projeto negras miolo 09 08.indd

Transcrição

projeto negras miolo 09 08.indd
1
negras
palavras
Agosto 2006
À Sombra
do Baobá
Sumário
1 Abertura, Emanoel Araujo
2 Apresentação, Ana Lucia Lopes
4 Com a palavra, os contadores de história, João Acaiabe, Giba Pedroza, Oswaldo Faustino
8 A palavra falada: o som e o sentido humanos, Luiz Carlos dos Santos
12 Ler e ouvir histórias: um exercício de pertencimento, Neide A. de Almeida
16 O espelho mágico, Oswaldo Faustino
17 Fagulhas e ostracismo: à memória de João Cândido, Cristiane Moscou
20 Práticas de oralidade, Viviane Lima de Morais
24 Quem conta o conto, conta como o conto foi..., Neide A. de Almeida
27 Os contadores de histórias de cada um de nós
30 Sugestões de leitura
negras
palavras
Este é o milagre das palavras. O milagre da oralidade, esse
patrimônio intangível que se formou nos quatro cantos da
América, silenciosamente, por um povo que veio aos ferros
no tombadilho de um navio de traficantes brancos e negros,
vendendo aquela carne humana, ferrada a fogo, com marcas
indeléveis, aquelas que jamais se apagam.
Pelo contrário, todo sofrimento se transformou numa forma
de resistência para construir a linguagem mais profunda de
identificação, ao mudar hábitos e costumes de uma sociedade
que nem desconfiava do que acontecia, quando a ama de leite
amamentava o sinhozinho branco ou quando as novas palavras
se formavam no falar cotidiano, na vida religiosa, nos atos
sagrados das rezas, das preces, dos orikis para os Orixás,
incorporando uma outra face do sincretismo à força das palavras.
Assim, a oralidade é a palavra que transcende e que acende a
ancestralidade na mágica continuada e na magnífica vibração do
tan tã de um tambor, o halo de comunicação de todos aqueles
que perpetuam a mesma origem dessa poderosa identidade.
Emanoel Araujo
Curador
1
Apresentação
Negras palavras embalam sonhos, ensinam o
mundo, evocam memórias, atravessam oceanos,
permanecem no tempo, lutam por direitos. A palavra
nos torna humanos, nomeia nossas experiências
e, ao conservar os sentidos dessa humanidade,
preserva a espécie.
O caderno Negras Palavras procura resgatar o
significado de palavras faladas e escritas que constituem o imaginário brasileiro sob o domínio do
consciente ou do inconsciente. Nele, encontra-se
o registro de experiências com a palavra em rodas
de histórias, oficinas, depoimentos, entrevistas,
encontros temáticos e seminários dedicados ao
resgate da memória negro-africana na história e
cultura brasileiras.
O primeiro número do caderno, intitulado
À Sombra do Baobá, trata de um tema tão antigo
quanto nossa memória permite alcançar, o contar
e o ouvir histórias. Sabe-se que contar histórias
reaproxima espaços, tempos e mentalidades, por
meio da força estruturadora da narrativa. As experiências humanas foram e são narradas. Quem não
se encanta e não se deixa levar ao ouvir “há muito
tempo...” ou “era uma vez...”?
As histórias gozam da liberdade de transitar por
representações passadas e presentes e ousam projetar futuros. Nelas, os conteúdos de um imaginário
social se corporificam, provocando identificações,
repulsas e referências, tanto no nível individual como
no social. Enfim, as histórias são pautadas por
valores sociais narrados por seus personagens,
conflitos, soluções, em tempos e espaços determinados pela estrutura da narrativa. O ser humano
precisa de histórias para aprender a ser humano.
2
Em um Museu, espaço em que a memória é
matéria-prima de trabalho e reflexão, evocamos
antigos registros que vieram do outro lado do
oceano e chegaram até nós, há mais de quatrocentos anos. Ouvimos e nos identificamos com
eles, os atualizamos em nossas experiências pessoais e, assim, partilhamos conhecimentos que
nos revelam filhos de uma memória negro-africana
inscrita na nossa sociedade.
Entretanto, esse reconhecimento de um modo
de pensar o mundo trazido e ensinado por homens
e mulheres de diversas regiões da África não é
imediatamente percebido e aceito. Embora se
encontrem na base da nossa sociabilidade, serão
necessárias muitas histórias “à sombra de outros
baobás” até que se valorize a matriz negro-africana
como uma das formadoras de valores, princípios e
memórias em nosso país.
Neste sentido, organizamos um conjunto de
oficinas e um seminário que possibilitassem
uma imersão no universo da contação de histórias, abrissem espaços de reflexão para a palavra
falada e escrita e que permitissem encontros com
as memórias de cada um. Essas atividades estiveram sob a coordenação de Neide A. de Almeida,
que integra a equipe do Núcleo de Educação
do Museu Afro Brasil.
Como em todas as nossas ações, as exposições
do Museu são o nosso fio condutor. A série À Sombra do Baobá adotou como referência a narrativa
do acervo criada por Emanoel Araujo que conta, na
perspectiva negro-africana, uma história brasileira
contida nas peças expostas e no arranjo da exposição. Os conteúdos de cada obra se associam e
Negras Palavras: À Sombra do Baobá registra
os diversos momentos dessa experiência
e os organiza, por meio da palavra escrita,
sob a forma de um caderno-revista.
evidenciam o patrimônio intangível construído por
essa população e que pode se ver revelado pelo
espaço museal, testemunha de múltiplos encontros.
Nele, o leitor encontrará textos que recuperam
o significado da tradição oral e nos remetem a uma
reflexão que atualiza esse sentido. As histórias escritas, abordadas como registro de experiências
constitutivas e reguladoras da vida social, também
compõem objeto de análise.
Depoimentos de contadores de história, que
nos tempos atuais continuam a encantar e envolver pessoas, trazem para o caderno a presentificação do ouvir histórias.
Fragmentos de lembranças dos participantes
das oficinas são exemplos substantivos da importância e da capacidade integradora contidas nas
narrativas e na memória que se tem delas.
Quem Sou Eu?
“(....)
O que sou, e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfunados,
Vomitando maldições,
Contra as minhas reflexões.
(...) os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hão de chamar-me Tarelo,
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou se bode
Pouco importa. O que isto pode?
É também pela palavra que podemos encontrar negros representantes da história e da cultura
brasileira que sistematicamente são relegados ao
esquecimento. Aqui, eles têm lugar marcado.
Nas páginas deste caderno indicamos também
histórias daqui e de lá, que merecem ser contadas
às crianças, jovens e adultos como alimento para o
nosso imaginário.
Está feito o convite para a leitura. E para começar,
um trecho do poema de Luiz Gama, precursor
do abolicionismo, que ultrapassou os limites
da sua condição de escravizado, tornando-se
jornalista, poeta e advogado. Faleceu em 1882,
levando consigo o reconhecimento de toda uma
cidade – São Paulo.
Bodes há em toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta...”
(fragmento extraído de O Negro em Versos, antologia
da poesia negra brasileira. Org. Luiz Carlos dos Santos,
Maria Galas e Ulisses Tavares. 1a ed. São Paulo:
Moderna, 2005, p. 35)
Ana Lucia Lopes
Núcleo de Educação – Museu Afro Brasil
3
Com a palavra,
os contadores
de história
Durante a realização da série “À Sombra do Baobá”, Projeto Negras Palavras,
o Museu Afro Brasil recebeu três contadores de histórias. Cada um deles com
experiências, percursos e práticas diversas. Oswaldo Faustino contou histórias
para os quatro grupos que participaram das oficinas; Giba Pedroza nos presenteou
com suas histórias no Seminário Memórias, histórias e identidades. João Acaiabe,
gentilmente, nos concedeu uma entrevista numa noite fria do mês de maio.
O leitor agora terá oportunidade de ler um pouco da história desses três contadores
nos depoimentos que aqui transcrevemos.
4
João Acaiabe
ator e contador de histórias
“Antes de contar, é preciso
dormir com a história”
Estávamos tentando montar um grupo de atores negros, na década de 80, mas a gente não tinha os
textos. Normalmente, usávamos textos da África do Sul, alguns do Abdias do Nascimento (...). Então, nos
juntamos com o Antônio Abujamra, que ia dirigir o espetáculo, e começamos a fazer depoimentos para
coletar material. Num dia, as pessoas estavam fazendo os depoimentos e eu não tinha idéia do que ia
dizer, então, resolvi contar uma história que aconteceu comigo. Era uma história que me fazia muito mal,
eu ficava emocionado, indignado: foi no interior, tinha um clube de classe média alta, fui até lá com uma
amiga e, num momento em que fui procurá-la num espaço reservado aos brancos, fui expulso do clube.
Quando eu terminei de contar, o Abu me disse: “você tem jeito para contar histórias”.
Eu não entendi nada, estava ali emocionado com a história e ele nem parecia perceber. Mas foi a partir
dali que eu comecei a contar histórias.
Em 1983, quando fui pra TV Cultura, eu entrava no programa contava uma história e ia embora.
Só tinha cinco minutos de trabalho. No começo não havia muitas histórias... Eu trabalhava com coisas
sobre o carnaval, historinhas de samba enredo e ia “arrumando” as histórias. Com o tempo o programa
foi ficando mais profissional, começaram a chamar autores para escrever.
Quando eu decorava a história, decorava contava, decorava contava, quando eu perdia o fio da meada,
precisava ler pra me encontrar... Aí eu passei a aprender a história em vez de decorar. Eu aprendia e
contava do meu jeito, armava do meu jeito. Claro que demorava muito mais, mas aí eu não me perdia.
Quando você aprende as histórias, você pode contar qualquer uma delas... Eu acho que é quase você
contar com as suas palavras, você se apropria delas.
“Tem história que você aprende e conta, ela fica mais na sua boca”.
Se hoje eu disser que vou fazer tal história pra amanhã, por encomenda, não dá... Você tem que
se integrar na história, porque criança muitas vezes interfere, você tem que saber lidar com isso....
Dessa forma, você pode responder, brincar, contar e envolver. (...) Uma vez eu fui contar histórias do
Monteiro Lobato na Biblioteca Monteiro Lobato. Eu olhava no olho das crianças, aí ficava muito melhor....
não tinha câmera, nada... Eu fui achando um jeito de chamar a atenção dos meninos... Eu nunca conto
a história parado, eu conto e vou andando pelo espaço, às vezes ando a platéia toda com uma história.
Como eu sou ator, isso pra mim é comum...
(...)
Algumas histórias ficam melhor lidas, você não consegue se apropriar delas para contar... Isso acontece
com poemas também, às vezes é melhor ler do que contar. Então, eu vejo como as histórias ficam
comigo, eu leio várias vezes. Tem história que você aprende e conta, ela fica mais na sua boca e tem
umas histórias que não ficam bem... Aí eu conto a história que bate no coração.(...) Aquelas que me incomodam eu não conto, de terror, por exemplo, as histórias da minha mãe eram terríveis, a gente sentava
na porta de casa e ficava morrendo de medo. Eu não gosto de contar esse tipo de história....
5
Giba Pedroza
contador de histórias
“...Eu comecei a mergulhar fundo na história da minha
família e através da história da minha família eu fui
mergulhar na cultura popular brasileira”
Eu conto histórias há 18 anos... Por parte de mãe eu sou descendente de baiano e por parte de pai de
mineiro. Às vezes, eu tinha vergonha da minha avó quando ela ia às reuniões de pais, ela era uma pessoa
muito espontânea, brincava muito. Depois eu comecei a ter orgulho dela, porque eu fui crescendo e percebendo toda a riqueza que ela trazia. Minha avó me ensinou muitas coisas, sempre através da cultura
popular, da tradição oral (...). As cantigas de trabalho, enfim, tudo isso faz parte da tradição oral. Quando
eu comecei a perceber a importância disso, comecei a mergulhar fundo na história da minha família e,
através da história da minha família, fui mergulhar na cultura popular brasileira. Então, eu fiz o caminho
inverso. Comecei pesquisando os livros, os outros pesquisadores técnicos e fui parar onde eu tinha que
ter começado, na família.
Eu reconheço dois instrumentos importantes para o contador de histórias e para o educador: a memória afetiva e o olhar criança... Por que há tanta gente querendo ouvir história hoje, por que a gente
está nessa sede de história? Acho que o mundo está precisando das histórias porque o mundo está se
revendo. (...) Eu faço uma relação entre a criança e o homem primitivo. Porque o homem primitivo quando
veio ao mundo, as primeiras nações, os primeiros homens que por aqui passaram, eles inventaram e
criaram as histórias pra explicar tudo o que estava à sua volta. É a mesma postura da criança. O olho da
criança, o olhar da criança, brinca com as coisas do mundo enquanto vai aprendendo. Enquanto o olhar
do adulto é um olhar mais centrado. Por exemplo, uma mulher andando pela rua puxando uma criança
de cinco ou seis anos de idade. A menina vai o tempo inteiro brincando com os detalhes, vai olhar na
parede, vê um velhinho sentado numa carruagem, enquanto a mãe vai puxando pela mão e dizendo
assim: “Olha pra frente menina”. O olhar do adulto é o olhar que olha pra frente. O olhar da criança
é um olhar que brinca com coisas do mundo. Por isso, não se deve jogar fora o olhar do adulto, nem
o olhar da criança. O perfeito é um equilíbrio entre esses dois olhares.
“Mas a memória que eu uso nas histórias é essa memória afetiva, essa memória que traz o cheiro,
a memória que traz a voz da minha avó que foi lavradora na Bahia e cantava.”
Eu acho que quando a gente perder um pouco da ansiedade e conseguir entender mais a importância
do olhar da criança e da memória afetiva a gente começa realmente um caminho muito mais gostoso
de ser trilhado. Isso eu acho muito importante para o educador e para o contador de história. E quando
eu falo de memória afetiva ou da criança, eu falo de duas coisas que andam juntas, por que como é que
eu vou buscar a minha memória afetiva? Só se eu simplesmente destravar meu olhar criança e começar
a prestar mais atenção. Muita gente me diz: “Pôxa, tem que ter uma memória boa pra guardar tanta
história”. Mas eu tenho uma memória péssima, para falar a verdade, se alguém me fala o nome aqui,
ali na esquina eu já esqueci. Não guardo número de telefone, não guardo nada. Mas a memória que
eu uso nas histórias é essa memória afetiva, essa memória que traz o cheiro, a memória que traz a voz
da minha avó, que foi lavradora na Bahia e cantava.
Essa memória que registra coisas que, durante muito tempo, a gente julgou sem importância. Na minha memória afetiva tem, por exemplo, uma voz assim: “Atenção dona de casa se encontra nesse local
material de limpeza em geral. Temos água lavadeira”, de um vendedor ambulante que passava pela
minha rua toda semana. Um dia eu estava contando história e precisava de uma voz para um vendedor
que não tinha nada a ver com essa situação e essa voz saiu naturalmente. Ela estava guardada, estava
registrada e quando eu vi, a voz nasceu naturalmente comigo.
6
Oswaldo Faustino
jornalista, escritor, dramaturgo e contador de histórias
“eu trago dentro de mim toda
a minha ancestralidade, toda a minha descendência”
“... Essa é a coisa que tem me encantado. Essa possibilidade de passar para frente este elo que
nos leva pra muito mais longe, o elo da nossa história.“
Tem uma tradição, que eu acredito que seja dos Dogon, que diz o seguinte: “eu trago dentro de mim
toda a minha ancestralidade, toda a minha descendência”. Todos eles estão aqui, presentes dentro de
mim, neste instante, eu sou apenas um lapso nessa história. É preciso que a gente se reconheça como
um lapso, um instante dessa longa história, não somos maior que a própria história.
O grande problema de você estar em cima de um caixote, sob a mira do olhar dos outros, é você achar
que é mais importante do que aquilo que está fazendo. Se você se entende apenas como parte dessa
história, entende que a história é maior mesmo e se coloca como um instrumento dela.
Contar história é exatamente isso, o meu gestual, as minhas caretas, a inflexão da minha voz são
importantes pra segurar a atenção, mas não são mais importantes que o que eu estou contando.
Quando a gente faz esse tipo de trabalho, tem que ter certeza: “o que é que eu quero contar?”
Tem aquele ditado que diz: “quem conta um conto aumenta um ponto”. Quem conta um conto não
só aumenta um ponto, como transforma um ponto.... É fundamental que você, ao contar a história,
trabalhe, envolva quem está na contação (...)... Eu olho pra ele ali, e ele tem que estar aqui, junto comigo,
ele tem que estar na história, ele tem que participar da história, não pode ser um mero ouvinte.
“O som da calimba nos remete a um lugar que a gente imagina que seja a África.”
A calimba ia ser a trilha sonora da segunda história. (...) Mas eu estava tão envolvido que acabei não
sonorizando. A coisa fundamental nesse som é que ele nos faz viajar um pouquinho... porque ele é um
som estranho. Se vocês perceberem, ele não é um som do nosso cotidiano... O som da calimba nos
remete a um lugar que a gente imagina que seja a África. Aliás, a África é também um produto do nosso
imaginário. (...) Ela na verdade está na nossa alma e ocupa o nosso imaginário. E esse é um som que,
como não é do nosso cotidiano, nos remete a essa viagem. E a matéria-prima da nossa contação de
história, em especial a de hoje, ela precisa do imaginário, é como se eu colocasse aqui no meio um baú,
abrisse esse baú e ele estivesse repleto de coisas e vocês tirassem essas coisas e elas não representassem o que aparentam. Você pega o tecido, mas não é o tecido...
Essa é a minha experiência de vida.
7
A palavra falada
o som e o sentido
humanos
Luiz Carlos dos Santos
A palavra falada é a alma da narrativa, e a narrativa
é o caminho que a imaginação e o fazer humanos
percorrem para nos ensinar quem somos,
como somos e por que somos.
8
A experiência de contar e ouvir história é singular e, ao mesmo tempo, plural, embora possa
parecer contraditório esse é mais um dos encantamentos que a palavra falada nos proporciona, a
construção do indivíduo, enquanto se preserva o
grupo. A valorização dos que sabem e a afirmação
da importância dos que aprendem. É o tempo servindo como argamassa entre as gerações.
Enquanto ouvimos e/ou contamos histórias,
fazemos História, incorporamos modelos e constituímos identidades. A gestualidade, a modulação
da voz, os movimentos suaves e bruscos, os cheiros,
a penumbra, constituem o contexto formador de
memória e também possibilidades interpretativas
que a palavra falada oferece, através do contador,
para os seus ouvintes. Essa relação: contadorouvinte é uma. Existem outras semelhantes, mas
não iguais. O griot ou soma, nas sociedades negroafricanas, é o historiador da tradição, verdadeiro
arquivo vivo, ou o guardião da palavra. As nossas
avós, tias, mães e seus pares fazem, através da
palavra, o que costumamos chamar de socialização
primária, incluindo-nos, pelos caminhos da imaginação, no grupo social e confirmando-o como tal.
A palavra falada é a alma da narrativa e a narrativa é o caminho que a imaginação e o fazer
humanos percorrem para nos ensinar quem somos,
como somos e por que somos. Enquanto ouvimos
e contamos histórias, incorporarmos valores, modos de pensar, sentir e agir e aprendemos mais
sobre nós mesmos e também nos construímos
como pessoa dentro de um grupo social.
Hoje já se sabe que homens e mulheres estão
potencialmente habilitados a narrar. Em nossas vidas,
a narração ocupa lugar de destaque, sem falar no
fascínio que sobre nós exerce. Entretanto, a história das civilizações ao ser registrada pela palavra
escrita, principalmente no ocidente, desvalorizou
a palavra falada, instância primeira da identidade
humana, e priorizou a escrita como registro confiável da História, desconsiderando a origem oral
das narrativas literárias como Odisséia e Ilíada,
por exemplo, e mesmo das histórias hoje escritas,
da velha Europa, como Chapeuzinho Vermelho. Por
tudo isso, é importante assinalar, como ensina Jan
Vansina, que a oralidade é uma atitude diante da
realidade e não a ausência de uma habilidade, como
acreditam alguns historiadores, acrescentamos.
Também nas sociedades negro-africanas, epopéias foram e são narradas, dando conta de um
saber cujo eixo maior está na relação históriamemória. Aqui, a circularidade narrativa se vale
de paralelismos semânticos, repetições sistemáticas de expressões, relações de parentesco e de
poder. Esse tipo de uso da palavra falada pode ser
observado em narrativas como a História de Sundiata, epopéia mandinga, Contos Criolos da Bahia,
de Mestre Didi, Histórias do Musseque, de Jofre
Rocha, os dois últimos são bons exemplos de oralização na palavra escrita.
Segundo Jan Vansina, destacado estudioso das
civilizações da palavra, “uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de
preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada
no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto
é, a tradição oral. A tradição pode ser definida de
fato – prossegue Vansina – como um testemunho
transmitido verbalmente de uma geração para outra. Quase em toda a parte, a palavra tem um poder
misterioso, pois palavras criam coisas. Isso pelo
menos, é o que prevalece na maioria das civilizações africanas. Os Dogon sem dúvida expressaram esse nominalismo da forma mais evidente; nos
rituais constatamos em toda parte que o nome é a
coisa, e que ‘dizer’ é ‘ fazer’”, completa.
O lugar de destaque alcançado pela História
Oral, nos últimos anos, só confirma a importância
9
da Palavra Falada para a sociedade; seja como
expressão e veículo de conhecimento e tradição
dos grupos sociais, seja como modalidade mais
usada da língua para a comunicação imediata entre
duas pessoas, a História Oral se impõe hoje como
uma metodologia necessária e presente, nos espaços
sociais de produção e reprodução do saber: escolas
e museus, entre eles.
Nessa perspectiva, o Museu Afro Brasil, afinado
em ser um museu dinâmico, não poderia deixar
de lado uma metodologia de registro que prioriza
a fonte primeira do conhecimento: a Palavra Falada.
Força vital para as sociedades negro-africanas e tão
marcante na oralidade afro-brasileira. A Palavra do
religioso, do sambista, do artista, do quilombola,
do poeta, do escritor, do operário, do professor, do
anônimo. A Palavra que gera história.
Entretanto, quando falamos estamos circunscritos
a um contexto, dialogamos com papéis sociais e,
por isso mesmo, falamos de lugares conhecidos e
reconhecidos. Somos adultos experientes e gestores
de um dado grupo social.
Ao contarmos histórias, passamos valores, reafirmamos crenças, metaforizamos personagens, hiperbolizamos costumes e, muitas vezes, confirmamos
preconceitos. E aqui só estamos considerando a
palavra falada seja nas sociedades tradicionais,
seja na globalizada.
Nas primeiras, as narrativas seguem a circularidade do conhecimento e de sua transmissão. São
sociedades da palavra. O homem vale tanto quanto
a sua palavra. Nestas, a mentira tem hora e lugar
e o silêncio é essencial e comunica. Os homens e
todos os seres vivos comungam. Há maior proximidade, logo, o cheiro, o gesto, os sons são elementos
vivos, integrados à história narrada e futuros acionadores da memória.
Já na sociedade globalizada, o espetáculo toma
o lugar do círculo, forma geométrica que nos permite concretizar contatos, e o contato inexistente,
10
se concretiza apenas como possibilidade virtual, ou seja, nunca tivemos tanta possibilidade de
comunicação como hoje e, ao mesmo tempo, sentimo-nos tão sós.
Para muitos a internet é sinônimo de democracia do conhecimento, ou seja, todo mundo pode
ter o seu ou produzi-lo. As narrativas desse tempo se articulam em forma de clipes e se manifestam tanto nas narrativas orais, quanto na escritas e
podem ser representadas principalmente nas peças publicitárias, nas pixações, entre outras formas
de manifestação.
Ora, todos lembramos das histórias que nos
foram contadas, como nos foram contadas e quem
as contou. Entre nós, vínculos mágicos colocam
em cena personagens populares fascinantes
que desempenham no enredo papéis sociais
importantes. Se pensarmos nas histórias sobre o
saci-pererê, a mula sem cabeça, o negro d’àgua,
o moleque d’água e outras, e observarmos os
lugares onde elas se desenrolam, as outras personagens que participam da trama e o quando as
histórias acontecem, encontraremos fazendas,
escravos, senhores, padres, mulheres misteriosas,
assombrações (memória de mortos), populações
ribeirinhas, crianças, crenças morais e religiosas,
enfim, micro-sociedades que falam de uma sociedade maior, histórias que fazem História.
Transportemo-nos para o texto de Amadou
Hampa Té Bâ, a fala humana como poder de
criação. Segundo esse estudioso das sociedades
da palavra, no Mali,
“Maa Ngala, como se ensina, depositou em
Maa as três potencialidades do poder, do querer
e do fazer, contidas nos vinte elementos dos quais
ele foi composto. Mas todas essas forças, das quais
é herdeiro, permanecem silenciadas dentro dele.
Ficam em estado de repouso até o instante em que
a fala venha colocá-las em movimento. Vivificadas
pela Palavra divina, essas forças começam a vibrar.
Numa primeira fase, tornam-se pensamento; numa
segunda, som; e, numa terceira, fala. A fala é, portanto, considerada como a materialização, ou exteriorização, das vibrações da forças.”
Antes, Hampa Té Bâ explica como Maa Ngala,
Ser Supremo, transmite a Maa (Homem) o poder
criador divino, pelo dom da Mente e da Palavra.
A tradição Komo, no Mali, diz que:
“Maa Ngala ensinou a Maa, seu interlocutor,
as leis segundo as quais todos os elementos do
cosmo foram formados e continuam existir. Ele o
intitulou guardião do Universo e o encarregou de
Zelar pela conservação da Harmonia Universal.
Por isso é penoso ser Maa.
e sua metodologia: “Tudo que uma sociedade considera importante para perfeito funcionamento de
suas instituições, para uma correta compreensão
de vários status sociais e seus respectivos papéis,
para os direitos e obrigações de cada um, tudo é
cuidadosamente transmitido. Numa sociedade oral,
isso é feito pela tradição, enquanto numa sociedade
que adota a escrita, somente as memórias menos
importantes são deixadas à tradição. É esse fato que
levou durante muito tempo os historiadores, que
vinham de sociedades letradas, a acreditar erroneamente que as tradições eram um tipo de conto de
fadas, canção de ninar ou brincadeira de criança.”
Bibliografia
Iniciado por seu criador, mais tarde Maa transmitiu a seus descedentes tudo o que havia aprendido, e esse foi o início da grande cadeia de transmissão oral iniciatória da qual a ordem do Komo
(como as ordens do Nama, do Kore etc., no Mali)
diz-se continuadora.”
KI-ZERBO, J. (Coord.). Metodologia e Pré-História da África. História
Geral da África. São Paulo : Ática/Unesco, 1982. v.1.
Luiz Carlos dos Santos
é consultor de História Oral do
Museu Afro Brasil, em São Paulo. Jornalista, mestre em Socio-
As palavras, como já dissemos falam de pessoas
e lugares, contam histórias e fazem História. Na sua
ontogênese está a criação da realidade. Ao longo
da história da humanidade, a palavra ganhou e ganha novos sentidos e usos. Ela expressa o momento
histórico do grupo social e embora seja essencial
para a sociedade, ela é também representação de
anseios, desejos, esperanças e preconceitos.
logia pela USP, professor de Língua Portuguesa e Literatura da
Escola Vera Cruz e do Centro Universitário Ibero-Americano.
No tempo, o sentido de valor das palavras mudou.
As histórias hoje podem ser contadas através
de discos, CDs, DVDs e mesmo em pequenos
círculos escolares, na esteira do que chamamos
de indústria cultural que, ao transformar em produtos as relações sociais, esvaziam-nas e atribuem
a elas o valor de mercado, com prazo de validade
pré-determinado.
Por isso, devemos ficar atentos, resultados que
somos de sociedades que priorizaram diferentemente o uso seja da palavra falada, seja da palavra
escrita, ao que afirma J. Vansina, em A tradição oral
11
Ler e ouvir histórias
um exercício
de pertencimento
Neide A. de Almeida
“...a arte literária se apresenta como um verdadeiro poder de contágio que a faz facilmente
passar de simples capricho individual, para traço de união, em força de ligação entre
os homens (...) A Literatura reforça o nosso natural sentimento de solidariedade com
os nossos semelhantes...” Lima Barreto
Ouvir e contar histórias são práticas muito antigas. Por mais que se recue no tempo procurando
identificar o momento em que o homem passou a
fazer uso sistemático da narrativa, não se encontra
esse ponto de partida.
recurso para elaborar, assimilar experiências dolorosas como as perdas, as mortes provocadas
pelas epidemias que assolavam o país. As histórias de Trancoso correram mundo e tiveram grande
influência no Brasil, principalmente no Nordeste.
Houve um tempo em que o lugar da História, tal
como hoje a conhecemos, era ocupado por relatos
que recuperavam o cotidiano, justificativas para
situações e fatos inexplicáveis. É com esse caráter
que as histórias surgem em todos os lugares do
mundo e cumprem a função fundamental de passar de geração a geração a memória, a cultura, as
identidades dos diferentes povos. E, ao longo dos
tempos, esses conhecimentos permeiam as diferentes sociedades.
Mas a literatura oral no Brasil tem também
em sua origem a marca da herança africana,
vinda da Nigéria, “onde os narradores populares,
os “akpalôs”, faziam parte de uma casta especial,
que se deslocava de tribo em tribo recitando os
seus “alôs”. A Velha Totonha de José Lins do Rego,
que se deslocava de engenho a engenho, narrando
com riqueza mímica e procurando dar o tom local
às suas narrativas, é sua mais autêntica seguidora.”
(Guimarães : 2000, p. 86)
Aproximadamente no século XVI, sobretudo
na Europa, pesquisadores começam a recolher
e registrar as histórias que circulam oralmente.
Em Portugal, por exemplo, Gonçalo Fernandes
Trancoso recolhe e registra diversos contos populares, sempre enfatizando o cunho moral dessas
histórias que contribuíam de forma significativa
para a regulação social e principalmente como
Outros exemplos dessa prática são os trabalhos
realizados pelos Irmãos Grimm, Perrault, Andersen,
muito conhecidos e, em boa parte, responsáveis
pela poderosa presença dos contos europeus em
nosso imaginário. Esse fato revela um dos resultados da intensa articulação entre a escrita e o poder:
os contos europeus de tradição oral tornaram-se,
a partir do registro escrito, ponto de partida,
12
ocuparam lugar de referência e deixaram à sombra
as produções de outros povos, das outras matrizes
constitutivas de nossa cultura. Conforme afirma
Gnerre, “o modelo de língua escrita que é assumido,
em geral, é aquele da modalidade expressiva das
línguas européias que (...) fica mais distante das
modalidades e gêneros expressivos próprios da
oralidade. Desta forma, realiza-se o tipo talvez mais
sutil de dominação: a de chegar a convencer os
dominados de que sua língua pode (e deve) ser utilizada à imagem e semelhança da língua dos dominadores.” (p. 109)
marca explícita das culturas indígenas e africanas,
também fundadoras de nossa cultura. Entretanto,
pouco foi o espaço destinado a esse acervo que,
ainda hoje, circula num espaço muito restrito, a
que poucos têm acesso, o que mais uma vez resulta num apagamento, na invisibilidade de uma
produção intensa que representa de forma original
o imaginário e a identidade do povo brasileiro.
Até bem pouco tempo, as histórias da cultura
popular brasileira eram tratadas como produções
menores, como deturpações de histórias originais.
O olhar eurocêntrico destituindo de originalidade
aquilo que é essencialmente diverso, mestiço.
Obviamente essa não é uma questão que
envolve apenas a circulação das informações,
mas é resultado de um posicionamento ideológico que destina espaço privilegiado a um certo
padrão cultural, que elege portanto uma estética,
um modo de dizer, um modo de ver e de representar o mundo. Atribui, assim, legitimidade e
valor a determinadas manifestações e marginaliza, discrimina, inferioriza outras.
No Brasil tivemos importantes pesquisadores
da cultura popular: Nina Rodrigues, Artur Ramos,
Sílvio Romero, Mário de Andrade, Câmara Cascudo,
dentre outros, responsáveis pela coleta e registro
de histórias populares brasileiras encontradas em
todas as regiões. Em muitas delas observamos a
Num momento em que a formação de leitores
constitui uma das grandes preocupações de diversas instituições que atuam nas áreas de educação
e cultura, a retomada dessa discussão a respeito
do caráter e das origens de nossa produção literária
é essencial. Se considerarmos o lugar da literatura
13
na construção da história, da memória e da identidade de um povo e se observarmos o quanto
a produção literária de origem africana foi relegada,
discriminada, inferiorizada, teremos aí um elemento
importante para analisar e entender a construção
do imaginário e da identidade do povo brasileiro.
representam aquilo que se rejeita, o mal, o feio, o
indesejável. Imagine-se o significado e o efeito do
contato com um universo estritamente branco, no
qual o negro raramente aparece e, quando isso
acontece, ocupa com freqüência um lugar de subalternidade, representa o estereótipo...
Considerando que um dos aspectos essenciais
envolvidos no processo de formação do leitor é
sua relação com a literatura e que um dos desafios para formar leitores é garantir os processos
de identificação e a sensação de pertencimento,
temos então uma importante reflexão a fazer: como
contribuir para que o contato com a literatura que
tematiza o negro como personagem e como protagonista de nossa história esteja presente na
formação dos nossos leitores, particularmente dos
negros e mestiços?
Essa foi a tônica da produção literária até muito
recentemente. Vale lembrar que a história da leitura
no Brasil é marcada, em sua origem, pelas importações, particularmente no que diz respeito às obras
destinadas à “formação de leitores”.
Sabemos que não h á uma única resposta para
questão tão complexa, mas ousamos indicar um
caminho possível: promover a prática de ouvir,
contar e ler histórias, particularmente aquelas
de origem africana e as brasileiras que tenham
o negro como foco.
A literatura é considerada, desde os tempos
mais remotos, experiência essencial no processo de formação do sujeito. Por meio da literatura
temos a oportunidade de conhecer tempos e lugares
diversos, experimentar sensações, sentimentos e
desejos, muitas vezes impossíveis no cotidiano. Esta
é uma das contribuições essenciais da literatura:
a possibilidade de identificar-se, de provisoriamente ocupar o lugar de um outro, de uma personagem e, protegidos por essa pele, viver as mais
diversas experiências.
Em seu livro A psicanálise dos contos de fadas,
Bruno Bettelheim enfatiza a importância desse
processo na constituição da psique do sujeito.
Imagine-se então o efeito provocado no imaginário
da criança negra que tem como único modelo de
beleza princesas e príncipes brancos, esculpidos
de acordo com uma estética européia. E que,
muitas vezes, convivem com personagens negras
que são geralmente desfiguradas, caricaturizadas,
14
A questão é que, desde então, e durante muito
tempo, pouco se fez pela inclusão efetiva do negro
como personagem na literatura, particularmente
naquela destinada às nossas crianças. Com isso, as
histórias ouvidas e lidas continuaram perpetuando
um universo idealizado, marcado pelo preconceito,
pela discriminação. Esse foi (e ainda é) certamente
um mecanismo poderoso no processo de inferiorização e de negação da identidade negra. Profunda
contradição se considerarmos nossa origem mestiça, visceralmente marcada pelas matrizes africanas. Como nos diz Rabassa, a “ influência do negro
sobre a cultura de um país no qual seu grupo foi
numeroso é, geralmente, mais profunda e alcança
mais longe do que meras manifestações superficiais podem fazer supor. Na época da escravidão,
a escrava freqüentemente era encarregada da
criação das crianças e muitas vezes tornava-se uma
segunda mãe para elas. Presenteava a criança com
histórias do folclore africano, cantigas, crenças religiosas e superstições. Tendo sido adquiridas em
tão tenra idade, essas tradições tornavam-se parte
do folclore local ou nacional....” (p. 34).
Felizmente nos últimos anos observa-se uma
preocupação de algumas instâncias com a produção
e a circulação de uma literatura em que o negro
apareça como protagonista, discuta e vivencie
conflitos típicos de sua posição numa sociedade
preconceituosa. Preocupação também com o que
podemos chamar de Literatura Negra, aquela produzida por negros e na qual os valores, a estética
e as origens do negro ocupam espaço principal.
Incluir essa produção no repertório de leitura de
nossa sociedade é um desafio urgente que requer
um movimento de reconhecimento, apropriação
e identificação.
Uma das vertentes do Projeto Negras Palavras
realizado pelo Museu Afro Brasil é exatamente esta:
ler e refletir sobre o processo de leitura e apropriação
das narrativas escritas de origem africana e brasileira. Para tanto, é urgente conhecer a produção
de autores como Joel Rufino dos Santos, Júlio Emílio Braz, Rogério Barbosa de Andrade, Edimilson
Pereira, Geni Guimarães, Elisa Lucinda, dentre tantos outros, todos eles comprometidos com o que
podemos chamar de literatura negra destinada à
criança e ao jovem. Nessas obras encontraremos
personagens negras protagonistas de situações
diversas, questões como os princípios que orientam a estética em culturas africanas, tal qual se
lê em As tranças de Bintou; conflitos existenciais
relacionados à vivência do preconceito, como o do
narrador de Na cor da pele, de Júlio Emílio Braz.
características físicas, seu jeito de falar, as expressões que lhe são típicas. Da mesma forma, o leitor
de histórias precisa “conhecer” o lugar em que se
passa a história, com seus perigos, seus fascínios.
Afinal, é esse conhecimento que possibilita a familiaridade do leitor com a história que, nascida na
tradição oral, agora se encontra registrada, escrita,
mas precisa tornar-se novamente oralidade.
O leitor empresta sua voz, seus sentimentos,
sua emoção ao texto e nesse movimento contagia
o ouvinte, faz dele um semelhante, como nos diz
Lima Barreto – o grande escritor brasileiro –, e com
isso cria a possibilidade de estreitar laços, criar
vínculos, pertencer.
Bibliografia
BETTELHEIM, Bruno. A luta pelo signficado. In: A psicanálise dos
contos de fadas. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1980. (Literatura
e teoria literária; v. 24)
É por meio desse contato que poderemos constituir um repertório consistente, variado, que nos
permitirá colocar ao lado das histórias já conhecidas
por todos, essas que circulam desde sempre entre nós, mas que ainda ocupam tão pouco espaço.
Vale dizer que não se trata de substituir, de negar
o valor dessa literatura que atravessa os tempos,
marcando as histórias de todos nós. Trata-se de ampliar esse universo, garantir espaço, lugar e legitimação para o diverso, para as diferentes formas de
olhar, ver e representar o mundo e o homem.
GNERRE, Maurizzio. Da oralidade para a escrita: processo de
Afinal, como o contador, o leitor de histórias precisa dominar plenamente a narrativa que escolhe
para ler; e para tanto é preciso conhecer profundamente as personagens a ponto de imaginar suas
Neide A. de Almeida
“redução” da linguagem. In: Linguagem, escrita e poder.
3 a ed. São Paulo : Martins Fontes, 1991. (Texto e Linguagem)
GUIMARÃES, Maria Flora. O conto popular. In: Brandão, Helena
Nagamine. Gêneros do discurso na escola: mito, conto, cordel.
discurso político, divulgação científica. São Paulo : Cortez,
2000 (coleção Aprender e ensinar com textos, v.5)
RABASSA, Gregory. O negro na história e na literatura. In: O negro
na ficção brasileira: meio século de história literária. Rio
de Janeiro : Edições Tempo Brasileiro, 1965. (Biblioteca de
Estudos Literários, 4)
integra a equipe que coordena o
Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil. Socióloga, Mestre em
Lingüística Aplicada pela PUC-SP, é pesquisadora pelo Cenpec
– Centro de Estudos, Pesquisa em Ação Comunitária.
15
O espelho mágico
Não. Ele não estava lá. Olhava que olhava, procurava que procurava, mas ele não
conseguia se ver na superfície translúcida
daquele espelho. A sala estava lá, a mesa,
a janela ao fundo, tudo, menos ele...
Caramba! Será que ele não existia? Existia, sim.
Mas, pasme, aquele era um menino invisível.
Você sabe o que é uma criança descobrir-se
invisível? Não. A gente pode imaginar, pode ter uma
vaga idéia. Mas saber, saber mesmo, só sabe
quem é. A dor da invisibilidade só sente quem tem.
E aquele menino era invisível.
Claro que ele não era invisível para todos. A mãe
conseguia vê-lo, amá-lo, compreendê-lo, e era para
ela que ele sempre corria. “Mãe, eu quero me ver.
Eu quero ser visto.” E ela, sempre generosa, dizia:
“Calma, meu filho! Talvez isso seja porque você
ainda é ninguém. Mas um dia você será alguém.
Aí, o mundo inteiro vai poder vê-lo, reconhecê-lo”.
E o menino ficou matutando sobre aquelas palavras: “Um dia você será alguém. Aí, o mundo inteiro
vai poder vê-lo, reconhecê-lo”.
E o que fazer para ser alguém? A própria mãe,
que acreditava ter todas as respostas, disse-lhe o
que ela imaginava ser a solução: “Para ser alguém
você precisa estudar”.
– “Mãe, me põe na escola para eu ser alguém!
Afinal, quem é ninguém jamais poderá se ver refletido no espelho.”
E lá foi o menino para o seu primeiro dia de aula
e... Não. Ele não se via refletido no espelho escolar.
Ele não estava lá também. Em nenhum espelho.
Não estava no livro de matemática. O livro de História não contava a sua história. O de língua pátria
não falava a sua língua.
Nem a professora o enxergava. Ela beijava algumas crianças, acariciava, dava atenção, aplaudia
suas respostas, caprichava na nota. Mas ele, não.
Não estava lá.
O tempo passou. E, no mesmo dia em que se
tornou adolescente, como num passe de mágica,
ele deixou de ser invisível e se tornou... suspeito.
16
Oswaldo Faustino
Suspeito crônico. Suspeito de todos os males que
acometiam a comunidade em que vivia. De todos
os males da sociedade.
E, no Brasil, se você é suspeito, já é culpado. Se
não culpado do que suspeitam, culpado por terem
suspeitado de você. E, finalmente, ele se tornou
visível, na primeira página do noticiário policial.
Mas essa história não termina aí. Seria triste demais. Aquele menino tinha uma irmãzinha caçula.
Tão invisível quanto ele. E, como ainda era criança,
ela acreditava na existência de um velhinho que
trazia presentes no dia de Natal. As outras crianças
o chamavam de Papai Noel. Ela, porém, o conhecia
por Baba Noel. Como as demais, ela escreveu uma
cartinha para o tal velhinho.
E Baba Noel começou a ler as cartas das crianças: uma pedia boneca, outra queria bola, outra,
bicicleta, aquela, computador, celular, vídeo game...
E Baba Noel abriu aquela carta com um pedido estranho: “Para que eu possa me ver, me reconhecer,
me identificar, eu quero uma jóia, uma jóia que me
reflita: um espelho mágico”.
Só então Noel se deu conta de que não era a
primeira carta que ele recebia com esse pedido.
Havia outras, que ficaram esquecidas no fundo do
baú de correspondências. Eram dezenas, centenas,
milhares. Caramba! Talvez ele pudesse arranjar
alguns espelhos mágicos, mas como arranjar espelhos para atender a tantos pedidos?
Teve, então, a idéia de fazer um único espelho.
Um espelho gigantesco, em que todas as crianças
invisíveis pudessem refletir-se. Baba Noel, então,
procurou seu filho predileto, um artista sensível,
culto, elegante, um escultor chamado M’Noel, e
pediu-lhe que esculpisse, em ouro e no mais fino
cristal, esse espelho mágico.
Foram anos de trabalho, muitos... Mas um dia o
espelho mágico ficou pronto e todas as crianças,
antes invisíveis, puderam ver seu reflexo e refletir
sobre elas próprias... Aí, descobriram que são belas,
belíssimas, ricas, poderosas, não ficam a dever nada
a todas as demais crianças.
E o espelho mágico ganhou até um nome: Museu
Afro Brasil. Olha só, a gente é lindo ou não é?
João Cândido, o almirante
negro e seus companheiros
a bordo do encouraçado,
1910
Fagulhas e ostracismo:
à memória de João Cândido
Cristiane Moscou
(...) Então ele retirou um pedacinho de cada uma das
vinte criaturas, misturou-os e, depois, soprando na mistura
uma centelha de seu próprio hálito de fogo, criou um
novo Ser, o Homem, ao qual deu uma parte de seu nome:
Maa. Assim, esse novo ser continha, por seu nome e pela
centelha divina nele insuflada, alguma coisa do próprio
Maa Ngala.
Maa Ngala ensinou a Maa, seu interlocutor, as leis,
segundo as quais todos os elementos do cosmo haviam
sido formados e continuavam a existir. Instituiu Maa como
guardião do universo e encarregou-o de zelar pela manutenção da Harmonia universal. Por esta razão é difícil ser
Maa. (...) Hampa Té Bâ
Segundo a tradição Bambara, no Mali, o homem foi
criado para fazer companhia ao criador. Em comum
eles têm a palavra – transmitida na centelha por
Maa Ngala – que, assim como o fogo, pode criar
ou destruir. É difícil ser guardião do universo e
manter a harmonia, tendo como ferramenta e aliado
elemento tão potente como o fogo, ou a palavra.
As palavras contam histórias que, de acordo
com a imaginação, lembrança ou interesse de
quem conta, podem sofrer modificações – “quem
conta um conto aumenta um ponto.” É a fagulha
acendendo chamas ou causando incêndios.
Histórias podem ser contadas a partir de objetos
e imagens, como acontece no Museu Afro Brasil.
O núcleo História e Memória, por exemplo, reúne
a reprodução de retratos de várias personalidades negras brasileiras que tiveram destaque em diferentes
áreas do conhecimento como as artes, arquitetura,
medicina, engenharia, literatura, entre outras.
Essas imagens nos remetem a trajetórias que se
relacionam entre si no Brasil e, não raro, em outros
lugares do mundo, formando uma imensa colcha de
retalhos. É o que se dá com o compositor e maestro
Carlos Gomes, autor da mais famosa ópera brasileira,
O Guarani, e amigo de André Rebouças, engenheiro
e abolicionista. Há também o caso de Machado de
Assis, que teve suas primeiras obras publicadas
17
pelo primeiro editor de livros no Brasil: Francisco
de Paula Brito. Em comum, todos esses homens
são descendentes de negros africanos.
São percursos desconhecidos da maioria das
pessoas, que muitas vezes não foram apropriados
ou retransmitidos nas escolas, nos museus ou mesmo na vida cotidiana. Muitos deles têm reconhecida
contribuição à sociedade brasileira. Dão nomes a
ruas, avenidas, escolas e até mesmo a cidades, mas
a sua origem africana permanece oculta.
Abolidos com a Proclamação da República, os
castigos corporais estavam previstos no Código
da Marinha. Limitados a 25 golpes, muitas vezes chegavam a 200. No dia anterior ao levante, o marinheiro
Marcelino Rodrigues, tinha sido castigado com
250 chibatadas. Era o estopim do movimento, que
já vinha sendo planejado. Vale informar que na
Marinha brasileira grande parte dos marinheiros
era negra e mestiça, portanto, esse castigo remetia
aos tempos da escravidão. Além do mais, havia anos
não era aplicado pela Marinha de outros países.
Muitas vezes já em vida, ou quando suas biografias
foram retransmitidas, tais personalidades passaram
por processos de branqueamento, ou seja, tiveram
suas imagens modificadas, a fim de esconder seus
traços reveladores de descendência africana e reforçar a idéia de que o conhecimento não pode
estar vinculado à origem negra.
O principal líder desta revolta, João Cândido
Felisberto, filho de um escravo, nascera em 24 de
junho de 1880, em Rio Pardo, Rio Grande do Sul.
Entrou para o Arsenal de Guerra daquele estado;
aos 14 anos foi transferido para a Escola de Aprendizes Marinheiros no Rio de Janeiro e, de lá, para a
Marinha de Guerra.
A maioria das personalidades negras brasileiras tem sua história e imagem apagadas – como
que destruídas por incêndios – relegadas ao ostracismo, como João Cândido, herói da Revolta da
Chibata, às vezes mencionada nas escolas, mas
nunca aprofundada. Neste momento acenderemos
uma fagulha.
O levante liderado por João Cândido, conhecido
como Almirante Negro (ver box), durou seis dias,
apavorando a população do Rio de Janeiro mas, após
negociação com o governo brasileiro, os navios
foram entregues pacificamente aos oficiais da
Marinha. O governo brasileiro aceitou as reivindicações dos marinheiros, porém, dias depois, excluiu
da Marinha quase mil homens sob o argumento de
que eram “elementos não desejáveis”.
Para avaliar a importância da biografia que
se segue, vale citar o grande escritor Gabriel
Garcia Márquez:
“As histórias são como eu lembro para contar”
(Viver para contar, 2003)
A data: 22 de novembro de 1910. Estava empossado havia uma semana o novo presidente
da República: Marechal Hermes da Fonseca, que,
apoiado pelos militares, vencera as eleições tendo
como adversário Rui Barbosa, que era apoiado pelos
civilistas. Marujos da Marinha da Guerra tomam
navios, alguns recém-comprados da Inglaterra,
e apontam os canhões para o Rio de Janeiro e o
Palácio do Catete, sede do governo.
As queixas dos revoltosos eram motivadas pelos
baixos salários, má alimentação, mínima formação
dada aos marujos e, principalmente, a exigência do
fim dos castigos corporais com chibatas, vara de
marmelo ou um chicote flexível com agulhas e pregos para tornar o castigo mais dolorido.
18
Em dezembro, por motivos desconhecidos,
estourou nova revolta, desta vez dos fuzileiros
navais. Controlou-se a rebelião, prisões foram feitas
e quase quinhentas pessoas (ex-marinheiros, mendigos, prostitutas e vagabundos) tiveram como
destino o norte do país para trabalhar na extração
da borracha ou na construção da estrada MadeiraMamoré. Muitos morreram fuzilados ou em conseqüência dos maus-tratos.
Outros revoltosos de novembro tiveram que
cumprir pena na ilha das Cobras. Em três dias,
dezesseis dos dezoito presos estavam mortos.
Foram expostos a uma mistura com cal que os
sufocava e torturava. Desse massacre restaram
dois sobreviventes: o soldado naval João Lira e o
marinheiro de primeira classe João Cândido.
Enviado para o Hospital dos Alienados, dirigido
pelo médico negro Juliano Moreira em 1911, foi
absolvido das acusações em 1912. Sem sucesso,
A música “Mestre-Sala dos Mares”, de Aldir Blanc e João Bosco, faz referência a Francisco do
Nascimento, o Dragão do Mar, personalidade importante na história cearense no século XIX
e na resistência à escravidão. Os compositores também recuperam um termo usado pela
imprensa da época da Revolta da Chibata: referiam-se a João Cândido como Almirante Negro.
Por imposição da censura na ditadura militar a expressão foi substituída por navegante negro:
Versão anterior à censura
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A que a história não esqueceu
Conhecido como almirante negro
(...)
João Cândido tentou entrar para a Marinha Mercante,
morar na Argentina e Grécia; também recebeu
convite para ficar na Inglaterra. Não conseguiu se
adaptar fora do Brasil. Foi trabalhar no mercado
da pesca da Praça XV, no Rio de Janeiro, onde
permaneceu até os anos 40. Morreu em 1969, em
decorrência de uma infecção no estômago.
Versão pós-censura
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como navegante negro
(...)
Histórias de vida de brasileiros como João Cândido são fagulhas que precisam se manter acesas, para que surjam imensas chamas, trazendo
luz à nossa História.
Bibliografia
Tramita hoje, na Câmara dos Deputados, uma
proposta de reconhecimento e anistia dos marinheiros que participaram da Revolta da Chibata.
HAMPA TÉ BA, Amadou. A palavra, memória viva na África.
História Geral da África. São Paulo : Ática/Unesco, 1982.
MOREL, Edmar. A Revolta da Chibata. Rio de Janeiro : Edições
Esta trajetória de vida surpreende e surpreende
também perceber como a maioria dos heróis negros
é relegada ao esquecimento ou à banalização, ainda
que a história de um marinheiro possa se entrelaçar
com a história do médico negro baiano Juliano
Moreira. Trajetórias que, por mais brilhantes que
tenham sido, continuam desconhecidas pela maioria
das pessoas, dificultando o processo de identificação da população com personalidades negras
brasileiras destacadas nas mais diversas áreas.
Graal, 1986.
ALMEIDA, Silvia Capanema. O Almirante Negro: glória a uma luta
inglória. Revista História Viva, n. 27, p. 74-80, jan., ano III, 2006.
Revista de História da Biblioteca Nacional, n. 9, abr., ano 1, 2006.
Cristiane Moscou
é educadora do Núcleo de Educação do
Museu Afro Brasil. Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e integrante do Movimento Hip Hop.
19
Práticas de
oralidade
Viviane Lima de Morais
... a fala humana anima, coloca em
movimento e suscita as forças que
estão estáticas nas coisas.
A. Hampa Té Bâ
20
Inspirados por tradições orais africanas, nas quais
o aprendizado se dá na coletividade, no exato instante em que se fala e que se ouve, nos reunimos,
À Sombra do Baobá, para descobrir ou reanimar
forças que estavam estáticas em nós.
Nosso baobá, como toda velha árvore, estava
carregado de memórias, projetando sobre nós uma
sombra incomensurável capaz de dar sentido às
nossas superstições, nossos ditos populares, nossos
sotaques, nossas cores. Ali, ao abrigo da luz ofuscante
do sol da modernidade, da pressa dos nossos dias,
paramos algumas horas para nos olhar e nos ouvir.
O Museu Afro Brasil foi o nosso baobá. E aquela
África que parecia tão distante de nós, pelo imenso
Oceano Atlântico que nos separa, ou por ainda
acharmos que toda a história que nos liga a ela se
restringe ao período da escravidão, veio nos encontrar para trazer nossos avós, pais, infâncias e
outras histórias. A África se tornou um lugar tão
real quanto mítico, um lugar onde podemos buscar
e deixar nossas músicas, instrumentos, palavras,
comidas, gestos, onde podemos nos abastecer de
sentidos e fantasias. E nestes encontros, à sombra
do baobá, o elo estabelecido entre África e Brasil
foi firmado pela oralidade.
Sempre pensamos nela como o som que sai
da boca, o que é vocalizado, a voz. Mas a voz é
apenas um elemento desta prática humana presente em todo o corpo e fora dele. Nos gestos
que fazemos, nos objetos que tocamos e rituais
que executamos. Cada som e cada gesto gravam
nos corpos e nos objetos a memória produzida
naquele instante. E essa memória faz parte de
um momento da oralidade.
Equivocadamente, quando pensamos as sociedades tradicionais africanas, limitamos a oralidade
aos momentos e espaços ritualísticos. Entretanto,
se expressa nos seus mais amplos sentidos.
Os rituais estão presentes tanto em sociedades
modernas quanto em tradicionais. E, semelhante
às culturas modernas de lá e de cá, estes ritos não
estão condicionados apenas ao universo religioso.
Temos em nosso mundo moderno diversos rituais
que não se restringem ao espaço da religiosidade,
ainda que contenham elementos deste.
No cotidiano de povos tradicionais africanos
há rituais, religiosos e não religiosos, com a utilização de um elemento material da oralidade
que é a máscara ou o costume de mascarar-se.
Mascarar-se, entre Gueledés, Dogons etc., diz respeito à possibilidade de se revestir da ancestralidade invocada para aquele momento sociocultural.
Por essa razão, as máscaras não se limitam a uma
cobertura do rosto ou da cabeça, mas sim de
toda a extensão do corpo daquele indivíduo, que
sairá da sua condição física e humana para dar
lugar às forças da tradição que ele representa.
A máscara, portanto, é um dos elementos da performance oral que se compõe também da música, da
dança, da interação com os ouvintes e de todos os
ensinamentos anteriores e posteriores que concretizaram esse momento. Essas máscaras mantêm
uma estrutura estética tradicional, que guarda em
si diversos processos ritualísticos e na qual a orali dade está presente desde a sua concepção e
confecção até o seu uso.
21
Ao rememorar nossas tradições e rituais de oralidade, reencontramos nossos velhos contadores
de histórias, um contraponto a uma prática moderna, em que o contato com a história, quando existe,
em geral, se dá por meio da leitura, numa atividade
individual e solitária. Aproveitando o fato de estarmos embaixo do baobá, uma árvore mitificada, que
metaforiza de maneira poética a relação ancestral
entre África e Brasil, passamos a refletir sobre a
escrita e a oralidade, e como estes elementos se
relacionam em sociedades tradicionais. Um modo
de compreendermos nossas máscaras, que não
são materializadas como entre os povos africanos,
mas que também nos revestem de uma ancestralidade própria do ato de contar histórias.
A escrita é parte da oralidade. Segundo uma
concepção malinesa, o homem é um conjunto
de vinte forças que vibram e se expandem produ-
zindo inicialmente pensamentos, depois sons e
finalmente palavras. Poderíamos incluir a escrita
como uma destas forças que, segundo a história
da humanidade, surgem após este processo inicial
de expressão?
Esses elementos que se inscrevem sobre superfícies variadas auxiliam o homem na compreensão
do mundo e de si, registrando seus pensamentos,
sons e palavras.
O que em nossa sociedade reconhecemos
oficialmente como escrita não se aplica para estes
povos. Pois, nos seus registros, representa-se
graficamente não a língua, a forma do som, e sim
o modo como se vive e compreende o mundo.
Estes registros se constituem por meio de
desenhos ou símbolos que não podem ser lidos
de maneira literal já que apresentam concepções
de mundo e sociedade extremamente complexos
e específicos destas culturas. Estas inscrições,
gravadas, pintadas ou esculpidas se apresentam
em suportes diversificados, que nem sempre
têm como finalidade guardar um registro para
posteridade, como observamos na concepção
de escrita ocidental.
Cada suporte definirá um tipo de registro da
memória e uma necessidade de comunicação que
se dá em diversos âmbitos do cotidiano: o tecido,
as paredes ou portas das casas, as máscaras,
o corpo (pinturas e escarificações), o chão, dentre
outros. Apesar de serem de natureza e uso diferenciado todos são suportes perecíveis. Por isso,
há a necessidade de transmissão oral do conhecimento. Enquanto os registros escritos perecem,
a memória perdura para a confecção de novos
registros em uma prática hierárquica e geracional
de ensinamento das tradições.
22
No entanto, ainda que estes registros pareçam
estáticos, não podem ser lidos desta maneira. Essa
escrita, nestes casos, também deve ser compreendida como uma força vibrante, principalmente
quando analisamos os suportes escolhidos para a
sua exposição.
Um corpo pintado ou escarificado, quando em
movimento de caminhada ou de dança, incita-nos a
falar sobre ele e com ele. Seus movimentos transmitem a vibração do que foi escrito naquele suporte.
As pinturas corporais ou as escarificações, bem
como as máscaras são colocadas em espaços visíveis para comunicar, para serem vistas, para serem
lidas. E assim, unindo o gestual com os acessórios
e as inscrições, o corpo fala e convida a falar.
em si, espaços de passagem que dividem lugares e pessoas, permitindo ou não o contato
entre eles. Mas, ao serem utilizadas como um
suporte para a escrita, propiciam um elo entre
o escritor e o espectador, um elo que se fará
no âmbito da oralidade, do questionamento, da
compreensão do outro.
Bibliografia
HAMPA TÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. História Geral da
África. São Paulo : Ática/Unesco, 1982, v.1.
ZUMPTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo :
Hucitec/EDUC, 1998.
CARRÉS D´IMAGES. Masques: espirits d´Afrique. Photografies
de Thomas Renaut; Textos de Marie-Aude Priez. Paris :
Os tecidos também são móveis e maleáveis, feitos
para serem expostos sobre o corpo, sentidos e lidos
com os olhos, com os pés, produzidos nas portas
das casas em meio aos diálogos cotidianos dos
espaços públicos e coletivos. A escrita se inicia
no desenho ziguezagueado do entrelaçamento de
fios, no dinamismo obtido por essas linhas que expressam a força vital da composição que também
está na fala, na dança e na silhueta das estatuetas.
A vibração contida nessas linhas recupera o movimento contínuo do tear manual, que determinará
também a escolha das formas que serão impressas
no tecido e, inclusive, o uso que cada sujeito fará
daquele objeto.
ASA Éditions, 2000.
Viviane Lima de Morais
Educadora do Núcleo de Edu-
cação do Museu Afro Brasil. Mestre e Doutoranda em História
Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Nas casas ou portas inscritas podemos observar o uso calculado de um espaço de comunicação
oral. O que se escolhe para expor, para quem e com
que finalidade. As inscrições são feitas do lado de
fora destes espaços para todos que passam e que
chegam, comunicando, informando ou advertindo,
abrindo e fechando sua mensagem. As portas são,
23
Quem conta o conto,
conta como o conto foi...
Neide A. de Almeida
Uma jovem mulher lê uma história para um grupo reunido em torno de uma mesa
de vidro. Todos estão sentados no chão, têm os olhos centrados na mulher que lê.
Eu também a observo atentamente, vejo o perfil da leitora. De repente, no exato
momento em que se dá a transformação que encaminha a narrativa para o final,
apagam-se as luzes da biblioteca; continuamos olhando e ouvindo a leitora que
agora passa a contar o texto. Quando se anuncia o desfecho da narrativa, lentamente as luzes se acendem e iluminam o perfil da contadora. A magia da história
coincide com a mágica experiência vivida pelo grupo.
(cena flagrada em uma das oficinas À Sombra do Baobá, no Museu Afro Brasil)
24
Em um dos momentos da série À Sombra do
Baobá, Projeto Negras Palavras, nos dedicamos a
reunir e analisar histórias de origens diversas a respeito de um mesmo tema, de um mesmo conflito.
Tomamos como ponto de referência um conto brasileiro de origem africana: A menina e o quibungo.
Nesta história uma menina transgride um limite imposto pela mãe: “criança não deve sair sozinha à
noite”. A punição para tal transgressão é tornar-se
alvo e vítima do quibungo.
Como se vê, situação e conflito semelhantes
aos encontrados num conhecido clássico da literatura infantil, Chapeuzinho Vermelho. Mas a história apresentada por Henriqueta Lisboa, recolhida
por Nina Rodrigues, não é a única que aborda o
mesmo tema de forma tão semelhante, há outros
exemplos, dentre os quais discutimos também
O bicho Pondê, recolhido por Lindolfo Gomes;
A falsa avó, registrada por Ítalo Calvino; Fita verde
no cabelo, de Guimarães Rosa, e dois contos africanos: Duula, a mulher canibal e A mãe canibal e
seus filhos, o primeiro recontado por Rogério
Barbosa e o segundo por Júlio Emílio Braz.
Ao reunir esse conjunto de histórias é possível
observar alguns aspectos, normalmente diluídos
na concepção eurocêntrica que orienta nosso olhar.
Um primeiro elemento que merece destaque é que,
ao contrário do que parece, as histórias surgem no
mundo inteiro “nas feiras populares de Bagdá, nos
oásis que reuniam os beduínos, nas ágoras gregas,
nas savanas africanas, nos feudos da Idade Média
ou entre os índios das Américas”, como diz Flávio
Moreira (p. 14). Ou seja, criar, contar e ouvir histórias não é privilégio de um povo, mas prática típica
do ser humano, desejoso de explicar fenômenos
naturais, sentimentos inexplicáveis, estabelecer
limites, garantir que as regras de sobrevivência
e convivência sejam respeitadas, interiorizadas
e atuem não apenas na razão, mas também no
inconsciente, no imaginário e na emoção do homem.
Por isso mesmo, essas histórias quando comparadas revelam ao leitor elementos universais.
Mas as histórias têm também suas singularidades, reveladoras das características das diferentes
culturas, dos costumes das comunidades em que
foram produzidas. O quibungo, animal mítico de
origem africana, lembra um lobo, mas se parece
também com um homem. Um traço marcante dessa
figura é que ele tem duas bocas: uma que usa para
se alimentar e outra, localizada nas costas, que é
utilizada para devorar crianças. Semelhante, então,
ao lobo mau tão conhecido dos contos de fadas,
o quibungo remete o ouvinte também ao “homem
25
do saco”, ao “bicho papão”, personagens típicos
de nossa cultura popular, todos eles criados para
garantir determinadas condutas infantis. Nas histórias africanas, o canibalismo é invocado como
um exemplo da permanente tensão vivida pelo
homem: fazer parte da natureza e da cultura simultaneamente. Duula torna-se canibal durante uma
das migrações forçadas, vividas por famílias somali. Ao longo da travessia dos desertos, as pessoas
morrem e a única forma de sobreviver é alimentarse dos restos dos que ficam pelo caminho. Assim,
a menina desenvolve o gosto pela carne humana e
passa a representar uma ameaça para os demais
humanos. Da mesma forma, os filhos são afastados da mãe canibal pelo pai que quer garantir a
integridade das crianças, mas o desejo de conhecer os pais coloca os filhos em perigo.
É interessante observar que nas duas histórias
africanas, diferente do que acontece nas demais,
é recorrente a presença do pai e da mãe e de dois
irmãos. Os cenários também mudam conforme a
cultura que produz a narrativa: a floresta, o deserto,
uma aldeia. Entretanto, em todos os casos, trata-se
sempre de lugares típicos e, de certa forma, também
universais, basta mencionar uma floresta, um deserto,
uma aldeia para que todos imaginem esse espaço.
para envolver os ouvintes, garantir o interesse e
a participação da platéia na história, como se dá
com as repetições de determinadas expressões
em diversos momentos do texto.
A análise desses elementos e de tantos outros
constitui um aspecto importante no processo de
apropriação das histórias, seja para contar, seja
para ler. Daí a necessidade e a importância de
ingressar no universo das narrativas africanas, que
hoje ganham espaço em nosso mercado editorial,
e paralelamente conhecer as inúmeras histórias da
cultura popular brasileira, e em todas elas encontrar o que há de universal e que provoca não só
a imediata identificação do ouvinte, mas também
o que elas trazem de singular e que permite, por
meio do encantamento, uma aproximação com
culturas que são, ao mesmo tempo, tão familiares
e tão desconhecidas.
Bibliografia
BETTELHEIM, Bruno. A luta pelo signficado. In: A psicanálise
dos contos de fadas. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1980.
(Literatura e teoria literária; v. 24)
GNERRE, Maurizzio. Da oralidade para a escrita: processo
de “redução” da linguagem. In: Linguagem, escrita e
Nas histórias brasileiras são encontradas marcas
que remetem o leitor à origem africana: nomes como
o quibungo, o bicho Pondê e fórmulas que articulam a narrativa e que, na oralidade, são utilizadas
26
poder. 3a ed. São Paulo : Martins Fontes, 1991. (Texto
e Linguagem)
MOREIRA, Flávio (Org.). A infância da ficção. In: Os grandes contos
populares do mundo. Rio de Janeiro : Ediouro, 2005.
Os contadores de histórias de
cada um de nós
O Projeto Negras Palavras pretende iniciar um espaço coletivo sistemático de encontros para ouvir e
contar histórias. As oficinas À Sombra do Baobá constituem o início desse processo.
Os contadores de histórias são personagens que marcam a vida dos homens desde os tempos mais
remotos. Alguns deles se tornaram famosos e atravessam os séculos na memória dos povos. Há também uma outra dimensão dessa experiência que, quase sempre, se localiza nas relações mais cotidianas
e familiares. São os pais, mães, avós as principais figuras lembradas quando se questiona a respeito dos
contadores que marcaram as histórias de cada sujeito. Exemplos disso são os depoimentos de dois autores de origem negra que escrevem literatura sobre o negro, como o de Joel Rufino:
“Um outro fator de influência foi minha avó, analfabeta, mas que era como a Vó Totonha, de José Lins
do Rego. Vocês conhecem a persoangem, que ia de fazenda em fazenda, contando histórias pros meninos? Ela era da casta dos contadores de histórias. Isso vem da África, da África ocidental. Minha avó era
uma Griot, contava histórias, muitas histórias...” (Trecho da entrevista publicada em Garcia, Pedro Benjamim; Dauster, Tânia. Teia de autores. Belo Horizonte : Autêntica, 2000, p. 37.)
e o de Rogério Andrade Barbosa:
“Cresci rodeado de livros. Meu pai é professor e escritor. Tem mais de cem livros publicados, entres
eles, gramáticas, dicionários e livros didáticos. É professor de Latim, Português e Francês. Hoje ele tem
oitenta anos e ainda se relaciona muito com livros. Minha mãe, embora tenha apenas o quarto ano primário, lê
muito, talvez por influência de meu pai e de todos aqueles livros lá em casa. Os dois eram ótimos contadores de histórias. Muito antes de eu aprender a ler, eles já inventavam personagens.” (idem, p. 133)
27
Os depoimentos dos participantes da oficina Rituais de apropriação: o ouvir, realizadas no Museu Afro
Brasil, reforçam esses dados:
“Voltei com nitidez ao ‘primário’, consegui, no caminho de volta pra casa, visualizar
colegas e professores, o pátio da escola, a saída... o uniforme..., a minha ‘Pró’ como
se diz na Bahia, foi uma saudade boa, realmente ouvir histórias acaba por contar
nossa história”.
Nádia Rosa
“Percebi que o compartilhar de uma memória tão íntima despertou minha atenção aos meus referencias de histórias e da própria história de minha vida. Lembrei-me das histórias que minha mãe contava
(Festa no Céu, a da origem da mandioca, de macaco sapeca....) e que, conforme fui crescendo, foram se
modificando com a adolescência, os tempos do colégio e o período da ditadura, que me marcou desde
cedo por ter deixado meus pais (meus primeiros heróis) tão frágeis e humanos. Se por um lado minha
mãe trazia estas referências deste passado próximo, meu pai quase as negava, só contava histórias
engraçadas, de situações que aconteceram com ele e seus amigos. (...)
Creio que as histórias que ouvimos nos pertencem de alguma forma e orientam o que nós somos e
como atuamos no mundo.”
Gabriela Lieiras
“Essa experiência trouxe a minha infância. Com certeza lembrei-me exatamente o dia
em que minha avó contou que via o saci-pererê sob uma árvore. Era tudo tão real...”
Amanda Albornoz
“Ah! Foi maravilhoso! Num primeiro momento, fiquei um tanto presa às histórias das cinderelas, belas
adormecidas, chapeuzinho vermelho etc., tentando recordar-me qual dessas histórias havia escutado na
infância e qual tinha me marcado, Entretanto, minhas memórias não traziam essas histórias. Em minhas
memórias estavam presentes as histórias contadas pela minha avó. Foi simplesmente maravilhoso recordar e poder partilhar um pedaço de mim, da minha família, da minha cultura, desse patrimônio que não
está publicado nos livros. São histórias que nascem do imaginário, da vivência, experiência popular que
têm entre seus objetivos, educar, criar e manter valores, culturas e tradições. Para mim foi espetacular, em
especial pelo fato dos participantes se recordarem das histórias de domínio popular.”
Claudia Novais
“A minha irmã mais velha tinha um hábito, que até hoje ela tem com meus sobrinhos. Lá em Minas, a gente tinha uma cama de casal e todos os pequeninos dormiam
juntos e ela dormia com a gente. Então, antes de dormir ela contava histórias, principalmente na época de inverno... Ela contava histórias bíblicas (...) e toda vez era aquilo.
Era uma coisa engraçada, porque mesmo depois, quando a gente ia para a missa e
ouvia as mesmas histórias contadas no evangelho, não eram do mesmo jeito que ela
contava, não era da mesma forma que a gente via aquele velhinho de barba branca
como ela descrevia. E mesmo aquela coisa dos poucos cobertores, a gente tudo junto,
tudo escutando. Eu posso até ouvir ela contando, você adormecendo, querendo continuar prestando atenção, mas você não dava conta, eu sempre acabava adormecendo.
Era muito bom.”
Rosana Dias Côrrea
28
“Minha mãe sempre foi uma grande contadora de histórias, até hoje ela é, ela está com 84 anos e
conta histórias. Nós nascemos na fazenda, não tinha luz, não tinha TV, não tinha nada. Em casa, era a
mesma história que a Lourdes conta: meu pai punha uma chapa no chão, aquelas brasas, todo mundo
em volta. Mas era tanta história... Todo dia; era sagrado. E na fazenda era como uma colônia, as pessoas
se reuniam para contar histórias. Minha mãe contava aquelas histórias bonitas que até hoje eu gosto, ela
misturava com as histórias que a gente ouve hoje, e tinham também aquelas histórias que eu tenho medo
até hoje... mas era verdadeiro... Eu adoro contar histórias, eu conto história e canto pros meus filhos.
Eu ouvi muito essas histórias e no vestibular eu narrei uma história, mas depois me deu uma tristeza, em
plena prova eu comecei a chorar. Eu pensei ‘Meu Deus será que isso aconteceu mesmo?’ Eu fui longe,
fui na África, eu contei uma história triste, e me convenci dela...”
Isabel de Fátima Estevão Pereira
“Tem uma história que minha mãe contou pra mim, que a mãe dela contou pra ela, que a avó dela
contou e assim por diante. É a história ‘Josefina e a cabaça’. Era uma cidade muito próxima de onde a minha avó morava e avó da minha avó e assim por diante; e tinha uma menina que se chamava Josefina, que
morava numa casa e no alto do monte, lá longe, tinha uma planta que chamava cabaça e diziam que essa
cabaça era mágica. O pai da menina proibia que ela fosse até aquele lugar. Como era muito travessa, ela
foi até lá, pegou um graveto e começou a escrever naquela cabaça: ‘Josefina é muito bonita’, Josefina
é muito bonita e inteligente’, ‘Josefina é muito bonita, inteligente e tem a perna fina’. E cada vez que ela
escrevia na cabaça com o graveto, a cabaça ia crescendo, ia crescendo, ia crescendo cada vez mais. Até
que um dia essa cabaça, de tão grande que se tornou, começou a rolar atrás da Josefina e cantava uma
música que é mais ou menos assim:
Ô Josefina
Ô maranata
Mandacaru
Mandou te dizer que até onde você for
Eu vou te comer
Eu vou te comer
Eu vou te comer
(Eu não sei porque, mas ficou essa música na minha cabeça até hoje).
E aí ela foi correndo, correndo, correndo até que uma hora essa cabaça se quebrou e se espalhou em
milhares de pedaços lá pela região e até a sementinha cantava pra ela:
Ô Josefina
Ô maranata
Mandacaru
Mandou te dizer que até onde você for
Eu vou te comer
Eu vou te comer
Eu vou te comer
E aí dizem... Minha mãe diz que é a história do berimbau. É uma história que me marcou muito.
Maria Neusa Valverde
“Minha infância está repleta de histórias. Era um tempo de alegria, em que eu me
sentia segura ao lado de todos os meus familiares (hoje estão todos desagregados).
Essa provocação trouxe toda essa gente para perto de mim novamente e eu me senti
amada como no passado, do modo que uma criança necessita.”
Nylda Rodriguez
E você? Quem foi o contador de histórias de sua infância?
Você tem uma história que considerada a sua preferida, a mais marcante?
29
Sugestões de leitura
“As nossas razões para ler são tão diferentes como
as nossas razões para viver...” Daniel Pennac
Não há como discordar de Pennac. Como julgar alguém por suas escolhas de leitura?
Que parâmetros nos permitem considerar essas escolhas de leitura mais ou menos adequadas?
De maneira nenhuma temos essa pretensão.
Ocorre, entretanto, que sempre a organização de um curso, uma oficina ou uma publicação de qualquer
natureza implica escolhas orientadas por critérios subjetivos. Apresentamos, a seguir, alguns dos livros
que consideramos importantes para aqueles que estejam preocupados em conhecer
e abordar histórias africanas e histórias brasileiras de origem africana.
Nesta seção, o leitor encontrará não exatamente sinopses, mas apresentações, comentários,
considerações e indicações a respeito de textos que circularam em nossas rodas de histórias.
Os comedores de palavras
Edimilson de Almeida; Rosa Maria Margarida de Carvalho. Belo Horizonte : Mazza Edições, 2004.
Trata-se da história de um garoto, filho de um contador de histórias. Depois da morte do pai, o menino
decidiu morar no País dos Bichos Comedores de Palavras, pois não percebia mais seu lugar no
mundo, achava que não tinha a mesma arte de seu pai para contar histórias. Assim, desiludido, ele passa por várias aventuras até encontrar os bichos comedores de palavras, mas estes não conseguem comer todas as
palavras que o garoto fala, pois ele conta muitas histórias, uma vez que tinha passado por muitas aventuras. Então,
renegado pelos monstros, o garoto encontra um velho sábio, que o faz perceber que ele também é um contador de
histórias, tão bom quanto seu pai fora. E, assim, o garoto sai pelo mundo contando suas histórias. (Ramon Koelle)
A origem da morte
In: Sikulume e outros contos africanos. Adap. Júlio Emílio Braz; Ilustr. Luciana Justiniani. Rio de Janeiro :
Pallas, 2005.
Ao saber que um reles inseto fora escolhido para levar uma mensagem da Lua aos homens, a lebre,
sempre querendo ser a mais esperta, passa uma rasteira no inseto e toma o seu lugar. Atrapalhada como
sempre, ela não consegue passar a mensagem original aos homens. Quando retorna contando o seu
feito, a lua furiosa dá-lhe uma paulada no focinho. Por isso, a lebre tem um focinho rachado.Uma fabúla simples
e objetiva na moral passada: “Nunca tente ser mais esperto que os outros, você pode sair com o nariz rachado”.
(Avelina Machado)
Sundiata, o Leão do Mali
Recontada por Will Eisner. Trad. Antonio de Macedo Soares. São Paulo : Companhia das Letrinhas, 2004.
Nesta versão em quadrinhos, Eisner reconta a saga de Sundiata, personagem real, fundador do Império
Mali na África por volta do século XIII. Depois de lutar contra a opressão do povo de Sasso, comandado
por Sumanguru, o Leão do Mali vence a batalha de Kirina. Esta epopéia já foi contada em versos, baladas
e cantigas; mitificada, tornou-se lenda. Do poderoso príncipe dos malinqués, chegou-nos sua coragem,
sua bravura e sua persistência. Muitas são as versões desta saga. Esta é mais uma delas... (Luiz Carlos dos Santos)
Para conhecer uma outra versão da mesma história, leia também: Sundiata ou A Epopéia Mandinga. Djibril Tamsir
Niane. Tradução Oswaldo Biato. São Paulo : Ática, 1982.
As tranças de Bintou
Sylviane A. Diouf; Ilustr. Shane W. Evans. São Paulo : Cosac & Naify, 2004.
Bintou é uma menina fascinada por cabelos e tem um sonho: usar tranças. Um dia ela descobre, contado
por sua avó, o motivo pelo qual as meninas de seu povoado só podem trançar o cabelo a partir de certa
idade. E, depois de, bravamente, ganhar o direito à realização de um sonho, sua avó com sabedoria e
sem ferir a tradição do seu povo deixa a neta feliz. Esta é uma história que recupera o sentido da tradição
e do saber dos mais velhos em direção aos mais novos. (Ana Lucia Lopes)
30
A menina e o quibungo
In: Literatura oral para a infância e a juventude: lendas, contos & fábulas populares no Brasil. Org. por
Henriqueta Lisboa; Pref. e ilustr. Ricardo Azevedo. São Paulo : Peirópolis, 2002.
Você sabe o que é um quibungo? Se não sabe, o que você imagina que seja? Esses foram as primeiras
perguntas feitas aos participantes das oficinas À Sombra do Baobá, antes da leitura da história. Trata-se
de um delicioso conto que compõe a coletânea Literatura oral para a infância e a juventude. Nesta mesma obra, você poderá ler também O bicho Pondê, entre muitas outras fábulas, lendas e contos populares. A história
A menina e o quibungo provavelmente fará com que o leitor se lembre de outras histórias de diferentes origens.
Esta versão é de origem africana, mas também traz marcas explícitas de que passou por um processo de apropriação
brasileira. É uma história envolvente. Quem ouviu, gostou, apropriou-se dela e saiu por aí contando a sua versão...
Você pode encontrar este conto também no site http://jangadabrasil.com.br/maio/im90500c.htm (Neide A. de Almeida)
O bicho Pondê
In: Literatura oral para a infância e a juventude: lendas, contos & fábulas populares no Brasil. Org. por Henriqueta
Lisboa; Pref. e ilustr. Ricardo Azevedo. São Paulo : Peirópolis, 2002.
Esta é a história de uma menina que sempre se distraía ao sair para fazer os “mandados” e foi avisada de que o Pondê
a pegaria e mataria. Ela, como sempre saiu à noite, se distraiu e foi pega, tendo que pedir ajuda aos familiares que
não a atendiam. No final, só a mãe, “abrindo uma folha da porta”, consegue tirá-la das mãos do bicho, que ficou no
terreiro esperando-a sair, quando seus irmãos, ao amanhecer, o mataram e a menina aprendeu a não se distrair mais.
Este conto lembra a história do quibungo, Chapeuzinho Vermelho (....) e também dos Três porquinhos. A expressão
“a meia folha da porta” dá um sabor diferente à história, pela poesia que contém. As palavras que o autor usa, que
a gente não está acostumada a usar, que a gente acha que o outro não vai entender é que dão sabor, que fazem
o outro ficar com vontade de ler. (Nadia Rosa)
Duula, a mulher canibal: um conto africano
Rogério Andrade Barbosa; ilustr. Graça Lima. São Paulo : DCL, 1999.
Duula, no passado uma jovem bonita, torna-se canibal, durante uma das migrações forçadas vividas por famílias somali. Ao longo da travessia dos desertos, as pessoas morrem e a única forma de sobreviver é
alimentar-se dos restos dos que ficam pelo caminho. Assim, a menina desenvolve o gosto pela carne
humana e passa a representar uma ameaça para os demais humanos. Este é um conto africano que fará
o leitor se lembrar de muitas outras histórias ouvidas desde a infância, mas desta vez você terá a oportunidade de
entrar em contato com um pouco do universo e do imaginário daquele continente. Além disso, o livro é belamente ilustrado; oferece, desse modo, também a possibilidade de aproximação com a estética africana. (Neide A. de Almeida)
O chamado de Sosu
Meshack Asare. Ilustr. do autor. Trad. Maria Dolores Prades. São Paulo : Edições SM, 2005.
Sosu percebe a tempo o início de uma forte tempestade que pode destruir a aldeia à beira-mar onde
vive, no oeste da África. Aflito e sem poder andar, resolve avisar o seu povo do perigo iminente com
o toque do tan-tã. Mas, para chegar até o instrumento, Sosu precisa enfrentar o temporal. Será que o
vilarejo vai ser salvo? Essa é uma história que reafirma valores como aceitação e a superação de limites.
Ela apresenta um menino que viu sentido em enfrentar enormes desafios. O que o moveu? (Ana Lucia Lopes)
O beco do pilão
Naguib Mahfuz. Trad. Paulo Daniel Farah. São Paulo : Planeta do Brasil, 2003.
Trata-se do livro “O Beco do Pilão”, do escritor egípcio Naguib Mahfuz. Logo no início do romance, o poeta
e contador de histórias, que durante décadas recordou aos clientes do café do beco (o Café do Kircha),
no Cairo, as aventuras de heróis tradicionais e histórias de procedências diversas, é expulso do local para
marcar a rejeição do passado e um ato de “modernização”: um rádio é instalado no café, que não pode
mais acomodar o poeta/contador de histórias.
Essa aparente impossibilidade de coexistência entre o novo e o antigo, como se cada um devesse decidir a que lado
pertence, pode ser contraposta pelo contar e ouvir histórias, tradição tão cara à África (e ao Egito antigo e contemporâneo como parte dela). (Paulo Farah)
31
Roteiro
Oficina 1
A oficina 1, Rituais de iniciação: o ouvir, proporcionou aos participantes a oportunidade de ouvir histórias e iniciar uma reflexão a respeito da importância da narrativa oral na
preservação da memória e na construção do imaginário e da identidade:
- Contação de histórias, Oswaldo Faustino
- Visita orientada ao acervo, Viviane Lima de Morais e Cristiane Bernardino Dias
(Cristiane Moscou)
- Palestra A palavra falada: o som e o sentido humanos, Luiz Carlos dos Santos
- Roda de depoimentos: o contador de histórias de cada um de nós
Oficina 2
Na segunda oficina, Quem conta um conto..., foram abordados aspectos envolvidos
nos processos de contar e ler histórias, com ênfase para a identificação de elementos
universais e de singularidades em versões escritas de contos da tradição oral.
- Visita orientada ao acervo, Viviane Lima de Morais e Cristiane Bernardino Dias
(Cristiane Moscou)
- Palestra Ler e ouvir: um exercício de pertencimento, Neide A. de Almeida
- Roda: As histórias de cada um
Seminário
No seminário Histórias, memórias e identidades discutiu-se o papel e a importância da
preservação da tradição oral e da prática de ouvir, contar e ler histórias para a construção
do imaginário e da identidade. A mesa foi integrada por Gilberto Pedroza, Oswaldo Faustino, Luiz Carlos dos Santos e Neide A. de Almeida.
32
Créditos
Curador
Emanoel Araujo
Concepção e Coordenação Editorial
Ana Lucia Lopes
Neide Aparecida de Almeida
Editoria e Produção
Neide Aparecida de Almeida
Núcleo de Educação
Coordenadora
Ana Lucia Lopes
Consultora em Arte Educação
Maria da Betânia Galas
Assistentes
Neide Aparecida de Almeida
Renata Felinto
Educadores
Alexandre Araújo Bispo
Alexandre da Silva
Claudia Teles dos Santos
Cristiane Bernardino Dias
Glaucea Helena de Britto
Juliana Ribeiro da Silva
Maria Aparecida Oliveira Lopes
Maria das Graças Quaresma dos Santos
Milton Silva dos Santos
Renato Araújo da Silva
Sarah Rute Barboza
Solange Nascimento Ardila
Vanicléia Silva Santos
Viviane Lima de Morais
Fotografia
Núcleo de Educação
Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica
Via Impressa Edições de Arte
Pré-press e Impressão
Garilli Gráfica e Editora
Projeto de Implantação do Museu Afro Brasil
Patrocínio
negras
palavras

Documentos relacionados