Arquivo completo - Pindorama
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Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016 EUNÁPOLIS-BA, MAIO/2016 EXPEDIENTE Reitor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA Prof. Renato da Anunciação Filho Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação – IFBA Profª. Luiz Gustavo da Cruz Duarte Diretor Geral do IFBA Campus Eunápolis Profº. Fabíolo Moraes Amaral Revista Digital Pindorama do IFBA Profº. Aldemir Inácio de Azevedo – IFBA Editor Conselho Editorial Profª. Geralda Terezinha Ramos – IFBA (Doutora) Profª. Vitória de Souza de Oliveira – IFBA (Doutora) Profº. Fabíolo Amaral – IFBA (Doutor) Profª. Fabiana Zanelato Bertolde – IFBA (Doutora) Prof. José Roberto de Oliveira – IFBA (Mestre) Profª. Sílvia Kimo Costa – IFBA (Mestra) Profª. Lívia Angeli Silva – UFBA (Mestra) Profº. Eliseu Miranda de Assis – IFBA (Mestre) Profª. Nayla Rodrighero L. P. Ricardo – IFBA (Mestra) Profª. Natália Helena Alem – IFBA (Mestra) Profª. Mariana Fernandes dos Santos – IFBA (Mestra) Prfª. Vânia Lima Souza (Doutora) Profº. Flávio Leal – UFVJM (Doutor) Profª. Maraci Gonçalves Aubel – UNIVERSIDADE DE KANSAS (Doutora) Profº. Rodrigo Camargo Aragão – UESC (Doutor) Profº. Cláudio do Carmo Gonçalves (Doutor) Profº. Herbert Toledo Martins – UFRB (Doutor) Profº. Rodrigo Gallotti Lima – IFS (Mestra) Profª. Margarida Maria Dias de Oliveira – UFRN (Doutora) Profª. Maria Neusa de Lima Pereira – IFRR (Mestra) Profº. Itamar Freitas de Oliveira – UFS (Doutor) Equipe Técnica: Técnico-administrativo: Arthur Vinicius Maciel Dantas ISSN 2179-2984 ISSN 2179-2984______________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016 www.revistapindorama.ifba.edu.br Conselho Consultivo SUMÁRIO EDITORIAL ARTIGOS A ilusão do sujeito: uma fronteira entre ser/não ser ‘um escolhido’ 05 Edite Luzia de Almeida Vasconcelos Nell: uma análise sob a ótica educacional e sociocultural de inclusão 21 Rosária de Fátima Boldarine; Flavio Biasutti Valadares A educação musical e o ensino integrado no Instituto Federal da Bahia 38 Marcos de Souza Ferreira; Luiz César Marques Magalhães Estratégias de leitura empregadas para compreensão da língua inglesa por restauradores aeronáuticos brasileiros 54 Natalia Cristina de Mendonça Spera; Daniela Terenzi Alice Walker e Zora Neale Hurston: resgate e circulação de escritos invisibilizados Raphaella Silva Pereira de Oliveira 72 EDITORIAL A Revista Eletrônica Pindorama, dando continuidade ao propósito de divulgar produção científica de forma multidisciplinar, disponibiliza ao público a sua sexta edição constituída por cinco textos. No primeiro artigo a autora se ancora na análise do discurso tomando como referencial de abordagem o discurso religioso e a atividade missionária batista. Este é investigado sob a ótica da sua participação na constituição da identidade do sujeito. Porém, como tal, o discurso religioso em questão se orienta pela construção de um sentido unificado, tirando do sujeito a possibilidade de interpretação e transformando-o num sujeito universal. Os autores do segundo texto desenvolvem uma análise crítica da ideia de educação inclusiva, mobilizando um referencial teórico que trata o tema a partir da vivência cotidiana da escola. A perspectiva adotada é a de que a inclusão é a convivência com as diferenças. A partir da visão apresentada no filme Nell em relação ao tema central os autores travam uma discussão empírico-conceitual num diálogo com a legislação brasileira e sua aplicação na atualidade. É um texto instigante que leva o leitor a refletir sobre aspectos fundamentais na prática da educação inclusiva. Em “A educação musical e o ensino integrado no Instituto Federal da Bahia” realiza-se uma análise do panorama do ensino de música no IFBA, explicitando como a educação musical se insere neste contexto contemporâneo de educação. Avalia também a presença/ausência da linguagem musical no componente curricular Arte. Os autores fazem a discussão sobre o componente curricular Arte transitando pelo desafio que é aplicar o currículo dos cursos integrados da Rede Federal de Ensino que se propõe oferecer uma formação integral aos estudantes, conjugando a profissionalização (formação técnica) e a formação geral (ensino médio). Concluem que a cultura é uma categoria fundamental no percurso do estudante, uma espécie de síntese das relações dos seres humanos com seu meio. O penúltimo texto desta edição analisa a relevância do domínio da língua inglesa com um propósito específico entre uma categoria profissional da aeronáutica: os trabalhadores responsáveis pela manutenção das aeronaves. Devido ao fato de a língua inglesa ter se tornado a língua para comunicação global e a necessidade de manter os padrões máximos de segurança neste setor é imperativo que esses profissionais conheçam este idioma. Assim, os autores identificam as estratégias de leitura utilizadas pelos profissionais de manutenção de aeronaves e destacam a importância do estudo da língua inglesa na formação do profissional. Por fim, Raphaella Oliveira apresenta um texto que versa sobre os modos de circulação da escrita feminina negra estadunidense, em suas experiências intelectuais e acadêmicas. O olhar da autora se desenrola articulando a análise do objeto anunciado na perspectiva de refletir sobre a sistematização de uma produção intelectual/ literária feminina negra no Brasil e de uma epistemologia feita por e para mulheres negras. O artigo é entrelaçado por uma rica problematização a respeito das estratégias de visibilidade, nas academias, dos estudos e produções que cooperem para o empoderamento das mulheres negras, apontando para a importância de se valorizar e promover o resgate de produções que foram invisibilizadas pela cultura sexista centrada no homem. Com este número, a Revista Eletrônica Pindorama oferece ao público um rico material de pesquisa, por meio de textos instigantes que proporcionarão ao leitor profundas reflexões sobre os temas tratados. A ilusão do sujeito: uma fronteira entre ser/não ser ‘um escolhido’ 1 Edite Luzia de Almeida Vasconcelos2 ___________________________________________________________________________ RESUMO Neste artigo, examina-se a separação imposta pelo sujeito para demarcar os limites do que ele considera sagrado no tipo de trabalho que exerce ou gostaria de exercer, a partir da análise discursiva dos pronomes você e a gente. Esse forma de funcionamento identificada ao discurso do sujeito opera a separação, sob a fórmula ser/não ser e isso produz o apagamento de outros sentidos. Palavras-chave: Pronomes a gente/você. Identidade. Representação. Sentido. Sujeito. 1 Este artigo compõe o Capítulo 3 – As Vozes de Deus: Quem Fala por Deus, Fala em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo - da minha tese intitulada “A Formação da Identidade Batista: Efeitos de Sentidos do Trabalho de Missões”, defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal de Alagoas, sob a orientação da Profª Drª Maria Virgínia Borges Amaral, em 2010. 2 Especialização em Letras e Linguística: Leitura e Produção de Textos. Mestrado em Letras e Linguística (Análise do Discurso). Doutorado em Letras e Linguística (Análise do Discurso).Professora do IFBA, Campus Salvador, Departamento I, Coordenação de Linguagens Salvador, Bahia, Brasil. Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/9441490089311139. Endereços eletrônicos: [email protected] – [email protected] INTRODUÇÃO Nesta pesquisa, consideram-se os pronomes você e a gente como categoria que trabalha na fronteira da materialidade lingüística e do discurso, como mecanismos que estabelecem as relações de poder reinscritas nas práticas discursivas. Práticas essas organizadas pela representação das posições da subjetividade, para a constituição da identidade do sujeito. Tal modo de funcionamento da discursividade faz circular o sentido de trabalho como missão para assegurar a salvação do sujeito, através do poder conferido pela representação. O representante tem o poder de incluir e excluir, o que significa o poder de dizer quem pertence e quem não pertence à formação discursiva à qual estão identificados os escolhidos, ou seja, ele tem o poder de dizer quem são os escolhidos. O sujeito do discurso realiza tal poder movimentando os sentidos, através de dois mecanismos principais, relativos aos pronomes a gente e você. Os enunciados tomados para análise, neste artigo, foram retirados das minhas pesquisas de mestrado e doutoradoi, resultado da transcrição grafemática das entrevistas gravadas com missionárias batistas e têm a seguinte organização: SD para sequência discursive, seguida de numeração crescente para cada nova sequência a ser analisada. A análise possibilitou demonstrar que os efeitos de sentido do trabalho missionário batista explicitados pelos pronomes você e a gente funcionam como mecanismo discursivo que opera a separação, que, no exame analítico do corpus, dá-se sob a fórmula ser/não ser identificado ao discurso do sujeito, que se considera o apagamento de outros sentidos. A análise sustenta-se no referencial teórico-metodológico da Análise do Discurso de orientação francesa. DESENVOLVIMENTO 1. Você/A Gente e o Outro www.revistapindorama.ifba.edu.br um escolhido, sob o modo de representação, por ser uma missionária e isso produz 6 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 Em SD01, abaixo, o sujeito enuncia que ‘a gente’, - o missionário -, deve ser exemplo para as pessoas de sua convivência, isto é, para outros missionários, para outros evangélicos, enfim. SD01 - Para que a gente possa ser exemplo para as pessoas que vivem conosco porque se a gente prega, se a gente fala sobre Deus e não vive o amor de Deus nas nossas vidas, não adianta nada. Os dispositivos discursivos pronominais sinalizam para escolhas diferenciadas dos lugares do sujeito, como indicam as sequências discursivas a seguir: SD02 - Eu tive um pouco lá no Seminário, mas a gente também aprende mais um pouco sobre a cultura deles. SD03 - Lá em Jequié quando a gente aceita Jesus Cristo nós temos a escola de missões, né? Lá tem a escola de missões, então a gente, às vezes a gente recebe a orientação pra trabalhar com adolescentes com novos crentes e eu vim com esse preparo de lá. SD04 – Aulas de, aquela aula que a gente toma quando aceita Cristo, né? casal eu fiz outro curso, “casados para sempre”, e nesse curso a gente tem que saber lutar com os adolescentes porque às vezes no próprio encontro de casais, no próprio departamento se encontram barreiras vinculadas a você, a seus pais aí a gente (inint) 3 separação. 3 Trecho não recuperado da gravação. O corpus deste artigo é extraído da tese cujo corpus foi composto por transcrições grafemáticas de gravações feitas com missionárias batistas. ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 www.revistapindorama.ifba.edu.br Discipulado, depois eu fiz um encontro de casal e no encontro de 7 Essas sequências marcam um uso do pronome a gente como em “eu fiz outro curso, ‘casados para sempre’, e nesse curso a gente tem que saber lutar com os adolescentes” que refere apenas o grupo de religiosos que frequentava o seminário junto com o enunciador. Na sequência SD04, já mencionada, o sujeito do discurso faz uso do você, como enunciado em: SD04 - porque às vezes no próprio encontro de casais, no próprio departamento se encontra barreiras vinculadas a você, a seus pais aí a gente (inint) separação, referindo fiéis bem específicos da comunidade, que são todos os adolescentes, ou mais especificamente, os adolescentes com problemas familiares os quais são tratados na igreja, pelos missionários. E, ainda, quando o sujeito do discurso explica o trabalho da misionária - que inclui palestras com os membros recém-convertidos e com os adolescentes e seus pais - com o objetivo de demonstrar a importância que tem a união da família para um evangélico, diante de Deus. Na sequência discursiva 04, acima, o sujeito explica que a missionária precisa tomar aulas de discipulado quando aceita Cristo, conforme retoma-se abaixo: SD04 - aulas de, aquela aula que a gente toma quando aceita Cristo, né? Discipulado,... discipulado”, ele se identifica de diferentes formas: SD05 - Um discipulado é quando a gente vai aceitar Jesus Cristo a gente tem que saber é, o que é que a gente tá fazendo, né? E o que é que a gente tá aceitando, então nós recebemos aulas, como na Bíblia, como se comportar como evangélico, como também saber evangelizar outras pessoas que ainda não receberam Cristo e www.revistapindorama.ifba.edu.br Enquanto que na sequência 05, a seguir, o sujeito explica o que é “um 8 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 disciplinar para o batismo, nós temos que ir para o batismo sabendo o que estamos fazendo. De acordo com o enunciado, a principal forma de discipular diz respeito à aquisição do conhecimento sobre a Bíblia, o que implica em aprender a adequar-se à vida de evangélico, isto é, SD05 - como se comportar como evangélico Assim, de acordo com a movimentação da representação dada em a gente, o uso do termo discipular também diz respeito ao aprendizado que se adquire para realizar o trabalho de evangelização para o não-convertido bem como a disciplinarização para aqueles já convertidos receberem o batismo. SD05 - saber evangelizar outras pessoas que ainda não receberam Cristo SD05 - disciplinar para o batismo, nós temos que ir para o batismo sabendo o que estamos fazendo Ou seja, “aprender na aula de discipulado” significa aprender a ser evangélico para depois redistribuir o ensinamento recebido, no intuito de converter Isto é, discipular pode ser identificado como evangelizar. Então, “aulas de discipulado” significam, também, aprender a reconhecer-se como crente porque “a gente tem que saber”, “o que é que a gente tá aceitando”, “nós temos que ir para o batismo sabendo o que estamos fazendo”, conforme a sequência discursiva 05, acima. Finalmente, para o sujeito assujeitado aos sentidos do discurso religioso discipular significa amadurecer e fortalecer a sua fé. No quadro a seguir, é possível observar a movimentação do sujeito do discurso religioso, através do uso dos pronomes a gente e você. www.revistapindorama.ifba.edu.br um incrédulo ou treinar o fiel para a vida de crente batizado. 9 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 Quadro 1 – Movimentação do Sujeito: A Gente A) a)I) B) J) A– C) A gente refere a missionária D) E) F) G) H) 1 b) . Outros missionários “Lá tem a escola de missões, então a gente, às vezes a gente recebe a orientação pra trabalhar com adolescentes com novos crentes e eu vim com esse preparo de lá” Qualquer membro da denominação da missionária “Aulas de, aquela aula que a gente toma quando aceita Cristo, né? Discipulado” c) Outros crentes, em geral “Porque na religião, a gente sabe, não é? Viver, estar numa religião é fácil, mas mais importante é que a gente ame seu próximo” d) 2 . Crentes (i) e não-crentes (d’) “Pessoas que vivem conosco” Assim, um primeiro modo de movimentação do sujeito em direção ao seu centramento consiste em considerar a separação entre a gente (1) e eles (2,d’). Neste modelo, a gente (A) refere a missionária e (1): a) Outros missionários; b) Qualquer membro da denominação da missionária e c) Outros crentes, em geral; além de (2): “Pessoas que vivem conosco” que refere (i – um crente). Tal mecanismo separa eles [os outros], as pessoas que não convivem com o sujeito, entendimento de que o pronome pode referir (d’ – um não-crente), o a gente inclui o pronome eles. Esse entendimento caminha na contramão do centramento do sujeito. Conforme SD06 a seguir, o sujeito diz que o pronome você – referindo a si próprio, ou seja, referindo o missionário – deve continuar com a missão porque foi Deus quem a deu. www.revistapindorama.ifba.edu.br isto é, aquelas que não são da sua religião/denominação. Entretanto, no 10 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 SD06 - Mas, é você continuar com essa missão que Deus lhe deu [Deus deu a missão para a missionária] porque existem muitas dificuldades, não é? Esse segundo modo de movimentação do sujeito, dado no quadro a seguir, consiste na separação entre você e eles, quando o uso do pronome singulariza a missionária. Quadro 2 – Movimentação do Sujeito: Você B – Você refere apenas a missionária Eles [os outros (por inferência), as pessoas em geral] Donde: A gente (a missionária) é o escolhido (todos que se identificam com o discurso da denominação à qual o sujeito pertence); considerando que o escolhido é um convertido, é aquele que está salvo. Eles, As pessoas são os não-escolhidos (todos que não se identificam com o discurso desse sujeito), ou seja, os não-convertidos, os não-salvos, portanto. E ainda, donde: Você (a missionária) é o escolhido (todos que se identificam com o seu discurso); Eles, As pessoas são os não-escolhidos (todos que não se identificam com o discurso do sujeito), isto é, as pessoas não-convertidas e, portanto, que não estão salvas. Esses dois modos de movimentação de centramento do sujeito afirmam e reafirmam os escolhidos e os não-escolhidos. www.revistapindorama.ifba.edu.br considerando que o escolhido é aquele que foi salvo. 11 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 Quadro 3 – Movimentação do Sujeito: A gente/Você A gente /Você Escolhido Todos que se identificam com o discurso do sujeito Eles, As Não- Todos que não se identificam com o discurso do sujeito pessoas escolhido Os pronomes a gente/você em tais enunciados ajudam a demarcar fronteiras porque funcionam não apenas como categorias gramaticais, mas também como categorias discursivas. Elas, então, controlam a dispersão do sujeito do discurso e favorecem a sua movimentação em direção ao centramento, dando-lhe unidade. Esse movimento, ao mesmo tempo, supõe afirmação e reafirmação das relações de poder, estabelecidas socialmente e inscritas nas práticas discursivas do fiel. Nesse mecanismo discursivo, o missionário é colocado constitutivamente pela estabilização do sentido – sentido de missão para evangelizar – como autor e responsável por seus atos, em cada prática discursiva em que se inscreve, sob o efeito da ilusão dos efeitos de sentido do discurso religioso. Nessa percepção, o sujeito realiza a ilusão de que tem o poder de dizer quem pode e quem não pode receber as graças divinas, mediante o poder da representação. De acordo com o exame das sequências acima, através dos pronomes, no âmbito da discursividade, o sujeito do discurso religioso inscrito em a gente/você é o escolhido, enquanto que o não-escolhido é o outro. Desde que esse outro seja qualquer um que não pertença à mesma denominação religiosa do sujeito que pode ser ou não ser o seu interlocutor. Assim, a condição de filiação ao sentido atribuído pelo discurso do sujeito será determinante da identidade discursiva, religiosa e ideológica. www.revistapindorama.ifba.edu.br 2. Apagamento de sentidos 12 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 De acordo com Pêcheux, o sentido “é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas)” (PÊCHEUX, 1995, p. 160). O sentido atribuído, portanto, é dado pelas posições de sujeitos marcadas por relações de poder que se constroem no processo discursivo. O autor também dirá que: As palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aquelas que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem. (PÊCHEUX, 1995, p. 160). Se o sentido é dado em acordo com a posição sustentada pelo sujeito, é certo também que a processualidade histórica produz mudanças de sentido sobre o qual o sujeito nem sempre tem o controle. Sob a primazia do interdiscurso, o discurso produz uma heterogeneidade que não o afeta, porque esse sujeito está tomado pelo efeito da evidência do sentido. Evidência que faz parecer ao sujeito que o sentido é único, estável e homogêneo. O sentido dado pelo funcionamento das sequências discursivas como em: SD07 – Mas, é você continuar com essa missão que Deus lhe deu porque expressa antagonismos originados pela posição ocupada pelo sujeito no discurso. Esse antagonismo é efetivado entre o sujeito do discurso – você – que tem uma missão dada por Deus e o outro – aquele que não a tem. Esse antagonismo apagase, para o sujeito do discurso, sob a forma de efeito de sentido, dado pela evidência da identificação. A evidência do sentido constituído no interior de uma formação discursiva é um efeito do trabalho da ideologia que funciona como mecanismo de controle das www.revistapindorama.ifba.edu.br existem muitas dificuldades, não é? 13 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 ações dos homens, através do apagamento de outro sentido possível. Nesta perspectiva, o sujeito não reconhece a contradição que lhe atravessa os sentidos. Como uma pista, o sujeito a efetiva, dizendo que: SD07 - porque existem muitas dificuldades, não é? Tal apagamento serve para orientar as práticas sociais, pois o que é apagado corresponde aos sentidos não acessados, porém possíveis. Nesta direção de análise, se pode dizer que a realização do trabalho de evangelização, executado pelo trabalho de missões, funciona como um efeito do apagamento da contradição. O apagamento marca-se pelo antagonismo, imposto pela separação operada pelos pronomes A gente e Você/ Eles, As pessoas, resultado da divisão escolhido/nãoescolhido. Através da evidência do sentido dado pela linguagem e linguagem compreendida fora do âmbito exclusivo da língua, fora do polo da dicotomia saussureana, portanto como um modo de produção social, o sujeito é instituído em uma dada formação ideológica pela qual ele é identificado como sujeito ideológico, como é possível esclarecer no fragmento seguinte: 3. Você e A Gente: As posições-sujeito e os Modos de Representação Os sujeitos, em constante relação, assumem, pela linguagem/discurso, diferentes posições em uma ou várias formações discursivas e em uma dada formação ideológica, pois “as relações de linguagem são relações de sujeito e efeitos de sentidos e seus efeitos são múltiplos e variados” (ORLANDI, 2001, p. 21). www.revistapindorama.ifba.edu.br Essa instância da linguagem é a do discurso. Ela é um modo de produção social, não é neutra, inocente (na medida em que está engajada numa intencionalidade) e nem natural, por isso é o lugar privilegiado de manifestação da ideologia (...) a linguagem é o lugar de conflito, de confronto ideológico, não podendo ser estudada fora da sociedade, uma vez que os processos que a constituem são histórico-sociais. (BRANDÃO, 1993, p. 12). 14 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 Daí se pode ampliar a definição de discurso feita por Orlandi, a partir de Pêcheux como “efeito de sentido entre locutores” (ORLANDI, 2001, p. 21) para efeito de sentido, relacionado à historicidade na qual ele é materializado. Assim, o discurso religioso constitui-se como um discurso cujo sentido dado pelo sujeito-universal é o mesmo com o qual o sujeito do discurso se identifica. Tal identificação é realizada através da tomada de posição do sujeito do discurso em relação ao sujeito-universal, isto é, a tomada de posição é um efeito do interdiscurso, ou seja, é o sujeito-universal representado no sujeito do discurso. Ao sujeito do discurso atribui-se o poder de determinar o significado dado aos enunciados do discurso religioso, uma vez que a representação funciona como um sistema de significação. O sujeito, então, adquire o poder de representar a voz de Deus. Nesses termos, a identidade do sujeito do discurso, no discurso em análise, constitui-se pelo modo como ele se faz representar nesse discurso para construir sentidos de unidade e de homogeneidade. Na instância interdiscursiva, considera-se que a relação de interlocução ou a relação de lugares é dada pelo contexto sociohistórico, o que quer dizer que as práticas sociais constituídas em sua historicidade determinarão as práticas discursivas. Nessa perspectiva, os interesses diversos que estão presentes no próprio funcionamento do discurso, com os conflitos que os perpassam, determinarão o lugar do sujeito, bem como também determinarão como ele posiciona o outro. Assim, a gente e você marcam os papéis pelos quais o sujeito pode se representar, no discurso. Essa relação dinâmica da linguagem, provocada pelo sujeito do discurso, movimentará e conseqüentemente afetará sua posição no discurso. Sendo assim, os mecanismos discursivos, marcados no intradiscurso vozes que permitem um deslize nos papéis da representação para a posição do enunciador, em direção do centramento. Esse deslizamento constitui um sujeito baseado “numa concepção de pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado” (HALL, 2005, p. 10), cuja identidade é inteira e fixa. Desse modo, os pronomes você e a gente funcionam como um dispositivo discursivo que diz respeito ao modo de representação do sujeito do discurso. Por esse funcionamento discursivo, o sujeito do discurso representa o sujeito universal, www.revistapindorama.ifba.edu.br através das formas pronominais você e a gente, mostram um conjunto de diferentes 15 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 realizando um movimento em que o sujeito universal se representa através de um processo de inclusão, de particularização ou de generalização4 de posições sujeito pertencentes à mesma formação discursiva, mas sempre com o intuito de centrar-se na posição do enunciador. Assim, a representação do sujeito do discurso mostrada pelos pronomes você e a gente, nas sequências discursivas em análise, indica um funcionamento discursivo cujo sujeito sintetiza todas as posições de representação na posição do enunciador. Essa estratégia discursiva compreende a ilusão do movimento da representação significando a fixidez do sujeito e o fechamento do sentido, no discurso religioso em análise, cujo movimento, por sua vez, orienta para a unidade do sujeito e do sentido. O modo de representação das posições de sujeitos, então, organiza o discurso religioso como uma unidade originada no efeito da transparência dos sentidos. Nessa compreensão, as formas gramaticais você e a gente funcionam como mecanismo discursivo, que, sob o domínio de saber do discurso religioso, constitui o sujeito e o sentido que identifica o fiel como aquele indivíduo capaz de submeter-se às leis de Deus, em busca da salvação eterna e que para isso deve viver sem pecados. O sentido circulante na formação discursiva religiosa alimenta a crença de que o homem não terá direito ao paraíso nem à proteção divina, caso não haja a submissão às leis de Deus. Esse sentido constitui o sujeito e a identidade do sujeito do discurso religioso, ancorado no discurso da obediência; obediência às normas impostas pelo sujeito-Deus. O centramento do sujeito faz trabalhar a repetição, o mesmo efeito de sentido porque isso significa a homogeneidade do discurso religioso. Dizendo de outro modo, o sujeito estende o sentido historicamente constituído pelo discurso a missionária -, para os membros da sua comunidade religiosa ou para qualquer indivíduo que aceite a palavra divina como a única e a verdadeira e queira fazer parte da mesma denominação religiosa. Então, o sujeito identificado à formação discursiva religiosa assume a posição do sujeito universal, no estatuto da representação. 4 Orlandi e Guimarães (1989, p. 48) apresenta a organização das vozes, no texto, que é dado como uma unidade, como uma representação de enunciadores que podem ser: individual, genérico, universal, coletivo. ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 www.revistapindorama.ifba.edu.br religioso, partindo da posição do enunciador, aquele que diz você/a gente – referindo 16 A necessidade de centramento do sujeito plenamente determinado pela crença em Deus coloca-o, consequentemente, sob maior poder da determinação ideológica. Isso ocorre porque o movimento do sujeito para a posição de centramento é o efeito ideológico da negação da interpretação (ORLANDI, 1996) que o próprio sujeito realiza já como mecanismo de produzir ideologia, pois, na concepção discursiva, a ideologia faz com que o sentido apareça como único e verdadeiro. A ideologia, então, produz o efeito de completude do sentido e do sujeito e, como conseqüência, o efeito de evidência, pois os sentidos institucionalizados são admitidos como naturais. Assim, a ideologia naturaliza o que é produzido pela história (ORLANDI, 1996), fazendo parecer que não há historicidade, apagando-a. Dessa maneira, o movimento dos sentidos e do sujeito em direção à unidade e centramento, através da representação, indica o apagamento da evidência da alteridade existente no discurso. Na formação discursiva religiosa, o movimento do sujeito em direção ao centramento significa o esforço para apagar os outros efeitos de sentido possíveis e contraditórios com o discurso da obediência que, inclusive, apregoa a submissão do fiel como uma dádiva necessária para a realização da sua salvação. O movimento de centramento objetiva à manutenção do sentido já-dado pelo sujeito universal, neste caso, Deus. Assim, o apagamento dos sentidos possíveis é realizado a partir de um efeito do trabalho do interdiscurso, sendo um efeito dos esquecimentos, definidos por Pêcheux (1995). Pelos esquecimentos o sujeito constrói a ilusão de que é origem do seu dizer, pois diz o que quer. E cosntroi também a ilusão de que o que ele diz só poderia ser aquilo e não outra coisa (ORLANDI, 1996, p. 89). Sendo assim, as ilusões do sujeito fazem-no reproduzir os sentidos circulantes no discurso religioso, ideologicamente CONCLUSÕES www.revistapindorama.ifba.edu.br constituído. Ao organizar os papéis da representação de modo a unificá-los na posição do enunciador, como já afirmado, ao mesmo tempo o sujeito realiza o processo de unificação do sentido, pois, para o sujeito do discurso religioso, não há possibilidade de interpretação. O que há é manutenção do sentido que lhe é dado. Isso o constitui como 17 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 representante autorizado a traduzir o dito de Deus, desde que permaneça como um bom sujeito (PÊCHEUX, 1995), ou seja, desde que se submeta plenamente ao sentido dado pelo sujeito universal-Deus. Então, como foi dito, dá-se a conjunção nas formas de assujeitamento à religião e à ideologia. Como conseqüência, o deslocamento produz uma superposição (PÊCHEUX, 1995) das posições do sujeito, criando a unidade necessária ao discurso religioso. Por isso, ao assumir a posição do sujeito universal, o sujeito desloca-se da posição de ouvinte (ORLANDI, 1996), isto é, de sujeito comum para a posição de enunciante escolhido por Deus, como um efeito da representação. Nesse aspecto, o sujeito do discurso coloca-se como aquele que tem um dom, que foi escolhido divinamente, subvertendo sua condição de sujeito comum, pois atua como um intercessor dos homens diante de Deus. Na sequência discursiva a seguir, o enunciador coloca-se como um sujeito especial porque ele pode interceder “pelas almas perdidas”. Assim, as pessoas que são drogadas, viciadas, ou seja, aquelas “que vivem na ignorância da palavra”, que “estão sem Deus” são pessoas pelas quais ele, e somente ele, pode fazer oração porque pertence a outro mundo, o mundo que não é o mesmo onde estão as pessoas que têm almas perdidas. Essas são as outras, fora do você e do a gente centralizadores, retratando o movimento ser/não ser escolhido. SD08 - Intercedo pelas almas perdidas que vivem na ignorância da Palavra e estão sem Deus, eu faço oração, como por exemplo, as pessoas que estão num mundo assim que se drogam, né? Pessoas viciadas, elas precisam da nossa compaixão, precisam que nós arregacemos as nossas mangas e vá ao encontro dessas www.revistapindorama.ifba.edu.br pessoas para tirá-la de lá. A partir da análise dos enunciados, retirados do texto transcrito das entrevistas gravadas das missionárias batistas, pode-se afirmar que, através da representação submetida ao poder de Deus, concebe-se que o sujeito diferencia-se dos demais, construindo uma hierarquia autorizada pelo próprio discurso divino e dela participando como representante do sujeito de maior poder nessa hierarquia: o próprio Deus. 18 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 Assim, ao organizar um modo de representação em que se iguala ao poder de Deus e considerando que o dito de Deus não se pode questionar, o sujeito do discurso torna inquestionável o seu próprio dito, o que lhe garante uma posição de maior prestígio social, inclusive perante o próprio grupo com o qual se identifica. ABSTRACT This article examines the separation imposed by the subject to demarcate the limits of what he holds sacred in the type of work that has or would like to pursue. Thus initially, explains that the pronouns you and we act as discursive mechanism that operates such separation, that the screening of the corpus, is given under the formula being / not being identified to address the subject, and this produces deletion of other senses. www.revistapindorama.ifba.edu.br Key-words: pronouns we / you. Identity. Representation. Sense. Subject. 19 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. Campinas, São Paulo: UNICAMP, 1993. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomás Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro, 8.ed, Rio de Janeiro: DP&A, 2005. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001. __________. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Rio de Janeiro: Vozes, 1996. www.revistapindorama.ifba.edu.br ORLANDI, Eni Pulcinelli, GUIMARÃES, Eduardo, TARALLO, Fernando. Vozes e contrastes: discurso na cidade e no campo. São Paulo: Cortez, 1989. 20 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 05-20 Nell: uma análise sob a ótica educacional e sociocultural de inclusão Rosária de Fátima Boldarine5 Flavio Biasutti Valadares6 ___________________________________________________________________________ RESUMO O artigo trata da educação inclusiva no Brasil em paralelo à perspectiva abordada no filme Nell. Apresenta considerações sobre a legislação relativa à inclusão social, prevista na educação, a visão dos tratados e das leis que amparam a inclusão social e uma análise sobre o filme Nell, a partir da qual traçamos o paralelo com a educação inclusiva. Objetiva mostrar formas com as quais se pode pensar a inclusão sociocultural e educacional, observando as peculiaridades das pessoas com algum grau de deficiência. Baseia-se em conceitos de educação inclusiva abordados por Báfica (2012), Cardoso (2003), Mantoan (2006), entre outros. Segue como metodologia uma visão a respeito da legislação vigente acerca do tema e a relação com a personagem-título. Conclui que a condução para uma educação inclusiva, no Brasil, ainda precisa garantir o cumprimento da legislação e o acesso de todos os deficientes ao desenvolvimento sociocultural e educacional. PALAVRAS-CHAVE: Educação. Escola. Inclusão. Cultura. 5 Doutora em Educação/UNESP. Docente Convidada Mackenzie-SP do curso de pós-graduação em Língua Portuguesa e Literatura. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1143372064747834. Endereço eletrônico: [email protected]. 6 Doutor em Língua Portuguesa/PUC-SP. Docente do IFSP/Campus São Paulo. Pós-Doutorado em Letras Mackenzie-SP. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5302107511329665 Endereço eletrônico: [email protected]. 1. Introdução Mills (1999, p. 25) defende que o princípio que rege a educação inclusiva é “o de que todos devem aprender juntos, sempre que possível, levando-se em consideração suas dificuldades e diferenças”. Mantoan (2006) propõe que a inclusão é o privilégio de conviver com as diferenças. Nessa perspectiva, como aponta Facion (2008, p. 203), “incluir não é simplesmente levar uma criança com deficiência a frequentar o ensino regular. A inclusão é uma conquista diária para a escola, para a criança e para seus pais. Todo dia é um dia novo na inclusão”. Nesse ponto, em se tratando de inclusão educacional, é possível entendermos a legislação brasileira como uma das mais avançadas do mundo; no entanto, o que verificamos em situações retratadas pela mídia ou mesmo por presenciarmos in loco, ao visitarmos escolas e/ou ao orientarmos alunos de cursos de pós-graduação, é que a realidade se distancia do preconizado na legislação, ou seja, quando a ideia de inclusão se fundamenta numa filosofia que reconhece e aceita a diversidade na vida em sociedade, está nos evidenciando que o Brasil não alcançou este ideal ainda, que não há a prevista e desejada garantia de acesso de todos a todas as oportunidades. (ARANHA, 2001) A partir disso, é necessário entendermos que as políticas públicas devem ser consideradas como diretrizes, regras e procedimentos que norteiam a ação do poder público para com a sociedade. É nas mediações entre a sociedade e o Estado, em que documentos sistematizados orientam as ações que envolvem aplicações de recursos públicos, que devem ser elaboradas políticas públicas, a fim (TEIXEIRA, 2002) Isso posto e considerando os aspectos linguísticos e culturais, produzimos este artigo com o objetivo de traçar um paralelo entre o filme Nell e a educação inclusiva. Esclarecemos que a escolha do filme deu-se em razão de ele apresentar uma situação bastante peculiar quanto a uma tentativa equivocada de inserção cultural e educacional da personagem-título. Como procedimentos metodológicos para a consecução de nossa análise, utilizamos o filme e a pesquisa de cunho bibliográfico que nos auxilia a pensar a www.revistapindorama.ifba.edu.br de se definir quem decide, o quê, quando, com que consequência e para quem. 22 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 forma como a educação de pessoas com deficiência vem acontecendo em âmbito nacional, além da base teórica relativa à educação inclusiva e a legislação vigente. 2. Legislação: localizando a questão Báfica (2012, p. 96) explicita que, no Brasil, a educação especial “passou a constar na política educacional nos anos 50-60 do século XX”. Ela afirma que “embora algumas experiências educacionais inspiradas nos modelos europeus e norte-americanos tenham iniciado no século XIX, durante muito tempo, predominou o modelo médico na educação de pessoas com deficiência” e complementa dizendo que, “ainda, hoje percebemos fortes indícios desse modelo”. A partir de meados do século XX, as discussões a respeito da inclusão educacional começam a se intensificar. Muitos autores (SANTOS, 2013; CARDOSO, 2003; MANTOAN, 2006) apontam que os ambientes até então destinados para a educação de pessoas com deficiência (escolas específicas para cegos, por exemplo) poderiam contribuir para a segregação. Começa-se, também, a questionar o modelo homogeneizante da escola tradicional que acabava gerando exclusão. Nessa perspectiva, novas propostas de educação começam a surgir. O processo de ampla democratização do acesso à escola também passa a figurar nos sistemas educacionais de grande parte do mundo ocidental. Ainda que as discussões a respeito da inclusão já estivessem acontecendo, em 1994, é que medidas mais palatáveis começam a ser implementadas. Neste ano, acontece em Salamanca, Espanha, uma conferência com a finalidade de discussão e apresentação de propostas com vistas a garantir a inclusão, com a problematização dos aspectos concernentes à escola não acessível para todos. Na Conferência de Salamanca, é estabelecido o compromisso da Educação Para Todos. Nós, os delegados da Conferência Mundial de Educação Especial, representando 88 governos e 25 organizações internacionais em assembleia aqui em Salamanca, Espanha, entre 7 e 10 de junho de 1994, reafirmamos o nosso compromisso para com a Educação para Todos, reconhecendo a necessidade e urgência do www.revistapindorama.ifba.edu.br organizada pela UNESCO 23 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 providenciamento de educação para as crianças, jovens e adultos com necessidades educacionais especiais dentro do sistema regular de ensino e re-endossamos a Estrutura de Ação em Educação Especial, em que, pelo espírito de cujas provisões e recomendações governo e organizações sejam guiados. (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1994). E ainda: Escolas regulares que possuam tal orientação inclusiva constituem os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias criando-se comunidades mais acolhedoras, construindo uma sociedade inclusiva e alcançando educação para todos; além disso, tais escolas proveem uma educação efetiva à maioria das crianças aprimoram a eficiência e, em última instância, o custo da eficácia de todo o sistema educacional. (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1994). Ao observarmos a Declaração de Salamanca, fica claro o compromisso, do qual o Brasil foi signatário, de que as escolas devem receber e prover a educação das pessoas com deficiência, com a devida organização dos sistemas regulares de ensino. A escola é que deve adaptar-se ao aluno e não o inverso. Contrariamente ao movimento mundial que postula a inclusão irrestrita, o Brasil – mesmo tendo assinado a Declaração de Salamanca – publica, em 1994, o documento Política Nacional de Educação Especial. Este documento busca fundamentação no modelo integracionista, com foco no modelo clínico de deficiência. Ao invés de propor a integração com respeito à diferença, o documento segue o paradigma da normalização, em que a pessoa com deficiência deve ser integrada como aluno e seguir o ritmo “normal” dos colegas, regulamenta ainda a Ambiente dito regular de ensino/ aprendizagem, no qual também, são matriculados, em processo de integração instrucional, os portadores de necessidades especiais que possuem condições de acompanhar e desenvolver as atividades curriculares programadas do ensino comum, no mesmo ritmo que os alunos ditos normais. (BRASIL, 1994, p. 19) www.revistapindorama.ifba.edu.br criação de classes especiais . 24 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 Ao manter a forma de organização e classificação dos estudantes, o documento acaba por não incentivar o olhar para a diferença. Assim, alunos com necessidades especiais que não conseguem acompanhar o “mesmo ritmo que os alunos ditos normais” acabam por ficar ainda mais excluídos. A imposição de uma só forma de educar/ensinar não possibilita o pleno desenvolvimento dos alunos. Nesse aspecto, afirmamos que se concretiza o conflito entre o discurso de inclusão e o conservadorismo das práticas escolares que passam a apenas acolher os estudantes com deficiências sem que realmente se criem novas possibilidades de inserção e aprendizagem. É importante, também, explicitarmos que é publicada, em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, conhecida como LEI 9394/96. Nesta lei, o capítulo V é dedicado à questão da inclusão. O Art. 58 apresenta que a educação especial pode ser entendida: “para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educando portador de necessidades especiais”. O artigo 58 da LDB 9394/96, em seu §1º, indica que sempre que houver necessidade haverá um professor especialista para auxiliar o aluno: por exemplo, em uma classe com aluno surdo, ter-se-á um Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras ). Realidade que, mesmo após quase vinte anos de promulgação da lei, é praticamente inexistente na rede pública de ensino. Silva e [...] de um lado, os professores do ensino regular não possuem preparo mínimo para trabalhar com crianças que apresentem deficiências evidentes e, por outro, grande parte dos professores do ensino especial tem muito pouco a contribuir com o trabalho pedagógico desenvolvido no ensino regular, na medida em que têm calcado e construído sua competência nas dificuldades específicas do alunado que atendem. (SILVA e RETONDO, 2008, p. 28) Ainda de acordo com as autoras, o resultado de uma política inclusiva que fica apenas na forma da lei é que muitos alunos com deficiências, mesmo estando em sala de aula, acabam sendo segregados e excluídos, muitas vezes não conseguindo dar continuidade aos estudos. Corroborando tal aspecto, Carneiro (2012) relata que ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 www.revistapindorama.ifba.edu.br Retondo apontam que, 25 o entendimento da proposta de educação inclusiva requer uma análise do modelo anterior com vistas a delimitar o papel da escola no processo de desenvolvimento e aprendizagem do aluno com deficiência. A escola e a classe especial destinadas à educação do deficiente tinham como meta a normalização do sujeito de forma que pudesse se assemelhar o máximo possível com os sujeitos normais, para então, e só então, poderem ser integrados ao convívio comum, nesse caso a escola comum. Essa meta, além de negar a condição de diferença e estabelecer parâmetros homogêneos de desenvolvimento, como se isso fosse possível, descaracterizou o papel da escola. De instituição responsável pela formação das novas gerações, difundindo o conhecimento elaborado pela humanidade ao longo do tempo, passou a ter como foco principal, e na maioria das vezes, único, a modificação do aluno com deficiência através da reabilitação de funções ou da habilitação para o desempenho de funções inexistentes em virtude da deficiência. (CARNEIRO, 2012, p. 82-83) Nesse ponto, é relevante explicitarmos que tanto a LDB 9394/96 quanto a Constituição Federal de 1988 afirmam que a educação é direito de todos e a escola, seguindo a democratização, deve estar aberta para um número cada vez maior de educandos de todas as classes sociais e todas as diferenças, porém o que vemos na realidade é o despreparo das instituições que não estão se adaptando à nova realidade, isto é, enquanto um olhar mais atento não for dedicado ao portador de necessidades especiais e a prática não for repensada, teremos a inclusão que gera exclusão. Nesse sentido, é importante reiterarmos que não basta a escola receber o aluno que apresenta diferenças e tratá-lo como outro aluno qualquer. É preciso que se atente para as diferenças, para que a aprendizagem e o acesso aos bens culturais sejam plenamente realizados. com deficiência, apresentamos, ainda que didaticamente, um breve histórico: Lei nº 10.436/02, que reconhece a Língua de Sinais como meio legal de comunicação e expressão; e a Portaria nº 2.678/02, que aprova a diretriz e normas para o uso, ensino, a produção e a difusão do Sistema Braille em todas as modalidades de ensino. Quanto a políticas públicas, em 2003, o Ministério da Educação cria o Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade, visando a transformar os sistemas de ensino em sistemas educacionais inclusivos. Em 2004, o Ministério Público Federal divulga o documento O Acesso de Alunos com deficiência às www.revistapindorama.ifba.edu.br Ainda com relação à legislação que versa sobre a questão das pessoas 26 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 Escolas e Classes da Rede Regular, com o objetivo de disseminar os conceitos e diretrizes mundiais para a inclusão. Impulsionando a inclusão educacional e social, o Decreto nº 5.296/04 regulamentou as leis nº 10.048/00 e nº 10.098/00, estabelecendo normas e critérios para a promoção da acessibilidade às pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida. Nesse contexto, o Programa Brasil Acessível é implementado com o objetivo de promover e apoiar o desenvolvimento de ações que garantam a acessibilidade. No Decreto nº 5.626/05, que regulamenta a Lei nº 10.436/2002, visando à inclusão dos alunos surdos, é disposto sobre a inclusão da Libras como disciplina curricular, a formação e a certificação de professor, instrutor e tradutor/intérprete de Libras, o ensino da Língua Portuguesa como segunda língua para alunos surdos e a organização da educação bilíngue no ensino regular. Em 2005, com a implantação dos Núcleos de Atividade das Altas Habilidades/Superdotação – NAAH/S em todos os estados e no Distrito Federal, são formados centros de referência para o atendimento educacional especializado aos alunos com altas habilidades/superdotação, a orientação às famílias e a formação continuada aos professores. Nacionalmente, são disseminados referenciais e orientações para organização da política de educação inclusiva nesta área, de forma a garantir esse atendimento aos alunos da rede pública de ensino. Outro ponto de destaque é a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela ONU em 2006, da qual o Brasil é signatário, que estabelece: os Estados Parte devem assegurar um sistema de educação inclusiva em todos os níveis de ensino, em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social compatível com a meta de inclusão plena, adotando medidas educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino fundamental gratuito e compulsório, sob alegação de deficiência e que as pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino fundamental inclusivo, de qualidade e gratuito, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem (Art. 24). Em 2006, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, o Ministério da Educação, o Ministério da Justiça e a UNESCO lançam o Plano Nacional de www.revistapindorama.ifba.edu.br para garantir que as pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema 27 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 Educação em Direitos Humanos que objetiva, dentre as suas ações, fomentar, no currículo da educação básica, as temáticas relativas às pessoas com deficiência e desenvolver ações afirmativas que possibilitem inclusão, acesso e permanência na educação superior. Em 2007, no contexto com o Plano de Aceleração do Crescimento – PAC, é lançado o Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE, reafirmado pela Agenda Social de Inclusão das Pessoas com Deficiência, tendo como eixos a acessibilidade arquitetônica dos prédios escolares, a implantação de salas de recursos e a formação docente para o atendimento educacional especializado. No documento Plano de Desenvolvimento da Educação: razões, princípios e programas, publicado pelo Ministério da Educação, é reafirmada a visão sistêmica da educação que busca superar a oposição entre educação regular e educação especial. Contrariando a concepção sistêmica da transversalidade da educação especial nos diferentes níveis, etapas e modalidades de ensino, a educação não se estruturou na perspectiva da inclusão e do atendimento às necessidades educacionais especiais, limitando o cumprimento do princípio constitucional que prevê a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola e a continuidade nos níveis mais elevados de ensino. O Decreto nº 6.094/2007 estabelece, dentre as diretrizes do Compromisso Todos pela Educação, a garantia do acesso e permanência no ensino regular e o atendimento às necessidades educacionais especiais dos alunos, fortalecendo a inclusão educacional nas escolas públicas. Em 2007, no contexto com o Plano de Aceleração do Crescimento – PAC, é lançado o Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE, reafirmado pela Agenda Social de Inclusão das Pessoas com a implantação de salas de recursos e a formação docente para o atendimento educacional especializado. Em 18 de setembro de 2008, foi publicado o Decreto n. 6.571/08, que dispõe sobre o atendimento educacional especializado, regulamenta o parágrafo único do Art. 60 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e acrescenta dispositivo ao Decreto n. 6.253, de 13 de novembro de 2007. Para finalizar esta seção, é importante citarmos que, segundo a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva: “O atendimento educacional especializado identifica, elabora e organiza recursos www.revistapindorama.ifba.edu.br Deficiência, tendo como eixos a acessibilidade arquitetônica dos prédios escolares, 28 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando as suas necessidades específicas” (BRASIL, 2007, p. 16), ou seja, temos nesta política de inclusão uma grande possibilidade de promover, de fato, ações que deem conta de um atendimento educacional mais especializado, diferenciando-se, segundo o próprio documento, das ações realizadas em sala de aula comum, não se configurando evidentemente como substitutivas à escolarização, mas sim, como modo de complementar e/ou suplementar a formação dos alunos com vistas à autonomia e independência na escola e fora dela. 3. Uma análise de Nell e seu paralelo com a inclusão O filme Nell, lançado em 1995, com direção de Michael Apted e produção de Renee Missel e Jodie Foster, tem como protagonistas Jodie Foster (vencedora do Oscar), Liam Neeson e Natasha Richardson. É um filme distribuído pela Fox Video e tem 115 minutos de duração. Seu enredo trata da história de uma pessoa que viveu isolada junto com sua mãe em uma floresta, distante da cidade e do contato com a zona urbana e mostra a tentativa de civilizar Nell, nas ações do médico e da psicóloga. Após a morte de sua mãe, a personagem Nell passa a viver sozinha. Na sinopse do filme, encontra-se a seguinte questão: Mas será certo civilizar uma pessoa selvagem, sem que ela deseje realmente isso? Conforme a perspectiva adotada para conceituar cultura, pode-se afirmar que Nell não tinha cultura. Isso seria possível, desde que a base fosse etnocêntrica. Em paralelo, observando-se o conceito de cultura sob o viés relativista, pode-se confirmar a A partir dessas noções, traça-se um curioso embate entre o que é cultura e o que não é cultura. Todos os personagens do filme, em princípio, consideram Nell uma selvagem. Nesse sentido, atribuem a ela a não civilização, um comportamento distinto do deles, uma falta de sociabilidade; enfim, os vários requisitos para se viver em sociedade, sob o prisma deles, a personagem não apresentava. Ao se considerar, por exemplo, os rituais que Nell praticava como a maneira como sepultou sua mãe ou a sua ida ao rio à noite para banhar-se ou mesmo o retorno ao local onde sua irmã tinha sido enterrada, não se pode, numa ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 www.revistapindorama.ifba.edu.br cultura de Nell. 29 perspectiva relativista, considerar que ela não possui cultura. Ao contrário, ela, mesmo isolada, mantinha a tradição cultural de seu grupo, qual seja, sua mãe e sua irmã. Quando os personagens Lovell e Paula pensam numa classificação para Nell como deficiente mental, fica patente sua visão de que alguém com comportamento diferente do que se considera normal, pelo seu grupo social, necessita ser classificado como anormal. Entretanto, após uma certa convivência com Nell, tanto o médico quanto à psicóloga percebem que Nell não apresenta qualquer tipo de deficiência, apenas ela teve um locus diferente. Isso produz nos dois personagens um início de percepção deslocada da visão etnocêntrica, o que se traduz, inclusive, num olhar diferente para a própria vida. Considerando-se a convivência entre Nell, Lovell e Paula, compreendemse melhor questões concernentes aos equívocos que muitas sociedades cometem na tentativa de imposição de sua cultura frente à cultura do outro, ou mesmo, de não consideração da cultura diferente. O inicial exotismo verificado pelos personagens deu lugar a um encantamento associado a um desejo de entender melhor aquele universo bastante peculiar que Nell apresentava. Também, provocou no médico e na psicóloga uma imersão para si mesmos, quando eles passaram a vislumbrar as possibilidades diferentes que eles próprios poderiam ter em relação a sua própria vida. Isso foi bastante revelador no filme, já que demonstrou uma possibilidade de, em contato com uma cultura diferente, as pessoas passarem a ter uma noção mais relativa de sua própria cultura. A cena do julgamento, ao final do filme, chama à reflexão desses audiência na qual Nell é julgada) o quanto ela é um ser humano, ainda que tenha vivido em condições diferentes das de todos os presentes à audiência. Ela demonstra todo seu carinho, seu medo, sua angústia, sua vontade, enfim, sem nem mesmo falar a língua que os outros queriam que ela falasse, nesse caso, o inglês. Nesse aspecto, a personagem prova que a linguagem humana é universal, que os sentimentos e tudo o que está em torno deles são universalmente produzidos pelo homem. Isto é, não é pelo fato de Nell ter vivido isolada da pretensa www.revistapindorama.ifba.edu.br aspectos, posto que Nell mostra a todos naquela audiência (no filme, acontece uma 30 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 civilização que ela não teria os mesmos sentimentos que todos os considerados civilizados. Ao contrário, percebe-se nela uma pureza que normalmente não se verifica em pessoas ditas civilizadas. Retornando, mais precisamente, à questão: Mas será certo civilizar uma pessoa selvagem, sem que ela deseje realmente isso?, lançamos, a título de reflexão, alguns aspectos relacionados a isso: Qual seria o conceito de selvagem? Civilizar é, necessariamente, tornar uma pessoa melhor? Com que direito alguém pode mensurar o desejo do outro? Assim como as culturas são distintas, as línguas também o são, então Nell teria de fato uma língua? Dessa forma, não se pode pensar Nell como uma selvagem, mas sim, como uma pessoa que vive uma outra cultura, bastante distinta da nossa, nem por isso melhor ou pior. Além disso, seria bastante hipotético, a priori , tecer qualquer tipo de consideração acerca dos desejos dela, tanto que a convivência dos três os fez adaptar seus comportamentos no sentido de entender melhor uns aos outros. Portanto, pelo menos no filme, constatamos uma convivência pacífica entre Nell e os outros, mostrada na cena final, em que as culturas são respeitadas e não há a imposição de uma das culturas. No entanto, podemos inferir que Nell sofreu mais adaptações à cultura da cidade que o contrário. Nessa perspectiva, em paralelo à educação inclusiva, amparamo-nos no exemplo do filme para mostrar como nossa sociedade pode valer-se de pontos incomuns para “decidir” o que é normal e o que não o é. No caso da inclusão educacional e, por consequência, da inclusão sociocultural, entendemos que a sociedade brasileira ainda apresenta problemas na condução desse processo. inclusiva é a valorização da diversidade e da comunidade humana. Quando a educação inclusiva é totalmente abraçada, nós abandonamos a ideia de que as crianças devem se tornar normais para contribuir para o mundo”. Contudo, utilizar o filme e as reflexões por ele provocadas para pensar a realidade da inclusão de pessoas com deficiência na escola pode parecer um pouco radical, já que, conforme observado, a personagem é alguém que viveu longe da civilização e apresenta comportamento “selvagem” como colocado pelos especialistas que a tratam inicialmente. Porém, se considerarmos que, muitas vezes, www.revistapindorama.ifba.edu.br Como nos esclarece Kunc (1992, p.10), “o principio fundamental da educação 31 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 a inadequação sentida pelas pessoas com deficiência é a mesma sentida por Nell podemos então traçar um paralelo para refletirmos sobre as condições concretas vividas nas escolas. Posto isso, é importante exemplificarmos que, algumas vezes, entrar na escola já é um problema, como mostra reportagem do Diário Catarinense, de 16/04/2013, intitulada “Alunos com deficiências enfrentam dificuldades para estudar em escolas comuns”, em que a dificuldade dos pais de um garoto com Síndrome de Down é observada, ou seja, eles percorreram várias escolas até conseguir uma que aceitasse a matrícula do filho. Ao pensarmos os dados oficiais e olharmos para as situações reais, podemos constatar que há, ainda, um longo caminho para que a educação de todos, incluindo as pessoas com deficiência, seja realmente uma educação para todos. Nesse aspecto, o que deveria ocorrer, como preconizado, por meio da Resolução n.2/2001, que instituiu as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica – “Os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, cabendo às escolas organizar-se para o atendimento aos educandos com necessidades educacionais especiais, assegurando as condições necessárias para a educação de qualidade para todos”, o exemplo mostra que a realidade desse processo inclusivo é bem distinto. Quando pensamos em Nell e em sua trajetória, percebemos que seu desenvolvimento só ocorreu quando do contato mais intenso e próximo com as outras pessoas, a linguagem enquanto produtora de humanidade se fez presente a partir das relações sociais estabelecidas e do reconhecimento de sua diferença. Da mesma maneira, a escola também deve ter um olhar diferenciado para a pessoa procurando, a partir delas, estabelecer novas possibilidades de desenvolvimento. Nesse sentido, as relações entre professor-aluno devem ser um ponto privilegiado: A importância da atuação de outras pessoas no desenvolvimento individual é particularmente evidente em situações em que o aprendizado é um resultado claramente desejável das interações sociais. Na escola, portanto, onde o aprendizado é o próprio objetivo de um processo que pretende conduzir a um determinado tipo de desenvolvimento, a intervenção deliberada é um processo pedagógico privilegiado. Os procedimentos regulares que ocorrem ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 www.revistapindorama.ifba.edu.br com deficiência, não buscando mascarar as diferenças e sim aceitando-as e 32 na escola – demonstração, assistência, fornecimento de pistas, instruções – são fundamentais para a promoção de um ensino capaz de promover o desenvolvimento. A intervenção do professor tem, pois, um papel central na trajetória dos indivíduos que passam pela escola. (OLIVEIRA, 2000, p. 15) Nesse ponto, é imprescindível que mais do que acolher as pessoas com deficiência, a escola deve estar preparada para considerar as deficiências como ponto de partida para uma educação verdadeiramente inclusiva. A escola deve adaptar-se a esses alunos e não o contrário, procurando a concretização da aprendizagem. Nas palavras de Mittler (2003, p. 16), a inclusão não diz respeito a colocar as crianças nas escolas regulares, mas a mudar as escolas para torná-las mais responsivas às necessidades de todas as crianças, diz respeito a ajudar todos os professores a aceitarem a responsabilidade quanto à aprendizagem de todas as crianças que estão atual e correntemente excluídas das escolas por qualquer razão. Isto se refere a todas as crianças que não estão beneficiando-se com a escolarização, e não apenas aquelas que são rotuladas com o termo “necessidades educacionais especiais. (MITTLER, 2003, p. 16) Também, é importante que a escola localize, como indiciam Coll et al Generalizadas: quando estas afetam todas as aprendizagens, seja escolar e não escolar. Graves: são aquelas que acabam por afetar vários e importantes afetos no desenvolvimento da pessoa, os motores, os linguísticos e os conectivos, por exemplo, estes podem ter sido ocasionados por algum dano ou lesão cerebral, adquiridos durante a vida ou durante o desenvolvimento embrionário, ou ainda fruto de algum tipo de alteração genética, estas podem ser classificadas como permanentes, pois o prognóstico a este tipo de dificuldade é muito pouco favorável já que não se pode fazer muita coisa para reverter o dano inicial causado pelo trauma ou má formação na área cerebral. Inespecíficas: quando não afetam o desenvolvimento de modo a impedirem alguma aprendizagem em particular, são as pessoas que se dizem não servir para esta ou aquela aprendizagem em particular, o raciocínio lógico matemático, por exemplo, neste caso não há nenhuma razão intelectual que as justifique, ao contrário a causa pode ser instrucional e/ou ambiental com uma influência especial sobre variáveis pessoais, tais como a motivação. www.revistapindorama.ifba.edu.br (2004), por que tipo de dificuldade se caracteriza o aluno que a ela chega: 33 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 Intermediárias: as caracterizadas como específicas, por afetarem de modo especifico determinadas aprendizagens escolares, como a leitura, a escrita ou a matemática, estas ainda são consideradas leves por não implicar em deterioração intelectual, os aspectos psicológicos afetados são poucos, por exemplo, o desenvolvimento fonológico, ou a atenção sustentada, ou a memória de trabalho, e suas consequências podem ser solucionadas mediante intervenção psicopedagógica oportuna e eficaz. (COLL et al, 2004, p. 42) Como pudemos observar, em Nell, há uma tentativa de civilizar. Cabe, então, uma reflexão: será que a escola, na contemporaneidade, acha que uma pessoa com alguma deficiência precisa ser civilizada? 4. Conclusão Neste artigo, fizemos um paralelo importante entre a inclusão de Nell, personagem-título do filme exibido em 1995, em um grupo sociocultural, e a situação da educação inclusiva, a partir da legislação vigente, no Brasil contemporâneo, sem, evidentemente, traçar um histórico ou mesmo considerar que este espaço dê conta de uma discussão bem atual e ininterrupta como a inclusão escolar. Nesse sentido, entendemos que o espaço para a inclusão reside principalmente no respeito às diferenças em equidade de condução das ações necessárias para o exercício daquilo que se quer e se pode exercer, isto é, a verdadeira inclusão apenas acontecerá quando deixar de ser uma obrigatoriedade legal e passar a ser uma prática da e na sociedade, fazendo parte disso, efetivamente, a escola enquanto instituição formadora. prazo que precisa ocupar seu espaço nas escolas, para impulsioná-la como instituição em uma direção de se reorganizar como local possibilitar de aquisição de conhecimentos para todos. Ao mesmo tempo, esta escola não poderá prescindir de se diversificar para que possa ampliar as oportunidades de aprendizagem dos alunos. Para finalizar, citamos Morin: www.revistapindorama.ifba.edu.br Rosseto (2005) ressalta que a inclusão consiste em um programa a longo 34 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 Cabe à educação do futuro cuidar para que a ideia de unidade da espécie humana não apague a ideia de diversidade, e que a da sua diversidade não apague a da unidade. Há uma unidade humana. Há uma diversidade humana. A unidade não está apenas nos traços biológicos da espécie homo sapiens. A diversidade não está apenas nos traços psicológicos, culturais, sociais do ser humano. Existe também diversidade propriamente biológica no seio da unidade humana; não apenas existe unidade cerebral, mas mental, psíquica, afetiva, intelectual; além disso, as mais diversas culturas e sociedades têm princípios geradores ou organizacionais comuns. É a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades. Compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno. (MORIN, 2011, p. 4950) Nell: an analysis based on an educational and sociocultural view of inclusion ABSTRACT This article is about inclusive education in Brazil according to the perspective of the movie Nell. It shows some considerations on the legislation regarding social inclusion, as stated in education, the view of treats and laws which protect social inclusion and an analysis of the movie Nell, based on which we establish a parallel with inclusive education. This study aims to show possible ways to think sociocultural and educational inclusion by observing peculiarities of people with some degree of disorder. It is grounded on concepts of inclusive education discussed by Báfica (2012), Cardoso (2003), Mantoan (2006) among others. Its methodology follows a character mentioned in the title. It is concluded that, order to conduct inclusive education in Brasil, we still need to ensure that the law is obeyed and that every person with any physical or mental disorder have access to sociocultural and educational development. KEYWORDS: Education. School. Inclusion. Culture. www.revistapindorama.ifba.edu.br view about the effective legislation regarding the theme and its relationship with the 35 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 Referências ARANHA, M. S. F. Paradigmas das relação da sociedade com as pessoas com deficiência. Revista do Ministério Público do Trabalho, Ano XI, no. 21, março, 2001, p. 160-173 BÁFICA, A. P. S. Educação inclusiva: uma análise sobre inclusão escolar. Revista Espaço Acadêmico. n. 128, jan.2012. Ano XI. BRASIL. Lei n. 9.394 de 20 de Dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da Educação Nacional. Lex: Diário Oficial da União, de 23 de dezembro de 1996. BRASIL, Resolução n.2/2001. 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Reenviado em 13 de novembro de 2015. 37 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 21-37 A educação musical e o ensino integrado no Instituto Federal da Bahia Marcos de Souza Ferreira7 Luiz César Marques Magalhães8 ___________________________________________________________________________ RESUMO O presente artigo apresenta uma perspectiva da trajetória do IFBA desde a sua criação, em 1910, até a promulgação da lei 11.892/2008, que cria a Rede Federal de Educação Profissional. Em paralelo com a história da educação no Brasil, busca-se (a) contrapor o ensino propedêutico com a educação para o trabalho, e (b) analisar a criação do Ensino Integrado, sendo este um modelo que propõe a execução do Ensino Médio e Ensino Técnico integrados num único currículo. Apresenta ainda um panorama do ensino do componente curricular Arte no IFBA, com objetivo de entender a presença/ausência do ensino de música na Instituição. Palavras-chave: Ensino Integrado. Educação Musical. Instituto Federal da Bahia. . 7 Mestre em Educação Musical. Professor do Instituto Federal da Bahia (IFBA campus Vitória da Conquista). Doutorando em Educação Musical na UFBA. E-mail: [email protected] 8 Doutor em Etnomusicologia. Professor da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected] INTRODUÇÃO A Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, presente em todos os estados da Federação, tem entre seus objetivos ministrar educação profissional técnica de nível médio para os egressos do Ensino Fundamental, nas modalidades Integrada e PROEJA. Considerando que os Institutos Federais devem garantir 50% de suas vagas para a Educação Básica, tornam-se os principais executores da proposta contemporânea, criada em 2004, para que a formação profissional técnica de nível médio e as disciplinas propedêuticas do Ensino Médio passem a ser ofertadas de forma integradas. O § 1o do Decreto 5.154 da criação deste curso salienta que o mesmo deve “conduzir o aluno à habilitação profissional técnica de nível médio, na mesma instituição de ensino, contando com matrícula única para cada aluno” (BRASIL, 2004). O presente artigo analisa a criação dos cursos integrados no Brasil partindo da dualidade entre ensino profissionalizante, que visava a formação exclusiva para o trabalho, e o ensino médio, que objetivava a preparação para continuidade dos estudos no nível superior. Tomaremos como objeto de estudo o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), examinando sua trajetória em paralelo com fatos marcantes da história da educação profissional no Brasil. A análise do panorama do ensino de música no IFBA visa entender como a educação musical se insere neste contexto contemporâneo de educação, bem como avaliar a presença/ausência da linguagem musical no componente curricular 1. A TRAJETÓRIA DO IFBA E A DUALIDADE ESTRUTURAL ENTRE ENSINO MÉDIO E ENSINO TÉCNICO PROFISSIONAL Trabalho manual para índios e escravos, trabalho livre e intelectual para as elites; escola acadêmica para poucos e educação profissional para os trabalhadores. Com base nessa realidade, Grabowski conceitua a dualidade estrutural que legitima a desigualdade educacional do Brasil e define nossa própria www.revistapindorama.ifba.edu.br Arte. 39 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 história de desenvolvimento social, econômico e cultural. “Se persistirmos na dualidade histórica, ensino profissional para quem vive do trabalho e ensino propedêutico (acadêmico, clássico) para dirigentes, além de antiético e injusto, não desenvolveremos uma nação soberana e autodeterminada” (GRABOWSKI, 2006, p. 6). Segundo Nascimento (2007) a educação profissional no Brasil, que se consolida no início do século XX, deu seus primeiros passos, fora do ambiente militar, entre 1840 a 1865, com a criação das casas de educandos artífices. Para Grabowski (2006, p.7) “desde a primeira iniciativa estatal, em 1909, com a criação das 19 escolas técnicas, sempre existiram duas redes, uma profissional e outra de educação geral, visando reproduzir e atender a divisão social e técnica do trabalho”. A trajetória do IFBA remete a diferentes nomenclaturas. Inicia-se como Escola de Aprendizes Artífices, em 1910, na capital baiana. Segundo Lessa (2002, p. 13) “sua missão estava centrada na preparação profissional dos excluídos da sociedade, dos desvalidos e operários artífices”. A partir de 1926 a escola passa a funcionar em prédio próprio, localizado no bairro Barbalho, hoje, campus Salvador. Dentre as conquistas daquele ano, destaca-se o aparelhamento das oficinas com máquinas e ferramentas novas, “criando ao mesmo tempo uma banda de música”. (LESSA, 2002, p.17). De 1937 a 1942 a escola recebeu a denominação de Liceu Industrial de Salvador e em 1942, passa a chamar-se Escola Técnica de Salvador. Sua relação com as demandas das indústrias é percebida no documento enviado, em 1946, pelo As escolas técnicas existem para as indústrias; para atender às suas necessidades de mão de obra especializada. (...) A escola técnica e a indústria não devem viver divorciadas. (...) Faço um apelo aos Srs. Industriais para que orientem a Escola Técnica de Salvador, em seu plano de trabalho, a fim de que os cursos noturnos a serem instalados sejam uma expressão dessas necessidades. (LESSA, 2002, p. 32). www.revistapindorama.ifba.edu.br então diretor da escola para os industriais baianos: 40 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 O ano de 1942 foi marcado pela implementação de Leis Orgânicas de ensino, pela Reforma Capanema e pela criação dos cursos médios de 2º ciclo (científico ou clássico), com duração de três anos. Para os trabalhadores instrumentais era destinada a formação de nível médio de 2º ciclo profissionalizante: agrotécnico, comercial técnico, industrial técnico e o curso normal de formação de professores para o magistério. Kuenzer sintetiza a dualidade estrutural que se solidifica com a reforma Capanema: O desenvolvimento histórico dessas redes vai mostrar que a iniciativa estatal, primeiro, criou escolas profissionais, no início do século XX, para só nos anos 40 criar o Ensino Médio. A partir de então, essas redes sempre estiveram de alguma forma (des)articuladas, uma vez que a dualidade estrutural sempre responde às demandas de inclusão/exclusão (apud GRABOWSKI, 2006, p. 7). Esse modelo educacional baseava-se nas formas tayloristas/fordistas de organização capitalista do trabalho no século XX. Em contra partida, a proposta pedagógica das escolas destinadas ao ensino propedêutico priorizava a formação de hábitos de estudo, disciplina, modos padronizados de comportamento social e enfoque na formação de futuros dirigentes. Pode-se presumir que as discussões e debates que levaram a criação da Lei Orgânica do Ensino Industrial, bem como a reforma Capanema de 1942, foram iniciadas nos anos 30, marcados pelo manifesto dos pioneiros da educação liderados por personalidades do porte de Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e educação profissional ao sistema regular de ensino. Embora a incorporação tenha ocorrido a partir de 1942, a equivalência entre os diversos ramos de ensino foi oficializada em 1961 com a LDB 4.024, assegurando a todos os estudantes a continuidade dos estudos e o acesso ao vestibular (KUENZER, 2012). A formação de nível médio profissionalizante passou a disponibilizar conhecimento propedêutico à classe trabalhadora, contudo o conhecimento tecnológico de ponta, mesmo vinculado ao mercado de trabalho, somente seria www.revistapindorama.ifba.edu.br Lourenço Filho, que pregavam a criação de uma escola única, que incorporasse a 41 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 adquirido na formação de nível superior. Nesse sentido a escola continuaria a determinar o lugar que o aluno ocuparia na divisão de trabalho. A LDB 4.024 de 1961, não faz referência ao ensino de música. Só uma década depois ela será alterada pela Lei 5.692 que cria a disciplina Educação Artística, propondo que todas as linguagens artísticas fossem trabalhadas em conjunto. Com a implementação dessa disciplina, surge a figura do professor polivalente, consequentemente o ensino de música torna-se cada vez menos presente na Educação Básica. As escolas profissionalizantes tornaram-se federais em 1965 e passaram a ser identificadas com o nome de seus respectivos estados. A Escola Técnica Federal da Bahia gradativamente passa a ser referência para a inserção no mundo do trabalho. A Lei 5.692 de 1971 foi concebida em decorrência das reformas políticas de 1964, adequando o sistema educativo ao modelo desenvolvimentista vigente. Para implantar as reformas o governo passou a receber ajuda dos EUA por meio dos acordos MEC (Ministério da Educação e Cultura) e AID (Agency for International Development), que visava “contrato, por dois anos, dos assessores norteamericanos para o aperfeiçoamento do ensino primário, para o ensino médio e, ainda, para o ensino superior” (PINA, 2011, p. 80-81). No bojo de uma ditadura militar e da proclamação do milagre brasileiro, a proposta da Lei 5.692/71, de profissionalização compulsória, tornando toda a escola média em ensino profissionalizante, coaduna-se com as propostas políticas instauradas, de preparação de mão de obra para o trabalho. Na prática, o que se viu foi a confirmação da dualidade estrutural, pois as escolas particulares continuavam a Somente em 1982, a Lei 7.044 passou a permitir a oferta do Ensino Médio exclusivamente propedêutico. Por meio da Lei 8.711, de 1993, a escola técnica torna-se Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia (CEFET-BA), quando a instituição se expande para outras áreas do estado, com a criação das unidades de Barreiras, Valença, Vitória da Conquista e Eunápolis. www.revistapindorama.ifba.edu.br manter o Ensino Médio preparando para o vestibular, burlando a proposta da Lei. 42 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 Em consonância com a LDB 9.394/96 o CEFET-BA passa a ofertar o Ensino Médio, em três anos, com foco na formação propedêutica, e o Ensino Profissional Técnico, em dois anos, na modalidade subsequente ao Ensino Médio. Os estudantes que procuravam esses cursos subsequentes eram em sua maioria oriundos de outras instituições de ensino e já inseridos no mercado de trabalho. Considerando o nível de dificuldade do exame de seleção, a maioria dos estudantes admitidos no Ensino Médio do então CEFET-BA era egressa da rede privada de ensino. Estes posteriormente tornavam-se candidatos em potencial às universidades públicas, incluindo os cursos superiores ofertados na própria instituição. Delineavase o perfil de uma escola pública que oferecia Ensino Médio propedêutico de qualidade e gratuito, destinado a uma elite. Assim sendo, a Lei 9.394/96 reafirmou a existente dualidade estrutural. A disciplina Arte, como componente obrigatório nos currículos e não mais Educação Artística, é proposta na LDB 9.394/96. Os PCNs, que seguem a promulgação da Lei, regulamentam que o ensino de Arte pode ser entendido como ensino específico de uma das linguagens artísticas: Artes Visuais, Dança, Música ou Teatro. Assim, em termos legais, a polivalência está extinta, mas, na prática, ela ainda não deixou de existir. 2. A INTEGRAÇÃO ENTRE O ENSINO MÉDIO E ENSINO TÉCNICO PROFISSIONAL Com o processo de globalização da economia e mudanças no mundo do perder o domínio. Surgem novos paradigmas, dentre eles o toyotismo, um sistema de organização e gestão do trabalho, criado pelo japonês Taiichi Ohno e aplicado inicialmente na fábrica da Toyota. Torna-se conhecido e adotado em várias partes do mundo a partir da década de 1960. Nesse modelo, a linha de montagem foi substituída por células de produção, com a qualidade controlada pela própria equipe de trabalho. Qualidade e competitividade passam a ser as novas palavras de ordem, exigindo-se um novo perfil do trabalhador (GRABOWSKI, 2006). www.revistapindorama.ifba.edu.br trabalho, as formas de produção e organização tayloristas-fordistas começam a 43 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 Segundo Kuenzer, este novo perfil de trabalhador desencadeia uma reforma da educação básica e profissional, com base na premissa de que deste novo trabalhador se requer: capacidade de comunicar-se corretamente, com domínio dos códigos e linguagens, incorporando, além do domínio da língua nacional, a língua estrangeira e as novas formas trazidas pela semiótica; autonomia intelectual, capaz de resolver problemas práticos gerados pelas novas tecnologias e ciências; autonomia moral, enfrentando novas situações eticamente e, principalmente, capacidade de comprometer-se com o trabalho, entendido em sua forma mais complexa e honrosa de construção do próprio trabalhador, do homem e da sociedade (apud GRABOWSKI, 2006, p. 8). Evidentemente a dualidade estrutural apresentada é característica das sociedades capitalistas. Todavia, a participação dos trabalhadores na política de democratização de acesso à educação, articulada com setores progressistas da sociedade que acreditavam na transformação da dualidade, passam a exigir do estado novas políticas públicas. Assim, torna-se possível uma concepção de educação que articule formação científica e sócio histórica à formação tecnológica, criando o Ensino Médio e Ensino Técnico Integrados em um único currículo (Kuenzer apud GRABOWSKI, 2006). Constante do Decreto 5.154/04 e da Lei 11.741/08, o ensino integrado não se propõe ao ajuntamento de disciplinas propedêuticas e técnicas; também não Grabowski (2006), um conjunto de categorias e práticas educativas no espaço escolar que desenvolvam a formação integral do sujeito trabalhador, promovendo articulação e integração orgânica entre trabalho, como princípio educativo; ciência, como criação e recriação pela humanidade de sua natureza; e cultura, como síntese de toda produção e relação dos seres humanos com seu meio. Conhecimentos que eram apropriados pelos estudantes interessados no acesso ao ensino superior, passam a compor o conjunto de características importantes, e por vezes principais, do novo perfil do trabalhador. “Por razões ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 www.revistapindorama.ifba.edu.br seria prática pedagógica interdisciplinar ou transdisciplinar. Implica, segundo 44 didáticas, se divide e se separa o que está unido. Por razões didáticas, também se pode buscar a recomposição do todo” (MACHADO, 2006, p. 53). A elaboração do currículo dos cursos integrados deve conter propostas pedagógicas que, segundo Machado (2006, p. 52), “tenham como eixo, a abordagem relacional de conteúdos tipificados estruturalmente como diferentes, considerando que esta diferenciação não pode, a rigor, ser tomada como absoluta ainda que haja especificidades que devam ser reconhecidas”. Uma resposta adequada ao se questionar o que integrar seria: integrar finalidades e objetivos. A dualidade estrutural da antiga escola, que hierarquizava o conhecimento, não deve existir num currículo integrado. Uma nova postura é exigida tanto dos professores como dos estudantes. Quando os objetivos pretendidos, tanto para a formação propedêutica como para a do trabalhador, estiverem amalgamados, as estratégias bem sucedidas de ensino-aprendizagem poderão ocorrer. 3. A EDUCAÇÃO MUSICAL NO ENSINO INTEGRADO DO IFBA A Lei 11.892/2008 criou a Rede Federal de Educação Profissional, e transformou o antigo CEFET-BA em Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia, o IFBA, com seus dezesseis campi e cinco núcleos avançados. Na grade curricular em vigor, o ensino de música está presente somente como uma das linguagens do componente curricular Arte, oferecida para os estudantes do 1º ano dos cursos Integrado e PROEJA. Para levantamento de dados desta pesquisa foram entrevistados entrevista porque os dados necessários já estavam de posse dos autores. Observa-se na tabela 1 que dos dezesseis campi, onze ministram exclusivamente aulas de Artes Visuais; dois ministram exclusivamente aulas de Música; em um campus ministram-se aulas de Artes Visuais e Teatro; somente em um campus são ministradas aulas das quatro linguagens (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro) e um dos campi não tem professor de Arte. www.revistapindorama.ifba.edu.br Diretores de Ensino de 15 campi. O campus Vitória da Conquista foi excluído da 45 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 O ensino de Arte está presente também no PROEJA, que é Ensino Médio Integrado ao Ensino Técnico na modalidade de Educação para Jovens e Adultos, curso noturno com duração de três anos, destinado a maiores de 18 anos. Somando o número de estudantes do Integrado e do PROEJA, em 2013, 2.290 novos estudantes ingressaram na Educação Básica do IFBA. Destes, somente 795 estudantes tiveram aulas de música, conforme mostra a tabela 1. Nome do Campus Linguagem ministrada no componente curricular Arte Estudantes Estudant do es do Integrado PROEJA ingressos ingressos em 2013 em 2013 80 Barreiras Artes Visuais 240 Camaçari Artes Visuais 80 Eunápolis Artes Visuais 150 Feira de Artes Visuais 140 Ilhéus Nenhuma 120 Irecê Artes Visuais 50 Jacobina Artes Visuais 120 Jequié Artes Visuais 70 Paulo Afonso Artes Visuais 90 Porto Seguro Artes Visuais 90 Salvador Artes Visuais, Dança, 405 60 50 Santana Santo Amaro Música 100 Seabra Artes Visuais 70 Simões Filho Artes Visuais e Teatro 90 Valença Artes Visuais 105 Vit. Conquista Música 140 40 2.060 230 Total Total com 795 aulas de música www.revistapindorama.ifba.edu.br Música, Teatro 46 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 Nome do Campus Linguagem ministrada no componente curricular Arte Estudantes Estudant do es do Integrado PROEJA ingressos ingressos em 2013 em 2013 Total Geral 2.290 Tabela 1. Número de estudantes ingressos na Educação Básica do IFBA em 2013 e a distribuição das linguagens da Arte por eles estudadas. Casualmente o PROEJA é oferecido em três campi que ministram aulas de música. Logo, o quantitativo de estudantes com acesso a linguagem musical poderia ser ainda mais reduzido, se a oferta do PROEJA ocorresse em outros campi. Observe-se ainda que os 120 novos estudantes que ingressaram no campus Ilhéus não tiveram contato com nenhuma linguagem artística. Em suma, o ensino de música aparece como uma das linguagens artísticas do componente curricular Arte somente em 18,75% do IFBA, conforme pode ser observado na figura 1. 18,75 Música Outras linguagens da Arte Figura 1. Percentual do ensino de música no âmbito do IFBA Indagamos aos Diretores de Ensino qual teria sido a razão para escolha da linguagem artística que é trabalhada no campus. A figura 2 apresenta as respostas. www.revistapindorama.ifba.edu.br 81,25 47 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 Figura 2. Razão para escolha da linguagem artística praticada nos campi. Como as respostas apontavam à necessidade de uma investigação sobre as decisões tomadas no âmbito da Reitoria, analisou-se primeiramente os dois últimos editais dos Concursos para Professor do Magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico com vagas para Arte. O último deles, Nº 06, de 11 de novembro de 2011, ofereceu vagas para quatro campi, com carga horária de 40 horas. Considerando que o referido concurso ocorreu três anos após a promulgação da Lei 11.769, que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino de música na Educação Básica, chamou à atenção a formação acadêmica exigida no edital para o exercício do cargo: Licenciatura Plena em Educação Artística, Bacharelado em Educação Artística, Bacharelado em Artes Plásticas ou Licenciatura em Desenho e Plástica. Se o exposto não define a entrada exclusiva de professores de Arte Visuais, certamente dificulta a entrada de professores de Música. Logo, a professores de Arte com formação em Artes Visuais. Ressalta-se ainda que dos dez pontos estipulados para sorteio da prova escrita e didática somente um faz referência direta à linguagem musical. Quinze anos após a promulgação da LDB 9.394, que extingue a Educação Artística dos currículos escolares, ainda se vê tão latente os efeitos da Lei 5.692 de 1971. Indagada sobre os critérios utilizados pela Reitoria para seleção dos professores de Arte, a resposta da pró-reitora de ensino confirma uma visão ainda com reflexos da Lei de 5.692/71, que criou a figura do professor polivalente: www.revistapindorama.ifba.edu.br análise deste documento facilitou a compreensão de termos no IFBA 81,25% dos 48 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 Abre-se concurso de generalista para área de Arte. Se o campus é novo o professor vem como generalista e a linguagem que ele trouxer será dominante, embora haja uma solicitação de que o professor aborde várias linguagens com os estudantes dentro do possível, mas é obvio que irá especializar-se naquela linguagem que se domina mais.9 No campus Salvador os estudantes têm aulas das quatro linguagens artísticas, sendo cada uma delas trabalhada durante uma unidade de estudos, em torno de dois meses para cada linguagem. A banda de música criada em 1926 naquele campus, esteve em destaque durante muitos anos, entretanto não está mais em atividade. É importante relatar que desde 2005, na primeira aula de cada ano letivo, no campus Vitória da Conquista, indagamos aos estudantes sobre a existência de alguma experiência com o fazer musical na escola durante o Ensino Fundamental. As primeiras respostas afirmativas à pergunta começaram a surgir somente no início do ano letivo de 2013. Acreditamos que essa mudança pode ser reflexo da aplicabilidade da Lei 11.769 de 2008. Fica evidente que para a maioria dos estudantes que ingressam no IFBA, a expectativa de contato com a linguagem musical estaria reservada à passagem por uma instituição federal. Assim sendo, torna-se desanimador constatar que tão poucos estudantes no âmbito geral do IFBA tenham atualmente acesso à linguagem musical. A análise do perfil do ensino de música no IFBA traz à tona uma questão Sergio Figueiredo, presidente da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM), de 2007 a 2009, período em que a Lei 11.769/08 tramitou no congresso, sintetiza as proposições que geraram todo movimento construído por músicos, educadores musicais, pedagogos e parlamentares e que culminaram na aprovação da referida Lei: 9 Entrevista com a Pró-Reitora de Ensino do IFBA, Profa. Lívia Santos Simões, em 28 de janeiro de 2014. ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 www.revistapindorama.ifba.edu.br reflexiva: qual a razão da aprendizagem de música na escola? 49 O acesso à educação musical é parte integrante da formação do indivíduo. A música pertence ao tecido social e praticamente todos são envolvidos de uma forma ou de outra com esta manifestação. Sendo assim, compreender e vivenciar experiências musicais na escola amplia a formação do cidadão na medida em que se oferecem, neste processo escolar, oportunidades múltiplas, democraticamente, para todos (apud SANTOS, 2012, p. 208). Qual seria então a relevância que o ensino de música oportuniza à formação do indivíduo? Questionado sobre que conhecimento vale mais a pena que os estudantes de música aprendam, David Elliott é categórico: “Musicalidade. Que é a chave para alcançar os valores, objetivos e metas da educação musical” (1995, p. 259). O mesmo autor defende ainda que a musicalidade se desenvolve progressivamente na busca de soluções de problemas musicais, que não são encontrados na prática musical pela prática e sim em ambientes de ensinoaprendizagem. É consenso que duas aulas de música semanais durante um ano escolar, como ocorre no campus Vitória da Conquista; ou durante uma unidade escolar, prática vigente no campus Salvador, não são suficientes para proporcionar ao estudante oportunidades de desenvolver uma musicalidade adequada. Talvez por essa razão em ambos campi são oferecidas atividades musicais extra curriculares que podem ser frequentadas pelos estudantes durante os quatro anos do Ensino Integrado. A ampliação das práticas musicais está em consonância com a dão conta de levar o estudante para o aprofundamento que ele deseja. Ela ainda lamentou que para fugir do grande peso que recai sobre as disciplinas técnicas, em algum momento foi dada ênfase às disciplinas de humanas, em detrimento das linguagens da Arte. Para ela “há a necessidade de uma revisão nas matrizes curriculares do Instituto”10. 10 Entrevista com a Pró-Reitora de Ensino do IFBA, Profa. Lívia Santos Simões, em 28 de janeiro de 2014. ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 www.revistapindorama.ifba.edu.br percepção da pró-reitora de que duas aulas semanais durante um ano escolar não 50 CONCLUSÃO O presente trabalho constata que a dualidade estrutural existente ao contrapor educação para o trabalho e o ensino propedêutico, foi percebida como uma das características marcantes na trajetória do IFBA ao longo de um século. Entretanto, a mesma instituição torna-se palco principal da execução de um projeto de educação que tem entre seus objetivos a formação integral do sujeito trabalhador. Não permitir a continuidade da antiga dualidade estrutural torna-se então a característica mais importante a ser destacada no projeto do Ensino Integrado. Este estudo mostrou também que a cultura, categoria fundamental na formação do estudante, precisa estar presente na elaboração dos currículos dos cursos integrados, como síntese das relações dos seres humanos com seu meio; sendo esta uma categoria a ser adquirida em práticas educativas no espaço escolar. Os saberes musicais desenvolvidos nas práticas de ensino-aprendizagem dos cursos integrados do IFBA apresentam resultados na formação cultural dos jovens e apontam para uma outra característica: a profissionalização em música. Os três estudantes egressos do campus Vitória da Conquista encaminhados para cursos superiores de música, adquiriram no espaço da escola a formação musical suficiente para aprovação nos exames vestibulares. Na continuidade desta pesquisa investigaremos mais detalhadamente a prática musical nos campi Salvador e Santo Amaro e esperamos que os resultados a ampliação desse espaço de saber artístico no âmbito da instituição. www.revistapindorama.ifba.edu.br desencadeiem um novo olhar sobre o ensino de música, desta forma possibilitando 51 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 ABSTRAT In parallel with the history of education in Brazil, this article presents a perspective of the trajectory of IFBA’s history since its beginning, in 1910, until the enactment of the law 11.892/2008, which established the Federal Network of Vocational Education. The study focuses on two main points: (a) a contrast between the traditional more general preparatory school educations with the education specifically designed to prepare students for the work place; (b) an analysis of the creation of the Integrated Education, a model which advocates the idea that both Secondary and Technical Education should be combined into a single curriculum. It also presents an overview of the Creative Arts in IFBA’s curriculum, in order to understand the presence/absence of the teaching of Music in this institution. Key-words: Music education. Integrated education. Federal Institute of Bahia. REFERÊNCIAS BRASIL. Decreto 2.208 de 17 de abril de 1997. Regulamenta o § 2º do art. 36 e os artigos 39 a 42 da Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e dá outras providências. Disponível em http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/dec2208.pdf. Acesso em 24 de fevereiro de 2014. BRASIL. Lei 11.769, de 18 de agosto de 2008. Altera a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica. BRASIL. Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008. Institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, e dá outras providências. CARNEIRO, Moaci Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva, artigo a artigo. 21 ed. Petrópolis: Vozes, 2013. www.revistapindorama.ifba.edu.br BRASIL. Decreto 5.154 de 23 de julho de 2004. Regulamenta o § 2º do art. 36 e os artigos 39 a 41 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5154.htm. Acesso em 17 de janeiro de 2014. 52 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 ELLIOTT, David J. 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Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2011. SANTOS, Regina Marcia Simão (org.). Música, Cultura e Educação: os múltiplos espaços de educação musical. 2ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2012. SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3ª ed. Campinas: Autores Associados, 2011. www.revistapindorama.ifba.edu.br Recebido em 30 de junho de 2014 53 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 38-53 Estratégias de leitura empregadas para compreensão da língua inglesa por restauradores aeronáuticos brasileiros Natalia Cristina de Mendonça Spera11 Daniela Terenzi12 ___________________________________________________________________________ RESUMO O presente artigo apresenta uma perspectiva da trajetória do O conhecimento do inglês, na aeronáutica, é fundamental, pois a comunicação global entre suas áreas é feita por meio dessa língua. Na tentativa de correção de falhas na interlocução, a Organização Internacional da Aviação Civil (ICAO, em inglês) definiu, em 2008, obrigatória a proficiência para controladores de tráfego aéreo e tripulações em forma de testes globais visando uma harmonização da língua (ICAO, 2010, p. vii). Porém, ainda hoje, não é exigida proficiência para mecânicos aeronáuticos, apesar da frequência do uso de manuais de instruções em inglês por esses profissionais durante suas tarefas diárias e da probabilidade de erros devido à interpretação equivocada. Em razão disso, é de extrema relevância investigar questões relacionadas à compreensão desses textos por tais profissionais. Este artigo apresenta os 11 Mestranda em Ciência e Engenharia de Materiais pela EESC-USP, São Carlos - SP, Brasil. Graduada em Tecnologia em Manutenção de Aeronaves pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), Campus São Carlos - SP, Brasil. 12 Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), Campus São Carlos - SP, Brasil. Doutora em Linguística pela UFSCar, São Carlos - SP, Brasil. resultados de um Trabalho de Conclusão de Curso, o qual analisou como restauradores de aeronaves, com diferentes perfis, utilizam as estratégias de leitura para compreensão de manuais e publicações em inglês. Para isso, os participantes foram solicitados a ler dois tipos de textos usados na manutenção de aeronaves, um cujo tema lhes era familiar e outro com tema diferente considerando sua área de atuação, e foram questionados em relação às estratégias utilizadas para compreensão de tais textos. Com o resultado, pudemos observar que o tempo de experiência na aviação e as oportunidades de estudo da língua inglesa influenciam no momento da leitura. Palavras-chave: Inglês para Aviação. Manutenção de Aeronaves. Manuais de Manutenção de Aeronaves. Restauradores Aeronáuticos. Estratégias de Leitura. Introdução Sempre existiu a necessidade de uma "língua franca13" para que fosse estabelecida a comunicação entre povos de diferentes culturas. Há registros de que no Império Romano e no milênio seguinte essa língua era a grega no oriente e o latim no ocidente, posteriormente o português na África e Ásia, o francês na Europa, e o árabe se estabeleceu na África, Ásia e partes da Oceania e da Europa, no século VII (BORTOLETTO, 2014). No período de guerras, o conhecimento do vocabulário naval, de aviação e dos campos de batalha da língua do adversário era considerado uma questão de vida ou morte (QUEIROZ, 2010). Hoje, essa língua global no mundo dos negócios e na diplomacia é o inglês, sendo uma das línguas No contexto da aviação civil, isto não é uma exceção. A relação entre língua e aeronáutica começa com as primeiras tentativas do homem de voar e se estreita ao longo de guerras e viagens ao espaço (BOCORNY, 2011, p.964). No início, o francês era o idioma principal considerando a linguagem da aviação. Porém, essa "hegemonia se dilui à medida que outros países, como a 13 Segundo Bortoletto (2010), "língua franca" é uma expressão latina para expressar uma língua comum utilizada para o comércio internacional e outras interações mais extensas. www.revistapindorama.ifba.edu.br mais faladas no mundo. 55 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 Alemanha, a Inglaterra e os Estados Unidos, assumem seu papel como grandes potências no cenário mundial" (BOCORNY, 2011, p.965). Aos poucos, a língua inglesa assume como o idioma da área, não só no treinamento de pilotos, comunicação entre esses e as torres de comando, mas também na realização e documentação da manutenção de aeronaves. A execução errada de uma atividade ou de um procedimento devido a problemas de comunicação ou à compreensão equivocada de instruções é um problema gravíssimo e ainda recorrente na manutenção. Visão essa que corrobora com as palavras de Azevedo (2009). A necessidade de uso da língua inglesa dentro do contexto de aviação civil mostrou-se clara e incisiva. Problemas gerados por falhas na comunicação podem comprometer a segurança aérea, e muitos acidentes no passado tiveram como agravantes o uso ineficiente, ou o não uso, do inglês. (AZEVEDO, 2009, p.34) A Organização Internacional da Aviação Civil (ICAO, em inglês) desde 1998 aplica tentativas para correção dessas falhas na comunicação. Nesse ano, impôs aos Estados a capacitação de seus controladores de tráfego aéreo e tripulações envolvidas nas operações de voo em que seria necessária a utilização do idioma inglês, para que conduzissem e compreendessem as comunicações de radiotelefonia no idioma. Dez anos mais tarde (em 2008), definiu como obrigatória a proficiência para esses profissionais em forma de testes globais para harmonização da língua (ICAO, 2010, p. vii). Porém, na área da manutenção de aeronaves, seu requisito para ocupação de cargos fica à opção da empresa que está contratando. Os candidatos que possuem níveis avançados de inglês ou o curso de inglês Zuppardo (2013) descreve, em seu estudo sobre manuais aeronáuticos, a deficiência do sistema sobre a exigência da língua inglesa para os mecânicos e apresenta dados da Federal Aviation Administration (FAA), entidade governamental responsável pelos regulamentos e todos os aspectos da aviação civil nos Estados Unidos, que afirmam que os técnicos de manutenção de aeronaves passam de 25 a 40% do tempo de serviço buscando, usando ou documentando informações escritas, o que nos leva refletir sobre a importância da compreensão do inglês nessa área. A www.revistapindorama.ifba.edu.br instrumental têm vantagem nos processos seletivos (TERENZI, 2014). 56 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 partir disso, concluímos que um conhecimento mais aprimorado da língua inglesa poderia acelerar as tarefas de manutenção e, até mesmo, influenciaria em seu cumprimento adequado. De acordo com Chaparro et al. (2002), a causa dos maiores erros na manutenção é a interpretação errônea de manuais. Foi constado que 64% dos técnicos relatam utilizar seus próprios meios para executar os procedimentos de manutenção (CARO et al., 2001; CHAPARRO et al., 2002). Tais técnicos enxergam a necessidade do conhecimento da língua, porém se adaptam com o pouco que sabem e com a experiência que possuem para a realização das atividades. Levando em consideração a frequência do uso e a probabilidade de erros devido à interpretação equivocada dos manuais de instruções, é de extrema relevância investigar questões relacionadas à compreensão de textos escritos na área aeronáutica. Considerando que a utilização da língua inglesa no contexto apresentado possui um propósito específico, ou seja, a utilização pelos mecânicos aeronáuticos para compreensão das instruções a fim de se realizar a manutenção/restauração, podemos afirmar que esse uso da língua está relacionado ao inglês instrumental ou inglês técnico. O inglês instrumental deve ser visto como uma metodologia de ensino cujo foco é definido para suprir exatamente as necessidades do aprendiz. Hutchinson e Waters (1987, p.19) propõem, como base de todo o ensino instrumental, a simples pergunta: "Por que esse aprendiz precisa aprender uma língua estrangeira?". Neste artigo, que apresenta alguns aspectos do estudo desenvolvido como trabalho de conclusão de curso (TCC), o contexto de pesquisa é o ambiente encontramos mecânicos aeronáuticos que necessitam ler e compreender manuais durante suas tarefas diárias sendo que estes, em sua maioria, estão escritos em inglês. Portanto, também em razão do contato da pesquisadora (aluna de graduação) com profissionais atuantes nessa área, esse ambiente se mostrou bastante propício para desenvolvimento de uma pesquisa cujo foco eram as estratégias de leitura utilizadas pelos restauradores de aeronaves ao ler manuais. www.revistapindorama.ifba.edu.br em que se realiza restauração de aeronaves, um dos ramos da aviação no qual 57 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 Esse tema foi abordado considerando as oportunidades de estudo da língua inglesa e as experiências profissionais de cada um. DESENVOLVIMENTO O inglês instrumental é o estudo da língua inglesa para fins específicos (em inglês, ESP: English for Specific Purposes), o qual, como o próprio nome indica, se aplica ao ensino de línguas direcionado para lidar em determinada situação-alvo. O que diferencia um curso para fins específicos de um curso para fins gerais são os seus objetivos. Em um curso ELFE, os objetivos (necessidades e interesses) são bem específicos e localizados, já em um curso para fins gerais os objetivos costumam ser mais difusos (GUIMARÃES, 2014, p.1). Com base na teoria sobre essa metodologia de ensino-aprendizagem, Terenzi (2014) afirma que qualquer uma das habilidades, ou mesmo uma combinação de mais de uma delas, pode ser enfatizada, isso porque, o curso é direcionado para que interesses e necessidades dos aprendizes, em relação à língua estudada, sejam contemplados. Devido ao início do uso dessa metodologia no Brasil, introduzida nos anos 70 nas universidades federais, foi possível aprimorar a habilidade de leitura de textos específicos. Geralmente no ensino de inglês instrumental são trabalhadas estratégias de leitura que proporcionam uma compreensão guiada de textos E assim, o Inglês Instrumental possui o objetivo de desenvolver a habilidade de leitura, isto é, de compreensão de textos de diversas áreas do conhecimento escritos em língua inglesa, utilizando para isso, estratégias de leitura, a fim de tornar o aluno capaz de compreender um texto da sua área de estudo. (QUEIROZ, 2010, p.01) Essas estratégias de leitura englobam diversas áreas de compreensão. Segundo Souza et al. (2010), deve haver uma interação entre diversos níveis de www.revistapindorama.ifba.edu.br (TERENZI, 2014). 58 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 conhecimento, entre eles: linguístico, textual, prévio e estratégico para que, assim, o leitor consiga construir o sentido do texto. Todos esses níveis de conhecimento são estratégias de leitura disponíveis ao leitor. O conhecimento dessas estratégias possui grande relevância para a compreensão do estudo realizado. Uma breve explicação das principais delas utilizadas pelos colaboradores da pesquisa durante as entrevistas realizadas será apresentada a seguir, adotando-se Souza et al. (2010) como material base: Cognatos (nível de conhecimento linguístico) São palavras que possuem a escrita semelhante na língua inglesa e na língua portuguesa. Isso acontece pelo fato de ambas as línguas terem derivações do latim. Assim, muitas vezes, o leitor é capaz de compreender as informações se apoiando nesses termos. Exemplos: system, energy, battery, equipment, temperature, operation, emergency, parameters, etc (retirados dos textos utilizados para realização das entrevistas). Grupos nominais (nível de conhecimento linguístico) O conhecimento dos substantivos e seus complementos ajuda o leitor a identificar a principal palavra do trecho e suas características. No português, o núcleo do grupo nominal geralmente aparece primeiro, seguido pelo seu complemento e no inglês acontece o inverso. Exemplo: no português - bomba de combustível, "bomba" é o núcleo e "de combustível" é seu modificador. E no inglês - fuel pump, "pump" (bomba) é o Palavras-chave (nível de conhecimento textual) São palavras relacionadas ao assunto, que aparecem com mais frequência. São imprescindíveis para a compreensão do texto e, geralmente, são substantivos. Exemplos retirados dos textos utilizados nas entrevistas: aircraft, fuel, flight, engine, speed, on board, left, right, etc. Conhecimento Prévio (nível de conhecimento prévio) www.revistapindorama.ifba.edu.br núcleo e "fuel" (de combustível) é o modificador. 59 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 As experiências do leitor adquiridas e a repetição de palavras já conhecidas também são ferramentas que o ajudam no momento da leitura. Skimming (nível de conhecimento estratégico) Essa técnica busca a ideia geral do texto, realizando uma leitura rápida, passando os olhos no texto, dando maior atenção ao título, primeiras e últimas linhas, cognatos e figuras. Com essa estratégia, o leitor procura entender o assunto do texto, sem se atentar aos detalhes. Scanning (nível de conhecimento estratégico) O leitor utiliza o scanning quando possui uma leitura focada para encontrar uma informação específica sem dar muita importância aos demais dados, ou seja, quando um objetivo influencia no modo com que ele realiza a leitura. Informação não-verbal (nível de conhecimento estratégico) Toda a informação presente em figuras, gráficos, tabelas e mapas, por exemplo, são informações não-verbais. Esse é um método fundamental para o leitor que não possui um conhecimento vasto da língua compreender alguns pontos da informação. Uso do dicionário (nível de conhecimento estratégico) Ao se deparar com um vocabulário desconhecido, o qual está impedindo a compreensão do texto, o leitor pode consultar um dicionário, caso julgue necessário e caso a estratégia de inferência não seja a melhor opção. Inferência Contextual (nível de conhecimento estratégico) Essa estratégia consiste na dedução do significado de palavras ou sentenças estratégias já citadas, o leitor infere a palavra ou a informação desconhecida. Dessa forma, para que fosse possível obter-se dados, foram feitas entrevistas com três profissionais de uma oficina de restauração de aeronaves no interior do estado de São Paulo, selecionados com base em um estudo prévio dos perfis e classificados como colaboradores A, B e C. O participante A se declarava inabilitado para compreender o inglês por nunca ter estudado a língua e B dizia ser capaz de interpretar, pois, apesar de nunca www.revistapindorama.ifba.edu.br desconhecidas. Utilizando recursos como a análise de frases próximas e das 60 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 ter passado por um processo formal de aprendizagem em sala de aula, estudou sozinho e aprendeu também com a experiência que adquiriu com o tempo na área. Já o colaborador C declarou que teve oportunidades de estudo do inglês instrumental com a ajuda de professores. Durante a entrevista, foram-lhes apresentados textos de manuais de duas aeronaves, uma aeronave de grande porte (Airbus A320) e outra de pequeno porte (Cessna 180 Skywagon). Esse último modelo de aeronave era familiar a eles, pois trabalhavam com a mesma no desenvolvimento de suas tarefas diárias. Cada um dos colaboradores realizou a leitura de quatro textos, dois de cada aeronave, sendo um texto relacionado à área em que executa suas tarefas (destacado em negrito na Tabela 1) e outro de uma área com a qual o colaborador declarou não ter contato. Ou seja, os participantes realizaram a entrevista com textos cujos temas eram diferentes, os quais tinham o mesmo gênero, as mesmas características linguísticas e eram sobre o mesmo tipo de aeronave, isto porque a escolha dos textos foi feita considerando a área com a qual o colaborador trabalhava, no qual o assunto lhe era familiar, e os textos também foram escolhidos considerando uma área com a qual o colaborador não trabalhasse. O colaborador C era novo no ramo da aviação, assim, declarou não ser especialista em nenhum assunto da área. Ele realizou atividades com textos relacionados às áreas dos outros colaboradores. Assim, no total, foram selecionados seis textos e foram distribuídos de acordo com a Tabela 1. Essa divisão foi elaborada a fim de obter dados para análise entre cada colaborador (avaliando a influência do conhecimento prévio) e também entre eles (diferenciando as interpretações em razão do nível de conhecimento da www.revistapindorama.ifba.edu.br língua). 61 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 Textos Manual Textos Manual Cessna 180 Família Airbus Skywagon A320 Colaborador 1 A X B 2 X C X X 3 4 X X 5 X X X X 6 X X Tabela 1 - Divisão dos textos por colaborador Antes da apresentação dos resultados, é importante ressaltar que todas as entrevistas tiveram como roteiro um mesmo questionário, formulado com o objetivo de diagnosticar as estratégias utilizadas pelos colaboradores e de forma com que as perguntas não influenciassem em suas respostas. São apresentadas, a seguir, as perguntas que nortearam as entrevistas, juntamente com seus objetivos: 1. Você se considera um bom leitor de textos que estão em inglês? Por quê? Objetivo: Investigar um pouco mais o perfil de proficiência do entrevistado. 2. Por que e com que frequência você utiliza textos que estão em inglês no seu trabalho? Explique sua resposta. Objetivo: Investigar um pouco mais o perfil do entrevistado. te ajudou? Objetivo: identificar a capacidade do colaborador em captar o assunto geral do texto, sendo influenciado ou não por seus conhecimentos no assunto. 4. Quais são as principais informações deste texto? O que você fez para encontrá-las? Objetivo: Perceber quais são as estratégias utilizadas para responder à pergunta, ou seja, para buscar essas informações principais; identificar a www.revistapindorama.ifba.edu.br 3. Qual é o tema / assunto do trecho? Como você identificou esse tema? O que 62 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 habilidade do leitor em procurar palavras chaves no texto e seguir sua interpretação tendo o apoio dessas palavras. 5. Você percebeu que há palavras no texto que são iguais / muito parecidas com palavras do português? Você acha que elas ajudam a entender o texto? Por que (sim/não)? Objetivo: analisar se o leitor utilizou cognatos para compreender o texto. Sobre falsos cognatos, se o leitor não mencionar nada: Você acha que alguma palavra pode parecer com o português, mas ter um significado diferente? Explique sua resposta. 6. Você olhou a figura para buscar alguma informação? Por quê (sim/não)? Por que e para que existe essa figura? A figura é importante para a compreensão do texto? Objetivo: reconhecer o quão relevante a presença da gravura é para o leitor. Se sua interpretação depende ou não da mesma. 7. Você conhecia o assunto do texto? Já estudou ou trabalhou com esse assunto? Objetivo: Descobrir se o entrevistado já conhecia o assunto. 8. Em uma escala de um a três (sendo 1= nada, 2= pouco e 3= muito), o quanto o conhecimento prévio, o conhecimento que você já tinha, sobre o assunto influenciou no entendimento do texto? Objetivo: Identificar o quanto a experiência foi um fator determinante para a 9. O que você faz ao encontrar uma palavra no texto que você não conhece? Objetivo: Investigar se o entrevistado utiliza a estratégia do contexto ou uso do dicionário nesse tipo de situação. 10. O que você faz quando tem muita dificuldade em entender um texto em inglês? Objetivo: Investigar o que o entrevistado faz ao se deparar com uma dificuldade. www.revistapindorama.ifba.edu.br interpretação. 63 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 11. Qual você considera ser sua maior dificuldade ao ler textos em inglês em seu trabalho? Objetivo: Investigar se o entrevistado tem alguma dificuldade relacionada a alguma estratégia em específico. 12. O que você faz para melhorar sua habilidade de leitura? Objetivo: Investigar como o entrevistado procura se qualificar para o trabalho, já que é preciso ler textos e inglês. A Tabela 2, a seguir, apresenta as estratégias utilizadas por cada colaborador em cada texto. Esses dados foram obtidos a partir da análise das entrevistas e foram resumidos na tabela a fim de apresentar os resultados de maneira mais clara e objetiva. Esclarece-se que outras estratégias também foram empregadas. Porém, serão apresentadas apenas aquelas que foram base de suas interpretações, aquelas que mais se destacaram após a análise. Texto 1 Texto 2 Palavra Skimming chave Colaborador A Texto 3 Informação Cognatos não-verbal Texto 4 Texto 5 Informação Texto 6 Skimming não-verbal Palavras- Cognatos chave Informação Palavras- Palavra chave chave Scanning Informação Conhecimento Informação não-verbal prévio não-verbal Inferência Inferência contextual contextual Cognatos Skimming Palavraschave www.revistapindorama.ifba.edu.br Colaborador B não-verbal 64 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 Texto 1 Colaborador C Palavraschave Texto 2 Texto 3 Skimming Texto 4 Texto 5 Texto 6 Palavras- Palavras- chave chave Inferência Palavras- Inferência Inferência contextual chave contextual contextual Scanning Tabela 2 - Principais estratégias utilizadas pelos colaboradores para compreender cada texto Observando a tabela, é possível notar que o colaborador A, o qual disse não possuir conhecimento da língua inglesa, utilizou constantemente das palavraschave, seu conhecimento prévio, cognatos presentes nos textos, e, principalmente, as imagens contidas nos manuais. Ele afirmou, durante a entrevista, que sua interpretação era baseada "90% na figura e 80% nos cognatos na própria figura". Fazendo uma comparação com os outros participantes, o colaborador B disse que "em 40% das vezes, com a figura fica mais fácil" 14 . Já C, em um dos textos, declarou que a imagem era "meio superficial", utilizando-a apenas para confirmação de sua interpretação. A declaração dos participantes nos mostra que essa dependência da informação não-verbal está diretamente relacionada com o grau de conhecimento da língua, ou seja, foi possível observar que quanto mais estudo, menos importância é dada às figuras. O colaborador B, apesar declarar que não conhecia as estratégias de participante que utilizou uma quantidade maior de técnicas para compreender os textos. Além disso, observou-se que ele foi capaz de entender corretamente as informações, utilizando sempre seu conhecimento prévio na área. Porém, ao se 14 Esclarece-se que essas porcentagens foram ditas pelos colaboradores e não retratam fielmente os dados de maneira quantitativa, foi apenas um jeito de falar para expressar em qual parte do texto cada um focalizou para melhor tentar compreender as informações. www.revistapindorama.ifba.edu.br leitura, como consequência de ter aprendido o inglês por conta própria, foi o 65 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 deparar com palavras não conhecidas, afirmou que iria demorar um pouco mais para conseguir se situar, demonstrando uma insegurança ao aplicar a inferência contextual. Em uma das atividades, embora tenha seguido com a leitura, interpretando corretamente o texto, declarou, "mas é igual o que eu falei, esta palavra aqui já está me quebrando", referindo-se a uma palavra desconhecida. O colaborador que teve a oportunidade de estudar por meio da metodologia do inglês instrumental, mesmo sendo novo na aviação, foi o que demonstrou maior confiança durante as leituras. Esse resultado pode ser explicado por meio das palavras de Ibiapino (2010), que em sua pesquisa afirma que, quando expostos aos métodos de estratégias de leitura, os alunos se sentem mais seguros para compreender e assimilar o que está escrito em inglês. Devido a essa segurança, percebeu-se o colaborador não se prendeu às palavras desconhecidas, inferindo rapidamente seus significados. Ao ser questionado sobre sua atitude ao se deparar com essas situações, ele citou um exemplo do texto sobre as linhas de combustível da aeronave de pequeno porte: Eu deduzo, invento, crio uma outra palavra que possa se encaixar. É, tem aqui, o negócio que parece dente, o ‘tee'! Na minha cabeça eu coloquei como se fosse uma linha, e só depois que ele [o texto] falou das linhas. Eu não sei o que é o tee. Ah, deve ser um caminho, uma passagem. E é isso mesmo! Esse colaborador utilizou todos os contextos linguísticos para realização da leitura, distinguindo e compreendendo verbos, adjetivos e substantivos. Ele também soube identificar os cognatos, sendo o único a denominá-los dessa maneira (como cognatos) e afirmou que dificilmente é enganado pelos falsos cognatos, pois instrumental. Conclusão Os profissionais de manutenção e restauração de aeronaves estão constantemente em contato com manuais escritos na língua inglesa, seja para dar base para a tarefa de manutenção, seja através um documento legal ou para dar ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 www.revistapindorama.ifba.edu.br o contexto "guia" sua interpretação, fruto do que aprendeu nas aulas de inglês 66 base para o treinamento e a capacitação de profissionais (ZAFIHARIMALALA; TRICOT, 2010). Como apresentado nesse artigo, o conhecimento da língua é de grande importância para a realização das atividades profissionais, "é fundamental para garantir a segurança desses profissionais e a segurança de voo" (ZUPPARDO, 2013, p.23), e pode também diminuir o tempo da manutenção. Foram analisados três perfis diferentes com relação ao conhecimento do inglês. A partir dessas análises, tão relevante quanto observar como se deu o processo de leitura e compreensão dos textos por esses colaboradores, foi poder observar quais estratégias de leitura foram mais utilizadas por cada perfil. No estudo realizado, o processo de leitura do primeiro profissional, o qual declarou que não teve oportunidades de estudos da língua inglesa, confirmam os dados apresentados na introdução do artigo, os quais apontam que a maior causa de erros na manutenção é a interpretação dos manuais e que mais da metade da porcentagem dos técnicos utilizam seus próprios meios para realizar as tarefas de manutenção. O segundo colaborador, que aprendeu a língua por conta própria, possui inseguranças no momento da interpretação. Por esse fato, seu processo de leitura levou mais tempo em relação ao colaborador que possuía o conhecimento da língua. Aplicando isso ao dia-a-dia desses profissionais, ao utilizarem manuais e boletins de serviço para realizar suas tarefas, pode-se concluir que o colaborador C executaria a tarefa de maneira mais rápida (considerando apenas a leitura do texto). Esse último participante (colaborador C), o qual estudou por meio da causa da interpretação errônea dos manuais. Apesar de minimiza-los, mesmo com o conhecimento da língua e a confiança em sua leitura, interpretou incorretamente ou de forma incompleta algumas informações. É importante deixar claro que as dados e opiniões apresentadas referemse aos três perfis analisados nesta pesquisa. Os resultados não podem ser generalizados sem ser realizado um estudo mais aprofundado sobre o assunto. No entanto, como foi constatado na pesquisa e exposto neste artigo, a experiência com aeronaves não descarta a necessidade do conhecimento da língua inglesa, já que www.revistapindorama.ifba.edu.br metodologia do inglês instrumental, não está excluído da margem de erros por 67 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 os resultados mostraram que aquele colaborador que possuía o conhecimento de inglês instrumental e pouca experiência na área realizou a interpretação mais completa dos manuais utilizados. Por essa razão, dentre outras, justificam-se as disciplinas de Inglês Instrumental ministradas no curso de Tecnologia em Manutenção de Aeronaves, bem como em outros cursos. Conclui-se assim que, ao terem a oportunidade de estudar a língua inglesa para um propósito específico, relacionando suas futuras atuações profissionais, os aprendizes (profissionais em formação) terão a chance de, ao finalizarem a graduação e entrarem no mercado de trabalho, possuírem conhecimento que os auxiliarão a realizar as atividades do cotidiano. Além disso, é evidente a necessidade dos profissionais que já atuam nessa indústria de se aperfeiçoarem em relação aos conhecimentos dessa língua. Knowing English is essential in aviation field mainly because the communication among people who work in this area is done through this language. In attempt to reduce miscommunication, the International Civil Aviation Organization (ICAO) determined as mandatory the proficiency for these professionals tested through global tests for language harmonization in 2008 (ICAO, 2010, p. vii). However, even today, language proficiency is not required for aeronautical mechanics so they can perform their job, despite of the frequent use of manuals by these professionals in their daily tasks and the probability of mistakes due to misinterpretation. Considering that, it is extremely important to investigate the text reading process of these professionals. This article is an adaptation of a Course Final Paper in which it is analyzed how restorers of aircrafts with different profiles use reading strategies to understand manuals and texts in English. Participants were asked to read two types of texts used in aircraft maintenance, one about a subject they were familiar to and another about a theme different from their area of operation/work, and they were questioned about the strategies used to understand these texts. As a result, we could observe that their experience in aviation and opportunities to study English influence reading comprehension. Key-words: English for Aviation. Aircraft Maintenance. Manuals. Aircraft Restorers. Reading Strategies. Aircraft Maintenance www.revistapindorama.ifba.edu.br ABSTRACT 68 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 Referências Bibliográficas AZEVEDO, N. C. Exame de proficiência em Língua Inglesa (EPLIS) para controladores de tráfego aéreo e operadores brasileiros de estação aeronáutica: impactos potenciais. 2009. 38f. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Letras - Português) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009. BOCORNY, A. E. P. Panorama dos estudos sobre a linguagem da aviação: Overview of studies about language and aviation. RBLA, Belo Horizonte, v. 11, n. 4, p. 963-986, 2011. BORTOLETTO, G. Entenda o que é Lingua Franca. 2010. Disponível em: <http://www.galaor.com.br/tag/lingua-franca>. Acesso em: 10.nov.2014 CARO, S.; BÉTRANCOURT, M. Ergonomie des documents numériques. 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ISBN 978-92-9231-549-8 SOUZA, A. G. F.; ABSY, C. A.; COSTA, G. C.; MELLO, L. F. Leitura em Língua Inglesa: uma abordagem instrumental. 2ª Ed. Disal Editora, São Paulo - SP, 2010. SPERA, N. C. M. Estratégias de leitura utilizadas por restauradores aeronáuticos brasileiros para compreensão da língua inglesa. 2014. 50f. Trabalho de conclusão de curso (Tecnologia em Manutenção de Aeronaves) Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo -Campus São Carlos, São Carlos. 2014 www.revistapindorama.ifba.edu.br QUEIROZ, E. Material de apoio de inglês instrumental. s.n. s.l. 2010. 69 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 TERENZI, D. Princípios norteadores para o planejamento de cursos de línguas para propósitos específicos em curso superior tecnológico (manunteção de aeronaves): considerando visões de aprendizes, instituição formadora e empregadores. 2014. 178 f. Tese (Doutorado em Linguística). UFSCar Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2014. ZAFIHARIMALALA, H.; TRICOT, A. Text signals in the aircraft maintenance documentation. MAD, Multidisciplinary Approaches to Discourse, Moissac, March 17-20. 2010. ZUPPARDO, M. C. A linguagem da aviação: um estudo de manuais aeronáuticos baseado na Análise Multidimensional. ReVEL. v. 11, n. 21, 2013. www.revistapindorama.ifba.edu.br Recebido em 30/11/2015 70 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 54-70 ALICE WALKER E ZORA NEALE HURSTON: RESGATE E CIRCULAÇÃO DE ESCRITOS INVISIBILIZADOS Raphaella Silva Pereira de Oliveira15 ___________________________________________________________________________ RESUMO O presente artigo busca refletir como Alice Walker, escritora afro-americana, em uma pesquisa que envolveu solidariedade feminina e racial, reflexos da sua teoria womanista, resgatou as obras de Zora Neale Hurston, escritora do período conhecido como Harlem Ranassaince, mas que teve sua produção invisibilizada pelas estruturas sexistas. Busca pensar sobre os modos de circulação da escrita feminina negra, bem como a forma que o resgate das obras de Hurston colaborou para a sistematização dos estudos sobre mulheres negras nos Estados Unidos. Desse modo, promove pensares sobre caminhos para a sistematização da literatura feminina negra no Brasil e de uma epistemologia feita por e para mulheres negras. PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Mulheres Negras. Resgate. Invisibilidade. 15 Mestra em Crítica Cultural/UNEB, professora do curso de Letras habilitação em Língua Inglesa na Universidade do Estado da Bahia – Campus XXIII – Seabra. E-mail: [email protected]. Lattes:http://lattes.cnpq.br/1592753260946214 INTRODUÇÃO O presente artigo trás algumas das reflexões que iniciei no mestrado do programa de pós- graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia16 com a pesquisa intitulada “Representações da sexualidade de mulheres negras em narrativas de Alice Walker”. Contudo, é um recorte. Um recorte que é revisitado tempos depois, me permitindo refletir sobre assertivas ditas no passado. Olhar o passado... Esse é o real objetivo desse trabalho. Mais especificamente, olhar o passado da emergência de uma escrita feminina negra estadunidense. Reaprender. Redescobrir o texto, si redescobrir, enquanto sujeito histórico atravessado pelas identidades: ser negra, ser mulher, ter uma classe social, ter uma sexualidade. É objetivo também, pensar como a experiência das intelectuais acadêmicas negras estadunidenses pode contribuir para a sistematização de uma produção intelectual/ literária feminina negra no Brasil e de uma epistemologia feita por e para mulheres negras. A emergência de uma produção literária realizada por pessoas negras nos Estados Unidos foi um exercício que pode ser traduzido como uma tarefa que mesclou beleza, resistência e sensibilidade. O presente texto tem seus “olhos” direcionados para as escritoras estadunidenses Zora Neale Hurston e Alice Walker. Duas mulheres que se encontram na escrita, cujas palavras são expressões de signos da experiência de ser negra. Escritoras de períodos distintos, mas que usam sua arte como espaço de representação e empoderamento de mulheres negras. Tentou se, ainda que forma tímida, revisitar o período escravocrata dos pessoas negras (Hattnher, 1990). Contudo, o emergir dessa escrita não significou o aparecimento das produções de mulheres negras. Essas permaneceram invisibilizadas pelas estruturas racistas e sexistas estadunidenses. Rompemdo paradigmas de um fazer científico branco e masculino, a década de 1980 é marcada pelo processo de institucionalização dos estudos sobre as mulheres negras nos Estados Unidos. Tal processo contou com uma intensa 16 Universidade do Estado da Bahia – Campus II, Alagoinhas. ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 71-86 www.revistapindorama.ifba.edu.br Estados Unidos, que muito influenciou as primeiras manifestações literárias das 72 produção de intelectuais negras engajadas nas mais diversas áreas do conhecimento. Sistematizar os escritos das mulheres negras estadunidenses também compôs esse projeto (Caldwell, 2010). O compromisso com esse ideal é abraçado por Alice Walker, mulher negra que nasceu no sul rural dos Estados Unidos da América (EUA), uma autora que alcançou reconhecimento mundial produzindo uma literatura que reflete seu compromisso com a emancipação das mulheres negras. O uso da palavra é a ferramenta de Walker para alcançar esse compromisso, que versa sobre a existência de uma solidariedade que tem a raça como ponto de encontro. Hurston também é do sul, sul que ela apresentou a comunidade negra americana na década de 1920, em um período marcado por explosões artísticoliterárias de pessoas negras do bairro do Harlem. Entretanto, as produções da autora ganharam visibilidade anos após sua morte, a partir das ações de mulheres negras acadêmicas comprometidas com a visibilidade das produções intelectuais do grupo, dentre as quais, Walker, que empreendeu uma ampla pesquisa de resgate a vida e obra de Zora Neale Hurston. A ação de Alice Walker é intencional. Ela reflete uma das premissas de sua teoria womanista, que doravante será apresentado nesse texto. Finalizando a discussão, busca-se debater como a experiência de Walker no resgate as obras de Hurston, e em um olhar mais amplo, como a experiência da produção e sistematização dos estudos sobre as mulheres negras nos Estados Unidos, podem contribuir para o fomento dos modos de produção e circulação da produção intelectual/literária das mulheres negras no Brasil. de natureza qualitativa. Os diálogos teóricos foram traçados com as contribuições de historiadores/as pesquisadores/as da negritude nos EUA. Os pressupostos teóricos fornecidos pelo feminismo negro e o womanism também forneceram subsídios para os argumentos apresentados nesse trabalho. www.revistapindorama.ifba.edu.br A metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica, sendo este um trabalho 73 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 71-86 1. RAÍZES DAS PRODUÇÕES ARTÍSTICO-LITERÁRIAS AFROAMERICANAS Conhecer a história da escravatura nos Estados Unidos é de total relevância para compreensão da emergência dos escritos da população negra desse país. Como os demais países da América, os Estados Unidos tem em sua história a mancha sangrenta da escravidão, cujo início antecede sua independência, começando quando ainda colônia inglesa: “O primeiro navio holandês com escravos negros chegou à Virgínia em 1619”, conforme Leandro Karnal e outros (2010, p. 63) que pontuam, ainda, que, em duas décadas, em toda a colônia, havia trabalho escravo sob as mais terríveis condições, posto que, para os senhores, as/os escravas(os) eram vistos como bens materiais e tratados da mesma forma que os animais. Aquelas(es) que conseguiam sobreviver à travessia nos navios negreiros (onde havia um alto índice de mortalidade), eram obrigadas(os) a trabalhar arduamente nas lavouras rurais, sofrendo duros castigos. O número de escravizados(as) era considerável ao Sul da colônia, principalmente na Virgínia e Carolina do Sul onde também existia o medo da rebelião, pois a maioria dos(as) negros(as) não aceitava passivamente a condição de escravos(as). Em 1776, período da independência, quando as treze colônias se tornaram um só país, os Estados Unidos, não houve alteração na condição dos(as) escravizados(as). Contudo, em 1808, o tráfico é abolido e, em 1830, organiza-se uma luta antiescravista; assim, idéias abolicionistas passam a circular no cenário mão de obra escrava era fortemente explorada nas lavouras de algodão e tabaco (MINTZ E PRICE, 2003). Logo, o processo de abolição e as questões raciais dividiam o recémformado Estados Unidos: para os donos de lavouras do Sul, era de total interesse a manutenção da escravidão, enquanto a região Norte, onde avançava a indústria, desejava a abolição, pois precisava de protecionismo e de trabalhadores(as) assalariados(as) para movimentar sua economia. www.revistapindorama.ifba.edu.br estadunidense, o que contrariava os interesses dos senhores sul do país, onde a 74 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 71-86 Sem dúvida, a Guerra da Secessão17, entre o Norte e o Sul dos EUA foi um marco na questão da escravocrata deste país. Muitas(os) negras e negros migravam para o norte para conseguir liberdade, pois, nesta região, eram declarados(as) livres, ganhando assim, o título de cidadãs e cidadãos. De acordo com Karnal e outros: Durante a Secessão, os escravos utilizaram a Guerra Civil do melhor jeito que podiam para se tornar livres: cada vez que uma tropa do Norte invadia uma região confederada, um enorme contingente de negros fugia das fazendas e, dessa maneira, colaborava para o desmoronamento do sistema escravista. (2010, p. 134). O final da guerra, em 1865, com a vitória do Norte, demarcou também, o fim da escravidão. Aqui vale dizer, que o deslocamento para o norte torna-se um fato notório, visto que marca o momento da emergência das manifestações artísticas negras estadunidenses, o que Álvaro Hattnher (1990, p. 70) identificou como “busca de expressão própria, de identidade, de auto-afirmação”. Sob a emergência dessa escrita negra, os jornais abolicionistas que circularam no período da escravidão já sinalizavam para o aparecimento dessa literatura. De acordo com Hattnher (1990), o emergir de uma literatura afroamericana se relaciona diretamente com a experiência do plantation18, no sul rural estadunidense, até sua migração para os guetos urbanos. A experiência da escravidão determinou, portanto, as primeiras manifestações de uma criação artístico-literária nos EUA e marcaria para sempre a escrita das pessoas afroamericanas, cujos escritos traziam suas crenças e a marca do desejo de libertação, And it won’t be long. And it won’t be long, And it won’t be long, Poor sinner suffer here. We’ll soon be free. 17 18 Também chamada de Guerra Civil. Sistema agrícola baseado na monocultura, no cultivo em latifúndios e na utilização de mão de obra escravizada. ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 71-86 www.revistapindorama.ifba.edu.br como se pode ver no poema a seguir: 75 The Lord will call us home.19(FOERSTER, 1970, p. 65 apud SALGUEIRO, 2004, p. 49). Tal quais outros países que experienciaram a escravidão, a abolição da escravatura nos Estados Unidos não significou uma mudança nas condições de humanidade da população negra, mas as/os remeteu à marginalidade, agora nos guetos urbanos para onde migraram e onde continuaram a enfrentar os problemas da miséria, do racismo e da violência à segregação, fundamentada na doutrina de pureza racial. Contudo, não é nosso objetivo, aqui, esgotar a história do período da escravocrata nos EUA, mas observar como esta história foi determinante para a emergência dos escritos negros, em um processo de tradução cultural, – “o processo de negociação entre novas e antigas matrizes culturais, vivenciado por pessoas que migraram de sua terra natal” Elas tem diante de si, uma cultura que não as assimila e, ao mesmo tempo, não perdem completamente suas identidades originárias. Mas precisam dialogar constantemente com as duas realidades. (HALL 2000, p. 88-89). Assim, os escritos negros emergem da dialética entre a língua do opressor e língua trazida da terra natal no continente africano, do trabalho nas lavouras que fazia nascer o espiríto de comunidade e o desejo de liberdade, inspirando a escrita futura, como Walker, em sua prosa womanista 20: Assim, a literatura afroamericana já apresenta um de seus princípios: o senso de comunidade, a escrita como espaço de liberdade e de discussões sociais complexas. 19 20 21 “E não será distante. E não será distante,/E não será distante, o pobre pecador que sofre aqui./Nós seremos livres./O Senhor nos chamará para casa”. (Tradução nossa). Em seu livro In search of ours mother’s gardens, Alice Walker aconselha jovens que desejam trilhar o caminho da escrita. “Black writers seem always involved in a moral and/or physical struggle, [...] expected to be some kind of larger freedom. Perhaps this is because our literary tradition is based on the slaves narratives, where escape for the body and freedom for the soul went together”. ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 71-86 www.revistapindorama.ifba.edu.br escritores/as negros/as parecem sempre envolvidos em uma moral e/ou força psicológica [...] mas por um sentimento de liberdade. Talvez porque nossa tradição literária é baseada em narrativas da escravidão, onde o escape para o corpo e a liberdade para a alma caminhavam juntas.21(WALKER, 1983, p. 5, tradução nossa). 76 2. DE PRETA PARA PRETA: ESCRITOS DE MULHER, DE HURSTON PARA WALKER Nesse momento, debateremos sobre como a escritora negra estadunidense Alice Walker, em um trabalho que envolveu solidariedade feminina racial e uma pesquisa engajada, empreendeu esforços para resgatar as obras de Hurston. Essa jornada é descrita no livro In search of ours mother’s gardens (1983), no qual Walker narra a primeira vez que ouviu falar de uma das grandes artistas do movimento conhecido como Harlem Renassence. Para conhecer Zora Neale Hurston, é também necessário conhecer o movimento do Harlem, e a partir de então, se emocionar com os caminhos da escrita dessa autora. Nessa perspectiva, discutiremos também o lugar da escrita da mulher negra nos Estados Unidos e as estratégias de difusão e circulação de um saber de mulheres negras utilizadas por essas mulheres. Na década de 1920, um movimento surgiu no bairro do Harlem, em Nova Iorque, com o objetivo de valorizar e resgatar a cultura negra além de romper com os padrões artísticos eurocêntricos. Esse movimento ficou conhecido como Harlem Renassence22. A escravidão, o racismo e a miséria eram os temas que inspiravam o grupo composto por pintores(as), musicistas e escritores(as) dentre os quais Langston Hughes23, Claude Mckay24 e Jean Toomer 25, foram os escritores que mais se destacaram nesse período. Para Álvaro Hattnher (1990, p. 72), “a Renascença do Harlem cataliza a busca e a descoberta de formas de expressão não vinculada aos modelos estéticos existentes, brancos e ocidentais”. Apesar de, na década de 1920, foi uma das mulheres que participou do movimento do Harlem. Zora Hurston nasceu em Eatonville, na Flórida, uma cidade fundada por pessoas negras, dentre as quais, seu pai e sua mãe 26. Formou-se em Antropologia e realizou pesquisa sobre o folclore negro em Louisiana, publicada em Mules and 22 23 24 25 26 Em alguns textos, esse movimento aparece como Renascença do Harlem. O primeiro poeta a ser reconhecido na Renascença do Harlem. Poeta, nascido na Jamaica, muda-se para os Estados Unidos e passa a viver no Harlem. Publicou poemas e prosa no período do Harlem. Fonte: <http://www.pbs.org/wnet/americannovel/timeline/hurston.html>. ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 71-86 www.revistapindorama.ifba.edu.br não gozar do mesmo status de visibilidade dos escritores supracitados, Zora Hurston 77 man, que colaborou para que a memória das tradições do sul negro dos EUA permanecesse viva. Se a visibilidade dos escritores negros no cenário norte-americano era pouca, o aparecimento da produção de autoria feminina foi ínfimo. Ao se observar o período do Harlem Renassence, nota-se uma maior projeção dos homens que compunham o movimento, por exemplo, Langston Hughes, um escritor que conseguiu sobreviver apenas com os ganhos de sua produção. Contudo, nem todos(as) os(as) artistas envolvidos(as) no projeto tiveram esta visibilidade. Pouco se ouviu sobre as mulheres artistas do Harlem. Zora Neale Hurston foi totalmente apagada, o que demonstra o sexismo27 que existia dentro do grupo. Hurston morreu solitariamente em 28 de janeiro de 1960, com 69 anos de idade, sendo enterrada como indigente. Treze anos após a sua morte, Alice Walker (1983, p. 107) descobre o local onde Hurston foi sepultada e lá finca uma lápide com os escritos: “A genius of the South, 1901---1960 /Novelist, folklorist, anthropologist28 Em uma aula de literatura negra, em Jackson State College foi à primeira vez que Alice Walker teve contato com os escritos de Zora Hurston. Segundo Walker, quando precisou ler materiais sobre práticas de vodoo no sul rural dos EUA, encontrou apenas o livro da autora do Harlem, Mules and men, pois os demais livros tinham sido escritos por pessoas brancas e racistas. Buscou então resgatar e dar visibilidade à sua vida e obra: “comecei a lutar por Zora e seu trabalho, pois o que eu sabia era bom e não deveria ser perdido por nós 29 (1983, p. 87, tradução nossa). É importante dizer que, a decisão de resgatar os escritos de Zora Neale Hurston e colocá-los em circulação, reflete uma das bases do pensamento womanist 27 Crença na superioridade inerente de um sexo e, portanto em seu direito de dominar. (LORDE, 2003). Na cultura ocidental, a crença é na superioridade do macho, assim sustentando a relação de dominação e controle das mulheres. 28 “Zora Neale Hurston/Um gênio do Sul./Escritora, Folclorista, Antropóloga.” (Tradução nossa). 29 “I began to fight for Zora and her work; for what I knew was good and must not be lost to us”. 30 Womanism is to feminist as purple to lavander (WALKER, 1983, xii). Como o termo comporta diversas idéias, não existindo uma tradução exata no português brasileiro, optouse por utilizá-lo na língua fonte. Contudo, na tradução da obra You can’t keep a good woman down, as tradutoras Betúlia Machado e Maria José Silveira optaram por traduzi-lo como “mulherismo”. (WALKER, 1987, p. 56). ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 71-86 www.revistapindorama.ifba.edu.br de Alice Walker. Womanism30 é um termo cunhado e desenvolvido teoricamente por 78 Walker, que reflete a emancipação política, racial e sexual das mulheres negras sob uma perspectiva de busca de empoderamento31, por reconhecê-las como o grupo que mais sofre a opressão destas categorias. (WALKER, 1983, COLLINS, 1996). Um dos pontos da teoria pensada por Walker implica no resgate da cultura e das vivências da comunidade negra e, mais especificamente, das mulheres. Para ela, as mulheres devem ser autoras e protagonistas de suas histórias. Desse modo, a escrita de Walker é marcada pela libertação e liberação feminina de amarras constituídas por papéis sociais que reprimem e silenciam mulheres e prega a resistência como o segredo da alegria. No resgate aos escritos de Hurston, um dos livros que é posto em circulação é o romance Their eyes were watching God32. Considerada a primeira obra afroamericana a abordar a violência de gênero, tem uma heroína negra cujas experiências fazem com que ela descubra sua identidade e alcance a sua independência. Outros três romances são publicados, além de outras produções, um trabalho sobre o qual Walker (1983) assinala que demonstra saúde racial - o sentimento das pessoas negras em sua completude e suas complexidades. Entretanto, Hurston sofreu severos julgamentos advindos dos homens que faziam parte do movimento do Harlem. No prefácio de Their eyes were watching God, Mary Helen Washington assinala que o romance foi ridicularizado pelos homens negros do Harlem Renassence cujas críticas foram ainda mais duras que as dos homens brancos, posto que os negros acusavam os escritos da autora de serem despreocupados e cômicos, uma obra para divertir brancos. Tais críticas impactaram na produção literária de Hurston. De acordo com entanto, no fim da carreira, sua escrita se tornara estática e tímida, consequência dos ataques que sua obra sofrera. 31 32 De acordo com Ana Alice Costa (2004), empoderamento “é o mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades tomam controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida, de seu destino, tomam consciência de sua habilidade e competência para produzir e criar e gerir”. Traduzido para o português do Brasil com o título Seus olhos viam Deus, por Marcos Santarrita e publicado pela Editora Record, em 2002. ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 71-86 www.revistapindorama.ifba.edu.br Walker, até o meio da carreira, Zora Hurston fora uma revolucionária cultural e, no 79 Zora Neale Hurston, o “gênio do sul”, doente e sem dinheiro, morre e, durante anos, é remetida ao esquecimento e à invisibilidade. Seus escritos só passaram a fazer parte dos círculos acadêmico-literários a partir de 1970, quando outras autoras também vieram a ganhar visibilidade, após uma árdua militância que teve a experiência como principal fonte de reflexão, num contexto em que as mulheres negras passam a denunciar e questionar o racismo e o sexismo que as remetiam à marginalidade e à invisibilidade, tornando suas vozes audíveis e produzindo conhecimentos sobre si, movendo-se pelas fronteiras do dizível, denunciando o que Bernd chama de mecanismos de exclusão (ocultação ou invenção do outro) e mecanismos de transgressão literária (resgate dos discursos excluídos ao longe desse processo) (BERND, 1992, p.9) 3. SISTAH33! RESGATE AOS ESCRITOS DE SUA IRMÃ: O QUE A EXPERIÊNCIA DO OUTRO NOS ENSINA A emergência de uma produção artístico-literária feita por pessoas de cor34 nos Estados Unidos da América não foi uma tarefa simples. Mitos construídos durante o processo escravocrata, agora compunha o imaginário social, fortalecendo os discursos racistas. Dentre esses discursos, existiu aquele que marcava a mulher negra como corpo supersexualizado e reprodutoras, ao passo que, o homem negro foi construído sob o estereótipo de viril e pela apreciação de sua força bruta, aptos para o trabalho. Sob essa ótica, negros e negras tinham o exercício de seu trabalho intelectual limitados, ou como é colocado pela feminista negra bell hooks 35 para espinhoso (hooks, 1995). Barbara Christian (2000) pontua que, tais quais as mulheres negras do movimento 33 34 35 pelos direitos da mulher do século XIX, as afroamericanas Black English. É o mesmo que pessoas negras. Walker usa esse termo em seu conto “Coming apart”. bell hooks, é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins. Ela “assina suas obras em minúsculo e requer suas referências tal e qual, com o argumento de que ela mesma não se reduz a um nome e seus textos não devem ser lidos em função deste nome”. (PINTO, 2008, p. 3, NR 1). www.revistapindorama.ifba.edu.br negros e negras exercerem o trabalho intelectual precisavam trilhar um caminho 80 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 71-86 contemporâneas produziram largamente em muitas áreas na década de 1970. Contudo, esses estudos não eram reconhecidos pela comunidade acadêmica. Por muitas décadas, os estudos sobre raça eram associados aos homens, ao passo que, os estudos sobre gênero, às mulheres brancas. Isso começa a mudar, ainda que de forma tímida, no início da década de 1980, com o estabelecimento dos estudos das mulheres negras – um resultado da intensa e qualificada produção dessas mulheres. Christian (2000) denuncia ainda, a predileção das instituições sociais contemporâneas pelos homens afroamericanos como verdadeiros experts e porta voz quando se trata de criticar a relação entre raça e gênero, o que reflete novamente a estrutura hierárquica, onde homens são colocados como superiores as mulheres. Buscando a emancipação e a visibilidade intelectual, o aparecimento da produção de mulheres negras se deu, principalmente, nos campos da História e da Literatura (CALDWELL, 2010), enunciando novos parâmetros nos fazeres acadêmicos, ao tempo em que resgatava a história das mulheres negras e de suas experiências do passado, pois a forma encontrada para questionar a condição social destas mulheres foi, exatamente, o uso da memória: o não esquecimento como meio de resgate de suas vivências e de transformação da realidade social. Caldwell (2010, p. 20) assinala que, ainda no século XIX, “houve uma emergência da militância social e política por mulheres negras e um aumento do número de publicações, tais como literatura, ensaios políticos e textos jornalísticos escritos por mulheres negras norte-americanas” que refletiam sobre o processo de escravidão e a pós-abolição. No século XX, quando os escritos das mulheres negras dessas obras bem como o emergir de novos escritos. Dando enfoque ao campo literário, Caldwell destaca que as obras produzidas por mulheres negras na década de 1980, que passaram a ser incluídas na graduação e pós-graduação, além de conquistarem espaços nas editoras, “causaram um impacto muito grande nas universidades norte-americanas e iniciaram o processo de quebra da hegemonia branca e masculina na área de Literatura” (2010, p. 22). Para Maria Aparecida Salgueiro (1999, p. 141) “escrevendo da perspectiva ‘mulher e negra’, as escritoras de origem africana nos Estados Unidos www.revistapindorama.ifba.edu.br estadunidenses passaram a ser mais sistematizados, ocorre uma republicação 81 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 71-86 examinam a individualidade e as relações como uma forma de caminho para a compreensão de questões sociais complexas”. Escritoras como Maya Angelou, Toni Morisson e Alice Walker são mulheres que abraçaram a missão de continuar a abordar em suas obras os efeitos do racismo e sexismo. Na perspectiva de politizar o literário, o discurso dessas mulheres interpreta a questão da dependência, dos ditos colonizados e denuncia as matrizes do discurso pós-colonizador cuja prática transcultural, entre saber e poética, faz da escrita literária um processo de diálogo que tangencia o peso do contradiscurso, do mal-estar do passado e o peso do presente, um processo vivenciado pela mulher negra do sul estadunidense. Segundo uma análise de Caldwell (2010), a institucionalização dos estudos sobre o pensamento das mulheres negras, ainda está ocorrendo no Brasil. Certamente, do período da publicação da autora, até o ano de escrita desse artigo (2015), se avançou no Brasil, acerca de uma produção intelectual negra e sobre mulheres negras. Teses como a da professora doutora Cláudia Pons Cardoso 36, Lícia Maria de Lima Barbosa37 denotam que um maior espaço foi conquistado nas universidades quanto aos debates que interseccionam o gênero e a raça. Observase também, o aumento do número das publicações das produções literárias de autoria feminina negra, bem como a criação de disciplinas nas universidades que versam sobre afrobrasilidade. Nessa perspectiva, as críticas realizadas pelo feminismo negro têm ajudado a repensar e reestruturar as construções tradicionais na academia. Sob esse aspecto, autoras negras brasileiras vêm produzindo e fazendo circular seus escritos literários, cujas textualidades evocam uma (re)construção brasileira, as desidentificações com o discurso hegemônico que até então as representavam em nossa literatura. Neste sentido, publicam textos cujos temas perpassam suas experiências como o belíssimo Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, de 1960 , e questões sobre raça e racismo a exemplo de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, de 2006 , sobretudo 36 Defendeu a tese intitulada Outras falas: Feminismos na perspectiva das mulheres negras brasileiras. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/7297/1/Outrasfalas.pdf 37 Defendeu a tese “Eu me alimento, eu me alimento, força e fé das iabás buscando empoderamento!: expressões de mulheres negras jovens no hip-hop baiano”. ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 71-86 www.revistapindorama.ifba.edu.br identitária, os questionamentos sobre o status quo da mulher negra na sociedade 82 pensando sua escrita como lugar de afirmação do ser mulher negra. Destacam-se, ainda, escritoras como Cidinha da Silva, Miriam Alves, Gení Barbosa e Conceição Evaristo. Vale ressaltar que a produção dessas mulheres tem sido crucial para o aparecimento da cor na literatura brasileira. Tal como ocorreu nos Estados Unidos, o movimento feminista, que explodiu no Brasil nos anos de 1980, era feito por mulheres brancas e de classe média alta e/ou rica, de forma que a perspectiva da mulher negra raramente aparecia. Contudo, segundo Caldwell (2010), neste mesmo período, mulheres como Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, Sueli Carneiro, entre outras, passaram a publicar textos que foram/são estruturadores para o nascimento do pensamento feminista negro brasileiro. CONSIDERAÇÕES Apreender a experiência histórica e literária de uma nacionalidade distinta da brasileira apresenta muitas dificuldades, por se tratar de outro contexto, de outra cultura. É a tentativa de imergir no mundo do outro, tocar o que é possível dessa experiência para refletir a sua própria. Contudo, Walker impõe à análise cultural a idéia de descentramento das instituições culturais como forma de exercício do poder, ao passo que aponta a literatura como caminho de resistência. Para Luciane Silva (2010), a literatura produzida pelas mulheres afroamericanas e afro-brasileiras reflete este fazer, através da tradição oral e do uso da memória. negras nos anos de 1970 e 1980 fizeram parte dos primeiros trabalhos de um campo de estudo que estava se formando: o campo de estudos sobre a mulher negra norteamericana ou Black Women’s Studies”. A produção intelectual das mulheres negras estadunidenses abraça o propósito de emancipação de um grupo que, durante séculos, foi remetido à condição de invisível. Essa escrita é também militância, visto que representa a tentativa de um grupo considerado como minoria romper as fronteiras das margens e fazer ecoar a sua voz. Aqui, a idéia de “menor” é compreendida sob a ótica de Deleuze e Guatarri (1977), onde menor, não é aquela www.revistapindorama.ifba.edu.br De acordo com Caldwell (2010, p. 20), “as obras escritas por mulheres 83 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 71-86 que diz de uma língua menor, mas o que uma minoria faz dentro de um sistema maior, ou de uma língua maior. O comprometimento com a recuperação da memória das mulheres negras por parte das acadêmicas negras estadunidense, e o projeto de difusão desses saberes foram cruciais para o reaparecimento dos escritos de Zora Neale Hurston. Pensando sobre o contexto brasileiro, o resgate dos escritos das nossas antecessoras constitui-se em um elemento importante para o embasamento de um projeto de construção de consciência identitária negra. Redescobrir Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus faz parte desse processo. É importante, também, refletir sobre as estratégias de visibilidade, nas academias, dos estudos e produções que cooperem para o empoderamento das mulheres negras bem como para a construção de uma episteme feita por e para este grupo e, para isto, deve-se considerar a importância e as contribuições que o movimento feminista negro tem trazido para os modos de produção e circulação de uma escrita negra. Ressignificar e reelaborar o discurso do opressor, portanto, é abraçar o compromisso de um fazer acadêmico que tem o compromisso com a emancipação das minorias sociais; assim, (des)escrever uma obra feminista/womanista ou pesquisar tais obras significa denunciar com o objetivo de transformar. Preencher de novos significados os corpos das mulheres negras, criar espaços para a circulação de seu saber. Ouvir suas vozes que ecoam através dos séculos não significa apenas www.revistapindorama.ifba.edu.br deixar a subalterna falar, mas, também, subverter o discurso do dominante. 84 ISSN 2179-2984________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016, pp. 71-86 ABSTRACT This article intends to reflect as Alice Walker, an afroamerican writer, in a research that involved female and racial solidarity, reflect of her womanist theory, she rescued the works of Zora Neale Hurston, an writer of the Harlem Renassaince, but her productions was invisibly by sexists structures. It intends to think about ways of movement of black women's writing, as well as how the rescue works of Hurston contributed to the systematization of studies on black women in the United States. Thereby promotes ways to think about on the systematization of black women's literature in Brazil and an epistemology made by and for black women. KEYWORDS: Literature. Black Women.Rescue.Invisibility. 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