isamen - O Blog do Tlönista
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isamen - O Blog do Tlönista
isamen Editorial 6 isto 7 Ana C. trago as mãos sonâmbulas de te esperar ao relento na noite 8 9 esta noite 10 as árvores irrompiam paredes dentro 11 os dias são feitos de noites intermináveis 12 Bruno Béu 13 ao cimo (à direita) de quinze degraus 14 consoada de uma mulher sozinha 15 algum questionamento sobre a refracção e outros fenómenos 16 para flauta, violoncelo e sala 17 Cecilia Eraso 18 o silêncio é saúde 19 representação de engrenagens 20 coaxialidade 21 um fotão para a posteridade 22 Celeste Wladyka 23 Lusíada 24 Risus paschalis 25 Lacrima corpus dissolvens 26 Orbis terrarum 27 João Villalobos 28 Acunpuntura das feras Idra Novey 29 30 Entretanto as sementes de melancia 31 Definição de desconhecido 32 A ex-prisão de Valparaiso 33 Duas mulheres num celeiro 34 Maria Sousa aqui não há ninguém 35 36 vejo-te na soleira da porta 37 A mulher 38 como pretexto para amputar sonos 39 Pedro Jordão Tríptico Pedro Outono 40 41 42 descobri que as palavras não fazem sobreviver as sílabas 43 logo de manhã fecho a porta do livro e vou 44 vamos pôr o avental 45 quando acordo estou melhor dos armários 46 Rui Almeida Não, voltemos atrás Sonata Paliulytė 47 48 51 Silêncio 52 Ventoso 53 Meditação da batata 54 Eternidade 55 Tatiana Pequeno 56 metal heart, outra versão 57 carta para arcíria 58 litoral 59 réplica das esquinas 60 Tiago Gomes 62 A cidade (não é Lisboa) 63 Enquanto na sala ao lado fazem macumba 64 Para o papel depressa 65 A orquestra desafinada 66 Isto Ângela M. 25 Megapixels Beatriz Hierro Lopes 67 68 69 75 Era uma rua que vivia de carne 76 Acontece 77 Henrique Manuel Bento Fialho O novo e a novidade Joana Serrado Declaração de Imposto a Deus 78 79 83 84 Jorge Fallorca 86 O passeante 87 Kenneth Traynor 94 Sete filmes de sonho 95 Postal 97 Pedro Santo Tirso Teoria e Jogo do Fado isto Gonçalo Martins 98 99 102 103 Menina I 104 Menina II 105 Menina III 106 Menina IV 107 João Rios 108 Christhus Bar 109 Doctor love 110 Estátua nadando 111 Music for leon 112 Pumping Station 1.1 113 Marco Moura 114 Radeo_01, Beleza Descartável 115 Radeo_02, Beleza Descartável 116 Satelina, Beleza Descartável 117 Archie, Beleza Descartável 118 Sofia Ferreira 119 #25 120 #24 121 #26 122 #34 123 e isto G. K. Chesterton A filosofia dos passeios Michel Laub Um museu imaginário de simpatias 124 125 126 129 130 Renato Carreira 131 Manifesto godá 132 Créditos 138 Maria Sousa 138 Nuno Abrantes 138 A SUL DE NENHUM NORTE Editorial E nada será teu senão um ir até onde não há onde. Alejandra Pizarnik “A norte de nenhum sul” é um lugar de partilha de novas ideias e divulgação de autores nas áreas de escrevinhar e bonecar. Se calhar queremos ser uma biblioteca improvável onde se misturam autores conhecidos e não conhecidos, portugueses e estrangeiros. Nada melhor do que a internet, que para nós é acima de tudo uma rede de partilhas ideal para começar um projecto como este. Como revista online, será gratuita e o seu formato em .pdf, o mais confortável para ler no computador ou nos dispositivos portáteis tão na moda, ou mesmo ser impressa e lida em todo o lado em belas folhas de papel (sim, caro Vila-Matas, somos portáteis). Como infelizmente temos coisas chatas para fazer, não podemos editar uma revista todas as semanas, ou mesmo todos os meses; por isso ficou decidido de forma democrática e unânime, pelos dois editores, que seria bimensal (de Março a Maio é um saltinho e verão que passa num instante). Agradecemos muito a todos os que tornaram possível este primeiro número, contribuindo com a sua arte e engenho. Queremos saber o que está bem e/ou mal na revista. Para nos dizerem isso podem usar um rol de contactos, o email([email protected]), o blog da revista (http://a-suldenenhumnorte.blogspot.com/) ou a nossa singela página de facebook (http://www.facebook.com/pages/A-sul-de-nenhum-norte/184156558296322?ref=ts), de forma a fazer-nos chegar os vossos tão importantes comentários e opiniões. Esperamos que gostem tanto de a ler como nós de a editar. Nuno Abrantes & Maria Sousa 6 A SUL DE NENHUM NORTE isto 7 A SUL DE NENHUM NORTE Ana C. Ana C. nasceu em Lisboa, há 35 anos, sob o signo de Capricórnio. Cedo se lembra de escrever estórias e poemas. Apesar disso, quis tentar mudar o mundo de outra forma e enveredou pela Sociologia. Começou por escrever a tinta de caneta e a lápis mas converteu-se facilmente aos computadores e aos blogues, onde vai arquivando os seus escritos. Não dispensa, contudo, esquecer-se de palavras em folhas soltas, flyers, pacotes de açúcar, bilhetes de autocarro… Há uns anos vislumbrou a concretização do sonho de ter uma livraria fora do comum e hoje, com mais ou menos livros à volta, acha que, no fundo, sempre lutou contra a possibilidade de ser apenas mais uma maria vai com as outras. Habita no Porto. E habita-se a si e aos outros. E aos lugares. Mãos e árvores. E, acima de tudo, habitua-se à ideia de não conseguir mudar o mundo mas de ser sempre possível mudar-se nele. 8 A SUL DE NENHUM NORTE trago as mãos sonâmbulas de te esperar ao relento na noite trago as mãos sonâmbulas de te esperar ao relento na noite. há muito que deixei de trazer mapas nos bolsos. respiro apenas a lonjura. esse país onde habitamos há demasiados séculos. à deriva, o corpo. nem a voz se comove já num abraço. 9 A SUL DE NENHUM NORTE esta noite esta noite o vento voltou a encrespar portas e janelas depois vieram gaivotas e pousaram pedaços de mar no tecto das casas e a cidade tremeu (e tu tremeste-me nas mãos) à espera de outra coisa qualquer semelhante ao primeiro de todos os dilúvios (ao primeiro de todos os beijos) 10 A SUL DE NENHUM NORTE as árvores irrompiam paredes dentro as árvores irrompiam paredes dentro as mãos eram raízes os pés eram raízes escrevia no cimento com os lábios com a boca tinha olhos na ponta dos cabelos em chamas o fogo eram as sombras a consumirem as madeiras do corpo o soalho a ceder na ausência de vultos nenhuma flor a tecer manhãs nas janelas nem a abrir palavras na boca eu quis a morte lentamente como se morrer fosse apenas dormir para sempre lembras-te? a morte seria apenas como dormir para sempre e a noite um barco ancorado em praias onde o mar nos subia em remoinho a pele dos sonhos eu quis um dia fechar o mar num aquário mas desconhecia o rumor das ondas contra paredes de vidro desconhecia a fome dos corações fora de água ouviste? eu desconhecia a fome dos peixes fora de água o mundo devia ser mais bonito de pernas para o ar falta-nos ainda varrer a terra dos pés para caminharmos sobre nuvens e acordarmos de cada vez que fecharmos os olhos lentamente ouviste? 11 A SUL DE NENHUM NORTE os dias são feitos de noites intermináveis os dias são feitos de noites intermináveis de canções que se enroscam ruidosamente ao corpo e eu trago o inverno a respirar-me junto à face trago as mãos rasgadas sem bolsos onde se encolherem de frio é mais do que certo: se te visse regressar manhã dentro não sobraria apenas a geometria das árvores em redor do coração 12 A SUL DE NENHUM NORTE Bruno Béu Bruno Béu prepara-se para defender um doutoramento em filosofia. É docente convidado no curso de especialização da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Filosofia e Estudos Orientais. Membro integrado do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e sócio do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira. Tem poesia publicada em antologias de poesia portuguesa contemporânea e revistas literárias. 13 A SUL DE NENHUM NORTE ao cimo (à direita) de quinze degraus ao cimo (à direita) de quinze degraus porque os ciclos reencontram-se sempre um dia (longe da câmara) afastados, nós ainda dos primeiros bês ou efes, ou esquecidos do olhar exacto dos espelhos1 vou contar-te (agora tenho tempo) noites em linha recta e o ilusionista fazia truques daqueles com argolas. porque nós sussurrávamos isto: a perfeição, o tempo (agora tenho-o, como creio disse) e o que está aberto, afinal isto tanto que nos é tudo2. línguas de gato, uma ou duas pô-las na boca. dizermos: esta e noite. quebrar um copo. beber a água do chão (haver muitos vidros). depois horas a olharmos o centro difuso e nus, do rosto um do outro. aprender o zero nesse lugar. e tocarmos o corpo de vidro, um do outro, na língua (um do outro). existir sempre um sim. e claro deitarmo-nos juntos por poder morrer uma árvore essa noite, um círculo. ou apagar-se na rua, uma luz. 1 2 o que é um corpo? um copo? um r? um rio? atravessa tudo 14 A SUL DE NENHUM NORTE consoada de uma mulher sozinha consoada de uma mulher sozinha chegas a casa com as mãos cheias de sacos e vincadas pelo esforço. o silêncio é escuro antes de acenderes a luz; depois o silêncio é o mesmo, mas ilumina a solidão nos objectos da casa. largas tudo logo à entrada. acendes a luz fria da casa de banho. pegas no elástico, agarras os cabelos, escuros. e lavas o rosto. ele vai ficando na água. até que o faças escorrer pelo ralo: sem nenhum som. 15 A SUL DE NENHUM NORTE algum questionamento sobre a refracção e outros fenómenos algum questionamento sobre a refracção e outros fenómenos sei que os caminhos de regresso estão cheios de gente de chapéus coloridos, contentes, quase crianças, como se enfim existisse um regresso o que (parece) não há. se perguntar para o lado: sabes que não há nenhum regresso? estou até quase certo que dirão: sim, sei e continuaremos no mesmo caminho de regresso. porque onde há caminhos há regressos inventados. como se não pudéssemos caminhar sem acreditar que regressamos para alguém para algo. é se calhar até por isso que o hélio dos balões quando sobem sempre nos sobe muito a voz lá muito para os agudos animados. e rimos, e depois os balões esvaziam-se num rodopio pela casa; ou se calhar tens razão, isto venha a despropósito. nisto, o que te pergunto é se compreendes: o regresso é o amor. e nós inventamos o amor até nos lugares mais improváveis os nossos indicadores descobrem o destino das viagens num mapa ainda às escuras, e regressamos. há um sentido até mágico se por exemplo entrares num café numa mercearia e pensares: estou a regressar. porque logo o amor se inventa, e o lugar regressa, diz-te (como se dissesse): sim, é aqui que tudo começa, que tudo se renova. o amor é um mapa consideravelmente grande. no lugar do pendura e com ele aberto assim entre as mãos ele cobre praticamente todo o tablier e não vês nada pelo pára-brisas. é mesmo muito grande (dá para perceber) nele os nomes de todos os que existem como novas cidades ou destinos podem ser encontrados. agora beijo-te. digo boa noite e é como se entrasse numa dessas tuas ruas, num café perguntasse o horário do autocarro até ao parque, no mercado ouvisse a d. eulália falar-me da frescura daquelas laranjas. beijo-te. nenhum regresso existe. ainda assim (parece) regressamos. 16 A SUL DE NENHUM NORTE para flauta, violoncelo e sala para flauta, violoncelo e sala regresso aos teus olhos. escuros como batalhas. sem prosas, hoje respiro. digo: ouço. (e perto, lembro-me: escuros). uma sala vazia é melhor. para a ressonância: do violoncelo, entendes? hoje regresso a eles. sem acentos, nem perguntas. estendo-me no chão da casa e recuo. deixo a vertigem (várias) as estações (o próprio tempo, se pudesse). digo: ouço. saio da locomotiva a meio do percurso. digo que me sinto mal, e sento-me longe dos aparelhos. regresso. uma sala vazia é melhor. entro. levo a mão direita dentro do casaco. (lado esquerdo). o frio repara nisso. 17 A SUL DE NENHUM NORTE Cecilia Eraso Cecilia Eraso (Neuquén, Argentina, 1978) é poeta, docente e investigadora. Tem publicados dois livros de poemas – Isolario (Neuquén, Cartonerita Solar, 2010) e plutón canta (Buenos Aires, Editorial Funesiana, 2010) e a plaquete Orientación Este no P.L.U.P. (Proyecto Latinoamericano de Unión Poética, 2010). Faz parte do conselho editorial da revista de literatura www.elinterpretador.com.ar e coordena com outras poetas o P.L.U.P. (Proyecto Latinoamericano de Unión Poética, 2010). 18 A SUL DE NENHUM NORTE o silêncio é saúde o silêncio é saúde obrigação de fazer silêncio, pelo próprio bem silêncio, como em tardes ronronam as pombas em janeiros sufocantes de interiores de países e as bétulas fazem cócegas com os seus ramos nos astros, com as suas fibras de tapetes distendendo-se nos anos suavezinhos; consequência da pauta dos ritmos regulares centenas de aspersores crescem com os pastos, e algo do cheiro das pedrinhas desluzidas quando a água se retira e algo do cheiro que se despede dessa terra inimizada com a ideia de se desvanecer; ou melhor, obrigação de submeter-se a certos ruídos que competem com o latido, melhor é que não se escutem as arritmias e as mãos sempre longe da esquerda peitoral; não será o que sonhaste a avenida nesses sonhos prolongamentos de montanhas e flutuando neste limbo os sons funcionais das costelas algo inóspitas; vibrantes com o ritmo idiota, os pensamentos, dominada pela mão sempre insatisfeita; uma natureza menos generosa, de um campo de golfistas amainados mesmo que haja sempre algum quero-quero que complique esse difícil artifício que é o simples dos campos cimentados pela industria, os arreios da lavoura um desejo de nuvens desbotadas corruptoras desde as menores ansiedades, dum espaço grande como um céu sem recortes que baralhe e dê outra vez, isso, um momento de gerânios que recuperam folhas perdidas; isso, estar fora 19 A SUL DE NENHUM NORTE representação de engrenagens representação de engrenagens chorosos os olhos que olham o ecrã imóvel, a imagem do animal morto abatido pelos tiros no momento culminante da sua rebelião e de tão vista sem dúvida incomoda o coração com a carga das moscas; como um vento cheio de lixo e folhas secas, a evasão das ideias apaga como invólucro de alfajor[2] essa emoção, a do momento congelado o garfo quieto na mão e já não poder comer pela urgência do pranto contido o pedaço suspendido o vendaval das ideias que leva toda a parte sensitiva e traz em troca as folhinhas quebradiças das associações e as ressonâncias políticas do feito: não é impossível chorar por estas mortes, não. [2] Alfajor (pronuncia-se alfarror) é um doce tradicional em Espanha, Argentina, Chile, Peru, Uruguai e outros países ibero-americanos, mas originalmente criado no Equador. O nome vem do árabe al hasu e significa recheado. 20 A SUL DE NENHUM NORTE coaxialidade coaxialidade sabias que uma madeira abandonada cobrindo de serradura o chão húmido dos projectos viria a ser como dizer nada muda na letargia insuportável da própria incapacidade? que na noite das predições todos são símbolos loquazes? 21 A SUL DE NENHUM NORTE um fotão para a posteridade um fotão para a posteridade A imagem mental dita: dissolvendo-se no cosmos isto a que chamámos o infinito com abelhas cálcio, hidrogénio, perucas, almas mortas à espera de transmigração, outras realidades, camisolas cidades estrangeiras, mulheres somos, aves, peixes, campos abstracção, um frio assim que sacode superfícies? no meio da rota da divindade, fazendo-lhe cócegas à carne, no calcanhar aquíleo da indiferença, diante das sagas de folhas secas, instantes perdidos do original, o fóssil transformado em beberagem espessa do início e quando alcançar os vestígios da calma, a era do fotão seja ele pálida recordação de nós próprios num todo de buracos à medida: palpitem antes as janelas com o fogo das radiações? cintilar de TVs enquanto chove nas tardes cinzentas, nessas primaveras, e até sempre? Tradução, Nuno Abrantes 22 A SUL DE NENHUM NORTE Celeste Wladyka Celeste Wladyka, 1983. Mora em Buenos Aires, onde nasceu, mas tem Lisboa traçada no coração. Estuda Letras e vai trabalhar de bicicleta. Tem publicado artigos académicos sobre poesia e música, traduz poetas portuguesas com amor e faz canções. Os quatro poemas que aqui se apresentam fazem parte da série Poemas do português, fruto da paixão pela língua de Camões. 23 A SUL DE NENHUM NORTE Lusíada Lusíada gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões a tua língua é tecido é lençol para me fazer um vestido algodão branco feito por mãos pretas casulo de seda -milhares de vermespara me tornar borboleta a tua língua é Mondego aberto ao meu destino de Ofélia cheiros recolhidos pelo orvalho aldeia solar do meu sonho antigo na memória as nossas línguas entrelaçam-se num monograma esquecido 24 A SUL DE NENHUM NORTE Risus paschalis Risus paschalis Ela disse- me deixa falar a boca do corpo mas a boca do corpo não fala grita grita nessa linguagem almejante sem dentes embora saiba devorar a boca do corpo ri ri um sorriso nu de criança precisaram-se todos os séculos para esquecer a sua androfágica potência agora -ágora elásticanum gesto alimentício acontece o sacrifício o banquete de verbos e corpos 25 A SUL DE NENHUM NORTE Lacrima corpus dissolvens Lacrima corpus dissolvens às vezes apresenta-se um animal coberto de penugem e pó quer morar comigo deixa o ar frio enche o ar de um leve fumo cinzento enquanto passa leva uma mala com obscenos objectos do passado e exibe-os sem vergonha, cruel eu desmancho palavras sobre ele como se cantasse uma canção antiga mas esse animal (que não é mesmo animal mas criatura estranha, corpo feito de escuridão e lágrimas) torna-se milhares de gotas microscópicas que eu respiro como se fosse vírus e enche meu peito de um espaço vazio e amargo eu tento deitá-lo pela boca fora, cuspi-lo, mas só sai pelos olhos quando já é salgado acontece assim, às vezes. 26 A SUL DE NENHUM NORTE Orbis terrarum Orbis terrarum as ruas nos mapas nos papeis, as palavras fracos fios pretos num atlas de anatomia do corpo humano traçam-se avenidas interiores largos, becos, cantinhos, travessas sobem e descem dobram-se e erguem-se ao percorrer a cidade a língua faz-se carne os órgãos recebem nomes de ruas as pedras amolecem no contacto da mão os verbos revelam os poderes secretos das articulações as ruas nos mapas nos papeis, as palavras fracos fios pretos feitos carne na voz terramoto selvagem que desaba a fala da mãe fluxo quente que esconde vestígios do mar voz que atravessa a língua portuguesa e sai do peito do mais perto do coração a ferver no forno do centro do rosto 27 A SUL DE NENHUM NORTE João Villalobos João Villalobos www.emocoesbasicas.blogspot.com www.facebook.com/joao.villalobos 28 A SUL DE NENHUM NORTE Acunpuntura das feras Acupunctura das feras 1. Temos o medo. Ele amanhece connosco. A vontade é não ter braços para o receber, Antes afastar o eco de tudo o que está dentro. Lembramos em defesa o sabor da fruta, nesse tempo em que os morangos eram ainda pequenos e as ameixas na árvore se dividiam em inconfundíveis cores, duas apenas. 2. Com memórias de amor por quem fomos Levantamos a tarde e o corpo prossegue. Confesso: Uma vez perdi um amigo por não saber a cor do seu nome. Não convém atravessar a vida sem olhar 3. Temos a esperança. Ela dorme sem abrigo, aí onde consegue estender o coração. Todas as noites alguém nasce E a isso chamamos a acupunctura das feras. Ou amor. 29 A SUL DE NENHUM NORTE Idra Novey Idra Novey O seu primeiro livro de poemas, The Next Country recebeu o prémio Kinereth Gensler de Alice James Books e foi incluído na lista de Melhores Livros de Poesia de 2008 daVirginia Quarterly Review. Recebeu prémios da Poetry Society of America, National Endowment for the Arts, Poets & Writers Magazine e do PEN Translation Fund. Traduziu dois poetas brasileiros nunca antes vertidos para a língua inglesa, Paulo Henriques Britto comThe Clean Shirt of It (BOA Editions, 2007) e Manoel de Barros com Birds for a Demolition(Carnegie Mellon, 2010). Novey é de momento Director of Literary Translation na School of the Arts da Universidade de Columbia. Meanwhile the Watermelon Seed: publicado no jornal Subtropics The Ex-Carcel of Valparaiso: publicado no jornal A Public Space Definition of Stranger e Two Women in a Barn: publicados no livro The Next Country, editora Alice James Books, 2008 30 A SUL DE NENHUM NORTE Entretanto as sementes de melancia Entretanto as sementes de melancia Na terca-feira, chegam novos prisioneiros. No fim do outono, quando as folhas entopem as sarjetas e as suas últimas cores desaparecem como estrelas, chegam novos prisioneiros. Enquanto outro avião levanta voo e um tentilhão vermelho aterra. Enquanto grupos de alunos avançam a tentar descobrir rebuçados azuis. Às três da manhã, quando os cães mudam de posição na cama e perturbam os seus donos que olham para fora e descobrem que está a nevar. Na hora em que telefono à minha irmã e ela esvazia a máquina de lavar, novos prisioneiros. Na hora em que os condutores piscam os seus faróis e as flores fecham e os pirilampos ficam presos em frascos. Na hora em que não chamo ninguém, não leio nada, e mesmo assim a hora desaparece. Na cidade sufocante, onde um amigo trás uma melancia e nós cuspimos as suas sementes para o telhado do museu que é ali ao lado e o mundo parece ter conserto e temporariamente certo, chegam novos prisioneiros. 31 A SUL DE NENHUM NORTE Definição de desconhecido Definição de desconhecido Pessoa que não é membro de um grupo: um visitante, convidado, ou o seios que roça no teu braço no metro. Pessoa com quem não tiveste nenhum contacto mas que tirou a tua cadeira de baloiço da berma e se enrosca nela e fecha os olhos. Pessoa agora atrás de ti na fila, à espera de um copo de água, ou de whiskey, de elixir. Pessoa a ligar-se online no mesmo segundo do Home Depot em LIma. Ou à procura do Dalai Lama. Pessoa nem cúmplice nem parte duma decisão, edital, et cetera, mas que comeu do mesmo garfo na pizzaria e beijou a tua irmã mais tresloucada no fim de ano. Pessoa designada para alimentar o tigre no zoo onde tu uma vez puseste a tua mão na palma da mão do pai de outra pessoa. 32 A SUL DE NENHUM NORTE A ex-prisão de Valparaiso A ex-prisão de Valparaiso E então foi decidido que a prisão vazia seria reaberta para festivais — que um pónei seria preso a uma mesa e que as crianças pagariam por passeio ao longo das paredes A mesma hora, lá nas pampas, foi encontrado um lama a trotar entre os cavalos e um astrólogo em Santiago viu os futuro cósmico nas cerdas esmagadas duma escova de dentes No mesmo minuto na prisão um homem começou a afinar o seu violoncelo numa das celas vazias e alguém coxeou por ali com timbales e as crianças começaram a segui-lo, crianças, alguém disse, que a seu tempo irão construir uma prisão deles e talvez esvazia-la e talvez enche-la outra vez — 33 A SUL DE NENHUM NORTE Duas mulheres num celeiro Duas mulheres num celeiro acontece que uma mãe se torna pergaminho e se arrasta gradualmente à volta das ficções dos seus filhos. Que ela se torna amêndoa a amolecer nos bolsos das roupas de algodão. Dorme em casa da filha com os óculos postos e de manhã desaparece. Que ela forçou o seu filho crescido a alimentar o seu cavalo cego, vendo-o sacudir a cabeça no pequeno picadeiro. Acontece que uma filha se transforma numa garrafa que se enche de rebentos e pedaços enrugados de folhas. Que ela gosta de cintilar na água como uma garrafa de vidro. Tradução, Maria Sousa 34 A SUL DE NENHUM NORTE Maria Sousa Maria Sousa é uma lebre que é uma Alice e gosta de passar a tardes no café Santa Cruz a ler e a escrever. Gosta de revistas e já participou em algumas (Criatura, Sítio, Umbigo, Saudade). Escreveu “Exercícios para endurecimento de lágrimas” (Língua Morta, 2010) mas ainda chora quando ouve a Lhasa e o Tom Waits. Não gosta de dar aulas e quando for grande quer ser livreira. 35 A SUL DE NENHUM NORTE aqui não há ninguém aqui não há ninguém o quarto é um pedaço de espelho com uma mulher a um canto nada mais do que um reflexo em vez de corpos, feridas refúgios para encher vazios para os traduzir uso o vento saem versões confusas onde o corpo e os cigarros a morrer no cinzeiro precisam de palavras novas ela senta-se no meio do quarto como se todas as palavras fossem restos de vida 36 A SUL DE NENHUM NORTE vejo-te na soleira da porta I vejo-te na soleira da porta hesitas. em cena apenas estou eu penso em mudar-me mas entre erros e desculpas falta-me espaço se contares histórias serão daquelas que ninguém quer ouvir relatos de passeios de domingo onde há sempre ruínas sim, restaram apenas ruínas escavadas no interior dos olhos II entras, não tens medo rodeado de olhares com sono que ainda não sabem Que as palavras são sempre as mesmas (uma espécie de cerimónia onde te repetes para evitar a morte) mentimos os dois sobre uma história feita de fragmentos dizes que nem sempre o guião é o mesmo mas repetes-me o teu monólogo ao ouvido “deixa-me sair” vou abandonar a personagem que balança no vazio ultima tentativa: observo-te e tu já não me vês conheces-me tão pouco, não, isto… isto não é um dueto, é um duelo friamente o silêncio cai sobre nós não há vozes nem adereços (a cena está vazia) há apenas uma cortina de vento onde as palavras nunca se moldaram 37 A SUL DE NENHUM NORTE A mulher A mulher organiza as sombras para evitar o escuro é prudente na batalha com as perguntas que pousam no dia sorriso quando o som do telefone invade a sombra nenhuma palavra lhe sai da voz deverá falar como se fossem outras coisas a respirar em vez do grito? à janela, o vento e o sol, limpam-lhe as vozes sobrepostas a dizer aquilo que a voz não diz. mas não hoje disse que não seria capaz de mudar perdida no quarto, onde utiliza os hábitos como movimentos grosseiros nenhuma palavra ali tem asas fica apenas o silêncio onde a mulher fecha as persianas e depois as cortinas 38 A SUL DE NENHUM NORTE como pretexto para amputar sonos como pretexto para amputar sonos que venha o Outono! encerramos a casa, é domingo, e ficamos a ouvir os cães a ladrar ao longe próximo do amanhecer chama-se nuvem a uma metáfora onde os pássaros vigiam os intervalos das árvores será o Verão a epígrafe de dias esquecidos? 39 A SUL DE NENHUM NORTE Pedro Jordão Pedro Jordão escreve por acidente. Não acredita em notas biográficas, não gosta de lavar a louça, mas é bom tipo. Também é arquitecto e programador cultural. Tem trinta e três anos, vive em Lisboa e sabe que nunca vai ser grande. 40 A SUL DE NENHUM NORTE Tríptico (dos destroços imensos) e bocas queimadas. é o que recordo dos nossos acidentes domésticos. para não desprender a fala do erro íamos conjugando os verbos certos no tempo errado e adormecíamos com o cansaço crescendo daninho nas bocas abertas de espanto. então as manhãs iniciavam-se estrangeiras e o amor inclinava-se perigosamente sobre o parapeito da janela. o fim era apenas um electrodoméstico avariado: funcionaria um dia. porque sobreviver é florir sobre a carne morta mas exige-se ao músculo que desista. (da divisão dos despojos) o que não foi destruído ficou em silêncio sobre a mesa mas reparem: só o que perece não dói. a dificuldade é incinerar o que fica o passado é pouco combustível mas os dedos como os nós também se cortam. mas como dividir o saque que é inteiro onde rasgar em que linha imaginária se ainda hoje todos os decretos foram decretados nulos. (do passado incompleto) como se me tivesses mordido a língua para que me doesse o teu nome e as noites apodrecidas pelo sono não acrescentassem um dia à contagem dos dias e se ao menos a memória fraquejasse como a fraca carne para que da metade em falta o corpo não recordasse o caminho. 41 A SUL DE NENHUM NORTE Pedro Outono Pedro Outono Estudou Filosofia e Jornalismo na Universidade de Coimbra. Para além de docente, exerce também a actividade de guia-intérprete de turismo. Tem publicados quatro livros, dois de poesia e dois de contos. Mantém um blogue de temática exclusivamente literária, O Blog do Tlönista, onde são revelados alguns dos seus textos. 42 A SUL DE NENHUM NORTE descobri que as palavras não fazem sobreviver as sílabas descobri que as palavras não fazem sobreviver as sílabas por isso calamos o sono sanguinário e revolvemos o sangue à procura da sopa de letras numa impaciência ácida e enjoativa próxima da nevrose a pesadelar na mão que não se estende mas: algures uma pedra da calçada ama-me esperei notícias enxutas nas melenas e axilas sem que o meu nano-exército indicasse vestidos leves e saínhas curtas e agitadas o regresso da enxada na matéria da entrada foi um fiasco quem me dera ter uma canção pop no cotovelo para narrar os lados côncavos da alma uma alma pop como feijão misturado no arroz língua que não fica nos orifícios e ganha pernas modernas a excrescer prazer Respondo: alguma nuvem ainda acredita em mim [mas não vale mentir nestes jogos silenciosos] 43 A SUL DE NENHUM NORTE logo de manhã fecho a porta do livro e vou logo de manhã fecho a porta do livro e vou trabalhar. sou obrigado a entrar nos andaimes para sarar este cio do estômago sapatos novos uma camisa possivelmente lavada o dia inteiro com a maceta e ponteiro na mão e a espinha vergada o dia inteiro com o ranho por dentro a mesma cola da moralidade ultra-cozida a implacável deserção da gravata apresenta-me tal qual homem do povo das cadernetas. os pernetas as árvores andam mais do que eu os aselhas luminescem mais do que eu quando volto para casa a porta já não está na página certa é como se a perdesse irremediavelmente e nunca mais voltasse a entrar na pele que a leitura me dá 44 A SUL DE NENHUM NORTE vamos pôr o avental vamos pôr o avental e esfregar o lar disse ela. vamos arrumar a miséria varrer o trabalho manter a cara encerada há que puxar o lustro ao orgulho disse e ladrilhar a liberdade martelar a beleza das flores arear o desejo repintar os lençóis e escolher paninhos e carpetes até lavar as mãos no amor para comer bem-estar apurado e tudo ficará a brilhar como antes com ar arrumado disse para se poder estar sossegado a esperar a morte mas limpinhos 45 A SUL DE NENHUM NORTE quando acordo estou melhor dos armários quando acordo estou melhor dos armários mas à medida que as horas se assam as gavetas deixam de lalar acordo com os hemisférios trocados e a ladração dos equinócios reconduz-me ao governo dos frigoríficos às vezes ponho música pop nos pés para me recordar do corpo e é nas colcheias que digo não. não. não. com passível irresistibilidade não. não. não. não tens navios nas artérias não. não há comida na boca não. não há escroto insano descubro anúncios histerólogos simulando promessas e os olhos derramam esta tremura dos bolsos onde procuro esconder o quanto não existo não. não. não deito-me e minto ponho os pés nos pés e digo não ponho música pop na língua revestida de seios ao mesmo tempo que ergo a inexistência num papel onde não chego a escrever 46 A SUL DE NENHUM NORTE Rui Almeida Rui Almeida nasceu em Lisboa, em 1972. Mantém, desde 2003, o blogue Poesia distribuída na rua. Publicou em 2009 o livro de poemas Lábio Cortado (Editora Livrododia). Tem textos seus em várias revistas e antologias. 47 A SUL DE NENHUM NORTE Não, voltemos atrás Não, voltemos atrás, Descubramos toda a violência contida Em cada dobra de cada livro. A paz se apascenta na demora E rasga artifícios, Mesmo os mais bondosos. Sim, qualquer coisa que funcione E que traga resultados Palpáveis. Um comboio ou um saca-rolhas. Porque precisamos de ir Para onde nos calhe destino Ou de abrir garrafas para que o vinho Se derrame. Que seja útil, Mesmo que nos faça infelizes. Não, cair ajuda A beijar o chão. Por mais que grites Cresces tão devagar Quanto as folhas Do mais vulgar limoeiro. É assim a vida, Todos acabamos por florir alguma vez. 48 A SUL DE NENHUM NORTE Sim, por menos que isso Deixámos fugir a felicidade, Resta-nos respirar pausadamente Com outros pulmões Que não os habituais. As nuvens sobre a cidade são de outro jeito, Filtradas por prédios A provocar falhas na comunicação Não detectadas no campo. Não com tanta frequência. Não, não tinham vertigens nem afrontamentos, Mas demoravam-se até chegar Ao mais alto ponto. Apenas para contemplar, Diziam. Sim, poucos deram por ele, Quase ninguém quis saber, Mas depois todos se alinharam Para receber os lucros, Indignados por terem sido, Cada um, O único a dar atenção desde início. Ou quase todos, Ainda há quem tenha vergonha. 49 A SUL DE NENHUM NORTE Não, o que se dizia era outra coisa, Tinha a ver com projectos a concretizar Num futuro próximo. Assuntos lá deles, Mais vinte dias úteis e o caso compunha-se. E depois se veria, Nada que não se pudesse resolver. Sim, por muitos e bons anos Até que a incerteza separe A cal da parede, Até que comecem a arder, Por excesso de exposição, Os móveis que o sol visita pela janela. A madeira é duma fragilidade Metódica e paciente. São de madeira os punhos Elevados perante as seduções. 50 A SUL DE NENHUM NORTE Sonata Paliulytė Sonata Paliulytė é poeta, tradutora e actriz. O seu primeiro livro Ps foi editado em 2005: recebeu vários prémios literários entre eles o prémio “Young Jotvingis” para o melhor primeiro livro de poesia. em 2009 publicou uma antologia bilingue (Inglês/Lituano) de Emily Dickinson. Está prevista a publicação do seu segundo livro de poemas para 2011, e Still Life, Selected Poems vai ser publicado em Inglês na Escócia. Seu trabalho está publicado nas principais revistas literárias tanto na Lituânia como no estrangeiro. Vive em Vilnius. 51 A SUL DE NENHUM NORTE Silêncio Silêncio O teu silêncio Não disse nada, Enquanto este momento Se partiu sobre a minha cabeça. Eu queria Apenas uma palavra – Mas não tenho nem Uma curta oração. Por vezes estás aqui., Depois és uma sombra a desaparecer No nosso barco da vida rachado. Do outro lado do mar — Apenas areia e azul. Eu aguentarei a culpa 52 A SUL DE NENHUM NORTE Ventoso Ventoso Lábios e mãos gretadas. Ponta dos dedos amareladas, Mais escuras do que filtros de cigarro. Pó varrido debaixo das unhas Olhos vermelhos como se os tivesse esfregado a noite toda. Que sorte não me sentir estéril! Quão extraordinário – o afastar da sensação de tempo quando o corpo se torna algodão-em-rama e o vento assobia dentro da alma. 53 A SUL DE NENHUM NORTE Meditação da batata Meditação da batata Agachada junto ao lixo Descasco batatas O ritual é simples Aparo os grelos Arranco só os olhos Deito as cascas num monte Thump…Thump Batem as batatas na pia Vou ralar uma grande bacia e cozinhar panquecas de batata Eram as que mais gostavas. Uma panqueca para a mamã outra – para o papá, a terceira – para a titi para os avozinhos idos em memórias para a pequenita, para mim por todos os dias e noites por todas as lágrimas derramadas a serem engolidas hoje com as panquecas – Salgadas panquecas serão. Se alguém salga demasiado é porque ama, diz o povo, Mas não há piedade hoje. Apenas uma frigideira, apenas um estoiro de óleo bem apontado; a cara nua as mãos nuas no centro do alvo, o acinzentar das batatas cruas, e as estranhamente cozinhadas panquecas ligeiramente queimadas como tu gostavas, ensopadas em óleo, ensopadas em lembrança. 54 A SUL DE NENHUM NORTE Eternidade Eternidade Esperança – temperada pelo fogo — Uma traça a voar na direcção da luz Pousa cansada no teu ombro E olha fixamente para a tua cara magra – Olhos gelados como o céu, Olhar afiado como um estilhaço Gravado na memória, Caí como pó na terra. Tradução, Maria Sousa e Nuno Abrantes 55 A SUL DE NENHUM NORTE Tatiana Pequeno Tatiana Pequeno nasceu no Rio de Janeiro, Brasil, em 1979. Publicou, em 2010, seu primeiro livro de poemas, réplica das urtigas. É professora de literaturas brasileira e portuguesa, tendo defendido recentemente tese de doutoramento sobre Maria Gabriela Llansol. Ouve desde sempre muitas canções e muitas reverberações do mundo, por isso costuma comover-se até hoje com a longa introdução de “Cortez the killer” do Neil Young e as aparentes dissonâncias de toda uma geração que sabia do que o Loveless, do My Bloody Valentine, tratava. 56 A SUL DE NENHUM NORTE metal heart, outra versão metal heart, outra versão foi depois de muitas casas que os dez anos ultrapassaram o assombro e a devastação da própria voz enrouquecida. verdade é que sempre soube o que uma canção leva ou deixa e como num verso diz-se “você será mudado” agora é provável que reveja o significado de todos os sonhos que sabem mal embora a usina de álcool tenha incendiado nalgum dia em 1998, quando a incisão cardíaca fez crer que fora do silêncio também haveria abrigo. 57 A SUL DE NENHUM NORTE carta para arcíria carta para arcíria não te assombram os ciprestes nem as vestes da tarde límpida que declinava na cidade ao inverno dos teus queixumes, dos teus modos de olhar o insossego ou a vista parcial das linhas de modo que estás detida no carbono acendido ao coração, frasco para paisagem ou migração do que é dureza, acrílico, encomendas e vozes que deixamos fixas noutras imagens que julgamos mortas e vão apenas ao encontro da mesma parte nossa que mãe é e que nos sobra enquanto falta e por isso não te assombram os sinos e as corolas sobre o corpo irremediável porque danças no bosque a feitura das redes e hoje ainda serás recebida pelos elos doutra margem com cantos e esferas doces - uma ambrósia firme para o que chegam e partem – entre os galhos de julho, tanto de partidas e passagens 58 A SUL DE NENHUM NORTE litoral litoral Não me queixava quando me desejavas apenas poucas horas da antemanhã, sob escuro espesso, olhos fechados e membros cerzidos. Era que eu também desejava mas que me visses em luz monocórdia, ao olímpico gesto de tatear as tuas costas de navio ao erro do exílio e se nisto eu encontrava estirpe para os olhos ou abrigo de titânio para o rosto ou simplesmente um modo de te fazer ficar por mais horas até que o pavor me dissipasse a água e enfim fôssemos iguais na condição da chuva e o teu marco no meu tronco fosse algo que nunca mais pudesses levar ou tomar de volta. 59 A SUL DE NENHUM NORTE réplica das esquinas réplica das esquinas é melhor assim é pousar o vento não vibrar mais um acordo sem medula outro ponto voraz é melhor assim as gavetas se prendem impedem a coluna das formigas na glicose um rastro de formas evoca o teu pouso sem acordo é melhor assim uma saída resistente na luz dos hipermercados, amando a ossatura dos jovens sobre moléstia nova pelas mãos de ervas a terra trabalhada saúda seu mutismo a oceania assim os pingos do amor em fim melhor melhor recolher e pousar os panos de limpeza em acordo (rápido, a mim ilumina) as formigas sabem se é melhor sem gotas, enfim o que vaza podia, mas não é o cheiro das ervas acontece um anel de palavras sem paz o mar é melhor assim ver o corpo não é juízo é várzea sobre charco, morses e holocausto líquido assente platéia seria falso não adormecer assim a miragem das lógicas sem rastro, formas mentira, nunca houve suspeita sobre a terra é sangue 60 A SUL DE NENHUM NORTE de ternura nos pingos para a fábula das urtigas acordo entre os guindastes fortes trégua de saída que sobe nove andares cansa análise de safena desmorona os ossos, venta poeira pousam as mágoas das gavetas aceno enorme sobre a costura da cama vaza vaza estanca aprende agora ela é possível somente inteira 61 A SUL DE NENHUM NORTE Tiago Gomes Tiago Gomes nasceu em Lisboa em 1971. É poeta e, em edição de autor, editou dois livros: Caixa Negra de Avião Desviado por Ataque Terrorista e Homem Vago em Cinzento (1995). Seguiram-se Brincadeiras com Cianeto (Edições Mortas, 1998), Viola-me Eléctrica (Fenda, 1998) e Antologia Auto-Ajuda (Ed. Mariposa Azual). Foi radialista na Voxx, comentador no programa de televisão Prazer dos Diabos. É vocalista dos Campos Blue Moves, Inspectores, Agência de Viagens e On The Road. Foi fundador da galeria ZDB. É director, produtor e editor da revista de arte Bíblia, que dirige há 14 anos. Produz os projectos musicais Furacão Sereno, On The Road e Inspectores. 62 A SUL DE NENHUM NORTE A cidade (não é Lisboa) A cidade (não é Lisboa) Grande como uma aldeia pequena como gente que não se olha as praças onde rimos e nos beijamos os cafés onde conversamos. 63 A SUL DE NENHUM NORTE Enquanto na sala ao lado fazem macumba Enquanto na sala ao lado fazem macumba algumas crianças vêem o Terminator que trouxeram do vídeo clube no centro comercial a seis blocos e meio jardim da nossa torre inviolável ele apanha o metro para se meter no autocarro corre para o barco atrasado para ver o Telejornal e apanha a camioneta para a sua torre anda alguns quilómetros sobre escombros pousa a mala da burocracia e voa pela janela de vidro duplo estatelando-se no chão esguichando sangue como um porco. 64 A SUL DE NENHUM NORTE Para o papel depressa Para o papel depressa não quero ouvir mais disparates. 65 A SUL DE NENHUM NORTE A orquestra desafinada A orquestra desafinada O frio gelara até o livro colado às suas mãos. Ao anoitecer, o pai, com o seu casaco almofadado de gola azul esfregava as mãos rindo o riso dos justos comandando a orquestra desafinada dos irmãos irrequietos. 66 A SUL DE NENHUM NORTE Isto 67 A SUL DE NENHUM NORTE Ângela M. Ângela M., nasço e vivo no Porto, respiro estas ruas de sol que tantas vezes me surpreendem. Acordo com pássaros de manhã, misturo números e ruas que deslizam até ao mar e sorrio muito quando uma Mulher - Poeta como tu, Maria, me convida a escrever para uma revista assim. 68 A SUL DE NENHUM NORTE 25 Megapixels 25 Megapixels Já verifiquei as sombras mais de muitas vezes - a luz está esquiva dentro das nuvens e digo baixinho para a máquina fotográfica encostada à minha barriga: “Sabes, acho que hoje ninguém subirá a encosta até aqui”. Ali ao lado, o Júlio apressa-se a alinhar as fichas vermelhas dentro da caixa enferrujada e espreita a estrada pelo canto do olho. Não quer que os seus homens se apercebam que está preocupado com as nuvens e inventa tarefas para os ocupar: um que abra o motor e verifique o óleo, o outro que percorra as tábuas gastas de madeira à procura de algum prego solto, vamos, vamos. E finge-se atento a esses movimentos, enquanto se encosta à cabeça amarelo-muito-gasto do cavalo de boca aberta. Há uma mulher apagada sentada num dos bancos do jardim, as pernas cruzadas e a saia distraidamente enxovalhada debaixo da coxa direita, os dedos ansiosos num telemóvel adormecido. Pode ser que espere alguém e que, juntos, escolham recordar esta tarde escura perto da minha grande árvore, transformados em pixels que depois converterei em fatias de pão, legumes e laranjas. Desde que o carrossel está aqui, tenho vendido mais megabytes, tenho emoldurado mais sorrisos que a seguir encaminho para moradas virtuais ou que enfio dentro de envelopes para moradas de telhas e tijolo. Outros ainda, a pedido, são resgatados tardes depois, junto à mala do meu carro preto. A esta mulher de dedos inquietos já a vi uma ou duas vezes. Tem cabelos castanhos que deixa lhe percorram a parte de trás do pescoço. Mas, nesta tarde escura, domesticou-os com desmaiados ganchos de plástico. O Júlio continua a determinar os movimentos dos dois homens preguiçosos, que têm a garganta seca e preferiam encostar os pés à rulote vermelha das cervejas. Anteontem, para me distrair, estive a contar os animais do carrossel: sete cavalos amarelo-muito-gasto, cinco girafas, cinco zebras, dez póneis brancos, todos alinhados três a três, todos de patas esticadas, as traseiras e as dianteiras, como se num galope desenfreado, freio nos dentes e sorrisos estragados pelo tempo. Há anos que vivo desta árvore e habituei-me a chamar-lhe minha. Tudo começou quando apareceu um glaciar naquela cama, lembras-te? Tu nunca gostaste do frio. E comecei - quase como fazíamos no Verão - a subir a encosta até aqui, dia-sim, dia-não. No início trazia-te agarrada à bainha das calças e custava-me caminhar, depois transferi-te para o bolso do lado direito e agora não sei muito bem por onde andas, mas a minha árvore ainda gosta de te ver e sorri-te. Mesmo quando lhe digo que não o faça. A máquina fotográfica veio depois, para enganar o silêncio. Com ela nas mãos finjo que estou muito ocupado, finjo que tenho um objectivo muito importante que mais ninguém conhece. Já 69 A SUL DE NENHUM NORTE não estou sozinho, porque afinal estou à procura de uma folha verde de contornos bem definidos e isso é mais importante do que, por exemplo, ir agora sentar-me muito depressa ao lado da mulher de ganchos no cabelo e percorrer-lhe os contornos sinuosos. Vou beber qualquer coisa para me distrair daqueles ganchos e aproveito para chamar o Júlio e os outros. Quando aqui chegou pela primeira vez, munido de licenças e registos, o Júlio queria encavalitar o carrossel mesmo em frente à minha árvore – exactamente naquele lugar onde os casais há anos se encostam para que eu lhes enquadre os abraços e assim ganhe o meu pão. E a minha cerveja. Insisti, recorri ao arquivo de sorrisos de papel que trago na mala do carro: convenceu-se finalmente de que aquela é a minha árvore e lá foi plantar os cavalos trinta e alguns metros ao lado. Depois, acendeu as luzes e carregou num botão azul escuro e encheu o jardim de repetidos sons metálicos. Todas as tardes a mesma coisa: óleo, fichas vermelhas na caixa enferrujada, sons metálicos. “Tu ajudas-me a mim e eu a ti.”, diz-me ele, já com os braços no balcão da rulote. “Sabes como eles gostam de fotografias em cima dos cavalinhos. E olha que eu podia não te deixar fotografar o meu carrossel.” Posse, pensei eu – a querermos fingir que somos donos de árvores e de cavalos desdentados. Desta vez não está ninguém dentro do meu bolso direito, acabei de o comprovar. Há tanto tempo que nem sei por onde andas. E afinal há três carros que chegam e o Júlio engole o resto da espuma, todo animado. Reconheço o primeiro carro e lembro-me que hoje é dia 21 de Março. O dia da Irene e do Eduardo. A Irene era a tua confidente e enchia-me de ciúmes a forma como conversavam baixinho no sofá, aos risinhos escondidos, tu e ela. No dia em que o vento frio te levou, a Irene não disse nada quando lhe toquei à porta, assustado: olhou-me com olhos cansados e um suspiro e agarrou ligeiramente o meu pulso. Como se tu lhe tivesses recomendado que se assegurasse que a minha artéria continuava a palpitar. Todas as semanas depois desse dia e durante muito tempo a Irene e o Eduardo queriam que eu jantasse com eles – e eu jantava, sabes, só para me poder sentar naquele mesmo sofá onde ainda te revejo, sem que ninguém reparasse. E mais tarde muito furioso comigo, quando chegava a casa e me sentia envergonhado por cheirar a ponta dos dedos à procura do teu cheiro. Uma vez, depois de um almoço de sábado e sem que nada tivesse acontecido, encostavas-te ao meu braço e eu amparava-te com muito cuidado, sem interromper uma lágrima que fosse. Sentiate nas unhas que me fincavas no cotovelo e, quando levantaste o queixo, os teus olhos mostraram-me um hotel, mostraram-me um comboio em movimento e a minha cama vazia. Nessa noite acordei num quarto sozinho e quando cheguei à sala a porta abriu-se e tu entravas, gelada do frio da noite, dentro do vestido com flores. O calmo Eduardo e a sua Irene, com filhos e filhos dos filhos, que todos os 21 de Março se enfileiram junto à minha árvore e se tornam mais numerosos. O que, para mim, serve bem, 70 A SUL DE NENHUM NORTE porque cada bebé novo que trazem nos braços significa mais pixels, mais envelopes convertidos em moedas. O Eduardo tem muitos cabelos brancos, penso eu, orgulhoso dos meus cabelos ainda todos castanhos, mas a barriga dele continua a caber dentro da camisola verde de todos os anos. Repete a roupa e adiciona rugas. A mulher dos ganchos agitou-se levemente, quase se ia levantar, afinal deixa-se ficar, estica a perna cruzada de cima e esconde o telefone na carteira e se eu fosse o filho mais novo da Irene também eu agora me sentava ao seu lado no banco e escondia as mãos dentro dos seus cabelos. Ah, como ela lhe sorri, como a Irene os vigia e me dirige um sorriso simples de contentamento. “Gostas dela?”, pergunto-lhe, quando me aproximo. “Gosto que o meu João goste dela, isso sim.”, responde-me a Irene, ainda hesitante entre deixar o filho esquecer-se das mãos naqueles ganchos e trazê-lo para a fotografia de conjunto. “Vais chamá-la para a árvore?”, insisto. “O meu filho que decida.”, desiste a Irene de se preocupar. Homem e mulher num banco de jardim, alheios às movimentações de uma família barulhenta e alegre que, indiferente às nuvens, não se esqueceu do 21 de Março. A Irene já não me pergunta como estou. Habituou-se a saber-me por ali, junto à árvore e ao temporário carrossel, habituou-se a ver-me de máquina fotográfica na mão enquanto percorro as ruas da cidade e, como tantos, também ela acredita que estou muito ocupado e não me interrompe quando foco uma parede com um graffiti qualquer que fala de saudade. Na minha sala vivem rostos desconhecidos que empacoto com cuidado. Para me entreter, invento-lhes histórias: imagino que o casal do norte descobre a calma quando ouve jazz, que o casal de olhos tristes todas as noites escolhe um filme-pipoca e ri-se hora e meia num sofá branco, que o homem de camisola bege de decote em V preferia estar abraçado à vigorosa vizinha de cima que lhe ocupa os pensamentos durante o duche. Às vezes, no meu blog, escrevo pequenos textos sobre estes sorrisos, quando não tenho mais nada para fazer e a televisão repete séries sobre hospitais e sobre agências de publicidade dos anos sessenta. O Júlio esfrega as mãos e não pára de sorrir, a família da Irene troca moedas por fichas vermelhas e os dois homens apressam-se a indicar cavalos amarelos e zebras a galope aos filhos dos filhos e às mamãs protectoras. Sons metálicos, uma e outra e outra vez. The merry go round, and round and the merry go round. Sem se cansarem, numa repetição de árvores que voam como borrões e de acenos àqueles que, com os pés na terra fria, os vêem rodopiar. Eu aproveito para fotografar esses volteios. Desfoco as girafas e os póneis, transformo-os em silvos de cor e interesso-me pelas mãos e pelos olhos que se escarrancham em cima de selas de madeira. Ajoelho-me, inclino-me, disparo um click atrás do outro e a Irene encoraja-me a procurar-lhes as feições. Silêncio. Já se foram, carros e ganchos desmaiados. Os dois homens descansam e o Júlio veio quebrar a solidão com a mulher de braços largos da rulote - vão descer juntos para a cidade e esconder-se dos curiosos dentro de um par de lençóis. Eu olho para a máquina fotográfica e desfio imagens. Aquela onde um menino ri em cima de um pónei enquanto, lá atrás, o seu tio João, escondido no canto superior direito da minha máquina fotográfica, acabou de tirar um gancho de plástico de uma madeixa castanha e tem a outra mão na saia enxovalhada da mulher do banco de 71 A SUL DE NENHUM NORTE jardim. Ela esconde a cabeça na curva do ombro dele e quase se consegue ver que está de olhos fechados. Deve suspirar, ou então aspirar-lhe o perfume, para o guardar num lugar secreto. As dezasseis fotografias finais exibem três filas de pessoas debaixo da minha árvore. O Eduardo de camisola verde ao centro, a Irene que todos os anos escolhe um lugar diferente e abraça um pequenino, orgulhosa porque os seus traços se repetem em cada vez mais rostos. Aqui descobre o seu nariz, naquele encontra as suas despenteadas sobrancelhas, outras vezes mistura-se com o Eduardo num maxilar sinuoso. Estas dezasseis imagens vão render-me uns quantos envelopes, penso. A mulher dos ganchos foi timidamente incluída em cinco delas e sorri, quase orgulhosa, a sonhar com uma nova família e as mãos cruzadas em frente à saia. São horas de regressar ao conforto da minha sala, os cavalos desdentados já se apagaram. Não sei que roupa escolheste naquele dia gelado. Havia dias em que te vestias só para mim. Deixei que a Irene fosse a tua casa, semanas depois, empacotar camisolas, saias e livros, quadros e filmes e nem olhei para os caixotes. Mas fiquei com a nossa primeira fotografia - apareces de vestido com flores e botas pretas altas, o casaco pousado sobre os ombros naquela tua maneira desinteressada. Esta fotografia que agora revejo. Eu estou ao teu lado esquerdo, tenho o braço ligeiramente estendido como quem não teve tempo de te abraçar antes que o obturador se abrisse e voltasse a fechar. Às vezes acordo muito depressa de um sono e ouço-te ao meu lado, a revolveres os lençóis enquanto dormes - mas se estico o braço não estás. Uma noite sussurrasteme três palavras e sonhei com um rio de águas grandes dentro de uma montanha. De manhã, a tua fotografia cheirava a neve. Levanto os olhos deste pedaço de papel onde ainda vives e onde o meu braço não te consegue alcançar. Do outro lado da praça acendeu-se uma janela e alguém corre a cortina, devagarinho. Uma esguia silhueta que mal distingo e, de repente... és tu? És tu nesse vestido florido que te inclinas à janela, quero voar para te rever, atravesso a praça numa correria, toco à campainha e quando a porta se abre uma mulher ensonada recebe o meu entusiasmo - desculpe, naquela janela assim, pergunto, lamento, diz a voz quase adormecida da mulher, mas a senhora do primeiro direito acabou de sair. Parece que demorei demais. Percorro as ruas que nascem na praça, procuro-te nas mulheres que se passeiam, nas que espreitam as montras, nas que falam baixinho ao telemóvel e regresso a casa de mãos nos bolsos. Nada no bolso direito. Passo tantas noites em frente à janela, à espera de surpreender o teu vestido. Troquei todos os meus horários: subo até à árvore a meio da tarde, cumprimento o Júlio, guardo duas ou três fotografias de algum distraído casal e apresso-me a descer à cidade para te procurar. Todas as noites testo a paciência em frente à janela, sem gesso numa perna (como naquele filme de que gostavas) mas com a máquina fotográfica na mão. Pertenceria aquela silhueta na janela a uma 72 A SUL DE NENHUM NORTE outra mulher de longos cabelos castanhos e cintura fina, desanimo. Os dias enrolam-se uns nos outros e tu continuas silenciosa. Os meus sorrisos atenuam-se e, umas semanas depois, atravesso a praça com vontade de te encontrar mas a mulher ensonada já não te vê há mais de catorze dias. Devagar, retomo os horários do Júlio e das girafas a galope, afasto-te dos meus pensamentos, evito a tua janela e contorno a praça. Repete-se o mesmo sonho: entras com a neve nos lábios e flores na saia, dizes-me três pequeninas palavras na contracapa de um livro e, pela manhã, a fotografia mudou outra vez de lugar – estás agora junto à taça das laranjas, de sorriso trocista. Ontem trazias os óculos escuros como se já fosse Verão. Agosto. Agosto seco, debaixo da minha árvore, a romaria de sorrisos aumenta em Agosto o que, para mim, serve bem, porque me distrai do teu casaco pousado nesses ombros magros que gostava de empurrar contra o colchão. Não voltei a ver a janela da praça com a luz acesa, se calhar decidiste trocar os meus sonhos por um lugar qualquer que não conheço, onde imagino correrá um rio de águas fortes cheio de sol. De tanto as querer recordar, as três pequeninas palavras escondem-se de mim dentro da parede, para que as não ouça. Até que: uma mulher. As mesmas botas altas, pretas, o mesmo contorno de joelhos, as mãos ao acaso que enrolam uma madeixa de cabelo – sigo-te pela cidade mas sem te querer falar, não vá esta mulher não seres tu. E fotografo-te, sempre. E um dia escolhes uma casa e mesmo antes de entrares os teus olhos chamam-me, aperto-te o braço, empurro-te escada acima. És tu? És tu quem eu inclino sobre a cama e que aperto com força no nosso prazer ou já nem isso importa? Nada me importa todos os fins de tarde em que te encontro num quarto diferente. Deixas-te perseguir, escolhes a casa, empurro-te escada acima e tens sempre a chave de uma porta no bolso, um quarto escuro que cheira a doce. Voltei a sonhar contigo, sabes. Repetes-me baixinho as três pequeninas palavras, entre sorrisos e suspiros. Voltei a pendurar-te na parede e já não te encontro junto à taça das laranjas, porque sei agora onde estás. Anda, dizes-me ao fim da tarde, sonha comigo. Esqueço-me da minha árvore como se fosses tu a seiva livre que me alimenta e só muito de vez em quando subo a encosta para sorrir com o Júlio e dar-lhe pancadas de alegria nas costas. Vai sair da cidade, diz-me a piscar os olhos pequeninos e desejo-lhe boa sorte. Os meus dias são nossos, teus e meus – em silêncios quentes retomamos o tempo, como duas peles que mais não fazem do que reconhecer-se. Nunca te sigo quando deixas cada um destes quartos onde passamos os fins de tarde porque a lua te chama, mas quando chego a casa a janela do outro lado da praça acende-se para mim. Não me apetece chegar aqui. Não quero escrever isto. O leitor que adivinhe o que aí vem. Vá, coragem (se o leitor estivesse aqui, sentado comigo neste sofá enquanto escrevo os últimos parágrafos deste conto, ouviria agora um patético suspiro). 73 A SUL DE NENHUM NORTE Sim – desapareceste. Decidi seguir-te, queria mais, os fins de tarde tu sabes já não me chegavam. Ao virar a esquina olhaste para trás e viste-me, as tuas ancas estremeceram. Fiquei cinco horas na praça à tua espera e quando a dor se transformava em vários ramos secos, toquei à porta com raiva, empurrei a mulher adormecida para o lado e entrei no teu primeiro direito. Vazio, já não era Agosto. Não sei quanto tempo ali fiquei, até que a Irene veio sem dizer nada: olhou-me com olhos cansados e um suspiro e agarrou ligeiramente o meu pulso. Como se tu lhe tivesses recomendado que se assegurasse que a minha artéria continuava a palpitar. No chão, enrolada e esquecida num canto da tua sala esvaziada, a nossa primeira fotografia: outra vez o teu casaco pousado sobre os ombros naquela tua maneira desinteressada. Olhei-nos – o meu braço toca-te, consegui abraçarte antes que o obturador se abrisse e se voltasse a fechar, tenho os dedos enrolados na tua cintura e o teu sorriso é tão luminoso. “Anda”, disse a Irene, empurrando-me escada abaixo. Cá fora cheirava a neve. Sabes onde estou agora, paciente leitor que até aqui chegaste? Voltei à minha árvore, é dela que vivo. Tenho enrolada na minha mão direita uma fotografia onde dança uma mulher num vestido com flores, onde o meu braço a consegue afinal alcançar e aquecer a curva de uma anca - escolhi um espaço neste tronco e esperava por ti, leitor, para que me visses entregar à grande árvore o sorriso desta mulher de casaco pousado sobre os ombros naquela sua maneira desinteressada. Cá vai. Ouviste? A árvore segredou-me que sempre a saberá guardar. 74 A SUL DE NENHUM NORTE Beatriz Hierro Lopes Beatriz Hierro Lopes, míope, nasceu no Porto em 1985. Formada em História, actualmente ganha a vida a contar prédios e a contar histórias do Porto a gente pequena. Nunca usou lentes de contacto e gosta de ver as pessoas desfocadas. 75 A SUL DE NENHUM NORTE Era uma rua que vivia de carne Era uma rua que vivia de carne. Ao longo do passeio, os contentores acotovelando-se, os sacos amontoando-se, todos eles cheios das sobras que nem os animais queriam, um tom de vermelho velho que desfilava desde o início até o fim da rua. O cansaço das senhoras de saltos presos nos intervalos das pedras, sujando-se de restos mais antigos de carne seca, jogando o equilíbrio à entrada à saída dos talhos, ou os meninos, que os havia pouco e haveria menos ainda, de bola escorregadia, manchada, que não havia bola de trapo que absorvesse tanto sangue. A todos os que pela rua andavam, parecia-lhes não ser rua, mas, por debaixo dela, corpo morto deitado ao relento, mortes que se sentiam a caminhar. E eu, que era pequena, pensando o quanto de morte se pode sentir debaixo dos sapatos, os animaizinhos que a minha mãe me ensinou - nasceram para ser comidos, que me parecia ouvi-los, como se fosse possível ouvir lamentos de vaca, ou de porco, chorando a morte entre as pedras. A rua, dizia-se, - vivia de carne, por isso eram normais todos os acidentes lá pelo meio da rua. Do pior que me lembro, foi do neto do barbeiro, da minha altura, enfezado, que era o mais rápido e que, por isso, corria à frente da camioneta, de um lado ao outro da rua, até que lá ficou, coitado, de corpo moído pelas rodas de trás. Um desgosto imenso, a que se juntaram os desgostos dos animais, que a carne assim pisada se mistura, e não se sabia bem onde começava a do menino e a dos bichos, a do menino talvez mais viva mais aberta, e a dos talhos mais morta mais fechada, carne sobre carne que nesta rua, hoje como ontem, é disso que se vive. E quando os animais choravam demais, houve aquela vez em que se mandou outra camioneta, mais velha e já sem cor, buscar o resto dos meninos, a quem raparam as cabeças para lhes matarem os bichinhos que nelas haviam criado cidades inteiras, filhos só de mulheres, sem pai, que eram mulheres de má sorte, e por isso sem filhos, e para que os queriam?, se nunca havia carne na rua inteira que lhes chegasse para matar a fome? Levaram-nos. Era quase dia quando os levaram, alguns choraram mas o choro, confundido com o choro da rua, sufocava, porque havia lamentos que eram próprios do nevoeiro. Da janela da sala de minha casa via-se a rua e, lá bem atrás, o rio, que era de onde nascia o frio, a névoa que cobria as manhãs e dava alento aos lamentos das ruas. A esta, mais do que às outras, por causa das crianças que não chegavam a ser carne de rua, só bolas presas entre contentores, bolas de trapo que a minha mãe também lhes dava, tecidos curtos manchados de outras coisas que não sangue, borra de café ou frituras já passadas, que se estragavam e não fazia mal que se rasgassem com a rua. Os meninos que eram poucos, agora menos, faltando, e o que importa? Que choraram, e os lamentos alimentando a rua, que hoje só chora à falta de quem não compre carne. 76 A SUL DE NENHUM NORTE Acontece Acontece a miúda, saia blusa, pálida, junto ao fim de pescoço, terço de domingos ao peito, acontece a luz que lhe adoça o rosto, a ternura que se esbate ao forçar a vista contra o sol, as escadas do pátio mais sujo das semanas, das horas que as sobe, sobe os minutos como degraus, passo de sabrina branca, um pouco de prata e poucos segundos, que deus é seu deus em branco sabrina nos pés, manhãs à sombra da janela mais fria desta cidade que diz, - Acontece. Acontece a cidade bocejar os passos das manhãs que ouço à entrada do metro, os rostos que dormem junto às janelas, saídas de emergência sem urgência, sem tempo, que se ardem lentamente os dias contra os avisos. Uma mudez, uma surdez tão pálida como a ausência de cor em cada vagão, apenas interrompida pelas linhas paralelas que surgem entre as madeixas de cabelo tingido, sons privados, olhares amuralhados contra a paisagem fugidia dos túneis, um rumor subterrâneo de – Acontece, a solidão a que se dispõem os passageiros. Que passam no que de baço há nas ruas que dizem, - Acontece. Acontece o nome do rapaz, jaqueta de sarja negra, bolsos cheios, que conta o número de pedras que fazem o espaço, as vielas mais escuras, cinco aqui, cinco além, duas pedras para a esquerda e o ninho, o tijolo que falta na ausência de uma porta, três saquinhos de pó como deus que deus é branco como as sabrinas nos pés da menina a quem não sabe o nome, mas que – Acontece, acontecer nos mesmos lugares em que ele, diz a quem passa – Acontece, inclinando os ombros como a cidade que se encolhe ao chorar a falta de sono. 77 A SUL DE NENHUM NORTE Henrique Manuel Bento Fialho Henrique Manuel Bento Fialho nasceu torto. Nunca se há-de endireitar. 78 A SUL DE NENHUM NORTE O novo e a novidade O novo e a novidade Já tudo foi escrito. A gente lê um livro e não consegue distinguir os escritores dos agiotas, saloios empertigados, artistas de variedades que se limitam a copiar, a imitar, a pantominar aquilo que já foi escrito por outro. Uma frase arrancada daqui, um estilo sorvido dacolá. Está conquistado o público, essa massa acéfala para quem a novidade é o melhor dos estímulos. Crápulas. E menos crápulas não são os leitores que pactuam com este estado geral de hipocrisia. Pretenderão sentirse menos sós? Reverem-se nas palavras amestradas dos artistas de circo? Comprem espelhos. Troquem livros por espelhos. Olhem para mim. Pisemos os livros, pisemos os livros bem pisados. Pisemo-los como se fossem baratas, bichos repelentes que apenas servem para serem pisados. Não hesitemos. A serra dos mortos continua a crescer, qualquer dia atinge as nuvens e depois choverão ossos. E nós no paleio. É preciso ser diplomático, aceitar as regras do jogo. Afinal foi para isso que inventámos a liberdade maquilhada, essa coisa que dá pelo nome de democracia. Enchamo-la de mortos, que ainda são poucos. Ironizemos. Os vivos têm quem os atormente, os mortos têm o esquecimento (Albino Forjaz de Sampaio). Sejamos, pelo menos, cínicos. Apaguemo-nos nos livros. Sejamos cínicos, sejamos cães. Só quando pelas torneiras escorrer o sangue que tinge as águas dos rios, sentiremos o contentamento do nosso ódio. Só quando no deserto os oásis forem plantações de carne putrefacta. O nosso adversário é a indiferença. E nós para aqui a falar... Para quê tanta algaraviada? Porque o silêncio ainda é a maior dificuldade da solidão. Mas reparem como estamos todos tão próximos uns dos outros nesta era pós-humana, reparem como falamos todos uns com os outros sobre tudo e mais alguma coisa. Só não valem abraços. Isso é gesto do amor e o amor é o maior inimigo de quem teme. Insinuemos. Dissimulemo-nos. Abramos um livro e inspiremo-nos. Busquemos a eloquência dos génios, inventemos uma palavra, armadilhemo-nos com neologismos ininteligíveis, metáforas vazias de sentido, analepses, elipses, anáforas, metalinguagens. Sejamos estilo. ESTILO. Ficaremos bem na fotografia, ao lado dos mortos fardados e dos outros, pobres coitados, tão livres no convite que aceitaram para o céu. A insinuar somos todos heróis. A consumir imagens, imagens de balas atravessadas no silêncio dos artigos, das colunas, das gordas e das magras, das crónicas, desses contemporâneos modos de definir o mundo. Esta corrida seremos nós a vencê-la. Não, não e não. Os outros que sigam pelas auto-estradas do ódio, nós iremos pelos atalhos do amor. Do amoródio. Talvez não saibas, leitor hipócrita, que a liberdade falhou. Alguém que nos desvie dessa falha. Nem que seja nos e pelos livros, esses objectos de uma vaidade incomensurável que é a pretensão de sermos livres. Livres por meros instantes. Saudemos os corpos esventrados, os olhos revirados, os crânios estilhaçados, os troncos sem braços, os braços sem dedos, os dedos sem unhas, saudemos as cabeças sem tronco e membros, saudemos a fome, saudemos a miséria, saudemos o ódio, mil vezes viva ao ÓDIO! Estamos vivos entre os mortos, estamos mortos entre os vivos. Façamos do ódio uma técnica para a libertação. A coerção será a solução. Não é preciso imaginar um mundo de soldadinhos minúsculos, o júbilo que enriquecerá as agendas dos poderosos, críticos com coluna reservada no suplemento literário. Ele está aí, bate-nos à porta 79 A SUL DE NENHUM NORTE todos os dias. Mas nós, os vaidosos, escondemo-nos dele nas páginas de um livro, de um simples livro que não é um livro, é um lego. Quando chegar o dia pelo qual todos esperamos, um morto valerá apenas uma unha cortada. Em tempos julgámos ser as mãos de Deus. Agora que Deus ficou maneta, quem seremos nós? Proponho um exercício: se abandonássemos a preocupação com tudo o que transcende o nosso espaço de intervenção, seríamos um corpo indiferente? Um testemunho sem voz, uma voz sem eco? Deixemo-nos de filosofias. Pisemos as baratas antes que elas nos pisem a nós. Pisemos os livros como quem pisa baratas. Liquido a consciência num livro, resistirei às revoltas institucionais, serei um objector. Chamem-me nomes. Recuso contribuir para a perpetuação deste comércio de carne humana a retalho, para esta miséria sacramental que todos os domingos vai à missa. O resto que se dane, inclusive os livros. Porque a minha casa está na minha cabeça, porque a minha cabeça é a minha casa: este é o meu acto de contrição. Não tenho culpa de ter visto apagadas todas as lupanárias ao longo do itinerário, na sua vaga luz de falsos repousos, portas encostadas à sombra dos sonhos, só por vezes um carinho ardiloso, o preço de uma garrafa de vinho disposta sobre a mesa. Não tenho culpa de me terem feito assim magnífico romance de soalhos sujos, desenhados pelos pés rastejantes dos maridos, homens tão rasos quanto a precária violação dos costumes. Não tenho culpa. Eu, como todos os outros, só tenho culpa de não ter culpa. Sou uma coisa educada para a família. Sempre que vejo ao lado da sola do meu sapato o salto alto do desejo, penso: detenham-me estas águas que escorrem pelos cantos da boca. Venho à pressa para casa, penteio o hálito com detergentes apropriados, deixo cair pela testa a obediência de todos os dias. Dizer amor não custa nada, difícil é dar espaço às palavras que formam a frase, deixar um pouco de ar entre cada letra, respirar com agrado a rasura de um desejo. Dizia eu: não temos culpa. A luz vermelha estava apagada, os críticos que metam na tola os toldos das espeluncas onde surgem as palavras, os alívios. Agora regresso a casa para um sono adiado, uma camisola puxada com os dentes para cima da cabeça, como se fosse um lençol. Fico a olhar os livros, as paredes, a luz artificial que penetra os estores, fico a olhar a respiração da mulher, das crianças, os objectos, o deserto que se intromete entre mim e os objectos, fico a olhar isto tudo como uma curva de sono que não vem. Que posso eu fazer? As luzes estavam apagadas. Agora, no meu quarto, ato os ossos, cada um dos ossos, ao silêncio das coisas adormecidas, remexo-me freneticamente sobre a cama, ando pelos corredores exíguos da casa, adio a ficção de quem escreve por escrever o que lhe vem à tona do álcool. Tenho um verso para te oferecer: ressoa na combustão das horas uma sílaba de esperança. Que posso eu fazer neste quarto, que posso eu dobrar neste quarto, que posso eu lembrar neste quarto, que posso eu neste quarto dormir nesta cama? Pago os juros das dívidas insanáveis, meto os dedos pela carne metafísica adentro, arranco do corpo imagens inúteis, penso nos dias que passam, nos roubos, nos achaques, na indigência dos podres fundeados, no poder, nos títulos arrecadados nas páginas dum jornal. Dói-me a garganta, dói-me a luz da tua garganta ressonante. Imagino-me a matar uma galinha, a enrolar a cúrcuma à volta do pescoço, a gritar um silêncio absurdo, um silêncio que eu ouço mas mais ninguém consegue ouvir. É este tempo que nos mata, esta dor remoída nos nós dos dedos, este relógio deposto sobre as águas, esta metáfora. Eu estar aqui e tu aí e não podermos estar um 80 A SUL DE NENHUM NORTE com o outro. Ficarmos distantes, embora tão perto. Como conseguirão dormir as pessoas que dormem? Como conseguem elas calar a loucura do mundo que nos atravessa o corpo como um ruído exangue? O mundo dói-me no sangue. Como conseguem elas desligar o cérebro e estender levemente na almofada o branco vazio das retaguardas? Não verão a indiferença com que olham o mundo, com que o organizam nos recalcamentos escoicinhados do esquecimento? Mesmo quando escrevem livros? Olho o quarto novamente e sei que nada tem importância, sei que tudo se resume a estar aqui e nada poder fazer para que o estar aqui mude, olho o quarto à minha volta e sei que a luz que entra pelas frinchas é a obstinação que me resta, a pouca força que ainda sobrevive ao negrume dos dias vigilantes. Sei disso, sei disso como quem sabe de uma dor. Mas é essa luz que importa não apagar, é essa luz que importa trazer cá para dentro, é essa luz que há-de nadar na minha insónia como agora nado eu no texto ao teu encontro. Quando essa luz se apagar, regressarei às apagadas lupanárias do caminho e pagarei para ficar à porta a ver quem entra e quem sai. E se quem sai, ao menos sai com um sorriso mais evidente no rosto morto com que entrou. Porém, enquanto a noite não vem assentar sobre o meu cansaço o teu sono devido: escrevo. Tenho inúmeras insónias na cabeça que gostava de partilhar antes de morrer, antes de desaparecer para sempre nos corredores de uma doença que não domino, que me engole como a água é engolida pelos ralos e o sol pelas janelas. Levanto-me do cansaço e escrevo, escrevo palavras que me saem dos olhos, do tacto, dos meneios do corpo exausto e inchado, escrevo os nomes das estrelas, as constelações, os nomes das flores, tudo o que não sei, não conheço, tudo o que nunca me ensinaram, tudo aquilo para que nunca nasci, escrevo e paro nesse gesto de escrever o pensamento arrasado de um corpo cansado. Yo te enseñaré las flores y las estrellas (Juan Ramón Jiménez). Deixa-me ao menos ser onde escrevo. Procuro a quietude dos dias perdidos, esta tremedeira que me chega dos acidentes, dos crimes, das dificuldades, da indigesta consumação dos dias. Discutem-se, debatem-se, ponderamse, analisam-se causas e efeitos à consignação. Há quem se entretenha com tais discussões, mas eu canso-me. É assim o meu diário de alfabeto intraduzível, uma crosta aberta na superfície dos pés, um fio de medo a lembrar as embarcações arruinadas do trabalho: barcos queimados, carroças envernizadas, tractores falidos. Este país onde vivo é já só a sombra do silêncio num pavilhão vazio, um sono que aperta e não se instala, como um corpo em agonia, como uma casa em agonia ou uma igreja abandonada. Bom seria que conseguíssemos implodir as sombras como se implodem edifícios, mas tal não é possível. Deitamos abaixo os edifícios e as sombras permanecem, teimam, ficam de pé, só elas, como um resquício da nossa incúria, do nosso desleixo, do nosso atraso. Ensina-nos a história que sempre chegámos atrasados à estação, que nunca lográmos o destino certo. É essa a nossa sina mas não pode ser essa a nossa fatalidade. Talvez pensemos demasiado na nossa tendência para pensar, sobretudo para pensar aquele que pensa. E se voltássemos a olhar as estrelas e a inventariar os nomes das flores? Ainda há estrelas no céu parado, ainda as nuvens não cegaram de vez a luz dos fachos imemoriais, ainda há flores pelo caminho, ainda os terreiros não foram definitivamente atravessados pelo pó das cortinas. Que o espectáculo continue então como uma próspera celebração da nossa ruína, da degradação própria 81 A SUL DE NENHUM NORTE de um país que apenas sabe cumprir-se no seu incumprimento. Estamos vivos. Precisamos de ter vaidade na nossa ruína. Estamos mais mortos que vivos. Mas vivos. Que o espectáculo avance, mais que não seja nas mãos paradas no vácuo dos bolsos. Com a cabeça a ruir e o coração a bater à porta da respiração. Caldas da Rainha, 14 de Janeiro de 2008 82 A SUL DE NENHUM NORTE Joana Serrado Joana Serrado é uma trintinha gorducha, com estrias, que lê Lamartine em jardins frequentados por homens de gabardine. Quer escrever um poema que salve o mundo e cale o Herberto (por esta ordem, necessariamente). 83 A SUL DE NENHUM NORTE Declaração de Imposto a Deus Declaração de Imposto a Deus Caríssimo/a Deus, venho por este modo informá-lo/a, não obstante duvidar da sua existência e persistir nessa dúvida debruçada nesses livros que em si teimam em crer e descrer concomitantemente – como disse, existindo ou não, venho informá-lo/a que desejo ser tocada por si . Repito. Na sua existência ou inexistência. Já não sou picuinhas. O toque de Deus nos meus cabelos. Bem sei que Deus não tem mãos, não tem dedos e ainda por cima, quando escreve, escreve direito por linhas tortas, e por mais que as minhas sejam sinuosas, a sua escrita jamais será perigosa, jamais conduzirá a acidentes e privações. Deus só poderá ser verbo, só poderá ser sopro, Espírito. Por conseguinte, e recorrendo à trinitária possibilidade da incarnação, venho propor a si, Deus, que existe ou que não existe, que me toque em mim, intermediado pelo seu mais tresmalhado carneiro. Eu sei que a escolha não é a melhor. Aliás, até incorro na via perifrástica: no dia do Senhor, da Casa do Senhor, recorri ao dito carneiro tresmalhado que teima em não soltar a vedação dos meus sonhos e deixar-me cair nesse sono divino, na mão direita de Deus, entre a vigília do poema e da visão, um amor puro e desinteressado, quietista, e por isso, mesmo, segundo a bula de Inocêncio XI Coelestis Pastor, inquietante. Como já deve saber, graças à sua omnisciência, que as tentativas dos meus cabelos serem tocadas, ainda que intermediariamente, por si, foram goradas. Eu, por mim própria, pelo meu amor próprio, alma, espírito, pernas e seios, ancas e dedos mindinhos, já realmente me houvera contentado (ou habituado) a não ser tocada por si, e jamais eu própria, o meu amor próprio, a minha alma, espírito, pernas, seios ancas e dedos mindinhos permitiria tal contestação. No entanto, os meus cabelos – outorgantes destas tristes e infiéis cruzadas – persistem em reclamar: que nós (cabelos meus) sejam tocados por si, por intermédio dele, o carneiro tresmalhado. Que se ratifique que: não sou eu, são os meus cabelos. Confesso até que toda a minha una, dúbia, trina pessoa – excepto os meus cabelos – começa a ficar ligeiramente indisposta 1) quer com a ausência divina (intermediada) 84 A SUL DE NENHUM NORTE 2) quer com o presença do desejo. A declarante chegou, ao extremo de, no dia de Senhor, 6 de Setembro, dia dos cabeleireiros e do Profeta Zacarias, cortar os seus próprios cabelos, pintar os olhos de ferrugem e pedir ao resto do mundo que a tocassem. E eles disseram: "E “olharão para mim, a quem trespassaram.” (Za12,10). Ninguém a tocou, e se a tocaram não foi nos poucos cabelos que nela restaram. Pelo acima referenciado, e com isto termino a minha demanda, oh-Deus-que-poderás-até-nemexistir: toca-me nos cabelos! Se é aquele o intermediário, ele que se apresse a chegar aos meus cabelos, ou então Deus que não existes mas tudo podes, manda-me outro, um carneiro sem dedos, sem medos, um viaduto aberto onde a estrada começa, sem circulares internas ou vias derramadas. Manda-me um viático para largar os meus cabelos. Eu, exceptuando os meus cabelos, desejo imperiosamente largar a minha língua, a que Deus me deu, para a outra, a que ganhei ao mar, e escrever coisas impossíveis. Em vez disso, aqui estou, com a minha língua de fora, a proferir palavras que não entendo, enquanto os segredos dos diques rebentam na minha língua cortada pelo fio dos cabelos. Aguardando atenciosamente a sua resposta, defiro-me com as maiores saudações, saudades e salvações – para si e para toda a sua criação. A sua infiel, Joana. 85 A SUL DE NENHUM NORTE Jorge Fallorca Jorge Fallorca (Mortágua 15/6/49), poeta e tradutor, com a viragem do século – que se antecipou a lavrar-lhe o corpo, Água Tatuada (& etc., 1999, esg.) – entregou-se à irremediável vagabundagem, denunciada pelas esclarecidas mentes que julgaram vislumbrá-la em Imitação da Morte dos Outros (& etc., 1976, esg.) e A Luva In Love (Assírio e Alvim, 1977, esg.). Tão avesso às opiniões descartáveis como à vida requentada, não resistiu à tentação de opinar sobre as artes em jornais defuntos; nem de se decantar em estações de rádio, onde cultivou uma surdez galopante que o remeteu para o sussurrar das vagas e das alfarrobeiras. Reeditados os títulos esgotados – Fruta da Época (frenesi, 2001) –, foi-lhe dada a oportunidade de se distanciar de tudo e de todos: A Cicatriz do Ar (Black Sun, 2001; edição única do autor, 2009), Entre Chipiona e Tarifa (Teorema, 2002), Al-Khaïma (Teorema, 2004), Longe do Mundo (frenesi, 2004), Blues Para Uma Puta Velha (& etc., 2010), O Livro do Fim (Deriva, 2011) e Nem sempre a lápis (tea for one, 2011). Viveu sete anos no Al-Gharb e tornou-se visível por algures em 2008; redige o blog http://nemsemprealapis.blogspot.com/ 86 A SUL DE NENHUM NORTE O passeante O passeante 1 Aqui há uns anos – mas mesmo muitos anos – comprei um coreto de barro à beira da estrada, pouco antes de começar a subir o curso do rio Minho; talvez em Vila Praia de Âncora, o nome bonito é. Ia para uma Bienal de Arte de Vila Nova de Cerveira, e, se não me engano, terá sido quando me pediram para ir à Gulbenkian buscar um Viera da Silva, à última da hora, como quem diz «Agasalha-te bem, olha que o tempo está a mudar». O Google confirma-me que foi em 1982, edição em que Vieira da Silva foi o artista homenageado. Tive, nessa altura sabia que tinha, a sorte de haver um carpinteiro para desenrascar um caixote, uma espécie de bandeja aparafusada a umas barras no tejadilho da 4L, envolta com os favos de um pára-quedas para Maria Helena não se constipar ao relento, até chegarmos ao «verde Minho» (Recordações da Casa Amarela, João César Monteiro). Não digo que «a história dava um romance» e, embora o reconheça, muito menos consentiria que a abandalhassem porque «dava um filme»; mais de dez horas de road-movie a planar pela Nacional, à estonteante velocidade de sessenta ou oitenta quilómetros à hora, quando o vento deixava e enquanto as cordas de nylon aguentavam. É apenas uma história e as histórias são boas contadas. Convivi três dezenas de anos com esse coreto, até o «não ter» e me debater com incapacidade descritiva que ultrapasse os bonecos de Estremoz; qualquer banda estática e emudecida pelas mãos que a fixaram no barro, depois pintado, garrido e gaiteiro, com as cores de uma Sociedade Filarmónica Anónima, igual a tantas silenciadas pelo plástico; politicamente inquebrável e aconselhável, a maiores de todas as idades. Há dias, durante a ronda pelos blogues para aquecer e começar o dia, fui ter à «imobiliária» de Pedro Viera e deparei-me com um coreto igual ao que tive. Copiei a foto, ampliei-a à medida da incompetência e preguiça com que lido com essas ferramentas, só para voltar a ver o coreto ao ar livre, pintado de amarelo e sem porta de entrada no palco hexagonal com arcadas, onde me escondo a brincar com a memória, digamos assim. Com a naturalidade com que estacionei a 4L, para confirmar se o quadro de Vieira da Silva continuava intacto e Maria Helena não queria aproveitar a oportunidade para tomar o pequenoalmoço numas bombas de gasolina, fechava negócio e tornava-me manager de uma banda de música pronta a actuar num coreto com pés-de-barro. Voltei de Porto Covo com um minúsculo coreto vazio, também hexagonal, mas protegido por uma cúpula pintada de vermelho, falsamente caiado de azul e branco. Tantas vezes o cântaro vai à fonte, que um dia haveria de alimentar uma história; nunca escrita pela minha máquina de escrever, como se fosse um filme e, ainda menos, um «romance». Gosto dos dias devagar; «Quando escreve, descalça-se à entrada do poema.» (Sebastião Alba, lido por Miguel Manso). 87 A SUL DE NENHUM NORTE 2 Fui a Lisboa com uma moca monumental, defendido com a instamatic para comprovar que tinha visto uma certa árvore no Jardim das Amoreiras. Desci a rua com a memória mais viva e mais consciente da coabitação perfeita de dois «tempos», lamentando, quando estava quase a passar o Aqueduto, não reparar se ainda existem as placas com os números das linhas. O autocarro era o 15, o eléctrico creio que era o 24 e deixava-me no Largo da Misericórdia, à mercê dela; e que ela seja ampla mas pouco larga, de preferência. E lembrei-me da Mãe-d’Água, a rua ao cimo da Praça da Alegria, onde fui desmamado pelo & etc., e o claustro onde a água é venerada, quando entrei no jardim seguindo as mesmas pisadas que me fizeram passar pela árvore de costas. Ainda vi duas pitas a «dar ao telelé» e assustei-me, quando o cachorro saltou para dentro da vedação do canteiro e ficou pendurado pela trela, até elas notarem a «interferência na linha»; safadas das miúdas, com as hormonas reféns das operadoras. Aproximei-me da árvore, a tentar reconhecê-la pelas costas que não fixei, contornando-a de instamatic em riste para perder a mania de duvidar de mim, do que vejo e imagino. Baixei-a. Em sentido contrário, com um tom de voz de quem cria e amamenta «problemas», aproximavamse umas três ou quatro gajas tão feias, tão feias, que se visse coisa mais feia do que elas atiravalhe com uma pedra; só podia ser bicho. Conseguiam ser mais feias e mais estranhas do que as que «metem medo ao susto». Uma parecia que tinha o queixo torto e era zarolha, ou tinha olho de robalo; dourada não era. Depois tive pena de não as ter «apanhado»; exemplares fugidos do Museu de Antropologia. Qual não é o meu espanto, enquanto esperava que desatravancassem a objectiva, ouvi isto que até tenho pena de já não andar com o Sanyo cassette tape recorder M 1001: «Ele não gosta de fotografar mulheres, gosta mais de tirar fotografias às árvores.» Acho que disse, rebaixei-me como se falássemos de igual para igual: «Há árvores que merecem muito mais uma fotografia do que muntas mulheres». Com «muntas» e tudo. Tirei a fotografia e pus-me a andar a olhar em frente, à rasca com a possibilidade de se «travar diálogo»; às vezes, começa-se assim. Puta que as pariu, conhecemo-nos lá de algum lado? Se fossem normais, ou faziam de conta que não era nada com elas, «Nem sou de cá…»; ou então sorriam e apressavam o passo, «Eu espero. Não tenham pressa», sorria-lhes eu. 3 A camisa está debotada, a utilização intensiva – Pudera, é confortável! – tem mais presença entre os ombros e o meio das costas; é um meticuloso ensaio de cor. Não creio que a tenha cansado à pesca, horas a fio à maré, empoleirada nas falésias a servir cigarros e isco dos bolsos que me servem de alforges; para o tabaco e o Olympia, não vá morder algum texto onde e quando menos o espero. Em Porto Covo o Sol nasce a pique, é atlântico, não faz de conta que o 88 A SUL DE NENHUM NORTE mar é mediterrâneo e as éguas amamentam potros à beira da estrada; podia estar em Bolonia. A cor foi comida debruçada a regar tomate e pimento, a apanhar melões e meloas, a depenar galos vadios e a amanhar moreias, insisto à medida que a decanto sentado no terraço do Clube de Carnaxide – Cultura e Desportos, rentabilizado o espaço ao lado com a privacidade «Abre-te, Sésamo!» do comando electrónico. É a segunda vez que me sento neste terraço, praticamente em frente de casa, bastando-me assomar à varanda para medir o ambiente, satisfeito por ver o chaço borlista estacionado ao lado e o cartão que lhe protege o tablier do Sol, a fazer publicidade gratuita e caricata ao Zoo Marine. Bastou-me atravessar o Sado para voltar a ver golfinhos; não me pareceu que fossem amestrados, não ouvi nenhuma sineta. Enquanto aqui residi, com a alma envenenada pela incapacidade de abandonar a comodidade onde esticava as pernas, recordo que me entretinha à varanda a especular a palavra «cultura», emanada por um equipamento de onde só via sair judocas acompanhados pelas mamãs. Outros haveria, mas eram estes os que davam mais nas vistas; uns, todos empertigados a entrar para o popó e outros, receio bem, indignados com a pública humilhação materna; histérica. Anoto isto ao sabor dos hálitos compatíveis com os temas que me rodeiam. Sou o estranho, o que entra e cumprimenta «Boa-noite, vizinho!», como se julgasse que está «no café ao lado da Câmara», no Pampilho, no Marítimo, no Marquês de Porto Covo. Imagino-me sentado em cima da palavra «cultura», que deixei de ler, a olhar para a varanda acesa, onde o computador continua ligado, ávido por concertar este material escrito no Olympia com a caran d’ache. Apesar das mais diversificadas e insuspeitas frentes de ataque, o que me continua a animar consiste, fundamentalmente, em saber «que era uma alma perturbada e que chumbara no exame de aptidão a este mundo, mas também sabia que havia muita coisa boa enterrada naqueles cadernos – e, nesse particular, pelo menos tinha todas as razões para andar de cabeça bem erguida.» (Paul Auster) Apanhei pontas de alfazema e rosmaninho; soube-me bem, só tinha dado por elas no domingo. Estão ali seguras com um clipe a refrescar o Buda; a protegê-lo das insolações, sem recorrer à publicidade, nem passar cartão se os acusarem de «deixar nódoa» na mesa de trabalho. 4 Que bom reencontrar Tautologias do poeta Raul de Carvalho. É um pequeno livro editado pelo Autor e «composto na Tipografia Ideal, nos meses de Outubro e Novembro de 1968, numa tiragem de 513 exemplares, sendo 113 fora do mercado.» Os números são expressivos; falam por si, continuam fiéis à época. Dez anos depois, ofereceu-me um deles nos estúdios de São Marçal, delicadamente autografado «pelo interesse manifestado pela minha poesia», no dia trinta de Março, durante uma tarde a conversar de microfone aberto – o meu cinéma-vérité «radiofónico» – que não terá encontrado o interesse histórico com que identifiquei essas bobinas; RM’s, registo magnético, na linguagem do éter, frequentemente etilizado. Aconteceu com Ernesto de Sousa, 89 A SUL DE NENHUM NORTE soube-o quando encaminhei os organizadores de uma homenagem retrospectiva na Gulbenkian a consultarem o silêncio do Arquivo Histórico da RDP; terá acontecido com as performers Ulrich Rosenbach e Gina Pane; terá acontecido com as horas de «conversa fiada» com Wolf Vostell, no sentido da generosidade com que esses artistas, a propensão arroladora excede-me, se ofereceram, de viva voz, a um fascinado funcionário da voz do poder, ávido por saber e guardar o que lhe contaram para «memória futura». Tudo leva a crer que a memória é o que menos futuro terá neste país; a braços com um presente virtual. Tautologias era, e continua a ser, um livro que me é ternamente próximo. Conhecemo-nos uns anos antes, em Évora; privei uns anos depois com o autor, sobretudo a partir de uma exposição na Galeria da Junta de Turismo do Estoril, dirigida pelo olhar elegante e determinado do pintor Cruzeiro Seixas; ofereceu também, a quem quis, a possibilidade de descobrir a estranheza da alegria, e não só a gestual, da pintura praticada por Eurico Gonçalves. Refiro-as, não porque tenha esquecido ou segregue outras, mas por serem as de que guardo a mais grata e privilegiada memória. Abro o livro na página da dedicatória para me recordar dos desenhos a caneta?, a tintada-china?, feitos com uma vulgar bic?, que ofereceu enternecido ao meu filho, com menos de dois anos, durante uma visita que se prolongou num jantar no seu pequeno mundo na rua da Ilha Terceira, se não estou em erro; ficava num bairro onde as ruas formam um arquipélago. Recordo apenas a filigrana caligráfica de um funcionário público, caricaturado como poeta-chapéu pelos que lhe ostracizaram a delicadeza e a liberdade de homem só, dotado de uma sensibilidade onde nos perdíamos na imensidão minimalista dos campos do Alvito; os campos «do baixo». «Assim se cumprirá o que, segundo o velho, fora dito: / Que, na soleira da porta, com a pedra amolgada / pelos sinais dos pés dos jovens seus amigos: / O velho me surpreenda, sorridente, / a analisar os traços do seu rosto.» (Raul de Carvalho) 5 «Os meus livros também são cofres, gavetas, onde guardo os objectos mais desconcertantes para viajar pela leitura.» Escrevi há uns meses atrás, longe de imaginar que, de certo modo, repetia uma atitude de O Senhor Valéry, «Para além de ler o livro, utilizava-o como carteira, para guardar as notas.» Consegui desbloquear, creio poder ser considerado um leitor normal; leio Gonçalo M. Tavares. Antes de ir ver o «Chiado literário que jamais arderá», passei pelas brasas e os olhos pel’O Senhor Calvino. Comunicámos pouco; possivelmente, ele ainda ocupado «a apertar bem os atacadores dos sapatos», eu a digerir uma língua estufada com puré, de dar estalinhos com a dita. Folheei O Senhor Valéry, não sou dos que lambem o dedo para voltar as páginas, só o tempo de tomar um duche e ir ver a maqueta da urbanização, como quem vai ver o «Portugal dos Pequenitos». O final da tarde estava cheio de trânsito e foi um gozo perder-me pelo Monsanto, sem polidoras de valeta nem esquilos à vista, enquanto seguia pelo acesso desactualizado da minha memória suburbana. Deambulei pelos bairros e pátios mais alfacinhas da 90 A SUL DE NENHUM NORTE Ajuda, sem lha solicitar, adiando a visita à Fonte dos Passarinhos para saborear como vamos de chilreio; esse Calvário. Estacionei o veículo à bruta, quando vi a coisa complicada com o estacionamento de uma bomba donde deflagrou «alguém» recebido com o trânsito cortado. A tunisina vestida aconselhou-me a mudar de passeio, como mudara ao fechar a porta e me deparei com os «robots celibatários» de Leonel Moura; ainda não associara a manufactura robotizada à LxFactory, para mim tem sido mais música para ler com os olhos, devagar. Percorri o bairro censurando-me por não ter levado a instamatic; admiti que não fosse permitido tirar fotos à civil, só à Imprensa, e detesto dialogar com seguranças que «me chamem à atenção». Percorri o bairro, cercado do que imagino como representação da «toute Lisbonne»; é a minha costela Crumb. Não vi, não reconheci, escritores entre a audiência; julgo ter compreendido por que Gonçalo teve de os inventar; vi sobrinhas, tias e finalistas estucadas com botox, possíveis locatárias dos condomínios donde serão despejados o senhor Valéry, o senhor Henri, o senhor Juarroz, o senhor Brecht, o senhor Kraus, o senhor Calvino, o senhor Walser, sem o senhor Swendenborg ter tido tempo para se entregar às «investigações geométricas». Quando bebia absinto, em Coimbra, não me lembro se alguma vez tive o cuidado de «nunca misturar o absinto com a realidade para não piorar a qualidade do absinto»; sinto muito, senhor Henri. 6 Conheço aquele sapateiro, que também vende calçado barato, rural, desde sempre. «Desde sempre» são mais anos do que me lembro, e a última aquisição que recordo foram uns mocassins, no verdadeiro e artesanal significado da palavra, que gastei sem conseguir fugir da reserva; morreram a mais de duas décadas da praia. A sapataria fica na rua que vai dar ao Mercado de Algés, paralela à avenida dos Combatentes, que vem por ali abaixo até chegar à esquina, onde somos interpelados pelos toldos da Sé da Guarda e d’O Carvoeiro; tascas que excedem as expectativas dos nomes. No sábado, fechei-me em copas e perdi-me de amores por uns sapatos de carneira, com um corte mais fino do que os das garraiadas, a pele curtida por anos de exposição à indiferença atrás da porta gradeada, quando aberta, carentes de uma atenção ensebada. Não ficam a dever nada ao calçado de Almonte, sem etiqueta que identifique a origem rociera nem outra cor além da natural. Lembro-me do estabelecimento sempre ocupado por coscuvilheiras sovinas, entretanto cevadas e com o luto apoiado na bengala. Só a mais ladina se mantém de atalaia num canto junto à escada. Ainda não os tinha calçado e já ela avisava a que me atendeu, «Vê lá se o senhor tem trocado», não fosse eu dar uma nota gorda para pagar sete euros e meio e travar conhecimento com a gaveta do dinheiro. Fui direito ao assunto, retirando os sapatinhos detrás da porta, enquanto esperava que se decidissem a terminar a tarde passada com a vizinha por causa de uma carteira, creio. A visita íntima, não me lembro dela no negócio e a casa é pequena, convidou-me a sentar num banco corrido e polido pela concorrência – a chamar-se mocho só poderia ser casal e de idade –, onde confirmei que me ficavam um encanto, segundo a opinião generalizada; mas apertados um número abaixo, pelo menos. Pares únicos, com o futuro 91 A SUL DE NENHUM NORTE encolhido. Num espelho de lado do balcão, à altura dos joelhos, esforcei-me por ver a naturalidade do cair da calça de bombazina a condizer com aquele suplício, fazendo-as esperar mais tempo do que demorei a calçá-lo: Se forem à forma talvez alarguem um bocado, ofereci-lhes a oportunidade de garantirem, em coro, que o calçado dá sempre de si, quem os poderia alargar também já morreu, coitado. «Como os nossos queridos», demorou tempo demais a concluir como chamar-lhes a que estava ao meu lado. Os nossos bêbados, pensei eu, a descalçar os sapatos de defunto, amortalhados num vulgar saco de plástico, pagos com trocos retirados às escondidas de uma bolsa de prata, para não verem onde guardo as moedas. Não sei se alguma vez os conseguirei usar, desconheço se os pés também mirram com a idade, mas apraz-me a ideia de calçá-los nem que seja para a fotografia, sentado com a perna cruzada e a pensar como a merda dos sapatos me apertam. A faca não, mas a voz consegue cortar o ar. 7 Ainda há uma semana estava tão desgostoso por ter lido Bibliotecas Cheias de Fantasmas, em duas brevíssimas noites; incomodei dois livreiros à procura de A Casa de Papel e a menina (simpática e diligente) do Apoio ao Cliente da ASA, como se andasse à procura da Lua, de uma primeira impressão de Os Lusíadas. Afinal, o livro foi reeditado quatro anos depois, em Maio – não travámos conhecimento na Feira, porque Bonnet ainda não era visível para nos apresentar –, com a mesma paginação de GSamagaio da edição de Fevereiro de 2006, mas capa de José Manuel Reis, francamente mais em conformidade e bonita do que a da edição inicial; mesmo só vista na Net. Na quinta-feira, quis a fortuna que a planeada ida aos livros a Lisboa, tenha sido interceptada pelo email da Teorema a avisar o lançamento de Um Pai de Filme, fazendo com que duas, numa só, eliminassem a estucha da repetição. Apeei-me nas Amoreiras, desci a rua e atravessei o jardim a fumar um charro oportunamente enrolado em casa; observei dois veículos (um Lada Niva bordéus e um Honda Civic branco, de 92) e senti-me tentado a deixar um bilhete no pára-brisas, onde apelaria «Caso esteja interessado em vender, agradeço que tenha em consideração os meus sessenta anos (telemóvel); referências na livraria que abriu ao lado». E nela voltei a entrar, desta vez em tarde soalheira que me permitiu verificar que a denominação Dona Rústica tinha sido actualizada pela omissão, e a Trama, onde entrei, não era a que se anuncia mais abaixo. Fui recebido pelo Ricardo e o Tiago Sousa, ainda a desencaixotar; a música passou a CD. Será que ainda não tiveram tempo ou ainda ninguém lhes ensinou e não sabem, que um chão de tijoleira daqueles precisa de uma boa esfrega semanal de piassaba com sabão amarelo e lixívia? Lindo de se morrer, quando tiver sofá; porque tinham, afinal tinham a resposta que duas semanas antes não me deram: Pergunta Ao Pó. Encaixei a questão dentro do envelope deixado pelo Paulo da Costa Domingos, apontei para o Príncipe Real sem ligar peva ao assédio do Café Orpheu e desci a rua do Século. Fiquei francamente surpreendido com a manifestação da crise na galeria de arte homónima, embora mais nova – Mas o que é que te deu, Carlos Barroco? Pague 1 e leve 2? –, pensava, a encaminhar-me para a Letra Livre, onde tinha encontrou marcado com Matsuo Bashô, 92 A SUL DE NENHUM NORTE há uns meses. Seguindo O Caminho Estreito Para o Longínquo Norte, cruzei-me com o Paulo em andamento no Camões, onde fiz de conta que almoçava um café e uma empada, de galinha? Sim, confirmei à carinha larocas morenita que teve a gentileza de me ajudar a montar banca, sem entornar café nas calças nem nos livros que marcavam a mesa. Recuperado da estreita e ofegante etapa – a subida da calçada do Combro, feito em escombros –, tomei a liberdade de me electrocutar um pouco na fnac, depois de acenar ao Aníbal Fernandes, ocupado, e desci as escadas só para confirmar se o pressentimento batia certo: percorri a letra W nas estantes, dirigi-me à pequena exausta, apresentada como «a minha colega dos livros», perguntei o que havia de Robert Walser, perguntou-me se em Português ou em Alemão, em português podia mandar vir. Ou terei sido eu que ouvi assim, sem o dizer? Não sei, sei que subi a sete pés o cheiro nauseabundo dos sanitários para onde descia, incauto. Regressei à superfície e entrei ao lado da memória do Café Gelo e calcei uns sapatos, só para experimentar e ver ao espelho com o par do outro na mão; dei por mim na linha amarela, com destino ao Campo Pequeno e os sapatos de origem. Não me surpreendeu ter feito o percurso sempre acompanhado por uma adolescente com umas calças de montar e botas com atacadores até ao joelho, que nunca viram sebo nem esporas, mas perfeitamente segura da elegante atitude feminina que proporcionava a quem a soubesse interpretar (neste caso, eu), por isso não terá utilizado o tapete rolante no Marquês, optando por se deslocar com passo de quem também nunca montou um cavalo. Mas isto, se não foi exactamente agora, terei pensado quando me aproximava da Pó dos Livros, acabando por voltar a entrar numa réplica da loja de calçado na Baixa, como se adiasse a surpresa de qual das edições me esperava. Passei pelo stand da Aston-Martin e devorei a hora de vantagem sobre a apresentação na Buchholz, sentado numa esplanada de sentido único na António Augusto de Aguiar, a sorrir e a ver os livros e a capa do DVD de Paul Bowles que tinha emprestado ao Paulo. Depois, ia-me dando uma coisa; Antonio Skármeta pegou no meu exemplar, dobrou-o como se fosse uma revista (das merdosas), nenhum de nós tinha caneta e receei ser mal interpretado se lhe oferecesse o meu lápis, Carlos Veiga Ferreira, o Senhor Teorema, emprestou-lhe uma que entrou de serviço ainda antes da apresentação; tive oportunidade de verificar quando vim à rua fumar um cigarro e aproveitei para pagar A Biblioteca (Zoran Zivkovic). Depois, cruzei-me com magotes de gente a entrar de fim-de-semana; a caminho da naite. Apanhei o autocarro semivazio, meti a chave à porta da casa de papel e acabei o livro com a vaga sensação de ter ficado com os dedos sujos de cimento. Hoje, como passei o dia a pensar e não a procurar, onde tenho A Linha de Sombra (Joseph Conrad), o melhor é voltar a ler o livro para não encher a minha biblioteca com mais fantasmas. 8 Estás porreiro? Depois manda um e-mail, para reenviar o Toscana. Mudei de computador, não sei onde param as direcções. Abraço. «Camarada, estou em Cuernavaca numa reunião lowryana, ou seja, sou o único sóbrio. Regresso à oficina na quarta. Grande abraço. Marcelo Teixeira.» 93 A SUL DE NENHUM NORTE Kenneth Traynor Kenneth Traynor é escritor e faz fotografia analógica que vive em São Francisco. É o editor da Cold Green Tea Press (www.coldgreenteapress.blogspot.com), uma editora “faça-você-mesmo” que publica plaquetes de escrita inovadora, tradução e artes visuais. 94 A SUL DE NENHUM NORTE Sete filmes de sonho Sete filmes de sonho 1. Estou no quintal da minha infância. O resto do mundo, fora do relvado, são casas com “ocupas” comprimidas umas contra as outras, apartamentos cinzentos ao estilo soviético, e altos, vastos bunkers com pequenas janelas. Olho para o interior de uma caixa com brinquedos velhos, tudo me é estranho menos uma lâmpada soldada a uma pilha de 12 V. Ao longe um flash amarelo-alaranjado, dolorosamente brilhante mas sem origem, e um ruído impossível que sinto em vez de ouvir. Mergulho na relva quando todas as janelas da cidade explodem na mesma direcção. Os vidros partidos cortam o ar como uma cascata que corre de lado. Um baloiço enferrujado cai em câmara lenta. 2. Edifícios interligados, vazios, com escadas inundadas, água venenosa, manchas de bolor nas paredes pardas, nenhum som. Sombras de pássaros rodopiantes reflectidas na água dum pátio inundado, rodopiam como tinta numa banheira. Um rapaz nada na água. É aleijado, e o homem barbudo perto é o seu tutor. O rapaz não tem cara. Em vez de cara, há um doloroso, corte esbranquiçado brilhante e oco com linhas azuis; a sua silhueta um halo negro que suga a luz de tudo o que o rodeia. Perto, a falsa pele de várias caras penduradas em pregos alinhados na parede duma cave. 95 A SUL DE NENHUM NORTE 3. Uma mulher que é também uma adolescente corta o seu próprio cabelo de forma desajeitada com uma tesoura enorme, num espelho de casa de banho que é também uma casa de dois andares numa noite de verão, e a janela quadrada do sótão iluminada, e música punk à distância tocada num gira-discos. Sou agora eu próprio e também o adolescente que se senta no alto dos ramos duma árvore sem folhas, à espera que ela venha à janela e me chame, para me mostrar o seu cabelo. A lua aproxima-se, com o dobro do tamanho. 4. Os entusiastas Naguib Mahfouz e Mahmoud Darwish – magros, esfomeados, fumam, bebem café – discutindo e rindo juntos em longas mesas sobre as suas traduções num lugar que é ao mesmo tempo o Que Tal Café, Grand Central Station e Montgomery Street em São Francisco. Fumam cigarros feitos de madeira escura, macia, que sabem a canela e alfarroba. Numa perpétua luz pré-aurora, um pequeno grupo de jovens cansados – estudantes que vestem casacos de tamanho errado sentados de pernas cruzadas no passeio – esforçam-se por escrever a cadeia de palavras em rápidos flashes no antigo ecrã da bolsa; as suas mãos em luvas sem dedos, preenchem e riscam expressões com cotos de lápis em finos restos de cartão. 5. Coelhos brancos miniatura, que vivem dentro da minha almofada, ronronando como gatos. A almofada rasgada numa ponta, e o interior tão vasto como um hangar de aviões. 6. Um encontro com um velho amigo que ronda uma casa fechada, silhueta projectada contra uma ausência de céu, um enorme espantalho dobrado com uma boca e pele com feridas púrpuras; artrítico e curvado, paralisado pelos seus ossos. 7. Velhos brinquedos amontoados, ressuscitados sem memórias, libertados em breves, amargas vidas. 96 A SUL DE NENHUM NORTE Postal Postal A minha pesquisa são as tardes estéreis dos verões da infância, as capas dos livros de cowboys, os céus azuis do esquecimento. Eu como com palavras partidas, expressões ausentes, dicionários desfigurados. As sombras são pedra. A luz é pedra. Tornamo-nos no que tocamos. Desintegro-me de dentro, como areia através de um funil. Sem dor. Fumar nunca me seduziu. Não tem magia. Quando tomo veneno, continua veneno. Os sentimentos são formigas que andam para a frente e para trás, levando pedaços de mim a uma rainha negligente. Ser o fantasma de outra pessoa. Inspirar sol, expirar fuligem. um altar para o que não fiz. Tradução, Maria Sousa e Nuno Abrantes 97 A SUL DE NENHUM NORTE Pedro Santo Tirso Pedro Santo Tirso, tem 33 anos, idade de Cristo, é lisboeta, gosta do seu nome, que sempre considerou uma boa combinação de sagrado e profano. Talvez por isso tenha dado em professor. Tem mulher e filho que ama. Gosta de beber vinho e de ler. 98 A SUL DE NENHUM NORTE Teoria e Jogo do Fado Teoria e Jogo do Fado (traduzido, adaptado e resumido para portugal correcto a partir de um original de Federico García Lorca, Teoría y juego del duende) Desde o ano de 1994, em que comecei a percorrer, pela noite, as ruas do Bairro Alto e Santa Catarina, depois, as do Castelo, Alfama, Mouraria e, mais tarde, Madragoa, até hoje, devo ter ouvido mil razões históricas, filosóficas e literárias para explicar o destino português. Com a vontade que tinha de descobrir a escuridão e tudo, confesso que todas me entediaram profundamente e nenhuma me satisfez, tal era o grau de erro com que falhavam o alvo do seu objecto. Eu não queria deixar-me levar por uma história fácil e tombar na modorrenta desistência que enferma os entediados. Propus-me a encontrar, de forma sensível e empenhada, e descrevê-lo o melhor que soubesse, o espírito oculto do fatídico Portugal O mesmo de quem Camões perguntava “com que voz cantarei meu triste fado” ou do qual Bocage sentenciou “que eu fosse enfim desgraçado, escreveu do fado a mão”. E também José Régio disse “o Fado nasceu um dia, quando o vento mal bulia e o céu o mar prolongava, na amurada dum veleiro, no peito dum marinheiro que, estando triste, cantava”. Estes tons negros são o mistério, as raízes que se cravam no limo que todos conhecemos, que todos ignoramos, mas de onde nos chega o que é substancial na arte. Sons negros, diz o homem popular de Portugal e concorda com Goethe, que encontra a definição do fado ao falar de Paganini, dizendo ‘Poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica’. Assim, pois, o fado é um poder e não um fazer, é um lutar e não um pensar. Ouvi dizer a um velho mestre guitarrista: “o fado no está na garganta; o fado sobe por dentro desde a palma dos pés”. Ou seja, não é uma questão de faculdade, mas de verdadeiro estilo vivo; ou seja, de sangue; ou seja, de velhíssima cultura, de criação em acto. Deixemos anjos, musa e duende. Essas são quimeras de povos que nunca conheceram o mar como nós, nem o céu, nem a aventura de descobrir. E de falhar. E de tentar de novo. A verdadeira luta é com fado. Sabem-se os caminhos para encontrar Deus, desde o modo bárbaro do eremita ao modo subtil do místico. Com uma torre como Santa Teresa ou com três caminhos como São João da Cruz. E ainda que tenhamos que chamar com a voz de Isaías “verdadeiramente tu és Deus escondido”, ao fim e ao cabo Deus manda ao que o busca as primeiras espinhas de fogo. Podemos mudar de Deus, mas os caminhos são os mesmos. As danças de Rumi, a peregrinação de 99 A SUL DE NENHUM NORTE Ibn Arabi, a fina alegoria de Attar, sempre nos apontam para um caminho para esse algo Deus. Tudo é passagem. Para encontrar o fado não há mapa, nem exercício. É um abandono. Descobre-se pela entrega, aceita-se pela perdição. Mesmo quando se finge, o fingidor cumpre o seu fado, como Pessoa que se fingiu tudo e outros e místico, mas sempre poeta. Ou como Amália, tomada das ruas para as salas do mundo, mas sempre fadista. Ou aquele empregado de escritório bebedor, que todos os dias se perde nos copos, mas sempre acredita. Todos sabem que não é possível qualquer emoção sem a chegada do fado. Sabe-o bem António Franco Alexandre, que dedicou ao fado castelhano um duende livro mas nele escreveu “Tal como és, assim te quero, e sempre/ diverso cada dia do que foste” ou ainda “ainda um dia terás um rosto humano/ que te possa beijar sem ser ferido”. A chegada do fado pressupõe sempre uma alteração radical de todas as formas sobre velhos planos, de sensações de frescura totalmente inéditas, com uma qualidade de rosa recém-criada, de sortilégio, que chega a produzir um entusiasmo quase religioso. Todas as artes são capazes de fado, mas onde se encontra mais terreno, como é natural, é na música, na dança, e na poesia declamada, já que estas necessitam de um corpo vivo que interprete, porque são formas que nascem e morrem de modo perpétuo e alçam os seus contornos sobre um presente exacto. Todas as artes e também os países têm capacidade de fado, como de anjo, de musa ou de duende; e assim como a Alemanha tem, com excepções, a musa; a Itália permanentemente o anjo; e a Espanha é sempre movida pelo duende; Portugal está tomado pelo fado, esse espírito que impele e retrai, esse manso e terrível rodopio inevitável das horas, que impede concertos, planos ou preparação; essa forma de trocar a vontade própria por laudos ao cosmos. Em todos os países a morte é um fim mas em Portugal há algo pior do que a morte, como diria Mêncio. Em Portugal, antes da morte, e para sempre para além dela, reina a saudade. Não temos saudades apenas do futuro, como disse o poeta Pessoa, mas chegamos mesmo a ter saudades da morte, saudando-o pelo fado, mesmo sem o sabermos. Com ideia, com som, com gesto, o fado impregna o ar que respiramos e penetra os nossos poros, em luta com a saudade que temos do futuro, como perdição irremediável do que está por vir. E das feridas desta luta, que nunca cicatrizam, está o insólito, a imaginada parte da obra do homem. A virtude mágica do poema consiste em devir-se fatal para baptizar com água obscura todos o que o leiam, porque com o fado é mais fácil amar, compreender, e é certo ser-se amado, ser-se compreendido, e esta luta pela expressão e pela compreensão da expressão adquire, às vezes, em poesia as feições da saudade. O fado... onde está o fado? Pelas tardias ruas vazias corre um vento espiritual que sopra com insistência sobre as cabeças dos que estão mancando quem amam, em busca de novas imagens e 100 A SUL DE NENHUM NORTE expressões: um vento com cheiro a sangue e a ferro, de erva cortada, de lavanda que anuncia o constante desvelar de todas as coisa fadadas. Não é apenas pelos bairros de Lisboa ou pelas ondulações de Coimbra, todo o Portugal é o porto do fado. Nele não se aporta, mas combate-se. A verdadeira luta é com o fado. E nesta estranha forma de vida, apetece pedir a Lowell a sua frase para português, a única língua possível: “a escuridão, vivida honestamente, é um lugar de deslumbre e vida”. Eis, o fado; eis, pois, por que a verdadeira luta é com o fado. 101 A SUL DE NENHUM NORTE isto 102 A SUL DE NENHUM NORTE Gonçalo Martins Gonçalo Martins tem hoje 28 anos, mas era pequeno quando descobriu que o fogo tinha magia. Lembra-se que devia ter uns 7/8 anos quando começou a queimar pontas de papel de jornal com fósforos, e assim acidentalmente incendiou a montra da loja da mãe. Gonçalo Martins estudou Artes Plásticas na ESAD de Caldas da Rainha onde aprendeu que essa força do fogo pode ser uma coisa boa e criativa e descobriu que o fogo pode ser a melhor de todas as ferramentas para pintar e ilustrar, carregado de simbolismos e conceitos, o fogo é a sua arma. Entre outras coisas Gonçalo procura uma através do fogo relação entre corpo/tempo e tempo/mente. Gonçalo acho que é um pessimista, as pessoas dizem que ele é apenas romântico. 103 A SUL DE NENHUM NORTE Menina I Menina I, Gonçalo Martins 104 A SUL DE NENHUM NORTE Menina II Menina II, Gonçalo Martins 105 A SUL DE NENHUM NORTE Menina III Menina III, Gonçalo Martins 106 A SUL DE NENHUM NORTE Menina IV Menina IV, Gonçalo Martins 107 A SUL DE NENHUM NORTE João Rios João Rios, picheleiro de válvulas cardíacas, absorve em versos e cores os excrementos e os luxos da cidade. 108 A SUL DE NENHUM NORTE Christhus Bar Christhus Bar, João Rios 109 A SUL DE NENHUM NORTE Doctor love Doctor love, João Rios 110 A SUL DE NENHUM NORTE Estátua nadando Estátua nadando, João Rios 111 A SUL DE NENHUM NORTE Music for leon Music for leon, João Rios 112 A SUL DE NENHUM NORTE Pumping Station 1.1 Pumping Station 1.1, João Rios 113 A SUL DE NENHUM NORTE Marco Moura Marco Moura é um artista plástico que finalizou o Curso Técnico-profissional de Artes Gráficas da ARCA – E.A.C. em 1999 e de Comunicação e Design Multimédia na Escola Superior de Educação de Coimbra (ESEC) em 2010, tendo ganho vários prémios Nacionais na área de Ilustração, banda desenhada e design gráfico. Trabalhou em empresas como a Memorandum (actual Cision), Take The Wind e é director artístico da Bits e Saberes. Actualmente continua a trabalhar como freelancer em diferentes áreas, tais como a pintura, ilustração, fotografia e design. 114 A SUL DE NENHUM NORTE Radeo_01, Beleza Descartável Radeo_01, Beleza Descartável, Marco Moura 115 A SUL DE NENHUM NORTE Radeo_02, Beleza Descartável Radeo_02, Beleza Descartável, Marco Moura 116 A SUL DE NENHUM NORTE Satelina, Beleza Descartável Satelina, Beleza Descartável, Marco Moura 117 A SUL DE NENHUM NORTE Archie, Beleza Descartável Archie, Beleza Descartável, Marco Moura 118 A SUL DE NENHUM NORTE Sofia Ferreira Sofia Ferreira http://www.facebook.com/pages/Sofia-Ferreira/136155439764096 http://sofiaciente.tumblr.com/ 119 A SUL DE NENHUM NORTE #25 #25, Sofia Ferreira 120 A SUL DE NENHUM NORTE #24 #24, Sofia Ferreira 121 A SUL DE NENHUM NORTE #26 #26, Sofia Ferreira 122 A SUL DE NENHUM NORTE #34 #34, Sofia Ferreira 123 A SUL DE NENHUM NORTE e isto 124 A SUL DE NENHUM NORTE G. K. Chesterton Gilbert Keith Chesterton, conhecido como G. K. Chesterton, (Londres, 29 de Maio de 1874 — Beaconsfield, 14 de Junho de 1936) foi um escritor, poeta, narrador, ensaísta, jornalista, historiador, biógrafo, filósofo, desenhista e conferencista britânico. Ficou famoso como o criador dos contos do Padre Brown. G. K Chesterton era um católico convertido num país de anglicanos. Chesterton foi uma "máquina" intelectual. Escreveu mais de 4.000 artigos para jornais, uns 100 livros e aproximadamente 200 contos, quase todos ditados à sua secretária. 125 A SUL DE NENHUM NORTE A filosofia dos passeios Seria de facto interessante saber precisamente porque é que uma pessoa inteligente -quero com isto dizer uma pessoa com qualquer tipo de inteligência – pode ou não gostar de passeios turísticos. Porque é que a ideia de um “americano” cheio de turistas que vão ver o local de nascimento de Nelson ou a cena da morte de Simon de Montfort causa um estranho arrepio na alma? Posso facilmente dizer de onde não surge esta estúpida aversão aos turistas e suas antiguidades — pelo menos, no meu caso. Sejam quais forem os meus outros vícios (e eles são, obviamente, extravagantes), consigo colocar a mão sobre o coração e dizer que não surge dum desprezo mesquinho pelas antiguidades, nem tampouco dum desprezo ainda mais mesquinho pelos turistas. Se existe algo mais redutor e deplorável do que a irreverência pelo passado, é a irreverência pelo presente, pela apaixonada e colorida procissão da vida, que inclui um “americano” entre as carruagens e carros triunfais. Não conheço nada tão vulgar como esse desprezo pela vulgaridade que se ri dos caixas num feriado ou dos Cockneys[1] nas praias de Margat. O homem que não repara em nada no caixa, para além do seu sotaque Cockney, também não iria reparar em nada acerca de Simon de Montfort, para além do seu sotaque francês. O homem que goza com o Jones por lhe ter caído o “h” iria provavelmente gozar com Nelson por lhe ter caído um braço. O desdém ressalta facilmente sobretudo nas mentes vulgares, e é tão fácil troçar de Montfort por ser estrangeiro ou de Nelson por ser aleijado, como troçar de um discurso esforçado e dos corpos mutilados das massas da nossa cómica e trágica raça. Se me afastar desta questão de turistas e túmulos, não é certamente por ser tão profano que pense de ânimo leve nos túmulos ou nos turistas. Reverencio esses grandes homens que tiveram a coragem de morrer; Reverencio também estes pequenos homens que têm a coragem de viver. Mesmo que isto seja concedido, uma outra sugestão pode ser feita. Pode dizer-se que as antiguidades e as multidões nos lugares comuns são de facto coisas boas, como as violetas e os gerânios; mas não combinam. Um chapéu de coco é um objecto belo (pode ser intensamente desejado), mas não tem o mesmo estilo arquitectónico da catedral de Ely; é uma cúpula, uma pequena cúpula rococó ao estilo renascentista, e não combina com os arcos pontiagudos que atacam os céus como lanças. Um “americano” é encantador (pode dizer-se) se colocado num pedestal e venerado para o seu próprio doce bem-estar; mas não se harmoniza com a curvatura e desenho do velho navio de guerra no qual morreu Nelson; a sua beleza é de outra natureza. Assim (vamos imaginar que o nosso sábio argumenta) antiguidade e democracia devem ser mantidas separadas, como coisas inconsistentes. As coisas podem ser inconsistentes no tempo e espaço, não sendo de todo, inconsistentes no valor intrínseco e na ideia. Assim a igreja católica tem água para os recém-nascidos e óleo para os moribundos: mas nunca os mistura. Esta explicação é plausível; mas não a considero adequada. A primeira objecção é que o mesmo cheiro de bathos[2] assombra a alma no caso de todas as elaboradas e deliberadas visitas aos “locais bonitos”, mesmo por pessoas da mais elegante posição ou de privacidade mais protegida. Especialmente as visitas ao Coliseum ao luar parecem-me tão vulgares como quando se 126 A SUL DE NENHUM NORTE visita à luz das tochas. Um milionário especado no topo do Mont Blanc, um milionário especado no deserto junto da Esfinge, um milionário especado no meio de Stonehenge, é tão cómico como um milionário em qualquer outro lado; e isto basta. Por outro lado, se o chapéu de coco tivesse entrado privada e naturalmente na catedral de Ely, nenhum entusiasta pela harmonia gótica pensaria em criticar o chapéu de coco – enquanto, claro está, não esteja a ser usado na cabeça. Mas há de facto uma objecção muito mais profunda a esta teoria das duas excelências incompatíveis, antiguidade e popularidade. Pois a verdade é que têm sido quase sempre as antiguidades a interessar a populaça; e tem sido quase sempre a populaça a preservar sistematicamente as antiguidades. O Habitante mais Velho tem sido sempre um campónio; Nunca ouvi dizer que ele fosse um cavalheiro. São os camponeses que preservam todas as tradições dos locais das batalhas ou das construções das igrejas. São eles que lembram, desde sempre, das aparições das fadas ou dos solenes milagres dos santos. Nas classes mais altas o sobrenatural foi assassinado pela arrogância. Há um texto das Escrituras verdadeiro e tremendo que diz “onde não há visão a gente perece.” Mas na prática é igualmente verdade que onde não há gente as visões perecem. Como tal, deve ser abandonada a ideia de que este sentimento de fraco desagrado dirigido aos passeios populares é devida a qualquer incompatibilidade herdada entre a ideia de templos e troféus especiais e a ideia de grandes massas de homens comuns. Pelo contrário, estes dois elementos de santidade e democracia têm estado fortemente ligados e aliados ao longo da história. Os templos e troféus foram muitas vezes construídos por homens comuns. Foram sempre construídos para os homens comuns. Para a panóplia de coisas que o fastidioso artista moderno possa escolher para aplicar a sua teoria de apreciação especializada, e uma aristocracia de gosto, ele tem de a considerar difícil de aplicar a uma tão monumental e histórica arte. Obviamente, que um edifício público foi feito para impressionar o público. O túmulo mais aristocrático é um túmulo democrático, porque existe para ser visto; a única coisa aristocrática é o cadáver em decomposição, não o mármore intacto, e se o homem quisesse ser completamente aristocrático, deveria ser enterrado no seu próprio quintal. A capela da mais estrita e exclusiva seita é universal exteriormente, mesmo que seja limitada no seu interior, as suas paredes e janelas confrontam todos os pontos da bússola e todos os recantos do cosmos. Pode ser pequena como um domicílio, mas é universal como monumento; se os seus sectários desejassem de facto privacidade deveriam tê-la construído numa casa privada. Sempre que construímos um edifício municipal ou nacional, pilar, ou estátua, falamos à multidão como um demagogo. A estátua de todo o homem de estado submete-se à eleição tanto como o próprio homem de estado. Todo o epitáfio numa pedra de igreja é colocado para a multidão tal como um placar numas eleições. E se seguirmos esta linha de pensamento chegaremos, penso eu, a encontrar realmente a razão pela qual o passeio moderno colide com algo em nós, algo que não é um desprezo ofensivo por sepulcros nem da mesma forma um desprezo ofensivo por labregos. Pois, afinal, existem muitos – átrios de igreja que consistem maioritariamente de labregos mortos; mas isso não os torna menos sagrados ou menos tristes. 127 A SUL DE NENHUM NORTE A verdadeira explicação, penso eu, é esta: que estas catedrais e colunas triunfais foram destinadas, não para gente mais culta e consciente que os turistas modernos, mas para gente muito mais grosseira e mais casual. Esses repuxos de pedra viva como fontes congeladas, foram colocadas e posicionadas para chamar a atenção do homem comum, sem consideração e atarefado no seu dia-a-dia; e quando são tão vistos nunca são esquecidos. A verdadeira forma de reavivar a magia dos nossos grandes mosteiros e sepulcros históricos não é a que Ruskin estava sempre a recomendar. Não é ser mais cuidadoso com as construções históricas. Não, é ser menos cuidadoso com elas. Compre uma bicicleta em Maidstone para visitar uma tia em Dover, e verá a catedral de Canterbury como foi construída para ser vista. Atravesse Londres apenas como o caminho mais curto entre Croydon e Hampstead, e a coluna de Nelson lembrá-lo-á (pela primeira vez na sua vida) Nelson. Apreciará a catedral de Hereford se vier pela cidra, e não pela arquitectura. Verá realmente a Place Vendome se vier em negócios, e não pela arte. Pois foi para as gerações de homens simples e laboriosos, práticos, preocupados com inúmeras coisas, que os nossos pais geraram esses portentos. Há, de facto, um novo elemento, não de somenos importância: o facto de as pessoas irem às catedrais para rezar. Mas na discussão acerca dos amantes de catedrais modernos, não temos de ter isto em conta. [1] O termo Cockney tem um significado geográfico e linguístico. Refere-se usualmente à classe trabalhadora de Londres, particularmente à que vive no East End, e ao sotaque inglês falado por este grupo de pessoas. [2] Bathos, tentativa frustrada, e por isso ridícula, de criar pathos, especialmente quanto à piedade e à dor moral. Pathos, tipo de experiência humana ou sua representação em arte, que evoca dó, compaixão ou uma simpatia compassiva no espectador ou leitor. Tradução, Nuno Abrantes 128 A SUL DE NENHUM NORTE Michel Laub Michel Laub nasceu em Porto Alegre, em 1973. Escritor e jornalista, foi editor-chefe da revista Bravo e coordenador de internet do Instituto Moreira Salles. Hoje é professor de criação literária (Academia Internacional de Cinema, B_Arco, Sesc) e colaborador de diversos veículos e editoras. Publicou quatro romances, todos pela Companhia das Letras: Música Anterior (2001); Longe da água (2004), lançado também na Argentina; O segundo tempo (2006) e O gato diz adeus (2009). Recebeu o prémio Erico Verissimo/Revelação, da União Brasileira dos Escritores, as bolsas Vitae, Funarte e Petrobras e foi finalista dos prêmios Jabuti, Portugal Telecom (duas vezes), Fato Literário/RBS e Zaffari/Bourbon. Tem textos publicados em Itália e na Coreia. Blog: http://michellaub.wordpress.com/ 129 A SUL DE NENHUM NORTE Um museu imaginário de simpatias Sérgio Augusto de Andrade num ensaio de 1997, comentando o Grande Diccionário Portuguez de Frei Domingos Vieira, dos Eremitas Calçados de Santo Agostinho, editado no Porto em 1871: “Em suas páginas, as palavras parecem vir de uma cozinha saturada de sabores, de um palácio encantado ou um jardim persa. Ao contrário de nossa tradição de ingênua, inútil objetividade, em nenhum momento frei Vieira simula indiferença diante da língua: antes de representar simplesmente um vocábulo, cada palavra representa um desafio, um compromisso, uma questão de honra, uma sinfonia e o projeto de uma estética. Quando define ‘acalanto’, ressalta: ‘Formosa, suave e meiga palavra, que já em si exprime o canto e carinho maternal ao ritmo do qual se embalam as crianças, para suspender-lhes o choro, com o sono’; em seu dicionário, o mirto é um ‘arbusto sempre verde de folhas miúdas, cujas flores são brancas e de um cheiro muito agradável’. Ao comentar as diferenças entre arejar e ventilar – ‘que, em geral, se empregam promiscuamente’ – esclarece que entre elas pode-se notar ‘a mesma diferença que há entre ouvir e escutar; ver e olhar (…). Arejar traz ao espírito uma idéia de brandura e sossego; ao contrário de ventilar, que denota certa violência e fortaleza’. E, em certos casos, há observações até discretamente poéticas: para o advérbio ‘mansamente’, sua definição alonga-se, como um gato que se espreguiça, num alexandrino perfeito – ‘com mansidão’, escreve frei Vieira, ‘com docilidade e sossego’. Os ‘favos ou buracos que muitas vezes se encontram dentro do pão’ são definidos como ‘alma de padeira’; a fímbria de vento ‘que entra nas casas por alguma fresta’ é dita ‘ar coado’. Fica evidente que um dicionário nunca deve se limitar a um arquivo morto de significados, mas sim estabelecer um exuberante museu imaginário de simpatias – tanto pelas coisas quanto pelas palavras. É como se criasse, imperceptivelmente, uma outra língua: nesse sentido, todo dicionário ideal é sempre bilíngue. Quando define ‘avalanche’ como ‘grande mole de neve’ que se ‘despede do cimo dos montes’, frei Vieira parece estar falando outra língua, estabelecida por outras relações. Ser bilíngue numa mesma língua é muito mais difícil que dominar várias outras. Afinal, não é mais algo que envolve o empenho, mas a invenção.” 130 A SUL DE NENHUM NORTE Renato Carreira Renato Carreira nasceu em 1977 e tem-se mantido vivo de forma mais ou menos contínua desde então. Frequentou vários estabelecimentos de ensino, fez trabalhos de mérito intermitente e conquistou uma reputação unânime de “gajo esquisito” entre aqueles que com ele privaram. Passa demasiado tempo a atafulhar o ciberespaço com coisas como a Inépcia (www.inepcia.com) desde 2001.Gosta de bifinhos com cogumelos, mas não nega um bom bacalhau à brás, uma francesinha com batata frita ou uma alheira de Mirandela. O grão-de-bico será sempre a sua perdição derradeira. Promete ofertar uma quantia simbólica em dinheiro a quem o abordar na rua, segredando-lhe ao ouvido as palavras “Costa da Caparica”. 131 A SUL DE NENHUM NORTE Manifesto godá Jovem. Levanta-te e segue-me. Eu posso indicar-te o caminho. Tenho-te visto a andar sem rumo pela rua, indeciso quanto ao ritmo da passada, com os olhos no chão e a cabeça nas alturas. Não precisas de penar mais. Eu sei para onde queres ir. Vivemos numa época de crise de valores. Normalmente, quem diz isto está a referir-se ao facto de andarmos todos a interromper gravidezes a torto e a direito sem nos preocuparmos em ir à missa de vez em quando, num perpétuo arraial de fornicação desregrada. Não é a isso que me refiro. Nas gerações anteriores, passava-se directamente da infância para a idade adulta através do sacramento do matrimónio. Até à idade dos 18, 19, tudo era mais ou menos inocente. Depois disso, o objectivo comum passava a ser encontrar uma cara-metade, casar e constituir família, possibilitando o início de um novo ciclo. Agora, as coisas mudaram. Quem vê a sua adolescência chegar ao fim, hoje em dia, tem um punhado de opções. Ou continua a fazer o mesmo, ou seja, envereda por uma “vida em comum”, uma “relação” mais ou menos oficializada e mais ou menos bem-sucedida (o divórcio também é uma experiência válida e uma separação de facto pode ser tão proveitosa como uma união de facto), ou tem a sorte de encontrar uma ocupação profissional de tal forma enriquecedora que faça esquecer tudo o resto (actor, cantor, futebolista ou secretário-geral da ONU). Fora isto, é preciso haver qualquer coisa que complemente o trabalho ou o estudo. Há os desportos radicais, o tuning, a criação de pitbulls e rottweillers, o crime, a aquariofilia, a filatelia, a informática, a pedofilia, a observação de aves, a pesca, a caça, o futebol, o ténis, a fórmula 1, o sexo, a masturbação, a masturbação com pittbulls e rottweillers, a masturbação dentro de um aquário com selos de correio e até, para quem gosta de emoções fortes, o folclore. Mas há gente que, por ter uma educação mais esmerada ou apenas porque as circunstâncias da vida assim o determinaram, acha que está acima disto. Precisam de algo que lhes titile a sofisticação. Que os faça sentir que pertencem a um grupo. E não a um grupo qualquer, mas a um grupo de gente que, como eles, tenha gosto apurado, tenha opiniões, saiba apreciar as artes e não ignore que sair de casa sem um saco a tiracolo e um livro de Boris Vian no bolso é como estar nu. Precisam de ser godás. E o que vem a ser um godá? É muito simples. Comecemos pela pronúncia. Lê-se “gódá” e não “gudá” ou “gôdá” ou qualquer outra variante. Vem de Godard, realizador francês que, não sendo ele um godá propriamente dito, é um dos autores que, para qualquer godá que se preze, fica sempre bem citar e dizer que se conhece o seu trabalho e se gosta muito. O termo é de minha autoria, mas o conceito já existia. A única coisa que faltava era alguém perceber que não é apenas uma particularidade comportamental, mas toda uma filosofia de vida. Dizia-se que fulano era intelectual. Ora, ser-se intelectual é bastante desprezível, mas não se enquadra na grandiosidade emparvescente da essência do godá. Pacheco Pereira, por exemplo, é 132 A SUL DE NENHUM NORTE um intelectual. Mas nunca ninguém o verá de cachecol cheio de borboto e calças de bombazine a tentar decorar a ficha técnica de um filme eslovaco dos anos 30 a partir de uma brochura da Cinemateca. Depois há variações de intelectual. “Pseudo-intelectual” ou o “intelectualóide” que já se aproximam mais da natureza do godá. Mas são dois termos arruinados pelo uso e abuso de anos. Hoje em dia, “pseudo-Intelectual” e “intelectualóide” é o que os parvos chamam a toda a gente que é ligeiramente menos parva do que eles à falta de qualificativo mais adequado. No fundo, há cinco elementos fundamentais que definem a essência do godá. A saber: 1 - Aparência O godá põe as coisas do espírito acima das coisas materiais. Mas as coisas do espírito não dão nas vistas e, por mais culto que se seja, não é por isso que alguém vai reparar em nós no Lux apinhado. O segredo está em vestir de forma aparentemente despreocupada mas garantindo que um conjunto singelo de elementos está sempre presente. O calçado deve ser desportivo e discreto. Ténis de marca mas que não chamem a atenção são o ideal. Calças de ganga só se não houver mais nada no armário. E, mesmo assim, convém que não sejam azuis. No tronco é onde a liberdade é maior. Dá-se preferência a cores sisudas e é melhor não haver nada escrito (o godá lê, o godá não é lido). Se houver alguma coisa escrita que seja arrojada e emblemática (o nome de um festival de cinema underground ou uma frase em inglês carregada de pós-modernidade vanguardista como “My feet smell” ou “I suck cock”; se o arrojo for muito, pode ser em alemão). Para complementar, um saco a tiracolo (simultaneamente prático e requintado), um cachecol (se fizer frio) e um par de óculos de massa (se houver falta de vista ou, mesmo que não haja, se houver dedicação que chegue para isso). Os homens devem usar a barba por fazer e o cabelo despenteado. As mulheres podem andar como quiserem que vão sempre sentir que estão a criar tendências (para além das tendências homossexuais que muitas criam nos godás machos hetero). 2 – Gosto O gosto é o elemento definidor por excelência que faz dos godás tudo aquilo que são e consegue sobrepor-se aos restantes elementos pois é por aquilo de que gosta ou finge gostar que um godá se posiciona na hierarquia godárica. A definição do que é ou não gostável em termos de arte não depende de critérios estéticos subjectivos (como sucede com o comum dos mortais) mas sim da seguinte equação matemática: x + y + z / m = r (em que x corresponde ao número de pessoas que não conhecem a manifestação artística em questão - quanto mais elevado o valor, melhor; y é a quantidade de pessoas que poderão ficar impressionadas com a sua referência; z é a importância de quem recomendou; m é a biografia do autor; e r o nível de apreciação). E há uma ressalva que deve ser feita no que diz respeito a cinema. O godá convicto não vê filmes 133 A SUL DE NENHUM NORTE americanos. Até pode já ter feito uma lista dos seus filmes preferidos (os godás gostam de fazer listas e de as comparar com as dos outros godás para ver quem tem a maior) e percebido que uma boa parte deles é americana, mas não interessa. Todo o cinema americano deve ser metido no mesmo saco (com honrosas excepções: David Lynch e Woody Allen antes de se terem vendido ao capital, por exemplo). Não há cá "cinema independente" nem "blockbusters." Bons filmes ou maus filmes. Tudo é igualmente mau e americano (são sinónimos). Se algum não-godá mais afoito pedir explicações, diz-se-lhe que o cinema americano é mau porque é comercial. A seguir, foge-se a correr para não ter de ouvir os argumentos dele de que este argumento é uma imbecilidade. Além disso, os americanos não merecem mais depois daquilo que fizeram no Iraque e no Afeganistão. Os porcos. 3 - Discurso O discurso do godá genuíno é um verdadeiro trabalho de patchwork verbal. Nos primeiros anos de godazice, poderá haver uma tendência motivada pela falta de experiência para dizer coisas que são resquício de alguma actividade cerebral própria muito ligeira. Com o tempo, o godá aprende que, com tanta gente a dizer coisas importantes, significativas, mordazes e bem pensadas ao longo da história da humanidade, é uma grande presunção pensar que alguma coisa que possam pensar por si próprios poderá conseguir ter mais interesse. Resta escolher entre citações devidamente identificadas e citações obscuras retiradas de jornais e revistas ou ouvidas de passagem. A opção fica ao critério de cada godá. 4 - Expressão O godá não se limita a ser um apreciador de manifestações artísticas alheias. É ele próprio um artista multifacetado, dando especial importância às artes maiores do ponto de vista da produção artística godá: a poesia e a fotografia. A predilecção por estas duas formas de expressão deve-se a motivos essencialmente pragmáticos. Fazer cinema, pintar, cantar ou mesmo escrever prosa exige um conjunto de requisitos a priori e um certo nível de esforço que o godá não pode despender porque tem coisas melhores em que ocupar o seu tempo precioso. Para a fotografia e a poesia, basta ter acesso a uma máquina fotográfica e a um qualquer suporte de escrita digital ou analógico. Os resultados serão posteriormente expostos para apreciação de outros godás em blogs (godá que se preze tem de ter um blog, se se prezar mesmo muito, tem um livejournal) e podem mesmo chegar até ao grande público graças ao “empurrãozinho” de um godá amigo/conhecido com os contactos certos. 134 A SUL DE NENHUM NORTE 5 – Convívio O godá é auto-suficiente. Mas não deixa de ser um animal social e, como tal, precisa de conviver com outros godás para se sentir realizado. Os ajuntamentos godás dão-se em locais que podem ir de estabelecimentos de diversão nocturna, galerias de arte, livrarias, salas de cinema, concertos, cafés ou qualquer recanto mal iluminado e cheio de fumo com um ar prazenteiro para albergar tertúlias. Nesses encontros, cada godá debita os novos conhecimentos que adquiriu nos dias anteriores (esforçando-se ao máximo para dar a entender que se trata de algo que já sabe há muito), recomendam-se e trocam-se livros, cds e dvds, fumam-se cigarros, bebem-se cafés e cada godá tenta parecer o mais natural possível, ao mesmo tempo que vai pensando que a godazice dos outros não passa de pose e que só a sua é legítima. E é esta a essência do godá. Muito mais haveria para dizer mas, por motivos de tempo, vejo-me forçado a ficar por aqui. Há um ciclo muito bom na Cinemateca subordinado ao tema “François Truffaut e cuecas de renda - uma relação intempestiva” e, se chegar atrasado já não apanho brochuras. Contribuições para uma taxinomia do godá Contrariamente ao que se possa pensar, o godá não é criatura única, conhecendo várias variantes que encaixam na grande e abrangente categoria da godacidade universal. Qual lémure de Madagáscar, o godá tem também subespécies que se revestem, cada uma, de características únicas que permitem distribuí-las pelos diversos ramos sem perder a essência comum às variantes. Claro está que não se trata de categorias absolutas e os híbridos são possíveis e bastante frequentes. Passemos a enumerar de forma breve as subespécies mais facilmente observáveis à vista desarmada. O godá porreiro: Talvez o tipo de godá que mais facilmente desperta a simpatia dos seres humanos, podendo inclusive ser o de mais fácil domesticação. Infelizmente, a raridade do godá porreiro impossibilita quaisquer sonhos de venda em massa por lojas de animais de estimação. À primeira vista, nada distingue este godá do godá comum. É necessária uma observação mais próxima para notar que se trata de um godá perfeitamente consciente da sua condição e que não faz qualquer esforço para a negar. Ao invés, recebe com boa disposição os comentários feitos a respeito dela e presta-se a responder a questões que esclareçam o cidadão comum acerca da fascinante natureza godá, dando um contributo inestimável para uma avaliação científica. Infelizmente, como já se disse, o godá porreiro está praticamente extinto e subsistem muito poucos exemplares. 135 A SUL DE NENHUM NORTE O godá sazonal: O godá sazonal (ou “falso godá”) não é um godá legítimo, de acordo com muitos teóricos. Isto explica-se pelo facto de hoje poder ser godá, amanhã dedicar-se à causa do rock industrial, no dia seguinte sair do armário e assumir a sua homossexualidade militante para, dois dias depois, voltar a ser godá (até descobrir uma vocação para o surf durante um fim-de-semana na Ericeira). Esta inconstância é devida a um défice mental nos godás deste tipo que gera um fenómeno que poderemos descrever como “nomadismo influenciável” pelo modo como a mudança de um campo para o outro é motivada pelas pessoas que o godá vai conhecendo e pela preferência que vai dedicando a uns ou a outros. O godá fundamentalista: O mais agressivo de todos os godás mas sem perigo porque, essencialmente, o godá é um animalejo inofensivo. A agressividade manifesta-se no modo impetuoso como defende a sua condição com unhas e dentes, podendo chegar ao ponto de tentar doutrinar terceiros para que estes se transformem também eles em godás e, possivelmente, em discípulos seus (o godá fundamentalista gosta de ter seguidores e de ser visto e apontado como exemplo). Dentro do subgénero dos godás fundamentalistas, nas raras ocasiões em que a defesa dos ideais godás é levada às últimas consequências (vulgo “chapada”), o godá fundamentalista metamorfoseia-se em godá mujahedine. O godá de cobrição (unissexo): Como qualquer outro animal, o godá tem preocupações de índole reprodutiva, dedicando uma parte significativa da sua vida à procura de uma companheira com quem possa assentar e trazer ao mundo novos godás (apesar de, como se sabe, a godazice não ser hereditária, podendo, porém, ser influenciada pela educação). No entanto, há godás que se tornam godás movidos apenas por intuitos sexuais. São os godás de cobrição e, apesar de a designação poder sugerir o contrário, podem ser de ambos os sexos. O godá de cobrição começa por ser um humano sexual e afectivamente frustrado, pouco confiante nos seus atributos e personalidade. O bicho da godazice manifesta-se como esperança na aquisição de uma personalidade alternativa que transforme o agora recém-godá num ser apelativo para o sexo oposto (ou não, dependendo dos gostos de cada um). Trata-se de um godá predador que escolhe para vítimas ou godás mais jovens e inseguros ou humanos adolescentes fascinados pela sua bela pelagem e interessados também eles em assumir uma faceta godá. Na maior parte dos casos, as vítimas de um godá de cobrição acabam irremediavelmente por se tornar também godás, levando alguns a estabelecer um paralelo com o vampirismo. 136 A SUL DE NENHUM NORTE O godá fashion/design: O godá fashion e o godá design são duas subespécies muito próximas e que, muitas vezes, se fundem numa só. De qualquer forma, a bem do rigor científico, será feita a descrição de cada uma de forma isolada. O godá fashion caracteriza-se por um afastamento dos padrões de roupagem característicos dos restantes godás, trocando a bombazine, os cachecóis e o borboto por fatos completos de veludo em cores “alternativas” e vestidos vintage de corte vietnamita. Note-se, no entanto, que este traje formal godá não corresponde ao traje formal humano e, mesmo um godá fashion, não deixará nunca de ser facilmente identificado em toda a sua godazidão. Quanto ao godá design, reconhece-se pelo comportamento característico de recolha de objectos passíveis de impressionar o próximo pelo arrojo de linhas, que amontoa no ninho por motivos que a ciência desconhece. O geekodá: Um dos traços distintivos do godá é o seu desprezo por tudo que classifica como “comercial” ou “mainstream.” O geekodá, uma variante muito peculiar, tem uma interpretação muito própria deste traço comportamental. Não procura o que escapa às massas. Em vez disso, sobrepõe-se a elas, parte do gosto comum e vai subindo por uma escada imaginária, ao longo da qual vai descobrindo versões alternativas, autores alternativos, versões e autores desconhecidos, versões originais, autores malditos (etc.) e prestando-lhes o culto devido em moldes que chegam a ser obsessivos. O geekodá poderá também assumir publicamente que aprecia elementos “mainstream”, mas com a convicção de que a sua apreciação destes é sempre a única correcta. O freakodá: À primeira vista, o freakodá não parece um godá. Tem vestuário e hábitos distintos nos quais prevalecem as roupas multicoloridas, gastas e remendadas, as missangas, os andrajos feitos pela própria mão, os cabelos emaranhados e também multicoloridos (não há dois freakodás exactamente com o mesmo corte de cabelo), os ajuntamentos de rua, a venda de bijutaria artesanal e a dedicação às actividades circenses que substituem por completo a fixação do godá comum pelo cinema, pela literatura ou pela música. Mas a verdade é que, se os comportamentos são diferentes (e são-no de facto), é inegável que a motivação por trás deles, a mesma vontade de dar nas vistas por uma diferença forçada e de fazer parte de uma elite (quer seja uma elite cultural fictícia ou uma elite composta por iluminados que sabem que o verdadeiro sentido da vida consiste em fumar “cigarros medicinais” e fazer malabarismo), dificilmente poderia ser mais godá. Há relatos de que alguns freakodás são capazes de cuspir fogo, mas nunca foram confirmados. Quando um freakodá substitui o interesse pelas artes circenses por preocupações ambientalistas, passa a ser um ecodá. 137 A SUL DE NENHUM NORTE Créditos A SUL DE NENHUM NORTE Nº 1 Editores Maria Sousa e Nuno Abrantes Design Nuno Abrantes Maria Sousa Maria Sousa é uma lebre que é uma Alice e gosta de passar a tardes no café Santa Cruz a ler e a escrever. Gosta de revistas e já participou em algumas (Criatura, Sítio, Umbigo, Saudade). Escreveu “Exercícios para endurecimento de lágrimas” (Língua Morta, 2010) mas ainda chora quando ouve a Lhasa e o Tom Waits. Não gosta de dar aulas e quando for grande quer ser livreira. Nuno Abrantes Nuno Abrantes é um menino mau que gosta de girassóis e cinema japonês. Desenha mulheres bala e outras coisas, enquanto ouve música estranha. Gosta de ler e ama Bukowski. As obras publicadas nesta revista são propriedade intelectual dos seus autores, pelo que a sua cópia ou alteração não é permitida sem a vontade expressa dos seus autores. A revista “A SUL DE NENHUM NORTE” está licenciada sob uma Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/ ou envie uma carta para Creative Commons, 171 Second Street, Suite 300, San Francisco, California 94105, USA. 138 A SUL DE NENHUM NORTE 139