentido entre a teoria das penas na criminologia radical e a crítica de Claus Offe. 2 Breve síntese das contribuições de Claus Offe na definição de dominação política como dominação de classe em Estados capitalistas Claus Offe busca compreender a relação objetiva e complementar entre domínio político e econômico na sociedade capitalista e os mecanismos que asseguram essa relação, com o propósito de resolver a inconsistência teórica relativa ao caráter classista do Estado. Sua construção teórica visa superar o alcance das duas grandes teorias – e suas derivações conhecidas – usualmente utilizadas para tentar explicar o papel do Estado capitalista. 175 Artigo 8 A primeira é denominada teoria da influência, para qual o Estado é mero instrumento dos interesses capitalistas. Nesse sentido, a influência do poder capitalista determinaria a orientação das políticas públicas por meio de uma série de estratégias como i) o lobby político, ii) a infiltração de agentes capitalistas no espaço burocrático, iii) a ameaça de transferência (retirada) de capital ou diminuição da produção, iv) o uso dos meios privados de comunicação para opor o Estado à “opinião pública” e v) o financiamento da democracia representativa1. Em que pese o predomínio eventual de uma destas formas de influência de acordo com o momento histórico e o interesse em jogo, estas estratégias não são exclusivas. Pelo contrário, são todas complementares no objetivo de persuadir o Estado para realizar os específicos fins do mercado. Em que pese o inegável e tremendo poder do mercado no momento de definir políticas estatais2, Offe considera a teoria da influência insuficiente para explicar o caráter classista do Estado, dada sua falta de garantia estrutural. De fato, em alguns casos, o Estado mostra-se imune ou resistente à influência capitalista, o que abre espaço para decisões contrárias que, de certa forma, é evidência suficiente de que o Estado não é mero instrumento de uma classe3. Este risco da decisão desfavorável, pela imunidade ou resistência à influência capitalista, é excessivamente oneroso para um mercado que requer previsibilidade4. A segunda é definida como teoria dos fatores limitativos5. Em seus termos, as instituições do sistema político estariam estruturalmente subordinadas às condições impostas pelas estruturas capitalistas porque não têm autonomia para agir segundo outra racionalidade. Ao mercado caberia, portanto, fixar os limites para a atividade estatal. Sem negar seu valor explicativo, Offe afirma que também esta teoria é insuficiente, porque dependeria da definição de interesses capitalistas globais, uma lógica incompatível com a concorrência de mercado6 porque o capitalismo não convive em bases solidárias7. Além de seus problemas específicos, as duas teorias erram na medida em que pressupõem a neutralidade do aparelho estatal, que seria apenas influenciado OFFE, Claus. Problemas estruturais do Estado capitalista. p. 122-123. Idem, p.126-127. 3 Assim, por exemplo, em que pese o tremendo poder da indústria do fumo, o Estado assumiu o risco de várias decisões contrárias aos interesses específicos das empresas tabagistas, limitando o espaço para consumo e propaganda. 4 Interessante comparar à conclusão de Offe o pensamento de Chomsky, francamente adepto à teoria da influência, especialmente por meio da estratégia de retirada de capitais, o que é extremamente simples e eficiente para pressionar os governos periféricos em tempos de economia globalizada e predomínio do capital financeiro. Para mais detalhes consular a obra de CHOMSKY, Noam. Para entender o Poder. 5 OFFE, Claus. Op. cit., p.142-143. 6 OFFE, Claus. Op. cit., p. 142-144. 7 Idem, p. 122 e 144-145. 1 2 176 O Programa de Política Criminal Brasileiro, Funções Declaradas e Reais: Contribuições de Calus Offe para Fundamentação da Crítica Criminológica à Teoria Jurídica das Penas ou objetivamente limitado. A suposição de que Estado é neutro torna impossível a demonstração de seu caráter classista, bem como a necessidade estrutural deste caráter8. A proposta teórica de Offe parte do fato de que o mercado reiteradamente vale-se do Estado para alcançar legitimação, uma condição necessária para sua expansão. A hipótese central é de que o capitalismo não tem por objetivo afirmar-se como superior à regra estatal, ainda que seja capaz de violá-la a qualquer tempo; antes, quer ser legitimado pela legalidade, estabelecendo sua racionalidade como condição de existência e validade das normas estatais9. O objetivo final da racionalidade de mercado é transformar o “Estado inserido em uma sociedade capitalista” em um próprio “Estado capitalista”10. Considerando estas premissas fundamentais, Offe define a dominação organizada pelo Estado como um “sistema de regulamentação seletivo”11. Esta seletividade, definida como “restrição não aleatória (isto é, sistêmica) de um espaço de possibilidades”12, significa que a atividade estatal deve ser capaz de selecionar determinadas ações políticas em detrimento de outras (representadas como igualmente possíveis), sendo esta escolha determinada pelos interesses da classe capitalista. Em outras palavras, as ações estatais – como ações políticas – devem ter seu fim definido pela necessidade de mercado13, o que só é possível quando convivem no interior do aparelho estatal elementos que garantam essa orientação classista14. Consoante esta ordem de idéias, o primeiro problema que se apresenta para a dominação estatal é a identificação dos chamados “fins gerais do mercado”. Trata-se de atribuição das mais complexas porque, como visto, os objetivos da classe capitalista são heterogêneos e, geralmente, conflitantes. Cabe ao Estado desenvolver uma tal seletividade que sirva à unificação e destilação dos interesses capitalistas “globais”, mesmo que contra determinado grupo de interesse. Tal sistema funcionaria segundo regras de exclusão15, responsáveis pela adequação dos fins das ações estatais aos fins do mercado16. Para Offe, o Estado capitalista cumpre essa difícil atribuição por meio de ações seletivas com o propósito de regulação (ou coordenação). Ibidem, p.144. E não apenas fixando-lhe os limites de atuação, como na teoria dos fatores limitativos, acima. Para clarificar, OFFE, Claus, Op. cit. p. 145-146. 10 Idem, p.146-151. 11 Ibidem , p.151. 12 OFFE, Claus. Op. cit., p.151. 13 Idem, p.150. 14 Ibidem, p.150-151. 15 Essas regras de exclusão, no entanto, não compreendem a) os acontecimentos que não ocorrem porque pertencem a diferentes momentos históricos (explicados pela exclusão sócio estrutural), b) os que não acontecem por acaso (explicados pela exclusão acidental) e c) tudo aquilo que acontece independentemente de processos estruturais (excluídos de modo sistêmico). 16 OFFE, Claus. Op. cit., p.151-154. 8 9 177 Artigo 8 O segundo problema advém da efetiva implementação destes interesses capitalistas “globais”, os quais não raro produzem conflitos sociais que antagonizam os interesses da sociedade aos fins de mercado regulados pelo Estado. A solução encontrada pelo Estado capitalista demanda novas ações políticas seletivas, desta vez com o propósito de repressão17. Logo, a seletividade estatal é identificada nas ações políticas de regulação dos fins capitalistas e repressão dos interesses divergentes. A primeira revela o aspecto positivo da intervenção estatal, que disciplina o desenvolvimento da atividade capitalista de acordo com os interesses capitalistas “globais”, protegendo o mercado de sua autofagia. A segunda evidencia o aspecto negativo da intervenção, como sanção ou ameaça de sanção para toda atividade que se opõe à implementação dos interesses gerais do mercado. Em síntese, regulação e repressão, como atividades seletivas estatais, garantem o caráter classista do Estado18. A partir desta conclusão, a identificação dos interesses capitalistas nas ações políticas de regulação e repressão torna-se condição necessária para definir o Estado como “Estado capitalista”. Tal constatação, todavia, é insuficiente, sendo necessária, ainda, a comprovação empírica de que ações políticas alternativas foram rejeitadas, identificando os acontecimentos excluídos pela seletiva intervenção estatal. Desta forma, a seletividade da ação política só pode ser analisada depois de sua implementação, sendo inconsistente, do ponto de vista teórico, tentar antecipar quais acontecimentos serão excluídos pela seletividade estatal19. Esses “não-acontecimentos” podem ser identificados a partir do contexto da práxis política e avaliados pelo confronto de processos político-administrativos com as incongruências práticas que sistematicamente aparecem. Por um lado, a identificação dos “não-acontecimentos” é fácil, porque são evidentes e inegáveis os efeitos reais produzidos pelas ações políticas. Por outro, e paradoxalmente, a avaliação destas aspirações negadas não é simples. Pelo contrário, caracterizar a seletividade como manutenção do interesse de classes é tarefa extremamente complexa, porque a “dominação política em sociedades industriais capitalistas é o método da dominação de classes que não se revela como tal”20. OFFE, Claus. Op. cit., p. 153-154. Idem, p. 154. 19 Para Offe, “o problema da teoria do Estado que quer comprovar o caráter classista da dominação política e sua cumplicidade estrutural com o interesse do capital global” é o fato de que como “teoria” é muito ruim, pois só é possível observar a seletividade em benefício do interesse capitalista global depois que ele é feito. OFFE, Claus. Op. cit. p. 154-158. 20 OFFE, Claus. Op. cit., p. 162. 17 18 178 O Programa de Política Criminal Brasileiro, Funções Declaradas e Reais: Contribuições de Calus Offe para Fundamentação da Crítica Criminológica à Teoria Jurídica das Penas O ocultamento do sentido real de valorização das ações estatais é uma condição para manter a base do poder preservada e diferenciada do mercado, de modo a continuar legitimando suas ações como produto da vontade coletiva: a dominação política oculta seu caráter classista para poder justificar-se como poder público21. Assim, sempre que se demonstra que as ações políticas realizam apenas os objetivos da classe capitalista, provoca-se uma crise de credibilidade do poder estatal. Para evitar a polarização entre mercado e sociedade, a independência do Estado em relação ao mercado é um mito que deve ser perpetuado; nas palavras do autor, a “funcionalização da soberania exige que o aparelho estatal assuma funções de classe sob pretexto da neutralidade (...) e invoque o álibi do universal para o exercício do poder particular”22. Como esclarece Offe: O problema estrutural do Estado capitalista é que ele precisa simultaneamente praticar e tornar invisível o seu caráter de classe. As operações de seleção e direcionamento de caráter coordenador e repressor, que constituem conteúdo de seu caráter classista, precisam ser desmentidas por uma terceira categoria de operações seletivas de caráter ocultador: as operações divergentes, isto é, as que seguem direções opostas. Somente a preservação da aparência da neutralidade da classe permite o exercício da dominação de classe23. Em síntese, o objetivo da dominação política é a instauração e o ocultamento de uma dominação de classe. Fundada a premissa fundamental que explica o caráter classista do Estado, Offe apresenta três níveis pelos quais é possível identificar esta atividade de instauraçãoocultamento da dominação política de classe. Primeiro, esta atividade de instauração-ocultamente é simultânea e convergente; uma ação estatal altera a estrutura e a economia em favor da classe capitalista ao mesmo tempo em que se anuncia como produto de decisões democráticas24. De fato, a democracia burguesa – geralmente radicada na idéia de soberania popular – alivia com sucesso as contradições do capitalismo, a tal ponto que suas estruturas formais são consideradas indispensáveis à manutenção das relações de produção25. Segundo, a ação política apresenta uma disjunção entre objetivos declarados e reais; a dissonância entre discurso oficial e motivação real é estrutural no sistema Idem, p.162-164. Ibidem, p.163. Ibidem, p.163. 24 OFFE, Claus. Op. Cit., p.166-167. 25 Seguindo o pensamento de outros autores, Offe constata que democracia burguesa corresponde à relação de produção capitalista, exceto apenas no período fascista. OFFE, Claus. Op. cit., p. 163. 21 22 23 179 Artigo 8 capitalista26. Em termos mais simples, uma ação política ideal é aquela que realiza o objetivo da classe capitalista mas se justifica racionalmente por uma lógica fora do conflito de classes27. Terceiro, o discurso oficial possui limites para o antagonismo entre objetivos declarados e efeitos reais dos atos estatais. Isso porque a discrepância entre objetivos reais e declarados gera interferência e crise política, ruídos incômodos que podem colocar em xeque a legitimidade do Estado para implementar a dominação de classe sem correr riscos28. Quando os problemas provocados pela estrutura capitalista são identificados como problemas de política estatal, surge uma grave crise de legitimidade, que torna evidente o caráter de dominação de classe oculto do Estado29. Sabendo que a crise é o resultado provável da implementação e ocultação da dominação de classe, o Estado adota medidas para lidar com ela por meio de duas estratégias: reduzindo a probabilidade da emergência de conflitos ou o impacto de suas manifestações. O uso da repressão e da disciplina tem assim o objetivo de enfraquecer os conflitos políticos inevitáveis e canalizá-los para as trilhas institucionalizadas30. O horizonte teórico projetado pela teorização acima apresentada constitui a síntese do pensamento de Claus Offe considerada pertinente para a análise da teoria jurídica e crítica da pena criminal, referente teórico a seguir apresentado. 3 O atual estado do debate teórico crítico sobre o programa de política penal brasileiro A política criminal constitui o programa oficial do Estado para enfrentar os fenômenos descritos como “crime” e “criminalidade”. No Brasil, a formulação legal desse programa oficial (por meio das leis penais) apresenta a pena como única resposta do Estado para o controle social do crime e da criminalidade, excluindo a possibilidade de políticas públicas alternativas31. Idem, p.167. Seria essa necessidade de convencimento da base social que explicaria definitivamente o intenso uso da propaganda nos Estados capitalistas ocidentais contemporâneos. 28 Ibidem, p.167-168. 29 OFFE, Claus. Op. cit., p.163. 30 Idem, p.172. 31 Não é sem propósito que o termo “política penal” é utilizado aqui como sinônimo de “política criminal”. Para resolver a confusão conceitual entre “política criminal” e “política penal”, é necessária a lição de Cirino dos Santos: “No Brasil e, de modo geral, nos países periféricos, a política criminal do Estado exclui políticas públicas de emprego, salário digno, escolarização, moradia, saúde e outras medidas complementares, como programas oficiais capazes de alterar ou reduzir as condições sociais adversas da população marginalizada do mercado de trabalho e dos direitos de cidadania, definíveis como determinações estruturais do crime e da criminalidade; por isso, o que deveria ser a política criminal do Estado existe, de fato, como simples política penal instituída pelo Código Penal e leis complementares – em última instância, a formulação legal do programa oficial de controle social do crime e da criminalidade: a definição de crimes, a aplicação de penas e a execução penal, como níveis sucessivos da política penal do Estado, representam a única resposta oficial para a questão criminal”. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: Parte Geral. 2.ª ed. rev. e atual. ICPC/LumenJuris, 2007, p. 453. 26 27 180 O Programa de Política Criminal Brasileiro, Funções Declaradas e Reais: Contribuições de Calus Offe para Fundamentação da Crítica Criminológica à Teoria Jurídica das Penas Reduzida a política criminal à mera política penal, a legitimação do direito penal brasileiro gravita ao redor da idéia nuclear de pena32. Conseqüentemente, a repressão estatal depende da legitimação retórica oferecida pela teoria oficial da pena; se a sanção criminal é incapaz de resolver o problema do crime e da criminalidade, não há mais justificativa jurídica para existência do Direito Penal33. O problema central do discurso34 oficial de legitimação da pena – e portanto, do Direito Penal – é que atribui à pena criminal funções incompatíveis com a realidade de sua aplicação. O radical contraste entre as funções declaradas e a cruel tragédia da execução penal no Brasil coloca em xeque o discurso que autoriza a aplicação de penas em sociedades democráticas. E esse contraste não pode sequer ser atribuído à má implementação de uma política pública, pois as funções atribuídas à pena no Brasil sempre se caracterizaram como retóricas35, nunca constituindo um projeto real na política penitenciária implementada pelo Estado. Em que pese a realidade demonstrar a absoluta impossibilidade de realizar os fins declarados da pena, o que por si só já desautorizaria a intervenção penal pública, o discurso oficial adota a teoria unificada, e continua a afirmar que a pena criminal serve simultaneamente para reprovar o crime atual e prevenir futuros delitos36. Para poder avançar na análise crítica da teoria jurídica das penas, tendo em vista o referente teórico, faz-se necessário apresentar sucintamente em quê consistem Segundo Gilberto Ferreira, “a pena é a conseqüência jurídica – o mal que se impõe”. FERREIRA, Gilberto. A Aplicação da Pena, p. 4-5. O autor ainda lista na página anterior uma série de definições sobre o caráter da pena. Parece-me importante salientar que ele, acertadamente, escapa do erro conceitual ao qual se renderam a maioria dos autores, pois não confunde o conceito de pena com suas funções. Em oposição, comparar com JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, p. 475. 33 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal, p. 453. 34 “Discurso” aqui se refere às manifestações retóricas oficiais que legitimam as ações repressivas do Estado contra o cidadão submetido. A partir de um local simbólico, o Estado estabelece sua argumentação tendo por auditório universal (o qual pretende convencer) o senso comum e como auditório particular (o qual pretende persuadir) a classe detentora dos meios de produção capitalista. Evidente é, portanto, que raramente as razões (ou convicções) serão semelhantes às racionalizações (ou justificações) do discurso, pois os recursos argumentativos variam de acordo com os valores do auditório. Desta forma, o “Discurso do Poder” assemelhase sobremaneira à Propaganda, pois não é porta-voz dos consensos sociais, mas uma forma de convencimento pela repetição e apelo emocional, divulgada através dos meios de comunicação e demais aparelhos ideológicos. Seu objetivo é atuar no convencimento e normalização até alcançar o custo de legitimação suficiente para determinadas ações políticas. Para o estudo desta importante área da lógica, e para compreensão das formas pelas quais autoriza-se a aplicação simbólica da pena, imprescindível a leitura da obra PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação. 35 “Os problemas do sistema penal são sempre conjunturais, e o melhor exemplo é a penitenciária. A despeito de todos os relatórios (...) apontarem para a irremediável deterioração do emprisionamento sobre sua clientela, de que as taxas de reincidência penitenciária são o menos expressivo sinal, a boa penitenciária nos aguarda, num futuro eternamente adiado”. BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 274. 36 Código Penal, Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV – a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível. 32 181 Artigo 8 essas funções de reprovação e prevenção atribuídas pelo poder político à execução da pena. Apresentada a fundamentação teórica tradicional, busca-se identificar os mais atuais contornos retóricos apresentados para cada uma dessas funções. Finalmente, cada uma dessas funções é objeto de crítica criminológica. 3.1 A pena como reprovação do crime Como visto, o Código Penal atribui à pena criminal a função de reprovação, doutrinariamente lida como retribuição e definida como o “mal justo” que deve ser aplicado ao “mal injusto” do crime37. Em poucas palavras, é o retrato jurídico da lei do talião. Em estritos termos dogmáticos, a retribuição é o critério que quantifica a duração da pena e qualifica sua intensidade, de acordo com a culpabilidade do agente38. A pena como retribuição é tão antiga como a história documentada da humanidade, mas suas justificações mais recentes são inspiradas na tradição moral cristã e na filosofia ocidental idealista; de qualquer modo, ontem como hoje, continua dependente de argumentação de referência metafísica. A crítica em relação ao discurso retributivo não é recente; sua grande derrota como argumento legitimador da imposição de penas aconteceu pela mão dos “penalistas do contratualismo”, que a expulsaram da ciência jurídica moderna para o ostracismo do conhecimento vulgar39. Todavia, como um aparente traço da psicologia popular de base antropológica, continua a povoar o senso comum como referencial para a pena, sendo no Brasil consagrada pela lei40. Contemporaneamente a doutrina penal majoritária nega-lhe o caráter democrático e científico. Não é democrático porque nos Estados Democráticos de Direito o poder é exercido em nome do povo e não de qualquer autoridade metafísica; além disso, o Direito Penal não tem por objetivo oficial realizar vingança – seja ela pública ou privada –, mas proteger bens jurídicos. Da mesma forma, não é científico porque aplicar “mal justo” suficiente e necessário para reprovar “mal injusto” pressupõe a demonstração cabal da liberdade humana, fato que é absolutamente improvável41 . SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena, p. 3. Idem, p.3-5. 39 Expressão que pretende compreender todos os autores que, impregnados pela ideologia liberal, defendiam um direito penal humanitário, superando a idéia de retribuição pela prevenção como função precípua da pena criminal. O argumento central para estes autores é que a execução da pena deve ter como norte a utilidade. como vemos em ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Op. cit.. p. 251 a 264. 40 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal, p. 455-456. 41 Idem, p. 457-458. 37 38 182 O Programa de Política Criminal Brasileiro, Funções Declaradas e Reais: Contribuições de Calus Offe para Fundamentação da Crítica Criminológica à Teoria Jurídica das Penas 3.2 A pena como possibilidade de prevenir futuros crimes Além de retribuir o crime, o discurso jurídico afirma que é função da pena evitar a realização de novos crimes, caminho pelo qual se ingressa no campo da prevenção. Essa função preventiva é direcionada tanto para o indivíduo condenado como para a sociedade. No primeiro caso a dogmática penal define essa função de prevenção especial, e no segundo, de prevenção geral, podendo em qualquer caso seguir um sentido positivo ou negativo, como se demonstra adiante. O objetivo declarado dos modernos programas de política criminal é realizar todas as funções preventivas durante as diversas etapas da execução, e a prevenção constitui, desde a Modernidade, o ponto central de legitimação do Direito Penal, avaliado pela sua utilidade como instrumento de manutenção da ordem social. Todas as funções preventivas apresentam uma concepção clássica, uma variante recente e uma crítica teórica específica, como a seguir se explicita. 3.2.1 A função de prevenir o condenado de praticar novos crimes (prevenção especial) A prevenção especial é negativa quando tem por objetivo a “neutralização” do sujeito criminoso – ou melhor, criminalizado – do coletivo social pelo isolamento42, impedindo a prática de crimes fora dos limites da prisão43. Sua base teórica remonta à antiga criminologia etiológica, que identificava o crime como doença e o criminoso como elemento patogênico, sendo a pena a inocuização necessária para manter o corpo social saudável. Atualmente, e após o abandono do argumento higienista, a justificativa para o isolamento de criminosos em presídios especiais ou pequenas celas incomunicáveis é, respectivamente, dificultar a organização de quadrilhas pela neutralização de seus líderes e evitar a corrupção dos agentes oficiais e o exercício arbitrário e violento das próprias razões no interior das instituições. A atualidade desse discurso é evidente, tendo sido utilizado para fundamentar a criação dos presídios federais de segurança máxima e violação da lei de execuções penais pelo regime disciplinar diferenciado. A função de prevenção especial negativa é objeto as seguintes críticas teóricas: pela perspectiva criminológica, rotular o criminoso como elemento patogênico de um corpo social saudável só é possível quando se confunde crime com doença, o que é “A prevenção especial negativa de neutralização do criminoso, baseada na premissa de que a privação de liberdade do condenado produz segurança social, parece óbvia: a chamada incapacitação seletiva de indivíduos considerados perigosos constitui efeito evidente da execução da pena, porque impede a prática de crimes fora dos limites da prisão – e, assim, a neutralização do condenado seria uma das funções manifestas ou declaradas cumpridas pela pena criminal”. SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena, p. 7 e 8. 43 Idem, p. 7. 42 183 Artigo 8 impossível desde a constatação de que o crime é um fato social normal44, quase que totalmente tolerado pela sociedade45; pela perspectiva jurídica é função incompatível com o texto constitucional, pois a segregação de um indivíduo só é autorizada na medida em que evita o livre deslocamento ambulatório, sendo as demais formas de expressão da liberdade individual inalteradas pela pena. Além disso, o uso de células solitárias para encarceramento caracteriza punição cruel, prática punitiva vedada pela Constituição. A prevenção especial é dita positiva quando tem por fim a reeducação ou ressocialização46 do detento pela execução da pena47. Essa função tem raízes na ideologia do tratamento48, que considera o criminoso um desviante capaz de ser corrigido por meio de técnicas corretivas na ortopedia moral49 do condenado. O discurso da prevenção especial positiva vem gradualmente abandonando o propósito de reintegração do condenado por meio da capacitação para o trabalho em direção à tese que propõe o deslocamento da lógica de mercado para o interior dos presídios, delegando sua administração para a iniciativa privada, com o duplo propósito de desonerar o poder público e dar utilidade à força de trabalho encarcerada. A crítica à vertente positiva da prevenção especial é bastante fácil, pois constitui um dos argumentos mais falaciosos de justificação da pena. A própria idéia de ressocialização pelo isolamento e reeducação em ambiente desumano é paradoxal. Especialmente em países periféricos, a justificação da pena pela prevenção especial positiva é insustentável diante das terríveis condições das penitenciárias, absolutamente incapazes de instituir um programa mínimo de ressocialização. Mesmo assim, e graças aos contornos modernos da política penal neoliberal, o Estado tem delegado a administração de alguns presídios para empresas privadas, apresentando reiteradamente estas instituições como experiências bem-sucedidas. Como já havia antecipado a sociologia de Émile Durkheim. Sobre as derivações teóricas criminológicas a partir desse pressuposto, especialmente em Robert Merton, imprescindível a lição de BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal, p. 60-62. 45 Como constatado pelo estudo sobre a “cifra negra” da criminalidade. Em apresentação preliminar sobre o tema, vale a excelente lição de HASSEMER, Winfried; CONDE, Francisco Muñoz. Introducción a la Criminologia, p. 136-148. 46 A prevenção especial positiva é a principal função atribuída à pena no discurso oficial atual, e está formalmente prevista no artigo 1.º da Lei de Execuções Penais: “Art. 1.º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” 47 “(...) a prevenção especial positiva de correção (ou de ressocialização, ou de reeducação etc.) do criminoso, realizada pelo trabalho de psicólogos, assistentes sociais e outros funcionários da ortopedia moral do estabelecimento penitenciário, durante a execução da pena – segundo outra fórmula antiga: punitur, ne peccetur”. SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena, p. 7. 48 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal, p. 478. 49 Expressão de FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 238-239. 44 184 O Programa de Política Criminal Brasileiro, Funções Declaradas e Reais: Contribuições de Calus Offe para Fundamentação da Crítica Criminológica à Teoria Jurídica das Penas 3.2.2 A função de prevenir que a sociedade se motive no crime alheio (prevenção geral) Em sua forma negativa, a prevenção geral funcionaria como inibidora de futuras ações criminosas pela certeza da punição, realçando-se o poder intimidante que caracteriza o Direito Penal na consciência coletiva. Assim como a função de retribuição, o discurso da prevenção geral negativa continua a ser apresentado com poucas alterações, sustentado pela falsa premissa de que a crueldade da execução penal é suficiente para desmotivar o criminoso potencial. Este é o argumento que parece justificar a precariedade dos presídios no Brasil, seguindo a lógica de que as condições de vida da prisão tem que ser piores do que as piores condições da classe trabalhadora50. Sua atualidade também é evidente quando se propõe o recrudescimento das penas previstas e sua execução como forma de evitar novos crimes. A análise crítica demonstra que prevenção geral negativa é absolutamente ineficaz em seu efeito intimidante, o que fica bastante evidente em uma sucinta análise histórica que compreenda o horror da execução penal medieval51. Em termos jurídicos, a falta de um critério limitador para o uso da pena como intimidação torna absolutamente injusta sua execução, provocando uma necessária violação da dignidade do condenado52, fato inevitável pois inerente à estratégia de controle social pelo medo53. Por outro lado, a prevenção geral em sua forma positiva cumpriria o papel de normalizar as relações sociais, garantindo a ordem através da estabilização das expectativas comportamentais normativas. Sua formulação é atual, identificada na doutrina alemã do final do século XX, e tem por base uma recente construção sociológica. Por constituir o mais novo recurso argumentativo legitimador da pena54 é oportuna sua explicitação mais detalhada. Referida construção teórica tem como elemento condutor as premissas sociológicas de Niklas Luhmann, que propõe, a partir da teoria dos sistemas55, uma abordagem que despersonifica a análise sociológica56. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social, p.16-20. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Op. cit. p.24-28 e FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 49-101. 52 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal, p. 461. 53 “Essa crítica relativizou a teoria e colocou em discussão outra de maior entidade, de acordo com a qual a prevenção intimidatória lesiona a dignidade do homem enquanto utiliza a pessoa como meio para a intimidação de outra e, ademais, não é crível em seus efeitos reais, posto que parte de suposições tão difíceis de satisfazer como o conhecimento por parte de todos os cidadãos, das sanções penais e das condenações, e da motivação dos cidadãos honrados pela cominação e execução penal”. GARCIA, Olga Lucía Gaitán. Op. cit. p. 43. 54 Em que pese a advertência de teóricos críticos de que essa hipótese que não possui elementos inéditos, como demonstra Cirino dos Santos: “(...) Hegel (1770 – 1831) define crime como negação do direito e pena como negação da negação e, portanto, como reafirmação do direito – uma antecipação de dois séculos da prevenção geral positiva de Jakobs, da pena como afirmação da validade da norma (...)”. SANTOS Cirino dos, Juarez. A Teoria da Pena, p. 5. 55 Cf. VIANNA, Túlio Lima. Da Ditadura dos Sistemas Sociais, p. 67-72. 56 “Para Luhmann a sociedade é um sistema autopoiético cuja organização sustenta-se na comunicação. A sociedade até então concebida como o conjunto de indivíduos, passa a ser tratada como um sistema que tem como elemento a informação e como organização a comunicação (...) Note-se que, na teoria de Luhmann, os seres humanos somos mero ambiente na sociedade”. VIANNA, Túlio Lima. Op. cit., p.73. 50 51 185 Artigo 8 Sob esta ótica, o Direito é visto como um redutor da ampla contingência das ações individuais57, a quem cabe uma realizar uma seletividade específica58. Esta Sociologia do Direito, baseada na abordagem estruturalista59 e sistêmica60, projeta-se para o Direito Penal com graves conseqüências. Ao preferir a proteção de valores sociais abstratamente definidos em detrimento à responsabilização pessoal e proporcional à lesão real, torna a manutenção das “expectativas sociais” o objetivo principal da pena criminal61: a ilusão de segurança jurídica se sobrepõe à efetiva proteção de direitos fundamentais. Assim, para todos os casos de violação de bens jurídicos aos quais a mídia dedica-se com particular entusiasmo, e cuja conseqüência é a inevitável reação popular exigindo punições, o magistrado convertido em responsável por reestabilizar a “paz social” vê-se, no mínimo inclinado ou, no máximo, moralmente obrigado a condenar o(s) réu(s) destes casos que mais afetam a consciência coletiva, pois caso contrário estaria frustrando as expectativas da sociedade, causando um desequilíbrio na ordem social e uma desconfiança geral nas instituições62. Converte-se, consoante esta lógica, o réu em “inimigo da ordem”, e a possibilidade ou intensidade da punição não é mais definida pelas categorias analíticas do fato punível63, mas pela necessidade “O direito é visto, então, como uma estrutura que define os limites e as interações da sociedade. Como estrutura, ele é indispensável, por possibilitar uma estabilização de expectativas nas interações. Ele funciona como um mecanismo que neutraliza a contingência das ações individuais, permitindo que cada ser humano possa esperar, com um mínimo de garantia, o comportamento do outro e vice-versa”. FERRAZ Jr, Tércio Sampaio. Apresentação, p. 1. 58 “(...) a função do direito reside em sua eficiência seletiva, na seleção de expectativas comportamentais que possam ser generalizadas em todas as três dimensões, e essa seleção, por seu lado, baseia-se na compatibilidade entre determinados mecanismos das generalizações temporal, social e prática (...) e podemos agora definir o direito como estrutura de um sistema social que se baseia na generalização congruente de expectativas comportamentais normativas. LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito, p. 116. 59 Como esclarece Yarochewsky, “segundo Niklas Luhmann, o sistema jurídico é um subsistema do sistema social global de um sistema unitário e a função do direito deve ser compreendida diante das expectativas, ou seja, da manutenção e da estabilidade de determinadas expectativas, tendo em vista as decepções previsíveis e inevitáveis. As expectativas têm como função orientar de modo relativamente estável a comunicação e o pensamento diante da complexidade e contingência do mundo”. YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Op. cit., p. 294. 60 “Sistema é para Luhmann um conjunto de elementos delimitados segundo o princípio da diferenciação. Os elementos, ligados uns aos outros, excluem outros elementos do seu convívio, formam em relação a estes, um conjunto diferenciado. Todo sistema pressupõe, portanto, um mundo circundante com o qual se limita. O mundo é, por hipótese o que não pertence ao sistema. Ora, se o sistema é um conjunto estruturado, o mundo é, em relação a ele, complexidade, isto é, um conjunto aberto e infinito de possibilidades. Ou seja, todo sistema é uma redução seletiva de possibilidades em comparação com as possibilidades infinitas do mundo circundante (...) Aquilo que garante o sistema contra a contingência das possibilidades escolhidas é a estrutura do sistema”. FERRAZ Jr, Tércio Sampaio. Op. cit., p. 3. 61 “Normas, segundo Luhmann, garantem as expectativas (mas não o comportamento correspondente) contra desilusões. FERRAZ Jr, Tércio Sampaio. Op. cit.., p. 2. 62 “A manutenção de uma parcela de seres humanos absolutamente marginalizada, em condições sociais miseráveis, seria perfeitamente lícita desde que não prejudicasse a autopoiese do sistema”. VIANNA, Túlio Lima.Op. cit., p. 75. 63 Entre elas, especialmente a culpabilidade como garantia retórica do cidadão face ao poder punitivo do Estado. 57 186 O Programa de Política Criminal Brasileiro, Funções Declaradas e Reais: Contribuições de Calus Offe para Fundamentação da Crítica Criminológica à Teoria Jurídica das Penas de reafirmação das instituições do poder oficial. A mudança é evidente: não é mais avaliado o caso concreto, apenas ponderado o perigo (em abstrato) que uma decisão possa causar nas estruturas políticas; protege-se o modelo (a ordem vigente) antes das garantias cidadãs64. Autores contemporâneos não tem poupado críticas à prevenção geral positiva. De forma geral pode-ser afirmar que os doutrinadores concluem que o Direito Penal, como instrumento para manutenção destas expectativas, é retributivo e injusto, ao permitir que os princípios garantistas sejam desconsiderados em nome do imediatismo da sanção penal. Em países subdesenvolvidos a adoção da prevenção geral positiva tem como conseqüência o aumento da clivagem entre a sociedade de consumo e a coletividade marginalizada, pois fortalece e antecipa os mecanismos de repressão social dos Estados comprometidos com o capital industrial e financeiro internacional. Se as funções manifestas da pena, decorrentes das funções atribuídas ao Direito Penal, não são realizadas pela justiça criminal, é necessário agora definir quais são as funções reais cumpridas pela criminalização secundária65 no Brasil. 3.3 As verdadeiras funções da pena: uma reflexão a partir da Criminologia Radical Dadas as funções declaradas da pena pelo discurso oficial, bem como seu fracasso institucional – em contraste com seu relativo sucesso retórico –, torna-se necessário refletir sobre as funções reais da pena, as quais, longe de constituírem uma teoria improvável de matizes subversivos, “saltar-vos-á ao rosto, não tarda”66. Como aponta Jakobs “Certamente, é possível que se vinculem à pena determinadas esperanças de que se produzam conseqüências psicológicas sociais ou individuais das mais variadas características, como, por exemplo, a esperança de que se mantenha ou solidifique a fidelidade ao ordenamento jurídico”. Tradução livre de: “Ciertamente, puede que se vinculen a la pena determinadas esperanzas de que se produzcan consecuencias de psicología social o individual de muy variadas características como, por ejemplo, la esperanza de que se mantenga o solidifique la fidelidad al ordenamiento jurídico”. JAKOBS, Günther. Sociedad, norma, persona, en una teoría de un derecho penal funcional. Apud. YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Op. cit., p. 295. 65 “(...) a criminalização secundária e a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que ocorre quando as agências policiais detectam uma pessoa, à qual atribuem a realização de certo ato criminalizado primariamente, investigam-na, em alguns casos privam-na de sua liberdade de locomoção, submetem-na à agência judicial, a qual por sua vez legitima a atuação anterior, admite um processo (ou seja, o avanço de uma série de atos secretos ou públicos para determinar se realmente realizou essa ação), discute publicamente se o sujeito a realizou e, em caso afirmativo, admite a imposição de uma pena de certa magnitude que, sendo privativa de liberdade de locomoção, executa-se em uma penitenciária (prisionalização)”. Tradução livre de “(...) la criminalización secundaria es la acción punitiva ejercida sobre personas concretas, que tiene lugar cuando las agencias policiales detectan a una persona, a la que se atribuye la realización de cierto acto criminalizado primariamente, la investiga, en algunos casos la priva de su libertad ambulatoria, la somete a la agencia judicial, ésta legitima lo actuado, admite un proceso (o sea, el avance de una serie de actos secretos o públicos para establecer si realmente ha realizado esa acción), se discute públicamente si la ha realizado y, en caso afirmativo, admite la imposición de una pena de cierta magnitud que, cuando es privativa de la libertad ambulatoria de la persona, es ejecutada por una agencia penitenciaria (prisionización).” ZAFFARONI, Eugenio Raul et al. Derecho Penal; p. 7. 66 Parafraseando a expressão utilizada por Saramago no encerramento do II Fórum Social Mundial pretende-se não apenas enriquecer o presente artigo pela inserção de uma meta-linguagem da melhor literatura lusitana, mas lembrar que, assim como no conto do escritor português sobre a morte da Justiça no pequeno vilarejo de Florença, também é necessário anunciar a morte do discurso oficial legitimador da pena, por meio das badaladas dos sinos libertadores da Criminologia Radical. O sentido completo deste excerto pode ser conotado a partir do excelente conto do escritor português. SARAMAGO, José. Da Justiça à Democracia, passando pelos sinos. 64 187 Artigo 8 Para a teoria crítica, o direito penal é uma técnica de controle social67. Como mecanismo estatal de dominação de classe68, seu objetivo final é a manutenção da ordem econômica pela gestão diferencial da criminalidade69. A pena, como instrumento mais rigoroso para garantir a existência e continuidade desse sistema, explicita a função real de controle social do direito penal, deslocando a função declarada de proteção a direitos fundamentais para um lugar subsidiário, fragmentário ou meramente ilusório70. Ainda como premissa da análise crítica radical, existiria uma relação direta entre as formas de punição estabelecidas pelo poder institucional e as demandas do modelo econômico de uma sociedade71. Como esclarece a análise histórica, essa relação determina que as penas sejam aplicadas e executadas de acordo com a utilidade do condenado no modo de produção vigente. Para compreender esse fenômeno, não é suficiente estudar o discurso técnico-jurídico da pena criminal, dado seu objetivo permanente de justificar e ocultar essa relação72; é mister alargar o campo de pesquisa histórico para buscar na dinâmica específica do espaço social e econômico os fundamentos dessa relação73. Como resultado, a Criminologia Radical74 rompe com a ilusão das funções declaradas da pena, evidenciando a necessária conexão entre as relações de poder determinadas pela distribuição desigual dos meios de produção e pela sujeição mediante trabalho assalariado e a política penal do Estado. Explicita, pela visão marxista, uma explicação materialista para o papel desempenhado pela pena na intenção de perpetuar as relações de poder: BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, p. 21. Ainda que se refira à época posterior à Revolução Industrial, mutatis mutandis é válida a lição da Criminologia Radical: “O Estado, produto do antagonismo irreconciliável de classes, representa uma força especial de repressão, ou a organização sistemática da violência, para a opressão de uma classe sobre a outra: as classes economicamente dominantes, utilizando o poder concentrado dos aparelhos coercitivos (polícia, prisão, forças armadas), garantem a dominação política e a exploração econômica das classes dominadas, controlando os antagonismos de classe nos limites da ordem burguesa”. SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical, p. 64. 69 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical, p. 57. 70 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal, p. 4-14. 71 RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Op. cit., p. 18-21. 72 Seguindo o método de Foucault de “considerar as práticas penais mais como um capítulo da anatomia política, do que uma conseqüência das teorias jurídicas”. In: FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 28. 73 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia, p. 38. 74 A Criminologia Radical demonstra, por meio dos pressupostos marxistas, a explicação materialista dos objetivos do sistema penal na intenção de perpetuar as relações de poder. A contribuição do marxismo para a instrumentalização das ciências é necessária em qualquer abordagem crítica, como indica Konder: “O marxismo (...) oferece aos produtores de cultura poderosos instrumentos para que estes submetam suas própria contradições a uma análise libertadora, mas cobra deles a humildade de renunciarem às fantasias idealistas de supervalorização de si mesmos e intima-os a verem no trabalho em que se empenham com todas as suas energias apenas um momento do movimento transformador das sociedades. Com seu materialismo histórico, (...) mostra os limites desse momento, ensinando que os problemas mais profundos da luta que os intelectuais e artistas travam no plano da cultura têm sua efetiva solução encaminhada num outro plano, que é o das mudanças diretamente sócio-econômicas, isto é, o da transformação das relações de produção. KONDER, Leandro. Introdução ao Fascismo, p. 40. 67 68 188 O Programa de Política Criminal Brasileiro, Funções Declaradas e Reais: Contribuições de Calus Offe para Fundamentação da Crítica Criminológica à Teoria Jurídica das Penas O objetivo real mais geral do sistema de justiça criminal (além da aparência ideológica e da consciência honesta de seus agentes) é a moralização da classe trabalhadora, através da inculcação de uma ‘legalidade de base’: o aprendizado das regras da propriedade, a disciplina no trabalho produtivo, a estabilidade no emprego, na família, etc. A utilidade complementar da constituição de uma ‘criminalidade de repressão’ (localizada nas camadas oprimidas da sociedade e objeto de reprodução institucional) é camuflar a criminalidade dos opressores (abuso de poder político e econômico), com a tolerância das leis, a indulgência dos tribunais e a discrição da imprensa.75 O mercado de trabalho, determinante dos sistemas de punição adotado pelo Estado é determinado pela seguinte lógica: “se a força de trabalho é insuficiente para as necessidades do mercado, o sistema penal adota métodos punitivos de preservação da força de trabalho; se a força de trabalho excede as necessidades do mercado, o sistema penal adota métodos punitivos de destruição da força de trabalho”76. Estabelece-se desta forma a função da pena sob o princípio da retribuição equivalente, uma característica essencial da estrutura material das relações econômicas fundadas no capitalismo77. A pena – e em especial a pena privativa de liberdade – serve perfeitamente à manutenção da sujeição inerente ao sistema de produção pós-industrial, o qual é historicamente fundado no binômio prisão–fábrica: fábrica para aqueles são adequados às condições impostas – como grau de instrução, submissão, etc. – e prisão para aqueles que não são úteis ao capital78. Desta forma, a verdadeira função resume-se em reproduzir as relações sociais de dominação de classe, o que ocorre de três modos: pela retribuição (determinada pelo tempo de contingência do indivíduo), pela prevenção especial (disciplinando o condenado na ideologia oficial)79 e pela prevenção geral (pela preservação da ordem social fundada na relação capital – trabalho)80. Ainda que evidentes, as funções reais da pena não são apresentadas na doutrina tradicional do Direito Penal. Em regra, o estudo da pena é reduzido ao SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical, p. 58. SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena, p. 20. SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena, p. 21. 78 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcel y Fábrica, p. 44. 79 “A história das transformações do sistema penal, na perspectiva da relação entre base econômica e mecanismos superestruturais de controle, de Rusche a Kirchheimer, representa um avanço real da teoria criminológica radical: são as relações do mercado de trabalho, no período capitalista, que explicam a generalização da prisão como método de controle e disciplina das relações de produção (fábrica) e de distribuição (mercado), com o objetivo de formar um novo tipo humano: a força de trabalho necessária e adequada ao aparelho produtivo”. SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical, p. 43. 80 Conforme CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da Pena, p. 23. 75 76 77 189 Artigo 8 engodo de suas funções declaradas, uma cantilena hipócrita do discurso repressivo repetida pela dogmática conivente, salvo raras e brilhantes exceções81. 4 Considerações finais: a convergência de sentido entre as conclusões da criminologia crítica e a proposta teórica de Claus Offe Seguindo as conclusões de Offe, a intervenção penal definida pelo programa de política criminal é uma ação estatal; portanto, simultaneamente seletiva e oculta. O crime, como ação contrária aos interesses capitalistas globais – definidos pela atividade de regulação – tem como resposta oficial a repressão, uma atividade estatal marcada pela seletividade. Mas identificar os fins reais da pena criminal não é uma tarefa fácil, porque a contínua redefinição teórica dos fins declarados da pena buscam a todo momento justificar a execução penal no Brasil. Os objetivos de ressocializar e neutralizar o indivíduo, ou revalidar a confiança normativa e intimidar a população são “nãoacontecimentos” sistematicamente garantidos. Dessa forma, a práxis do discurso oficial da pena torna evidente o objetivo real da intervenção penal em países periféricos. Pelo discurso oficial, o predomínio do interesse capitalista na aplicação das penas é realizado sem tornar-se evidente. O programa de política criminal oculta o programa capitalista de criminalização diferencial, e a teoria oficial da pena justifica a realização de suas funções reais. A orientação capitalista que determina a seletividade dessa ação atribui à pena as funções de manutenção da distribuição desigual dos meios de produção, aplicando a pena de acordo com a utilidade do sujeito condenado: sujeitos inúteis ao sistema capitalista são aglomerados em depósitos humanos, que devem oferecer condições de vida inferiores à da classe mais pobre. A teoria jurídica das penas, como teoria oficial apresentada pelo programa de política penal, é apenas uma forma de escamotear as funções reais da pena. Isso porque é insustentável em um Estado Democrático de Direito um programa de política criminal que assume o cárcere como instrumento de manutenção da estrutura de classes, como evidenciou a Criminologia Radical82. O uso do Direito Penal como instrumento para “gestão penal da pobreza”83 não deve ser evidente. Assim, a teoria oficial da pena disfarça a criminalização desigual de sujeitos marginalizados. A seletividade penal é legalmente legitimada, justificando a realização de um controle penal diferenciado sob a égide do discurso preventivo e retributivo. Como são exemplo SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena; FOUCAULT, Michel. Op. cit. MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Op. cit.. 82 A gênese e síntese desse pensamento em SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 83 WACQÜANT, Loïc. Punir os Pobres. p. 27-37. 81 190 O Programa de Política Criminal Brasileiro, Funções Declaradas e Reais: Contribuições de Calus Offe para Fundamentação da Crítica Criminológica à Teoria Jurídica das Penas Evidente que a insistência do Estado em projetos políticos destinados ao fracasso provoca conflitos, que podem repercutir na base de sua própria legitimidade. Por isso, ainda que permaneçam essencialmente inalteradas em seus fundamentos teóricos, oscilando entre retribuição e prevenção, as funções formais da pena estão em contínua redefinição. A disparidade explícita entre as funções declaradas da pena e a realidade de sua execução obrigam o Direito Penal a oferecer novas formas de legitimação desta idéia fundamental para a manutenção da ordem social. A absurda distância entre os fins declarados da pena e a execução do penal no Brasil gera dissonâncias, que resultam em uma crise de legitimidade da atividade estatal. Mas os ruídos provocados pela radical disparidade são silenciados por um sistema de propaganda absolutamente incorporado pela mídia nacional, que logra o apoio popular para a punição cruel pelo medo, e por uma contínua redefinição teórica da dogmática penal. A implementação da dominação de classe é garantida mesmo diante do sistema carcerário nacional, diminuindo pelo discurso penal ou pela propaganda o impacto e a freqüência das reclamações. Sob essa perspectiva é possível concluir que o fracasso da execução da pena em relação aos objetivos a ela atribuídos pelo discurso oficial não demonstra a incapacidade do poder público, mas evidencia uma política bem sucedida de controle social, cujos objetivos são definidos pelos interesses capitalistas. Para realizar essa função, a teoria jurídica da pena serve para ocultar os objetivos reais do programa de política penal do Estado, os quais seguem uma orientação estrutural determinada pela utilidade do sujeito no sistema econômico, com o propósito de perpetuar as relações de poder definidas pela distribuição desigual dos modos de produção. 5 Referências BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999. . Funções instrumentais e simbólicas do Direito Penal: lineamentos de uma teoria do bem jurídico. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 2, 1984. BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. In: Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n.º 12, 2002. BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002. CHOMSKY, Noam. Para entender o Poder: o melhor de Noam Chomsky. Trad. Eduardo Francisco Alves. 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Conselheiro Titular do Conselho de Tributos e Multas de São Bernardo do Campo, São Paulo. 1 Introdução. 2 Competência tributária da União Federal para instituir imposto sobre a renda (art. 153, III, da CRFB). 3 Conceito de “renda e proventos de qualquer natureza”. 4 “Renda e proventos de qualquer natureza” como mutações patrimoniais positivas. 5 Conceito de indenização. 6 Indenizações advindas de danos morais. 7 Conclusões. 8 Referências. Resumo O presente artigo versa acerca do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, e a não tributação sobre as indenizações provenientes de danos morais. Investiga-se a competência tributária da União para instituir o tributo e a necessária vinculação do legislador infraconstitucional às diretrizes traçadas pelo texto constitucional, que estabelecem o conteúdo mínimo do conceito de renda e proventos de qualquer natureza. Determina-se o sentido da expressão “renda e proventos de qualquer natureza” como sendo os acréscimos patrimoniais resultantes do cotejo entre as entradas e saídas no patrimônio de pessoa física ou jurídica; vale dizer, mutações patrimoniais positivas observadas em determinado período de tempo. Examina-se o conteúdo do termo “indenização”, verificando-se a impossibilidade da norma jurídica tributária do imposto sobre a renda atingir a verba indenizatória, concebida como recomposição de esfera patrimonial lesada. Conclui-se pelo estudo da natureza da indenização decorrente de danos morais, verificando-se que consubstancia reparação em pecúnia de um dano sofrido por um sujeito em sua esfera imaterial, não observado qualquer acréscimo patrimonial que enseja a incidência do imposto federal. Palavras-chave: Imposto sobre a renda; Indenização; Dano moral 195 Artigo 9 Abstract The present article is about the income tax and profits of any nature and the non-taxation on the indemnities derived from the moral damages. The tributary competence of the Union to institute the tribute and the necessary link of the infra-constitutional legislator with the guidelines drawn by the Constitution, which establish the minimum content of the income and profits of any nature concept is investigated. The meaning of the expression “income and profits of any nature” is determined as being the patrimonial increase that come from the collation between the income and outcome in the patrimony of the natural or juridical person, that is, positive patrimonial changes seen in a certain period of time. The content of the word “indemnity” is examined, checking the impossibility of the tributary juridical norm of the income tax to reach the indemnity payment, awarded as a recomposition in the damaged patrimonial sphere. This article finishes with the study of the indemnity that comes from the moral damage, seeing that it substantiates the payment in money of a damage suffered by an individual in his immaterial sphere, observing any patrimonial increase that provides the incidence of the federal taxation. Keywords: Income tax; Indemnity; Moral damage 1 Introdução O imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza consiste em uma longeva exação pertencente ao Sistema Tributário Nacional, completados oitenta e cinco anos desde a sua criação pela Lei Orçamentária 4.625/22. O que poderia significar a ausência de questionamentos acerca da incidência do gravame representa, porém, a constante e instigante discussão da temática. Pretende-se no presente artigo examinar a incidência do imposto sobre a renda em relação a indenização decorrente de dano moral, tendo em vista a exigência do crédito tributário pela Fazenda Pública em hipóteses de recebimento de valores a título de reparação por violação à esfera individual não pecuniária. Inicialmente, partir-se-á da previsão constitucional de competência à União para versar sobre o imposto sobre a renda no art. 153, III, da qual advém a normapadrão de incidência do referido gravame. Evidenciar-se-á o sentido de “renda e proventos de qualquer natureza” inserto no texto constitucional, eis que há inarredável conteúdo semântico mínimo ínsito à locução, evitando assim mutações operadas pelo legislador infraconstitucional. Demonstrar-se-á a incompatibilidade entre o sentido do termo “indenização” em relação ao conceito constitucional de “renda e proventos de qualquer natureza”, tornando-o insuscetível de ser exigido pela Fazenda Nacional. 196 A Não-tributação das Indenizações Decorrentes de Danos Morais por Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza Conclui-se pela incompatibilidade das verbas decorrentes de indenizações ao imposto federal, pois o conceito de indenização não significa acréscimos patrimoniais em um determinado interregno temporal, precipuamente no atinente às indenizações advindas de danos morais. 2 Competência tributária da União Federal para instituir imposto sobre a renda (art. 153, III, da CRFB) A competência legislativa para versar sobre o imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza se encontra disposta no art. 153, III, da Constituição de 19881. Trata-se de imposto compreendido no rol das figuras exacionais de titularidade da União Federal, que exerce a competência tributária mediante a edição de leis, por injunção do princípio constitucional da legalidade2. Este dispositivo atribui à União a aptidão para dispor sobre o imposto, cuja incidência opera sobre os fatos tipificados como “renda e proventos de qualquer natureza”. O legislador constituinte traçou a regra-matriz constitucional de cada exação, a norma-padrão de incidência, inclusive quanto ao imposto em exame, com a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível. Dessa forma, o legislador infraconstitucional deve ater-se fielmente a essas diretrizes constitucionais3, não sendo viável exacerbá-las, sob pena de ser reconhecida a inconstitucionalidade do gravame, ao preencher esse recipiente constitucional com mais elementos do que pode suportar. Cabe elucidar o sentido constitucional de “renda” e de “proventos de qualquer natureza”, uma vez que o legislador constituinte partilhou entre os entes tributantes as competências tributárias para legislarem sobre impostos a partir da descrição de fatos possíveis de serem situados nas hipóteses de incidência das suas respectivas exações4. Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: [...] III – renda e proventos de qualquer natureza; 2 Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; 3 Assim leciona Roque Antonio Carrazza: “Rememoramos que as regra-matrizes de todos os tributos – aí incluído o imposto sobre a renda e os proventos de qualquer natureza – estão contidas na Constituição. O legislador infraconstitucional não pode fugir desses arquétipos.” (CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 52) 4 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 31. 1 197 Artigo 9 O constituinte, ao prever a competência para instituir o referido imposto, determinou um conteúdo semântico mínimo ao termo “renda” e a expressão “proventos de qualquer natureza”, ao qual o legislador infraconstitucional não pode se distanciar na composição da norma jurídica tributária5. A terminologia empregada na Constituição, ao partilhar as competências tributárias a partir da previsão de certos fatos de conteúdo econômico, não se encontra ao alvedrio do legislador infraconstitucional, sob pena de sofrer mutações que ferem de morte a rigidez do texto constitucional, ampliando-se a competência tributária da União6. Assim, afirma Roque Antonio Carrazza: “Resulta do exposto que o legislador federal absolutamente não pode intitular renda ou provento o que, na real verdade, nem é renda, nem provento.”7 Pode-se afirmar que “renda e proventos de qualquer natureza” em nada se assemelham com os fatos correspondentes à materialidade dos demais impostos previstos nos arts. 153, 154, I, 155 e 156 do texto constitucional8. Isto porque a demarcação de competências tributárias possui como efeito reflexo a vedação, a criação de outros impostos com a mesma materialidade9, evitando potenciais conflitos de competência entre os entes federados. O art. 153, III, prevê a competência da União para instituir imposto sobre “Renda e proventos de qualquer natureza”. Esta locução remete à alteração patrimonial positiva de uma pessoa física ou jurídica em um determinado lapso temporal decorrente de entradas e saídas. Ambos, renda e proventos, correspondem a rendimentos que acrescem economicamente o patrimônio de uma pessoa (considerado um intervalo de tempo), embora divirjam quanto à fonte produtora. Humberto Ávila leciona que o constituinte, ao traçar as competências entre os entes tributantes, determina conteúdos mínimos de sentido que não podem ser desprezados pelos legisladores infraconstitucionais: “A Constituição Federal utiliza determinadas expressões cujo significado mínimo não pode ser desprezado pelo intérprete. O desprezo desses conteúdos mínimos de sentido implica a violação da Constituição e, portanto, a desconsideração do postulado da supremacia da Constituição. A Constituição Federal como que reserva conteúdos para si, afastando sua manipulação pelo legislador infraconstitucional. (ÁVILA, Humberto. O imposto sobre serviços e a lei complementar n. 116/03. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. O ISS e a LC 116. São Paulo: Dialética, 2003, p. 165-166). 6 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 54. Nesse sentido leciona José Arthur Lima Gonçalves: “Portanto, o legislador ordinário não pode intrometer-se livremente na definição do conteúdo do conceito de renda, pois isto significaria que ele estivesse veramente alterando o âmbito de competência tributária impositiva constitucionalmente outorgada, o que é inadmissível para qualquer analista sério.” (GONÇALVES, José Arthur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 206). 7 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 54. 8 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 34. 9 Assim leciona Humberto Ávila: “A reserva constitucional material é estabelecida indiretamente, nos casos em que a Constituição, implementando a sua divisão de competências no Estado Federal, ao atribuir poder para uma entidade política tributar um fato, pré-exclui implicitamente o poder de outra entidade política tributar o mesmo fato.” (ÁVILA, Humberto. O Imposto sobre Serviços e a Lei Complementar n. 116/03. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. O ISS e a LC 116. São Paulo: Dialética, 2003, p. 165-166). 5 198 A Não-tributação das Indenizações Decorrentes de Danos Morais por Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza 3 Conceito de “renda e proventos de qualquer natureza” Primeiramente, examinar-se-á a locução “renda e proventos de qualquer natureza” cindindo-se a expressão em “renda” e “proventos de qualquer natureza”. O conteúdo do vocábulo “renda” reside implicitamente no texto constitucional. Tratase de conceito pressuposto de “renda”, como afirma José Arthur Lima Gonçalves10, evitando atribuir liberdade desmedida ao legislador infraconstitucional para sobre ele dispor. “Renda” é termo que provém do latim reddere, que significa “render”. Assim, reddere origina a palavra “rédito”, cujo significa remete a “juros ou interesses produzidos pelo capital”11. A construção do conceito de renda se resume às disposições constitucionais, cujo sentido varia de acordo com o seu emprego nos inúmeros dispositivos que o mencionam expressamente, evidenciando a ausência de precisão no labor do legislador constituinte. Segundo Roberto Quiroga Mosquera, a palavra “renda”, positivada no diploma constitucional em vinte e duas ocasiões, apresenta cinco acepções distintas: “receitas tributárias e demais ingressos públicos; renda nacional, regional ou per capita; somatória de rendimentos; rendimento do trabalho; e produto do capital”12 . A interpretação do texto constitucional permite construir o conceito de “renda” a partir da sua fonte de produção, isto é, corresponde ao produto do trabalho, do capital ou da conjugação de ambos. Como “produto do trabalho”, a “renda” é rendimento globalmente considerado em lapso temporal desde que resulte em mutação patrimonial positiva. “Rendimentos do trabalho” são, na acepção de Roberto Quiroga Mosquera, os valores decorrentes do exercício de uma atividade laboral que demanda o consumo de energia pessoal para a concretização de uma tarefa ou objetivo, ou seja, o salário, as remunerações adicionais por serviços extraordinários, o FGTS, o seguro desemprego, entre outros13. “Renda” se apresenta como “produto do capital” quando consiste no resultado positivo de “(...) aplicações financeiras realizadas pelas pessoas físicas ou jurídicas no sistema financeiro e de capitais brasileiro.”14 GONÇALVES, José Arthur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 179. 11 QUEIROZ, Mary Elbe. Imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Baueri: Manole, 2003, p. 67. 12 MOSQUERA, Roberto Quiroga. Renda e proventos de qualquer natureza – o imposto e o conceito constitucional. São Paulo: Dialética, 1996, p. 48- 59. 13 MOSQUERA, Roberto Quiroga. Renda e proventos de qualquer natureza – o imposto e o conceito constitucional. São Paulo: Dialética, 1996, p. 56-57. 14 MOSQUERA, Roberto Quiroga. Renda e proventos de qualquer natureza – o imposto e o conceito constitucional. São Paulo: Dialética, 1996, p. 58. 10 199 Artigo 9 O Código Tributário Nacional em seu art. 43, I15, não destoa dos preceitos constitucionais ao prever a incidência do IR sobre “renda” compreendida como “produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos”, desde que gere um resultado positivo em face da situação pretérita verificada, tendo sito adotada, consoante leciona Roque Antonio Carrazza, a teoria da renda-acréscimo patrimonial16. Para elucidar com maior exatidão o conceito de “renda”, passa-se a investigar os conceitos próximos dispostos no texto constitucional, apartando-os em razão de suas discrepâncias, segundo o método empregado por José Arthur Lima Gonçalves17. Compreender o significado exige ainda evidenciar o que não é renda. Rendimento não é renda, pois o primeiro se apresenta, nos dizeres de Roque Antonio Carrazza, como: “(...) qualquer ganho, isoladamente considerado”18, enquanto a última significa riqueza nova em um interregno temporal, subtraídos os custos à sua aferição e manutenção. Faturamento não é renda, pois consiste no mero ingresso, o somatório das faturas, independentemente da noção de resultado, da comparação entre saldo positivo e negativo. O termo utilizado pelo art. 195, I, b19, da Constituição não se vincula às mutações patrimoniais dos sujeitos, incapaz de aferir a correspondente capacidade contributiva20. Capital não é renda; corresponde a “investimento permanente, de titulação de um patrimônio” e não remete à noção de renda que exige a comparação entre o patrimônio inicial e um final21. Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos. 16 Roque Antonio Carrazza apresenta as teorias investigadas por Horácio García Belsunce sobre o conceito de renda: (i) a da fonte, segundo a qual a renda é o produto periódico de uma fonte permanente, que persiste após a produção do acréscimo patrimonial, ou seja, subsiste retirada a riqueza nova; (ii) a do acréscimo patrimonial, para a qual renda consiste em toda espécie de aumento líquido ao patrimônio do contribuinte; (iii) teoria legalista, de acordo com a qual a renda é aquilo que a lei considera como tal, o que é incompatível com o rígido sistema constitucional tributário brasileiro, cujo legislador constituinte traçou exaustivamente as competências tributárias entre as pessoas políticas de direito constitucional interno. (CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 58). 17 GONÇALVES, José Arthur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 177. 18 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 35. 19 Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre [...] b) a receita ou o faturamento. 20 GONÇALVES, José Arthur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 177. 21 GONÇALVES, José Arthur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 178. 15 200 A Não-tributação das Indenizações Decorrentes de Danos Morais por Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza Ganho não é renda, tendo em vista que significa ingressos, que independem do resultado positivo, termo imprestável para ser empregado como conceito do imposto sub examinen22. Resultado não é renda, uma vez que o resultado se apresenta no final de um processo, não sendo passível de utilização para verificar a capacidade contributiva do sujeito23. Patrimônio não é renda, eis que expressa o sentido de conjunto estático de bens e direitos de titularidade de um sujeito, enquanto renda reveste o teor de um conjunto dinâmico de bens e direitos de uma pessoa24. Conclui-se a exaustiva investigação dos termos próximos pelo lucro. Lucro significa o “resultado positivo de atividade empresarial”25. Percebe-se tratar de espécie do gênero “renda”, vocábulo de maior abrangência. Já investigado o teor da palavra “renda”, ocupa-se de examinar o significado da expressão restante: “proventos de qualquer natureza”. Faz-se necessário dissertar a respeito do termo “proventos” que se encontra adjetivado pela expressão de “qualquer natureza”. Trata-se de conceito correlato ao de renda, ambos intimamente conectados. A palavra “proventos” decorre do latim proventus, cuja significação é resultado, lucro, crédito26. Como evidencia Roque Antonio Carrazza, os proventos também aumentam a riqueza econômica do contribuinte, o que remete à mesma concepção do termo “renda”, razão pela qual é possível afirmar que provento é uma modalidade de renda, vinculando-se os dois à noção de acréscimos patrimoniais27. Nota dissonante da acepção de “proventos” em relação à “renda” reside na sua conexão com pessoas físicas. Proventos significa os rendimentos auferidos em decorrência de um labor já exaurido, isto é, acréscimos patrimoniais advindos de uma atividade profissional já inativa, fruto do gozo de aposentadoria. Roberto Quiroga Mosquera28 apresenta duas acepções possíveis para a palavra “proventos” a partir da interpretação do termo em suas vinte e quatro aparições no GONÇALVES, José Arthur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 178. 23 GONÇALVES, José Arthur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 178. 24 GONÇALVES, José Arthur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 179. 25 GONÇALVES, José Arthur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 178. 26 QUEIROZ, Mary Elbe. Imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Baueri: Manole, 2003, p. 67. 27 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 53. 28 MOSQUERA, Roberto Quiroga. Renda e proventos de qualquer natureza – o imposto e o conceito constitucional. São Paulo: Dialética, 1996, p. 59-64. 22 201 Artigo 9 diploma constitucional: rendimentos de aposentadoria; e valores recebidos pelos agentes públicos. Concluindo-se pela correção da primeira acepção, pode-se falar em valores obtidos após a conclusão do período laboral em determinado ofício pelo decurso do tempo previsto ou pela ocorrência de impedimentos de ordem pessoal, como físicos ou mentais. O direito à aposentadoria se encontra disposto na Constituição no art. 7.º, XXIV29, direito social fundamental assegurado a todos os trabalhadores e, como corolário desse direito, os rendimentos auferidos como contrapartida da aposentadoria. “Renda” e “proventos” correspondem a realidades conexas, pois, enquanto a primeira remete aos rendimentos advindos do trabalho e do capital, a última consiste em rendimentos frutos de aposentadoria. O constituinte originário, ao veicular a expressão “de qualquer natureza” em adição à palavra “proventos”, procedeu com claro intuito de ampliar o alcance do fato passível de inclusão na hipótese de incidência do imposto federal. Trata-se de enunciado acessório a “proventos”, cujo significado remonta à fonte produtora dos rendimentos. Nessa esteira, não apenas os rendimentos advindos do trabalho, do capital, da aposentadoria, mas outros devêm se subsumir ao conceito de renda e proventos. Como observa Roberto Quiroga Mosquera, a referida expressão indica que o imposto em tela: “(...) incidirá sobre todo e qualquer rendimento independentemente de se originarem do trabalho, do capital, da aposentadoria, ou de outras fontes que ele não nominou.”30 A ampliação operada pela inserção da expressão “de qualquer natureza” ao conceito de “proventos” modifica o sentido do termo, pois não mais vincula a fonte de produção dos rendimentos à aposentadoria, passando a incluir os rendimentos produto de origem não-específica31. Portanto, o aspecto material da hipótese de incidência do imposto se apresenta como: “(...) dinheiros, remunerações, valores, quantias, recebidos de qualquer espécie, de qualquer origem, sem que haja necessidade de que tais vantagens derivem, exclusivamente, do trabalho, do capital e da aposentadoria.”32 Art. 7.º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XIV – aposentadoria; 30 MOSQUERA, Roberto Quiroga. Renda e proventos de qualquer natureza – o imposto e o conceito constitucional. São Paulo: Dialética, 1996, p. 65. 31 Segundo Mary Elbe Queiroz, a maior amplitude atribuída a “proventos” pela expressão de “qualquer natureza” significa a abrangência de todas as espécies de proventos, independentemente de: “[...] natureza, tipo, denominação, origem (capital, trabalho, produção, aposentadoria), localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte ou da forma de percepção.” (QUEIROZ, Mary Elbe. Imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Baueri: Manole, 2003, p. 67). 32 MOSQUERA, Roberto Quiroga. Renda e proventos de qualquer natureza – o imposto e o conceito constitucional. São Paulo: Dialética, 1996, p. 66. 29 202 A Não-tributação das Indenizações Decorrentes de Danos Morais por Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza 4 “Renda e proventos de qualquer natureza” como mutações patrimoniais positivas Como observado anteriormente, a renda e os proventos de qualquer natureza advêm da comparação entre as entradas e as saídas do contribuinte em um período de tempo e, alcançado um resultado positivo, vislumbra-se o acréscimo patrimonial cuja incidência é autorizada constitucionalmente, ressalvadas as hipóteses vedadas pelo diploma constitucional e demais dispositivos infraconstitucionais. Esse cotejo entre certas entradas e certas saídas33 exige, necessariamente, considerar um termo inicial e um final, sob pena de comprometer a base de cálculo do imposto, violando-se a diretriz constitucional da capacidade contributiva pois, caso contrário, estar-se-ia exigindo gravame sobre fato não-tributável. Os ganhos econômicos em um determinado interregno temporal correspondem à noção de riqueza nova, independente da fonte que a originou e apta a criar nova riqueza34. Essa riqueza surge pela apuração dos acréscimos patrimoniais de um contribuinte (rendimentos brutos), feita a subtração das deduções e abatimentos35, autorizados pela Constituição e pela legislação infraconstitucional, sobre os rendimentos brutos auferidos pelo sujeito passivo da exação em um determinado período de tempo36. Para aferir o saldo positivo é indispensável que seja subtraída a totalidade dos prejuízos para encontrar no resultado a renda, caso contrário, a incidência do IR recairá sobre o patrimônio do contribuinte. A matéria tributável resulta na diferença surgida apenas depois de descontados os prejuízos, que tem o condão de reduzir o efeito positivo das entradas, até mesmo de suprimi-lo. A riqueza nova para que se sujeite à incidência do IR deve estar disponível para o contribuinte, ou seja, a sua fruição não deve encontrar óbices37. Assim prescreve o Código Tributário Nacional em seu art. 43, de acordo com o qual a renda tributável é aquela ao alcance do contribuinte. Resta evidente o cotejo entre “certas” entradas e “certas” saídas no conceito constitucional pressuposto de renda apresentado José Arthur Lima Gonçalves, que consiste em: “(i) saldo positivo resultante do (ii) confronto entre (ii.a) certas entradas e (ii.b) certas saídas, ocorridas ao longo de um dado (iii) período.” (GONÇALVES, José Arthur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 179). 34 Como observa Roque Antonio Carrazza, não é necessária a reprodução efetiva, periódica e constante, desde que haja possibilidade disto ocorrer, tal como o ganho fortuito, uma vez que é passível de reprodução. (CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 36). 35 Leciona Roque Antonio Carrazza que a “renda tributável” é sempre “renda líquida” ou “lucro”, independentemente de sua origem lícita ou ilícita, moral ou imoral. (CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 36). 36 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 36. 37 Isto se vislumbra na base de cálculo possível do imposto sobre a renda-pessoa física ou pessoa jurídica, uma vez que deve compreender uma medida da totalidade líquida de renda ou dos proventos, reais e não meramente potenciais, em um determinado período de tempo. (CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 73, 93). 33 203 Artigo 9 Ademais, o patrimônio do contribuinte deve sofrer uma variação positiva, representando ganhos reais, e não meras recomposições patrimoniais, como indenizações38 (como será visto no item 5). Com efeito, não são todas as entradas sujeitas ao cotejo com as saídas, mas apenas aquelas que correspondem ao conceito constitucional de “rendas e proventos de qualquer natureza”. Da mesma forma, não são todas as saídas passíveis de serem incluídas no cálculo com as entradas39. Ressalte-se ainda que o IR é informado pelo critério da universalidade, conforme previsto no art. 153, § 2.º, I40, da Constituição de 1988, bem como da generalidade e da progressividade. Segundo o primeiro, os rendimentos do contribuinte devem ser tomados globalmente, em um todo unitário de elementos positivos e negativos, para aferir a renda, sem distinções no atinente aos efeitos tributários41. A renda brota da verificação de aumento patrimonial em um período de tempo, acréscimo patrimonial efetivo e não apenas rendimento insularmente concebido, uma vez que este não representa efetivo acréscimo se tomado em apenas um instante ou pode ainda significar uma forma de reposição de um patrimônio lesado. Evidencia-se que os acréscimos patrimoniais tributáveis se resumem àqueles que remetem à situação dinâmica do patrimônio, não atingem o patrimônio estático do contribuinte, isto é, o conjunto de bens de cunho econômico em um dado instante. Para que seja observada a mutação patrimonial positiva é indispensável a aferição do patrimônio do sujeito no termo inicial para cotejá-lo com o numerário no termo final. Segundo José Arthur Lima Gonçalves42, a Constituição utiliza um “padrão temporal básico” que, por coerência e unidade sistemática, seria aplicável para determinação do lapso temporal de aferição da renda. Sendo assim, a Constituição prevê o período anual como fator condicionante de uma série de relações jurídicas, precipuamente em relação ao funcionamento estatal e, em matéria de IR, a Constituição não apenas prevê um período, mas um intervalo anual. Corrobora-se, pois, com o conceito de “renda e proventos de qualquer natureza” apresentado por Roque Antonio Carrazza, segundo o qual: “(...) são os ganhos econômicos do contribuinte gerados por seu capital, por seu trabalho ou pela CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 39-40. 39 GONÇALVES, José Arthur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 183. 40 Art. 153. [...] § 2.º – O imposto previsto no inciso III: I - será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei. 41 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 40. 42 GONÇALVES, José Arthur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 184-5. 38 204 A Não-tributação das Indenizações Decorrentes de Danos Morais por Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza combinação de ambos e apurados, após o confronto das entradas e saídas verificadas em seu patrimônio em certo lapso de tempo.”43 O Código Tributário Nacional, em seu art. 4344 , acrescenta outro requisito ao imposto sobre a renda: a disponibilidade econômica ou jurídica de renda e de proventos. Segundo assevera Ricardo Mariz de Oliveira45, a materialidade do imposto sobre a renda é estabelecida pela presença de renda ou proventos de qualquer natureza, bem como a existência de aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica dos primeiros. A disponibilidade econômica ou jurídica são realidades acessórias em relação à renda e aos proveitos de qualquer natureza, surgidas quando se está diante de novo direito, adquirido em caráter definitivo. Possuir a renda efetivamente no patrimônio, disponibilidade econômica, possuí-la juridicamente, disponibilidade jurídica. 5 Conceito de indenização A indenização tem a função de compensar ou ressarcir os prejuízos causados a um sujeito em decorrência da ação ou da omissão de outro indivíduo que ocasiona um dano46, gerando desequilíbrio patrimonial para a pessoa lesada. A indenização compreende um meio de diminuir o sofrimento de um sujeito por força de um dano gerado ao seu patrimônio. Como define Silvio Rodrigues, indenizar significa: “(...) ressarcir o prejuízo, ou seja, tornar indene a vítima, cobrindo todo o dano por ela experimentado.”47 Trata-se de uma obrigação do causador do ato em favor do lesado, embora não sejam todos os danos passíveis de aferição. CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 35. 44 Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior. 45 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. A disponibilidade ficta de lucros de coligadas ou controladas no exterior. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. Grandes questões atuais do direito tributário. v. 6. São Paulo: Dialética: 2002, p. 393-436. 46 Como leciona Teresa Ancona Lopez, o termo “dano” etimologicamente advém de demere, que corresponde a: “tirar, apoucar, diminuir”. O dano surge de alterações no estado de bem-estar do sujeito, proveniente da subtração ou perda de seus bens originários ou derivados extrapatrimoniais ou patrimoniais. (LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético: responsabilidade civil. 3.ª ed. São Paulo: RT, 2004, p. 23). Segundo Luiz Rodrigues Wambier, dano é definido como: “[...] a situação resultante de ato ou de omissão, ilícitos ou não, em que alguém, de forma culposa ou em razão do exercício de dada atividade, cujos riscos deve suportar, cause menos valia no patrimônio da vítima, mesmo que relativa a interesses não apreciáveis economicamente, possibilitando, via de conseqüência, o nascimento da pretensão ressarcitória.” (WAMBIER, Luiz Rodrigues. Liquidação do dano (aspectos substanciais e processuais). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 27). 47 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Responsabilidade civil. v. IV. 20.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 185. 43 205 Artigo 9 A responsabilidade civil48, pois, compreende o instituto jurídico que estabelece o dever de reparar danos, desde que advindos prejuízos em decorrência da situação concreta, independentemente da ilicitude do ato cometido, visando à viabilização da vida em sociedade: “(...) a teoria da responsabilidade civil visa ao restabelecimento da ordem ou equilíbrio pessoal e social, por meio da reparação dos danos morais e materiais oriundos da ação lesiva a interesse alheio (...).”49 Como ressalta Sérgio Cavalieri Filho, o fundamento da responsabilidade civil consiste na “quebra do equilíbrio econômico-jurídico provocada pelo dano”. A responsabilidade civil almeja restabelecer esse equilíbrio, por meio da imposição de uma indenização que recoloca o prejudicado em seu status quo ante, em atenção ao princípio do restitutio in integrum, sempre que isto seja possível50 . Percebe-se que a indenização não gera incremento de patrimônio, pois este fora prejudicado por força de uma ação ou omissão de outrem. Há apenas a recomposição do patrimônio atingido tal como se encontrava antes do dano51. A indenização não se confunde com o acréscimo patrimonial, pois havendo a percepção pela vítima de montante superior ao prejuízo experimentado, ocorre enriquecimento sem causa. Portanto, a indenização, como uma “transformação de riqueza”52 e não riqueza nova, é uma forma de compensar, v.g., o proprietário de um bem por uma desapropriação, o trabalhador que sofre uma despedida injusta ou que sofre um acidente de trabalho, ou o indivíduo que sofre abalos de ordem material, moral ou estética. A indenização consiste em um instrumento para restituir ou reparar prejuízos, cujo valor é obtido pela aferição do dano provocado ao bem jurídico atingido. Trata-se de um mecanismo substitutivo do dano gerado ao patrimônio de um indivíduo, razão pela qual não se sujeita à incidência de IR. Etimologicamente, responsabilidade significa “obrigação, encargo, contraprestação”. Em sentido jurídico, responsabilidade representa o “dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 24). 49 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das obrigações. 2.ª parte. 34.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 448. 50 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 6.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 36. 51 Nesse sentido leciona Roque Antonio Carrazza: “Nelas [indenizações], não há geração de rendas ou acréscimos patrimoniais (proventos) de qualquer espécie. Não há riquezas novas disponíveis, mas reparações, em pecúnia, por perdas de direitos. Na indenização, como é pacífico e assente, há compensação, em pecúnia, por dano sofrido. Noutros termos, o direito ferido é transformado numa quantia em dinheiro.” (grifos do autor) (CARRAZZA, Roque Antonio. I.R. – Indenização (a intributabilidade, por via de imposto sobre a renda, das férias e licenças-prêmio recebidas em pecúnia). Revista de Direito Tributário. ano 14, n.º 52, abr/jun 1990, p. 179). 52 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 176. 48 206 A Não-tributação das Indenizações Decorrentes de Danos Morais por Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza Isto porque, como já examinado no item anterior, o IR incide sobre acréscimos patrimoniais advindos de riquezas novas disponíveis em um determinado período de tempo, o que não ocorre com as indenizações, que apenas reparam o patrimônio do sujeito lesado em decorrência do sofrimento de um dano. Como asseveram Geraldo Ataliba e Agostinho Sartin: “Juridicamente, o patrimônio indenizado não aumenta de valor. Nada lhe é adicionado pela indenização. É simplesmente recomposto ou restaurado. Permanece indene, incólume.”53 O desfazimento do dano é almejado pela ordem jurídica, entretanto, os danos no plano moral54, da honra ou da imagem do sujeito podem ser apenas compensados, pois não é viável o regresso ao status quo ante. Nessas situações o ordenamento jurídico encontra formas de compensar, e não restituir, o patrimônio imaterial da pessoa lesada, pois há danos que uma vez cometidos são irreparáveis, restando apenas encontrar formas alternativas de remediar a situação55. A quantificação da indenização varia conforme a extensão do dano gerado que enseja a reparação56. Embora a legislação faça clara menção a isenções de IR em certas hipóteses de indenizações, já se demonstrou que não são passíveis de incidência pelo IR, independente da prévia previsão infraconstitucional. O IR não incide sobre indenizações por força de disposição constitucional, tendo em vista que a previsão do art. 153, III, do texto constitucional, interpretado com os demais dispositivos positivados na Carta Magna, permite concluir que o gravame incide apenas sobre acréscimos patrimoniais, e não sobre “transformações patrimoniais”. No entanto, como leciona Roque Antonio Carrazza57, as referidas isenções têm função eminentemente declaratória, pois não criam novas situações, mas apenas evitam dúvidas para os aplicadores do direito, ATALIBA, Geraldo; SARTIN, Agostinho. Imposto de renda – não-incidência sobre indenizações por desapropriação. Revista de Direito Tributário. ano X, n.º 36, abr/jun 1986, p. 50. 54 Como assevera Yussef Said Cahali, o dano moral consiste em: “[...] tudo aquilo que molesta gravamente a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais inerentes à sua personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que está integrado [...]” (CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 3. ed. São Paulo: RT, 2005, p. 22). 55 Nesse sentido leciona Silvio Rodrigues: “A idéia de tornar indene a vítima se confunde com o anseio de devolvê-la ao estado em que se encontrava antes do ato ilícito. Todavia, em numerosíssimos casos é impossível obter-se tal resultado, porque do acidente resultou conseqüência irremovível. Nessa hipótese há que se recorrer a uma situação postiça, representada pelo pagamento de uma indenização em dinheiro. É um remédio nem sempre ideal, mas o único de que se pode lançar mão.” (RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Responsabilidade civil. v. IV. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 186). Nesse mesmo sentido: MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das obrigações. 2.ª parte. 34.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 482. 56 Assim se manifesta Washington de Barros Monteiro: “Já que o evento danoso interrompe a sucessão normal dos fatos, a reparação de danos deve provocar um novo estado de coisas que se aproxime tanto quanto possível da situação frustrada, ou seja, daquela situação que, segundo a experiência humana, em caráter imaginário, seria a existente se não tivesse ocorrido o dano. Desse modo, o critério da extensão do dano aplica-se perfeitamente à reparação do dano material, que tem caráter ressarcitório.” (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das obrigações. 2.ª parte. 34.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 482). 57 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 186. 53 207 Artigo 9 evidenciando o que realmente não se sujeita à incidência do imposto, prevenindo demandas entre a União e seus virtuais contribuintes. Cumpre ressaltar que o IR não incide sobre os juros de mora decorrentes do pagamento de indenização, pois são realidade acessória em relação ao principal, a verba indenizatória. Os juros de mora remuneram o credor por ser privado de seu capital pelo tempo do inadimplemento do devedor. Nesta toada, os juros de mora correspondem a “indenização pelo prejuízo resultante do retardamento culposo”58. A legislação que porventura venha a criar tributo (IR) incidente sobre indenizações será fadada à inconstitucionalidade, por violar o próprio texto constitucional. Portanto, não compete ao legislador evidenciar quais as hipóteses de indenização que não ensejam a incidência de IR, sob pena de as demais situações serem interpretadas como passíveis de serem tributadas por meio da exação, por meio de uma interpretação a contrario sensu. 6 Indenizações advindas de danos morais A indenização surge como conseqüência de um dano, mensurada de acordo com a extensão do prejuízo sofrido por um determinado indivíduo. Para que a indenização seja devida é indispensável a ocorrência de um dano. Este dano é conseqüência de uma lesão a um direito, seja patrimonial ou extrapatrimonial. O dano imaterial tem sido definido pela negativa, isto é, o dano não patrimonial. Contudo, o dano moral consiste na subtração de bens cujo valor não é econômico, mas afetivo, social, remetendo à dignidade da pessoa humana. Como leciona Yussef Said Cahali, o dano moral representa: “(...) tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais inerentes à sua personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que se está integrado (...)”59. Portanto, o dano moral corresponde à violação do direito de dignidade, razão pela qual a Constituição de 1988, em seu art. 5.º, incisos V e X60, prevê a reparação plena do dano moral, que não necessita estar vinculado à reação psíquica da vítima61. Silvio Rodrigues ressalta que os juros consistem no preço do uso do capital, classificando-se em juros compensatórios e moratórios. Os primeiros são os frutos do capital empregado, enquanto os moratórios correspondem à indenização pelo dano resultante do atraso culposo. (RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Parte geral das obrigações. v. II. 30.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 257). 59 CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 3.ª ed. São Paulo: RT, 2005, p. 22. 60 Art. 5.º [...] V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; [...] X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; 61 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 6.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 101. 58 208 A Não-tributação das Indenizações Decorrentes de Danos Morais por Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza Os direitos de personalidade, como a vida, a integridade física, a reputação, quando infringidos, dão ensejo ao surgimento do dano moral. Pessoas jurídicas62 também podem sofrer danos no campo moral, como prejuízo ao seu nome, à sua marca, cuja compensação visa reparar a “perda potencial do patrimônio”63. O fundamento da reparação dos danos morais, segundo Caio Mário da Silva Pereira, consiste na titularidade pelo indivíduo de direitos que integram sua personalidade, cuja violação o ordenamento jurídico não pode consentir com a impunidade64. A indenização por dano moral é a mera conversão em pecúnia do prejuízo sofrido pela vítima ao seu patrimônio moral em decorrência de ação ou omissão do sujeito que a lesou. Não há riqueza nova, pois a indenização converte o prejuízo a bens fora do mercado em valores monetários65, tendo em vista constituir a única forma de compensar o dano, dada a impossibilidade de regresso ao status quo ante. O dano, patrimonial ou extrapatrimonial, gera redução patrimonial lato sensu, ou seja, todos os bens ou direitos do sujeito, que não se reduzem apenas aqueles aferíveis economicamente, mas também os bens e direitos de natureza subjetiva, como leciona Roque Antonio Carrazza66. Percebe-se a ausência de correspondência imediata entre o dano moral e valores monetários, pois o patrimônio material da vítima não é atingido, razão pela qual a indenização é calculada com o intuito de reparar o dano imaterial causado à vítima, segundo o juízo do magistrado. A verba indenizatória tem o objetivo de compensar o sofrimento e a dor das vítimas ou de seus familiares, e não gerar acréscimos patrimoniais. O patrimônio imaterial, como o nome, a imagem, a honra, é erigido no decurso da vida de cada sujeito, ampliando-se de acordo com as atitudes e atividades exercidas pela pessoa, riqueza esta não tributável, pois não aferível em termos econômicos, não se sujeitando a incidência de IR. Já se encontra sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça a possibilidade de ser conferida à pessoa jurídica indenização por danos morais (Sumula n. 227). 63 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 182. 64 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 54. 65 Nesse sentido leciona Roque Antonio Carrazza: “Sobremais, o dinheiro entregue ao beneficiado toma por paradigma bens que estão fora do campo econômico, sendo, pois, insuscetíveis de avaliação pecuniária. Não há falar, no caso, nem em riqueza nova, nem em acréscimo patrimonial, nem, muito menos, em mais-valia.” (CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 181). 66 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 180. 62 209 Artigo 9 Por conseguinte, a indenização, ao reparar financeiramente danos na esfera moral, representa recomposição do patrimônio imaterial, do que resulta sua intributabilidade pelo imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. 7 Conclusões O tema da incidência do imposto sobre a renda sobre indenizações provenientes de danos morais instiga inúmeros estudos que pretendem demonstrar a possibilidade ou não da exigência do tributo federal. O imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, segundo disposto no art. 153, III, da Constituição de 1988, incide sobre os rendimentos compreendidos em um período de tempo anual, que representam acréscimos patrimoniais ao contribuinte, ou seja, verificado o patrimônio no termo inicial do período e no final, pode-se concluir pela presença de riquezas novas na esfera patrimonial de um determinado sujeito. A indenização representa recomposição de um patrimônio danificado por uma ação ou omissão lesiva cometida por um sujeito à vítima, retornando à situação pretérita tal como se o dano não tivesse operado, quando isto for viável. Nesta toada, a indenização não significa acréscimo patrimonial, mas reparação de um patrimônio quando possível ou uma forma de compensação quando o status quo ante não for mais alcançável. O imposto sobre a renda não alcança o patrimônio do contribuinte, atingindo apenas os rendimentos que se enquadram no conceito de renda, razão pela qual as indenizações não se situam no campo tributável do imposto federal. A indenização decorrente de dano moral consiste em uma compensação pecuniária pelo dano causado à esfera imaterial da vítima. Trata-se da conversão em moeda do prejuízo ao patrimônio moral da vítima, que não é recuperado, mas apenas reparado. Não há riqueza nova passível de incidência do imposto sobre a renda, na medida em que há redução patrimonial lato sensu e, da mesma forma que as demais indenizações, não gera renda tributável por não representar acréscimo patrimonial em um determinado lapso temporal. 8 Referências ATALIBA, Geraldo; SARTIN, Agostinho. Imposto de renda – não-incidência sobre indenizações por desapropriação. Revista de Direito Tributário. ano 10, n.º 36, abr/ jun 1986, p. 49-61. ÁVILA, Humberto. O imposto sobre serviços e a lei complementar n.º 116/03. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. O ISS e a LC 116. São Paulo: Dialética, 2003. p. 165184. 210 A Não-tributação das Indenizações Decorrentes de Danos Morais por Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 3..ª ed. São Paulo: RT, 2005. CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2005. CARRAZZA, Roque Antonio. I.R. – Indenização (a intributabilidade, por via de imposto sobre a renda, das férias e licenças-prêmio recebidas em pecúnia). Revista de Direito Tributário. ano 14, n.º 52, abr/jun 1990, p. 175-186. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 6..ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005. GONÇALVES, José Arthur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002. LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético: responsabilidade civil. 3..ª ed. São Paulo: RT, 2004. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das obrigações. 2.ª parte. 34..ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. MOSQUERA, Roberto Quiroga. Renda e proventos de qualquer natureza – o imposto e o conceito constitucional. São Paulo: Dialética, 1996. OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. A disponibilidade ficta de lucros de coligadas ou controladas no exterior. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. Grandes questões atuais do direito tributário. v. 6. São Paulo: Dialética, 2002. p. 393-438. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 6..ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. QUEIROZ, Mary Elbe. Imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Baueri: Manole, 2003. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Responsabilidade civil. v. 4. 20..ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. WAMBIER, Luiz Rodrigues. Liquidação do dano (aspectos substanciais e processuais). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. 211 Artigo 10 Posse e propriedade na contemporaneidade Samir Namur Professor de direito civil e estágio civil nas Faculdades Integradas do Brasil (UNIBRASIL) e de direito de família e das sucessões na Fundação Escola do Ministério Público do Paraná (FEMPAR). 1 Introdução. 2 Posse e propriedade clássicas. 2.1 Posse: definição histórica e clássica. 2.2 Propriedade: definição histórica e clássica. 3 Função social da posse e da propriedade. 4 Algumas premissas do direito civil-constitucional. 5 O patrimônio mínimo. 6 Uma decisão exemplar. 7 Conclusão. 8 Referências. Resumo O presente trabalho tem como objetivo a análise, em linhas gerais, dos aspectos determinantes acerca da posse e da propriedade no direito atual. Nesse sentido é que se menciona a contemporaneidade, partindo-se do pressuposto de que os institutos básicos, especialmente do direito civil, foram cunhados de tal maneira na modernidade que hoje se permite a identificação da insuficiência deles, premente de revisão e readequação jurídicas. Sob esse aspecto, imprescindível o marco teórico que se funda na metodologia do direito civil-constitucional, em que o princípio da dignidade humana e a Constituição da República, vértices do ordenamento jurídico, exigem reformulação da dogmática do direito civil. Isso ocorre com os institutos da posse e da propriedade, mas também com a modelação do que se entende por função social da posse e da propriedade, aquela independente desta, bem como a introdução dos contornos jurídicos da defesa de um patrimônio mínimo. Nesse sentido, a conclusão, confirmada por vasta bibliografia proveniente dos principais civilistas brasileiros do presente, importante não só para aspectos de ordem teórica, mas também no âmbito da aplicação do direito, motivo pelo qual é trazida à colação decisão concernente com o aduzido previamente. Palavras-chave: Posse; Propriedade; Função social; Constituição 212 Posse e Propriedade na Contemporaneidade Abstract This work has the intention of analize, in general, the major aspects wich envolves the property and the possession in the present law. The word contemporaneousness, in the title, assumes the view that the institutes of civil law were made in such a way in the modernity that it nowadays allows the identification of its insufficiency, urging for revision and adjustment. On this point, vital the theoretical boundary wich is established in the civil-constitucional methodology, in wich the principle of the human dignity and the Republican Constitution top of the rights, demandans a reformulation of the civil law doctrine. This occurs with the institutes of possession and property, but also with the perception of social function of possession and property, that independet of this, besides the porpuse of the legal regulation of a minimum patrimony. In this way the conclusion, confirmed by the vast bibliography proceeding from the most important brazilian civilists of the present, important not only for theoretical aspects, but also in the ambit of the application of the law, reason because the article ends with a decision wich corroborates wath is adduced. Keywords: Possession; Property; Social function; Constitution. 1 Introdução Para que se possa pensar em um panorama atual da posse e da propriedade, conceitos nucleares para o denominado direito das coisas, é preciso que, inicialmente, sejam tecidas algumas considerações que remontam há séculos pretéritos. Por esse motivo, trata-se da posse e da propriedade clássicas, conformação que sem dúvida influenciou o panorama atual, em razão de que permaneceram diversos resquícios seus, bem como sucederam diversas mudanças, advindas da crítica e das necessidades da sociedade. Adentrando a análise do panorama contemporâneo, para concluir em favor de noções de posse e propriedade diferenciadas e modificadas, é imperioso passar pela doutrina da função social (da posse e da propriedade, independentes), por algumas premissas do direito civil-constitucional e pela conjunção dessas duas linhas teóricas: o patrimônio mínimo. Por fim, para manter os pés na realidade em que vivemos, colaciona-se exemplo de jurisprudência crítico-construtiva, que de algum modo sintetiza o pouco que será aduzido nas linhas subseqüentes. 2 Posse e propriedade clássicas Ao lado da empresa, pode-se afirmar que posse e propriedade exercem papel fundamental na apreensão jurídica do que se pode chamar, em sentido geral, de 213 Artigo 10 patrimônio. Desde logo, é preciso afirmar que no seu tratamento pelo direito não pode haver neutralidade, visto que o permeia a dimensão política, ideológica e econômica1. De acordo com Orlando de Carvalho, “a noção de direito de propriedade é expressiva de certa forma de economia e explicativa do projeto tanto cívico quanto político que representa a sociedade em determinado momento”2. A doutrina, via de regra, explica a realização do estudo da posse previamente ao da propriedade, justificando a precedência do fato relevante sobre o direito. No entanto, encontra-se também a afirmação de que isso costuma corresponder à opção feita pelo código civil, em tratar uma ou outra em primeiro lugar. Dessa forma, na família romano-germânica ocidental, a doutrina acaba por seguir a mesma ordem que o código civil (assim, franceses e italianos tratam a propriedade antes da posse)3. 2.1 Posse: definição histórica e clássica Pouca remissão há sobre o tratamento da posse no Direito Romano. Isso não se deve à sua inexistência naquela época, mas sim ao fato de que, muito embora tenha ela sido disciplinada, não tenha havido a elaboração de uma teoria sistemática, como procederam Savigny e Lhering na pandectística. Savigny concebeu a posse como dependente da propriedade, como a conjunção entre corpus e animus, respectivamente um elemento material, poder físico da pessoa sobre a coisa, e um elemento intencional, a vontade de ter a coisa como sua. Esse último acabou justamente sendo o ponto complicador de sua teoria, pois exigia para a posse um estado íntimo difícil de ser precisado concretamente, que acabava por classificar como simples detentores o locatário, o comodatário, o depositário, dentre tantas outras posições de ampla relevância econômica.4 Lhering, por sua vez, parte da distinção clara entre posse e propriedade, o fato e o direito, fazendo com que a utilização econômica da coisa configure elemento indispensável para o tratamento da posse. Assim, não exigia o animus domini para a conformação da posse, bastando o exercício de um poder (animus tenendi) que não corresponderia necessariamente à propriedade. O Código Civil Alemão foi o primeiro a seguir essa teoria, tendo influenciado Suíça, China, México e Peru, além do Brasil, dentre outros países, fundamentando a proteção possessória na manutenção da relação de fato,5 estendendo-a a uma série de situações não protegidas pela teoria de Savigny. GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19.ª ed. (Atualizada por Luiz Edson Fachin). Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 7. 2 MUNIZ, Francisco José Ferreira. A função social da propriedade e a Lei das Terras do Paraná. In: Textos de Direito Civil. Curitiba: Juruá, 1998. p. 53. 3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. IV. 19.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 7. 4 GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19.ª ed. (Atualizada por Luiz Edson Fachin). Rio de Janeiro: Forense, 2004 p. 33. 5 GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19.ª ed. (Atualizada por Luiz Edson Fachin). Rio de Janeiro: Forense, 2004 p. 39-40. 1 214 Posse e Propriedade na Contemporaneidade Classicamente a posse tem sido definida como a visibilidade do domínio, o que está insculpido no artigo 1.196 do Código Civil6 , comportando como exceções a detenção (artigo 1.1987) e os atos de mera permissão ou tolerância (artigo 1.2088). Em decorrência disso, passa-se a classificar a posse de diversas maneiras (justa ou injusta, de boa-fé ou de má-fé, direta ou indireta, originária ou derivada), que influenciarão diretamente a proteção possessória, a usucapião e o seu tratamento legal, bem como lhe são atribuídos uma série de efeitos. 2.2 Propriedade: definição histórica e clássica No Direito Romano, em que pese a controvérsia sobre o surgimento da noção dos direitos reais, o conceito de propriedade era individualista, cada coisa detinha apenas um dono. Isso precisa ser lido na perspectiva de uma economia fechada, agropastoril e escravagista, polarizada em núcleos familiares (domínio apenas do pater familias). A divisão entre as casas (a propriedade) era imperativa, sendo inclusive sagrada, ditada pela religião, que conferia também caráter sagrado à propriedade. Portanto, no direito romano, a propriedade foi inicialmente garantida pela religião (através das divindades domésticas, que demarcavam o espaço de cada família), e não pela lei. Apenas através de cerimônias religiosas podia ser alienada, dividida. Não havia qualquer tipo de expropriação por utilidade pública e o confisco só ocorria em casos de exílio (quando o homem era privado do título de cidadão). Como a propriedade era da família, sequer podia responder pelas dívidas do titular, tendo a Lei das Doze Tábuas previsto a garantia com o corpo do devedor9. Além disso, a noção de propriedade estava ligada necessariamente à materialidade do objeto (noção adotada pela legislação alemã)10. Já a propriedade medieval caracteriza-se pela quebra desse conceito unitário, surgindo a concorrência de proprietários em razão da utilização econômica do bem (ocorrendo o que a doutrina denominou de parcelamento máximo do direito de propriedade, em razão dos direitos do senhor e do vassalo sobre o mesmo solo). Com isso, ocorre a valorização da terra, ainda que seja observada a estrita dependência entre o poder político e a sua propriedade11, dando-se o vínculo entre vassalo e Artigo 1.196: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. 7 Artigo 1.198: “Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas”. 8 Artigo 1.208: “Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade. 9 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Tradução: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 65-77. 10 ALVIM, José Antônio Arruda. Coisa. In: Vicente de Paulo Barreto (coord.). Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 133. 11 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: António Manuel Botelho Hespanha. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. p. 261. 6 215 Artigo 10 senhor feudal através da sua exploração (em que se encontra o surgimento do sistema enfitêutico). Com efeito, esse era um modelo que dificultava a consideração da terra como mercadoria, objeto de circulação econômica, compra e venda, levando Eroulths Cortinao Júnior a afirmar que “o desmembramento da propriedade (domínio útil/ eminente) é a comprovação dessa visão proprietária que parte da coisa e não do sujeito para definir a titularidade”, ocorrendo o que Paolo Grossi denominou de “estatuto da coisa”12. Com o liberalismo no século XIX, o direito de propriedade se destaca do poder político, aproximando-se do direito civil. O regime capitalista restaura o conceito unitário e individualista, impondo raras restrições ao direito de propriedade e garantindo a mais ampla liberdade para a utilização econômica da coisa13, elevando-o à verdadeira condição de direito natural14, lado a lado das liberdades fundamentais (a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, inclusive, determina o caráter sacro e inviolável da propriedade). Sob essa ótica, não obstante, a propriedade, como capacidade de assenhoreamento sobre os bens, é considerada como atributo da personalidade. Essa passa a ser a pedra angular do capitalismo, com os direitos privativos dos particulares servindo para contrabalançar as prerrogativas reservadas aos titulares do poder público. Com o capitalismo, a propriedade deixa de ser um direito da pessoa para se transformar em um princípio de organização da sociedade, marcada pelo primado do econômico, levando à redução das alternativas de vida, às opções do mercado. Isso faz com que ela se transforme em verdadeiro fator de realização do indivíduo. É o que Pietro Barcellona designou de princípio proprietário15, uma racionalidade que influenciou as codificações européias do século XIX e as brasileiras, que pretendia conceder ao discurso proprietário uma característica de atemporalidade, através de seu extremado grau de abstração e generalidade, uma estruturação formal à qual os fatos devem se submeter. Não resta, nos dias de hoje, dúvida alguma de que esse discurso não permaneceu imune a críticas e rupturas, como bem identifica Eroulths Cortiano Júnior: CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 88. 13 MUNIZ, Francisco José Ferreira. A função social da propriedade e a Lei das Terras do Paraná. In: Textos de Direito Civil. Curitiba: Juruá, 1998. p. 54. 14 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia – Síntese de um Milénio. 3.ª ed. Lisboa: Publicações Europa – América, 2003. p. 342. 15 Em BARCELLONA, Pietro. El individualismo propietario. Madrid: Trotta. 1996. 12 216 Posse e Propriedade na Contemporaneidade À excessiva abstração do modelo proprietário insurgem-se os homens concretos com suas necessidades concretas, e as incongruências entre realidade social, sistema econômico e dado normativo irão influenciar o tratamento jurídico da propriedade.16 Nesse diapasão, atualmente há forte tendência no sentido da “estatização da propriedade”, construindo uma nova noção do instituto, em que restrições e limitações visam a coibir abusos e impedir que o exercício do direito de propriedade se transforme em instrumento de dominação. Assim, a autonomia do proprietário não se confunde com o livre-arbítrio. Trata-se do advento do que pode ser chamado de “Estado Social”, que possuiria três postulados: 1. Igualdade material em contrapartida à igualdade formal; 2. Reconhecimento recíproco da subjetividade social em face da subjetividade abstrata; 3. Princípio da solidariedade e da intervenção do Estado na economia.17 Tendo em vista a racionalidade das codificações, foi a propriedade positivada como um direito complexo, porém unitário (consubstanciando as faculdade de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa). Da mesma forma, foi concebida em caráter absoluto (oponível erga omnes, já que exercida em face da coletividade, sob a qual recai um dever genérico de abstenção, caracterizando o sujeito passivo universal), tendente à perpetuidade, exclusividade (ius prohibendi, em que a propriedade de um sujeito exclui a de outro) e permitindo a elasticidade, que pode ser verificada nos direitos reais sobre coisas alheias. No entanto, na contemporaneidade, essas características têm sido relativizadas. Desse modo, com a atuação do Estado em nome do interesse público (como na desapropriação) a idéia de propriedade perpétua deixa de existir. Além disso, fenômenos atuais demonstram a possibilidade de titularidades multiplicadas, permitindo o repensar do caráter exclusivo. É o caso da multipropriedade imobiliária (time sharing), em que o fracionamento do bem ocorre no tempo e não no espaço18. Nada obstante, surge com importância gigantesca a mitigação do caráter absoluto da propriedade, já que passa a se pensar nela como um direito exercitado pressupondo uma relação com alguém, um direito individual em que há deveres. 3 Função social da posse e da propriedade O marco inicial significativo da doutrina da função social está na Constituição de Weimar de 1919, que proclamou que a propriedade “obriga”. De fato, trata-se de CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 132. 17 BARCELLONA, Pietro. Diritto privato e societá moderna. Napoli: Jovene, 1996. p. 140. 18 Sobre o tema: TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993. 16 217 Artigo 10 noção que possui uma matriz bastante diversificada, como por exemplo, a doutrina social da Igreja e a concepção marxista dos institutos econômicos e sociais, o que permite que se afirme o funcionalismo proprietário como noção histórica, da mesma forma que o individualismo proprietário.19 Sem dúvida, o tratamento dispensado à função social da posse é amplamente menor que o dispensado à função social da propriedade. Coerente com isso, há quem afirme que a posse, apreendida como a visibilidade do domínio, tenha a sua função social condicionada à propriedade, pois trata de sua exteriorização, não demandando tratamento independente, além de que não possui previsão expressa no ordenamento. No entanto, cabe afirmar que é desnecessária tal previsão da função social da posse, pois essa, entendida como exercício de fato, é direito autônomo do domínio, não dependendo necessariamente de título. Nesse sentido, apenas em razão de o ordenamento admitir e proteger tal relação de fato, já está pressuposto uma finalidade relevante e, por conseguinte, uma função social. Por isso mesmo, importante superar a noção da posse como mera exteriorização da propriedade para que, como conceito autônomo, torne-se um fato com valor jurídico extremamente relevante. Isso significa fazer com que a posse seja entendida como uma forma atributiva da utilização das coisas, ligada às necessidades comuns de todos os seres humanos. A sua autonomia significa um contraponto à noção de propriedade concentrada e despersonalizada. Assim sendo, é preciso entender o seu conceito não como mero efeito da propriedade, não como encarnação da riqueza ou manifestação de poder, mas sim uma concessão à necessidade20. Exatamente nesse sentido, caminham as palavras de Gustavo Tepedino: Os valores sociais da moradia, do trabalho, da dignidade da pessoa humana, fazem com que a estrutura normativa de defesa do exercício da propriedade seja assegurada independentemente do domínio. A justificativa da posse encontra-se diretamente na função social que desempenha o possuidor, direcionando o exercício de direitos patrimoniais a valores existenciais atinentes ao trabalho, à moradia, ao desenvolvimento do núcleo familiar.21 Nessa esteira, é possível vislumbrar uma classificação tríplice da posse, para além das duas concepções clássicas abarcadas pela teoria de Lhering. Tradicionalmente, a posse ser real, quando decorresse da propriedade ou da titularidade de outro direito CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 142. 20 FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea (uma perspectiva da usucapião imobiliária rural). Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 17. 21 TEPEDINO. Gustavo. Os direitos reais no novo Código Civil. In: Temas de Direito Civil – Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 152. 19 218 Posse e Propriedade na Contemporaneidade real, ou então obrigacional, quando decorresse da aquisição do poder de fato (posse direta) por meio de uma relação obrigacional (com o possuidor indireto no outro pólo). Entretanto, contemporaneamente é possível cogitar uma terceira espécie: a posse fática ou natural, que independe de relação jurídica real ou obrigacional, bastando a utilização legítima de um bem por qualquer sujeito, valorizando em especial o direito à moradia.22 Muito embora grande parte da doutrina trate em termos práticos a função social da posse como a importância que se deve conceder à usucapião, como decorrência da posse continuada que permite a aquisição originária do domínio, outro aspecto ganhou relevância com o Código Civil de 2002, em razão do que previu o seu artigo 1228, nos parágrafos 4.º e 5.º,23 que certamente já pode ser considerado como tutela da posse em sua modalidade fática. Independente da grande controvérsia acerca do que seja a “justa indenização”, de quem vai arcar com o ônus indenizatório (se for o Estado estaremos diante de nova forma de desapropriação, sendo necessária regulamentação legal, se forem os possuidores, tratar-se-á de usucapião onerosa, capaz de obstar a aquisição do domínio pela impossibilidade do pagamento) e de qual boa-fé está o dispositivo a falar (subjetiva ou objetiva), é inegável que essa inovação, sem bem aplicada, terá o condão de permitir uma resolução, ainda que jurídica somente, para o problema dos núcleos irregulares de moradia24, especialmente de algumas favelas em que a propriedade do solo vem sendo reivindicada pelos proprietários originários. Realidade distinta é a da função social da propriedade. Em que pese algum tratamento constitucional anterior, é apenas em 1988 que ela aparece com peso significativo. Isso porque erigida pela primeira vez ao patamar de direito fundamental (artigo 5.º, XXIII) e também colocada, lado a lado à propriedade privada, como alicerce da ordem econômica (artigo 170). Deve-se salientar que a função social da propriedade propõe um verdadeiro redimensionamento do direito de propriedade, vinculando interesses não proprietários. É o que leva Orlando Gomes a afirmar que a função social afeta a própria substância do direito proprietário, constituindo-se no seu fundamento, na sua justificação, na FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Reais. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2006. p. 37-38. 23 Artigo 1.228, parágrafo 4.º: “O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de 5 (cinco) anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante”; parágrafo 5.º: “No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores”. 24 TEPEDINO. Gustavo. Os direitos reais no novo Código Civil. In: Temas de Direito Civil – Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 160. 22 219 Artigo 10 sua ratio25. Há quem vá mais além e propriamente afirme que não há propriedade sem função social, não merecendo a mesma tutela o proprietário que não a cumpre com relação àquele que cumpre26. Muito embora signifique uma perspectiva de o titular não prejudicar o restante da coletividade, não se restringe a essa perspectiva limitadora, compreendendo outra impulsionadora, que corresponde a uma intervenção ativa, a um fomento para um resultado socialmente valioso, como o estabelecimento de normas para a reforma agrária, combatendo latifúndios e minifúndios improdutivos. Por isso, a redução de poderes do proprietário não diz respeito à totalidade da mudança qualitativa na definição da propriedade.27 Nada obstante, cabe mencionar que a função social não se confunde com a função exclusivamente econômica, não visando meramente a maior produtividade do bem encarado isoladamente, mas sim a tornar a terra mais acessível e as relações sociais mais justas. Isso significa que apenas o requisito da produtividade da propriedade rural não atende à função social, motivo pelo qual a desapropriação do imóvel produtivo que não cumpra integralmente a função social é defensável, pois se trata de direito fundamental, ainda que a Constituição da República, no artigo 185, inciso II, a impeça.28 A mesma ordem de idéias serve para fundamentar a noção de posse-trabalho, que, de acordo com Francisco José Ferreira Muniz, é a posse que se traduz em trabalho criador, que se converte em domínio por sua utilidade social29. Foi o que acolheu o Código Civil na usucapião especial do artigo 1.23930. Dessa forma, é possível pensar no GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19. ed. (Atualizada por Luiz Edson Fachin). Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 20. 26 É nesse sentido a afirmação de Carlos Frederico Marés, aliada à necessária dose de crítica à pouca aplicabilidade na realidade concreta dessa modificação no direito de propriedade: “Pode-se ver com clareza que a idéia da função social está ligada ao próprio conceito do direito. Quando a introdução da idéia no sistema jurídico não altera nem restringe o direito de propriedade, perde efetividade e passa a ser letra morta. Embora embeleze o discurso jurídico, a introdução ineficaz mantém a estrutura agrária íntegra, com suas necessárias injustiças, porque quando a propriedade não cumpre uma função social, é porque a terra que lhe é objeto não está cumprindo, e aqui reside a injustiça. Isso significa que a função social está no bem e não no direito ou no seu titular, porque uma terra cumpre a função social ainda que sobre ela não paire nenhum direito de propriedade ou esteja proibido qualquer uso direto, como, por exemplo nas terras afetadas para a preservação ambiental: a função social é exatamente a preservação do ambiente.” MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 91-92. 27 MUNIZ, Francisco José Ferreira. A função social da propriedade e a Lei das Terras do Paraná. In: Textos de Direito Civil. Curitiba: Juruá, 1998. p. 54. 28 TEPEDINO. Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: Temas de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 274. 29 MUNIZ, Francisco José Ferreira. A função social da propriedade e a Lei das Terras do Paraná. In: Textos de Direito Civil. Curitiba: Juruá, 1998. p. 62. 30 Artigo 1.239: “Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por 5 (cinco) anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a 50 (cinqüenta) hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”. 25 220 Posse e Propriedade na Contemporaneidade trabalho não apenas como condição para a aquisição da propriedade, mas sim como verdadeiro fator de legitimação31. Assim sendo, a função social compreende um critério de ação para o legislador e de individuação normativa a ser aplicado pelo intérprete, devendo esse atentar para a concretude da situação proprietária (exemplificando a ruptura causada pela função social com relação à abstração do discurso proprietário clássico)32, de modo que a realidade passa a informar a abstração legal e não que a abstração legal domine a realidade33. Por isso mesmo é que o seu conteúdo promocional deve estar a serviço dos valores fundantes do ordenamento34 (em especial a dignidade humana) e a partir daí tendo o seu conteúdo preenchido de forma flexível em cada diploma legal (estatuto da terra, estatuto da cidade, por exemplo). 4 Algumas premissas do direito civil-constitucional Coerente com essa linha de raciocínio que propõe uma remodelação do conceito do direito de propriedade, importante mencionar alguns fundamentos civilconstitucionais, para além da função social, que apóiam essa nova noção. Em princípio, propugna-se pela ausência de uma contraposição bem delimitada entre as situações creditórias e as reais, considerando que as cláusulas de lealdade e diligência (e, conseqüentemente, a boa-fé) possuem relevância geral, não meramente restrita aos contratos (o que estenderia o princípio da atipicidade, inicialmente apenas contratual, para os direitos reais também, mas essa é outra questão).35 Não obstante, Ricardo Aronne36 propõe uma distinção clara entre os conceitos da propriedade e do domínio, muitas vezes utilizados como sinônimos. A propriedade corresponderia à situação pessoal, à relação entre sujeito e coletividade, ao passo que o domínio diria respeito à situação real, aos poderes do sujeito com relação à coisa. Por conseguinte, é preciso que ambos sejam funcionalizados, e não apenas a propriedade (tendo em vista uma perspectiva meramente limitadora das liberdades do proprietário), ou seja, instrumentalizados para a realização do programa constitucional. Além disso, como em qualquer situação subjetiva (complexa, já que os limites e obrigações a ela impostos têm relevância para a própria existência do direito), é FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 47. CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 146-150. 33 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 96. 34 TEPEDINO. Gustavo. Teoria dos bens e situações subjetivas reais: esboço de uma introdução. In: Temas de Direito Civil – Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 145. 35 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil. Tradução: Maria Cristina de Cicco. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 202. 36 ARONNE, Ricardo. Propriedade e domínio. Reexame sistemático das noções nucleares de direitos reais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. 31 32 221 Artigo 10 preciso ter como pressuposto o conceito de propriedade como relação, entre o sujeito titular da propriedade e a coletividade. Essa relação entre proprietários e terceiros, vizinhos, Estado etc. não pode ter natureza de subordinação, mas sim de cooperação (por exemplo, cabendo ao vizinho realizar certos atos na propriedade de outro titular).37 Exatamente nesse sentido é que Gustavo Tepedino se refere ao ocaso do binômio propriedade/liberdade, que “dá lugar a uma noção pluralista, que não caracteriza mais uma situação de poder (do direito subjetivo por excelência), mas sim uma situação necessariamente coligada com outras”38 . 5 O patrimônio mínimo Na mesma esteira do projeto constitucional, surge a noção de patrimônio mínimo, mais uma vez com o objetivo de se funcionalizar o direito de propriedade. Ressalta-se que, ao contrário do que se costuma afirmar, não se trata o patrimônio mínimo de último reduto de inviolabilidade da propriedade privada, núcleo mínimo sobre o qual os interesses públicos não a afetariam. Por outro lado, trata-se de parâmetro elementar para uma vida digna, de caráter personalíssimo, que atinja ao menos um patamar de garantia de um mínimo existencial à pessoa (já que para permitir o acesso a esse mínimo seria necessário que as relações sociais passassem por vasta transformação). A fundamentação legal para essa tese encontra-se no direito à vida insculpido no artigo 5.º da Constituição, bem como na funcionalização da ordem econômica à existência digna, prevista pelo artigo 170. Dessa forma, de acordo com Luiz Edson Fachin39, precursor desse conceito, é preciso que a proteção do patrimônio ocorra principalmente como forma de proteger e garantir a dignidade humana, ou seja, como meio, instrumento para o desenvolvimento da pessoa. Isso porque, ao contrário da concepção clássica, não pode mais a propriedade ser vista como modo de realização da personalidade, por meio da qual o indivíduo tornava-se sujeito de direito. De fato, é necessário que, nos dias de hoje, seja ela protegida justamente como meio de realização do indivíduo, através da funcionalização das situações patrimoniais às existenciais. Na sociedade capitalista o valor de troca das coisas acaba por substituir o valor de uso (que representa a satisfação das necessidades do ser humano) e passa a condicioná-lo, fazendo com que todas as coisas sejam tratadas como mercadoria, PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil. Tradução: Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 222. 38 TEPEDINO. Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: Temas de Direito Civil. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 277-278. 39 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 37 222 Posse e Propriedade na Contemporaneidade esvaziadas de conteúdo e de suas particularidades, de modo que o sujeito, ao tornar-se consumidor, acaba por confundir-se com o próprio objeto de consumo40. Com efeito, quando o ordenamento retira algo do tráfego jurídico dá importância ao valor de uso, em detrimento do valor de troca. É o que ocorre com o bem de família (o valor de uso da residência prevalece sobre o princípio de que o patrimônio do devedor é a garantia do credor, com o reconhecimento da prevalência de um valor não patrimonial), que tem ganhado amplitude na jurisprudência41, além da lista de bens impenhoráveis do artigo 649 do Código de Processo Civil. Olhando por outro viés, trata-se da continuação do caminho iniciado com a vedação da prisão civil (uma sanção pessoal), limitando a responsabilidade por dívidas ao campo patrimonial. O que se propõe agora é passar para um modelo que inclua limites referentes a valores pessoais na garantia patrimonial.42 Considerando isso, assevera ainda Fachin que essa ordem de idéias está presente, em nosso Código Civil, na vedação da doação universal do patrimônio43 (preocupação que transcende a seara patrimonial, garantindo a subsistência da pessoa do doador e de seus familiares) e nas cláusulas de inalienabilidade no testamento44 (em que se objetiva proteger o indivíduo que recebe o bem de sua inexperiência, de assegurar moradia e existência digna a uma família ou impedir a dilapidação do patrimônio pelo pródigo). Nesse mesmo sentido, mas para além da codificação, essa ordem de idéias se faz presente na impenhorabilidade do bem de família e do módulo rural, disposições legais de ordem pública que tratam do princípio protetivo da entidade familiar, de garantia, respectivamente, da moradia familiar e do mínimo indispensável para a atividade produtiva que a sustenta (exemplo de eficácia dessa teoria é a defesa da possibilidade de que possa o juiz, no caso concreto, reconhecer de ofício a impenhorabilidade mesmo em casos de revelia). Além disso, essa prevalência de um valor superior de proteção do indivíduo, inspirado na solidariedade humana, também está presente na impenhorabilidade dos instrumentos de trabalho e no princípio da preservação da empresa. CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. Para além das coisas: breve ensaio sobre o direito, a pessoa e o patrimônio mínimo. In: RAMOS, Carmem Lucia Silveira (org.). Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 157-159. 41 Nesse sentido: SCHREIBER, Anderson. Direito à moradia como fundamento para impenhorabilidade do imóvel residencial do devedor solteiro. In: RAMOS, Carmem Lucia Silveira (org.). Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 77-98. 42 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 208. 43 Artigo 548: “É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador”. 44 Artigo 1.848: “Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima”. Artigo 1.911: “A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade”. 40 223 Artigo 10 6 Uma decisão exemplar Coerente com as idéias expostas previamente, é imperioso trazer à colação decisão de um magistrado que incorpora em alguma medida o que foi defendido. Trata-se de decisão interlocutória, que negou liminarmente reintegração de posse aos proprietários esbulhados pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), proferida pelo magistrado Alexandre Corrêa Leite (autos 5018/03), na comarca de Italva/Cardoso Moreira, no Rio de Janeiro. Muito oportunamente, na contramão do que se costuma encontrar nos tribunais, traz ele uma conjunção de fundamentação constitucional, sociológica e filosófica para manter os membros do movimento social na posse da terra. Inicialmente, o magistrado afasta a aplicação do artigo 928 do Código de Processo Civil, que prevê a reintegração em razão apenas da comprovação do esbulho, sem qualquer outra valoração. Contudo, no caso concreto, facilitou a decisão o fato de que a propriedade era improdutiva, já existindo decreto expropriatório, que, todavia, não havia sido cumprido. Mesmo assim a decisão nega aplicação ao artigo 2.º, parágrafo 6.º, da Lei 8.629/93 (que afirma que terras improdutivas não podem ser objeto de reforma agrária caso sejam invadidas), pelo motivo de serem os movimentos sociais forma legítima de pressão popular, direito coletivo e expressão da cidadania. Ressalta-se, ainda, a menção à inexistência de um caráter absoluto da propriedade, em face de seu conteúdo social, além da irrelevância sobre quem deve cumprir a função social da terra, sendo mais importante que alguém de fato a cumpra. Não obstante, além de ter inspecionado pessoalmente os acampamentos, cita o magistrado o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do qual o Brasil foi signatário em 1966 comprometendo-se com a reforma de seu regime agrário. Apenas a título de ilustração cita-se algumas passagem da decisão: Melhor tratando do tema, e avançando na razão da função social revela-se adequada a exata fixação desta, que não diz respeito à propriedade individualmente considerada (pois importaria em não admitir a alteração conceitual), mas à própria terra, objeto, independentemente de quem dela se utiliza. É a terra – não a propriedade – quem tem uma função constitucional a cumprir, sendo irrelevante aquele que a utiliza com este fim, o proprietário ou ocupante. Seja quem for, seja quem cumpra a promessa constitucional da função social, é este o protegido pelo Direito e pela Constituição Federal. A propriedade da terra sem o cumprimento de função social não é propriedade a ser tutelada pelo Direito, quando em confronto com outros valores. Mais adiante: 224 Posse e Propriedade na Contemporaneidade A terra é um bem de produção, sendo inadmissível que se torne improdutiva, mormente em se tratando de país no qual a população, em sua absoluta maioria, é de desempregados, famintos, excluídos sociais (segundo a professora Graça Belov, podem ser definidos, estes últimos, como aqueles a quem o Estado, indiretamente, decretou a pena de morte e está muito surpreso porque na prática ela ainda não se concretizou). E por fim: Este magistrado esteve no acampamento, sendo possível atestar a precariedade das instalações. Famílias vivendo sob lonas, buscando água no rio próximo, sem, por ora, qualquer preocupação do Estado que, diga-se, não os conhece. Após conversar, no acampamento, com algumas pessoas, ninguém convencerá do contrário: só estão naquele local acampadas por inabalável esperança de vida digna, vida esta que muitas nunca tiveram. Acaso tivessem opção, não permaneceriam. Assevere-se a presença de inúmeras crianças no acampamento. 7 Conclusão Da contraposição entre as noções de posse e propriedade clássica e as noções contemporâneas, inevitável reconhecer que os conceitos mudaram, bem como suas características, efeitos, proteção jurídica etc. Desse modo, é imperioso concluir por um conceito de posse protegida sempre de maneira incondicionada à propriedade, ligada às necessidades humanas, em contraposição a esse princípio proprietário concentrado, despersonalizado e atemporal inserido nas codificações civis. O mesmo ocorre com a propriedade, que precisa ser entendida como relação entre o sujeito e a coletividade, com a funcionalização dos poderes do proprietário ao interesse público. Nessa tentativa de entender a posse de forma independente da propriedade, e essa muito mais do que uma mera expressão da liberdade econômica burguesa, do que o livre-arbítrio do proprietário, aparece o conceito de patrimônio mínimo, articulação entre a posse e a propriedade na contemporaneidade e, também, a dignidade humana, valor supremo garantido pela Constituição da República. 8 Referências ALVIM, José Antônio Arruda. Coisa. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 132-136. ARONNE, Ricardo. Propriedade e domínio. Reexame sistemático das noções nucleares de direitos reais. Rio de Janeiro: Renovar. 1999. BARCELLONA, Pietro. Diritto privato e societá moderna. Napoli: Jovene, 1996. 225 Artigo 10 . El individualismo propietario. Madrid: Trotta, 1996. CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar. 2002. 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