Especial - O Nacional 87 anos

Transcrição

Especial - O Nacional 87 anos
(Foto: amanda sCharr/on)
Passo Fundo, TERÇA-FEIRA, 19 de junho de 2012
Suplemento Especial - Não pode ser vendido separadamente
Gênero: Reportagem
Tema: Meio Ambiente
Edição: 87 anos do
Jornal O Nacional
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Especial 87 Anos
Passo Fundo, TERÇA-FEIRA, 19 de junho de 2012
87 anos
conectado
com o mundo
Nada melhor do que
chegar aos 87 anos com a
vitalidade de um jovem de
20. É assim que se sente o
Jornal O Nacional: um jovem
jornal de 87 anos, absolutamente conectado com as
transformações tecnológicas
do mundo moderno. A data
de aniversário de ON, 19 de
junho, é sempre um desafio
para a equipe que produz o
jornal diariamente. O que fazer para marcar este dia tão
especial para todos nós?
A opção foi pela grande
reportagem. Sim, este é o
nosso papel: pesquisar, vivenciar, revelar, ouvir, promover
o debate, registrar a história,
aprofundar. O tema Meio Ambiente nasceu da ideia de se
mostrar a realidade de muitas
pessoas que vivem do nosso
lixo e dos projetos de sustentabilidade. Também está
relacionado ao mês onde se
comemora o Dia Mundial do
Meio Ambiente e se encaixa
entre os dias onde o mundo
se encontra na Rio + 20.
Durante dois meses, as
repórteres Natália Fávero e
Amanda SchArr mergulharam neste tema que envolve
produção de lixo, descarte, separação, projetos de
sustentabilidade. O talento
da produção infográfica e da
edição de vídeos de Marcus Freitas complementa o
trabalho. Para comemorar
os 87 anos de O Nacional,
uma grande reportagem
que pode ser acessada pelo
meio impresso e também
virtual. Estamos conectados.
Zulmara Colussi
Editora
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Confira no site mais
fotos e vídeos.
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Especial 87 Anos
Passo Fundo, TERÇA-FEIRA, 19 de junho de 2012
GRANDES HISTÓRIAS PARA
CONECTAR PESSOAS
Do acontecimento propriamente dito até todas as suas nuances e reflexões,
a reportagem é o espaço onde o grande jornalismo acontece de fato
(FOTO: FABIANA BELTRAMI)
Redação ON
No ano de 1963, o cineasta italiano Federico Fellini dirigiu Oito e meio, onde o protagonista é um diretor de cinema tentando realizar um longa-metragem. Para comemorar
o aniversário de 87 anos do Jornal O Nacional, pegamos emprestada a metalinguagem
utilizada por Fellini e fizemos uma reportagem sobre a própria reportagem, o gênero jornalístico preferido pelos jornalistas devido à complexidade e a profundidade que se pode
dar a uma história e seus respectivos personagens.
Para começar a falar da menina dos olhos do jornalismo, vale lembrar que a evolução
das tecnologias e da comunicação em si mudou a leitura de mundo. Nos dias de hoje, o
“atual” dura apenas algumas horas ou até minutos, dependendo do meio em que a informação se propaga. É nesse ponto que a grande reportagem se diferencia e se destaca,
pois ela eterniza fatos marcantes, conforme explica o professor do curso de Jornalismo da
UPF, Fábio Rockenbach. “A grande importância da reportagem é eternizar os fatos da maneira como eles merecem ser eternizados, e por isso ela tem que ser tratada com muito
cuidado”, diz ele ressaltando que uma grande história escrita nos anos 60, por exemplo,
terá a mesmo impacto ao ser lida nos dias de hoje. Além disso, o foco humano não pode
ser deixado de lado. “Não existe reportagem boa sem o fator humano envolvido por que
a gente fala de pessoas. Se não tiver pessoas vira somente um monte de números e dados”, complementa.
Segundo o jornalista, sociólogo e historiador, Luiz Carlos Golin, “reportar é representar
através do texto, da imagem ou da sonoridade um determinado fenômeno. Porque o
fenômeno e não um fato? A função da reportagem é construir uma representação que
expresse aspectos de ‘sentido’ para as sociedades humanas diretamente envolvidas ou
informativa para outras culturas”, complementa.
A doutora em comunicação e preofessora do curso de Jornalismo da UPF, Bibiana de
Paula Friderichs, explica que a reportagem serve para contextualizar o fato e auxiliar o
leitor na compreensão da realidade de uma maneira mais ampla. “A reportagem surgiu
justamente para fazer frente ao imediatismo e a superficialidade da notícia, ela trabalha
a ideia de interpretação como intervenção de mundo, isto é, me torno cidadão através
dela”, ressalta.
Dentro do contexto de instantaneidade, uma das grandes discussões jornalísticas é
definir o lugar onde a reportagem está ou ficará situada. Para Rockenbach, a reportagem
pode ficar situada em qualquer local. “Ela pode ter lugar no meio online, impresso, na
televisão, na rádio, a mensagem é a mesma independente da mídia em que ela está inserida”, ressalta. Já para Friderichs, o factual pode vir a se concentrar na web, enquanto que
os jornais impressos ficarão com os textos mais extensos. “Acho que a internet vai virar
o lugar da informação veloz, instantânea, curta e superficial da notícia, enquanto que
os veículos impressos vão ficar como espaço desse material de profundidade”, enfatiza.
“A reportagem é a digital do jornalista”: Bibiana de Paula Friderichs
Especial 87 Anos
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“O jornalista precisa se relacionar com todas as
formas de pensamento”: Luiz Carlos Golin
E o processo de construção e apuração para uma reportagem, como fica com todas essas mudanças? Na
opinião dos professores, a essência continua a mesma,
o que mudou foram os suportes e as formas de visualizar o conteúdo. O grande equívoco cometido pelos
profissionais da área é achar que tal gama de recursos poderá substituir o esforço pessoal e intelectual do
jornalista, que é primordialmente ouvir as fontes e estar in loco. “Esse é o grande perigo, achar que essas
ferramentas nos desculpam de fazer algumas coisas, o
que não é verdade”, alerta Friderichs. Ela ainda salienta
que “o processo de fazer jornalismo ainda é o mesmo,
só há mais ferramentas e mais lugares para procurar”.
Rockenbach compartilha da mesma opinião. “Esse tipo
de tecnologia é um plus para o que é essencial, que
continua o mesmo. Dar ou não esse plus a mais para
o leitor depende do veículo, do repórter e do que ele
está pensando na hora, mas o coração da reportagem
ainda é o mesmo”, diz. O jornalismo é substancialmente conteúdo, é nisso que acredita e enfatiza Golin. “O
jornalista precisa se relacionar com todas as formas de
pensamento, disciplinas e saberes que investigam a sociedade e a natureza”, argumenta.
Esses novos instrumentos de produção de informação
estão sendo lentamente agregados ao jornalismo para
tornar a informação mais rica, segundo Friderichs. “A
reportagem não deve ser reducionista, pelo contrário,
ela deve contextualizar e mostrar o fato dentro de sua
complexidade”. Na questão específica da internet, ela
salienta que o ciberjornalismo acabou criando o chamado “intermídia”, produto que mistura várias formas de
linguagens como áudio, vídeo, animação e infografia na
mesma matéria, permitindo que o leitor trafegue criando caminhos plurais e conectando elementos com muitos outros elementos sem uma ordem pré-estabelecida.
“Nesse sentido, a reportagem vira um processo rico de
formação do processo de interpretação, de polissemia
de sentidos”, completa.
“Há pouco tempo atrás na própria mídia impressa, não
havia a capacidade de ter grandes infográficos coloridos
porque não dominávamos softwares como Photoshop.
O que tinha eram fotos e texto”, lembra Rockenbach. O
conteúdo continua lá do mesmo modo, mas agora pode
ser posto de uma maneira que fica mais fácil para a absorção, atraindo mais o leitor. “Uma coisa é ler que 30%
das pessoas dizem isso e 70% dizem aquilo, outra coisa
é visualizar através de um infográfico, por exemplo. São
recursos que passaram a associar-se ao jornalismo para
contribuir nesse entendimento. Vivemos em um mundo
multimídia e precisamos começar a olhar para as outras
manifestações da linguagem como texto, pois tudo é
discurso”, complementa a professora.
Diferencial
Um ponto entre o gênero informativo e opinativo: é assim que
Friderichs define o diferencial a reportagem para os demais estilos
de textos. “O exercício permanente do jornalista é limpar as arestas
da subjetividade, mas ao mesmo tempo é a manifestação da tua
subjetividade”. Ela também ressalta que a reportagem não guarda
a opinião, mas possui espaço para a interpretação, processo essencialmente subjetivo. “Por isso que digo que é o meio do caminho
entre o informativo e o opinativo, onde a subjetividade do repórter
fica muito mais explicitamente impressa do que na notícia”.
Para traduzir e interpretar os acontecimentos ao público, o
jornalista precisa ter uma boa bagagem cultural, algo que não
é construído do dia para noite. A professora ressalta que, independentemente das ferramentas que tiver, o bom repórter
precisa saber articular ideias e ter uma boa leitura de mundo.
“Você juntou aqueles dados e montou aquele quebra cabeça,
mas montou de acordo com tua intuição, com o teu conhecimento que fica impresso no material”. Ela finaliza dizendo que
a reportagem é a digital do jornalista.
Indagado sobre se a reportagem seria o filé do jornalismo, como
dizia o professor João Carlos Tiburski (in memoriam), Golin complementa dizendo que ela “é o filé, o vinho e a sobremesa, mas
também a carne de pescoço do jornalismo. Se observarmos a história da comunicação, os jornalistas qualificados foram e são repórteres – e depois desejam ser documentaristas. É que ninguém
faz reportagem importante se não tiver, antes ou ao mesmo tempo,
a capacidade de ler a realidade, sentir a atmosfera, o cheiro, etc.,
dos lugares”.
Seja filé ou carne de pescoço, é na grande matéria que reside
a oportunidade do repórter criar algo que a prática do dia a dia
impede. Segundo Rockenbach, o que todo jornalista quer é poder
fazer uma grande reportagem. “Não é todo dia que um repórter
acostumado a fazer várias pautas por dia e seguir um padrão de regras consegue algumas páginas e alguns dias para poder escrever,
planejar, pesquisar e fazer um texto que fuja daquele padrão”. Outra questão enfatizada pelo professor é o público alvo, geralmente
composto por quem está realmente interessado em tal conteúdo,
que irá parar, sentar e ocupar seu tempo lendo, sabendo que a recompensa no final será muito maior. “Por isso a reportagem acaba
ocupando mais os jornais no final de semana, onde as pessoas têm
mais tempo para ler”, exemplifica.
Por mais que a internet tenha ocupado boa parcela do campo, o
meio impresso ainda tem espaço para as grandes reportagens. Dos
exemplos mais recentes, Rockenbach cita a matéria sobre eletroconvulsoterapia produzida por Marina de Campos e publicada no
ON em março desse ano. “Não é comum termos coragem de preparar uma reportagem com tanto peso para ser exposta durante tanto
tempo e com o tamanho que foi disposta. Essa foi recente e me
marcou bastante”, diz. O professor também ressaltou que veicular
tal material durante tanto tempo é algo que dificilmente pode ser
visto nos jornais atualmente, sejam eles das capitais ou do interior.
(FOTO: camila guedes)
(FOTO: DIVULGAÇÃO)
Novos formatos
“A grande importância da
reportagem é eternizar os fatos da
maneira como eles merecem ser
eternizados”: Fábio Rockenbach
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Especial 87 Anos
O lixo que
ninguém vê
Repórteres do Jornal ON trabalharam
um dia no aterro sanitário para mostrar
que atrás das montanhas de resíduos
e do cheiro insuportável existem 16
recicladores que catam tudo aquilo que a
população passo-fundense joga fora
Texto: Natália Fávero/ON
Fotos: Amanda SchArr/ON
Arte: Marcus Freitas/Especial ON
Quem trabalha no lixão enxerga muito mais que lixo. Os recicladores são capazes de
avistar dinheiro, amizade e um futuro melhor em meio às toneladas de resíduos
Passo Fundo, TERÇA-FEIRA, 19 de junho de 2012
“Tive que parar no lixão para
aprender a dar valor a minha
vida”. Esta foi a frase mais
profunda que eu (Natália Fávero) e a minha colega jornalista
e fotógrafa Amanda SchArr escutamos durante as oito horas
em que trabalhamos como recicladoras no aterro sanitário
de Passo Fundo. As palavras da
catadora Marli Branco, de 56
anos, que afirma ter curado a
depressão graças ao aterro sanitário, abriu meus olhos para
o outro lado do lixão: aquele
que ninguém vê.
Há dois anos, o aterro sanitário ganhou uma espécie de
“anjos do meio ambiente”: os
catadores da Associação de Recicladores do Parque Bela Vista
(Recibela). São 32 mãos contra
120 toneladas de lixo seco, orgânico e até hospitalar que chegam todos os dias no lixão. Os
recicladores são responsáveis
por evitar que cerca de 45 toneladas de resíduos por mês sejam acomodados de forma irregular no solo e degradem ainda
mais o meio ambiente.
Homens e mulheres que até
tiveram oportunidade de esco-
a
Repórter Natália Fávero e a fotógraf
dia
um
por
s
dora
cata
rr:
SchA
Amanda
lher outra profissão, mas que
optaram pelo trabalho árduo no
aterro. Desperdício para alguns,
luxo para outros. Enquanto a
maioria das pessoas quer ficar
longe, os recicladores conseguem enxergar valor e o sustento no lixão.
Desde a criação da Recibela
em 2010, os catadores sofrem
com a falta de estrutura do
aterro. A produção da reportagem foi feita em abril de 2012.
Na época, o telhado do galpão
que desabou no início do ano
esperava por conserto, a esteira de triagem estava inoperante
e o convênio com a prefeitura
para recebimento de verbas ainda não tinha sido renovado. A
catação estava sendo realizada
manualmente. Trabalhar nas pilhas de lixo com uma altura de
quase oito metros faz parte da
rotina desses recicladores quando a esteira quebra.
Atualmente, para a felicidade
dos catadores, os reparos foram
concretizados e o novo convênio
foi firmado, mas os desafios de
infraestrutura permanecem.
Os catadores ficam em dúvida se o mais seguro é trabalhar no galpão de reciclagem
que tem a estrutura metálica
corroída pela falta de manutenção ou se é ficar em cima
das montanhas de lixo expostos ao sol e a chuva.
Ao longo de dois anos, durante inúmeras matérias realizadas, escutei outra frase dos
recicladores que me motivou a
conhecer de perto a realidade
dos integrantes da Recibela: “Só
quem trabalha aqui, sabe a dificuldade que nós passamos para
reciclar”.
Uma experiência que transformou a minha maneira de ver o
lixo e espero que também contribua para mudar o olhar de outras pessoas.
Especial 87 Anos
Passo Fundo, TERÇA-FEIRA, 19 de junho de 2012
Impressões
Na manhã do dia 24 de abril, saí da redação
com uma máquina fotográfica, um gravador,
um bloco, uma caneta e a ansiedade. Às 8h30,
eu e a minha colega chegamos ao aterro sanitário de Passo Fundo. Troquei meus habituais
instrumentos de trabalho por uma galocha,
um par de luvas, uma faca, um saco e um
boné. Permaneci apenas com o gravador no
bolso. A primeira pergunta que os recicladores fizeram foi se eu e minha colega estávamos prontas para o desafio.
A princípio, achei que seria fácil, era só catar plástico. Porém, são vários tipos de plásticos com aspectos e preços diferentes: pet
branco, pet verde, negão, cristal, leitoso, entre outros.
O grupo de trabalhadores é formado principalmente por mulheres, casadas, com filhos
e com o objetivo de tirar do lixo o sustento. A escolaridade baixa prevalece. “No lixão
aprendemos a ser companheiros, a fazer amizades e a reciclar. Aprendemos a ser mais humildes com os outros”, disse Ivânia Branco,
de 27 anos.
A recicladora que é mãe de três filhos, contou que já trabalhou como empregada doméstica, mas largou tudo para trabalhar no
aterro. “Trabalhava todas as tardes para ganhar 300 a 500 reais por mês como faxineira.
Aqui no lixão dependendo da produção conseguimos tirar 800 reais limpo. Quando temos
estrutura suficiente é possível ganhar até 1,2
mil reais”, justificou Ivânia.
Primeira sacolinha
Já na primeira tentativa encontrei papel
higiênico, fraldas e outros tipos de produtos
usados e sujos. O cheiro forte do local foi intensificado quando abri a sacola. Não podia
desanimar afinal aquela era a primeira sacola.
Depois desta, perdi as contas de quanto lixo
de banheiro encontrei. Aos poucos, comecei a
acostumar com o cenário, o cheiro e o repetitivo trabalho de abrir as sacolinhas.
Nas primeiras horas de trabalho, estava empolgada com a novidade. Abria rapidinho as
sacolinhas de mercado e por muitas vezes ignorava o que via.
Artêmio Inácio de Almeida, de 56 anos, trabalhou no aterro durante oito anos como motorista de caminhão para uma empresa que
prestava serviço no local. Deixou a antiga profissão para ser reciclador. Ao conversar com
Almeida percebi que o meu primeiro dia de
trabalho no aterro estava indo muito bem.
“Você está indo bem então. Eu passe mal já
no primeiro dia. Não podia com o cheiro forte.
Fiquei uma semana sem comer direito. Depois
me acostumei”, relatou o reciclador.
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Especial 87 Anos
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Trabalho também é
diversão
Dona Marli Branco, uma senhora de
56 anos, foi a primeira pessoa que me
mostrou o outro lado do lixo. Jamais poderia imaginar que alguém fosse capaz
de se divertir no lixão. Aquela senhora
magrinha e de muita disposição propôs
me levar ao topo do monte. Encarei
como uma aventura. Dona Marli ensinou que para escalar no lixo, é preciso
imaginar os degraus de uma escada.
Seguia os passos dela para não cair ou
fazer com que a pilha de lixo desmoronasse.
Caminhar em cima de milhares de
sacolas é uma sensação estranha. Por
vezes, afundava e o mais perigoso é
não saber onde você está pisando. Pode
ser em cima de restos de alimentos, de
roupas, de papel, de vidros ou de seringas. Poucos minutos depois conquistei
o ponto mais alto do lixão. Como nos
filmes de cinema, abrimos os braços sinalizando vitória.
“O lixão curou minha depressão”
No final da manhã daquela terça-feira depois de muitas
histórias e conversas sobre o lixão, dona Marli que havia
nos mostrado a vista mais bonita do aterro confessou que
aquele lugar havia mudado a vida dela. Depois de uma das
filhas sofrer um grave acidente de trânsito e quase morrer,
Marli entrou em depressão. Chegou aos 47 quilos e não
achava mais motivos pra viver. Casada há 35 anos, quatro
filhos criados e prestes a ser bisavó, ela pensou em tirar
a própria vida.
Ivânia que atua como recicladora no lixão convidou a
mãe para trabalhar no aterro. A tática deu certo. “Trabalho
no lixão há 11 meses. Se um dia tiver que sair daqui, vai
ter que ser por um bom motivo. Essa é a primeira vez que
estou trabalhando fora de casa. Aqui, aprendi a viver novamente. Tive que parar no lixão para aprender a dar valor
para a minha vida”, emocionou-se Marli.
Especial 87 Anos
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Lição
Desperdícios
Cerca de 1 bilhão de pessoas aguardam um prato de comida no mundo. Segundo a Organização das Nações
Unidas para Agricultura e Alimentação, no Brasil ocorre o desperdício de 26 milhões de toneladas de alimentos
por ano. Esse desperdício fica muito evidente no lixão de Passo Fundo. Restos de comida, frutas, verduras,
alimentos industrializados, pacotes de bolacha e muitos outros tipos podem ser facilmente encontrados no
lixão. Alguns alimentos em bom estado e embalados são reaproveitados pelos catadores.
A comida não é a única desperdiçada na história. Brinquedos, roupas, objetos de decoração, aparelhos
eletrônicos e outras dezenas de itens em bom estado esperam pela decomposição. Muitas roupas são reaproveitadas pela maioria dos recicladores. As peças são levadas para casa e lavadas. “Meus filhos são vestidos
com roupas daqui. Além disso, levo muitos brinquedos”, contou a catadora Janete.
Durante a nossa reportagem, encontramos muito lixo hospitalar com material usado. Esse tipo de resíduo
não pode ser encaminhado ao aterro sanitário. Ele precisa ter um manejo e destino adequado. A presença dele
coloca em risco a saúde desses recicladores. “Temos medo de contaminação. A presença deles é frequente
aqui no aterro”, frisou a recicladora Ivânia.
Medicamentos lacrados também foram identificados. Esse tipo de resíduo afeta o solo e polui os rios.
No final do dia, o cheiro forte parecia ter sumido e já era capaz de sentar sobre o lixo. Estava exausta de tanto subir e descer a pilha.
Minhas costas estavam doloridas de ficar curvadas por muito tempo. A roupa estava suja
e minha galocha nem se fala. Consegui encher
oito sacolas e aprendi os tipos de plásticos que
podem ser reciclados. Os materiais catados pela
nossa equipe de reportagem foram doados aos
recicladores.
A sujeira do aterro não foi o que mais marcou.
A maior lição foi entender o poder do lixão. Catar o lixo dos outros e ver o desperdício de comida, de roupa e de tantas outras coisas mexe
com a cabeça e com o coração. Além disso, a
união e parceria do grupo Recibela é exemplo
para qualquer gestão. Compartilham a amizade,
o respeito e os problemas. Cada um ajuda o outro como pode. Seja com um simples abraço ou
com um ombro para chorar. A alegria e a vontade de vencer na vida podem ser encontradas
em qualquer lugar.
O trabalho
A rotina do grupo inicia às 8h. Os catadores fazem um lanche na metade da manhã e almoçam ao
meio-dia. O intervalo é curto e antes das 13h30, os recicladores estão de volta ao serviço. Depois seguem até as 17h30. O lanche e o almoço são trazidos de casa. No escritório do grupo, há uma cozinha
e banheiro.
O trabalho consiste em abrir as sacolas e retirar os plásticos. A maior satisfação é rasgar a sacola e
perceber que o lixo está separado, o que na maioria das vezes não acontece. Mesmo que as sacolas
sejam compactadas no caminhão, elas não costumam rasgar, portanto, se as pessoas fizerem a separação em casa, o trabalho na hora de
reciclar é facilitado.
No mês de abril, a esteira estava quebrada e os recicladores catavam manualmente na pilha de lixo na entrada do
aterro. Os associados buscavam principalmente materiais plásticos por serem
mais rentáveis e fáceis de catar na atual
situação. “Não vale a pena catar aqui em
cima papel e outros materiais. É difícil
armazenar e eles não valem muito. Dá
muito transtorno carregar uma tonelada
para ganhar só R$ 100,00”, explicou a recicladora Ivânia Branco.
Os materiais são armazenados em grandes sacolas com capacidade de aproximadamente 40 Kg. No final do dia os sacos
são pesados e os materiais comercializados. Por mês, na catação manual, cada reciclador produz em média 1,5 toneladas e
a renda gira em torno de R$ 450,00.
Situação bem diferente de quando
a esteira de triagem está funcionando.
No galpão de reciclagem há uma organização maior e fica mais fácil separar
os resíduos. Reciclando com o auxílio da
esteira, cada associado pode lucrar até
R$ 1,2 mil por mês.
A humildade, a solidariedade e a
união
engrandecem o grupo Recibela
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Especial 87 Anos
De papeleiros
a recicladores
Associações de reciclagem ajudam a transformar a cultura do lixo
em Passo Fundo. População está criando o hábito de separar os
resíduos e já percebe os catadores com outros olhos
Grupo é formado por 11 mulheres e um motorista. A maioria reside no bairro Santa Marta onde está localizado o galpão da Cootraempo
Passo Fundo, TERÇA-FEIRA, 19 de junho de 2012
Há quatro anos as associações de reciclagem de Passo Fundo não tinham material suficiente para reciclar. Atualmente, a demanda é tanta que os pavilhões
estão abarrotados, mas o principal desafio ainda é a infraestrutura. A Associação Amigos do Meio Ambiente (Aama),
a Associação de Recicladores Esperança
da Vitória (Arevi), a Cooperativa Mista de
Produção e Trabalho dos Empreendedores Populares da Santa Marta Ltda (Cootraempo) e a Associação de Recicladores
Parque Bela Vista (Recibela) reciclam
cerca de 110 toneladas de lixo por mês.
Para mostrar o dia a dia dos galpões
de reciclagem acompanhei o trabalho
dos recicladores da Cootraempo durante quatro horas. O galpão localizado no
bairro Santa Marta abrange 12 recicladores e cerca de 450 pontos de coleta no
município.
Cheguei no galpão por volta das 13h30
do dia 03 de maio. Meu trabalho iniciou
na entrada do galpão da Cootraempo.
Dezenas de sacolas cheias de materiais
recicláveis dificultavam a passagem
dos recicladores. Sinal que a demanda
das cooperativas de reciclagem cresceu
comprovando que um maior número de
empresas, prédios, condomínios, instituições e cidadãos estão fazendo a separação e destinação correta do lixo. No
ano passado, a renda de cada integrante
do grupo no final do mês era de aproximadamente R$ 300,00. Em 2012, passou
para cerca de R$ 800,00. São cerca de 30
toneladas de materiais recicláveis mensalmente.
Os resultados positivos é mérito da organização e trabalho árduo dos recicladores. Eles se desdobram para dar conta
da coleta, separação e prensa dos resíduos. A administração do galpão é feito
pelos próprios integrantes que fazem a
contabilidade e preenchem a ficha ponto
com o horário de entrada e saída. Parte
dos recursos é destinado para a contribuição previdenciária dos associados.
Enquanto dois recicladores fazem a coleta na cidade com o caminhão, outra parte da equipe faz a separação no galpão.
Uma pessoa fica responsável por prensar
os materiais. O grupo faz rodízio de tarefas e todos passam pelas funções.
Especial 87 Anos
Passo Fundo, TERÇA-FEIRA, 19 de junho de 2012
130 fardos prensados por mês
Plásticos, papéis, papelão, vidros, isopor, alumínio e outros tipos de materiais chegam
no galpão da Cootraempo através das coletas ou de doações feitas pela comunidade.
Empresas, instituições de ensinos e agências bancárias fazem a doação de materiais para
a cooperativa. Os resíduos são separados por tipos e armazenados em grandes sacolas.
São prensados cerca de seis fardos por dia ou 1,5 tonelada por dia. Ela foi constituída
em 2005 com o apoio da Socrebe), que através de comodato disponibiliza o prédio e o
caminhão.
O trabalho é das 8h as 11h45 e das 13h15 as 17h30. A tesoureira do grupo, Silvana de
Ramos está há três anos no grupo e salientou a importância do trabalho da cooperativa.
“As pessoas chamam de lixo, nós chamamos de dinheiro. Além de termos uma renda
ajudamos na limpeza do município”, salientou Silvana.
Entre uma entrevista e outra, eu tentava aprender a fazer a reciclagem. Certos tipos
de copos de plástico utilizados para água e café nas empresas e órgãos públicos podem
ser reciclados. Sacolinhas plásticas de mercado também são reutilizadas. Os jornais são
picotados em um equipamento especial antes de ir para a prensa. O isopor também é
triturado antes de ser comercializado. As folhas de ofício são separadas conforme a cor,
o tamanho e o estado de conservação.
Os materiais são comercializados para empresas de reciclagem de Passo Fundo e Soledade.
Lições ultrapassam as portas dos galpão
O aprendizado adquirido dentro da cooperativa é levado para dentro de casa. Márcia Diones Munari, de 38 anos é uma das primeiras
recicladoras da Cootraempo. Está no grupo há seis anos e se tornou
uma profissional da reciclagem. Conhece de olhos fechados a diferença entre os tipos de materiais. Como a maioria das recicladoras, ela
é moradora do bairro Santa Marta. Mari relembra dos anos difíceis da
sua vida e dos resultados positivos conquistados com o trabalho no
galpão. “Antes de trabalhar aqui eu não tinha da onde tirar dinheiro
e sustentar meus cinco filhos. Quando cheguei não tinha noção de
reciclagem. Depois que entrei para a cooperativa os hábitos mudaram
na minha casa. Ensinei meus filhos sobre a importância da reciclagem.
Hoje faço a separação em casa e trago os materiais para o galpão”,
declarou Márcia.
55 anos de muita
disposição
Uma senhora magrinha de
aproximadamente 1,45 de altura
chamava a atenção em meio ao
grupo. Dona Deonires de Fátima
Monteiro, de 55 anos é a presidente da Cootraempo. Por trás
da miudeza dela, existe uma
força, agilidade e uma disposição de dar inveja. Segundo as
companheiras de trabalho, ela
é uma das campeãs de prensar o maior número de fardos.
“Tenho amor pelo meu serviço,
Se eu pudesse ficar 24 horas eu
ficava. Já trabalhei como empregada doméstica, mas hoje não
penso em fazer outra coisa da
vida”, declarou Deonildes.
Desafios
A tesoureira do grupo disse que a demanda é crescente e uma prensa não dá mais
conta do trabalho. “O material vai acumulando e não temos como despachar. A prensa
já está meio capenga”, salientou Silvana. Hoje, apenas 12 pessoas trabalham no galpão,
mas com a demanda existente outras 20 poderiam atuar e tirar o seu sustento. No entanto, faltam incentivos do poder público com infraestrutura e melhores condições de
trabalho.
Muitas sacolas de materiais ainda contêm resíduos misturados dificultando o trabalho dos
recicladores. Enquanto eu ajudava a fazer a separação com as recicladoras encontrei muito
lixo orgânico junto com resíduos recicláveis. O trabalho seria muito mais simples se as pessoas separassem o plástico do papel, por exemplo. “As pessoas precisam ser mais conscientes
e pensar no meio ambiente. Tenho um filho de 16 anos para criar e sobrevivemos desse
material”, frisou a recicladora Fátima Góis dos Santos, que está há seis anos na Cootraempo.
Alguns materiais, como o isopor, ainda não são comercializados com facilidade. Na cootraempo o isopor é triturado e vendido para empresas que produzem pufs ou estofados.
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Dona Deonires é muito ágil na prensa.
Faz entre 7 a 8 fardos por dia
(segue)
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Especial 87 Anos
Passo Fundo, TERÇA-FEIRA, 19 de junho de 2012
Projeto Transformação
O projeto Transformação ajudou a estruturar as cooperativas de reciclagem existentes em Passo
Fundo: Aama, Arevi, Cootraempo e Recibela. O projeto é responsável por auxiliar na organização de
grupos e de espaços de coleta e reciclagem de materiais visando a proteção do meio ambiente e
geração de trabalho e renda aos desempregados que residem nas periferias do município.
O Projeto Transformação surgiu em 2007, a partir da Campanha da Fraternidade com o objetivo de
preservar e recuperar o meio ambiente, proporcionado um processo de formação, conscientização
e participação da sociedade na questão ambiental e social.
O projeto é uma parceria entre a Cáritas Arquidiocesana de Passo Fundo, a Associação dos Missionários da Sagrada Família (ASAFA), a Associação Maria Auxiliadora (AMA), a Congregação de Nossa
Senhora (Notre Dame) e a Congregação Missionária Redentorista (Instituto Menino Deus).
Segundo o monitor e coordenador de Educação Ambiental do Projeto Transformação, Alexson José
da Silva, existem 55 recicladores associados em uma das quatro cooperativas. Esse número poderia
ser maior se não fosse as condições de trabalho e instabilidade na renda. A rotatividade de recicladores é significativa. “O grupo de recicladores dependem de uma renda estável para o sustento.
Quando isso não acontece, eles buscam outro trabalho. Há limitações de incentivos por parte do
poder público que tem um ritmo diferente das necessidades das associações”, explicou Silva.
As cooperativas fazem a própria gestão. As cooperativas têm estatutos, atas de reuniões, regimentos internos, contabilidade, registro de horas de trabalho, entre outros. Como a maioria dos
recicladores tem baixa escolaridade, o projeto presta assessoria e informação às associações.
Caminhão que faz a coleta na cidade faz
duas a três cargas por dia
450 pontos de coleta
A cooperativa possui um caminhão que realiza as
coletas no município. São cerca de 80 Km rodados
diariamente. Todos os dias, o motorista João Pedro
Nascimento e outras duas recicladoras atuam na
coleta. Um roteiro é estabelecido e cada dia eles
cobrem uma região da cidade. Condomínios, prédios, residências, instituições públicas e privadas
fazem parte dos 450 pontos de coleta. Além disso, a
cooperativa recebe diariamente ligações de pessoas querendo entregar materiais recicláveis, sucatas,
móveis ou eletrodomésticos. As peças de alumínio,
ferro ou cobre são comercializadas. Os móveis e
utensílios em bom estado são reaproveitados pelos
recicladores.
Nascimento também ajuda a carregar, descarregar, a pesar os fardos e atua na contabilidade da
cooperativa. “Cada dia fizemos um lado da cidade.
Coletamos na Vera Cruz, na Santa Teresinha, na Lucas Araújo, na Petrópolis, na Vila Luiza e centro. Já
temos os pontos certos e as pessoas ligam todos os
dias para buscar”, explicou o motorista que está há
três anos na cooperativa.
Entre as dificuldades da coleta está o trânsito e a
dificuldade de encontrar estacionamento no centro.
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Cooperativas ajudam a mudar hábitos da população
A comunidade está começando a aceitar melhor a reciclagem. A prova disso é o número de materiais destinados
aos galpões que multiplicaram nos últimos dois anos. O monitor e coordenador de Educação Ambiental do Projeto
Transformação lembrou que em 2008, a cooperativa Aama, por exemplo, não tinha material e pontos de coleta
para desenvolver o processamento e a comercialização. Atualmente, os materiais triplicaram. “Grande parte da
população começou a separar o lixo devido a existência dos recicladores”, enfatizou Silva.
Especial 87 Anos
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Especial 87 Anos
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Pequenas atitudes,
grandes benefícios
Bióloga, professora e militante do Grupo
Ecológico Sentinela dos Pampas (Gesp)
mostra que é possível fazer a separação
do lixo, reaproveitar a água e reutilizar
materiais de maneira simples na sua casa
Ações ecologicamente corretas não é
assunto para discutir apenas na escola,
com os amigos ou nas empresas. Fazer
a separação do lixo, reaproveitar a água
e reutilizar materiais são atitudes que
precisam ser colocadas em práticas por
todos os cidadãos. Shakespeare já dizia
“que o mundo não para para que você
o conserte”. O planeta não pode mais
esperar pela sua boa vontade de mudar
hábitos. Todo mundo sabe que as mudanças climáticas estão afetando e até matando as pessoas. Está na hora de mudar
a cultura do lixo. O aumento de renda das
famílias brasileiras também favorece o
consumo, isso significa que mais lixo será
produzido. A destinação correta é uma
das maneiras de salvar o planeta. Uma
bióloga de Passo Fundo, chamada Flávia
Biondo, mostra que é possível transformar os hábitos sem investimentos financeiros em qualquer residência.
Ela veio de uma família do interior. A educação ambiental iniciou ainda na infância
quando a mãe dela separava os resíduos
orgânicos para colocar na horta. Outras influências foram a formação acadêmica em
Biologia e a militância de 15 anos no grupo
ecológico Gesp. “Vejo a natureza de forma
diferente. As folhas que caem no chão e os
galhos que são podados não são lixo. Não
posso depositar a natureza em um terreno
baldio. Nossa sociedade é consumista e minha postura é ir de acordo com a natureza”,
declarou a bióloga.
Para saber se aquele produto é reciclável
ou não, a bióloga faz uma pequena reflexão. “Esse material pode voltar para a indústria e se transformar em outro produto?
Se a resposta for sim, ele é reciclável. Se a
resposta for negativa posso verificar se será
possível fazer a compostagem, reutilizá-lo
ou se é lixo doméstico”, disse Flávia.
A bióloga Flávia tem certeza que essa
mudança de hábitos precisa começar já nos
primeiros anos de vida. “Meus filhos de 12
e 14 anos já estão criando uma consciência.
Essa formação na infância e na adolescência vai formar o caráter deles”, salientou a
bióloga.
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Especial 87 Anos
Passo Fundo, TERÇA-FEIRA, 19 de junho de 2012
Sacola plástica
é reciclável
Empresário que recicla sacolas plásticas afirma que elas
não são as vilãs do meio ambiente. O produto pode ser
reciclado pela indústria e reutilizado pela população
A sacola plástica só prejudicará o meio ambiente se não receber a destinação correta ou
se for mal aproveitada pelas pessoas. Estudos
apontam que a ecoficiência das sacolas dependem do comportamento do consumidor e em
alguns casos ela é mais indicada que as sacolas retornáveis de papel ou de tecido. Um
empresário de uma indústria de plásticos no
distrito Campo do Meio, em Gentil, que recicla
o polietileno de baixa densidade comercializa
sacos de lixo, sacolinhas plásticas e embalagens para mais de 20 empresas de Passo Fundo. Os produtos também são vendidos para
várias partes do Rio Grande do Sul.
O empresário Darci Zancaro investiu cerca de
R$ 1 milhão na sua indústria de plásticos criada
há oito anos. O negócio pôde ser viabilizado
graças ao apoio e incentivos da prefeitura de
Gentil. Atualmente, além de contribuir com o
meio ambiente, a indústria gera 16 empregos
diretos. A matéria-prima (polietileno de baixa
densidade) é comprada de galpões ou depósitos de reciclagem da região. “O plástico macio,
ou seja, a sacolinha de mercado e os sacos de
lixo são beneficiados e retornam para a indústria para embalagens ou novamente em forma
de sacos de lixo e sacolinhas”, explicou o empresário.
A indústria comercializa mensalmente entre
30 a 50 toneladas de plástico. Esse número po-
deria ser maior se a comunidade destinasse as
sacolas de mercado e os demais derivados do
polietileno de baixa densidade para os galpões
de reciclagem ao invés de utilizar para embalar
o lixo doméstico. Cerca de 30% da matéria-prima que chega à empresa é perdido. O plástico
que não está em bom estado de conservação
não pode ser reciclado. Além disso, muita impureza e umidade estão no meio do material.
“Não trabalhamos com material de terceira
linha. Portanto, as sacolas que passam pelos
compactadores e acabam nos aterros sanitários não servem para a reciclagem. O material
de aterro perde até 60% da qualidade”, disse
Zancaro.
Para o empresário a reciclagem precisa evoluir mais de 70%. “A coleta seletiva nos municípios já seria um grande avanço. Além disso,
é necessária uma maior conscientização da comunidade. A sacolinha vale dinheiro e não é a
grande vilã da história. Ela só prejudica quando
é utilizada e depositada de forma incorreta”,
frisou o empresário.
Parte do material beneficiado em Gentil é enviada para uma empresa no bairro Santa Maria,
em Passo Fundo. No local, os rolos de plásticos
se transformam novamente em sacolinhas. Elas
não são indicadas para armazenar alimentos,
mas podem ser utilizadas para carregar roupas,
materiais de limpeza, entre outros produtos.
Especial 87 Anos
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Ecoeficiência de sacola depende de hábitos
Um estudo divulgado no ano passado realizado pela Fundação Espaço Eco analisou o ciclo de vida de oito tipos de sacolas utilizadas pelo consumidor para compras. As sacolas analisadas foram a tradicional (polietileno tradicional), a plástico
verde (polietileno de cana-de-açúcar), as aditivadas com oxibiodegradação e as
retornáveis (papel, ráfia, tecido e TNT). A pesquisa apontou que a melhor opção depende do comportamento do consumidor e conforme o hábito, as sacolas plásticas
são as melhores opções.
As sacolas descartáveis de plástico são indicadas para os consumidores que
compram em menor volume, utilizam o supermercado com maior frequência e
descartam o lixo mais vezes.
Já as sacolas retornáveis de tecido ou plástico apresentam melhor ecoeficiência
para os consumidores que compram em maior volume, frequentam menos vezes
o supermercado e que têm frequência menor de descarte de lixo.
Redução de cinco bilhões de sacolas nos últimos quatro anos
Segundo o Instituto Sócio-Ambiental dos Plásticos (Plastivida), em 2007, o Brasil consumia 17,9
bilhões de sacolas devido ao desperdício. No final de 2011, esse número caiu para 12,9 bilhões de
sacolas. Uma redução de cinco bilhões. Outra pesquisa encomendada pela Plastivida mostrou que
em 2010, o país registrou 738 recicladoras de plásticos. Destas, 44% foram registradas no estado
de São Paulo, 12% no Rio Grande do Sul, 9% em Minas Gerais, 7% no Rio de Janeiro, 7% em Santa
Catarina, 5% no Paraná, 4% na Bahia e 3% em Goiás. Os 9% restantes foram registrados nos demais
estados brasileiros. Juntas, essas empresas faturaram R$ 1,95 bilhão, 5,2% a mais que em 2009.
Foram gerados 18,3 mil empregos diretos no período.
Ano Sacolas fabricadas (bilhões de unidades) Redução de sacolas (bilhões de unidades)
Redução (%)
200717,9
XXX
XXX
200816,4
1,5
8,4
200915,0
1,4
16,2
201014,0
1,0
21,8
201112,9
1,1
27,9
Fonte: Programa de Qualidade e Consumo Responsável de Sacolas Plásticas
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Especial 87 Anos
Passo Fundo, TERÇA-FEIRA, 19 de junho de 2012
Casa sustentável em
harmonia com o clima
Os gaúchos são contemplados com
estações bem demarcadas com verões
bastante quentes e invernos rigorosos. A
maioria das casas não foi construída para
atender as variações extremas de temperaturas. Existem inúmeras estratégias
sustentáveis para fazer uma residência
“conversar” com o clima. Uma caixa de
madeira pode ser transformada em persiana, uma caixa de isopor em reservatório de água, garrafas pet em coletor solar
e resíduos orgânicos da cozinha em gás.
Além disso, as janelas e paredes podem
ser direcionadas para amenizar o calor
no verão e aquecer a casa no inverno.
Conforme o professor da UPF e doutor
em arquitetura, Juan Mascaró, uma casa
sustentável precisa ter alta eficiência
energética, estratégias para acompanhar
as variações do clima e proporcionar o
mínimo de conforto para os moradores.
Essas habitações também são chamadas
de bioclimáticas. “É fazer com que não
seja necessário ligar ar-condicionado ou
o ventilador no verão e nem o aquecedor
no inverno. Temos um clima com estações muito determinadas e a variação de
temperatura é de quase 40oC”, explicou
o professor.
Para construir uma casa sustentável
bioclimática é necessário alguns sistemas
passivos, ou seja, equipamentos que não
exijam energia elétrica. Um coletor solar,
por exemplo, serve para aquecer a água.
O reservatório pode ser construído com
uma grande caixa de isopor. Garrafas
pet dentro de um fundo de lata revestido com a cor preta e vidro por cima são
perfeitas para construir o coletor. A mangueira pintada de preto pode se tornar a
serpentina. Tudo isso é colocado no telhado e tem baixo custo. “Os moradores
terão água quente o ano todo”, ressaltou
Mascaró.
Durante o inverno, o sol permanente
está na direção Norte. Uma abertura no
telhado nesta orientação provoca o efeito de reflexão. Isso permitirá a iluminação indireta da peça e o aquecimento.
Uma parede nesta mesma direção pode
ser pintada de preto. Quando fizer frio,
a parede esquentará o ambiente. Árvores devem ser plantadas no lado externo
com o objetivo de fazer sombra durante
o verão e impedir a passagem do sol. No
inverno, as árvores perderão as folhas e
permitirão o aquecimento da parede.
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É possível construir
uma casa com
sustentabilidade
e baixo custo
para enfrentar as
variações climáticas
de quase 40oC no Rio
Grande do Sul
O professor Mascaró explicou ainda
que os resíduos orgânicos da cozinha e
do banheiro podem ser direcionados para
uma lagoa que contenha certas espécies
de plantas que com suas características
biológicas e raízes suspensas filtrarão e
renovarão a água.
O principal desafio dos pesquisadores
é levar esse conhecimento até a comunidade. “Geralmente, ele fica no círculo
acadêmico, fóruns e seminários frequentados apenas por estudantes, professores
e pesquisadores. Seria muito importante
que os administradores púbicos tivessem
conhecimento dessas alternativas para
que elas fossem implantadas na prática.
Os modelos padrões aplicados hoje, nem
sempre são os mais adequados para uma
comunidade”, disse o professor.
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Especial 87 Anos
Passo Fundo, TERÇA-FEIRA, 19 de junho de 2012
Passo Fundo
mais verde
Um projeto que está sendo desenvolvido pela Faculdade de Arquitetura da UPF pretende criar um
corredor verde no município semelhante a rua mais bonita do mundo em Porto Alegre
O município de Passo Fundo está sendo utilizado
como estudo de caso para o projeto infraestrutura verde
que pretende contribuir para um crescimento sustentável. O projeto está sendo desenvolvido pela Faculdade
de Engenharia e Arquitetura da UPF, coordenado pelo
professor e doutor em arquitetura, Juan Mascaró, em
parceria com o curso de arquitetura e urbanismo da Unicruz (Cruz Alta). É uma rede de pesquisa interuniversitária apoiada financeiramente pela Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs). O
projeto prevê em suas etapas, a proposta de um corredor verde ligando, inicialmente, as praças Tochetto e a
Tamandaré. Alternativas para oferecer mais qualidade
de vida e áreas de lazer adequadas para os cidadãos
que hoje acabam ocupando os canteiros da Avenida Brasil nos finais de semana e feriados por falta de opção.
Nesta primeira fase do projeto, duas ruas de Passo
Fundo são base para o estudo: a rua Moron, no centro,
e a rua Saul Irineu Farina, na vila Vergueiro. A proposta
do corredor verde acontecerá na etapa final da pesquisa
após um profundo estudo e revisão bibliográfica do tema.
Posteriormente, será feito um levantamento físico dos trechos previstos para a futura implantação do corredor verde
interligando as praças. O critério básico é se adequar as ca-
racterísticas pré-existentes do espaço físico (tamanho das
calçadas, das ruas, espaço entre os postes de luz, recuos
dos edifícios em relação á calçada, etc).
A ideia do projeto é trabalhar com cidades de porte
médio em crescimento que ainda permitem uma contribuição para um desenvolvimento mais organizado e
sustentável com baixo custo de investimentos. A infraestrutura verde é um dos indicadores de qualidade de
vida de um município, ou seja, a metragem verde e o
número de árvores por habitante influenciam no crescimento econômico, na valorização de áreas, na saúde e
bem estar, na recreação e lazer, entre outros benefícios.
Especial 87 Anos
Precário
As áreas verdes no município e sua organização estão
em escala média para baixo. Segundo o pesquisador que
está desenvolvendo o projeto, Passo Fundo tem um único
parque (Parque da Gare) e está abandonado e degradado.
O município tem poucas praças e ainda elas têm perfis
diferentes. As praças são distantes e sem conexão. Não
possuem corredor verde ou ligação planejada que integra
um parque. “São praças desqualificadas. Por esse motivo,
os moradores acabam utilizando os canteiros da Avenida
Brasil como área de lazer ao invés das praças”, explicou
Mascaró.
O pesquisador salientou que as praças não podem estar
em qualquer lugar ou de forma desorganizada. A cada
montante de áreas construídas, de acordo com a densidade populacional, são necessárias áreas verdes. “Elas
funcionam como um equilíbrio entre a área construída e
aberta. O ideal é que as pessoas não precisem se deslocar
para longe de suas casas para ter acesso a uma área verde”, disse o pesquisador.
(Foto: Natália Fávero/ON)
Passo Fundo, TERÇA-FEIRA, 19 de junho de 2012
Benefícios
Os corredores verdes são o que existe de mais moderno
e sustentável como modelo de cidade verde e ecologicamente correto. Segundo Mascaró, a cidade torna-se mais
equilibrada no que se refere a áreas construídas e áreas
verdes projetadas. “Um espaço urbano projetado não só
para as necessidades mais básicas de uma cidade contemporânea como ir e vir de carro, mas também um espaço urbano agradável e convidativo para ser vivido e usufruindo pelos seus habitantes”, acredita o pesquisador.
Professor e doutor em arquitetura, Juan Mascaró é o coordenador do projeto Infraestrutura verde
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Especial 87 Anos
O projeto
A rua Moron, no centro, e a rua Saul Irineo Farina, no bairro Vergueiro, estão sendo usadas como
estudo de caso na pesquisa. Elas foram escolhidas
por terem perfis diferentes: uma está situada no
centro com edificações altas e bastante comércio
e a outra por ser em um bairro residencial sem
muitas edificações. Será feito um levantamento
da largura, edificações e densidade populacional.
Depois o projeto tentará inserir uma infraestrutura sustentável de acordo com o ambiente. “Não
vamos destruir ou quebrar tudo. Temos que ter
inteligência para que não seja traumático para os
moradores. No entanto, a arborização não pode
entrar em conflito com as fachadas das lojas,
com a rede de energia elétrica ou iluminação pública”, frisou Mascaró.
A pesquisa está na metade. Já foi feito o levantamento físico das áreas, revisão bibliográfica
e neste momento estão gerando os critérios de
intervenção para posterior implementação. Tudo
será feito de forma simulada, em laboratório e
futuramente na universidade.
A ideia é apresentar em 2013, os resultados da
pesquisa em dois workshops para que prefeitos
da região e a comunidade conheçam a alternativa e comecem a implantar em seus municípios.
“Será uma coisa nova para o poder público. Infraestrutura verde é um caminho sem volta e já
é aplicado há anos em outros países. O conhecimento está aí, mas os gestores precisam ter
vontade e apoio para aplicá-lo”, ressaltou Mascaró.
Passo Fundo, TERÇA-FEIRA, 19 de junho de 2012

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