do Arquivo - Professor Ivan Domingues

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do Arquivo - Professor Ivan Domingues
Universidade avançada e fronteiras do saber
Prof. Ivan Domingues (UFMG)
O tema da mesa é “O que é uma universidade avançada?”. Tive a ocasião de
conversar várias vezes com o Prof. Carlos Brandão sobre o assunto, preocupado em achar o
meu caminho e pensando nas possíveis interlocuções com os dois outros colegas, Profs.
Ronaldo e José Vargas. Foi então que acertei com o Prof. Brandão que eu não abordaria na
minha fala os aspectos institucionais e pedagógicos da chamada universidade avançada,
mas trataria tão-só dos aspectos epistemológicos, tendo por foco o conhecimento avançado
e levando em conta o estado da arte dos campos disciplinares em seus múltiplos recortes e
frente a seus inúmeros desafios.
Todavia, antes de focalizar meu tema, eu gostaria de fazer algumas considerações
sobre a universidade do futuro, visada de um modo pessoal, segundo meu modo de
perceber e sentir as coisas, meio pessimista com o que assisto perto de mim, porém sem
perder de todo a esperança na humanidade, nem a crença no amanhã. Ao fazer essas
considerações, minha intenção é dar à minha fala o contexto e aos meus pensamentos o
quadro. Para lograr meus propósitos, deixarei de lado a questão das cotas, bem como o
problema do financiamento da universidade pública, que atazana a vida dos reitores. O
ponto que eu gostaria de focalizar é o aparecimento no cenário internacional das
universidades asiáticas, que se definirão como interlocutoras privilegiadas das
universidades americanas, e a conseqüente perda de prestígio das universidades européias.
Sintoma disso é o ranking publicado pela revista Newsweek em agosto de 2006, montado
com a ajuda de vários parâmetros, envolvendo produção acadêmica e índices de impacto
diversos, provenientes das ciências duras e das humanidades. Segundo o ranking, as
Universidades americanas ganham disparado, dividindo a lista das 10 mais com duas
inglesas, dominando maciçamente a lista das 50 grandes, onde aparecem asiáticas como
Cingapura e Tókio, e partilhando o restante da lista, até o 100º lugar, com um conjunto de
européias e asiáticas. O que é sintomático, e não deixa de surpreender, é que na lista de 100
só entram duas francesas, a Politechnique e a École de Hautes Études en Sciences Sociales,
acrescida de um maior número, mas não tão grande assim, de universidades alemãs, suíças
e inglesas. E, sintoma dos sintomas, na lista das 100 maiores não aparece nenhuma
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brasileira. O consolo é que elas não fazem feio sozinhas: além delas, não entraram na lista
universidades centenárias de grande prestígio no passado, como as Sorbonnes, a de Berlim
e outras tantas, acrescidas de verdadeiras catedrais do saber, como o Collège de France.
Mais do que mostrar a entrada em cena das asiáticas, que estão vencendo a barreira
lingüística e publicando em inglês por toda a parte, o ranking evidencia que os americanos
dominam o cenário e pode-se estimar que dominarão por muitos anos ainda. Assim, não é
exagero dizer que as melhores universidades do mundo são as americanas, e que a
concorrência não é a Europa, que tem um déficit de 150 bilhões de euros em investimento
em tecnologia, mas será a Ásia, ou seja, Japão, China, Índia, Coréia e os tigres. Porém, se
elas são as melhores nos números e no volume da produção acadêmica, atingindo
patamares estonteantes, não quer dizer que elas sejam as melhores em ecologia ou em
qualidade de vida e do trabalho. Como disse um amigo meu que as conhece bem: certo,
todas as grandes universidades americanas têm prêmios Nobels em seus quadros, e neste
terreno ninguém consegue concorrer com elas; a dificuldade aparece quando descobrimos
que o problema do prêmio Nobel é que todo ano tem mais um prêmio Nobel que deverá ser
contratado, e isso leva ao enlouquecimento do sistema, que descartará inclusive agraciados
com o prêmio famoso e se verá privado das duas coisas que são a condição da vida
intelectual em qualquer lugar do mundo, a saber: a tranqüilidade de alma e a existência de
ar livre. Ora, é neste quadro, em atitude de resistência ao produtivismo e ao
enlouquecimento do sistema, que eu gostaria de imaginar um outro caminho, se não para a
universidade brasileira, coisa sabidamente difícil, visto que nosso país é complicado e
confuso demais, ao menos para a UFMG, e ao longo do caminho vislumbrar e reservar um
lugar especial para o IEAT.
Depois de apresentar o quadro ou o contexto da universidade do futuro,
caracterizado pela instabilidade dos blocos geo-econômico-políticos, com a balança
pendendo a favor do Oriente, bem como marcado pelo enlouquecimento do sistema,
atingindo em especial aquelas instituições que deram certo e são consideradas vencedoras,
o ponto que eu gostaria de focalizar é a questão epistemológica e, junto com ela, de um
lado a idéia de conhecimento de ponta, de outro a de universidade avançada.
Comecemos pela questão epistemológica. No meu modo de ver, o quadro que está
despontando no horizonte e que deverá definir o curso das coisas nos anos que virão é de
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uma proliferação maior ainda dos campos disciplinares, gerando a necessidade de construir
espaços compartilhados capazes de colocar as disciplinas em contato e usufruir em
condomínio territórios comuns. Outra tendência que deverá marcar as próximas décadas
será a importância cada vez maior do campo das ciências biológicas, que se aproximará
cada vez mais das ciências humanas e desestabilizará mais ainda o panorama atual do
saber, com províncias inteiras das humanidades passando para a biologia (como a mente e a
consciência) e a adoção cada vez maior de linguagens e categorias das humanidades pela
biologia: códigos, livros, alfabetos, informações, sentimentos, intencionalidades, ações –
nos térmites, nos símios e nas lagartixas. Neste quadro, cujo contorno não é exatamente
uma novidade, o grande desafio epistemológico é fabricar as ferramentas que nos permitam
trabalhar em dois registros diferentes, porém interligados, variando em escala e em
extensão segundo os campos disciplinares, mas em todos eles procurando articular duas
dimensões do real que nem sempre são compatíveis ou ajustáveis, a saber: o contínuo e o
discreto. Outro grande desafio será a adoção de uma perspectiva abrangente capaz de
articular, mais além do contínuo e do discreto, o ponto de vista da parte e o ponto de vista
do todo. Da articulação dessas duas abordagens num mesmo método, porém profundamente
contextualizado segundo os objetos e os campos do saber, dependerá o sucesso das futuras
empreitadas de unificação da física quântica e relativística, bem como da biologia
molecular e da teoria da evolução, além de uma multidão de disciplinas das ciências
humanas, como a econometria e a economia política. E é também da articulação das duas
abordagens, mais além das disciplinas e dos campos disciplinares, que dependerá o sucesso
das metodologias inter e transdisciplinares em sua tentativa de introduzir recortes no real
empírico, segmentando-o de mil e uma maneiras, e ao mesmo tempo buscar a unificação
das perspectivas e pontos de vista, porém sem ter de pagar o ônus de, para demonstrar a
parte, ter antes de demonstrar o todo – o que tornaria as abordagens inter e transdisciplinar
inviáveis e o pagamento do preço do conhecimento das coisas rigorosamente impossível.
Simplesmente, ninguém pode percorrer o todo, a menos que fosse possível congelar o
tempo e cancelar o devir – mas quem é pode fazer isso? Só Deus...
Passemos à idéia de conhecimento de ponta ou conhecimento avançado, tão cara ao
IEAT. No meu modo de ver, o conhecimento avançado e de ponta pode ser gerado nos
campos disciplinares tradicionais seguindo os credos e as ortodoxias, e a novidade a que
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está associado pode estar seja no método, seja no objeto. E mais: procurado no método ou
no objeto, tanto faz se o olhar está voltado para o passado ou para o futuro, na vanguarda ou
na retaguarda, como ocorreu com a paleontologia, depois da introdução da técnica do
carbono 14, cujo impacto nas datações revolucionou campos disciplinares inteiros, da
arqueologia à antropologia e à história. Por outro lado, o conhecimento avançado e de ponta
só terá a credencial e dirá a que veio se conduzido no estado da arte, e o estado da arte,
junto com as idéias de excelência e de perfeição, está associado às noções de fim de linha e
de situação-limite, que têm lugar quando a fronteira do saber e do não-saber é atingida e as
cabeças batem no teto, gerando a necessidade de expansão e alargamento das fronteiras
disciplinares. Ora, é justamente nesse ponto que se inscrevem e se justificam as abordagens
multi, inter e transdisciplinares, conduzidas no estado da arte e tendo por escopo o
alargamento das fronteiras do saber. Especialmente as abordagens inter e transdisciplinares,
caracterizadas pela busca de abrangência e a perspectiva de unificação, um pouco como
ocorreu com Newton que, vivendo numa época de maior frouxidão disciplinar, com sua
mente poderosa celebrou o casamento da matemática e da física e procurou unificar a física
celeste e a física terrestre.
Sobre este ponto, eu digo a busca de unificação e a tentativa de alargamento das
fronteiras, eu gostaria de observar que a história do pensamento e em especial da filosofia
está marcada pelo embate de dois tipos de pensadores, com temperamentos em choque e
índoles discrepantes e mesmo irreconciliáveis: de um lado, há os pensadores da cisão, dos
hiatos e das dicotomias, como Platão, que introduziu a dicotomia alma / corpo e
virtualmente exilou a alma fora deste mundo ao falar da imortalidade, e também Descartes
e Kant, que voltam à dicotomia platônica e acrescentam-lhe outras cisões e dicotomias, a
ponto de se perderem em meio delas; de outro lado, há os pensadores da unificação, das
pontes e das conexões, como Aristóteles, que procura se desfazer das dicotomias
platônicas, ainda que termine por introduzir outras, e também Espinosa, Leibniz, Hegel e
Heidegger, que se notabilizaram por terem procurado se livrar das dicotomias de Descartes
e de Kant. Ora, no tocante às abordagens inter e transdisciplinares, especialmente a
abordagem transdiscplinar, um pouco é o esforço unificador do segundo grupo de
pensadores que está em jogo: introduzir uma abordagem holística, ou melhor sinóptica,
como preferia Platão, caracterizada pelo sentido do todo, capaz de unificar as perspectivas e
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vencer as cisões das abordagens disciplinares. É neste quadro, ao se dar essa missão, que a
abordagem transdisciplinar procurará parcerias nas novas lógicas ante o desafio de
conquistar para o pensamento a província inteira do terceiro excluído, recobrindo o mais ou
menos, o possível, o ambivalente e o cambiante que a lógica tradicional deixava de lado. É
também neste quadro que a abordagem transdisciplinar procurará outras parcerias na
filosofia, como nas novas ontologias que estão sendo construídas, enfatizando os seres
híbridos, a realidade virtual e o devir das coisas: assim, de mãos dadas com a filosofia e as
ciências, ao se dar a tarefa de desbravar as chamadas zonas de ignorância do conhecimento,
que são também zonas ou regiões do real, estará melhor preparada para conquistar
domínios inteiros da realidade antes deixados de lado ou considerados incognoscíveis. Algo
parecido com isso nos ensina Einstein que, em seu esforço de pensar a relatividade e
conquistar um novo domínio para a física, é levado a restabelecer o vínculo entre a física, a
matemática e a filosofia, ao propor uma nova teoria do espaço, do tempo e da matéria,
mostrando que a matéria dilata o tempo e encurva o espaço. Algo análogo nos mostra a
mecânica quântica, ao franquear o imenso mundo das partículas e conquistar para a ciência
o híbrido, o fuzzy, o aleatório, o desviante e o discrepante. Ora, é inspirando-se nessas
experiências e nessas conquistas que a abordagem transdisciplinar poderá dizer a que veio,
seja ao procurar sua matéria e seu objeto nas zonas de ignorância do conhecimento, dentro
e fora das disciplinas, seja ao buscá-los nas fronteiras, nas interfaces e nos interstícios dos
campos disciplinares.
Para deixar claro o que estou querendo dizer ao fazer essas considerações abstratas
sobre a abordagem transdisciplinar e seu sentido sinóptico, capaz de vencer as cisões e
dicotomias, proporcionando à ciência uma perspectiva abrangente e unificadora, bem como
franqueando domínios inteiros da realidade ao olhar indiscreto do cientista, eu vou dar
alguns exemplos retirados das ciências exatas, biológicas e humanas.
A começar pela física, com Newton que, ajudado por Galileu, Kepler e Copérnico,
introduz uma perspectiva abrangente proporcionada por sua teoria da gravitação, vence a
dicotomia mundo sub-lunar / mundo supra-lunar proveniente de Aristóteles e unifica as
perspectivas da física celeste e da física terrestre, como já foi comentado. Acrescente-se a
mecânica quântica que, desafiada pelo comportamento neurótico e por vezes esquizofrênico
das sub-partículas, conseguiu criar uma perspectiva abrangente capaz de vencer a dicotomia
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do contínuo e do discreto ao introduzir, além de partícula, os conceitos de órbita e onda,
quando se pôs a estudar as propriedades do elétron, e como tais coerentes com o conceito
de luz em sua máxima abrangência, que igualmente guarda as propriedades do contínuo e
do discreto, definindo-se como onda e partícula.
Dois bons exemplos nos dão as ciências biológicas em dois campos e momentos
diferentes: um, a descoberta das bactérias e dos micro-organismos, com a ajuda da química
e do microscópio, vencendo a fronteira natural do visível e do invisível, e, por via de
conseqüência, ultrapassando uma velha e arraigada dicotomia, oriunda dos gregos e
condizente com o senso comum; outro exemplo nos vem da fisiologia ou, antes, da
neurologia, ao estudar a percepção, recobrindo os sentidos, os terminais nervosos e outros
órgãos do corpo, quando foi franqueado à ciência o mundo dos odores e dos sabores, em
que se deve reconhecer um feito a todos os títulos extraordinário, por significar a superação
da dicotomia que está na base da ciência moderna, gerada por Galileu e celebrada por
Locke, a saber: a díade qualidades primárias / qualidades secundárias.
Por último, as ciências humanas nos dão dois excelentes exemplos ligados à questão
da identidade, não a identidade da lógica, que não passa de uma tautologia e não é lá
grandes coisas, mas a identidade antropológica, na perspectiva individual e coletiva.
1o. exemplo: identidade pessoal, tirado de Amartya Sen, economista indiano
radicado nos EUA e prêmio Nobel de economia em 1998. Ele nos mostra em sua obra
Identidade e violência, recentemente publicada, que a identidade dos indivíduos não se
deixa definir por um traço único ou por uma só característica, como membro de uma etnia
ou grupo racial. Em vez disso, ao se procurar estabelecer a identidade pessoal de quem quer
que seja, deve-se levar em conta que os indivíduos são membros simultaneamente de várias
comunidades, tendo cada uma delas, como viu Sérgio Pena em artigo na Folha, na esteira
do economista, a capacidade de conferir a cada indivíduo uma identidade particular. Assim,
observa Sérgio Pena, comentando Amartya Sen, “Um indivíduo natural de Ruanda pode
assumir identidades múltiplas por ser, por exemplo, africano, negro, da etnia hutu, pai de
família, médico, ambientalista, vegetariano, católico, tenista, entusiasta de ópera, etc. A
consciência de sua individualidade e dessa pluralidade lhe permite rejeitar o rótulo
unidimensional de “hutu”, que, como tal, deveria odiar tútsis. Pelo contrário, em sua
pluralidade de identidades ele pode compartilhar interesses e encontrar elementos para
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simpatia e solidariedade com um outro indivíduo que também é ruandês, negro, africano,
colega médico, tenista e cantor lírico, e que entre ouras tantas identidades, também é da
etnia tútsi” (FSP, 01/08/2006, p. A3).
2o. exemplo: identidade coletiva. Uma excelente ilustração nos dá Lévi-Strauss, ao
se referir em sua obra A via das máscaras à organização social dos povos Kwakiutl,
conhecidos dos antropólogos e disseminados na região de Vancouver, oeste do Canadá, a
cujo estudo ele consagra todo o segundo capítulo da segunda parte do livro. Ora, o
problema que está em jogo ao se procurar definir-lhes a identidade e que atazanou
antropólogos como Franz Boas é justamente o de achar o nome correto para designar sua
organização social, uma vez constatado que a terminologia tradicional não é de grande
serventia: povos, gentes, fatrias, etc. Assim, Boas proporá substituir gentes por “clãs”,
convencido de que era a única forma de dar conta de uma sociedade fortemente
estratificada, recobrindo linhagens diversas, inclusive uma nobreza nobiliárquica
constituída pelos ricos, os grandes e os chefes, como se vivessem num mundo à parte. O
que é digno de nota no esforço de Boas, mais do que responder a uma questão meramente
nominalista, é que ele tem ante si uma sociedade em que coexistem realidades compósitas
com regras híbridas de filiação e descendência, recobrindo formas matrilineares e
patrilineares. Foi então, ao aprofundar seus estudos, bastante incomodado com a questão
nominalista, que Boas adota - depois de hesitar algum tempo - o termo indígena numaym,
julgando-o mais adequado do que gentes ou clãs. Mas, mais adequado por quê? Por dar
conta do fato de que os nomes próprios (ou, antes, os títulos, com prerrogativas e
privilégios, designando verdadeiras linhagens) são transmitidos ao primogênito do chefe
principal e não ao marido da filha, por exemplo, e ao mesmo tempo por designar institutos,
organismos e instituições importantes na vida da comunidade, envolvendo direitos
territoriais, confrarias secretas, regimes de casamento e monopólios de bens materiais e
espirituais. Todavia, as coisas não pararam por aqui. Boas morreu em 1942 e durante toda
sua vida não cessou de reelaborar seu material relativo aos Kwakiutl, sem todavia dar-nos
uma idéia precisa do que vinha a ser o numaym. Só em 1966 com a publicação póstuma de
seus inéditos é que ele dá a palavra final: “No sentido estrito, o numayma [é assim que Boas
designa a coisa] não é nem patrilinear nem matrilinear, pois, em certos limites, uma criança
macho ou fêmea pode ser atribuída por disposições testamentárias a não importa qual das
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linhagens de onde ela saiu, ou mesmo a uma linhagem não aparentada” (LS, La voie des
masques, p. 170-171). Não sendo nem uma coisa nem outra, Boas propõe então que para
bem definir o que é um numaym o melhor caminho é “levar em conta os indivíduos vivos
que o compõem e considerar, antes, o numayma como consistindo em um certo número de
posições sociais. A cada uma dessas posições estão ligados um nome, uma sede, um lugar
(...), ou seja, um status [rang] e privilégios. Status e privilégios existem em número
limitado, e formam uma hierarquia nobiliária (...). Está aí o esqueleto do numayma; os
indivíduos, no curso de sua vida, podem ocupar diversas posições, e eles assumem nomes
ligados a elas” (LS, op. cit., p. 171). Ora, o que faz Lévi-Strauss, depois de Boas, é
justamente generalizar o achado do mestre, mostrando que a mesma estrutura vai
reaparecer em outros povos da América, da Polinésia, da África, da Indonésia, do Japão e
da Europa. Em todos eles está-se diante de povos de diferentes épocas e latitudes em que os
termos clã, tribo ou aldeia não os designam com exatidão, mas algo parecido com o
numaym de Boas. Ao se ocupar dos Yuroks, vizinhos dos Kwakiutl, Lévi-Strauss
finalmente chega ao nome que ele considera adequado para designar a forma de sua
organização e, por conseguinte, a estrutura: trata-se da palavra “casa” (“maison”, em
francês), com cuja ajuda, usando vocábulos equivalentes em seus dialetos, os indígenas
designavam uma topografia, um lugar e uma descendência. E o que é importante: não
exatamente uma entidade física, mas uma “pessoa moral”, cujo equivalente o antropólogo
francês vai encontrar na idade média européia, na Grécia antiga e no Japão medieval. É
digno de nota que o termo casa foi sugerido a Lévi-Strauss, testemunhando a cooperação
das disciplinas, pelo historiador alemão Schmid que lhe dá a acepção moral de “casa”, ao
empregar o termo no sentido de que o antropólogo precisa, a saber: “uma herança espiritual
e material, compreendendo a dignidade, as origens, o parentesco, os nomes e os símbolos, a
posição, a potência e a riqueza, e assumida [a herança] em relação à antiguidade e à
distinção de outras linhagens nobres” (LS, op. cit., p. 177). Não vou me alongar sobre este
ponto palpitante analisado por Lévi-Strauss em trinta páginas com rara maestria. O que eu
gostaria de reter é o que o conceito de “casa” é pensado para recobrir realidades mais
amplas, abrangentes e específicas do que tribo, aldeia, clã e linhagem, um pouco como a
“casa grande” do Brasil colonial retratada por Gilberto Freyre ou as casas dos Bourbons,
dos Orleans e dos Rothschilds da Europa moderna. Outro ponto que eu gostaria de reter,
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ressaltado por Lévi-Strauss e ligado ao nosso assunto, é que nas sociedades “à maisons”,
como ele nomeia, diferentemente de outras sociedades, os princípios da exogamia e da
endogamia não são mutuamente excludentes, podendo dar lugar a toda sorte de soluções de
compromisso e de formas mistas (LS, op. cit., p. 186-187). E não é só. Em todos os planos
da vida social, mais além da família e das formas de casamento, a casa é uma criação
institucional que permite articular um conjunto de forças, institutos e relações sociais numa
totalidade complexa heteróclita que desafia em mais de um ponto a lógica tradicional e
nosso modo habitual de ver as coisas: “Descendência patrilinear e descendência matrilinear,
filiação e residência, hipergamia e hipogamia, casamento próximo e casamento distante,
raça e eleição: todas estas noções, que servem habitualmente aos etnólogos para distinguir
uns dos outros os diversos tipos conhecidos de sociedade, se reúnem na casa, como se o
espírito (no sentido do século XVIII) desta instituição traduzisse um esforço por
transcender, em todos os domínios da vida coletiva, princípios teoricamente
inconciliáveis”. E mais, acrescenta Lévi-Strauss: “Colocando, se podemos dizer, ‘dois em
um’, a casa cumpre uma espécie de retorno topológico do interior no exterior, ela substitui
uma dualidade interna por uma unidade externa” (LS, op. cit., p. 188-189). E conclui: “É na
interseção destas perspectivas antitéticas que se situa, e talvez se constitui a casa. (...). Com
as sociedades “à maisons” [de casas], vemos então se formar uma rede de direitos e de
obrigações cujas linhas entrecruzadas recobrem as malhas da rede que ela substitui: o que
antes era unido se separa, o que antes era separado se une” (LS, op. cit., p. 191-192),
resultando numa espécie de “chassé-croisé”, vem a ser, em francês, uma espécie de passo
de dança de salão em que as pessoas trocam de posição e de lugar. Um pouco como na
abordagem transdisciplinar, eu acrescentaria, que mais do que um holismo difuso, deverá
nos oferecer um todo articulado, segmentado, reversível e cambiante, ajustando as
perspectivas da parte e do todo e unindo as propriedades do contínuo e do discreto, como
sugere Lévi-Strauss ao se referir à casa nobiliária e às malhas da rede.
Em suma, comparando as duas identidades, a pessoal e a coletiva, não se está diante
de uma identidade monolítica e definida mediante um traço único ou uma característica
particular: como mostra Lévi-Strauss, na identidade coletiva da casa o que define as
linhagens não é nem uma descendência, matrilinear ou patrilinear, nem uma residência,
matrilocal ou patrilocal, nem um termo de parentesco, tio materno e sobrinho primogênito,
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ou uma forma de casamento, endogâmico ou exogâmico, mas o conjunto dos caracteres e o
sistema de posições, as dualidades dando origem à união dos opostos, assim como formas
mistas, e gerando topologias que podem ser lidas tanto como “dois em um” quanto “um em
dois”.
Agora para concluir, algumas palavras sobre a idéia de universidade avançada e a
proposta do IEAT. No meu modo de ver, os exemplos assinalados dão uma idéia bastante
precisa do conhecimento avançado e dos desafios que o incitam, envolvendo o esforço de
vencer barreiras, cisões e dicotomias, assim como a necessidade de adotar a justa
perspectiva capaz de dar uma visão unificada das coisas. É em busca desta visão que
assistimos a Lévi-Strauss introduzir o conceito de casa e solicitar a colaboração dos
etnólogos, lingüistas e historiadores na construção do dito conceito, colocando em relevo as
relações existentes entre os diversos institutos, órgãos e mecanismos da estrutura social
(LS, op. cit., p. 177). Ora, é justamente aqui que a idéia de universidade avançada tem
razão de ser, ao colocar no centro da pesquisa, para além do ensino e da extensão, as idéias
de conhecimento avançado e de alargamento da fronteira do saber. Para dar corpo e lastro à
idéia de universidade avançada em nosso meio, eu digo em nosso país e na UFMG, o
modelo não deverá ser buscado nas universidades americanas, que se deram bem no desafio
de instalar uma universidade de massa, mas se enlouqueceram, em razão do produtivismo.
Nem, igualmente, nas universidades européias, que se deram mal e estão combalidas,
sequer nas universidades asiáticas, que mal começaram e deverão enlouquecer-se ao seguir
os passos das americanas. Mas deverá ser buscado e construído aqui mesmo, de olho
naquilo que de melhor encontrar alhures e reconhecer em outras. Uma condição é não
esquecer que as universidades, como as sociedades políticas, depois de fundadas, devem ser
re-fundadas mais de uma vez, para dar conta dos desafios do tempo. Outra condição é não
perder o ethos e a alma. Ora, a UFMG ainda tem o ethos, mas está perdendo a alma, e isso é
perigoso. Para salvar o que sobrou do ethos e proteger a pesquisa avançada das ameaças da
banalidade do dia a dia e do pragmatismo predador da prestação de serviços, a saída poderá
ser a criação de nichos especiais, resultando dessa ação a fundação de várias universidades
dentro da Universidade. Ora, é lá no meio desses nichos do saber e centros de excelência,
verdadeiras catedrais da pesquisa avançada, aliando o ethos acadêmico e a alma da
universidade, que iremos encontrará o IEAT.
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Referências
LÉVI-STRAUSS, C. La voie des masques. Paris : Plon, 1979.
Newsweek, Aug. 21, 2006 / Aug. 28, 2006.
PENA, S. “Ciência, bruxas e raças”, in: Folha de São Paulo, 02/08/2006, p. A3.
SEN, A. Identity and Violence. W. W. Norton, 2006.
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