A UTOPIA FIN-DE-SIÈCLE DE EDWARD BELLAMY

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A UTOPIA FIN-DE-SIÈCLE DE EDWARD BELLAMY
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A UTOPIA FIN-DE-SIÈCLE DE EDWARD BELLAMY
José Antonio Vasconcelos - USP
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1. IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO E DA PROBLEMÁTICA: Com a expansão
industrial ocorrida principalmente a partir da segunda metade do século XIX nos Estados
Unidos proliferam-se as grandes metrópoles, que já não eram incomuns na Europa nessa
época, a exemplo de Londres, Manchester, Paris e outras. Tais quais as cidades européias,
os grandes centros urbanos nos Estados Unidos encontravam problemas como a miséria,
a criminalidade e o conflito de classes, ao lado da exuberância de seus edifícios e das
comodidades trazidas pela evolução tecnológica. Neste contexto, situa-se Edward
Bellamy, cuja obra principal, Daqui a cem anos (Looking Bakward), tornou-se um dos
romances mais populares na virada do século. O conteúdo de Daqui a cem anos pode ser
enquadrado nos moldes daquilo que já se havia convencionado chamar de “socialismo
utópico”, uma corrente de pensamento difusa que tem como premissa comum a
transformação pacífica da sociedade industrial e capitalista num modelo igualitário, no
qual as classes sociais teriam sido abolidas. Mas por que no tipo de organização social da
cidade proposto por Bellamy interessou a intelectualidade de sua época? O que era
exatamente a cidade no final do século XIX, seus pontos positivos, negativos; e como a
sociedade socialista descrita por bellamy superava as contradições existentes na cidade
administrada pela burocracia privada? Uma hipótese que explica o sucesso de Daqui a
cem anos reside no fato de que o homem do século XIX não estava atrás de um modelo
de sociedade radicalmente diferente daquele encontrado nas grandes concentrações
urbanas. O objetivo último não era fugir da cidade, mas expurgar seus pontos negativos,
mantendo o modelo existente. A América do Norte, em especial, tornou-se palco de uma
série de experiências realizadas por socialistas utópicos, que viam ali um território ainda
não completamente dominado pelo espírito industrial e capitalista, e que por isso mesmo
contaria com mais chances de sucesso. Com o desenvolvimento industrial surgia uma
grande necessidade de que contingentes populacionais cada vez maiores se
concentrassem em espaços cada vez mais delimitados, pois a organização do tempo é
fundamental nesse tipo de sociedade e as distâncias representavam a perda de um valioso
tempo útil a ser aplicado no processo de produção. A partir dessa organização
diferenciada do espaço, novas relações sociais tomavam lugar, criando problemas que
exigiam novas soluções. Questões como a educação, a literatura, a arquitetura, a
recreação e o relacionamento entre patrões e empregados revestiam-se de novos matizes.
Talvez possamos objetar que a obra de Bellamy, desenvolvendo-se no âmbito do
pensamento utópico, propõe um modelo de cidade inexistente e inválido, portanto, como
fonte para uma pesquisa histórica. Devemos considerar, entretanto, que o pensamento
utópico não é mais que uma resposta eloqüente, que vem ao encontro de problemas reais
e, portanto, históricos. Além disso, a literatura utópica não desempenha um papel
puramente passivo, enquanto reflexo dos padrões de comportamento vigentes, mas
participa ativamente da História enquanto formadora de novas opiniões.
2. EDWARD BELLAMY E SUA UTOPIA: Ao longo da segunda metade do século XIX
surgia um novo tipo de literatura, pois os autores românticos, que exploravam temas
como o pecado e a culpa, e desenvolvidos em cenários pouco familiares aos leitores,
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cediam lugar a uma literatura que tinha na cidade e no cotidiano do cidadão urbano seu
principal foco de atenção. No meio dessa tendência literária situa-se Daqui a cem anos,
de Edward Bellamy, contrastando a injusta sociedade urbana e industrial de seu tempo
com uma imaginária América socialista, na qual um governo fortemente centralizado
permitia uma vida digna a todos os cidadãos. Daqui a cem anos foi impresso em vários
milhões de exemplares traduzido para mais de vinte línguas, tendo sido um dos maiores
Best-sellers na virada do século. No romance o Sr. Julian West, um jovem membro da
classe mais abastada de Boston, é transportado para o ano 2000 após uma suposta noite
de sono. Na Boston do século XX, o Sr. West tem por anfitrião um médico chamado Dr.
Leete, que tenta explicar ao protagonista a delicada situação em que este se encontra. A
sociedade do século XX, tal como descrita por Bellamy, não difere muito em termos de
tecnologia daquela existente no século XIX. O que muda é a racionalidade do sistema
econômico. Por meio de uma administração pública centralizada a produção aumenta e a
jornada de trabalho diminui, pois o que é gasto em armamentos, propaganda e complexa
distribuição de mercadorias é então canalizado para atividades mais proveitosas, uma vez
que nesta sociedade não há mais guerras nem competição de mercado. Diminui também o
desperdício ocasionado por empreendimentos equivocados, crises periódicas e ociosidade
de capital e trabalho. Todos trabalham, todos possuem a mesma renda e ninguém se
abstém de uma vida farta e digna. Na sociedade capitalista do século XIX, uma
distribuição igualitária nacional ainda não seria suficiente para acabar com a pobreza. No
ano 2000, pelo contrário, à padronização da renda individual, soma-se o aumento da
produção e o fim do desperdício, que em conjunto oferecem o bem estar material de toda
população. Seria errôneo afirmar que Bellamy não tenha concebido qualquer evolução
tecnológica em sua visão de futuro. Tratam-se, porém, de profecias não cumpridas,
ingênuas em sua maioria, como a combustão sem fumaça ou marquises retráteis para a
proteção dos pedestres em dias de chuva. Ainda que não desprovidas de um certo charme,
tais profecias encontram-se muito aquém das visões futuristas produzidas por autores
como Júlio Verne ou H. G. Wells. ÉW no aspecto econômico e social que Bellamy se
impõe, justificando assim, com sua originalidade e sedução, a profunda influência
exercida em personalidades como John Dewey, Eugene V. Debbs, William Allen White,
e no meio intelectual norte-americano de maneira geral. Muitos dos intelectuais do século
XIX acreditavam que a superação das perdas que sentiam se daria por meio de um
movimento de resgate da antiga sensibilidade rural. Nesse sentido, situa-se, por exemplo,
William Morris, um poeta e romancista britânico que elaborou uma utopia de caráter
bucólico, ou mesmo Karl Marx e Friedrich Engels, que insinuam na Ideologia Alemã a
futura existência de um intelectual em harmonia com a natureza. Num outro extremo,
situam-se os intelectuais que vêem no ulterior desenvolvimento da sociedade capitalista a
superação mesma das perdas trazidas pela Revolução Industrial. É neste sentido que se
dirige a crítica de Edward Bellamy: a volta ao campo não representa uma resposta
possível ao impasse criado pela urbanização. O home das grandes cidades não é feliz,
vive cercado pela miséria, mas ainda assim não abandona o meio urbano diante da
possibilidade de escolha. Para ele a cidade não é intrinsecamente má: as relações sociais e
de produção, passíveis de modificação, é que imprimiam essa marca eminentemente
negativa das grandes cidades, e não a vida urbana enquanto tal. Interrogado pelo seu
anfitrião acerca do que mais lhe havia chamado a atenção ao vislumbrar a cidade de
Boston de uma sacada, o Sr. West, protagonista do romance, responde que foi a ausência
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de chaminés e de fumaça. Em outras palavras, a indústria, geradora de empregos e
produtora de mercadorias que elevam o padrão de vida do ser humano, não desapareceu
na utopia futurista de Bellamy. Sai de cena apenas a chaminé, representação
paradigmática da poluição e insalubridade sempre presentes na sociedade industrial.
Expulso o elemento negativo, a cidade revela-se o lugar ideal de trabalho e residência.
A obra de Bellamy torna-se, assim, uma riquíssima fonte de dados para uma pesquisa
historiográfica que se desenvolve no âmbito da experiência urbana tal como esta é sentida
por um intelectual norte-americano do final do século XIX. Daqui a cem anos, longe de
simplesmente apresentar uma representação vazia de significado, por se constituir em
torno de uma cidade inexistente, oferece ao leitor atento uma crítica muito bem elaborada
da sociedade urbana da época em que o referido romance foi escrito. Explicitar a relação
entre a proposta utópica de cidade criada por Bellamy e as condições sociais que a
inspiraram é o objetivo maior dessa pesquisa.
REFERÊNCIAAS
BELLAMY, E. Daqui a cem anos: revendo o futuro. 2. Ed. São Paulo : Record, s.d.
BLAKE, N. M. A history of American life and thought. New York : McGraw Hill, 1963.
MADISON, C. A. “Edward Bellamy, social dreamer”. The New England Quarterly.
Vol. 15, No. 3 (Sep., 1942), pp. 444-466.
PETITFILS, J-C. Os socialismos utópicos. São Paulo : Círculo do Livro, s.d.
THUMBER, C. “Edward Bellamy, the Erosion of Public Life, and the Gnostic Revival”.
American Literary History, Vol. 11, No. 4 (Winter, 1999), pp. 610-641.

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