isamen - O Blog do Tlönista

Transcrição

isamen - O Blog do Tlönista
isamen
Editorial
6
isto
7
Ana C.
trago as mãos sonâmbulas de te esperar ao relento na noite
8
9
esta noite
10
as árvores irrompiam paredes dentro
11
os dias são feitos de noites intermináveis
12
Bruno Béu
13
ao cimo (à direita) de quinze degraus
14
consoada de uma mulher sozinha
15
algum questionamento sobre a refracção e outros fenómenos
16
para flauta, violoncelo e sala
17
Cecilia Eraso
18
o silêncio é saúde
19
representação de engrenagens
20
coaxialidade
21
um fotão para a posteridade
22
Celeste Wladyka
23
Lusíada
24
Risus paschalis
25
Lacrima corpus dissolvens
26
Orbis terrarum
27
João Villalobos
28
Acunpuntura das feras
Idra Novey
29
30
Entretanto as sementes de melancia
31
Definição de desconhecido
32
A ex-prisão de Valparaiso
33
Duas mulheres num celeiro
34
Maria Sousa
aqui não há ninguém
35
36
vejo-te na soleira da porta
37
A mulher
38
como pretexto para amputar sonos
39
Pedro Jordão
Tríptico
Pedro Outono
40
41
42
descobri que as palavras não fazem sobreviver as sílabas
43
logo de manhã fecho a porta do livro e vou
44
vamos pôr o avental
45
quando acordo estou melhor dos armários
46
Rui Almeida
Não, voltemos atrás
Sonata Paliulytė
47
48
51
Silêncio
52
Ventoso
53
Meditação da batata
54
Eternidade
55
Tatiana Pequeno
56
metal heart, outra versão
57
carta para arcíria
58
litoral
59
réplica das esquinas
60
Tiago Gomes
62
A cidade (não é Lisboa)
63
Enquanto na sala ao lado fazem macumba
64
Para o papel depressa
65
A orquestra desafinada
66
Isto
Ângela M.
25 Megapixels
Beatriz Hierro Lopes
67
68
69
75
Era uma rua que vivia de carne
76
Acontece
77
Henrique Manuel Bento Fialho
O novo e a novidade
Joana Serrado
Declaração de Imposto a Deus
78
79
83
84
Jorge Fallorca
86
O passeante
87
Kenneth Traynor
94
Sete filmes de sonho
95
Postal
97
Pedro Santo Tirso
Teoria e Jogo do Fado
isto
Gonçalo Martins
98
99
102
103
Menina I
104
Menina II
105
Menina III
106
Menina IV
107
João Rios
108
Christhus Bar
109
Doctor love
110
Estátua nadando
111
Music for leon
112
Pumping Station 1.1
113
Marco Moura
114
Radeo_01, Beleza Descartável
115
Radeo_02, Beleza Descartável
116
Satelina, Beleza Descartável
117
Archie, Beleza Descartável
118
Sofia Ferreira
119
#25
120
#24
121
#26
122
#34
123
e isto
G. K. Chesterton
A filosofia dos passeios
Michel Laub
Um museu imaginário de simpatias
124
125
126
129
130
Renato Carreira
131
Manifesto godá
132
Créditos
138
Maria Sousa
138
Nuno Abrantes
138
A SUL DE NENHUM NORTE
Editorial
E nada será teu senão um ir até onde não há onde.
Alejandra Pizarnik
“A norte de nenhum sul” é um lugar de partilha de novas ideias e divulgação de autores nas áreas
de escrevinhar e bonecar.
Se calhar queremos ser uma biblioteca improvável onde se misturam autores conhecidos e não
conhecidos, portugueses e estrangeiros.
Nada melhor do que a internet, que para nós é acima de tudo uma rede de partilhas ideal para
começar um projecto como este.
Como revista online, será gratuita e o seu formato em .pdf, o mais confortável para ler no
computador ou nos dispositivos portáteis tão na moda, ou mesmo ser impressa e lida em todo o
lado em belas folhas de papel (sim, caro Vila-Matas, somos portáteis).
Como infelizmente temos coisas chatas para fazer, não podemos editar uma revista todas as
semanas, ou mesmo todos os meses; por isso ficou decidido de forma democrática e unânime,
pelos dois editores, que seria bimensal (de Março a Maio é um saltinho e verão que passa num
instante).
Agradecemos muito a todos os que tornaram possível este primeiro número, contribuindo com a
sua arte e engenho.
Queremos saber o que está bem e/ou mal na revista.
Para nos dizerem isso podem usar um rol de contactos, o email([email protected]),
o blog da revista (http://a-suldenenhumnorte.blogspot.com/) ou a nossa singela página de
facebook (http://www.facebook.com/pages/A-sul-de-nenhum-norte/184156558296322?ref=ts),
de forma a fazer-nos chegar os vossos tão importantes comentários e opiniões.
Esperamos que gostem tanto de a ler como nós de a editar.
Nuno Abrantes & Maria Sousa
6
A SUL DE NENHUM NORTE
isto
7
A SUL DE NENHUM NORTE
Ana C.
Ana C. nasceu em Lisboa, há 35 anos, sob o signo de Capricórnio. Cedo se lembra de escrever
estórias e poemas. Apesar disso, quis tentar mudar o mundo de outra forma e enveredou pela
Sociologia.
Começou por escrever a tinta de caneta e a lápis mas converteu-se facilmente aos computadores
e aos blogues, onde vai arquivando os seus escritos. Não dispensa, contudo, esquecer-se de
palavras em folhas soltas, flyers, pacotes de açúcar, bilhetes de autocarro…
Há uns anos vislumbrou a concretização do sonho de ter uma livraria fora do comum e hoje, com
mais ou menos livros à volta, acha que, no fundo, sempre lutou contra a possibilidade de ser
apenas mais uma maria vai com as outras.
Habita no Porto. E habita-se a si e aos outros. E aos lugares. Mãos e árvores. E, acima de tudo,
habitua-se à ideia de não conseguir mudar o mundo mas de ser sempre possível mudar-se nele.
8
A SUL DE NENHUM NORTE
trago as mãos sonâmbulas de te esperar ao relento na noite
trago as mãos sonâmbulas de te esperar ao relento na noite.
há muito que deixei de trazer mapas nos bolsos.
respiro apenas a lonjura.
esse país onde habitamos há demasiados séculos.
à deriva, o corpo.
nem a voz se comove já num abraço.
9
A SUL DE NENHUM NORTE
esta noite
esta noite
o vento voltou a encrespar portas e janelas
depois vieram gaivotas
e pousaram pedaços de mar no tecto das casas
e a cidade tremeu
(e tu tremeste-me nas mãos)
à espera de outra coisa qualquer
semelhante ao primeiro de todos os dilúvios
(ao primeiro de todos os beijos)
10
A SUL DE NENHUM NORTE
as árvores irrompiam paredes dentro
as árvores irrompiam paredes dentro
as mãos eram raízes
os pés eram raízes
escrevia no cimento com os lábios
com a boca
tinha olhos na ponta dos cabelos em chamas
o fogo eram as sombras a consumirem
as madeiras do corpo
o soalho a ceder na ausência de vultos
nenhuma flor a tecer manhãs nas janelas
nem a abrir palavras na boca
eu quis a morte lentamente
como se morrer fosse apenas dormir para sempre
lembras-te? a morte seria apenas como dormir para sempre
e a noite um barco ancorado em praias
onde o mar nos subia em remoinho a pele dos sonhos
eu quis um dia fechar o mar num aquário
mas desconhecia o rumor das ondas contra paredes de vidro
desconhecia a fome dos corações fora de água
ouviste? eu desconhecia a fome dos peixes fora de água
o mundo devia ser mais bonito de pernas para o ar
falta-nos ainda varrer a terra dos pés para caminharmos sobre nuvens
e acordarmos de cada vez que fecharmos os olhos
lentamente
ouviste?
11
A SUL DE NENHUM NORTE
os dias são feitos de noites intermináveis
os dias são feitos de noites intermináveis
de canções que se enroscam ruidosamente ao corpo
e eu trago o inverno a respirar-me junto à face
trago as mãos rasgadas
sem bolsos onde se encolherem de frio
é mais do que certo:
se te visse regressar manhã dentro
não sobraria apenas a geometria das árvores em redor do coração
12
A SUL DE NENHUM NORTE
Bruno Béu
Bruno Béu prepara-se para defender um doutoramento em filosofia. É docente convidado no
curso de especialização da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Filosofia e Estudos
Orientais. Membro integrado do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e sócio do Instituto
de Filosofia Luso-Brasileira. Tem poesia publicada em antologias de poesia portuguesa
contemporânea e revistas literárias.
13
A SUL DE NENHUM NORTE
ao cimo (à direita) de quinze degraus
ao cimo (à direita) de quinze degraus
porque os ciclos reencontram-se sempre
um dia (longe da câmara) afastados, nós
ainda dos primeiros bês ou efes, ou
esquecidos do olhar exacto dos espelhos1
vou contar-te (agora tenho tempo) noites
em linha recta e o ilusionista fazia truques
daqueles com argolas. porque nós sussurrávamos
isto: a perfeição, o tempo (agora tenho-o, como
creio disse) e o que está aberto, afinal isto tanto
que nos é tudo2. línguas de gato, uma ou duas
pô-las na boca. dizermos: esta e noite. quebrar
um copo. beber a água do chão (haver muitos
vidros). depois horas a olharmos o centro difuso e
nus, do rosto um do outro. aprender o zero
nesse lugar. e tocarmos o corpo de vidro, um
do outro, na língua (um do outro). existir sempre
um sim. e claro deitarmo-nos juntos por poder morrer
uma árvore essa noite, um círculo. ou apagar-se
na rua, uma luz.
1
2
o que é um corpo? um copo? um r? um rio?
atravessa tudo
14
A SUL DE NENHUM NORTE
consoada de uma mulher sozinha
consoada de uma mulher sozinha
chegas a casa com as mãos
cheias de sacos e vincadas
pelo esforço. o silêncio é escuro
antes de acenderes a luz; depois
o silêncio é o mesmo, mas ilumina
a solidão nos objectos da casa. largas tudo
logo à entrada. acendes a luz fria da casa
de banho. pegas no elástico, agarras os
cabelos, escuros. e lavas o rosto. ele
vai ficando na água. até que o faças
escorrer pelo ralo: sem nenhum som.
15
A SUL DE NENHUM NORTE
algum questionamento sobre a refracção e outros fenómenos
algum questionamento sobre a refracção e outros fenómenos
sei que os caminhos de regresso estão cheios
de gente de chapéus coloridos, contentes, quase
crianças, como se enfim existisse um regresso
o que (parece) não há. se perguntar
para o lado: sabes que não há nenhum
regresso? estou até quase certo que
dirão: sim, sei e continuaremos
no mesmo caminho de regresso.
porque onde há caminhos há regressos
inventados. como se não pudéssemos caminhar
sem acreditar que regressamos
para alguém para algo. é se calhar até por isso
que o hélio dos balões quando sobem sempre
nos sobe muito a voz lá muito para os agudos
animados. e rimos, e depois os balões
esvaziam-se num rodopio pela casa; ou
se calhar tens razão, isto venha a despropósito.
nisto, o que te pergunto é se compreendes: o
regresso é o amor. e nós
inventamos o amor até nos lugares mais improváveis
os nossos indicadores descobrem o destino
das viagens num mapa ainda
às escuras, e regressamos. há um sentido
até mágico se por exemplo entrares num café
numa mercearia e pensares: estou
a regressar. porque logo o amor
se inventa, e o lugar regressa, diz-te (como
se dissesse): sim, é aqui
que tudo começa, que
tudo se renova. o amor
é um mapa consideravelmente grande. no lugar do pendura
e com ele aberto assim entre as mãos ele cobre
praticamente todo o tablier e não vês nada pelo pára-brisas.
é mesmo muito grande (dá para perceber) nele
os nomes de todos os que existem como novas
cidades ou destinos podem ser encontrados.
agora beijo-te. digo boa noite e é como se entrasse
numa dessas tuas ruas, num café perguntasse
o horário do autocarro até ao parque, no mercado
ouvisse a d. eulália falar-me da frescura
daquelas laranjas. beijo-te. nenhum regresso
existe. ainda assim (parece) regressamos.
16
A SUL DE NENHUM NORTE
para flauta, violoncelo e sala
para flauta, violoncelo e sala
regresso aos teus olhos.
escuros como batalhas.
sem prosas, hoje respiro.
digo: ouço. (e perto,
lembro-me: escuros).
uma sala vazia é melhor.
para a ressonância:
do violoncelo, entendes?
hoje regresso a eles. sem
acentos, nem perguntas.
estendo-me no chão da casa
e recuo. deixo a vertigem
(várias) as estações (o próprio
tempo, se pudesse). digo:
ouço. saio da locomotiva
a meio do percurso. digo
que me sinto mal, e sento-me
longe dos aparelhos. regresso.
uma sala vazia é melhor. entro.
levo a mão direita dentro
do casaco. (lado esquerdo). o frio
repara nisso.
17
A SUL DE NENHUM NORTE
Cecilia Eraso
Cecilia Eraso (Neuquén, Argentina, 1978) é poeta, docente e investigadora. Tem publicados dois
livros de poemas – Isolario (Neuquén, Cartonerita Solar, 2010) e plutón canta (Buenos Aires,
Editorial Funesiana, 2010) e a plaquete Orientación Este no P.L.U.P. (Proyecto Latinoamericano de
Unión Poética, 2010). Faz parte do conselho editorial da revista de literatura
www.elinterpretador.com.ar e coordena com outras poetas o P.L.U.P. (Proyecto Latinoamericano
de Unión Poética, 2010).
18
A SUL DE NENHUM NORTE
o silêncio é saúde
o silêncio é saúde
obrigação de fazer silêncio, pelo próprio bem
silêncio, como em tardes ronronam as pombas
em janeiros
sufocantes
de interiores de países
e as bétulas fazem cócegas com os seus ramos nos astros,
com as suas fibras de tapetes distendendo-se nos anos
suavezinhos;
consequência da pauta dos ritmos regulares
centenas de aspersores crescem com os pastos,
e algo do cheiro das pedrinhas desluzidas quando a água
se retira e algo
do cheiro que se despede dessa terra inimizada
com a ideia de se desvanecer;
ou melhor, obrigação de submeter-se a certos ruídos
que competem com o latido, melhor é que não se escutem
as arritmias e as mãos sempre longe da esquerda peitoral;
não será o que sonhaste a avenida nesses sonhos
prolongamentos de montanhas e flutuando neste limbo
os sons funcionais das costelas algo inóspitas;
vibrantes com o ritmo idiota,
os pensamentos,
dominada pela mão sempre insatisfeita;
uma natureza menos generosa, de um campo
de golfistas amainados
mesmo que haja sempre algum quero-quero que complique
esse difícil artifício que é o simples dos campos
cimentados pela industria, os arreios da lavoura
um desejo de nuvens desbotadas corruptoras desde
as menores ansiedades, dum espaço grande como um céu
sem recortes que baralhe e dê outra vez, isso, um momento de
gerânios que recuperam folhas perdidas;
isso, estar fora
19
A SUL DE NENHUM NORTE
representação de engrenagens
representação de engrenagens
chorosos os olhos que olham o ecrã imóvel,
a imagem do animal morto abatido
pelos tiros no momento culminante
da sua rebelião e de tão vista sem dúvida
incomoda o coração com a carga das moscas;
como um vento cheio de lixo e folhas
secas, a evasão das ideias apaga
como invólucro de alfajor[2] essa emoção, a do
momento congelado o garfo quieto na mão
e já não poder comer pela urgência do pranto
contido o pedaço suspendido o vendaval
das ideias que leva toda a parte sensitiva e traz
em troca as folhinhas
quebradiças das associações e as
ressonâncias políticas do feito: não é
impossível chorar por estas mortes,
não.
[2] Alfajor (pronuncia-se alfarror) é um doce tradicional em Espanha, Argentina, Chile, Peru, Uruguai e outros países
ibero-americanos, mas originalmente criado no Equador. O nome vem do árabe al hasu e significa recheado.
20
A SUL DE NENHUM NORTE
coaxialidade
coaxialidade
sabias que uma madeira abandonada
cobrindo de serradura o chão húmido dos
projectos viria a ser como dizer nada
muda na letargia insuportável da própria
incapacidade?
que na noite das predições todos são
símbolos loquazes?
21
A SUL DE NENHUM NORTE
um fotão para a posteridade
um fotão para a posteridade
A imagem mental dita:
dissolvendo-se no cosmos isto
a que chamámos o infinito com abelhas
cálcio, hidrogénio, perucas, almas mortas
à espera de transmigração, outras realidades, camisolas
cidades estrangeiras, mulheres somos, aves, peixes, campos
abstracção, um frio assim que sacode superfícies?
no meio da rota da divindade, fazendo-lhe cócegas
à carne, no calcanhar aquíleo da indiferença, diante das sagas
de folhas secas, instantes perdidos do original, o fóssil
transformado em beberagem espessa do início e
quando alcançar os vestígios da calma, a era do fotão
seja ele pálida recordação de nós próprios num todo de buracos
à medida:
palpitem antes as janelas com o fogo das radiações?
cintilar de TVs enquanto chove nas tardes cinzentas,
nessas primaveras, e até sempre?
Tradução, Nuno Abrantes
22
A SUL DE NENHUM NORTE
Celeste Wladyka
Celeste Wladyka, 1983. Mora em Buenos Aires, onde nasceu, mas tem Lisboa traçada no
coração. Estuda Letras e vai trabalhar de bicicleta. Tem publicado artigos académicos sobre poesia
e música, traduz poetas portuguesas com amor e faz canções. Os quatro poemas que aqui se
apresentam fazem parte da série Poemas do português, fruto da paixão pela língua de Camões.
23
A SUL DE NENHUM NORTE
Lusíada
Lusíada
gosto de sentir a minha língua
roçar a língua de Luís de Camões
a tua língua é tecido
é lençol
para me fazer um vestido
algodão
branco feito por mãos pretas
casulo de seda
-milhares de vermespara me tornar borboleta
a tua língua é
Mondego aberto ao meu destino de Ofélia
cheiros recolhidos pelo orvalho
aldeia solar do meu sonho antigo
na memória
as nossas línguas entrelaçam-se
num monograma esquecido
24
A SUL DE NENHUM NORTE
Risus paschalis
Risus paschalis
Ela disse- me
deixa falar a boca do corpo
mas a boca do corpo não fala
grita
grita nessa linguagem almejante sem dentes
embora saiba devorar
a boca do corpo ri
ri um sorriso nu
de criança
precisaram-se todos os séculos
para esquecer
a sua androfágica potência
agora
-ágora elásticanum gesto alimentício
acontece o sacrifício
o banquete de verbos
e corpos
25
A SUL DE NENHUM NORTE
Lacrima corpus dissolvens
Lacrima corpus dissolvens
às vezes apresenta-se
um animal
coberto de penugem e pó
quer morar comigo
deixa o ar
frio
enche o ar
de um leve fumo cinzento
enquanto passa
leva uma mala com obscenos objectos do passado e exibe-os sem vergonha, cruel
eu desmancho palavras sobre ele como se cantasse uma canção antiga
mas esse animal
(que não é mesmo animal mas criatura estranha,
corpo feito de escuridão e lágrimas)
torna-se milhares de gotas microscópicas que eu respiro
como se fosse vírus
e enche meu peito de um espaço vazio e amargo
eu tento deitá-lo pela boca fora, cuspi-lo,
mas só sai pelos olhos quando já é salgado
acontece assim,
às vezes.
26
A SUL DE NENHUM NORTE
Orbis terrarum
Orbis terrarum
as ruas nos mapas
nos papeis, as palavras
fracos fios pretos
num atlas de anatomia do corpo humano
traçam-se avenidas interiores
largos, becos, cantinhos, travessas
sobem e descem
dobram-se e erguem-se
ao percorrer a cidade
a língua faz-se carne
os órgãos recebem
nomes de ruas
as pedras amolecem
no contacto da mão
os verbos revelam
os poderes secretos
das articulações
as ruas nos mapas
nos papeis, as palavras
fracos fios pretos
feitos carne na voz
terramoto selvagem
que desaba a fala da mãe
fluxo quente que esconde
vestígios do mar
voz que atravessa
a língua portuguesa
e sai do peito
do mais perto
do coração
a ferver
no forno
do centro
do rosto
27
A SUL DE NENHUM NORTE
João Villalobos
João Villalobos
www.emocoesbasicas.blogspot.com
www.facebook.com/joao.villalobos
28
A SUL DE NENHUM NORTE
Acunpuntura das feras
Acupunctura das feras
1.
Temos o medo.
Ele amanhece connosco.
A vontade é não ter braços para o receber,
Antes afastar o eco de tudo o que está dentro.
Lembramos em defesa o sabor da fruta,
nesse tempo em que os morangos eram ainda pequenos
e as ameixas na árvore se dividiam em inconfundíveis cores,
duas apenas.
2.
Com memórias de amor por quem fomos
Levantamos a tarde e o corpo prossegue.
Confesso: Uma vez perdi um amigo por não saber a cor do seu nome.
Não convém atravessar a vida sem olhar
3.
Temos a esperança.
Ela dorme sem abrigo, aí onde consegue estender o coração.
Todas as noites alguém nasce
E a isso chamamos a acupunctura das feras. Ou amor.
29
A SUL DE NENHUM NORTE
Idra Novey
Idra Novey O seu primeiro livro de poemas, The Next Country recebeu o prémio Kinereth Gensler
de Alice James Books e foi incluído na lista de Melhores Livros de Poesia de 2008 daVirginia
Quarterly Review. Recebeu prémios da Poetry Society of America, National Endowment for the
Arts, Poets & Writers Magazine e do PEN Translation Fund. Traduziu dois poetas brasileiros nunca
antes vertidos para a língua inglesa, Paulo Henriques Britto comThe Clean Shirt of It (BOA Editions,
2007) e Manoel de Barros com Birds for a Demolition(Carnegie Mellon, 2010).
Novey é de momento Director of Literary Translation na School of the Arts da Universidade de
Columbia.
Meanwhile the Watermelon Seed: publicado no jornal Subtropics
The Ex-Carcel of Valparaiso: publicado no jornal A Public Space
Definition of Stranger e Two Women in a Barn: publicados no livro The Next Country, editora Alice
James Books, 2008
30
A SUL DE NENHUM NORTE
Entretanto as sementes de melancia
Entretanto as sementes de melancia
Na terca-feira, chegam novos prisioneiros.
No fim do outono, quando as folhas entopem as sarjetas e as suas
últimas cores desaparecem como estrelas, chegam novos prisioneiros.
Enquanto outro avião levanta voo e um tentilhão vermelho aterra.
Enquanto grupos de alunos avançam a tentar descobrir rebuçados azuis.
Às três da manhã, quando os cães mudam de posição na cama e perturbam os seus
donos que olham para fora e descobrem que está a nevar.
Na hora em que telefono à minha irmã e ela esvazia a máquina de lavar, novos
prisioneiros.
Na hora em que os condutores piscam os seus faróis e as flores fecham e os
pirilampos ficam presos em frascos.
Na hora em que não chamo ninguém, não leio nada, e mesmo assim a hora
desaparece.
Na cidade sufocante, onde um amigo trás uma melancia e nós cuspimos as suas
sementes para o telhado do museu que é ali ao lado e o mundo parece ter conserto e
temporariamente certo, chegam novos prisioneiros.
31
A SUL DE NENHUM NORTE
Definição de desconhecido
Definição de desconhecido
Pessoa que não é membro
de um grupo: um visitante,
convidado, ou o seios
que roça no teu braço
no metro. Pessoa
com quem não tiveste
nenhum contacto mas que tirou
a tua cadeira de baloiço
da berma
e se enrosca nela
e fecha os olhos.
Pessoa agora atrás
de ti na fila, à espera
de um copo de água,
ou de whiskey, de elixir.
Pessoa a ligar-se online
no mesmo segundo
do Home Depot em LIma.
Ou à procura do Dalai Lama.
Pessoa nem cúmplice nem parte
duma decisão, edital, et cetera,
mas que comeu
do mesmo garfo
na pizzaria
e beijou a tua irmã mais tresloucada
no fim de ano. Pessoa designada
para alimentar o tigre no zoo
onde tu uma vez
puseste a tua mão
na palma da mão
do pai de outra pessoa.
32
A SUL DE NENHUM NORTE
A ex-prisão de Valparaiso
A ex-prisão de Valparaiso
E então foi decidido
que a prisão vazia seria reaberta
para festivais —
que um pónei seria preso a uma mesa
e que as crianças pagariam por passeio
ao longo das paredes
A mesma hora, lá nas pampas, foi
encontrado um lama a trotar entre os cavalos
e um astrólogo em Santiago
viu os futuro cósmico
nas cerdas esmagadas duma escova de dentes
No mesmo minuto na prisão
um homem começou a afinar o seu violoncelo
numa das celas vazias
e alguém coxeou por ali
com timbales
e as crianças começaram a segui-lo,
crianças, alguém disse, que a seu tempo
irão construir uma prisão deles
e talvez esvazia-la
e talvez enche-la outra vez —
33
A SUL DE NENHUM NORTE
Duas mulheres num celeiro
Duas mulheres num celeiro
acontece que uma mãe se torna pergaminho
e se arrasta gradualmente à volta das ficções
dos seus filhos. Que ela se torna amêndoa
a amolecer nos bolsos das roupas de algodão.
Dorme em casa da filha com os óculos postos
e de manhã desaparece. Que ela forçou
o seu filho crescido a alimentar o seu cavalo cego, vendo-o
sacudir a cabeça no pequeno picadeiro. Acontece que uma filha
se transforma numa garrafa que se enche de rebentos
e pedaços enrugados de folhas. Que ela gosta de cintilar
na água como uma garrafa de vidro.
Tradução, Maria Sousa
34
A SUL DE NENHUM NORTE
Maria Sousa
Maria Sousa é uma lebre que é uma Alice e gosta de passar a tardes no café Santa Cruz a ler e a
escrever. Gosta de revistas e já participou em algumas (Criatura, Sítio, Umbigo, Saudade).
Escreveu “Exercícios para endurecimento de lágrimas” (Língua Morta, 2010) mas ainda chora
quando ouve a Lhasa e o Tom Waits. Não gosta de dar aulas e quando for grande quer ser livreira.
35
A SUL DE NENHUM NORTE
aqui não há ninguém
aqui não há ninguém
o quarto é um pedaço de espelho
com uma mulher a um canto
nada mais do que um reflexo
em vez de corpos, feridas
refúgios para encher vazios
para os traduzir uso o vento
saem versões confusas onde
o corpo e os cigarros a morrer
no cinzeiro
precisam de palavras novas
ela senta-se no meio do quarto
como se todas as palavras fossem
restos de vida
36
A SUL DE NENHUM NORTE
vejo-te na soleira da porta
I
vejo-te na soleira da porta
hesitas. em cena apenas estou eu
penso em mudar-me mas entre erros
e desculpas falta-me espaço
se contares histórias serão daquelas que
ninguém quer ouvir
relatos de passeios de domingo onde há sempre ruínas
sim, restaram apenas ruínas escavadas no interior dos olhos
II
entras, não tens medo
rodeado de olhares com sono que ainda não sabem
Que as palavras são sempre as mesmas
(uma espécie de cerimónia onde te repetes para evitar a morte)
mentimos os dois sobre uma história feita de fragmentos
dizes que nem sempre o guião é o mesmo
mas repetes-me o teu monólogo ao ouvido
“deixa-me sair” vou abandonar a personagem
que balança no vazio
ultima tentativa: observo-te e tu já não me vês
conheces-me tão pouco, não, isto…
isto não é um dueto, é um duelo
friamente o silêncio cai sobre nós
não há vozes nem adereços
(a cena está vazia)
há apenas uma cortina de vento onde as palavras
nunca se moldaram
37
A SUL DE NENHUM NORTE
A mulher
A mulher
organiza as sombras para evitar o escuro
é prudente na batalha com as perguntas
que pousam no dia
sorriso
quando o som do telefone invade a sombra
nenhuma palavra lhe sai da voz
deverá falar como se fossem outras coisas a
respirar em vez do grito?
à janela, o vento e o sol, limpam-lhe as vozes
sobrepostas a dizer aquilo que a voz não diz.
mas não hoje
disse que não seria capaz de mudar
perdida no quarto, onde utiliza os hábitos
como movimentos grosseiros
nenhuma palavra ali tem asas
fica apenas o silêncio onde a mulher fecha
as persianas e depois as cortinas
38
A SUL DE NENHUM NORTE
como pretexto para amputar sonos
como pretexto para amputar sonos
que venha o Outono!
encerramos a casa, é domingo, e ficamos
a ouvir os cães a ladrar ao longe
próximo do amanhecer
chama-se nuvem a uma metáfora
onde os pássaros vigiam os intervalos das árvores
será o Verão a epígrafe de dias esquecidos?
39
A SUL DE NENHUM NORTE
Pedro Jordão
Pedro Jordão escreve por acidente. Não acredita em notas biográficas, não gosta de lavar a
louça, mas é bom tipo. Também é arquitecto e programador cultural. Tem trinta e três anos, vive
em Lisboa e sabe que nunca vai ser grande.
40
A SUL DE NENHUM NORTE
Tríptico
(dos destroços imensos)
e bocas queimadas. é o que recordo
dos nossos acidentes domésticos.
para não desprender a fala do erro
íamos conjugando os verbos certos
no tempo errado e adormecíamos
com o cansaço crescendo daninho
nas bocas abertas de espanto. então
as manhãs iniciavam-se estrangeiras
e o amor inclinava-se perigosamente
sobre o parapeito da janela. o fim
era apenas um electrodoméstico
avariado: funcionaria um dia. porque
sobreviver é florir sobre a carne morta
mas exige-se ao músculo que desista.
(da divisão dos despojos)
o que não foi destruído ficou em silêncio
sobre a mesa mas reparem: só o que perece
não dói. a dificuldade é incinerar o que fica
o passado é pouco combustível mas os dedos
como os nós também se cortam. mas como
dividir o saque que é inteiro onde rasgar
em que linha imaginária se ainda hoje
todos os decretos foram decretados nulos.
(do passado incompleto)
como se me tivesses mordido a língua
para que me doesse o teu nome
e as noites apodrecidas pelo sono
não acrescentassem um dia à contagem
dos dias e se ao menos a memória
fraquejasse como a fraca carne
para que da metade em falta o corpo
não recordasse o caminho.
41
A SUL DE NENHUM NORTE
Pedro Outono
Pedro Outono Estudou Filosofia e Jornalismo na Universidade de Coimbra. Para além de
docente, exerce também a actividade de guia-intérprete de turismo. Tem publicados quatro livros,
dois de poesia e dois de contos. Mantém um blogue de temática exclusivamente literária, O Blog
do Tlönista, onde são revelados alguns dos seus textos.
42
A SUL DE NENHUM NORTE
descobri que as palavras não fazem sobreviver as sílabas
descobri que as palavras não fazem sobreviver as sílabas
por isso calamos o sono sanguinário
e revolvemos o sangue à procura da sopa de letras
numa impaciência ácida e enjoativa próxima da nevrose
a pesadelar na mão que não se estende
mas:
algures uma pedra da calçada ama-me
esperei notícias enxutas nas melenas e axilas
sem que o meu nano-exército indicasse
vestidos leves e saínhas curtas e agitadas
o regresso da enxada na matéria da entrada
foi um fiasco
quem me dera ter uma canção pop no cotovelo
para narrar os lados côncavos da alma
uma alma pop como feijão misturado no arroz
língua que não fica nos orifícios
e ganha pernas modernas a excrescer prazer
Respondo:
alguma nuvem ainda acredita em mim
[mas não vale mentir nestes jogos silenciosos]
43
A SUL DE NENHUM NORTE
logo de manhã fecho a porta do livro e vou
logo de manhã fecho a porta do livro e vou
trabalhar. sou obrigado a entrar nos andaimes
para sarar este cio do estômago
sapatos novos uma camisa possivelmente lavada
o dia inteiro com a maceta e ponteiro na mão
e a espinha vergada
o dia inteiro com o ranho por dentro
a mesma cola da moralidade ultra-cozida
a implacável deserção da gravata apresenta-me
tal qual homem do povo das cadernetas.
os pernetas
as árvores andam mais do que eu
os aselhas luminescem mais do que eu
quando volto para casa a porta já não está na página certa
é como se a perdesse irremediavelmente e nunca mais voltasse
a entrar
na pele que a leitura me dá
44
A SUL DE NENHUM NORTE
vamos pôr o avental
vamos pôr o avental
e esfregar o lar
disse ela. vamos arrumar a miséria
varrer o trabalho
manter a cara encerada
há que puxar o lustro ao orgulho
disse
e ladrilhar a liberdade
martelar a beleza das flores
arear o desejo
repintar os lençóis
e escolher paninhos e carpetes
até lavar as mãos no amor
para comer bem-estar apurado
e
tudo ficará a brilhar
como antes
com ar arrumado
disse
para se poder estar sossegado
a esperar a morte
mas
limpinhos
45
A SUL DE NENHUM NORTE
quando acordo estou melhor dos armários
quando acordo estou melhor dos armários
mas à medida que as horas se assam as gavetas
deixam de lalar
acordo com os hemisférios trocados
e a ladração dos equinócios reconduz-me ao governo dos frigoríficos
às vezes
ponho música pop nos pés para me recordar do corpo
e é nas colcheias que digo não. não. não.
com passível irresistibilidade
não. não. não. não tens navios nas artérias
não. não há comida na boca
não. não há escroto insano
descubro anúncios histerólogos simulando promessas
e os olhos derramam esta tremura dos bolsos
onde procuro esconder o quanto não existo
não. não. não
deito-me e minto
ponho os pés nos pés e digo não
ponho música pop na língua revestida de seios
ao mesmo tempo que ergo a inexistência
num papel onde não chego a escrever
46
A SUL DE NENHUM NORTE
Rui Almeida
Rui Almeida nasceu em Lisboa, em 1972. Mantém, desde 2003, o blogue Poesia distribuída na
rua. Publicou em 2009 o livro de poemas Lábio Cortado (Editora Livrododia). Tem textos seus em
várias revistas e antologias.
47
A SUL DE NENHUM NORTE
Não, voltemos atrás
Não, voltemos atrás,
Descubramos toda a violência contida
Em cada dobra de cada livro.
A paz se apascenta na demora
E rasga artifícios,
Mesmo os mais bondosos.
Sim, qualquer coisa que funcione
E que traga resultados
Palpáveis.
Um comboio ou um saca-rolhas.
Porque precisamos de ir
Para onde nos calhe destino
Ou de abrir garrafas para que o vinho
Se derrame.
Que seja útil,
Mesmo que nos faça infelizes.
Não, cair ajuda
A beijar o chão.
Por mais que grites
Cresces tão devagar
Quanto as folhas
Do mais vulgar limoeiro.
É assim a vida,
Todos acabamos por florir alguma vez.
48
A SUL DE NENHUM NORTE
Sim, por menos que isso
Deixámos fugir a felicidade,
Resta-nos respirar pausadamente
Com outros pulmões
Que não os habituais.
As nuvens sobre a cidade são de outro jeito,
Filtradas por prédios
A provocar falhas na comunicação
Não detectadas no campo.
Não com tanta frequência.
Não, não tinham vertigens nem afrontamentos,
Mas demoravam-se até chegar
Ao mais alto ponto.
Apenas para contemplar,
Diziam.
Sim, poucos deram por ele,
Quase ninguém quis saber,
Mas depois todos se alinharam
Para receber os lucros,
Indignados por terem sido,
Cada um,
O único a dar atenção desde início.
Ou quase todos,
Ainda há quem tenha vergonha.
49
A SUL DE NENHUM NORTE
Não, o que se dizia era outra coisa,
Tinha a ver com projectos a concretizar
Num futuro próximo.
Assuntos lá deles,
Mais vinte dias úteis e o caso compunha-se.
E depois se veria,
Nada que não se pudesse resolver.
Sim, por muitos e bons anos
Até que a incerteza separe
A cal da parede,
Até que comecem a arder,
Por excesso de exposição,
Os móveis que o sol visita pela janela.
A madeira é duma fragilidade
Metódica e paciente.
São de madeira os punhos
Elevados perante as seduções.
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A SUL DE NENHUM NORTE
Sonata Paliulytė
Sonata Paliulytė é poeta, tradutora e actriz. O seu primeiro livro Ps foi editado em 2005:
recebeu vários prémios literários entre eles o prémio “Young Jotvingis” para o melhor primeiro
livro de poesia. em 2009 publicou uma antologia bilingue (Inglês/Lituano) de Emily Dickinson. Está
prevista a publicação do seu segundo livro de poemas para 2011, e Still Life, Selected Poems vai
ser publicado em Inglês na Escócia. Seu trabalho está publicado nas principais revistas literárias
tanto na Lituânia como no estrangeiro. Vive em Vilnius.
51
A SUL DE NENHUM NORTE
Silêncio
Silêncio
O teu silêncio
Não disse nada,
Enquanto este momento
Se partiu sobre a minha cabeça.
Eu queria
Apenas uma palavra –
Mas não tenho nem
Uma curta oração.
Por vezes estás aqui.,
Depois és uma sombra a desaparecer
No nosso barco da vida rachado.
Do outro lado do mar —
Apenas areia e azul.
Eu aguentarei a culpa
52
A SUL DE NENHUM NORTE
Ventoso
Ventoso
Lábios e mãos gretadas.
Ponta dos dedos amareladas,
Mais escuras do que filtros de cigarro.
Pó varrido debaixo das unhas
Olhos vermelhos
como se os tivesse esfregado
a noite toda.
Que sorte não me sentir estéril!
Quão extraordinário –
o afastar da sensação de tempo
quando o corpo se torna algodão-em-rama
e o vento assobia dentro da alma.
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A SUL DE NENHUM NORTE
Meditação da batata
Meditação da batata
Agachada junto ao lixo
Descasco batatas
O ritual é simples
Aparo os grelos
Arranco só os olhos
Deito as cascas num monte
Thump…Thump
Batem as batatas na pia
Vou ralar uma grande bacia
e cozinhar panquecas de batata Eram as que mais gostavas.
Uma panqueca para a mamã
outra – para o papá,
a terceira – para a titi
para os avozinhos
idos em memórias
para a pequenita,
para mim
por todos os dias e noites
por todas as lágrimas derramadas
a serem engolidas hoje com as panquecas –
Salgadas panquecas serão.
Se alguém salga demasiado é porque ama, diz o povo,
Mas não há piedade hoje.
Apenas uma frigideira,
apenas um estoiro de óleo
bem apontado;
a cara nua
as mãos nuas
no centro do alvo,
o acinzentar das batatas cruas,
e as estranhamente cozinhadas
panquecas
ligeiramente queimadas
como tu gostavas,
ensopadas
em óleo,
ensopadas
em lembrança.
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A SUL DE NENHUM NORTE
Eternidade
Eternidade
Esperança – temperada pelo fogo —
Uma traça a voar na direcção da luz
Pousa cansada no teu ombro
E olha fixamente para a tua cara magra –
Olhos gelados como o céu,
Olhar afiado como um estilhaço
Gravado na memória,
Caí como pó na terra.
Tradução, Maria Sousa e Nuno Abrantes
55
A SUL DE NENHUM NORTE
Tatiana Pequeno
Tatiana Pequeno nasceu no Rio de Janeiro, Brasil, em 1979. Publicou, em 2010, seu primeiro
livro de poemas, réplica das urtigas. É professora de literaturas brasileira e portuguesa, tendo
defendido recentemente tese de doutoramento sobre Maria Gabriela Llansol. Ouve desde sempre
muitas canções e muitas reverberações do mundo, por isso costuma comover-se até hoje com a
longa introdução de “Cortez the killer” do Neil Young e as aparentes dissonâncias de toda uma
geração que sabia do que o Loveless, do My Bloody Valentine, tratava.
56
A SUL DE NENHUM NORTE
metal heart, outra versão
metal heart, outra versão
foi depois de muitas casas que
os dez anos ultrapassaram o
assombro e a devastação da
própria voz enrouquecida.
verdade é que sempre soube
o que uma canção leva ou
deixa e como num verso
diz-se “você será mudado”
agora é provável que reveja
o significado de todos os sonhos
que sabem mal embora a usina
de álcool tenha incendiado nalgum
dia em 1998, quando a incisão
cardíaca fez crer que fora do silêncio
também haveria abrigo.
57
A SUL DE NENHUM NORTE
carta para arcíria
carta para arcíria
não te assombram os ciprestes nem
as vestes da tarde límpida que
declinava na cidade ao inverno
dos teus queixumes, dos teus modos
de olhar o insossego ou a vista parcial
das linhas
de modo que estás detida no carbono
acendido ao coração, frasco
para paisagem ou migração do
que é dureza, acrílico, encomendas e
vozes que deixamos fixas noutras
imagens que julgamos mortas e
vão apenas ao encontro da mesma
parte nossa que mãe é e que nos
sobra enquanto falta e por isso
não te assombram os sinos e as
corolas sobre o corpo irremediável
porque danças no bosque a feitura das
redes
e hoje ainda serás recebida pelos elos
doutra margem
com cantos e esferas doces - uma ambrósia
firme para o que chegam e partem –
entre os galhos de julho, tanto de
partidas e passagens
58
A SUL DE NENHUM NORTE
litoral
litoral
Não me queixava quando me
desejavas apenas poucas horas da
antemanhã, sob escuro espesso,
olhos fechados e membros cerzidos.
Era que eu também desejava mas
que me visses em luz monocórdia,
ao olímpico gesto de tatear as tuas
costas de navio ao erro do exílio
e
se nisto eu encontrava estirpe
para os olhos ou abrigo de titânio para
o rosto
ou simplesmente um modo de te fazer
ficar por mais horas até que o pavor
me dissipasse a água e enfim fôssemos
iguais na condição da chuva e o teu
marco no meu tronco fosse algo
que nunca mais pudesses levar ou tomar
de volta.
59
A SUL DE NENHUM NORTE
réplica das esquinas
réplica das esquinas
é melhor assim é
pousar o vento não vibrar
mais um acordo sem
medula outro ponto voraz é
melhor
assim as gavetas se prendem
impedem a coluna das formigas
na glicose
um rastro de formas evoca o teu pouso
sem acordo
é melhor assim
uma saída resistente na luz dos
hipermercados, amando a ossatura
dos jovens sobre moléstia nova
pelas mãos de ervas a
terra trabalhada saúda seu
mutismo
a oceania assim
os pingos do amor em fim
melhor melhor recolher e pousar
os panos de limpeza em acordo
(rápido, a mim ilumina) as
formigas sabem se é melhor sem
gotas, enfim
o que vaza
podia, mas não é o cheiro das ervas
acontece um anel de palavras sem
paz
o mar
é melhor assim ver o corpo não é juízo
é várzea sobre charco, morses e holocausto
líquido assente
platéia
seria falso não adormecer assim
a miragem das lógicas sem
rastro, formas
mentira, nunca houve suspeita
sobre a terra
é sangue
60
A SUL DE NENHUM NORTE
de ternura
nos pingos para a fábula das urtigas
acordo entre os guindastes fortes
trégua de saída que sobe nove andares
cansa
análise de safena
desmorona os ossos, venta poeira
pousam as mágoas das gavetas
aceno enorme sobre a costura da cama
vaza vaza
estanca
aprende agora
ela é possível somente inteira
61
A SUL DE NENHUM NORTE
Tiago Gomes
Tiago Gomes nasceu em Lisboa em 1971. É poeta e, em edição de autor, editou dois livros:
Caixa Negra de Avião Desviado por Ataque Terrorista e Homem Vago em Cinzento (1995).
Seguiram-se Brincadeiras com Cianeto (Edições Mortas, 1998), Viola-me Eléctrica (Fenda, 1998) e
Antologia Auto-Ajuda (Ed. Mariposa Azual). Foi radialista na Voxx, comentador no programa de
televisão Prazer dos Diabos. É vocalista dos Campos Blue Moves, Inspectores, Agência de Viagens e
On The Road. Foi fundador da galeria ZDB. É director, produtor e editor da revista de arte Bíblia,
que dirige há 14 anos. Produz os projectos musicais Furacão Sereno, On The Road e Inspectores.
62
A SUL DE NENHUM NORTE
A cidade (não é Lisboa)
A cidade (não é Lisboa)
Grande como uma aldeia
pequena como gente que não se olha
as praças onde rimos e nos beijamos
os cafés onde conversamos.
63
A SUL DE NENHUM NORTE
Enquanto na sala ao lado fazem macumba
Enquanto na sala ao lado fazem macumba
algumas crianças vêem o Terminator
que trouxeram do vídeo clube no centro comercial
a seis blocos e meio jardim da nossa torre inviolável
ele apanha o metro para se meter no autocarro
corre para o barco atrasado
para ver o Telejornal
e apanha a camioneta para a sua torre
anda alguns quilómetros sobre escombros
pousa a mala da burocracia
e voa pela janela de vidro duplo
estatelando-se no chão
esguichando sangue como um porco.
64
A SUL DE NENHUM NORTE
Para o papel depressa
Para o papel depressa
não quero ouvir mais disparates.
65
A SUL DE NENHUM NORTE
A orquestra desafinada
A orquestra desafinada
O frio gelara até o livro
colado às suas mãos.
Ao anoitecer, o pai,
com o seu casaco almofadado de gola azul
esfregava as mãos
rindo o riso dos justos
comandando a orquestra desafinada
dos irmãos irrequietos.
66
A SUL DE NENHUM NORTE
Isto
67
A SUL DE NENHUM NORTE
Ângela M.
Ângela M., nasço e vivo no Porto, respiro estas ruas de sol que tantas vezes me surpreendem.
Acordo com pássaros de manhã, misturo números e ruas que deslizam até ao mar e sorrio muito
quando uma Mulher - Poeta como tu, Maria, me convida a escrever para uma revista assim.
68
A SUL DE NENHUM NORTE
25 Megapixels
25 Megapixels
Já verifiquei as sombras mais de muitas vezes - a luz está esquiva dentro das nuvens e digo
baixinho para a máquina fotográfica encostada à minha barriga: “Sabes, acho que hoje ninguém
subirá a encosta até aqui”. Ali ao lado, o Júlio apressa-se a alinhar as fichas vermelhas dentro da
caixa enferrujada e espreita a estrada pelo canto do olho. Não quer que os seus homens se
apercebam que está preocupado com as nuvens e inventa tarefas para os ocupar: um que abra o
motor e verifique o óleo, o outro que percorra as tábuas gastas de madeira à procura de algum
prego solto, vamos, vamos. E finge-se atento a esses movimentos, enquanto se encosta à cabeça
amarelo-muito-gasto do cavalo de boca aberta.
Há uma mulher apagada sentada num dos bancos do jardim, as pernas cruzadas e a saia
distraidamente enxovalhada debaixo da coxa direita, os dedos ansiosos num telemóvel
adormecido. Pode ser que espere alguém e que, juntos, escolham recordar esta tarde escura perto
da minha grande árvore, transformados em pixels que depois converterei em fatias de pão,
legumes e laranjas.
Desde que o carrossel está aqui, tenho vendido mais megabytes, tenho emoldurado mais sorrisos
que a seguir encaminho para moradas virtuais ou que enfio dentro de envelopes para moradas de
telhas e tijolo. Outros ainda, a pedido, são resgatados tardes depois, junto à mala do meu carro
preto.
A esta mulher de dedos inquietos já a vi uma ou duas vezes. Tem cabelos castanhos que deixa lhe
percorram a parte de trás do pescoço. Mas, nesta tarde escura, domesticou-os com desmaiados
ganchos de plástico. O Júlio continua a determinar os movimentos dos dois homens preguiçosos,
que têm a garganta seca e preferiam encostar os pés à rulote vermelha das cervejas. Anteontem,
para me distrair, estive a contar os animais do carrossel: sete cavalos amarelo-muito-gasto, cinco
girafas, cinco zebras, dez póneis brancos, todos alinhados três a três, todos de patas esticadas, as
traseiras e as dianteiras, como se num galope desenfreado, freio nos dentes e sorrisos estragados
pelo tempo.
Há anos que vivo desta árvore e habituei-me a chamar-lhe minha. Tudo começou quando
apareceu um glaciar naquela cama, lembras-te? Tu nunca gostaste do frio. E comecei - quase
como fazíamos no Verão - a subir a encosta até aqui, dia-sim, dia-não. No início trazia-te agarrada
à bainha das calças e custava-me caminhar, depois transferi-te para o bolso do lado direito e agora
não sei muito bem por onde andas, mas a minha árvore ainda gosta de te ver e sorri-te. Mesmo
quando lhe digo que não o faça.
A máquina fotográfica veio depois, para enganar o silêncio. Com ela nas mãos finjo que estou
muito ocupado, finjo que tenho um objectivo muito importante que mais ninguém conhece. Já
69
A SUL DE NENHUM NORTE
não estou sozinho, porque afinal estou à procura de uma folha verde de contornos bem definidos
e isso é mais importante do que, por exemplo, ir agora sentar-me muito depressa ao lado da
mulher de ganchos no cabelo e percorrer-lhe os contornos sinuosos.
Vou beber qualquer coisa para me distrair daqueles ganchos e aproveito para chamar o Júlio e os
outros. Quando aqui chegou pela primeira vez, munido de licenças e registos, o Júlio queria
encavalitar o carrossel mesmo em frente à minha árvore – exactamente naquele lugar onde os
casais há anos se encostam para que eu lhes enquadre os abraços e assim ganhe o meu pão. E a
minha cerveja. Insisti, recorri ao arquivo de sorrisos de papel que trago na mala do carro:
convenceu-se finalmente de que aquela é a minha árvore e lá foi plantar os cavalos trinta e alguns
metros ao lado. Depois, acendeu as luzes e carregou num botão azul escuro e encheu o jardim de
repetidos sons metálicos. Todas as tardes a mesma coisa: óleo, fichas vermelhas na caixa
enferrujada, sons metálicos. “Tu ajudas-me a mim e eu a ti.”, diz-me ele, já com os braços no
balcão da rulote. “Sabes como eles gostam de fotografias em cima dos cavalinhos. E olha que eu
podia não te deixar fotografar o meu carrossel.” Posse, pensei eu – a querermos fingir que somos
donos de árvores e de cavalos desdentados.
Desta vez não está ninguém dentro do meu bolso direito, acabei de o comprovar. Há tanto tempo
que nem sei por onde andas.
E afinal há três carros que chegam e o Júlio engole o resto da espuma, todo animado. Reconheço o
primeiro carro e lembro-me que hoje é dia 21 de Março. O dia da Irene e do Eduardo. A Irene era a
tua confidente e enchia-me de ciúmes a forma como conversavam baixinho no sofá, aos risinhos
escondidos, tu e ela. No dia em que o vento frio te levou, a Irene não disse nada quando lhe
toquei à porta, assustado: olhou-me com olhos cansados e um suspiro e agarrou ligeiramente o
meu pulso. Como se tu lhe tivesses recomendado que se assegurasse que a minha artéria
continuava a palpitar. Todas as semanas depois desse dia e durante muito tempo a Irene e o
Eduardo queriam que eu jantasse com eles – e eu jantava, sabes, só para me poder sentar naquele
mesmo sofá onde ainda te revejo, sem que ninguém reparasse. E mais tarde muito furioso comigo,
quando chegava a casa e me sentia envergonhado por cheirar a ponta dos dedos à procura do teu
cheiro.
Uma vez, depois de um almoço de sábado e sem que nada tivesse acontecido, encostavas-te ao
meu braço e eu amparava-te com muito cuidado, sem interromper uma lágrima que fosse. Sentiate nas unhas que me fincavas no cotovelo e, quando levantaste o queixo, os teus olhos
mostraram-me um hotel, mostraram-me um comboio em movimento e a minha cama vazia. Nessa
noite acordei num quarto sozinho e quando cheguei à sala a porta abriu-se e tu entravas, gelada
do frio da noite, dentro do vestido com flores.
O calmo Eduardo e a sua Irene, com filhos e filhos dos filhos, que todos os 21 de Março se
enfileiram junto à minha árvore e se tornam mais numerosos. O que, para mim, serve bem,
70
A SUL DE NENHUM NORTE
porque cada bebé novo que trazem nos braços significa mais pixels, mais envelopes convertidos
em moedas. O Eduardo tem muitos cabelos brancos, penso eu, orgulhoso dos meus cabelos ainda
todos castanhos, mas a barriga dele continua a caber dentro da camisola verde de todos os anos.
Repete a roupa e adiciona rugas. A mulher dos ganchos agitou-se levemente, quase se ia levantar,
afinal deixa-se ficar, estica a perna cruzada de cima e esconde o telefone na carteira e se eu fosse
o filho mais novo da Irene também eu agora me sentava ao seu lado no banco e escondia as mãos
dentro dos seus cabelos. Ah, como ela lhe sorri, como a Irene os vigia e me dirige um sorriso
simples de contentamento. “Gostas dela?”, pergunto-lhe, quando me aproximo. “Gosto que o
meu João goste dela, isso sim.”, responde-me a Irene, ainda hesitante entre deixar o filho
esquecer-se das mãos naqueles ganchos e trazê-lo para a fotografia de conjunto. “Vais chamá-la
para a árvore?”, insisto. “O meu filho que decida.”, desiste a Irene de se preocupar. Homem e
mulher num banco de jardim, alheios às movimentações de uma família barulhenta e alegre que,
indiferente às nuvens, não se esqueceu do 21 de Março.
A Irene já não me pergunta como estou. Habituou-se a saber-me por ali, junto à árvore e ao
temporário carrossel, habituou-se a ver-me de máquina fotográfica na mão enquanto percorro as
ruas da cidade e, como tantos, também ela acredita que estou muito ocupado e não me
interrompe quando foco uma parede com um graffiti qualquer que fala de saudade. Na minha sala
vivem rostos desconhecidos que empacoto com cuidado. Para me entreter, invento-lhes histórias:
imagino que o casal do norte descobre a calma quando ouve jazz, que o casal de olhos tristes
todas as noites escolhe um filme-pipoca e ri-se hora e meia num sofá branco, que o homem de
camisola bege de decote em V preferia estar abraçado à vigorosa vizinha de cima que lhe ocupa os
pensamentos durante o duche. Às vezes, no meu blog, escrevo pequenos textos sobre estes
sorrisos, quando não tenho mais nada para fazer e a televisão repete séries sobre hospitais e
sobre agências de publicidade dos anos sessenta.
O Júlio esfrega as mãos e não pára de sorrir, a família da Irene troca moedas por fichas vermelhas
e os dois homens apressam-se a indicar cavalos amarelos e zebras a galope aos filhos dos filhos e
às mamãs protectoras. Sons metálicos, uma e outra e outra vez. The merry go round, and round
and the merry go round. Sem se cansarem, numa repetição de árvores que voam como borrões e
de acenos àqueles que, com os pés na terra fria, os vêem rodopiar. Eu aproveito para fotografar
esses volteios. Desfoco as girafas e os póneis, transformo-os em silvos de cor e interesso-me pelas
mãos e pelos olhos que se escarrancham em cima de selas de madeira. Ajoelho-me, inclino-me,
disparo um click atrás do outro e a Irene encoraja-me a procurar-lhes as feições.
Silêncio. Já se foram, carros e ganchos desmaiados. Os dois homens descansam e o Júlio veio
quebrar a solidão com a mulher de braços largos da rulote - vão descer juntos para a cidade e
esconder-se dos curiosos dentro de um par de lençóis. Eu olho para a máquina fotográfica e desfio
imagens. Aquela onde um menino ri em cima de um pónei enquanto, lá atrás, o seu tio João,
escondido no canto superior direito da minha máquina fotográfica, acabou de tirar um gancho de
plástico de uma madeixa castanha e tem a outra mão na saia enxovalhada da mulher do banco de
71
A SUL DE NENHUM NORTE
jardim. Ela esconde a cabeça na curva do ombro dele e quase se consegue ver que está de olhos
fechados. Deve suspirar, ou então aspirar-lhe o perfume, para o guardar num lugar secreto.
As dezasseis fotografias finais exibem três filas de pessoas debaixo da minha árvore. O Eduardo de
camisola verde ao centro, a Irene que todos os anos escolhe um lugar diferente e abraça um
pequenino, orgulhosa porque os seus traços se repetem em cada vez mais rostos. Aqui descobre o
seu nariz, naquele encontra as suas despenteadas sobrancelhas, outras vezes mistura-se com o
Eduardo num maxilar sinuoso. Estas dezasseis imagens vão render-me uns quantos envelopes,
penso. A mulher dos ganchos foi timidamente incluída em cinco delas e sorri, quase orgulhosa, a
sonhar com uma nova família e as mãos cruzadas em frente à saia. São horas de regressar ao
conforto da minha sala, os cavalos desdentados já se apagaram.
Não sei que roupa escolheste naquele dia gelado. Havia dias em que te vestias só para mim.
Deixei que a Irene fosse a tua casa, semanas depois, empacotar camisolas, saias e livros, quadros e
filmes e nem olhei para os caixotes. Mas fiquei com a nossa primeira fotografia - apareces de
vestido com flores e botas pretas altas, o casaco pousado sobre os ombros naquela tua maneira
desinteressada. Esta fotografia que agora revejo. Eu estou ao teu lado esquerdo, tenho o braço
ligeiramente estendido como quem não teve tempo de te abraçar antes que o obturador se
abrisse e voltasse a fechar. Às vezes acordo muito depressa de um sono e ouço-te ao meu lado, a
revolveres os lençóis enquanto dormes - mas se estico o braço não estás. Uma noite sussurrasteme três palavras e sonhei com um rio de águas grandes dentro de uma montanha. De manhã, a
tua fotografia cheirava a neve.
Levanto os olhos deste pedaço de papel onde ainda vives e onde o meu braço não te consegue
alcançar. Do outro lado da praça acendeu-se uma janela e alguém corre a cortina, devagarinho.
Uma esguia silhueta que mal distingo e, de repente... és tu? És tu nesse vestido florido que te
inclinas à janela, quero voar para te rever, atravesso a praça numa correria, toco à campainha e
quando a porta se abre uma mulher ensonada recebe o meu entusiasmo - desculpe, naquela
janela assim, pergunto, lamento, diz a voz quase adormecida da mulher, mas a senhora do
primeiro direito acabou de sair. Parece que demorei demais. Percorro as ruas que nascem na
praça, procuro-te nas mulheres que se passeiam, nas que espreitam as montras, nas que falam
baixinho ao telemóvel e regresso a casa de mãos nos bolsos.
Nada no bolso direito.
Passo tantas noites em frente à janela, à espera de surpreender o teu vestido. Troquei todos os
meus horários: subo até à árvore a meio da tarde, cumprimento o Júlio, guardo duas ou três
fotografias de algum distraído casal e apresso-me a descer à cidade para te procurar. Todas as
noites testo a paciência em frente à janela, sem gesso numa perna (como naquele filme de que
gostavas) mas com a máquina fotográfica na mão. Pertenceria aquela silhueta na janela a uma
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A SUL DE NENHUM NORTE
outra mulher de longos cabelos castanhos e cintura fina, desanimo. Os dias enrolam-se uns nos
outros e tu continuas silenciosa. Os meus sorrisos atenuam-se e, umas semanas depois, atravesso
a praça com vontade de te encontrar mas a mulher ensonada já não te vê há mais de catorze dias.
Devagar, retomo os horários do Júlio e das girafas a galope, afasto-te dos meus pensamentos,
evito a tua janela e contorno a praça. Repete-se o mesmo sonho: entras com a neve nos lábios e
flores na saia, dizes-me três pequeninas palavras na contracapa de um livro e, pela manhã, a
fotografia mudou outra vez de lugar – estás agora junto à taça das laranjas, de sorriso trocista.
Ontem trazias os óculos escuros como se já fosse Verão.
Agosto. Agosto seco, debaixo da minha árvore, a romaria de sorrisos aumenta em Agosto o que,
para mim, serve bem, porque me distrai do teu casaco pousado nesses ombros magros que
gostava de empurrar contra o colchão. Não voltei a ver a janela da praça com a luz acesa, se calhar
decidiste trocar os meus sonhos por um lugar qualquer que não conheço, onde imagino correrá
um rio de águas fortes cheio de sol. De tanto as querer recordar, as três pequeninas palavras
escondem-se de mim dentro da parede, para que as não ouça.
Até que: uma mulher. As mesmas botas altas, pretas, o mesmo contorno de joelhos, as mãos ao
acaso que enrolam uma madeixa de cabelo – sigo-te pela cidade mas sem te querer falar, não vá
esta mulher não seres tu. E fotografo-te, sempre. E um dia escolhes uma casa e mesmo antes de
entrares os teus olhos chamam-me, aperto-te o braço, empurro-te escada acima. És tu? És tu
quem eu inclino sobre a cama e que aperto com força no nosso prazer ou já nem isso importa?
Nada me importa todos os fins de tarde em que te encontro num quarto diferente. Deixas-te
perseguir, escolhes a casa, empurro-te escada acima e tens sempre a chave de uma porta no
bolso, um quarto escuro que cheira a doce.
Voltei a sonhar contigo, sabes. Repetes-me baixinho as três pequeninas palavras, entre sorrisos e
suspiros. Voltei a pendurar-te na parede e já não te encontro junto à taça das laranjas, porque sei
agora onde estás. Anda, dizes-me ao fim da tarde, sonha comigo. Esqueço-me da minha árvore
como se fosses tu a seiva livre que me alimenta e só muito de vez em quando subo a encosta para
sorrir com o Júlio e dar-lhe pancadas de alegria nas costas. Vai sair da cidade, diz-me a piscar os
olhos pequeninos e desejo-lhe boa sorte. Os meus dias são nossos, teus e meus – em silêncios
quentes retomamos o tempo, como duas peles que mais não fazem do que reconhecer-se. Nunca
te sigo quando deixas cada um destes quartos onde passamos os fins de tarde porque a lua te
chama, mas quando chego a casa a janela do outro lado da praça acende-se para mim.
Não me apetece chegar aqui. Não quero escrever isto. O leitor que adivinhe o que aí vem.
Vá, coragem (se o leitor estivesse aqui, sentado comigo neste sofá enquanto escrevo os últimos
parágrafos deste conto, ouviria agora um patético suspiro).
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A SUL DE NENHUM NORTE
Sim – desapareceste. Decidi seguir-te, queria mais, os fins de tarde tu sabes já não me chegavam.
Ao virar a esquina olhaste para trás e viste-me, as tuas ancas estremeceram. Fiquei cinco horas na
praça à tua espera e quando a dor se transformava em vários ramos secos, toquei à porta com
raiva, empurrei a mulher adormecida para o lado e entrei no teu primeiro direito. Vazio, já não era
Agosto. Não sei quanto tempo ali fiquei, até que a Irene veio sem dizer nada: olhou-me com olhos
cansados e um suspiro e agarrou ligeiramente o meu pulso. Como se tu lhe tivesses recomendado
que se assegurasse que a minha artéria continuava a palpitar. No chão, enrolada e esquecida num
canto da tua sala esvaziada, a nossa primeira fotografia: outra vez o teu casaco pousado sobre os
ombros naquela tua maneira desinteressada. Olhei-nos – o meu braço toca-te, consegui abraçarte antes que o obturador se abrisse e se voltasse a fechar, tenho os dedos enrolados na tua cintura
e o teu sorriso é tão luminoso.
“Anda”, disse a Irene, empurrando-me escada abaixo. Cá fora cheirava a neve.
Sabes onde estou agora, paciente leitor que até aqui chegaste? Voltei à minha árvore, é dela que
vivo. Tenho enrolada na minha mão direita uma fotografia onde dança uma mulher num vestido
com flores, onde o meu braço a consegue afinal alcançar e aquecer a curva de uma anca - escolhi
um espaço neste tronco e esperava por ti, leitor, para que me visses entregar à grande árvore o
sorriso desta mulher de casaco pousado sobre os ombros naquela sua maneira desinteressada. Cá
vai. Ouviste? A árvore segredou-me que sempre a saberá guardar.
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A SUL DE NENHUM NORTE
Beatriz Hierro Lopes
Beatriz Hierro Lopes, míope, nasceu no Porto em 1985. Formada em História, actualmente
ganha a vida a contar prédios e a contar histórias do Porto a gente pequena. Nunca usou lentes de
contacto e gosta de ver as pessoas desfocadas.
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A SUL DE NENHUM NORTE
Era uma rua que vivia de carne
Era uma rua que vivia de carne. Ao longo do passeio, os contentores acotovelando-se, os
sacos amontoando-se, todos eles cheios das sobras que nem os animais queriam, um tom de
vermelho velho que desfilava desde o início até o fim da rua. O cansaço das senhoras de saltos
presos nos intervalos das pedras, sujando-se de restos mais antigos de carne seca, jogando o
equilíbrio à entrada à saída dos talhos, ou os meninos, que os havia pouco e haveria menos ainda,
de bola escorregadia, manchada, que não havia bola de trapo que absorvesse tanto sangue.
A todos os que pela rua andavam, parecia-lhes não ser rua, mas, por debaixo dela, corpo
morto deitado ao relento, mortes que se sentiam a caminhar. E eu, que era pequena, pensando o
quanto de morte se pode sentir debaixo dos sapatos, os animaizinhos que a minha mãe me
ensinou - nasceram para ser comidos, que me parecia ouvi-los, como se fosse possível ouvir
lamentos de vaca, ou de porco, chorando a morte entre as pedras.
A rua, dizia-se, - vivia de carne, por isso eram normais todos os acidentes lá pelo meio da
rua. Do pior que me lembro, foi do neto do barbeiro, da minha altura, enfezado, que era o mais
rápido e que, por isso, corria à frente da camioneta, de um lado ao outro da rua, até que lá ficou,
coitado, de corpo moído pelas rodas de trás.
Um desgosto imenso, a que se juntaram os desgostos dos animais, que a carne assim
pisada se mistura, e não se sabia bem onde começava a do menino e a dos bichos, a do menino
talvez mais viva mais aberta, e a dos talhos mais morta mais fechada, carne sobre carne que nesta
rua, hoje como ontem, é disso que se vive.
E quando os animais choravam demais, houve aquela vez em que se mandou outra
camioneta, mais velha e já sem cor, buscar o resto dos meninos, a quem raparam as cabeças para
lhes matarem os bichinhos que nelas haviam criado cidades inteiras, filhos só de mulheres, sem
pai, que eram mulheres de má sorte, e por isso sem filhos, e para que os queriam?, se nunca havia
carne na rua inteira que lhes chegasse para matar a fome? Levaram-nos.
Era quase dia quando os levaram, alguns choraram mas o choro, confundido com o choro
da rua, sufocava, porque havia lamentos que eram próprios do nevoeiro. Da janela da sala de
minha casa via-se a rua e, lá bem atrás, o rio, que era de onde nascia o frio, a névoa que cobria as
manhãs e dava alento aos lamentos das ruas. A esta, mais do que às outras, por causa das crianças
que não chegavam a ser carne de rua, só bolas presas entre contentores, bolas de trapo que a
minha mãe também lhes dava, tecidos curtos manchados de outras coisas que não sangue, borra
de café ou frituras já passadas, que se estragavam e não fazia mal que se rasgassem com a rua. Os
meninos que eram poucos, agora menos, faltando, e o que importa? Que choraram, e os lamentos
alimentando a rua, que hoje só chora à falta de quem não compre carne.
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A SUL DE NENHUM NORTE
Acontece
Acontece a miúda, saia blusa, pálida, junto ao fim de pescoço, terço de domingos ao peito,
acontece a luz que lhe adoça o rosto, a ternura que se esbate ao forçar a vista contra o sol, as
escadas do pátio mais sujo das semanas, das horas que as sobe, sobe os minutos como degraus,
passo de sabrina branca, um pouco de prata e poucos segundos, que deus é seu deus em branco
sabrina nos pés, manhãs à sombra da janela mais fria desta cidade que diz, - Acontece.
Acontece a cidade bocejar os passos das manhãs que ouço à entrada do metro, os rostos que
dormem junto às janelas, saídas de emergência sem urgência, sem tempo, que se ardem
lentamente os dias contra os avisos. Uma mudez, uma surdez tão pálida como a ausência de cor
em cada vagão, apenas interrompida pelas linhas paralelas que surgem entre as madeixas de
cabelo tingido, sons privados, olhares amuralhados contra a paisagem fugidia dos túneis, um
rumor subterrâneo de – Acontece, a solidão a que se dispõem os passageiros. Que passam no que
de baço há nas ruas que dizem, - Acontece.
Acontece o nome do rapaz, jaqueta de sarja negra, bolsos cheios, que conta o número de pedras
que fazem o espaço, as vielas mais escuras, cinco aqui, cinco além, duas pedras para a esquerda e
o ninho, o tijolo que falta na ausência de uma porta, três saquinhos de pó como deus que deus é
branco como as sabrinas nos pés da menina a quem não sabe o nome, mas que – Acontece,
acontecer nos mesmos lugares em que ele, diz a quem passa – Acontece, inclinando os ombros
como a cidade que se encolhe ao chorar a falta de sono.
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A SUL DE NENHUM NORTE
Henrique Manuel Bento Fialho
Henrique Manuel Bento Fialho nasceu torto. Nunca se há-de endireitar.
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A SUL DE NENHUM NORTE
O novo e a novidade
O novo e a novidade
Já tudo foi escrito. A gente lê um livro e não consegue distinguir os escritores dos agiotas,
saloios empertigados, artistas de variedades que se limitam a copiar, a imitar, a pantominar aquilo
que já foi escrito por outro. Uma frase arrancada daqui, um estilo sorvido dacolá. Está conquistado
o público, essa massa acéfala para quem a novidade é o melhor dos estímulos. Crápulas. E menos
crápulas não são os leitores que pactuam com este estado geral de hipocrisia. Pretenderão sentirse menos sós? Reverem-se nas palavras amestradas dos artistas de circo? Comprem espelhos.
Troquem livros por espelhos. Olhem para mim.
Pisemos os livros, pisemos os livros bem pisados. Pisemo-los como se fossem baratas,
bichos repelentes que apenas servem para serem pisados. Não hesitemos. A serra dos mortos
continua a crescer, qualquer dia atinge as nuvens e depois choverão ossos. E nós no paleio. É
preciso ser diplomático, aceitar as regras do jogo. Afinal foi para isso que inventámos a liberdade
maquilhada, essa coisa que dá pelo nome de democracia. Enchamo-la de mortos, que ainda são
poucos. Ironizemos. Os vivos têm quem os atormente, os mortos têm o esquecimento (Albino
Forjaz de Sampaio). Sejamos, pelo menos, cínicos. Apaguemo-nos nos livros. Sejamos cínicos,
sejamos cães. Só quando pelas torneiras escorrer o sangue que tinge as águas dos rios, sentiremos
o contentamento do nosso ódio. Só quando no deserto os oásis forem plantações de carne
putrefacta. O nosso adversário é a indiferença. E nós para aqui a falar...
Para quê tanta algaraviada? Porque o silêncio ainda é a maior dificuldade da solidão. Mas
reparem como estamos todos tão próximos uns dos outros nesta era pós-humana, reparem como
falamos todos uns com os outros sobre tudo e mais alguma coisa. Só não valem abraços. Isso é
gesto do amor e o amor é o maior inimigo de quem teme. Insinuemos. Dissimulemo-nos. Abramos
um livro e inspiremo-nos. Busquemos a eloquência dos génios, inventemos uma palavra,
armadilhemo-nos com neologismos ininteligíveis, metáforas vazias de sentido, analepses, elipses,
anáforas, metalinguagens. Sejamos estilo. ESTILO. Ficaremos bem na fotografia, ao lado dos
mortos fardados e dos outros, pobres coitados, tão livres no convite que aceitaram para o céu. A
insinuar somos todos heróis. A consumir imagens, imagens de balas atravessadas no silêncio dos
artigos, das colunas, das gordas e das magras, das crónicas, desses contemporâneos modos de
definir o mundo. Esta corrida seremos nós a vencê-la. Não, não e não. Os outros que sigam pelas
auto-estradas do ódio, nós iremos pelos atalhos do amor. Do amoródio.
Talvez não saibas, leitor hipócrita, que a liberdade falhou. Alguém que nos desvie dessa
falha. Nem que seja nos e pelos livros, esses objectos de uma vaidade incomensurável que é a
pretensão de sermos livres. Livres por meros instantes. Saudemos os corpos esventrados, os olhos
revirados, os crânios estilhaçados, os troncos sem braços, os braços sem dedos, os dedos sem
unhas, saudemos as cabeças sem tronco e membros, saudemos a fome, saudemos a miséria,
saudemos o ódio, mil vezes viva ao ÓDIO! Estamos vivos entre os mortos, estamos mortos entre
os vivos. Façamos do ódio uma técnica para a libertação. A coerção será a solução. Não é preciso
imaginar um mundo de soldadinhos minúsculos, o júbilo que enriquecerá as agendas dos
poderosos, críticos com coluna reservada no suplemento literário. Ele está aí, bate-nos à porta
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A SUL DE NENHUM NORTE
todos os dias. Mas nós, os vaidosos, escondemo-nos dele nas páginas de um livro, de um simples
livro que não é um livro, é um lego. Quando chegar o dia pelo qual todos esperamos, um morto
valerá apenas uma unha cortada. Em tempos julgámos ser as mãos de Deus. Agora que Deus ficou
maneta, quem seremos nós?
Proponho um exercício: se abandonássemos a preocupação com tudo o que transcende o
nosso espaço de intervenção, seríamos um corpo indiferente? Um testemunho sem voz, uma voz
sem eco? Deixemo-nos de filosofias. Pisemos as baratas antes que elas nos pisem a nós. Pisemos
os livros como quem pisa baratas.
Liquido a consciência num livro, resistirei às revoltas institucionais, serei um objector.
Chamem-me nomes. Recuso contribuir para a perpetuação deste comércio de carne humana a
retalho, para esta miséria sacramental que todos os domingos vai à missa. O resto que se dane,
inclusive os livros. Porque a minha casa está na minha cabeça, porque a minha cabeça é a minha
casa: este é o meu acto de contrição. Não tenho culpa de ter visto apagadas todas as lupanárias ao
longo do itinerário, na sua vaga luz de falsos repousos, portas encostadas à sombra dos sonhos, só
por vezes um carinho ardiloso, o preço de uma garrafa de vinho disposta sobre a mesa. Não tenho
culpa de me terem feito assim magnífico romance de soalhos sujos, desenhados pelos pés
rastejantes dos maridos, homens tão rasos quanto a precária violação dos costumes. Não tenho
culpa. Eu, como todos os outros, só tenho culpa de não ter culpa.
Sou uma coisa educada para a família. Sempre que vejo ao lado da sola do meu sapato o
salto alto do desejo, penso: detenham-me estas águas que escorrem pelos cantos da boca. Venho
à pressa para casa, penteio o hálito com detergentes apropriados, deixo cair pela testa a
obediência de todos os dias. Dizer amor não custa nada, difícil é dar espaço às palavras que
formam a frase, deixar um pouco de ar entre cada letra, respirar com agrado a rasura de um
desejo. Dizia eu: não temos culpa. A luz vermelha estava apagada, os críticos que metam na tola
os toldos das espeluncas onde surgem as palavras, os alívios. Agora regresso a casa para um sono
adiado, uma camisola puxada com os dentes para cima da cabeça, como se fosse um lençol. Fico a
olhar os livros, as paredes, a luz artificial que penetra os estores, fico a olhar a respiração da
mulher, das crianças, os objectos, o deserto que se intromete entre mim e os objectos, fico a olhar
isto tudo como uma curva de sono que não vem. Que posso eu fazer? As luzes estavam apagadas.
Agora, no meu quarto, ato os ossos, cada um dos ossos, ao silêncio das coisas adormecidas,
remexo-me freneticamente sobre a cama, ando pelos corredores exíguos da casa, adio a ficção de
quem escreve por escrever o que lhe vem à tona do álcool. Tenho um verso para te oferecer:
ressoa na combustão das horas uma sílaba de esperança. Que posso eu fazer neste quarto, que
posso eu dobrar neste quarto, que posso eu lembrar neste quarto, que posso eu neste quarto
dormir nesta cama? Pago os juros das dívidas insanáveis, meto os dedos pela carne metafísica
adentro, arranco do corpo imagens inúteis, penso nos dias que passam, nos roubos, nos achaques,
na indigência dos podres fundeados, no poder, nos títulos arrecadados nas páginas dum jornal.
Dói-me a garganta, dói-me a luz da tua garganta ressonante. Imagino-me a matar uma galinha, a
enrolar a cúrcuma à volta do pescoço, a gritar um silêncio absurdo, um silêncio que eu ouço mas
mais ninguém consegue ouvir. É este tempo que nos mata, esta dor remoída nos nós dos dedos,
este relógio deposto sobre as águas, esta metáfora. Eu estar aqui e tu aí e não podermos estar um
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A SUL DE NENHUM NORTE
com o outro. Ficarmos distantes, embora tão perto.
Como conseguirão dormir as pessoas que dormem? Como conseguem elas calar a loucura
do mundo que nos atravessa o corpo como um ruído exangue? O mundo dói-me no sangue. Como
conseguem elas desligar o cérebro e estender levemente na almofada o branco vazio das
retaguardas? Não verão a indiferença com que olham o mundo, com que o organizam nos
recalcamentos escoicinhados do esquecimento? Mesmo quando escrevem livros? Olho o quarto
novamente e sei que nada tem importância, sei que tudo se resume a estar aqui e nada poder
fazer para que o estar aqui mude, olho o quarto à minha volta e sei que a luz que entra pelas
frinchas é a obstinação que me resta, a pouca força que ainda sobrevive ao negrume dos dias
vigilantes. Sei disso, sei disso como quem sabe de uma dor. Mas é essa luz que importa não
apagar, é essa luz que importa trazer cá para dentro, é essa luz que há-de nadar na minha insónia
como agora nado eu no texto ao teu encontro. Quando essa luz se apagar, regressarei às apagadas
lupanárias do caminho e pagarei para ficar à porta a ver quem entra e quem sai. E se quem sai, ao
menos sai com um sorriso mais evidente no rosto morto com que entrou.
Porém, enquanto a noite não vem assentar sobre o meu cansaço o teu sono devido:
escrevo. Tenho inúmeras insónias na cabeça que gostava de partilhar antes de morrer, antes de
desaparecer para sempre nos corredores de uma doença que não domino, que me engole como a
água é engolida pelos ralos e o sol pelas janelas. Levanto-me do cansaço e escrevo, escrevo
palavras que me saem dos olhos, do tacto, dos meneios do corpo exausto e inchado, escrevo os
nomes das estrelas, as constelações, os nomes das flores, tudo o que não sei, não conheço, tudo o
que nunca me ensinaram, tudo aquilo para que nunca nasci, escrevo e paro nesse gesto de
escrever o pensamento arrasado de um corpo cansado. Yo te enseñaré las flores y las estrellas
(Juan Ramón Jiménez). Deixa-me ao menos ser onde escrevo.
Procuro a quietude dos dias perdidos, esta tremedeira que me chega dos acidentes, dos
crimes, das dificuldades, da indigesta consumação dos dias. Discutem-se, debatem-se, ponderamse, analisam-se causas e efeitos à consignação. Há quem se entretenha com tais discussões, mas
eu canso-me. É assim o meu diário de alfabeto intraduzível, uma crosta aberta na superfície dos
pés, um fio de medo a lembrar as embarcações arruinadas do trabalho: barcos queimados,
carroças envernizadas, tractores falidos. Este país onde vivo é já só a sombra do silêncio num
pavilhão vazio, um sono que aperta e não se instala, como um corpo em agonia, como uma casa
em agonia ou uma igreja abandonada. Bom seria que conseguíssemos implodir as sombras como
se implodem edifícios, mas tal não é possível. Deitamos abaixo os edifícios e as sombras
permanecem, teimam, ficam de pé, só elas, como um resquício da nossa incúria, do nosso
desleixo, do nosso atraso.
Ensina-nos a história que sempre chegámos atrasados à estação, que nunca lográmos o
destino certo. É essa a nossa sina mas não pode ser essa a nossa fatalidade. Talvez pensemos
demasiado na nossa tendência para pensar, sobretudo para pensar aquele que pensa. E se
voltássemos a olhar as estrelas e a inventariar os nomes das flores? Ainda há estrelas no céu
parado, ainda as nuvens não cegaram de vez a luz dos fachos imemoriais, ainda há flores pelo
caminho, ainda os terreiros não foram definitivamente atravessados pelo pó das cortinas. Que o
espectáculo continue então como uma próspera celebração da nossa ruína, da degradação própria
81
A SUL DE NENHUM NORTE
de um país que apenas sabe cumprir-se no seu incumprimento. Estamos vivos. Precisamos de ter
vaidade na nossa ruína. Estamos mais mortos que vivos. Mas vivos. Que o espectáculo avance,
mais que não seja nas mãos paradas no vácuo dos bolsos. Com a cabeça a ruir e o coração a bater
à porta da respiração.
Caldas da Rainha, 14 de Janeiro de 2008
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A SUL DE NENHUM NORTE
Joana Serrado
Joana Serrado é uma trintinha gorducha, com estrias, que lê Lamartine em jardins frequentados
por homens de gabardine. Quer escrever um poema que salve o mundo e cale o Herberto (por
esta ordem, necessariamente).
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A SUL DE NENHUM NORTE
Declaração de Imposto a Deus
Declaração de Imposto a Deus
Caríssimo/a Deus,
venho por este modo informá-lo/a, não obstante duvidar da sua existência e persistir nessa dúvida
debruçada nesses livros que em si teimam em crer e descrer concomitantemente – como disse,
existindo ou não, venho informá-lo/a que desejo ser tocada por si . Repito. Na sua existência ou
inexistência. Já não sou picuinhas.
O toque de Deus nos meus cabelos.
Bem sei que Deus não tem mãos, não tem dedos e ainda por cima, quando escreve, escreve
direito por linhas tortas, e por mais que as minhas sejam sinuosas, a sua escrita jamais será
perigosa, jamais conduzirá a acidentes e privações. Deus só poderá ser verbo, só poderá ser sopro,
Espírito.
Por conseguinte, e recorrendo à trinitária possibilidade da incarnação, venho propor a si, Deus,
que existe ou que não existe, que me toque em mim, intermediado pelo seu mais tresmalhado
carneiro.
Eu sei que a escolha não é a melhor. Aliás, até incorro na via perifrástica: no dia do Senhor, da
Casa do Senhor, recorri ao dito carneiro tresmalhado que teima em não soltar a vedação dos meus
sonhos e deixar-me cair nesse sono divino, na mão direita de Deus, entre a vigília do poema e da
visão, um amor puro e desinteressado, quietista, e por isso, mesmo, segundo a bula de Inocêncio
XI Coelestis Pastor, inquietante.
Como já deve saber, graças à sua omnisciência, que as tentativas dos meus cabelos serem tocadas,
ainda que intermediariamente, por si, foram goradas. Eu, por mim própria, pelo meu amor
próprio, alma, espírito, pernas e seios, ancas e dedos mindinhos, já realmente me houvera
contentado (ou habituado) a não ser tocada por si, e jamais eu própria, o meu amor próprio, a
minha alma, espírito, pernas, seios ancas e dedos mindinhos permitiria tal contestação.
No entanto, os meus cabelos – outorgantes destas tristes e infiéis cruzadas – persistem em
reclamar: que nós (cabelos meus) sejam tocados por si, por intermédio dele, o carneiro
tresmalhado.
Que se ratifique que: não sou eu, são os meus cabelos.
Confesso até que toda a minha una, dúbia, trina pessoa – excepto os meus cabelos – começa a
ficar ligeiramente indisposta
1) quer com a ausência divina (intermediada)
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A SUL DE NENHUM NORTE
2) quer com o presença do desejo.
A declarante chegou, ao extremo de, no dia de Senhor, 6 de Setembro, dia dos cabeleireiros e do
Profeta Zacarias, cortar os seus próprios cabelos, pintar os olhos de ferrugem e pedir ao resto do
mundo que a tocassem. E eles disseram: "E “olharão para mim, a quem trespassaram.” (Za12,10).
Ninguém a tocou, e se a tocaram não foi nos poucos cabelos que nela restaram.
Pelo acima referenciado, e com isto termino a minha demanda, oh-Deus-que-poderás-até-nemexistir: toca-me nos cabelos!
Se é aquele o intermediário, ele que se apresse a chegar aos meus cabelos, ou então Deus que não
existes mas tudo podes, manda-me outro, um carneiro sem dedos, sem medos, um viaduto aberto
onde a estrada começa, sem circulares internas ou vias derramadas. Manda-me um viático para
largar os meus cabelos.
Eu, exceptuando os meus cabelos, desejo imperiosamente largar a minha língua, a que Deus me
deu, para a outra, a que ganhei ao mar, e escrever coisas impossíveis. Em vez disso, aqui estou,
com a minha língua de fora, a proferir palavras que não entendo, enquanto os segredos dos
diques rebentam na minha língua cortada pelo fio dos cabelos.
Aguardando atenciosamente a sua resposta, defiro-me com as maiores saudações, saudades e
salvações – para si e para toda a sua criação.
A sua infiel,
Joana.
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A SUL DE NENHUM NORTE
Jorge Fallorca
Jorge Fallorca (Mortágua 15/6/49), poeta e tradutor, com a viragem do século – que se
antecipou a lavrar-lhe o corpo, Água Tatuada (& etc., 1999, esg.) – entregou-se à irremediável
vagabundagem, denunciada pelas esclarecidas mentes que julgaram vislumbrá-la em Imitação da
Morte dos Outros (& etc., 1976, esg.) e A Luva In Love (Assírio e Alvim, 1977, esg.).
Tão avesso às opiniões descartáveis como à vida requentada, não resistiu à tentação de opinar
sobre as artes em jornais defuntos; nem de se decantar em estações de rádio, onde cultivou uma
surdez galopante que o remeteu para o sussurrar das vagas e das alfarrobeiras.
Reeditados os títulos esgotados – Fruta da Época (frenesi, 2001) –, foi-lhe dada a oportunidade de
se distanciar de tudo e de todos: A Cicatriz do Ar (Black Sun, 2001; edição única do autor, 2009),
Entre Chipiona e Tarifa (Teorema, 2002), Al-Khaïma (Teorema, 2004), Longe do Mundo (frenesi,
2004), Blues Para Uma Puta Velha (& etc., 2010), O Livro do Fim (Deriva, 2011) e Nem sempre a
lápis (tea for one, 2011). Viveu sete anos no Al-Gharb e tornou-se visível por algures em 2008;
redige o blog http://nemsemprealapis.blogspot.com/
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A SUL DE NENHUM NORTE
O passeante
O passeante
1
Aqui há uns anos – mas mesmo muitos anos – comprei um coreto de barro à beira da
estrada, pouco antes de começar a subir o curso do rio Minho; talvez em Vila Praia de Âncora, o
nome bonito é. Ia para uma Bienal de Arte de Vila Nova de Cerveira, e, se não me engano, terá
sido quando me pediram para ir à Gulbenkian buscar um Viera da Silva, à última da hora, como
quem diz «Agasalha-te bem, olha que o tempo está a mudar». O Google confirma-me que foi em
1982, edição em que Vieira da Silva foi o artista homenageado. Tive, nessa altura sabia que tinha,
a sorte de haver um carpinteiro para desenrascar um caixote, uma espécie de bandeja
aparafusada a umas barras no tejadilho da 4L, envolta com os favos de um pára-quedas para
Maria Helena não se constipar ao relento, até chegarmos ao «verde Minho» (Recordações da Casa
Amarela, João César Monteiro). Não digo que «a história dava um romance» e, embora o
reconheça, muito menos consentiria que a abandalhassem porque «dava um filme»; mais de dez
horas de road-movie a planar pela Nacional, à estonteante velocidade de sessenta ou oitenta
quilómetros à hora, quando o vento deixava e enquanto as cordas de nylon aguentavam.
É apenas uma história e as histórias são boas contadas.
Convivi três dezenas de anos com esse coreto, até o «não ter» e me debater com
incapacidade descritiva que ultrapasse os bonecos de Estremoz; qualquer banda estática e
emudecida pelas mãos que a fixaram no barro, depois pintado, garrido e gaiteiro, com as cores de
uma Sociedade Filarmónica Anónima, igual a tantas silenciadas pelo plástico; politicamente
inquebrável e aconselhável, a maiores de todas as idades. Há dias, durante a ronda pelos blogues
para aquecer e começar o dia, fui ter à «imobiliária» de Pedro Viera e deparei-me com um coreto
igual ao que tive. Copiei a foto, ampliei-a à medida da incompetência e preguiça com que lido com
essas ferramentas, só para voltar a ver o coreto ao ar livre, pintado de amarelo e sem porta de
entrada no palco hexagonal com arcadas, onde me escondo a brincar com a memória, digamos
assim. Com a naturalidade com que estacionei a 4L, para confirmar se o quadro de Vieira da Silva
continuava intacto e Maria Helena não queria aproveitar a oportunidade para tomar o pequenoalmoço numas bombas de gasolina, fechava negócio e tornava-me manager de uma banda de
música pronta a actuar num coreto com pés-de-barro.
Voltei de Porto Covo com um minúsculo coreto vazio, também hexagonal, mas protegido
por uma cúpula pintada de vermelho, falsamente caiado de azul e branco. Tantas vezes o cântaro
vai à fonte, que um dia haveria de alimentar uma história; nunca escrita pela minha máquina de
escrever, como se fosse um filme e, ainda menos, um «romance».
Gosto dos dias devagar; «Quando escreve, descalça-se à entrada do poema.» (Sebastião
Alba, lido por Miguel Manso).
87
A SUL DE NENHUM NORTE
2
Fui a Lisboa com uma moca monumental, defendido com a instamatic para comprovar que
tinha visto uma certa árvore no Jardim das Amoreiras.
Desci a rua com a memória mais viva e mais consciente da coabitação perfeita de dois
«tempos», lamentando, quando estava quase a passar o Aqueduto, não reparar se ainda existem
as placas com os números das linhas. O autocarro era o 15, o eléctrico creio que era o 24 e
deixava-me no Largo da Misericórdia, à mercê dela; e que ela seja ampla mas pouco larga, de
preferência. E lembrei-me da Mãe-d’Água, a rua ao cimo da Praça da Alegria, onde fui desmamado
pelo & etc., e o claustro onde a água é venerada, quando entrei no jardim seguindo as mesmas
pisadas que me fizeram passar pela árvore de costas.
Ainda vi duas pitas a «dar ao telelé» e assustei-me, quando o cachorro saltou para dentro
da vedação do canteiro e ficou pendurado pela trela, até elas notarem a «interferência na linha»;
safadas das miúdas, com as hormonas reféns das operadoras.
Aproximei-me da árvore, a tentar reconhecê-la pelas costas que não fixei, contornando-a
de instamatic em riste para perder a mania de duvidar de mim, do que vejo e imagino. Baixei-a.
Em sentido contrário, com um tom de voz de quem cria e amamenta «problemas», aproximavamse umas três ou quatro gajas tão feias, tão feias, que se visse coisa mais feia do que elas atiravalhe com uma pedra; só podia ser bicho. Conseguiam ser mais feias e mais estranhas do que as que
«metem medo ao susto». Uma parecia que tinha o queixo torto e era zarolha, ou tinha olho de
robalo; dourada não era. Depois tive pena de não as ter «apanhado»; exemplares fugidos do
Museu de Antropologia. Qual não é o meu espanto, enquanto esperava que desatravancassem a
objectiva, ouvi isto que até tenho pena de já não andar com o Sanyo cassette tape recorder M
1001: «Ele não gosta de fotografar mulheres, gosta mais de tirar fotografias às árvores.» Acho que
disse, rebaixei-me como se falássemos de igual para igual: «Há árvores que merecem muito mais
uma fotografia do que muntas mulheres». Com «muntas» e tudo. Tirei a fotografia e pus-me a
andar a olhar em frente, à rasca com a possibilidade de se «travar diálogo»; às vezes, começa-se
assim.
Puta que as pariu, conhecemo-nos lá de algum lado? Se fossem normais, ou faziam de
conta que não era nada com elas, «Nem sou de cá…»; ou então sorriam e apressavam o passo, «Eu
espero. Não tenham pressa», sorria-lhes eu.
3
A camisa está debotada, a utilização intensiva – Pudera, é confortável! – tem mais
presença entre os ombros e o meio das costas; é um meticuloso ensaio de cor. Não creio que a
tenha cansado à pesca, horas a fio à maré, empoleirada nas falésias a servir cigarros e isco dos
bolsos que me servem de alforges; para o tabaco e o Olympia, não vá morder algum texto onde e
quando menos o espero. Em Porto Covo o Sol nasce a pique, é atlântico, não faz de conta que o
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A SUL DE NENHUM NORTE
mar é mediterrâneo e as éguas amamentam potros à beira da estrada; podia estar em Bolonia. A
cor foi comida debruçada a regar tomate e pimento, a apanhar melões e meloas, a depenar galos
vadios e a amanhar moreias, insisto à medida que a decanto sentado no terraço do Clube de
Carnaxide – Cultura e Desportos, rentabilizado o espaço ao lado com a privacidade «Abre-te,
Sésamo!» do comando electrónico.
É a segunda vez que me sento neste terraço, praticamente em frente de casa, bastando-me
assomar à varanda para medir o ambiente, satisfeito por ver o chaço borlista estacionado ao lado
e o cartão que lhe protege o tablier do Sol, a fazer publicidade gratuita e caricata ao Zoo Marine.
Bastou-me atravessar o Sado para voltar a ver golfinhos; não me pareceu que fossem amestrados,
não ouvi nenhuma sineta. Enquanto aqui residi, com a alma envenenada pela incapacidade de
abandonar a comodidade onde esticava as pernas, recordo que me entretinha à varanda a
especular a palavra «cultura», emanada por um equipamento de onde só via sair judocas
acompanhados pelas mamãs. Outros haveria, mas eram estes os que davam mais nas vistas; uns,
todos empertigados a entrar para o popó e outros, receio bem, indignados com a pública
humilhação materna; histérica.
Anoto isto ao sabor dos hálitos compatíveis com os temas que me rodeiam. Sou o
estranho, o que entra e cumprimenta «Boa-noite, vizinho!», como se julgasse que está «no café ao
lado da Câmara», no Pampilho, no Marítimo, no Marquês de Porto Covo. Imagino-me sentado em
cima da palavra «cultura», que deixei de ler, a olhar para a varanda acesa, onde o computador
continua ligado, ávido por concertar este material escrito no Olympia com a caran d’ache.
Apesar das mais diversificadas e insuspeitas frentes de ataque, o que me continua a animar
consiste, fundamentalmente, em saber «que era uma alma perturbada e que chumbara no exame
de aptidão a este mundo, mas também sabia que havia muita coisa boa enterrada naqueles
cadernos – e, nesse particular, pelo menos tinha todas as razões para andar de cabeça bem
erguida.» (Paul Auster)
Apanhei pontas de alfazema e rosmaninho; soube-me bem, só tinha dado por elas no
domingo. Estão ali seguras com um clipe a refrescar o Buda; a protegê-lo das insolações, sem
recorrer à publicidade, nem passar cartão se os acusarem de «deixar nódoa» na mesa de trabalho.
4
Que bom reencontrar Tautologias do poeta Raul de Carvalho. É um pequeno livro editado
pelo Autor e «composto na Tipografia Ideal, nos meses de Outubro e Novembro de 1968, numa
tiragem de 513 exemplares, sendo 113 fora do mercado.» Os números são expressivos; falam por
si, continuam fiéis à época. Dez anos depois, ofereceu-me um deles nos estúdios de São Marçal,
delicadamente autografado «pelo interesse manifestado pela minha poesia», no dia trinta de
Março, durante uma tarde a conversar de microfone aberto – o meu cinéma-vérité «radiofónico»
– que não terá encontrado o interesse histórico com que identifiquei essas bobinas; RM’s, registo
magnético, na linguagem do éter, frequentemente etilizado. Aconteceu com Ernesto de Sousa,
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A SUL DE NENHUM NORTE
soube-o quando encaminhei os organizadores de uma homenagem retrospectiva na Gulbenkian a
consultarem o silêncio do Arquivo Histórico da RDP; terá acontecido com as performers Ulrich
Rosenbach e Gina Pane; terá acontecido com as horas de «conversa fiada» com Wolf Vostell, no
sentido da generosidade com que esses artistas, a propensão arroladora excede-me, se
ofereceram, de viva voz, a um fascinado funcionário da voz do poder, ávido por saber e guardar o
que lhe contaram para «memória futura».
Tudo leva a crer que a memória é o que menos futuro terá neste país; a braços com um
presente virtual.
Tautologias era, e continua a ser, um livro que me é ternamente próximo. Conhecemo-nos
uns anos antes, em Évora; privei uns anos depois com o autor, sobretudo a partir de uma
exposição na Galeria da Junta de Turismo do Estoril, dirigida pelo olhar elegante e determinado do
pintor Cruzeiro Seixas; ofereceu também, a quem quis, a possibilidade de descobrir a estranheza
da alegria, e não só a gestual, da pintura praticada por Eurico Gonçalves. Refiro-as, não porque
tenha esquecido ou segregue outras, mas por serem as de que guardo a mais grata e privilegiada
memória. Abro o livro na página da dedicatória para me recordar dos desenhos a caneta?, a tintada-china?, feitos com uma vulgar bic?, que ofereceu enternecido ao meu filho, com menos de dois
anos, durante uma visita que se prolongou num jantar no seu pequeno mundo na rua da Ilha
Terceira, se não estou em erro; ficava num bairro onde as ruas formam um arquipélago. Recordo
apenas a filigrana caligráfica de um funcionário público, caricaturado como poeta-chapéu pelos
que lhe ostracizaram a delicadeza e a liberdade de homem só, dotado de uma sensibilidade onde
nos perdíamos na imensidão minimalista dos campos do Alvito; os campos «do baixo».
«Assim se cumprirá o que, segundo o velho, fora dito: / Que, na soleira da porta, com a
pedra amolgada / pelos sinais dos pés dos jovens seus amigos: / O velho me surpreenda,
sorridente, / a analisar os traços do seu rosto.» (Raul de Carvalho)
5
«Os meus livros também são cofres, gavetas, onde guardo os objectos mais
desconcertantes para viajar pela leitura.» Escrevi há uns meses atrás, longe de imaginar que, de
certo modo, repetia uma atitude de O Senhor Valéry, «Para além de ler o livro, utilizava-o como
carteira, para guardar as notas.» Consegui desbloquear, creio poder ser considerado um leitor
normal; leio Gonçalo M. Tavares. Antes de ir ver o «Chiado literário que jamais arderá», passei
pelas brasas e os olhos pel’O Senhor Calvino. Comunicámos pouco; possivelmente, ele ainda
ocupado «a apertar bem os atacadores dos sapatos», eu a digerir uma língua estufada com puré,
de dar estalinhos com a dita. Folheei O Senhor Valéry, não sou dos que lambem o dedo para voltar
as páginas, só o tempo de tomar um duche e ir ver a maqueta da urbanização, como quem vai ver
o «Portugal dos Pequenitos». O final da tarde estava cheio de trânsito e foi um gozo perder-me
pelo Monsanto, sem polidoras de valeta nem esquilos à vista, enquanto seguia pelo acesso
desactualizado da minha memória suburbana. Deambulei pelos bairros e pátios mais alfacinhas da
90
A SUL DE NENHUM NORTE
Ajuda, sem lha solicitar, adiando a visita à Fonte dos Passarinhos para saborear como vamos de
chilreio; esse Calvário. Estacionei o veículo à bruta, quando vi a coisa complicada com o
estacionamento de uma bomba donde deflagrou «alguém» recebido com o trânsito cortado. A
tunisina vestida aconselhou-me a mudar de passeio, como mudara ao fechar a porta e me deparei
com os «robots celibatários» de Leonel Moura; ainda não associara a manufactura robotizada à
LxFactory, para mim tem sido mais música para ler com os olhos, devagar. Percorri o bairro
censurando-me por não ter levado a instamatic; admiti que não fosse permitido tirar fotos à civil,
só à Imprensa, e detesto dialogar com seguranças que «me chamem à atenção». Percorri o bairro,
cercado do que imagino como representação da «toute Lisbonne»; é a minha costela Crumb. Não
vi, não reconheci, escritores entre a audiência; julgo ter compreendido por que Gonçalo teve de os
inventar; vi sobrinhas, tias e finalistas estucadas com botox, possíveis locatárias dos condomínios
donde serão despejados o senhor Valéry, o senhor Henri, o senhor Juarroz, o senhor Brecht, o
senhor Kraus, o senhor Calvino, o senhor Walser, sem o senhor Swendenborg ter tido tempo para
se entregar às «investigações geométricas». Quando bebia absinto, em Coimbra, não me lembro
se alguma vez tive o cuidado de «nunca misturar o absinto com a realidade para não piorar a
qualidade do absinto»; sinto muito, senhor Henri.
6
Conheço aquele sapateiro, que também vende calçado barato, rural, desde sempre.
«Desde sempre» são mais anos do que me lembro, e a última aquisição que recordo foram uns
mocassins, no verdadeiro e artesanal significado da palavra, que gastei sem conseguir fugir da
reserva; morreram a mais de duas décadas da praia. A sapataria fica na rua que vai dar ao
Mercado de Algés, paralela à avenida dos Combatentes, que vem por ali abaixo até chegar à
esquina, onde somos interpelados pelos toldos da Sé da Guarda e d’O Carvoeiro; tascas que
excedem as expectativas dos nomes. No sábado, fechei-me em copas e perdi-me de amores por
uns sapatos de carneira, com um corte mais fino do que os das garraiadas, a pele curtida por anos
de exposição à indiferença atrás da porta gradeada, quando aberta, carentes de uma atenção
ensebada. Não ficam a dever nada ao calçado de Almonte, sem etiqueta que identifique a origem
rociera nem outra cor além da natural. Lembro-me do estabelecimento sempre ocupado por
coscuvilheiras sovinas, entretanto cevadas e com o luto apoiado na bengala. Só a mais ladina se
mantém de atalaia num canto junto à escada. Ainda não os tinha calçado e já ela avisava a que me
atendeu, «Vê lá se o senhor tem trocado», não fosse eu dar uma nota gorda para pagar sete euros
e meio e travar conhecimento com a gaveta do dinheiro. Fui direito ao assunto, retirando os
sapatinhos detrás da porta, enquanto esperava que se decidissem a terminar a tarde passada com
a vizinha por causa de uma carteira, creio. A visita íntima, não me lembro dela no negócio e a casa
é pequena, convidou-me a sentar num banco corrido e polido pela concorrência – a chamar-se
mocho só poderia ser casal e de idade –, onde confirmei que me ficavam um encanto, segundo a
opinião generalizada; mas apertados um número abaixo, pelo menos. Pares únicos, com o futuro
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A SUL DE NENHUM NORTE
encolhido. Num espelho de lado do balcão, à altura dos joelhos, esforcei-me por ver a
naturalidade do cair da calça de bombazina a condizer com aquele suplício, fazendo-as esperar
mais tempo do que demorei a calçá-lo: Se forem à forma talvez alarguem um bocado, ofereci-lhes
a oportunidade de garantirem, em coro, que o calçado dá sempre de si, quem os poderia alargar
também já morreu, coitado. «Como os nossos queridos», demorou tempo demais a concluir como
chamar-lhes a que estava ao meu lado. Os nossos bêbados, pensei eu, a descalçar os sapatos de
defunto, amortalhados num vulgar saco de plástico, pagos com trocos retirados às escondidas de
uma bolsa de prata, para não verem onde guardo as moedas. Não sei se alguma vez os conseguirei
usar, desconheço se os pés também mirram com a idade, mas apraz-me a ideia de calçá-los nem
que seja para a fotografia, sentado com a perna cruzada e a pensar como a merda dos sapatos me
apertam. A faca não, mas a voz consegue cortar o ar.
7
Ainda há uma semana estava tão desgostoso por ter lido Bibliotecas Cheias de Fantasmas,
em duas brevíssimas noites; incomodei dois livreiros à procura de A Casa de Papel e a menina
(simpática e diligente) do Apoio ao Cliente da ASA, como se andasse à procura da Lua, de uma
primeira impressão de Os Lusíadas. Afinal, o livro foi reeditado quatro anos depois, em Maio – não
travámos conhecimento na Feira, porque Bonnet ainda não era visível para nos apresentar –, com
a mesma paginação de GSamagaio da edição de Fevereiro de 2006, mas capa de José Manuel Reis,
francamente mais em conformidade e bonita do que a da edição inicial; mesmo só vista na Net. Na
quinta-feira, quis a fortuna que a planeada ida aos livros a Lisboa, tenha sido interceptada pelo email da Teorema a avisar o lançamento de Um Pai de Filme, fazendo com que duas, numa só,
eliminassem a estucha da repetição. Apeei-me nas Amoreiras, desci a rua e atravessei o jardim a
fumar um charro oportunamente enrolado em casa; observei dois veículos (um Lada Niva bordéus
e um Honda Civic branco, de 92) e senti-me tentado a deixar um bilhete no pára-brisas, onde
apelaria «Caso esteja interessado em vender, agradeço que tenha em consideração os meus
sessenta anos (telemóvel); referências na livraria que abriu ao lado». E nela voltei a entrar, desta
vez em tarde soalheira que me permitiu verificar que a denominação Dona Rústica tinha sido
actualizada pela omissão, e a Trama, onde entrei, não era a que se anuncia mais abaixo. Fui
recebido pelo Ricardo e o Tiago Sousa, ainda a desencaixotar; a música passou a CD. Será que
ainda não tiveram tempo ou ainda ninguém lhes ensinou e não sabem, que um chão de tijoleira
daqueles precisa de uma boa esfrega semanal de piassaba com sabão amarelo e lixívia? Lindo de
se morrer, quando tiver sofá; porque tinham, afinal tinham a resposta que duas semanas antes
não me deram: Pergunta Ao Pó. Encaixei a questão dentro do envelope deixado pelo Paulo da
Costa Domingos, apontei para o Príncipe Real sem ligar peva ao assédio do Café Orpheu e desci a
rua do Século. Fiquei francamente surpreendido com a manifestação da crise na galeria de arte
homónima, embora mais nova – Mas o que é que te deu, Carlos Barroco? Pague 1 e leve 2? –,
pensava, a encaminhar-me para a Letra Livre, onde tinha encontrou marcado com Matsuo Bashô,
92
A SUL DE NENHUM NORTE
há uns meses. Seguindo O Caminho Estreito Para o Longínquo Norte, cruzei-me com o Paulo em
andamento no Camões, onde fiz de conta que almoçava um café e uma empada, de galinha? Sim,
confirmei à carinha larocas morenita que teve a gentileza de me ajudar a montar banca, sem
entornar café nas calças nem nos livros que marcavam a mesa. Recuperado da estreita e ofegante
etapa – a subida da calçada do Combro, feito em escombros –, tomei a liberdade de me
electrocutar um pouco na fnac, depois de acenar ao Aníbal Fernandes, ocupado, e desci as escadas
só para confirmar se o pressentimento batia certo: percorri a letra W nas estantes, dirigi-me à
pequena exausta, apresentada como «a minha colega dos livros», perguntei o que havia de Robert
Walser, perguntou-me se em Português ou em Alemão, em português podia mandar vir. Ou terei
sido eu que ouvi assim, sem o dizer? Não sei, sei que subi a sete pés o cheiro nauseabundo dos
sanitários para onde descia, incauto. Regressei à superfície e entrei ao lado da memória do Café
Gelo e calcei uns sapatos, só para experimentar e ver ao espelho com o par do outro na mão; dei
por mim na linha amarela, com destino ao Campo Pequeno e os sapatos de origem. Não me
surpreendeu ter feito o percurso sempre acompanhado por uma adolescente com umas calças de
montar e botas com atacadores até ao joelho, que nunca viram sebo nem esporas, mas
perfeitamente segura da elegante atitude feminina que proporcionava a quem a soubesse
interpretar (neste caso, eu), por isso não terá utilizado o tapete rolante no Marquês, optando por
se deslocar com passo de quem também nunca montou um cavalo. Mas isto, se não foi
exactamente agora, terei pensado quando me aproximava da Pó dos Livros, acabando por voltar a
entrar numa réplica da loja de calçado na Baixa, como se adiasse a surpresa de qual das edições
me esperava. Passei pelo stand da Aston-Martin e devorei a hora de vantagem sobre a
apresentação na Buchholz, sentado numa esplanada de sentido único na António Augusto de
Aguiar, a sorrir e a ver os livros e a capa do DVD de Paul Bowles que tinha emprestado ao Paulo.
Depois, ia-me dando uma coisa; Antonio Skármeta pegou no meu exemplar, dobrou-o como se
fosse uma revista (das merdosas), nenhum de nós tinha caneta e receei ser mal interpretado se
lhe oferecesse o meu lápis, Carlos Veiga Ferreira, o Senhor Teorema, emprestou-lhe uma que
entrou de serviço ainda antes da apresentação; tive oportunidade de verificar quando vim à rua
fumar um cigarro e aproveitei para pagar A Biblioteca (Zoran Zivkovic). Depois, cruzei-me com
magotes de gente a entrar de fim-de-semana; a caminho da naite. Apanhei o autocarro semivazio, meti a chave à porta da casa de papel e acabei o livro com a vaga sensação de ter ficado
com os dedos sujos de cimento. Hoje, como passei o dia a pensar e não a procurar, onde tenho A
Linha de Sombra (Joseph Conrad), o melhor é voltar a ler o livro para não encher a minha
biblioteca com mais fantasmas.
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Estás porreiro? Depois manda um e-mail, para reenviar o Toscana. Mudei de computador,
não sei onde param as direcções. Abraço.
«Camarada, estou em Cuernavaca numa reunião lowryana, ou seja, sou o único sóbrio.
Regresso à oficina na quarta. Grande abraço. Marcelo Teixeira.»
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A SUL DE NENHUM NORTE
Kenneth Traynor
Kenneth Traynor é escritor e faz fotografia analógica que vive em São Francisco. É o editor da
Cold Green Tea Press (www.coldgreenteapress.blogspot.com), uma editora “faça-você-mesmo”
que publica plaquetes de escrita inovadora, tradução e artes visuais.
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A SUL DE NENHUM NORTE
Sete filmes de sonho
Sete filmes de sonho
1.
Estou no quintal da minha infância. O resto do mundo, fora do relvado, são casas com “ocupas”
comprimidas umas contra as outras, apartamentos cinzentos ao estilo soviético, e altos, vastos
bunkers com pequenas janelas.
Olho para o interior de uma caixa com brinquedos velhos, tudo me é estranho menos uma
lâmpada soldada a uma pilha de 12 V.
Ao longe um flash amarelo-alaranjado, dolorosamente brilhante mas sem origem, e um ruído
impossível que sinto em vez de ouvir.
Mergulho na relva quando todas as janelas da cidade explodem na mesma direcção.
Os vidros partidos cortam o ar como uma cascata que corre de lado.
Um baloiço enferrujado cai em câmara lenta.
2.
Edifícios interligados, vazios, com escadas inundadas, água venenosa, manchas de bolor nas
paredes pardas, nenhum som.
Sombras de pássaros rodopiantes reflectidas na água dum pátio inundado, rodopiam como tinta
numa banheira.
Um rapaz nada na água. É aleijado, e o homem barbudo perto é o seu tutor. O rapaz não tem cara.
Em vez de cara, há um doloroso, corte esbranquiçado brilhante e oco com linhas azuis; a sua
silhueta um halo negro que suga a luz de tudo o que o rodeia.
Perto, a falsa pele de várias caras penduradas em pregos alinhados na parede duma cave.
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A SUL DE NENHUM NORTE
3.
Uma mulher que é também uma adolescente corta o seu próprio cabelo de forma desajeitada com
uma tesoura enorme, num espelho de casa de banho que é também uma casa de dois andares
numa noite de verão, e a janela quadrada do sótão iluminada, e música punk à distância tocada
num gira-discos.
Sou agora eu próprio e também o adolescente que se senta no alto dos ramos duma árvore sem
folhas, à espera que ela venha à janela e me chame, para me mostrar o seu cabelo. A lua
aproxima-se, com o dobro do tamanho.
4.
Os entusiastas Naguib Mahfouz e Mahmoud Darwish – magros, esfomeados, fumam, bebem café –
discutindo e rindo juntos em longas mesas sobre as suas traduções num lugar que é ao mesmo
tempo o Que Tal Café, Grand Central Station e Montgomery Street em São Francisco. Fumam
cigarros feitos de madeira escura, macia, que sabem a canela e alfarroba.
Numa perpétua luz pré-aurora, um pequeno grupo de jovens cansados – estudantes que vestem
casacos de tamanho errado sentados de pernas cruzadas no passeio – esforçam-se por escrever a
cadeia de palavras em rápidos flashes no antigo ecrã da bolsa; as suas mãos em luvas sem dedos,
preenchem e riscam expressões com cotos de lápis em finos restos de cartão.
5.
Coelhos brancos miniatura, que vivem dentro da minha almofada, ronronando como gatos. A
almofada rasgada numa ponta, e o interior tão vasto como um hangar de aviões.
6.
Um encontro com um velho amigo que ronda uma casa fechada, silhueta projectada contra uma
ausência de céu, um enorme espantalho dobrado com uma boca e pele com feridas púrpuras;
artrítico e curvado, paralisado pelos seus ossos.
7.
Velhos brinquedos amontoados, ressuscitados sem memórias, libertados em breves, amargas
vidas.
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A SUL DE NENHUM NORTE
Postal
Postal
A minha pesquisa são as tardes estéreis dos verões da infância, as capas dos livros
de cowboys, os céus azuis do esquecimento.
Eu como com palavras partidas, expressões ausentes, dicionários desfigurados.
As sombras são pedra. A luz é pedra. Tornamo-nos no que tocamos.
Desintegro-me de dentro, como areia através de um funil. Sem dor.
Fumar nunca me seduziu. Não tem magia. Quando tomo veneno, continua veneno.
Os sentimentos são formigas que andam para a frente e para trás, levando pedaços de mim a
uma rainha negligente.
Ser o fantasma de outra pessoa.
Inspirar sol, expirar fuligem.
um altar para o que não fiz.
Tradução, Maria Sousa e Nuno Abrantes
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A SUL DE NENHUM NORTE
Pedro Santo Tirso
Pedro Santo Tirso, tem 33 anos, idade de Cristo, é lisboeta, gosta do seu nome, que sempre
considerou uma boa combinação de sagrado e profano. Talvez por isso tenha dado em professor.
Tem mulher e filho que ama. Gosta de beber vinho e de ler.
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A SUL DE NENHUM NORTE
Teoria e Jogo do Fado
Teoria e Jogo do Fado
(traduzido, adaptado e resumido para portugal correcto a partir de um original de Federico García
Lorca, Teoría y juego del duende)
Desde o ano de 1994, em que comecei a percorrer, pela noite, as ruas do Bairro Alto e Santa
Catarina, depois, as do Castelo, Alfama, Mouraria e, mais tarde, Madragoa, até hoje, devo ter
ouvido mil razões históricas, filosóficas e literárias para explicar o destino português.
Com a vontade que tinha de descobrir a escuridão e tudo, confesso que todas me entediaram
profundamente e nenhuma me satisfez, tal era o grau de erro com que falhavam o alvo do seu
objecto.
Eu não queria deixar-me levar por uma história fácil e tombar na modorrenta desistência que
enferma os entediados.
Propus-me a encontrar, de forma sensível e empenhada, e descrevê-lo o melhor que soubesse, o
espírito oculto do fatídico Portugal
O mesmo de quem Camões perguntava “com que voz cantarei meu triste fado” ou do qual Bocage
sentenciou “que eu fosse enfim desgraçado, escreveu do fado a mão”.
E também José Régio disse “o Fado nasceu um dia, quando o vento mal bulia e o céu o mar
prolongava, na amurada dum veleiro, no peito dum marinheiro que, estando triste, cantava”.
Estes tons negros são o mistério, as raízes que se cravam no limo que todos conhecemos, que
todos ignoramos, mas de onde nos chega o que é substancial na arte. Sons negros, diz o homem
popular de Portugal e concorda com Goethe, que encontra a definição do fado ao falar de
Paganini, dizendo ‘Poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica’.
Assim, pois, o fado é um poder e não um fazer, é um lutar e não um pensar. Ouvi dizer a um velho
mestre guitarrista: “o fado no está na garganta; o fado sobe por dentro desde a palma dos pés”.
Ou seja, não é uma questão de faculdade, mas de verdadeiro estilo vivo; ou seja, de sangue; ou
seja, de velhíssima cultura, de criação em acto.
Deixemos anjos, musa e duende. Essas são quimeras de povos que nunca conheceram o mar como
nós, nem o céu, nem a aventura de descobrir. E de falhar. E de tentar de novo.
A verdadeira luta é com fado.
Sabem-se os caminhos para encontrar Deus, desde o modo bárbaro do eremita ao modo subtil do
místico. Com uma torre como Santa Teresa ou com três caminhos como São João da Cruz. E ainda
que tenhamos que chamar com a voz de Isaías “verdadeiramente tu és Deus escondido”, ao fim e
ao cabo Deus manda ao que o busca as primeiras espinhas de fogo.
Podemos mudar de Deus, mas os caminhos são os mesmos. As danças de Rumi, a peregrinação de
99
A SUL DE NENHUM NORTE
Ibn Arabi, a fina alegoria de Attar, sempre nos apontam para um caminho para esse algo Deus.
Tudo é passagem.
Para encontrar o fado não há mapa, nem exercício. É um abandono. Descobre-se pela entrega,
aceita-se pela perdição. Mesmo quando se finge, o fingidor cumpre o seu fado, como Pessoa que
se fingiu tudo e outros e místico, mas sempre poeta. Ou como Amália, tomada das ruas para as
salas do mundo, mas sempre fadista. Ou aquele empregado de escritório bebedor, que todos os
dias se perde nos copos, mas sempre acredita.
Todos sabem que não é possível qualquer emoção sem a chegada do fado.
Sabe-o bem António Franco Alexandre, que dedicou ao fado castelhano um duende livro mas nele
escreveu “Tal como és, assim te quero, e sempre/ diverso cada dia do que foste” ou ainda “ainda
um dia terás um rosto humano/ que te possa beijar sem ser ferido”.
A chegada do fado pressupõe sempre uma alteração radical de todas as formas sobre velhos
planos, de sensações de frescura totalmente inéditas, com uma qualidade de rosa recém-criada, de
sortilégio, que chega a produzir um entusiasmo quase religioso.
Todas as artes são capazes de fado, mas onde se encontra mais terreno, como é natural, é na
música, na dança, e na poesia declamada, já que estas necessitam de um corpo vivo que
interprete, porque são formas que nascem e morrem de modo perpétuo e alçam os seus contornos
sobre um presente exacto.
Todas as artes e também os países têm capacidade de fado, como de anjo, de musa ou de duende;
e assim como a Alemanha tem, com excepções, a musa; a Itália permanentemente o anjo; e a
Espanha é sempre movida pelo duende; Portugal está tomado pelo fado, esse espírito que impele e
retrai, esse manso e terrível rodopio inevitável das horas, que impede concertos, planos ou
preparação; essa forma de trocar a vontade própria por laudos ao cosmos.
Em todos os países a morte é um fim mas em Portugal há algo pior do que a morte, como diria
Mêncio. Em Portugal, antes da morte, e para sempre para além dela, reina a saudade.
Não temos saudades apenas do futuro, como disse o poeta Pessoa, mas chegamos mesmo a ter
saudades da morte, saudando-o pelo fado, mesmo sem o sabermos.
Com ideia, com som, com gesto, o fado impregna o ar que respiramos e penetra os nossos poros,
em luta com a saudade que temos do futuro, como perdição irremediável do que está por vir. E das
feridas desta luta, que nunca cicatrizam, está o insólito, a imaginada parte da obra do homem.
A virtude mágica do poema consiste em devir-se fatal para baptizar com água obscura todos o que
o leiam, porque com o fado é mais fácil amar, compreender, e é certo ser-se amado, ser-se
compreendido, e esta luta pela expressão e pela compreensão da expressão adquire, às vezes, em
poesia as feições da saudade.
O fado... onde está o fado? Pelas tardias ruas vazias corre um vento espiritual que sopra com
insistência sobre as cabeças dos que estão mancando quem amam, em busca de novas imagens e
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A SUL DE NENHUM NORTE
expressões: um vento com cheiro a sangue e a ferro, de erva cortada, de lavanda que anuncia o
constante desvelar de todas as coisa fadadas.
Não é apenas pelos bairros de Lisboa ou pelas ondulações de Coimbra, todo o Portugal é o porto
do fado. Nele não se aporta, mas combate-se. A verdadeira luta é com o fado. E nesta estranha
forma de vida, apetece pedir a Lowell a sua frase para português, a única língua possível: “a
escuridão, vivida honestamente, é um lugar de deslumbre e vida”. Eis, o fado; eis, pois, por que a
verdadeira luta é com o fado.
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A SUL DE NENHUM NORTE
isto
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A SUL DE NENHUM NORTE
Gonçalo Martins
Gonçalo Martins tem hoje 28 anos, mas era pequeno quando descobriu que o fogo tinha
magia. Lembra-se que devia ter uns 7/8 anos quando começou a queimar pontas de papel de
jornal com fósforos, e assim acidentalmente incendiou a montra da loja da mãe. Gonçalo Martins
estudou Artes Plásticas na ESAD de Caldas da Rainha onde aprendeu que essa força do fogo pode
ser uma coisa boa e criativa e descobriu que o fogo pode ser a melhor de todas as ferramentas
para pintar e ilustrar, carregado de simbolismos e conceitos, o fogo é a sua arma. Entre outras
coisas Gonçalo procura uma através do fogo relação entre corpo/tempo e tempo/mente. Gonçalo
acho que é um pessimista, as pessoas dizem que ele é apenas romântico.
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A SUL DE NENHUM NORTE
Menina I
Menina I, Gonçalo Martins
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A SUL DE NENHUM NORTE
Menina II
Menina II, Gonçalo Martins
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A SUL DE NENHUM NORTE
Menina III
Menina III, Gonçalo Martins
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A SUL DE NENHUM NORTE
Menina IV
Menina IV, Gonçalo Martins
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A SUL DE NENHUM NORTE
João Rios
João Rios, picheleiro de válvulas cardíacas, absorve em versos e cores
os excrementos e os luxos da cidade.
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A SUL DE NENHUM NORTE
Christhus Bar
Christhus Bar, João Rios
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A SUL DE NENHUM NORTE
Doctor love
Doctor love, João Rios
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A SUL DE NENHUM NORTE
Estátua nadando
Estátua nadando, João Rios
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A SUL DE NENHUM NORTE
Music for leon
Music for leon, João Rios
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A SUL DE NENHUM NORTE
Pumping Station 1.1
Pumping Station 1.1, João Rios
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A SUL DE NENHUM NORTE
Marco Moura
Marco Moura é um artista plástico que finalizou o Curso Técnico-profissional de Artes Gráficas
da ARCA – E.A.C. em 1999 e de Comunicação e Design Multimédia na Escola Superior de Educação
de Coimbra (ESEC) em 2010, tendo ganho vários prémios Nacionais na área de Ilustração, banda
desenhada e design gráfico. Trabalhou em empresas como a Memorandum (actual Cision), Take
The Wind e é director artístico da Bits e Saberes. Actualmente continua a trabalhar como
freelancer em diferentes áreas, tais como a pintura, ilustração, fotografia e design.
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A SUL DE NENHUM NORTE
Radeo_01, Beleza Descartável
Radeo_01, Beleza Descartável, Marco Moura
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A SUL DE NENHUM NORTE
Radeo_02, Beleza Descartável
Radeo_02, Beleza Descartável, Marco Moura
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A SUL DE NENHUM NORTE
Satelina, Beleza Descartável
Satelina, Beleza Descartável, Marco Moura
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A SUL DE NENHUM NORTE
Archie, Beleza Descartável
Archie, Beleza Descartável, Marco Moura
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A SUL DE NENHUM NORTE
Sofia Ferreira
Sofia Ferreira
http://www.facebook.com/pages/Sofia-Ferreira/136155439764096
http://sofiaciente.tumblr.com/
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A SUL DE NENHUM NORTE
#25
#25, Sofia Ferreira
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A SUL DE NENHUM NORTE
#24
#24, Sofia Ferreira
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A SUL DE NENHUM NORTE
#26
#26, Sofia Ferreira
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A SUL DE NENHUM NORTE
#34
#34, Sofia Ferreira
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A SUL DE NENHUM NORTE
e isto
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A SUL DE NENHUM NORTE
G. K. Chesterton
Gilbert Keith Chesterton, conhecido como G. K. Chesterton, (Londres, 29 de Maio de 1874 —
Beaconsfield, 14 de Junho de 1936) foi um escritor, poeta, narrador, ensaísta, jornalista,
historiador, biógrafo, filósofo, desenhista e conferencista britânico. Ficou famoso como o criador
dos contos do Padre Brown. G. K Chesterton era um católico convertido num país de anglicanos.
Chesterton foi uma "máquina" intelectual. Escreveu mais de 4.000 artigos para jornais, uns 100
livros e aproximadamente 200 contos, quase todos ditados à sua secretária.
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A SUL DE NENHUM NORTE
A filosofia dos passeios
Seria de facto interessante saber precisamente porque é que uma pessoa inteligente -quero com isto dizer uma pessoa com qualquer tipo de inteligência – pode ou não gostar de
passeios turísticos. Porque é que a ideia de um “americano” cheio de turistas que vão ver o local
de nascimento de Nelson ou a cena da morte de Simon de Montfort causa um estranho arrepio na
alma? Posso facilmente dizer de onde não surge esta estúpida aversão aos turistas e suas
antiguidades — pelo menos, no meu caso. Sejam quais forem os meus outros vícios (e eles são,
obviamente, extravagantes), consigo colocar a mão sobre o coração e dizer que não surge dum
desprezo mesquinho pelas antiguidades, nem tampouco dum desprezo ainda mais mesquinho
pelos turistas. Se existe algo mais redutor e deplorável do que a irreverência pelo passado, é a
irreverência pelo presente, pela apaixonada e colorida procissão da vida, que inclui um
“americano” entre as carruagens e carros triunfais. Não conheço nada tão vulgar como esse
desprezo pela vulgaridade que se ri dos caixas num feriado ou dos Cockneys[1] nas praias de
Margat. O homem que não repara em nada no caixa, para além do seu sotaque Cockney, também
não iria reparar em nada acerca de Simon de Montfort, para além do seu sotaque francês. O
homem que goza com o Jones por lhe ter caído o “h” iria provavelmente gozar com Nelson por lhe
ter caído um braço. O desdém ressalta facilmente sobretudo nas mentes vulgares, e é tão fácil
troçar de Montfort por ser estrangeiro ou de Nelson por ser aleijado, como troçar de um discurso
esforçado e dos corpos mutilados das massas da nossa cómica e trágica raça. Se me afastar desta
questão de turistas e túmulos, não é certamente por ser tão profano que pense de ânimo leve nos
túmulos ou nos turistas. Reverencio esses grandes homens que tiveram a coragem de morrer;
Reverencio também estes pequenos homens que têm a coragem de viver.
Mesmo que isto seja concedido, uma outra sugestão pode ser feita. Pode dizer-se que as
antiguidades e as multidões nos lugares comuns são de facto coisas boas, como as violetas e os
gerânios; mas não combinam. Um chapéu de coco é um objecto belo (pode ser intensamente
desejado), mas não tem o mesmo estilo arquitectónico da catedral de Ely; é uma cúpula, uma
pequena cúpula rococó ao estilo renascentista, e não combina com os arcos pontiagudos que
atacam os céus como lanças. Um “americano” é encantador (pode dizer-se) se colocado num
pedestal e venerado para o seu próprio doce bem-estar; mas não se harmoniza com a curvatura e
desenho do velho navio de guerra no qual morreu Nelson; a sua beleza é de outra natureza. Assim
(vamos imaginar que o nosso sábio argumenta) antiguidade e democracia devem ser mantidas
separadas, como coisas inconsistentes. As coisas podem ser inconsistentes no tempo e espaço,
não sendo de todo, inconsistentes no valor intrínseco e na ideia.
Assim a igreja católica tem água para os recém-nascidos e óleo para os moribundos: mas
nunca os mistura.
Esta explicação é plausível; mas não a considero adequada. A primeira objecção é que o
mesmo cheiro de bathos[2] assombra a alma no caso de todas as elaboradas e deliberadas visitas
aos “locais bonitos”, mesmo por pessoas da mais elegante posição ou de privacidade mais
protegida. Especialmente as visitas ao Coliseum ao luar parecem-me tão vulgares como quando se
126
A SUL DE NENHUM NORTE
visita à luz das tochas. Um milionário especado no topo do Mont Blanc, um milionário especado
no deserto junto da Esfinge, um milionário especado no meio de Stonehenge, é tão cómico como
um milionário em qualquer outro lado; e isto basta. Por outro lado, se o chapéu de coco tivesse
entrado privada e naturalmente na catedral de Ely, nenhum entusiasta pela harmonia gótica
pensaria em criticar o chapéu de coco – enquanto, claro está, não esteja a ser usado na cabeça.
Mas há de facto uma objecção muito mais profunda a esta teoria das duas excelências
incompatíveis, antiguidade e popularidade. Pois a verdade é que têm sido quase sempre as
antiguidades a interessar a populaça; e tem sido quase sempre a populaça a preservar
sistematicamente as antiguidades. O Habitante mais Velho tem sido sempre um campónio; Nunca
ouvi dizer que ele fosse um cavalheiro. São os camponeses que preservam todas as tradições dos
locais das batalhas ou das construções das igrejas. São eles que lembram, desde sempre, das
aparições das fadas ou dos solenes milagres dos santos. Nas classes mais altas o sobrenatural foi
assassinado pela arrogância. Há um texto das Escrituras verdadeiro e tremendo que diz “onde não
há visão a gente perece.” Mas na prática é igualmente verdade que onde não há gente as visões
perecem.
Como tal, deve ser abandonada a ideia de que este sentimento de fraco desagrado dirigido
aos passeios populares é devida a qualquer incompatibilidade herdada entre a ideia de templos e
troféus especiais e a ideia de grandes massas de homens comuns. Pelo contrário, estes dois
elementos de santidade e democracia têm estado fortemente ligados e aliados ao longo da
história. Os templos e troféus foram muitas vezes construídos por homens comuns. Foram sempre
construídos para os homens comuns. Para a panóplia de coisas que o fastidioso artista moderno
possa escolher para aplicar a sua teoria de apreciação especializada, e uma aristocracia de gosto,
ele tem de a considerar difícil de aplicar a uma tão monumental e histórica arte. Obviamente, que
um edifício público foi feito para impressionar o público. O túmulo mais aristocrático é um túmulo
democrático, porque existe para ser visto; a única coisa aristocrática é o cadáver em
decomposição, não o mármore intacto, e se o homem quisesse ser completamente aristocrático,
deveria ser enterrado no seu próprio quintal. A capela da mais estrita e exclusiva seita é universal
exteriormente, mesmo que seja limitada no seu interior, as suas paredes e janelas confrontam
todos os pontos da bússola e todos os recantos do cosmos. Pode ser pequena como um domicílio,
mas é universal como monumento; se os seus sectários desejassem de facto privacidade deveriam
tê-la construído numa casa privada. Sempre que construímos um edifício municipal ou nacional,
pilar, ou estátua, falamos à multidão como um demagogo.
A estátua de todo o homem de estado submete-se à eleição tanto como o próprio homem
de estado. Todo o epitáfio numa pedra de igreja é colocado para a multidão tal como um placar
numas eleições. E se seguirmos esta linha de pensamento chegaremos, penso eu, a encontrar
realmente a razão pela qual o passeio moderno colide com algo em nós, algo que não é um
desprezo ofensivo por sepulcros nem da mesma forma um desprezo ofensivo por labregos. Pois,
afinal, existem muitos – átrios de igreja que consistem maioritariamente de labregos mortos; mas
isso não os torna menos sagrados ou menos tristes.
127
A SUL DE NENHUM NORTE
A verdadeira explicação, penso eu, é esta: que estas catedrais e colunas triunfais foram
destinadas, não para gente mais culta e consciente que os turistas modernos, mas para gente
muito mais grosseira e mais casual.
Esses repuxos de pedra viva como fontes congeladas, foram colocadas e posicionadas para chamar
a atenção do homem comum, sem consideração e atarefado no seu dia-a-dia; e quando são tão
vistos nunca são esquecidos. A verdadeira forma de reavivar a magia dos nossos grandes
mosteiros e sepulcros históricos não é a que Ruskin estava sempre a recomendar. Não é ser mais
cuidadoso com as construções históricas. Não, é ser menos cuidadoso com elas.
Compre uma bicicleta em Maidstone para visitar uma tia em Dover, e verá a catedral de
Canterbury como foi construída para ser vista. Atravesse Londres apenas como o caminho mais
curto entre Croydon e Hampstead, e a coluna de Nelson lembrá-lo-á (pela primeira vez na sua
vida) Nelson. Apreciará a catedral de Hereford se vier pela cidra, e não pela arquitectura. Verá
realmente a Place Vendome se vier em negócios, e não pela arte. Pois foi para as gerações de
homens simples e laboriosos, práticos, preocupados com inúmeras coisas, que os nossos pais
geraram esses portentos. Há, de facto, um novo elemento, não de somenos importância: o facto
de as pessoas irem às catedrais para rezar. Mas na discussão acerca dos amantes de catedrais
modernos, não temos de ter isto em conta.
[1]
O termo Cockney tem um significado geográfico e linguístico. Refere-se usualmente à classe trabalhadora
de Londres, particularmente à que vive no East End, e ao sotaque inglês falado por este grupo de pessoas.
[2]
Bathos, tentativa frustrada, e por isso ridícula, de criar pathos, especialmente quanto à piedade e à dor
moral. Pathos, tipo de experiência humana ou sua representação em arte, que evoca dó, compaixão ou
uma simpatia compassiva no espectador ou leitor.
Tradução, Nuno Abrantes
128
A SUL DE NENHUM NORTE
Michel Laub
Michel Laub nasceu em Porto Alegre, em 1973. Escritor e jornalista, foi editor-chefe da revista
Bravo e coordenador de internet do Instituto Moreira Salles. Hoje é professor de criação literária
(Academia Internacional de Cinema, B_Arco, Sesc) e colaborador de diversos veículos e editoras.
Publicou quatro romances, todos pela Companhia das Letras: Música Anterior (2001); Longe da
água (2004), lançado também na Argentina; O segundo tempo (2006) e O gato diz adeus (2009).
Recebeu o prémio Erico Verissimo/Revelação, da União Brasileira dos Escritores, as bolsas Vitae,
Funarte e Petrobras e foi finalista dos prêmios Jabuti, Portugal Telecom (duas vezes), Fato
Literário/RBS e Zaffari/Bourbon. Tem textos publicados em Itália e na Coreia.
Blog: http://michellaub.wordpress.com/
129
A SUL DE NENHUM NORTE
Um museu imaginário de simpatias
Sérgio Augusto de Andrade num ensaio de 1997, comentando o Grande Diccionário
Portuguez de Frei Domingos Vieira, dos Eremitas Calçados de Santo Agostinho, editado no Porto
em 1871:
“Em suas páginas, as palavras parecem vir de uma cozinha saturada de sabores, de um
palácio encantado ou um jardim persa. Ao contrário de nossa tradição de ingênua, inútil
objetividade, em nenhum momento frei Vieira simula indiferença diante da língua: antes de
representar simplesmente um vocábulo, cada palavra representa um desafio, um compromisso,
uma questão de honra, uma sinfonia e o projeto de uma estética. Quando define ‘acalanto’,
ressalta: ‘Formosa, suave e meiga palavra, que já em si exprime o canto e carinho maternal ao
ritmo do qual se embalam as crianças, para suspender-lhes o choro, com o sono’; em seu
dicionário, o mirto é um ‘arbusto sempre verde de folhas miúdas, cujas flores são brancas e de um
cheiro muito agradável’. Ao comentar as diferenças entre arejar e ventilar – ‘que, em geral, se
empregam promiscuamente’ – esclarece que entre elas pode-se notar ‘a mesma diferença que há
entre ouvir e escutar; ver e olhar (…). Arejar traz ao espírito uma idéia de brandura e sossego; ao
contrário de ventilar, que denota certa violência e fortaleza’. E, em certos casos, há observações
até discretamente poéticas: para o advérbio ‘mansamente’, sua definição alonga-se, como um
gato que se espreguiça, num alexandrino perfeito – ‘com mansidão’, escreve frei Vieira, ‘com
docilidade e sossego’. Os ‘favos ou buracos que muitas vezes se encontram dentro do pão’ são
definidos como ‘alma de padeira’; a fímbria de vento ‘que entra nas casas por alguma fresta’ é dita
‘ar coado’.
Fica evidente que um dicionário nunca deve se limitar a um arquivo morto de significados,
mas sim estabelecer um exuberante museu imaginário de simpatias – tanto pelas coisas quanto
pelas palavras. É como se criasse, imperceptivelmente, uma outra língua: nesse sentido, todo
dicionário ideal é sempre bilíngue. Quando define ‘avalanche’ como ‘grande mole de neve’ que se
‘despede do cimo dos montes’, frei Vieira parece estar falando outra língua, estabelecida por
outras relações. Ser bilíngue numa mesma língua é muito mais difícil que dominar várias outras.
Afinal, não é mais algo que envolve o empenho, mas a invenção.”
130
A SUL DE NENHUM NORTE
Renato Carreira
Renato Carreira nasceu em 1977 e tem-se mantido vivo de forma mais ou menos contínua
desde então. Frequentou vários estabelecimentos de ensino, fez trabalhos de mérito intermitente
e conquistou uma reputação unânime de “gajo esquisito” entre aqueles que com ele privaram.
Passa demasiado tempo a atafulhar o ciberespaço com coisas como a Inépcia (www.inepcia.com)
desde 2001.Gosta de bifinhos com cogumelos, mas não nega um bom bacalhau à brás, uma
francesinha com batata frita ou uma alheira de Mirandela. O grão-de-bico será sempre a sua
perdição derradeira. Promete ofertar uma quantia simbólica em dinheiro a quem o abordar na
rua, segredando-lhe ao ouvido as palavras “Costa da Caparica”.
131
A SUL DE NENHUM NORTE
Manifesto godá
Jovem. Levanta-te e segue-me. Eu posso indicar-te o caminho. Tenho-te visto a andar sem
rumo pela rua, indeciso quanto ao ritmo da passada, com os olhos no chão e a cabeça nas alturas.
Não precisas de penar mais. Eu sei para onde queres ir.
Vivemos numa época de crise de valores. Normalmente, quem diz isto está a referir-se ao
facto de andarmos todos a interromper gravidezes a torto e a direito sem nos preocuparmos em ir
à missa de vez em quando, num perpétuo arraial de fornicação desregrada. Não é a isso que me
refiro.
Nas gerações anteriores, passava-se directamente da infância para a idade adulta através
do sacramento do matrimónio. Até à idade dos 18, 19, tudo era mais ou menos inocente. Depois
disso, o objectivo comum passava a ser encontrar uma cara-metade, casar e constituir família,
possibilitando o início de um novo ciclo.
Agora, as coisas mudaram. Quem vê a sua adolescência chegar ao fim, hoje em dia, tem um
punhado de opções. Ou continua a fazer o mesmo, ou seja, envereda por uma “vida em comum”,
uma “relação” mais ou menos oficializada e mais ou menos bem-sucedida (o divórcio também é
uma experiência válida e uma separação de facto pode ser tão proveitosa como uma união de
facto), ou tem a sorte de encontrar uma ocupação profissional de tal forma enriquecedora que
faça esquecer tudo o resto (actor, cantor, futebolista ou secretário-geral da ONU).
Fora isto, é preciso haver qualquer coisa que complemente o trabalho ou o estudo. Há os
desportos radicais, o tuning, a criação de pitbulls e rottweillers, o crime, a aquariofilia, a filatelia, a
informática, a pedofilia, a observação de aves, a pesca, a caça, o futebol, o ténis, a fórmula 1, o
sexo, a masturbação, a masturbação com pittbulls e rottweillers, a masturbação dentro de um
aquário com selos de correio e até, para quem gosta de emoções fortes, o folclore.
Mas há gente que, por ter uma educação mais esmerada ou apenas porque as
circunstâncias da vida assim o determinaram, acha que está acima disto. Precisam de algo que
lhes titile a sofisticação. Que os faça sentir que pertencem a um grupo. E não a um grupo
qualquer, mas a um grupo de gente que, como eles, tenha gosto apurado, tenha opiniões, saiba
apreciar as artes e não ignore que sair de casa sem um saco a tiracolo e um livro de Boris Vian no
bolso é como estar nu.
Precisam de ser godás.
E o que vem a ser um godá?
É muito simples.
Comecemos pela pronúncia. Lê-se “gódá” e não “gudá” ou “gôdá” ou qualquer outra
variante. Vem de Godard, realizador francês que, não sendo ele um godá propriamente dito, é um
dos autores que, para qualquer godá que se preze, fica sempre bem citar e dizer que se conhece o
seu trabalho e se gosta muito.
O termo é de minha autoria, mas o conceito já existia. A única coisa que faltava era alguém
perceber que não é apenas uma particularidade comportamental, mas toda uma filosofia de vida.
Dizia-se que fulano era intelectual. Ora, ser-se intelectual é bastante desprezível, mas não se
enquadra na grandiosidade emparvescente da essência do godá. Pacheco Pereira, por exemplo, é
132
A SUL DE NENHUM NORTE
um intelectual. Mas nunca ninguém o verá de cachecol cheio de borboto e calças de bombazine a
tentar decorar a ficha técnica de um filme eslovaco dos anos 30 a partir de uma brochura da
Cinemateca.
Depois há variações de intelectual. “Pseudo-intelectual” ou o “intelectualóide” que já se
aproximam mais da natureza do godá. Mas são dois termos arruinados pelo uso e abuso de anos.
Hoje em dia, “pseudo-Intelectual” e “intelectualóide” é o que os parvos chamam a toda a gente
que é ligeiramente menos parva do que eles à falta de qualificativo mais adequado.
No fundo, há cinco elementos fundamentais que definem a essência do godá. A saber:
1 - Aparência
O godá põe as coisas do espírito acima das coisas materiais. Mas as coisas do espírito não
dão nas vistas e, por mais culto que se seja, não é por isso que alguém vai reparar em nós no Lux
apinhado. O segredo está em vestir de forma aparentemente despreocupada mas garantindo que
um conjunto singelo de elementos está sempre presente. O calçado deve ser desportivo e
discreto. Ténis de marca mas que não chamem a atenção são o ideal. Calças de ganga só se não
houver mais nada no armário. E, mesmo assim, convém que não sejam azuis. No tronco é onde a
liberdade é maior. Dá-se preferência a cores sisudas e é melhor não haver nada escrito (o godá lê,
o godá não é lido). Se houver alguma coisa escrita que seja arrojada e emblemática (o nome de
um festival de cinema underground ou uma frase em inglês carregada de pós-modernidade
vanguardista como “My feet smell” ou “I suck cock”; se o arrojo for muito, pode ser em alemão).
Para complementar, um saco a tiracolo (simultaneamente prático e requintado), um
cachecol (se fizer frio) e um par de óculos de massa (se houver falta de vista ou, mesmo que não
haja, se houver dedicação que chegue para isso). Os homens devem usar a barba por fazer e o
cabelo despenteado. As mulheres podem andar como quiserem que vão sempre sentir que estão
a criar tendências (para além das tendências homossexuais que muitas criam nos godás machos
hetero).
2 – Gosto
O gosto é o elemento definidor por excelência que faz dos godás tudo aquilo que são e
consegue sobrepor-se aos restantes elementos pois é por aquilo de que gosta ou finge gostar que
um godá se posiciona na hierarquia godárica. A definição do que é ou não gostável em termos de
arte não depende de critérios estéticos subjectivos (como sucede com o comum dos mortais) mas
sim da seguinte equação matemática: x + y + z / m = r (em que x corresponde ao número de
pessoas que não conhecem a manifestação artística em questão - quanto mais elevado o valor,
melhor; y é a quantidade de pessoas que poderão ficar impressionadas com a sua referência; z é a
importância de quem recomendou; m é a biografia do autor; e r o nível de apreciação). E há uma
ressalva que deve ser feita no que diz respeito a cinema. O godá convicto não vê filmes
133
A SUL DE NENHUM NORTE
americanos. Até pode já ter feito uma lista dos seus filmes preferidos (os godás gostam de fazer
listas e de as comparar com as dos outros godás para ver quem tem a maior) e percebido que uma
boa parte deles é americana, mas não interessa. Todo o cinema americano deve ser metido no
mesmo saco (com honrosas excepções: David Lynch e Woody Allen antes de se terem vendido ao
capital, por exemplo). Não há cá "cinema independente" nem "blockbusters." Bons filmes ou maus
filmes. Tudo é igualmente mau e americano (são sinónimos). Se algum não-godá mais afoito pedir
explicações, diz-se-lhe que o cinema americano é mau porque é comercial. A seguir, foge-se a
correr para não ter de ouvir os argumentos dele de que este argumento é uma imbecilidade. Além
disso, os americanos não merecem mais depois daquilo que fizeram no Iraque e no Afeganistão.
Os porcos.
3 - Discurso
O discurso do godá genuíno é um verdadeiro trabalho de patchwork verbal. Nos primeiros
anos de godazice, poderá haver uma tendência motivada pela falta de experiência para dizer
coisas que são resquício de alguma actividade cerebral própria muito ligeira. Com o tempo, o godá
aprende que, com tanta gente a dizer coisas importantes, significativas, mordazes e bem pensadas
ao longo da história da humanidade, é uma grande presunção pensar que alguma coisa que
possam pensar por si próprios poderá conseguir ter mais interesse. Resta escolher entre citações
devidamente identificadas e citações obscuras retiradas de jornais e revistas ou ouvidas de
passagem. A opção fica ao critério de cada godá.
4 - Expressão
O godá não se limita a ser um apreciador de manifestações artísticas alheias. É ele próprio
um artista multifacetado, dando especial importância às artes maiores do ponto de vista da
produção artística godá: a poesia e a fotografia. A predilecção por estas duas formas de expressão
deve-se a motivos essencialmente pragmáticos. Fazer cinema, pintar, cantar ou mesmo escrever
prosa exige um conjunto de requisitos a priori e um certo nível de esforço que o godá não pode
despender porque tem coisas melhores em que ocupar o seu tempo precioso. Para a fotografia e a
poesia, basta ter acesso a uma máquina fotográfica e a um qualquer suporte de escrita digital ou
analógico. Os resultados serão posteriormente expostos para apreciação de outros godás em
blogs (godá que se preze tem de ter um blog, se se prezar mesmo muito, tem um livejournal) e
podem mesmo chegar até ao grande público graças ao “empurrãozinho” de um godá
amigo/conhecido com os contactos certos.
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5 – Convívio
O godá é auto-suficiente. Mas não deixa de ser um animal social e, como tal, precisa de
conviver com outros godás para se sentir realizado. Os ajuntamentos godás dão-se em locais que
podem ir de estabelecimentos de diversão nocturna, galerias de arte, livrarias, salas de cinema,
concertos, cafés ou qualquer recanto mal iluminado e cheio de fumo com um ar prazenteiro para
albergar tertúlias. Nesses encontros, cada godá debita os novos conhecimentos que adquiriu nos
dias anteriores (esforçando-se ao máximo para dar a entender que se trata de algo que já sabe há
muito), recomendam-se e trocam-se livros, cds e dvds, fumam-se cigarros, bebem-se cafés e cada
godá tenta parecer o mais natural possível, ao mesmo tempo que vai pensando que a godazice
dos outros não passa de pose e que só a sua é legítima.
E é esta a essência do godá. Muito mais haveria para dizer mas, por motivos de tempo,
vejo-me forçado a ficar por aqui. Há um ciclo muito bom na Cinemateca subordinado ao tema
“François Truffaut e cuecas de renda - uma relação intempestiva” e, se chegar atrasado já não
apanho brochuras.
Contribuições para uma taxinomia do godá
Contrariamente ao que se possa pensar, o godá não é criatura única, conhecendo várias
variantes que encaixam na grande e abrangente categoria da godacidade universal. Qual lémure
de Madagáscar, o godá tem também subespécies que se revestem, cada uma, de características
únicas que permitem distribuí-las pelos diversos ramos sem perder a essência comum às
variantes. Claro está que não se trata de categorias absolutas e os híbridos são possíveis e
bastante frequentes. Passemos a enumerar de forma breve as subespécies mais facilmente
observáveis à vista desarmada.
O godá porreiro:
Talvez o tipo de godá que mais facilmente desperta a simpatia dos seres humanos,
podendo inclusive ser o de mais fácil domesticação. Infelizmente, a raridade do godá porreiro
impossibilita quaisquer sonhos de venda em massa por lojas de animais de estimação. À primeira
vista, nada distingue este godá do godá comum. É necessária uma observação mais próxima para
notar que se trata de um godá perfeitamente consciente da sua condição e que não faz qualquer
esforço para a negar. Ao invés, recebe com boa disposição os comentários feitos a respeito dela e
presta-se a responder a questões que esclareçam o cidadão comum acerca da fascinante natureza
godá, dando um contributo inestimável para uma avaliação científica. Infelizmente, como já se
disse, o godá porreiro está praticamente extinto e subsistem muito poucos exemplares.
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O godá sazonal:
O godá sazonal (ou “falso godá”) não é um godá legítimo, de acordo com muitos teóricos.
Isto explica-se pelo facto de hoje poder ser godá, amanhã dedicar-se à causa do rock industrial, no
dia seguinte sair do armário e assumir a sua homossexualidade militante para, dois dias depois,
voltar a ser godá (até descobrir uma vocação para o surf durante um fim-de-semana na Ericeira).
Esta inconstância é devida a um défice mental nos godás deste tipo que gera um fenómeno que
poderemos descrever como “nomadismo influenciável” pelo modo como a mudança de um
campo para o outro é motivada pelas pessoas que o godá vai conhecendo e pela preferência que
vai dedicando a uns ou a outros.
O godá fundamentalista:
O mais agressivo de todos os godás mas sem perigo porque, essencialmente, o godá é um
animalejo inofensivo. A agressividade manifesta-se no modo impetuoso como defende a sua
condição com unhas e dentes, podendo chegar ao ponto de tentar doutrinar terceiros para que
estes se transformem também eles em godás e, possivelmente, em discípulos seus (o godá
fundamentalista gosta de ter seguidores e de ser visto e apontado como exemplo). Dentro do
subgénero dos godás fundamentalistas, nas raras ocasiões em que a defesa dos ideais godás é
levada às últimas consequências (vulgo “chapada”), o godá fundamentalista metamorfoseia-se em
godá mujahedine.
O godá de cobrição (unissexo):
Como qualquer outro animal, o godá tem preocupações de índole reprodutiva, dedicando
uma parte significativa da sua vida à procura de uma companheira com quem possa assentar e
trazer ao mundo novos godás (apesar de, como se sabe, a godazice não ser hereditária, podendo,
porém, ser influenciada pela educação). No entanto, há godás que se tornam godás movidos
apenas por intuitos sexuais. São os godás de cobrição e, apesar de a designação poder sugerir o
contrário, podem ser de ambos os sexos. O godá de cobrição começa por ser um humano sexual e
afectivamente frustrado, pouco confiante nos seus atributos e personalidade. O bicho da godazice
manifesta-se como esperança na aquisição de uma personalidade alternativa que transforme o
agora recém-godá num ser apelativo para o sexo oposto (ou não, dependendo dos gostos de cada
um). Trata-se de um godá predador que escolhe para vítimas ou godás mais jovens e inseguros ou
humanos adolescentes fascinados pela sua bela pelagem e interessados também eles em assumir
uma faceta godá. Na maior parte dos casos, as vítimas de um godá de cobrição acabam
irremediavelmente por se tornar também godás, levando alguns a estabelecer um paralelo com o
vampirismo.
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O godá fashion/design:
O godá fashion e o godá design são duas subespécies muito próximas e que, muitas vezes,
se fundem numa só. De qualquer forma, a bem do rigor científico, será feita a descrição de cada
uma de forma isolada. O godá fashion caracteriza-se por um afastamento dos padrões de
roupagem característicos dos restantes godás, trocando a bombazine, os cachecóis e o borboto
por fatos completos de veludo em cores “alternativas” e vestidos vintage de corte vietnamita.
Note-se, no entanto, que este traje formal godá não corresponde ao traje formal humano e,
mesmo um godá fashion, não deixará nunca de ser facilmente identificado em toda a sua
godazidão. Quanto ao godá design, reconhece-se pelo comportamento característico de recolha
de objectos passíveis de impressionar o próximo pelo arrojo de linhas, que amontoa no ninho por
motivos que a ciência desconhece.
O geekodá:
Um dos traços distintivos do godá é o seu desprezo por tudo que classifica como
“comercial” ou “mainstream.” O geekodá, uma variante muito peculiar, tem uma interpretação
muito própria deste traço comportamental. Não procura o que escapa às massas. Em vez disso,
sobrepõe-se a elas, parte do gosto comum e vai subindo por uma escada imaginária, ao longo da
qual vai descobrindo versões alternativas, autores alternativos, versões e autores desconhecidos,
versões originais, autores malditos (etc.) e prestando-lhes o culto devido em moldes que chegam a
ser obsessivos. O geekodá poderá também assumir publicamente que aprecia elementos
“mainstream”, mas com a convicção de que a sua apreciação destes é sempre a única correcta.
O freakodá:
À primeira vista, o freakodá não parece um godá. Tem vestuário e hábitos distintos nos
quais prevalecem as roupas multicoloridas, gastas e remendadas, as missangas, os andrajos feitos
pela própria mão, os cabelos emaranhados e também multicoloridos (não há dois freakodás
exactamente com o mesmo corte de cabelo), os ajuntamentos de rua, a venda de bijutaria
artesanal e a dedicação às actividades circenses que substituem por completo a fixação do godá
comum pelo cinema, pela literatura ou pela música. Mas a verdade é que, se os comportamentos
são diferentes (e são-no de facto), é inegável que a motivação por trás deles, a mesma vontade de
dar nas vistas por uma diferença forçada e de fazer parte de uma elite (quer seja uma elite cultural
fictícia ou uma elite composta por iluminados que sabem que o verdadeiro sentido da vida
consiste em fumar “cigarros medicinais” e fazer malabarismo), dificilmente poderia ser mais godá.
Há relatos de que alguns freakodás são capazes de cuspir fogo, mas nunca foram confirmados.
Quando um freakodá substitui o interesse pelas artes circenses por preocupações ambientalistas,
passa a ser um ecodá.
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Créditos
A SUL DE NENHUM NORTE
Nº 1
Editores
Maria Sousa e Nuno Abrantes
Design
Nuno Abrantes
Maria Sousa
Maria Sousa é uma lebre que é uma Alice e gosta de passar a tardes no café Santa Cruz a ler e a
escrever. Gosta de revistas e já participou em algumas (Criatura, Sítio, Umbigo, Saudade).
Escreveu “Exercícios para endurecimento de lágrimas” (Língua Morta, 2010) mas ainda chora
quando ouve a Lhasa e o Tom Waits. Não gosta de dar aulas e quando for grande quer ser livreira.
Nuno Abrantes
Nuno Abrantes é um menino mau que gosta de girassóis e cinema japonês. Desenha mulheres
bala e outras coisas, enquanto ouve música estranha. Gosta de ler e ama Bukowski.
As obras publicadas nesta revista são propriedade intelectual dos seus autores, pelo que a sua cópia ou alteração não é permitida sem a vontade
expressa dos seus autores.
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