apontamentos sobre o autista e seu

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apontamentos sobre o autista e seu
APONTAMENTOS SOBRE O AUTISTA E SEU DESENVOLVIMENTO.
Sílvia Ester Orrú.
Centro Universitário da Fundação de Ensino Octávio Bastos - UNIFEOB
São Paulo. Brasil
PALABRAS CLAVE: Autismo, Desarrollo humano, Trabajo multiprofesional.
RESUMEN:
El autismo es un síndrome comportamental de multiplas etiologías que se ha venido manifestando
en número creciente en individuos de todas partes del mundo. Debido a su complejidad, muchos
infantes reciben el diagnóstico de autismo atrasado. Algunas de las características encontradas
son: una major frecuencia de casos para el sexo masculino; problemas de lenguaje y de interaccion
social y la posibilidad de ser asociado con otros condiciones clínicas. Es fundamental que un niño
autista reciba un atendimiento educacional tanto cuanto otro que no presente el sindrome. Existe la
necesidad de un trabajo multiprofesional para la obtención del diagnóstico, tratamiento y
acompañamiento educacional de estos futuros ciudadanos, de modo que puedan contra con una
mejor calidad de vida.
O autista, antes de tudo, é um ser humano e como tal, é exclusivo, sendo um indivíduo único,
enquanto pessoa. Embora tenha características peculiares no que se refere à síndrome, suas
manifestações comportamentais diferenciam-se segundo seu nível lingüístico e simbólico,
quociente intelectual, temperamento, acentuação sintomática, histórico de vida, ambiente,
condições clínicas, etc. Portanto, nem tudo que venha dar resultado para uma pessoa com
autismo, serve de referência positiva a outra pessoa com a mesma síndrome.
Na maior parte dos dados colhidos por meio de anamneses realizadas por profissionais atuantes
nas instituições voltadas para esse tipo de atendimento, constata-se que os diagnósticos de
autismo são fechados a partir dos três anos de idade. Do nascimento ao segundo ano de vida, de
cada cinco casos, quatro não são identificados com clareza (COLL; PALACIOS; MARCHESI, 1995,
p. 278).
Ao entrevistar pais de crianças autistas, observamos que, na maioria das vezes, essa criança, no
período que vai do nascimento até o primeiro ano de vida, era calma, excessivamente tranqüila,
"muito boazinha" ou, ao contrário, irrequieta, chorava muito, com problemas relacionados ao sono.
Do primeiro ano de vida até o segundo, é relatado que: demorou a andar, demorou a falar e
quando falou, repentinamente, cessou sua fala. A partir do segundo ano de vida em diante, passou
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a apresentar comportamentos estranhos, dizem: "ele é esquisito".
O período do reconhecimento de uma possível síndrome é obscuro e demorado, tanto da parte dos
pais como de muitos médicos, devido à complexidade do quadro pela falta de informações básicas
sobre síndromes não identificadas através de exames laboratoriais, impedindo de haver um
processo de intervenção mais precoce e claro. Desta forma, tornam-se raros tais diagnósticos
antes dos doze meses de idade.
Durante os três primeiros anos de vida, as condutas funcionais normais, desenvolvidas por uma
criança que não apresenta a síndrome, são progressivamente desestruturadas e/ou perdidas ou
nunca chegam a desenvolver-se em um autista (CID 10: 1993). Dentre essas funções, estão: a
falta da aquisição de regras estabelecidas, surdez aparente, ações antecipadas não praticadas, em
geral, a partir do sexto mês, (ex.: sorrir ao ver a mãe se aproximar, etc.). Ausência de criatividade
na exploração dos objetos e dos procedimentos de comunicação normalmente intencionais que,
desenvolveriam-se a partir do primeiro ano de vida, aproximadamente.
Obviamente, pelo comprometimento observado, funções simbólicas como: imitação de gestos e
atitudes, emprego de palavras com o fim de se comunicar, dificilmente atingem seu objetivo
interacional, quando desenvolvidos. Essas crianças, também podem manifestar resistência a
mudanças de rotina, modificações no ambiente de seu costume, medo anormal de outras pessoas,
objetos ou lugares.
Certas crianças com autismo desenvolvem-se, normalmente, durante sua primeira infância,
chegando, até mesmo, a adquirir uma linguagem funcional. Todavia, esta vai se perdendo
progressivamente ou torna-se suscetível de conseqüências sérias devido a tal condição. Muitos se
acabam em um intenso isolamento social, envolvidos em seus rituais e estereótipos, e sem,
praticamente, nenhuma comunicação externa.
Dentre as alterações apresentadas por crianças autistas, muitas ocorrem em razão da falta de
reciprocidade e compreensão na comunicação, afetando, além da parte verbal, as condutas
simbólicas que dão significados às interpretações das circunstâncias socialmente vividas, dos
sinais sociais e das emoções interpessoais.
Durante a idade de dois a cinco anos, são apresentadas intensas modificações na criança autista.
É freqüente o alienamento da mesma diante do mundo que a cerca, bem como dos estímulos
externos que sobrevêm sobre ela. Enclausura-se nos rituais sem um propósito definido e age com
indiferença às pessoas, ocasionam-se auto-agressões quando contrariada ou não compreendida.
Pode ficar horas observando algo que lhe chame a atenção, perplexa diante de alta sonoridade ou
irritada ao menor ruído.
Temple Grandin (1992), uma autista de auto-funcionamento1, com mais de quarenta anos de
idade, coloca em seu depoimento a importância da intervenção precoce aos dois anos de idade.
Segundo ela, foi a atitude consciente de sua mãe e da sua fonoaudióloga, que a ajudou na
superação de sua deficiência.
Também é preocupante tal questão, devido à vinda da adolescência que tende a aumentar os
conflitos pessoais e interpessoais na pessoa com autismo. É possível aparecer novas
complicações, como: crises de epilepsia, acréscimo das estereotipias, problemas alimentares,
ciclos depressivos, aumento da excitação e ansiedade. (COLL; PALACIOS; MARCHESI, 1995, p.
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Segundo Grandin, a época da puberdade é um agravante do comportamento de autistas. Ela diz:
"Na infância eu era hiperativa, mas nunca havia me sentido" nervosa "até chegar à puberdade.
Nesta época o meu comportamento foi de mal a pior ". (Op. cit.,: 5).
As alterações sensoriais, assaltos de ansiedade e o desencadear de uma hipersensibilidade geral
vieram após sua primeira menstruação. Em seu depoimento, ela menciona algumas atividades que
lhe davam certo alívio, quando sofria "crises de colite" e "ataques nervosos". Atividades tais como:
estímulo vestibular, exercícios físicos, trabalhos manuais, rodar em uma cadeira giratória e o uso
de certos medicamentos.
Sacks foi visitar Temple Grandin em Fort Collins, na Colorado State University, após ouvir falar de
sua notável inteligência pela doutora Frith, em Londres. Sua história é incrível e preciosa para
pesquisadores e estudiosos do autismo, pois ela relata claramente como percebe "as coisas" ao
seu redor sendo uma mulher com autismo de alto-funcionamento.
Uma das características de Temple, que lhe frustrava, eram as falhas e descontinuidades de suas
narrações. As mudanças repentinas de assunto que deixam o leitor deslocado, muitas vezes, sem
compartilhar de dados importantes que estavam sendo transmitidos. Essas são características
peculiares de Temple e que vemos na maioria dos autistas, mesmo enquanto crianças.
Quanto mais clara e objetiva se der à comunicação com uma pessoa com autismo, mais receptivo
será e maiores serão as possibilidades de se obter um retorno. Isso é observável tanto em casos
de autistas de alto-funcionamento como nos casos de autismo associado a outras patologias, que
trazem consigo um rebaixamento intelectual.
Temple, PhD em Zootecnia, dedica-se hoje a escrever artigos sobre autismo, aproveitando sua
própria experiência na tentativa de ajudar outras pessoas com a síndrome e sobre o
comportamento de gado, carneiros, porcos e projetos para construção de equipamentos do gênero.
A partir de sua autobiografia é possível se fazer uma idéia de quanto ela era diferente, desde a
mais tenra idade, e Sacks, além de tê-la lido, pôde conhecê-la e com ela conversar durante horas.
Aos seis meses de idade, Temple começou a ficar "dura" no colo de sua mãe, aos dez meses
passou a arranhá-la e não permitia que lhe tocassem. Vivia num mundo de sensações
intensificadas ou inibidoras ao extremo. Aos dois ou três anos de idade, sua audição era
sensibilíssima, ouvindo o mais baixo ruído de forma ensurdecedora. Tinha um olfato aguçado e
sofria de ataques de raiva violentos. Os padrões de relacionamento humano estabelecidos não
eram seguidos e seu mundo tinha aparência caótica diante da falta de compreensão do que
acontecia externamente.
Na escola, enquanto as outras crianças brincavam com massinha de modelar, ela fazia o mesmo
com suas fezes e depois as espalhava por todo o canto. Se fosse contrariada, atirava qualquer
coisa que estivesse à mão. Continuamente, estava mascando papéis, cuspindo-os e gritando.
Semelhante a outras crianças autistas começou a desenvolver uma grande habilidade de
concentração, a ponto de conseguir estar calma em meio a tumulto. Quando ia à praia, passava
horas sentada sobre a areia fazendo montanhas, cada grão lhe intrigava como se fosse um
cientista, do mesmo modo, as linhas de sua mão ou o rodopio de uma moeda. Nesse momento,
era como se mais nada existisse ao seu redor.
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Quando completou três anos de idade, foi levada ao neurologista e seu diagnóstico de autismo foi
confirmado, devido a sua situação e completa ausência de fala, foi dado a entender que deveria
sofrer uma internação vitalícia.
Quando era ainda menina, desejava ser abraçada, mas ao mesmo tempo, não queria o contato,
ficava apavorada. Contudo, quando era abraçada por alguém mais forte, sentia-se esmagada, tinha
ao mesmo tempo uma sensação de prazer, paz, de pavor e de ser afundada. Nessa época, tinha
somente cinco anos de idade e pôs-se a pensar sobre uma "máquina mágica" que pudesse
apertá-la fortemente e com cuidado, sendo por ela controlada. Em sua adolescência, viu uma
fotografia de uma calha afunilada para impedir a passagem do gado e pensou que aquilo poderia
se transformar em sua "máquina mágica".
Após várias tentativas e aprimoramentos, Temple construiu sua máquina e disse que não teria
suportado os seus dias mais atribulados na universidade sem o bem estar que ela lhe
proporcionava.
Ao adquirir o acesso à linguagem, a "deficiência" social, comunicativa e imaginativa obtiveram
alterações. Podia ter certo contato com outras pessoas, principalmente com um ou dois
professores que reconheciam sua inteligência e compreendiam as dificuldades de sua patologia.
Na mesma época, deu-se início a revelação de sua criatividade original para pintura, desenho e
escultura. Com oito anos, começou a dominar o faz de conta normal em qualquer criança.
Para ela era difícil manter uma amizade, as outras crianças não a compreendiam. Sua franqueza e
autenticidade as afastavam e Temple tentava entender o que acontecia em suas mentes, como
tudo podia modificar-se a todo o instante como uma troca de sentidos. Sentia-se, freqüentemente,
excluída.
Com quinze anos de idade, interessou-se grandemente por umas calhas afuniladas que eram
usadas para segurar o gado. Um de seus professores, percebendo seu interesse, sugeriu que ela
construísse sua própria calha afunilada. Desde então, Temple passou a interessar-se por ciências,
pela biologia e aprendeu muito sobre fazendas de criação, maquinaria, etc. A linguagem técnica
passou a ser fácil e acessível, encontrando na linguagem da ciência e da tecnologia conforto diante
da sociabilização que lhe era tão complexa.
Em sua adolescência, conflituou-se com a realidade em que vivia. Confrontava-se com a idéia de
que nunca teria uma vida "normal", nem encontraria um amor em sua vida e não conseguiria fazer
uso dos prazeres mais simples que a vida pudesse lhe oferecer. Ficou depressiva, mas resistiu e
superou a fase. Aprendeu que seu estado emocional, físico e mental era sensível e poderia levá-la
ao estresse, esgotamento ou conflito se não pudesse dominar-se. Então decidiu-se ficar solteira e
dedicar-se para sempre à ciência.
Temple comenta que as turbulências hormonais da adolescência lhe causaram dificuldades. Era
como se fosse sacudida para cima e para baixo. Esse período melhorou quando terminou a
universidade e passou a tomar alguns medicamentos classificados como antidepressivos para se
tranqüilizar. Eis um trecho sobre os pontos positivos e negativos pelos quais passou:
As buscas frenéticas pelo sentido básico da vida são coisa do passado. Não fico mais fixada em
uma coisa, já que não me sinto mais impelida. Durante os últimos quatro anos escrevi pouco em
meu diário porque o antidepressivo me tirou muito do fervor. Com a paixão atenuada, minha
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carreira e meus negócios vão bem. Estando mais relaxada, entendo-me melhor com as pessoas, e
os problemas de saúde causados pelo estresse, como a colite, desapareceram. E, contudo, se a
medicação tivesse sido prescrita para mim quando tinha vinte e poucos anos, poderia não ter
alcançado tudo o que conquistei. Os "nervos" e as fixações foram grandes motivadores até
esfacelarem meu corpo com problemas de saúde decorrentes do estresse. (GRANDIN, 1986 apud
SACKS, op. cit.,: 280).
Em geral, autistas têm dificuldades com metáforas e ironias. Segundo Temple, para a maioria dos
autistas, tudo tem um sentido literal e isso é uma das causas para os sentimentos e coisas
abstratas em geral, sejam tão difíceis de se lidar. Mas algo de curioso acontece com ela quando
está trabalhando com o gado e com os porcos.
Sacks foi convidado por ela a conhecer o matadouro. Os animais eram levados, quase sem
perceberem, por uma correia rolante que passava debaixo de suas barrigas (mais uma das
invenções de Temple) e eram mortos instantaneamente por um tiro de ar comprimido no cérebro.
Já os porcos, eram mortos por uma espécie de "máquina de eletrochoque", semelhante as que
eram usadas em clínicas psiquiátricas, com cerca de um ampère, a trezentos volts. Eles jamais
esperavam o que iria acontecer e ela fazia questão de eliminar todo o terror que pudesse ser
causado aos animais, para que morressem tranqüilamente, sem sofrimento. Sacks sentiu-se mal.
Dessa situação, Temple escreveu um artigo sobre o tema e fala duramente contra funcionários que
matam de forma estúpida e mecânica os animais, sem sentirem emoção relacionada ao ato. Faz
um paralelo daqueles que atormentam os animais antes de morrer com o tratamento que é dado
aos deficientes. Irrita-se profundamente e demonstra uma enorme preocupação com a "reforma da
humanidade", sobre as transformações que deveriam ocorrer no tratamento dos deficientes,
especialmente com os autistas, tais como as que aconteceram para com os animais.
Ela tinha sentimentos profundos relacionados aos animais, cheios de ternura e compaixão, ela os
amava. Todavia, embora gostasse muito de um amigo chamado Tom, com quem trabalhava e se
interagia bem, não era capaz de dizer se de fato o amava. Nunca tinha namorado, pois achava que
relacionamentos eram complicados. Disse a Sacks que não sabia o que era apaixonar-se, mas que
pensava ser parecido como ter uma síncope, que amar deveria ser como preocupar-se com
alguém.
Temple exercita-se na busca de modelos e semelhanças em seu próprio autismo para tentar
compreendê-lo melhor e contribuir para o tratamento de outros autistas. Ela tem consciência de
seus aspectos autísticos interiores, de seu apego à atenção e atribui isso a uma deficiência em seu
cerebelo (tamanho menor do que o normal), como realmente pôde ser constatado através de uma
ressonância magnética.
Acredita que deva haver determinantes genéticos para o autismo, já que seu pai possuía um
comportamento pedante, distante e socialmente inadequado. Talvez uma síndrome de Asperger ou
outros traços decorrentes do autismo.
Semelhante ao pensamento de Howard Gardner (1995, p. 78), relacionado as "inteligências
múltiplas", Temple tem a tendência de ver o cérebro de forma modular e constituído por uma
variedade de poderes computacionais isolados e independentes, atribuindo as habilidades incríveis
que ela e outros autistas possuem e a falta extrema de outras capacidades a essa questão do
cérebro.
Seus estudos são profundos e concretos a respeito do autismo, chegando a ter uma substância
teórica e prática empírica significante. Em uma de suas palestras, menciona Sacks (Op. cit.,: 297),
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ela encerrou dizendo: "Se pudesse estalar os dedos e deixar de ser autista, não o faria - porque
então não seria mais eu. O autismo é parte do que eu sou." Algum tempo depois, escreveu um
artigo sobre o assunto:
Adultos conscientes de seu autismo e seus pais ficam freqüentemente irritados com esse distúrbio.
Podem se perguntar por que a natureza ou Deus criou condições tão horríveis quanto o autismo, a
psicose maníaco-depressiva e a esquizofrenia. No entanto, se os genes que causaram essas
condições fossem eliminados, o preço a pagar poderia ser terrivelmente alto. É possível que
pessoas com um pouco desses traços sejam mais criativas, ou mesmo gênios (...) Se a ciência
eliminasse esses genes, talvez todo o mundo fosse tomado por contadores. (GRANDIN, 1990 apud
SACKS, ibidem,: 297)
Outro exemplo sobre as alterações provocadas pela adolescência, é o de Jerry, uma criança
diagnosticada por Léo Kanner como autista. Aos trinta e um anos de idade, Jerry conta sua história
a Jules Bemporad (1979) (apud Coll, op. cit.,p. 280-282), que após investigá-la, faz sua publicação
em um artigo.
Jerry era um autista de auto-funcionamento, sem antecedentes comprometedores até sua primeira
infância. Porém, seu comportamento era diferente das outras crianças, desde seus primeiros
meses de vida. Era indiferente com as outras pessoas, inclusive com sua mãe. Chorava muito,
tinha problemas com a alimentação e com barulhos diversos. Começou a falar somente aos três
anos, mas sem função comunicativa. Passou a desenvolver talento musical e memória significante.
Antes de completar quatro anos, encantava-se com as composições de Mozart e Bach. Começou a
escrever sozinho, copiando dizeres de rótulos e cartazes sem saber seus significados.
Durante horas, era capaz de ficar girando objetos ou observando o movimento giratório dos
mesmos ou do toca-discos de seus pais. Jerry freqüentou uma pré-escola, mas não interagia com
as outras crianças. Aos cinco anos teve seu diagnóstico de autismo confirmado por Léo Kanner.
Sua capacidade intelectual era normal, mas sua linguagem era anormal, ecolálica e sem função
comunicativa.
Quando passou a freqüentar a escola, aos seis anos de idade, sofria por não conseguir se
relacionar com as outras crianças, além de ter sobre si, o peso de não agüentar os ruídos
existentes na escola. Interessou-se pela matemática a partir da terceira série, fazia e pendurava
em seu quarto as tabuadas de multiplicar. Um dia foi zombado por seu professor, quando tinha dez
anos de idade. Isso concorreu para que deixasse o colégio e fosse tomado por grande desolação,
sendo transferido para uma instituição residencial.
A partir desta etapa da vida de Jerry, seu estado de isolamento, obsessividade e de pouca
participação passou a ser mais freqüente. Recusava-se a participar de atividades coletivas e
mudanças em sua rotina. Descuidava-se de sua aparência e era tomado por sentimentos de medo.
Passou a apresentar gagueira e manias paranóicas de perseguição. Contudo, houve lenta melhora
em sua conduta e em suas modificações de linguagem, retornando, então, para sua casa. Seu
retorno incidiu-se com sua adolescência, sofrível para Jerry, a sensação de diferença e de rejeição
que sentia. Voltou-se obsessivamente para os exercícios aritméticos por não conseguir sustentar
as amizades que tentava fazer e pelas dificuldades encontradas em relacionar-se, que atribuía à
sua gagueira. Passou a ficar mais sensível diante de sons e odores intensos.
Quando jovem-adulto, tornou-se mais ciente de sua solidão e de seu isolamento. Foi aceito em um
centro educacional, desenvolvendo algumas relações superficiais. Já na idade adulta, ao término
de seus estudos, era capaz de realizar trabalhos e atividades, desde que lhe fossem passadas em
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pormenores. Não distinguia coisas importantes de outras irrelevantes. Demonstrava costumes
incomuns, como ficar no chuveiro por mais de duas horas, tinha postura infantil e desordenada.
Ao analisar o relato da experiência de Jerry, observar-se seu temor em relacionar-se com outras
pessoas, aversão a mudanças de rotina, medo e confusão intensos, durante sua infância e
adolescência. Isto devido à imprevisibilidade oferecida circunstancialmente, com a qual não sabe
lidar. Sentia a necessidade de relacionar-se, mas também sentia medo de relacionar-se, por não
compreender o interior das outras pessoas, não deixando que desabrochasse a empatia com o
outro. Assim, parecia-se agir com insensibilidade, mas na verdade o que ocorria, era a
incapacidade de colocar-se no lugar do outro e expressar seus sentimentos ou idéias de forma
sistemática e empática.
Coll comenta o caso de Jerry e acrescenta:
Casos como o de Jerry nos proporcionam um acesso privilegiado à compreensão do autismo e, por
conseguinte, constituem uma premissa importante para a formulação de estratégias adequadas de
educação e tratamento. Que meio temos que proporcionar à criança autista para diminuir seu
medo, aumentar a previsibilidade de seu ambiente aproximá-la de outras pessoas, permitir-lhe
satisfazer-se através da relação, desenvolver seus modelos simbólicos? Como podemos
normalizar, na medida do possível, sua experiência e sua conduta? (COLL, op. cit., p. 282)
Muito antes da identificação do autismo por Kanner, na década de quarenta, casos surpreendentes
já haviam sido descritos por outros profissionais e pessoas observadoras que faziam comentários
sobre os comportamentos estranhos de pessoas conhecidas, como é o caso de Tom, relatado em
uma carta de Long Grabs, a 19 de maio de 1892, (Sacks, op. cit., p. 199):
O preto cego Tom tem se apresentado aqui com casa cheia. É Sem dúvida um milagre. [...] Parece
com qualquer garoto preto de treze anos e é completamente cego e idiota em tudo, menos no que
diz respeito à música, linguagem, imitação e talvez à memória. Nunca estudou música ou recebeu
qualquer tipo de educação. Aprendeu a tocar piano ouvindo os outros, aprende letras e melodias
de ouvido e é capaz de tocar qualquer coisa na primeira tentativa tão bem quanto o melhor dos
instrumentistas. [...] Um de seus feitos mais notáveis foi à execução de três peças musicais de uma
só vez. Tocou "Fisher's hornpipe" com uma mão, "Yankee doodle" com a outra e cantou "Dixie" ao
mesmo tempo. Também tocou uma música de costas para o piano e com as mãos invertidas. Toca
muitas composições próprias - uma delas, "Battle of Manassas", pode ser classificada de pitoresca
e sublime, verdadeira obra de um gênio musical cego, apoiado apenas em seus próprios esforços.
[...] Este pobre menino cego tem a infelicidade de possuir muito pouco da natureza humana; parece
agir inconscientemente quando é levado a se apresentar, e sua mente lembra um receptáculo
vazio onde a natureza guarda suas jóias para convocá-las ao seu bel-prazer.
Segundo os estudos e as investigações realizadas por Séguin (1866), um médico francês, e
Treffert (1989), Tom, um menino negro, décimo quarto filho de um escravo que fora vendido a um
coronel, havia nascido quase cego e mostrava-se muito estranho em seu comportamento diante
das outras crianças da época e possuía um talento inato e fabuloso para a música.
Era tratado e chamado de idiota pelas outras pessoas. Com cinco anos de idade, ainda não falava
e não andava direito. Manifestava comportamento estereotipado, nenhum sinal visível de
inteligência. Contudo, seu talento para música era extraordinário.
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Desde pequeno, ficava encantado pelos vários tipos de sons produzidos. Gostava de escutar o
barulho da chuva no telhado, o debulhar do milho e, principalmente, o som extraído do piano
quando as filhas do coronel tocavam.
Aos quatro anos de idade, relata Séguin (1971) (apud Sacks, op. cit.,p. 200): "...se o tirassem do
canto onde ficava jogado e o sentassem ao piano, tocava belas melodias; já com suas pequenas
mãos tendo dominado o teclado e seu ouvido extraordinário, todas as combinações de notas que
ouvira". Improvisava suas músicas aos seis anos de idade, aos sete executou seu primeiro
concerto musical e aos onze anos fez um recital para o Presidente Buchanan na Casa Branca, que
deixou os músicos presentes duvidosos quanto à originalidade das músicas. Assim, no outro dia,
tocaram duas grandes composições de treze e vinte páginas para testá-lo. Tom as tocou
perfeitamente, como se já as conhecesse.
Séguin (Ibidem, p. 200) pormenoriza os detalhes relacionados às expressões e ao comportamento
de Tom, ao escutar uma música nova:
[Ele] demonstra sua satisfação pela fisionomia, uma risada, a curvatura dos ombros, esfregando as
mãos várias vezes, alternando com um progressivo balanço lateral do corpo e alguns sorrisos
toscos. Assim que tem início a nova melodia, Tom fica numa postura ridícula [com uma perna
esticada, enquanto faz lentas piruetas com a outra] [...] longas rotações [...] ornamentadas por
movimentos espasmódicos das mãos.
Sem dúvida, o autismo esteve sempre presente em todas as épocas, sem discriminação cultural,
racial ou étnica. Casos como o de Tom, surgem em apenas dez por cento dos autistas. Cem anos
antes dele, na cidade de Berna, nasceu Gottfried Mind (SACKS, op. cit., p. 201), classificado como
um "cretino imbecil" demonstrava uma habilidade sem igual para desenhar animais, um de seu
quadros foi comprado por George IV.
Essa espécie de talento especial ocorre não somente para as artes, mas também é típica em
raciocínios matemáticos. Jedediah Buxton (século XVIII), era um homem simples que ferrava
cavalos. Sua memória era fantástica. Às vezes demorava até semanas e meses para fazer os
cálculos que as pessoas lhe pediam, por serem absurdamente grandes. Seus resultados eram tão
certos como de uma calculadora.
J. C. Pullen, "o gênio do asilo de Earlswood", observado por Tredgold (1952) (apud SACKS, op.
cit., p. 203), construía modelos de navios, máquinas e até uma guilhotina que quase levou à morte
um de seus companheiros.
Sacks, (op. cit., p. 206) em junho de 1987, recebeu em sua casa, um pacote de um editor inglês,
cheio de desenhos que retratavam muitos lugares de Londres com seus edifícios e catedrais,
museus e outros, produzidos de maneira espontânea e marcante. Ele ficou muito contente, pois
muitos desses desenhos, eram inspirados em lugares por onde havia passado em sua infância.
O artista chamava-se Stephen Wiltshire, era um autista com talento inato desde pequeno. Criou
obras fabulosas com dez anos e com treze anos, sessenta de seus desenhos foram publicados,
segundo a carta que Sacks recebeu.
Stephen, nascido em abril de 1974, segundo filho de um funcionário de trânsito, originário das
Índias Ocidentais, mostrava atraso motor em sua infância, não gostava de ficar no colo, não
brincava com outras crianças e se escondia delas quando se aproximavam dele. Seus olhar era
vago, sem contato olho-no-olho com quem quer que fosse, aparentava ser surdo e mudo.
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Antes de completar três anos, seu pai falecera em um acidente de moto. O fato abalou Stephen de
modo a ficar perturbado após sua morte. Gritava, balançava-se, batia as mãos e o pouco que
falava cessou por completo. Ao entrar para a escola a diretora observou que sua atitude era de
indiferença para com as pessoas, mostrava-se sempre distante e corria sem nenhum objetivo para
fora da sala de aula.
Segundo Cole, a diretora, Stephen:
Não tinha praticamente nenhum entendimento ou interesse pelo uso da linguagem. As outras
pessoas aparentemente não faziam qualquer sentido para ele, a não ser para satisfazer alguma
necessidade imediata e não verbalizada; ele as usava como objetos. Não podia tolerar a frustração
ou mudanças na rotina ou no meio, e reagia a todas elas com urros irados e desesperados. Não
tinha o menor espírito de brincadeira, nem uma noção normal do perigo, e mostrava pouca
motivação para empreender qualquer atividade além de rabiscar. (LORRAINE apud SACKS, op.
cit., p. 208)
Foi nessa época que o primeiro sinal de seu talento surgiu. Fascinava-se por sombras, formas,
ângulos, e depois, por imagens. De repente, levantava-se da carteira, pegava lápis, papel e
colocava-se a rabiscar.
Stephen desenvolveu-se rapidamente. Com sete anos, era fissurado em desenhar edifícios que
tinha visto em Londres através da TV, de revistas ou de excursões que havia feito com a escola.
Também era bom em mímica, tinha excelente memória para músicas, reproduzia qualquer
movimento com perfeição. Com treze anos, ele era famoso por toda a Inglaterra.
Stephen, talentoso, características de genialidade. Stephen, autista de alto-funcionamento. Sua
capacidade de desenhar qualquer rua que tivesse visto contrapunha-se à incapacidade de
atravessá-la sozinho.
Em 1993, começou a apresentar habilidades musicais.
Reproduzia sons instrumentais, vozes, sotaques, entonações, melodias, ritmos, com uma memória
auditiva sem igual e com um ouvido apuradíssimo para música. Quando Sacks pode vê-lo e
ouvi-lo, admirar de perto suas composições artísticas e musicais, presenciar a totalidade de seu
corpo, do seu eu, de sua expressividade para cantar e encenar uma canção, conviver certo tempo
com ele, ficou perplexo. "Seu desenvolvimento foi singular, qualitativamente diferente, desde o
início", diz Sacks (op. cit., p. 249). Mas com todos esses atributos, o abstrato e o simbólico lhe
faltavam, características pessoais, sentimento e emoção próprios. Parecia que Stephen sofria uma
transformação quando estava fazendo "arte", era como se o "autismo desaparecesse", mas
quando chegava o término da música que estava tocando no piano ou cantando, quando acaba de
compor suas obras de arte, era como que retomasse no mesmo instante o seu aspecto autista.
Stephen, diferente de muitas outras pessoas com a síndrome obteve apoio de pessoas que
acreditaram em seu talento, em sua própria maneira de ser, respeitando-o e amando-o da forma
como era. Somente cinqüenta por cento dos autistas clássicos falam e cinco por cento não vivem
limitadamente. As pessoas que convivem com pessoas com autismo podem cooperar para que
estes tenham um melhor desenvolvimento de seu potencial, como também podem acabar com o
pouco do potencial que sozinhos conseguem manifestar.
Sacks, ao fim de seu relato sobre a vida de Stephen, comenta brilhantemente:
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Os desenhos de Stephen podem nunca vir a se desenvolver, nunca chegar a uma obra maior, à
expressão de um sentimento, teoria ou visão profundos do mundo. E também ele pode nunca vir a
se desenvolver, ou alcançar o estado completo, a grandeza e a miséria de ser humano, do homem.
Mas isso não deve servir para diminuí-lo, ou para menosprezar seus dons. Suas limitações,
paradoxalmente, podem servir como forças também. Sua visão é valiosa, ao que me parece,
precisamente por transmitir um ponto de vista maravilhosamente direto e não conceitualizado do
mundo. Stephen pode ser limitado, esquisito, idiossincrático, autista; mas lhe foi permitido alcançar
o que poucos de nós conseguimos, uma significante representação e investigação do mundo. (Op.
cit., p. 251).
Casos como o de Temple Grandin e Jerry, contribuem para uma melhor compreensão sobre o
comportamento autista. Diante daquilo que se apresenta a um autista como novidade, mesmo
sendo indiscutivelmente necessário para sua aprendizagem, é preciso se ter cautela. Aquilo que é
novo pode lhe gerar angústia e repulsa por não compreender o motivo de tal imposição. Isto devido
ter uma síndrome comprometedora de sua função simbólica, agravante de alterações em sua
comunicação. Deve ser evidenciado pelo profissional, o respeito à individualidade dessa pessoa,
acatando seus limites e propondo estratégias para a superação das barreiras apresentadas,
incentivando o desenvolvimento e crescimento de seu potencial global.
A imagem de um "autismo clássico" tem sido assustadora para a maioria das pessoas e inclusive,
para muitos médicos. Quando as pessoas são questionadas sobre o que acham sobre o autismo,
geralmente, são levadas a dizer que são crianças que se debatem contra a parede, têm
movimentos esquisitos, ficam balançando o corpo e chegam até a dizer que são perigosos e que
precisam ficar trancados em uma instituição para retardados.
Concordamos com Sacks, quando este afirma:
É verdade que, curiosamente, a maioria das pessoas fala apenas de crianças autistas e nunca de
adultos, como se de alguma maneira as crianças simplesmente sumissem da face do planeta. Mas
embora possa haver de fato um quadro devastador aos três anos de idade, alguns jovens autistas,
ao contrário das expectativas, podem conseguir desenvolver uma linguagem satisfatória, alcançar
um mínimo de habilidades sociais e mesmos conquistas altamente intelectuais; podem se tornar
seres humanos autônomos, aptos para uma vida pelo menos aparentemente completa e normal mesmo se encobrindo uma singularidade autista persistente e até profunda. (Op. cit., p. 255).
Para tanto, quanto mais cedo se der o processo de intervenção de maneira contínua e avaliativa,
mais oportunidades essa pessoa terá para desenvolver-se e estruturar-se dentro de sua própria
realidade. Não há dúvidas da necessidade de uma avaliação diagnóstica com protocolo
investigativo completo, anamnese específica para transtornos generalizados do desenvolvimento e
avaliação psicopedagógica para fins de tratamento terapêutico e educacional da criança com
autismo. O trabalho multiprofissional é de extrema relevância para a realização de avaliações de
acompanhamento e evolução, visando promover melhoria para a qualidade de vida do sujeito e de
sua família.
Referências
CLASSIFICAÇÃO de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10; Descrições clínicas e
diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
COLL, C.; PALACIOS, J.; MARCHESI, A. Desenvolvimento psicológico e educação: necessidades
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educativas especiais e aprendizagem escolar. Tradução Marcos A. G. Domingues. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1995.
GARDNER, Howard. Inteligências Múltiplas: a teoria na prática. Tradução de Maria A. V. Veronese.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
GRANDIN, Temple. High-Functioning Individuals With Autism. Edited by Eric Shopler and Gary B.
Mesibov Plenum Press, New York: 1992.
SACKS, Oliver W. Tempo de despertar. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
_____. Um antropólogo em Marte. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SÉGUIN, Edouard. Idiocy and its treatment by the physiological method. 1866. Reimpressão, Nova
York: Kelley, 1971.
TREDGOLD, A. F. A text-book of mental deficiency. 1908. Reimpressão, Londres: Bailliere, Tindall
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TREFFERT, Darold A. Extraordinary people: an exploration of the savant syndrome. New York:
Harper and Row, 1989; London: Bantam, 1989.
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