Baixe o PDF - Revista Rosa

Transcrição

Baixe o PDF - Revista Rosa
14
Todos Podem
Ser Frida
8
INÉDITOS
As Asas
divórcio, uma
12 Um
história verdadeira
ou quase
10
ARTE
Reynaldo Candia
24 João Gonçalves
54 Homo Riot
70 Ricardo Lima
86 Francisco Conrado
78
CONTO
aluga-se mártires [sic]
40
62
MANIFESTOS
Falo pela minha
diferença
Sou
46
DOSSIÊ GILDA
Depoimento
20
ENTREVISTAS
Laerte
Samie Carvalho
49 Viado
houve uma
51 Nunca
mulher como Gilda
52 Gilda
30
64 Pedro Costa
Revista Rosa
Arte e literatura de temática queer
Novembro 2013
Organização/ Execução
Felipe Miguel
Editores
Felipe Miguel
Thiago Barbalho
Projeto Gráfico e Diagramação
Liziane Sutile
Capa
Zé Otávio
Arte
Homo Riot
João Gonçalves
Reynaldo Candia
Ricardo Lima
Ilustrações
Jéssica Albuquerque
Zé Otávio
Textos
Alejandra Rojas Covalski
Antonio Thadeu Wojciechowski
Caco Ishak
Ivan Justen Santana
Jozias Benedicto
Leco Vilela
Lívia e os Piás de Prédio
Marcelino Freire
Pedro Lemebel
Wilson Bueno
Entrevistadores
Felipe Miguel
Thiago Barbalho
Fotografia
Camila Fontenele de Miranda
Francisco Conrado
Lex Mendes
Website
Juliano Luiz Fernandes
Liziane Sutile
Mande suas críticas e sugestões para
[email protected]
Editorial
Felipe Miguel
Chegamos à terceira edição. Porém, com algumas mudanças. Para começar, a
Rosa deixa de ser trimestral e passa a ser publicada três vezes ao ano. Duas razões
simples: conciliar melhor a revista com outras atividades dos organizadores e dar
passos mais bem dados. O lançamento do site novo é um desses passos firmes, e
deve acontecer dentro em breve.
A mudança na periodicidade da Rosa também acaba sendo estratégica, já que
ela será lançada, desta vez, no mês em que acontecem a Balada Literária, evento
organizado anualmente pelo escritor Marcelino Freire, em São Paulo, e o Festival
Mix Brasil, em SP e RJ.
Neste número, você encontra pelo menos três nomes que estarão presentes
nesses eventos: além de um trecho inédito do primeiro romance de Marcelino
Freire, há também o forte poema-manifesto de Pedro Lemebel, “Falo pela minha
diferença”. O poeta chileno participará do Mix Brasil com uma de suas famosas
performances, no Centro Cultural São Paulo.
Como se não bastasse, a Balada Literária deste ano homenageará Laerte, que está
na capa desta edição – produzida pelo grande ilustrador Zé Otavio –, e também
responde à Rosa algumas perguntas sobre quadrinhos, política e discussões de
gênero e sexualidade.
Além de Laerte, outra cartunista brasileira se destaca na terceira edição da Rosa,
enviando suas respostas diretamente da Terra do Sol Nascente: Samie Carvalho,
criadora de Sasha, a Leoa. E para provar que adoramos uma entrevista, Pedro
Costa, do Solange Tô Aberta, conversou com Thiago Barbalho sobre funk,
questões queer e sua vida na Alemanha. A matéria conta com fotografias de Lex
Mendes.
Juntam-se aos quadrinhos e às entrevistas as artes de Ricardo Lima, Reynaldo
Candia, João Gonçalves, Francisco Conrado e do gringo Homo Riot. Tudo isso
aliado ao sensível ensaio fotográfico do projeto “Todo podem ser Frida”, de Camila
Fontenele de Miranda.
Quem não dispensa as letras pode se deliciar com um conto inédito de Jozias
Benedicto, que estará presente no livro “Estranhas criaturas noturnas”, a ser
lançado ainda em novembro. O conto “aluga-se mártires (sic)”, de Caco Ishak,
fecha a edição, precedido por uma espécie de manifesto escrito por Leco Vilela e
ilustrado por Jéssica Albuquerque.
Para completar o conteúdo textual da Rosa #3, há um mini dossiê sobre Gilda,
figura sem teto, sem gênero e sem pudor que agitava Curitiba nas décadas de 70
e 80. De barba espessa, batom e vestido, Gilda ameaçava toda a normatividade
machista dos transeuntes da Boca Maldita com uma única frase: um trocado ou um
beijo? No dossiê você encontra Wilson Bueno (que prazer!), Thadeu Wojciechowski,
Ivan Justen Santana e uma canção da banda curitibana Lívia e os Piás de Prédio.
E que venha 2014!
Colaboradores
Essa galera mora em nossos corações róseos.
Reynaldo
Candia
é
paulistano, artista visual
e trabalha com objetos e
realiza colagens, recortes
e desenhos. Esses objetos
na maioria das vezes são
descartados ou esquecidos
pelos seus donos, na sua
pesquisa se interessa pela
memória afetiva, acumulação
e repetição.
Jozias Benedicto é escritor,
editor e artista plástico. Vive
e trabalha no Rio de Janeiro.
Seu livro de contos “Estranhas
criaturas noturnas” foi finalista
no Concurso SESC de Literatura
2012/2013 e será lançado pela
Editora Apicuri, em novembro
de 2013.
Camila
Fontenele
de
Miranda, vinte e poucos anos,
fotógrafa de alma e coração.
Gosta de cores, Bob Dylan e
tem uma gata chamada Anita.
Alejandra Rojas Covalski ,
Lex
Zé Otávio nasceu em Olimpia
interior de SP. Trabalha com
ilustração. Faz parte do grupo
SketchJazz,
onde
vende
originais e gravuras, e da PLUS
Galeria. Recentemente teve
material incluído no volume
“Illustration Now!, da Taschen.
Ricardo Lima é médico, artista
inquieto, sem saber o que
não deseja, vive pelo que vê
e é apaixonado pelo que está
oculto.
Mendes nasceu em
Salvador e vive em São Paulo. É
fotógrafo e jornalista e tem um
trabalho voltado para o registro
da vida noturna paulistana.
Acesse lexmendes.tumblr.com
Leco Vilela gosta de
escrever, fotografar, ouvir
música, devorar filmes e
rabiscar livros. Já trabalhou
na revista Dynamite, na
MTV Brasil e é autor do blog
literário Nome da Coisa.
chilena, professora da UFFS
(Universidade
Federal
da
Fronteira Sul). Além da atividade
docente, dedica-se ao estudo,
tradução e divulgação da
obra do escritor chileno Pedro
Lemebel.
Jéssica Albuquerque é
designer gráfica e ilustradora.
Adora estudar sobre novas
tendências e cozinhar. Viciada
em graphic novels e webcomics,
gosta de criar trabalhos à mão.
João Gonçalves é artista
visual natural de Porto
Alegre. Vive e trabalha em
São Paulo há uma década e
expõe regularmente desde
2011.
Marcelino Freire nasceu em
Sertânia (PE) e vive em São
Paulo desde 1991. É autor,
entre outros, dos livros “Angu
de sangue” (Ateliê) e “Contos
negreiros” (Record, Prêmio
Jabuti 2006), além de criador
da Balada Literária.
Francisco Conrado Nascido em
Porto Alegre em 1983, perdido
em Curitiba desde 2013 e
ansioso pelas surpresas do
futuro. Apaixonado por música
e fotografia. Cantor. Pedalador.
Criador de unicórnios.
Pedro Lemebel escritor, artista
visual e fundador do coletivo
Yeguas
del
Apocalipsis.
Traduzido para inglês, alemão,
italiano e francês, é vencedor
da
bolsa
da
Fundação
Guggenheim, foi convidado
para Harvard e homenageado
em Havana. Possui livro de
crônicas e a novela “Tengo
miedo torero”.
Caco Ishak é escritor, jornalista
e tradutor. Nasceu em 1981, em
Goiânia, e cresceu em Belém.
Teve textos publicados em
diversas coletâneas, revistas
literárias e antologias. Publicou
“Não precisa dizer eu também”
(2013) e “Dos versos fandangos
ou a má reputação de um
estulto em polvorosa” (2006),
ambos pela 7Letras.
Lívia e os Piás de Prédio
Ivan Justen Santana, poeta,
tradutor e professor. Curitibano.
foi criada por quatro amigos
e jornalistas que tinham em
comum o interesse pela música
e por Curitiba. Lançaram
dois discos de composições
autorais.
Wilson
Bueno
é
autor,
entre outros livros, de “Mar
Paraguayo” (1992), novela
publicada e antologizada em
inúmeros países, dos bestiários
“Manual de Zoofilia” (1991) e
“Jardim Zoológico” (1999), e do
romance “Amar-te a ti nem sei
se com carícias” (2004).
Antonio Thadeu Wojciechowski
é poeta, compositor de mais
de mil canções, publicitário e
professor. Autor de 32 livros,
entre eles: “Assim Até Eu”,
“Koan do Como Onde”, “Crime”, “O dia em que matei
Wilson Martins” e outros.
Homo Riot é um artista de
rua, ativista, punk e libertino
residente em Los Angeles.
Seu trabalho pode ser visto
nas ruas de diversas cidades,
como Los Angeles, Nova
York, Londres e Paris. Siga
seu instagram: @homoriot,
ou twitter: @thehomoriot.
Estrela quando entrou a boate inteira parou, todo mundo a chamava de Deusa,
um grupo fez um círculo em torno dela, o palco ficava no chão, ela desfilava entre as
mesas, boquiabertas, soltava a voz, não dublava, havia uma gravação apenas com os
instrumentos, eram dela, ao vivo, os gritos e trejeitos de Carmen Miranda.
[ As asas ]
Por que as travestis se parecem comigo, pensei, Estrela era mais velha do que
eu tinha imaginado, cheguei a apostar que fosse ela uma garota, sei lá, os peitos
ainda estivessem no lugar, as roupas fossem mais modernas, no entanto ela era uma
dama, uma cantora de rádio, enfeitada de plumas, subia as mãos ao céu, mostrava os
anéis, os colares magníficos, as falsas pérolas.
O show demorou uns quarenta minutos, depois ela retornou, esvoaçante, às
mesas, pessoas puxavam cadeiras para ficar em sua companhia, outras enfiavam
dinheiro entre seus seios, montados, ela agradecia com um beijo rápido nos lábios
do público.
Preparei o meu ataque, a mesa em que eu estava era embaixo da escada, a
mais escondida, que é para onde vão os machos que não se assumem, os maridos
infiéis, padres e coronéis, figurões, não era esse o meu caso, é que o meu assunto
necessitava de sombra, como se estivéssemos embaixo de uma árvore, em um parque
de diversões.
Fiz um sinal, modesto, e Estrela veio, antes chegou até mim o seu cheiro de
perfume, seguido do brilho do vestido, cafona, que a apertava por inteiro, pus em sua
mão uma ótima quantia e fui logo, firme, direto na veia, sem arrodeios, eu sou amigo
de Cícero.
Cícero, o nome do boy morto fez um estrondo, paralisante, Estrela se sentou
imediatamente à minha frente, mal deu tempo de agradecer a grana, você sabe que
ele morreu, mataram ele, não sabe, alguém muito covarde, eu cansei de avisar para
ele não se meter em coisa que não prestava, não era nenhum anjinho o capetinha, ela
me encarou, ironicamente, esse mundo é assim, meu bem, e você, meu senhor, quem
é que é?
Marcelino Freire
Eu sou Heleno, estou aqui para saber da família do rapaz, eu quero, eu tenho o
dever de dar destino ao corpo, para isso preciso entrar em contato com alguém, daí
fiquei sabendo que só você pode me ajudar, depende de quanto eu vou levar, ela me
disse e repetiu, esse mundo é assim, meu bem, me procure amanhã, aqui mesmo, em
cima da boate, viu, é onde eu vivo, é só chegar e perguntar por mim, no final da tarde,
não me venha muito cedo, e se despediu, da mesma forma como veio, Estrela e Diva,
sem nenhum beijo, sumiu.
[Trecho de “Nossos Ossos”, o primeiro romance do contista pernambucano Marcelino Freire, com
lançamento previsto ainda para este ano pela Editora Record, por onde o autor lançou, entre outros,
o livro “Contos Negreiros”, Prêmio Jabuti 2006. Para saber mais, acesse:
marcelinofreire.wordpress.com]
Reynaldo Candia
eucomeles
eucomeles
eucomeles
eucomeles
Jozias Benedicto
Um
divórcio,
uma
história
verdadeira
ou quase
Eles casaram muito jovens, ela fez questão de deixar registrado nos autos. Ela
casou virgem, e quando falou sobre isso enrubesceu. Ele quis deixar claro, bem claro,
de que se dependesse dele, não se separariam, nunca. Nunca.
Meu pai era muito rico e ele era apenas um engenheirinho, ela disse, e ele foi
o meu primeiro e único homem e conquistou a confiança do meu pai e por isso ficou
com a empresa e o dinheiro todo que era meu e de minha família, e por isso eu quero
acabar com a vida dele, quero deixar ele sem nada.
Nós casamos muito jovens, ele contou, ela uma menina mimada, e o pai um
louco, gastava o que as empresas não rendiam, ia perder tudo com as amantes
jovenzinhas se eu não tivesse ajudado a controlar, a diminuir as despesas e a investir,
graças a meu trabalho é que os negócios foram pra frente, ela teve esta vida de perua,
dondoca, Daslu, eu pagava todas as contas, e queria continuar assim, um divórcio é
traumático, dividir os bens, fortuna nenhuma resiste.
Ela falou, as mensagens no celular. Nunca tinha desconfiado até ler as
mensagens, os torpedos, os e-mails, os WhatsApp, os Viber, sem contar outros
aplicativos piores. Piores. Se fossem mulheres. O senhor sabe que existe um tal de
Grindr, que mostra homens a fim de sacanagem, sacanagem entre homens, uma
coisa nojenta, o que querem fazer e a distância que estão e eles então se trocam
mensagens? mensagens sujas? fotos também, tudo isso no celular dele, foi fácil, só
entrar, a senha é fácil, ele é bobo, um engenheiro, um empresário, mas é tão bobo, a
senha do celular é o numero do telefone fixo de nossa casa, de minha casa, eu entrei
no celular dele e vi as mensagens todas.
Ele retrucou, ela está fazendo uma tempestade com as mensagens arquivadas
no meu celular. Algumas poucas podem até ser de verdade, outras são brincadeiras.
Brincadeiras, um celular hoje em dia é como um joguinho, relaxa a tensão e se diverte
trocando. Mensagens. Eu digo que um homem precisa se divertir. Ela é fria. Ela só
goza com uma bolsa Louis Vuitton entre as pernas. Casamos muito jovens. Um homem
como eu precisa expandir as empresas, expandir os interesses, até os sexuais. Depois
de uma certa idade. Não vou negar. Que tenho. Interesses. Por alguns. Rapazes. Mas
isso nunca perturbou meu relacionamento com ela, minha mulher, esposa, mãe dos
meus filhos, continuo o provedor de sempre. Tudo o mais é uma brincadeira, uma
diversão, mas o casamento é sagrado.
Ela diz, eu quero acabar com a vida dele.
Ele diz, o casamento é sagrado.
TODOS PODEM
SER FRIDA
Camila Fontenele de Miranda
Comecei esse projeto no meio do ano passado e
percebi, desde a primeira foto que postei no meu
Facebook, que esse trabalho teria um rumo diferente.
Então resolvi dividi-lo em cinco partes: FRIDA POR
INTEIRO, O AMOR DE FRIDA, A DOR DE FRIDA,
AS CORES DE FRIDA e O ABORTO DE FRIDA, que
para mim são momentos muito profundos na vida da
artista.
Lembro-me do fragmento O AMOR DE FRIDA, onde
sentei numa pracinha com o artista Fábio Florentino
e com os modelos. Ficamos com os livros da Frida na
mão, conversando. O céu que ficava preto porque ia
cair um temporal e, certos minutos depois, estávamos
correndo daquela água toda. No final, não tínhamos
ideia de que o projeto ganharia esse rumo. Tudo foi
feito com carinho, amor e simplicidade.
Para cada fragmento eu convidei um artista plástico
e uma pessoa do sexo masculino para posar. Cada
artista teve todo o direito de se expressar e a sua
própria maneira de trabalhar diante das referências
trocadas durante a pré-produção e as reuniões.
Tudo foi feito de forma colaborativa, e digo que tem
muita alma em todo o processo.
O universo de Frida Kahlo me inspira em todos os
sentidos, como em ser uma mulher forte, sem medo
do que a sociedade vai pensar, e também em como
mostrar algum tipo de sentimento bom. Aprendi a
fazer o meu trabalho de dentro pra fora, de forma
visceral.
Mais imagens e informações:
https://facebook.com/ProjectTodosPodemSerFrida
http://todospodemserfrida.tumblr.com
ENTREVISTA
Em 1956, Flávio de Carvalho desfilou pelo centro da cidade de São Paulo
vestindo mini-saia e blusinha de mangas curtas e folgadas. O “New Look” da
“Experiência #3”, como atestou o modernista, estava muito mais apropriado
ao clima do verão brasileiro. Mas talvez o traje não estivesse pronto para a
sociedade paulistana/brasileira, que seguiu absorta o arquiteto em sua polêmica
caminhada.
Mais recentemente, outra personalidade de São Paulo tem se apresentado
- desta vez não como expressão artística, mas de gênero e de vida - com
vestimentas consideradas femininas: Laerte, um dos principais nomes do
quadrinho brasileiro.
A expressão de gênero da quadrinista gerou uma série de discussões
sobre o tema e inevitavelmente contribuiu para as atuais manifestações
públicas a favor da liberdade individual. Aos poucos, parece mais aceitável a
ideia de que a discussão em volta de gêneros busca uma sociedade ainda
mais próxima do que se idealiza como uma vida livre. Em contrapartida, uma
multidão anda por aí se dizendo não preconceituosa para, em seguida, bradar
contra comportamentos públicos como o de Laerte, ou mesmo contra a troca
de carinhos entre pessoas do mesmo gênero – práticas antes confortavelmente
escondidas.
Se, no incício, as primeiras entrevistas e notas sobre Laerte atribuíam à
sua pessoa o título de crossdresser, agora não há mais o que discutir: “sou
travesti, ou uma mulher experimental”, disse em entrevista para O Globo, neste
ano.
Coincidentemente, uma personagem de seus quadrinhos tem ganhado
bastante simpatia: a Gata. Trata-se de uma gata doméstica que, além de
paraplégica, fala e se comporta como uma mulher jovem e independente. Uma
personagem inevitavelmente queer, se entendermos isso como “o estranho”, o
não aceito, o desviado.
O que será que Laerte pensa desse estremecimento de preconceitos e
morais que anda acontecendo no Brasil? E como ele se vê, enquanto figura
pública, no meio desse momento histórico?
LAERTE
Nesta terceira edição, a Rosa aproveitou para conversar sobre esse e outros
assuntos com Laerte. E antes de prosseguir a leitura, saiba que a quadrinista
também será a homenageada da Balada Literária, evento que acontece entre
os dias de 20 a 24 de novembro, em São Paulo. Não perca!
Como é a produção de séries como a
da Gata, publicada recentemente no
“Manual do Minotauro”? Você já tem
a história pronta antes de começar?
Haverá novas histórias da Gata?
Algumas vezes já tenho uma
pré-ideia, outras não. No caso da série
da gata, essa de agora, comecei sem
grandes planos. Só queria lidar com
algumas emoções conflitantes presentes
na relação humano/bicho. Daí comecei
a lidar com experiências pessoais e
memórias mais doloridas. Não penso
em estabelecer uma série da gata. Só se
pintarem ideias que valham a pena.
Como você vê o mercado digital de
quadrinhos? Você tem vontade de
lançar seus livros nessas plataformas?
Sim, estou com projetos nessa
direção. Ainda está na fase secreta, mas
andando…
No início deste ano você resenhou o
livro “Judith Butler e a Teoria Queer”.
Os livros que debatem as questões de
gênero estão entre suas leituras? O que
você está lendo atualmente?
Como confessei na própria
resenha, tenho dificuldade com textos
de fiolosofia, ou de algum modo
acadêmicos.
Apesar da aceitação, poucas pessoas
falam de você como Sônia, nome que
você adotou junto com o visual. Por
que mudar também o nome? Você se
considera completamente Sônia, às
vezes? Sônia cria tirinhas também?
O pessoal (nos circuitos trans)
adota nome feminino em parte como
exploração de uma identidade que, além
de gênero, envolve a própria identidade;
e em parte como segurança. No meu
caso, achei que não fazia muito sentido,
uma vez que eu já sou conhecida como
Laerte, gosto do nome e achei pelo
menos um registro desse nome em uma
mulher — a senhora Laerte Soares de
Oliveira.
É verdade que você tem se vestido de
mulher em caráter experimental? Não é
definitivo pra você?
É definitivo, sim. O que eu disse,
em algum lugar, foi que era uma “mulher
experimental”. Trata-se de uma gracinha,
assim como dizer que sou uma mulher,
“categoria aspirante” ou que tenho
“dupla cidadania” etc.. Estou tentando
desajustar os conceitos de “mulher”, de
“homem”, de “masculino” e “feminino” —
só isso.
Quando você começou a aparecer como
transgênero, alguns jornais e revistas se
referiam ao seu comportamento como
crossdresser. Mas antes da questão
visual se tornar pública, imagino que
você já tivesse vontade de expressar
sua “feminilidade”. Você conseguia
fazer isso de algum modo?
Hoje, não me afirmo mais
“crossdresser”, gostaria de deixar claro.
Sim, muitas vezes cortejei elementos
do que é tido como a parte feminina
da cultura, ao longo da vida. Em alguns
contextos, esse desejo foi mais agudo
e perturbador - o que me fez fugir dele.
Agora, finalmente, acho que todas as
pontas estão se encontrando. E não
acredito que esteja expressando minha
feminilidade, porque não levo esse
conceito muito a sério.
Na primeira edição da Rosa, Glauco
Mattoso
escreveu
um
soneto
falando sobre como é comum que
intelectuais gays por alguma razão
escondam sua sexualidade, e que
depois de “imortalizados” a eventual
homossexualidade deles vira uma
curiosidade, uma espécie de charme
biográfico que, enquanto vivos, eles
não assumem por muitas questões.
Você concorda?
Glauco Mattoso é genial — e
grande sonetista. Nem sempre o que
está expresso num poema é uma tese
para debate — muitas vezes, é uma
construção ideológica mais esquiva e rica.
Não sei se concordo com essa forma de
ler o poema, assim como uma lei geral. O
que posso dizer, da minha experiência, é
que tanto a questão de gênero quanto a
orientação sexual — assuntos diferentes
— foram bem difíceis, para aceitá-los e
para vivê-los. São até hoje.
Temos uma questão sobre os banheiros.
Eles são lugares que incitam práticas
muitas vezes liberais e até ilegais, como
a masturbação e o sexo casual em local
público. Ao mesmo tempo, eles reforçam
a ideia de que a sociedade está dividida
em apenas dois gêneros. Muita gente
sugere, por isso, a criação de um terceiro
banheiro, mas a medida também pode
ser vista como segregação. Como seria
o banheiro ideal?
Nem todo banheiro público é de
pegação. Os que o são costumam estar
bem demarcados dentro do roteiro
erótico de um lugar. Outro aspecto é o
da divisão por gênero. É fato, sim - tanto
nas instalações “de bem” quanto nas
de pegação. A criação de um terceiro
banheiro só serve pra separar das pessoas
consideradas normais a população
considerada bizarra, diferente, anormal.
O que parece ser, na mente liberal,
uma “solução justa” é a consagração
definitiva da segregação. A prova disso
é que os projetos apresentados em
geral mencionam que tais banheiros não
devem ser frequentados por “crianças
desacompanhadas”. Mais descaramento
é impossível.
Já soube de alguns professores de
Ensino Médio usarem suas tirinhas
em aulas. Pensando nesse ambiente
de cobrança social constante que é a
escola, você, como figura pública, acha
que tem algum recado que gostaria de
dar em especial pra adolescentes que
sentem vontade de se comportar como
o sexo oposto?
Minhas tiras são bastante usadas
em livros didáticos — vendo direto para
as editoras. Nem todas elas (tiras) fazem
o discurso da liberdade de gênero, claro.
O que eu diria para adolescentes? Diria
que não existe “sexo oposto”. Não são
opostos, isso precisa ser entendido.
Diria que os comportamentos de gênero
são construções culturais, que variam
conforme o lugar e a época — e que
o nosso lugar e época já estão super
prontos para uma mudança que acabe
com o sufoco!
“O que eu diria para
adolescentes? Diria que não
existe ‘sexo oposto’. Não
são opostos, isso precisa
ser entendido. Diria que os
comportamentos de gênero
variam conforme o lugar
e a época — e que o nosso
lugar e época já estão super
prontos para uma mudança
que acabe com o sufoco!”
João Gonçalves
[email protected] | gonssa.tumblr.com
ENTREVISTA
SAMIE
CARVALHO
Como você começou a divulgar seu
trabalho?
O trabalho da Sasha era divulgado
pelo endereço http://sashalioness.
tumblr.com/. Por sugestão de uma amiga,
resolvi fazer uma página no Facebook
e um blog no Blogger. A página no
Facebook resiste, mas o blog foi retirado
do ar pelo Google inexplicavelmente.
Geralmente, o público no Tumblr é mais
internacional e de falantes da língua
inglesa (antes, a Sasha era publicada só
em inglês). Já no Facebook, a maioria
dos leitores é composta por brasileiros. A fanpage da personagem Sasha tem
mais de 5 mil likes. Como você chegou
a tanta gente?
Sinceramente, eu não sei. A Sasha
começou como uma forma de eu botar
pra fora alguma das minhas frustrações.
Achei que não ia passar da #03, mas
nesta semana já estou planejando a
#30! Tive o apoio dos amigos que estão
sempre compartilhando as tirinhas e isso
ajuda bastante. Sem eles, nada disso
seria possível. Além dos meus leitores, é
claro! Cada compartilhada faz com que
no mínimo mais 50~100 pessoas vejam
o meu trabalho. Acho que se não fosse
a política restritiva de divulgação do
Facebook, a Sasha já estaria nos 10 mil.
Aquela HQ do Dash Shaw, “Umbigo
sem fundo”, é bem queer também, né?
Mas de uma maneira que não passa por
sexualidade. Ele é só um personagem
esquisitão, um cara com cabeça de
sapo, no meio de uma família comum.
Tem a ver com sua personagem Sasha?
Na verdade eu não conhecia o
Dash Shaw até começar a me envolver
mais com o universo queer e trans. Preciso
conferir. A personagem Sasha tem mais
a ver com o Marco “Porco Rosso”, da
animação “Porco Rosso”, de Hayao
Miyazaki, no sentido de que a Sasha não
é exatamente uma leoa “de verdade”. O
“ser leoa”, se ver como leoa e ser vista
como tal é apenas uma metáfora para a
forma desumanizadora como ela é vista
pela sociedade e por si mesma. Tanto por
questões de transfobia e preconceito,
quanto dificuldade de auto-aceitação.
Além de ser também um eufemismo para
termos como “transexual/travesti/queer”.
É uma forma de representar
metaforicamente a dificuldade e, às
vezes, impossibilidade das pessoas
que não são cisnormativas passarem
despercebidas na sociedade. Gays,
lésbicas e bissexuais podem, na maioria
esmagadora dos casos, viver seu dia a
dia sem que as pessoas necessariamente
saibam que eles o são, e assim sofrem
quantitativamente menos situações
constrangedoras e de preconceito. Mas
ser trans, queer ou mesmo cis, mas sem
se encaixar nos padrões cisnormativos,
é algo que não se “omite” da mesma
maneira. Você tem que estar pronta pra
dar a cara a tapa todo dia a partir do
momento que põe o pé pra fora de casa.
E pra aguentar isso, tem que ser forte,
corajoso e valente. Nesse sentido tem
que ser como um leão (leoa, no caso da
Sasha).
Fora isso, tem a jogada da juba,
que é uma brincadeira com o fato de que
nos leões o cabelo comprido é símbolo
de “masculino”, enquanto que o cabelo
curto seria “feminino”. Exatamente
o oposto do que acontece com nós,
humanos. Sendo a Sasha uma leoahumana, a coisa fica bem interessante.
Quem são os artistas que você admira
que também mexem com gênero?
A primeira artista que eu curti
por conta de brincar com a coisa de
gênero foi a Takahashi Rumiko, autora
do mangá Ranma 1/2, do qual sou super
fã. Curto demais também os trabalhos
do Hayao Miyazaki, Togashi Yoshihiro
(Yu Yu Hakusho), Watsuki Nobuhiro
(Rurouni Kenshin) e CLAMP (Rayearth).
Isso só pra citar os japoneses. Gosto
muito da forma como eles encaram os
conceitos de gênero e a quebra deles.
Apesar de passar a impressão de ser
uma sociedade conservadora (e são),
os japoneses paradoxalmente são bem
mais livres em relação a isso, e encaram
com muito mais naturalidade questões
como travestismo e transição entre
gêneros. Curto também alguns mangás
independentes do gênero Seitenkan (性
転換), ou gender bender.
Rola uma troca com outros artistas
com inquietações parecidas? Tem uma
menina em São Paulo, a July “GLS
Rocker” Albuquerque, que é trans e
também faz um mangá trans, já viu?
Bem, eu sou meio “autista-social”
no sentido de que saio pouco de casa.
Levando em consideração que ainda
moro do outro lado do mundo. Não tive a
oportunidade de conhecer o trabalho da
July, mas fiquei curiosa. July, onde está
você?
Você participa de discussões políticas
sobre esses assuntos?
Participo em grupos e fóruns pela
internet. Às vezes escrevo um artigo aqui
e ali e me envolvo na medida do possível,
mesmo estando tão longe.
Muita gente tem a impressão de que o
Japão é um país mais severo do que o
Brasil. Porém, você disse, em seu Tumblr,
que sente menos preconceito de gênero
nesse país do que no Brasil. Como é a
sua vida por aí? O Japão tem políticas
ou costumes mais avançados do que o
Brasil em relação à transexualidade?
Dizer que o Japão é um país
“severo” é um termo complicado. Sim,
eles são mais rígidos que os brasileiros em
relação a leis, respeito à individualidade
e ao espaço do outro, sem abrir mão do
senso de coletividade. Sim, os japoneses
são “conservadores”, mas você deve se
perguntar: conservadores em relação ao
quê?
A cultura deles tem uma
origem completamente diferente da
brasileira. Ao contrário do Brasil, aqui
não existem os famosos “valores
cristãos” com todos seus tabus relativos
à sexualidade. É uma mecânica social
bem diferente. Infelizmente — e
especialmente depois da Segunda
Guerra, por influência norte americana
—, os japoneses assimilaram alguns
aspectos “ocidentais”, principalmente em
relação a certas visões políticas e seus
reflexos na sociedade. Isso faz com que,
apesar de tudo, quando tenho que lidar
com assuntos “oficiais” que envolvam
documentos, as coisas não são tão
simples, visto o legalismo dos burocratas
japoneses.
Ser conservador com valores
japoneses e ser conservador com
valores brasileiros não é exatamente a
mesma coisa. As pessoas têm tendência
de “medir” o Japão usando uma “régua
brasileira”, o que não funciona. Eles
têm uma cultura milenar e que às vezes
parece até ser paradoxal. Mas, com o
tempo, você percebe que faz sentido.
Eu mesma só comecei a entender
o Japão como cultura depois de uns 4
ou 5 anos morando aqui. Isso porque
eu falo, leio e escrevo japonês com
fluência. O que infelizmente é a exceção
para a maioria dos brasileiros que
vivem aqui. A maior parte deles vive
alienada em comunidades fechadas de
brasileiros, assistindo à Globo pela TV
a cabo e frequentando apenas espaços
brasileiros, usando um japonês básico,
apenas pra dar conta das coisas triviais.
Isso contrubuiu para o desentendimento
entre as partes.
Não diria que os japoneses tem
costumes “mais avançados” por que,
de novo, é um termo complicado. Mas
digo sim que eles são infinitamente mais
educados e respeitosos em relação ao
outro do que a maioria dos brasileiros.
Aqui existe uma coisa chamada
“meiwaku no bunka (迷惑の文化)”, ou
“Cultura do Estorvo”, que nada mais é
que você respeitar o espaço alheio e
evitar ao máximo incomodar o outro.
O famoso “minha liberdade termina
quando começa a do outro”. Eles levam
isso muito a sério por aqui e isso faz com
que as pessoas tenham uma liberdade
enorme dentro do espaço delas.
Por exemplo, falar ao telefone ou
escutar música alta (mesmo com fones
de ouvido) dentro de trens e ônibus
são ações terminantemente proibidas,
e eles chamam sua atenção de forma
rígida e ríspida se você o faz. Mas, em
contrapartida, você vai ver em Tokyo
homens barbado vestidos de Lolita
andando pela rua, fazendo compras
ou comendo em restaurante sem que
ninguém o incomode por isso, afinal é o
espaço dele. Se ele quer usar um vestido
e não está incomodando ninguém, eu
não tenho direito de ditar o que ele deve
ou não deve fazer. E se intrometer na
vida alheia — seja com xingamentos,
brincadeiras ou gozações — em público
é algo muito mal visto.
Além disso, existem outras
questões em paralelos, como eu disse.
As leis aqui são bem rígidas e a polícia
extremamente
eficiente.
Violência
física dá de 10 a 15 anos de prisão.
Assassinatos levam à prisão perpétua ou
pena de morte. E as prisões japonesas
não são brincadeira. Logo, casos como
vemos no Brasil de agressões físicas e
até assassinatos contra homossexuais e
transexuais são inimagináveis aqui.
Existe também o fato de que
o travestismo é algo muito presente
na cultura japonesa antiga, desde os
“onnagata”, do teatro Kabuki, até as
famosas atrizes do grupo de teatro
“Takarazuka”. Aqui existem travestis e
transexuais na TV como apresentadoras,
cantoras, comentaristas políticos... Os
japoneses encaram o transexualismo
da seguinte forma: contanto que você
respeite as regras sociais convencionadas
pra determinado sexo, não há problema
em transicionar. O que faz com que às
vezes seja menos problemático ser
transexual que homossexual.
As leis japonesas, por exemplo,
aceitam que transexuais façam a
mudança de nome e sexo nos registros
oficiais, mas o casamento entre pessoas
do mesmo sexo ainda é um tabu que
eu não vejo se tornar realidade tão
cedo, infelizmente. Talvez depois que
todos os países de primeiro mundo,
principalmente os EUA, legalizarem o
casamento homossexual por completo,
os políticos japoneses resolvam fazer
algo a respeito.
Enquanto trocávamos mensagem eu
te chamei, sem querer, de Sasha. Você
nem se importou, aparentemente, mas
eu senti que pisei na bola. Pergunta:
isso aontece com frequência? Você
se incomoda? No que Samie difere da
Sasha,além do fato de que uma delas é
ficcional?
Se estou conversando pelo site da
Sasha, não há problema nenhum em me
chamar de “Sasha”. Gosto de brincar com
o fato da Sasha ser uma personagem
“real” com a qual as pssoas possam
interagir. Até por que, no fundo, a Sasha
sou eu e eu sou a Sasha. A personagem
foi criada e é construída a partir da minha
personalidade, das minhas experiências
e reações frente às coisas que eu encaro
por aí. Nessa medida, a Sasha ainda é
uma personagem muito crua e ainda está
“verde”. Tem muito o que amadurecer
até que eu possa deixá-la ir por conta
própria. Todo esse processo das tirinhas
curtas é uma forma de amadurecer a
personagem, experimentar narrativas,
criar outros personagens e assentar as
bases pra um projeto maior envolvendo
a Sasha e seus amigos. Espero que eu
consiga!
MANIFESTO
(Falo pela minha diferença)
Pedro Lemebel
(Tradução: Alejandra Rojas C.)
Não sou Pasolini pedindo explicações
Não sou Ginsberg expulso de Cuba
Não sou uma bicha fantasiada de poeta
Não preciso de fantasia
Aqui está a minha cara
Falo pela minha diferença
Defendo o que sou
E não sou tão estranho
Me aborrece a injustiça
E suspeito desta lenga-lenga democrática
Mas não me fale do proletariado
Porque ser bicha e pobre é pior
É preciso ser ácido para suportá-lo
É dar a volta nos machões da esquina
É um pai que te odeia
Porque o filho requebra o pezinho
É ter uma mãe com as mãos rachadas pela água sanitária
Envelhecidas de limpeza
Embalando-me no colo quando doente
Por maus costumes
Pela má sorte
Como a ditadura
Pior que a ditadura
Porque a ditadura passa
E vem a democracia
E logo atrás vem o socialismo
E então?
O que farão conosco companheiro?
Nos amarrarão pelas tranças em fardos
Com destino a um sanatório de aidéticos em Cuba?
Nos enfiarão em algum trem a lugar nenhum
Como no navio do General Ibañez1
Onde aprendemos a nadar
Mas ninguém chegou à praia
Por isso Valparaíso apagou suas luzes vermelhas
1 Referência à persecução aos homossexuais durante a ditadura de Carlos Ibañez del Campo, na
década de 30, no Chile. Do “Barco do general” eram lançados amarrados ao mar (nota da tradutora).
Por isso as casas de tolerância
brindaram uma lágrima negra
Às bichas devoradas pelos caranguejos
Esse ano que Comissão dos Direitos Humanos não quer lembrar
Por isso, companheiro, lhe pergunto
Existe ainda o trem siberiano da propaganda reacionária?
Esse trem que passa por suas pupilas
Quando a minha voz fica doce demais
E você?
O que fará com a lembrança dessas crianças
Batendo punheta e mais outras coisas nas férias em Cartagena2?
O futuro será preto e branco?
O tempo em noite e o dia de trabalho sem ambiguidades?
Não haverá uma bicha em alguma esquina
Desequilibrando o futuro do seu homem?
Nos deixarão bordar de pássaros as bandeiras da pátria livre?
O fuzil fica com você
Que tem sangue frio
E não é medo não
O medo foi passando
De tanto esquivar facas
Nos porões sexuais por onde andei
E não se sinta agredido
Se lhe falo dessas coisas
E olho para seu volume dentro da calça
Não sou hipócrita
Acaso as tetas de uma mulher não desviam seu olhar?
Você não acha que sozinhos na serra alguma coisa haveria de nos ocorrer?
Mesmo que depois sinta ódio de mim
Por corromper sua moral revolucionária
Você tem medo de que se homossexualize a vida?
E não falo apenas de enfiar e tirar
Tirar e enfiar
Falo de ternura, companheiro
Você não sabe
O quanto custa encontrar o amor
Nestas condições
Você não sabe
O que é carregar esta lepra
As pessoas guardam distância
As pessoas compreendem e dizem:
É bicha, mas escreve bem
É bicha, mas é um bom amigo
É um cara legal
Eu não sou um cara legal
Eu aceito o mundo
Sem pedir que seja legal
Mesmo assim eles riem
Tenho cicatrizes de risos nas costas
Você acha que penso com a bunda
E que no primeiro ‘pau de arara’ da CNI3
Entregaria os meus amigos
Você sabe que a hombridade
Não a aprendi nos quartéis
Foi a noite quem me ensinou a hombridade
Atrás de um poste
Essa hombridade da qual você se gaba
Você a aprendeu no quartel
De um ‘milico’ assassino
Desses que ainda estão no poder
A minha hombridade não a recebi do partido
Porque fui rejeitado com risadinhas
Muitas vezes
Aprendi a minha hombridade participando
Na dureza desses anos
E riram da minha voz de bichinha que gritava: já vai cair, já vai cair 4
E mesmo que você grite como homem
Ainda não conseguiu mandá-lo embora
Minha hombridade foi a mordaça
Não foi ir ao estádio
2 Praia popular do litoral central do Chile (nota da tradutora)
Pinochet (nota da tradutora)
3 Central Nacional de Informaciones (órgão de inteligência que funcionou durante a ditadura de
Pinochet)
4 Jargão entoado pela multidão de chilenos nas passeatas aludindo à queda do ditador Augusto
E brigar a socos por causa do Colo-Colo5
O futebol é outra homossexualidade velada
Assim como o boxe, a política e o vinho
A minha hombridade foi morder as zombarias
Comer raiva para não matar todo mundo
Minha hombridade é me aceitar diferente
Ser covarde é muito mais duro
Não ofereço a outra face
Ofereço a bunda, companheiro
E essa é a minha vingança
Minha hombridade espera paciente
Que os machos fiquem velhos
Porque a essa altura do partido
A esquerda negocia sua bunda murcha
No parlamento
Minha hombridade foi difícil
Por isso nesse trem não embarco
Sem saber para onde vai
Não vou mudar pelo marxismo
Que tantas vezes me rejeitou
Não preciso mudar
Sou mais subversivo que você
Se dá conta?
Não vou mudar apenas
Porque os pobres e os ricos…
Não me venha com essa
Nem porque o capitalismo é injusto
Em Nova Iorque as bichas se beijam nas ruas
Mas essa parte fica para você
Que tanto lhe interessa
Que a revolução não apodreça totalmente
Para você vai esta mensagem
E não é por mim
Eu estou velho
E sua utopia é para as futuras gerações
Há tantas crianças que nascerão
com uma asinha quebrada
5 Time de futebol chileno (nota da tradutora)
E eu quero que elas voem, companheiro
Que sua revolução
Lhes dê um pedaço de céu vermelho
Para que possam voar.
NOTA: Este texto foi lido como intervenção em um ato político da esquerda
chilena, em setembro de 1986, ao cumprirem-se 13 anos do golpe militar, em
Santiago do Chile.
Tradução: Alejandra Rojas C.
TODOS
SOMOS
GILDA
“Vi Gilda pessoalmente poucas vezes
na Boca Maldita. Eu era criança, achava
estranho, tinha medo: um homem de
barba e de vestido colorido, abordando
as pessoas, pedindo beijos... Depois, ouvi
do poeta Marcos Prado o testemunho da
noite de glória de Gilda. Era estreia de
uma peça de fora, no grande auditório do
Guaíra. Gilda conseguiu entrar no teatro,
e passou desfilando pela frente do palco.
Um cidadão levantou, gritou “Aê, Gilda!”
e puxou aplausos. Quase que por reflexo,
o teatro todo veio abaixo numa salva
de palmas. Foi um breve momento em
que a babaquice curitibana se rendeu à
coragem e à atitude de Gilda. Enfim, ela
morreria espancada, ou de frio, conforme
queiram eufemizar o seu destino. Em
seu tempo, em sua cidade, em sua boca
maldita, nunca houve uma pessoa como
Gilda.”
Ivan Justen Santana, poeta, tradutor e professor. Curitibano.
VIADO*
Wilson Bueno
Viado.
Gilda está na Boca vestido
de mulher. A barba de
uma semana, os trapos, os
andrajos. No pescoço de
homem faíscam, bijuteria,
duas voltas de colar rubi.
O cabelo grosso, oleoso,
sujo de mês, prende
uma grande flor de papel
amarela. Gilda vai rir com
os clientes dentes podres
um riso que há muitos
anos Curitiba não vê. Gilda
não dissimula; ri e isto
chocará o esgar com que o
bacharel vem rindo desde
que se formou na Federal.
Viado.
O riso podre de Gilda é o
de uma boca arreganhada
pintada a batom. Sobre
as calças imundas, não
menos imundo vestido
tubinho de tafetá rosa.
Escardidos
os
dedos
se enfiam na havaiana,
embora o frio de Curitiba.
Na canela perebenta os
pêlos — duros, agressivos.
Não se ouse supor o
que pode o músculo de
seu braço. Mas não é só
com ele que arranca ao
bacharel trêmulo uma
nota de cinquenta; há o
insuportável escândalo do
beijo à força com que a
chantagem se consuma.
Viado.
Impossível chamar a polícia.
Suprema humilhação para
o bacharel da Federal é
publicar em plena Boca
que — não se aventure
— pode apanhar, e feio,
de uma bicha. Teme
também o beijo mas este
se perderá entre tantas,
data vênia, chacotas. Duro
é ser posto ao chão de
terno e gravata. Terrível
tentar levantar-se e levar,
de novo, uma pernada.
Acontecesse assim nunca
mais Curitiba. Quem sabe
o exílio em Catanduva ou a
morte arrepiada a arsênico
no quintal do Juvevê.
Para não imprssionar as
crianças — no galpão —,
de onde só a mulher tem
uma cópia da chave. Este
o maior trunfo de Gilda, e
o seu maior blefe.
Viado.
Um grupo de cinco, meu Deus!, os homens da Fundação. Um deve ser o chefe,
justo o mais magro e velho e que ri de
lado, escondendo o riso com os dedos
muito juntos de uma das mãos. Aos ademanes, forenses, cheios de dedos, caras
e bocas, gestos, Gilda tem que eles é que
parecem mulher. “Ói lá, chegou a patroa
e as puxa-saco dela reunida...” Excessivo
açúcar, o puxa-saco põe no cafezinho do
chefe que, de novo, não esconde o riso
de lado e os dedos juntos no canto da
boca. Só que, agora ri mais alto, para insuflar o ódio dos demais.
Frágil presa, Gilda avança e pega o adulador por trás, no conspícuo ridículo do
mimo explícito — curvo sobre o balcão
ele tenta alcançar a pia para esvaziar do
excesso de açúcar a xícara do chefe.
Então é que Gilda é a mendiga-pantera
de Curitiba: agarrando o puxa-saco,
aplica-lhe uma chave-de-coxa e com a
grande língua lambe dele a nuca, em
sudorese e espasmo, e mobilizando-lhe
os braços, como aprendeu na Queirós
Filho, beija o homem na boca — longa e
demoradamente.
O chefe, num frouxo riso, desarma-se e
o que insistente escondia, no canto do
lábio, era a falta — provisória — de um
canino. Os demais uivam e ganem já
mexendo nos bolsos o pedágio de Gilda
para existir em Curitiba.
Ainda uma vez escaparam.
Viado.
* Texto originalmente publicado no livro “Diário Vagau” (2007) e gentilmente cedido pela
Travessa dos Editores.
Nunca houve uma mulher como
Gilda
(Lívia e os Piás de Prédio)
quinze pras três e quinze
na praça osório o movimento é normal
senhoras de família vão às matinês
quinze pras três e quinze
senhores de boina e as manchetes do jornal
quinze de março de oitenta e três
do alto da glória das causas perdidas ela fala
a mão estendida, um chute na cara
e nunca houve uma mulher como gilda
um trocado ou um beijo na boca maldita
nunca houve uma mulher como gilda
morando no sapato de salto alto
musa dos poetas de bar
rainha esquecida do carnaval
a calçada é um palco
por onde o pública hesita em passar
bolso vazio, vida real
do alto da glória das causas perdidas ela fala
a mão estendida, um chute na cara
e nunca houve uma mulher como gilda
um trocado ou um beijo na boca maldita
nunca houve uma mulher como gilda
filhas da gilda nas ruas do centro
mandam alô pra loira fantasma
quebrando vidro, chutando vento
filhas da gilda cuidando da casa
e nunca houve uma mulher como gilda
um trocado ou um beijo na boca maldita
nunca houve uma mulher como gilda
Gilda
Thadeu Wojciechowski
Vi gilda rindo
Chorando
Não sei onde
Não lembro quando
Gilda não é homem
E nem mulher
Gilda é gilda
Porque pode ser o que quiser
Bailarina
Rainha
Messalina
Mendiga boa de briga
Comam sua bunda
Chupem seu pau
Chutem sua cara
No carnaval
Gilda viva
Curitiba morta
Gilda é um pecado atrás da porta
Gilda mal falada
Gilda bendita
Ainda te mordem
Os dentes da boca maldita
E eu que nunca a amei
De verdade
Hoje sei o quanto dói uma saudade
UM
TROCADO
OU UM
BEIJO
STREET ARTE
DE VIADO
Por Thiago Barbalho
Em Los Angeles, escondido entre arquiteturas
moderníssimas e publicidades megalomaníacas, um
lambe-lambe mostra dois caras se beijando. Por cima da
imagem, as palavras HOMO RIOT. O que é isso?
Em outra parte da cidade, numa caixa de luz, uma bunda
estampada. Um bundão peludo. Eita.
Num banheiro público, entre paus e mictórios, a imagem
na parede de um cara mascarado, feito um lutador
mexicano, pegando no pau. Convidativamente. Que
doideira.
O nome do cara que fez isso, alguém sabe? Procura aí
na internet. Eu googlo, tu googlas, eles googlam. Digita
aí “homo riot” pra ver se aparece alguma coisa. Aparece
sim: um site, um tumblr, uma fanpage no Facebook, uma
entrevista, outra entrevista. Várias entrevistas.
O cara se intitula B. Homo. Mantém o anonimato. Não
mostra a cara. Intervém na metrópole em que vive.
Trabalhou por uns anos na indústria fashion de lá, conta
ele, mas sempre fez street art. Só que nunca com uma
pegada política sobre gênero. Nunquinha. Até que
pisaram no seu calo: uma votação local pra liberar o
casamento gay foi um fiasco. Pode não, disseram: homem
com homem: pode não. Mulher com mulher: nem pensar.
Senvergonhas. Que audácia.
B. Homo ficou puto. Se viu em casa à noite com uma
raiva que dizia pra ele mesmo: faz alguma coisa, cara,
reage. Ecoava na mente: você não vai fazer nada? Então
ele esboçou uns desenhos furiosos. Traçou sua revolta
pensando que tinha que explodir um motim gay naquela
cidade. Uma reação, uma violência, uma contracorrente
que pulsasse a sexualidade proibida. O amor impedido.
Preparou lambe-lambes em cores chapadas de homens
pelados, de homens se beijando, de homens mostrando
o pau. A expressão HOMO RIOT veio naturalmente: como
uma base: MOTIM GAY. Em maiúsculas. Em inglês. Vamos
à guerra. Vamos ofender.
O cara foi lá e colou. Colou mesmo. Em vários locais
públicos. A internet, essa bênção anarquista, começou a
espalhar as fotos que os transeuntes tiravam. Facebook,
Tumblr, Instagram: #queer, #streetart, #homoriot,
#losangelesqueer.
Pô, que legal. Vou mandar um e-mail pra esse cara. Vou
pedir pra ele enviar fotos pra ROSA. Título do e-mail:
ROSA PINK HOMO RIOT.
Hi Homo, sou seu fã e faço uma revista queer no Brasil. Vi
que tem uns estênceis seus no Rio. Vi no seu Instagram.
Hi Thiago! Obrigado. Já fui ao Brasil, sim. Mas
também tenho amigos por lá e às vezes mando material
pra eles colarem.
E o que você anda fazendo agora? Pra onde tá indo sua
arte?
Eu tenho criado novos estênceis. Fui convidado pra
várias exposições em galerias também. Sobre street art,
queer art. Aceito.
Não tem razão pra não levar isso aonde houver espaço,
né? Dentro ou fora dos muros.
É. Eu já tive várias mostras em galerias. E estou
espalhando uns cinco ou seis tipos diferentes de estênceis
e adesivos pelas ruas.
Massa! Manda alguma coisa inédita pra gente colocar
na ROSA? Alguns registros de sua arte pelas ruas de L.A.
Claro, Thiago, será um prazer. Curti a revista!
Que bom, Homo! Vou preparar um texto que fale um
pouco sobre suas paradas.
Here are the pictures.
Thanks a lot. We’re all a big riot now.
Sou
Sou aquele que não chora e que não pode chorar.
Sou aquele que te entrega a rosa, mas nunca recebe.
Sou aquele que assim como outros milhares, apenas fornece o pão.
Sou aquele que quando o pau falha tem a identidade roubada.
Sou aquele que sempre precisa estar ereto, mesmo quando não
tenho vontade. Sou o mágico ser que está sempre pronto para te
atender nos seus anseios e desejos, mesmo quando eu não tenho
vontade. Sou o ser que só goza, mesmo quando eu não tenho
vontade.
Eu sou um homem que como outros homens fui limitado. Você veste
minhas roupas enquanto eu só posso ficar nu.
Sou o sexo forte, que supostamente deveria arcar com a vida de
uma família, mesmo ainda sendo um menino. Sou o forte que viu
milhares de iguais morrerem nas trincheiras. Sou aquele que diante
da morte deve entalar as lágrimas e cavar a fossa.
Sou a pessoa que há 2013 anos está presa a convenções que me
incitam a digladiar. Sou aquele que é medido por números, posses e
centímetros. Sou apenas um velho rico, um garanhão jovem e uma
conta corrente ativa.
Sou eu que mesmo sofrendo com a vida que levo, devo engolir o
choro e nunca!... NUNCA! Mostrar-me frágil, correndo o risco de ser
exposto ao ridículo julgamento social e ser tomado como fraco, não
importa quantos leões eu tenha matado.
Leco Vilela
Ilustração: Jéssica Albuquerque
Texto:
Sou pai, filho, avó, primo, tio, estranho, homem do saco, palhaço,
bandido, marido, neto, padrinho, afilhado, sobrinho, puto, vadio,
viado e bicho.
Carrego na minha garganta o sinal da minha maldição, osso do meu
antepassado, que pra não ficar sozinho, cedeu até uma costela.
Sou o deus de uma sociedade hipócrita, que não aguenta mais os
espinhos.
SOLANGE TÔ
ABERTA
Por Thiago Barbalho
Fotos: Lex Mendes
Na capital do Rio Grande do Norte, uma balada gay abriga
dois caras no palco. É noite de um sábado de 2007. Na pista
de dança circula o hálito de homens que, saturados e sem
saída, vieram parar aqui farejando um escape. Salivam
de tédio. Os dois caras no palco enfrentam a plateia
seminus. Um deles é bastante peludo e veste apenas uma
calcinha. O outro tem as coxas cercadas por cinta-liga.
Ambos usam uma maquiagem malfeita. A batida de funk
vem do fundo do palco e é recebida em dança pelo corpo
a que chamamos de plateia. A comunicação entre palco e
público cria aqui uma mecânica primitiva impossível em
outro estilo musical. Sob luzes histéricas, os dois sujeitos
rebolam com tamanha entrega que mesmo aqueles
acostumados a espetáculos de travestismo ficariam
intrigados. O rebolado e a seminudez contrastam com
os corpos sujos e imperfeitos que os exercem. Um dos
sujeitos no palco começa a falar - é o de cinta-liga. São
palavras que se apoiam no ritmo e deslizam para dentro
da escuridão local. Das caixas de som começam a sair
versos berrantes que sugerem sodomizar os mestres
da psicanálise - é a voz do sujeito em ação. A canção
fala de sexo sem disfarce e põe no meio do ato nomes
como Lacan, Freud e Jung. Os gritos da plateia parecem
compor, com a letra cantada, uma espécie de protesto uma deslocada contracorrente, em plena balada gay, à
sede de explicação típica dos estudos da psiquê.
Os sujeitos no palco são Pedro Costa e Paulo Fraga. Têm seus corpos fincados
na rotina corajosa dos que não vivem sob a divisão entre masculino e feminino. Ambos
são pesquisadores da arte da performance e têm interesses em questões políticas de
gênero e aceitação. Os dois se juntaram e criaram, em 2006, a experiência visual e
musical chamada Solange Tô Aberta. Dizem-se apologistas do travestismo.
Desde que começaram a se apresentar em Salvador, Pedro e Paulo dividiram
opiniões. Por manter como estética o sujo, o defeituoso e o marginal, Solange Tô
Aberta se sabe dada mais a tapas que a beijos. Pedro, antropólogo e mestre em
artes cênicas, diz que o público de balada gay às vezes não gosta dos seus shows
porque o que Solange faz é música de protesto, algo que passa longe da diversão ali
buscada.
Aceitos ou não por frequentadores de casas noturnas, os dois rapazes
começaram a receber convites para se apresentar em festivais queer. A partir
desses eventos, a visibilidade cresceu. Eles fizeram uma temporada em São Paulo.
Participaram do festival Trangendler, em Berlim. Surgiu um convite do Itaú Cultural,
e em 2011 se apresentaram na exposição Caos e Efeito, organizada pela instituição.
Recentemente, a canção que ataca a psicanálise ganhou versão acústica de Barbara
Browning, professora de estudos da performance na Universidade de Nova York.
A estranheza da STA parecia avançar, mas Paulo tomou a decisão de fazer um
trabalho próprio: criou o personagem Paulo Belzebitchy e começou a se apresentar
sozinho, distanciando-se ainda mais da sua origem como percussionista. Ficou para
Pedro a tarefa de manter a STA ativa - o que não tem sido difícil, já que Solange Tô
Aberta não tem a ambição de atingir o pop. Sete anos depois dos primeiros esboços
da Solange, Pedro, que agora mora em Berlim, diz só se apresentar quando recebe
convites que lhe propiciem uma troca artística válida. Sem intenção de criar novas
músicas, como faria um grupo musical padrão em atividade, ele conversou comigo via
gmail sobre STA e arte queer.
Quando eu comecei a ouvir Solange
Tô Aberta, minha sensação era de
que aquilo que vocês faziam era um
negócio espontâneo – meio caseiro,
mas ao mesmo tempo minucioso. As
músicas que falam de travestis, por
exemplo, são tão diretas que parecem
ter sido feitas por alguém que convive
com a realidade trans, sem nenhum tom
exótico nas letras. Você tem mesmo
uma proximidade com esse mundo?
Tenho, sim. Eu não acredito num
conhecimento que não seja através
da vida ou não esteja conectado às
experiências de vida. As letras do
projeto foram todas escritas a partir
de experiências de vida, tanto as que
vivemos como as que observamos perto
da gente, indiretamente.
Como você e Paulo chegaram a esse
formato de dupla funk?
Existe essa linha do funk chamada
“proibidão”, que canta a questão sexual
direta. No início rolou um desejo de
ter uma banda, mas não deu certo. E
aí pensamos numa forma de ter um
projeto de música em que pudéssemos
expressar as questões das sexualidades
não-heteronormativas.
Vimos
essa
possibilidade a partir do proibidão e de
projetos que começavam a misturar funk
com outros ritmos. E a gente já gostava
muito de funk.
Já existiam umas paradas musicais
meio queer antigamente, mas no Brasil
eu não sei de nada antes que tivesse
escracho e contestação ao mesmo
tempo. Como vocês chegaram nesse
formato?
Pois é, existiam projetos queer
no Brasil há muito tempo, o que não
existia era a denominação “queer”. As
artes na Cultura LGBT são conhecidas
pelo escracho, pela comédia e pela
criatividade. A contestação anarquista
é da ação direta, de enfrentamento.
E o funk carioca tem isso de falar
abertamente sobre questões cotidianas,
relacionadas às vivências nas favelas.
Essas vertentes formam a base musical/
vivencial da Solange. Uma coisa que
sempre me instigava também, por ter
lido o livro “Problemas de Gênero” (de
Judith Butler), era a parte em que a
autora fala sobre a questão das drag
queens e de como poderíamos ir além
do riso fácil e transformar esse riso num
riso nervoso, um riso político, onde não
mais a artista seria o alvo do riso, mas
o público. O riso seria um incômodo
político, deslocando as pessoas de
suas certezas e preconceitos sobre o
tema. Por isso, geralmente as pessoas
que frequentavam boates LGBTs não
gostavam da Solange. Muitas pessoas
têm preguiça de pensar. Pensar implica
em mudar. Mudar implica em dor, em
pesquisar, em se tornar uma chata.
A música da STA é pra um público trans,
queer e LGBT ou vocês fazem música
sobre isso mas pra todo mundo?
Olha, no começo eu pensava que
nosso público seria o LGBT. Ledo engano.
O projeto é mais amplo, e há pessoas de
várias sexualidades que curtem. Quero
todo mundo junto.
O movimento queer tem essa coisa
do estranho, por isso às vezes eu me
pergunto sobre o quanto a cultura
queer poderia se popularizar?
A coisa queer, mais do que a
coisa do estranho, é a questão política.
Entendo como queer pessoas que
conscientemente não querem se
enquadrar numa estrutura limitada
e excludente, cheia de regras
historicamente inventadas, de viver
os desejos. “Queer” só existe porque
as pessoas e os movimentos foram e
são absorvidas pelo modelo patriarcal/
considero a simples luta de se expor
como uma impactante luta política
diária. Então não podemos comparar.
Ao mesmo tempo em que na Europa
existe uma maior liberdade, existe
um não-reconhecimento de corpos e
vidas que não estão em conexão com
a cultura queer europeia, branca, cheia
de privilégios. Falo principalmente de
Berlim.
colonial/capitalista em suas vidas e
desejos. E tem também essa galerinha
acadêmica que usa a teoria queer para
se sentir pós-alguma coisa. A questão
queer nada mais é que as vivências nãointeressantes, não-absorvidas e nãotransformadas pelo sistema. Queers
são pessoas que sabem que isso é
extremamente político. Então queer é ter
consciência disso. Desse ponto de vista,
existem pessoas que vivem isso, sem se
denominarem queer. A denominação e
estruturação enquanto conceito serve
tanto para pôr em crise essa estrutura
como para criar “donos desse território”.
Há sempre esse risco, e é muito disso
que eu observo atualmente.
Me fala um pouco de como você acha
que tá a cena queer no Brasil. Esse ano
fui a um festival em SP, o Queers and
Queens, e achei demais.
Eu não fui ao evento, mas apoiei
virtualmente. Apoio eventos queer, mas
tenho minha opinião. Atualmente tem
muita coisa com essa temática, o que
acho super importante, mas não são
DIY (Do It Yourself), não são eventos
autônomos. Acho que se deve tentar
descobrir novas formas autônomas de
realizar um evento queer. As discussões
são super importantes e acho que não
houve algo assim nesse evento. O que as
pessoas que se entendem como queer
tentam, de todas as formas, é descobrir
novos caminhos de solidariedade.
Os shows lá fora deram alguma
perspectiva pra Solange se desenvolver
e pra você continuar com um trabalho
queer?
Sim. Aqui na Europa as discussões
queer e de gênero são bem avançadas,
por uma história específica que envolve
varias questões. Isso não significa que é
melhor ou pior do que na América Latina.
O que as pessoas LGBT e feministas
têm que enfrentar no cotidiano no Brasil
é muito mais pesado que na Europa,
de forma geral. Nesse sentido, eu já
Como são essas coisas por aí?
Existe muita solidariedade, muitas
festas, eventos, discussões, mas também
ha um lado de exclusões e violências.
Tanto que acabei por reconhecer o valor
do que chamo de “afetos políticos”,
que considero como as afetividades
cotidianas, onde a questão de saber falar
a mesma língua, de se vestir de forma
diferente, de se movimentar e dançar
de outra forma, não seja vista como
sexista ou qualquer outra coisa. Aqui,
por exemplo, numa festa solidária para a
campanha contra a transpatologização,
num espaço de esquerda, fui classificado
como homem e sofri agressão por causa
disso no show da Solange. Há pouco
tempo aqui em Berlim houve uma ruptura
no movimento queer. Agora existe o
QTIBPoC (Queer*Trans*Inter*Black and
People of Colour). Um grupo que cansou
de sofrer certas exclusões por causa de
experiências diferenciadas das pessoas
queer brancas e se uniu para fazer suas
próprias coisas.
O que você anda fazendo além da STA?
Por que foi parar em Berlim?
Estou desenvolvendo um novo
projeto de música eletrônica. Ao
total são quatro pessoas, dois DJs/
produtores de música eletrônica e dois
cantores. As músicas que estamos
produzindo até o momento falam sobre
nossas experiências como imigrantes,
mas também vai demorar um pouco
até lançarmos esse projeto. Fiz uma
performance que tratou da questão dos
corpos invisíveis imigrantes baseado nas
minhas experiências aqui em Berlim e
no que eu conheço sobre a experiência
de amigas. Fiz dois seminários na
universidade como ouvinte sobre os
temas da imigração, racismo e póscolonização. Eu vim morar em Berlim
porque queria ter experiências como
imigrante e queria viver a cena queer da
Europa.
Qual sua ideia de manter a Solange
aberta e ativa hoje?
Solange estava em off, mas fui
convidada para um evento na Áustria, na
cidade de Linz, que aconteceu há pouco
tempo. O Evento se chamou “Festa do
riso: Quem ri de quem?” e realizado
pelo “maiz kultur”, um organização de
mulheres imigrantes. A proposta era
justamente expor formas de fazer política
através da arte de uma forma lúdica,
que promovesse o riso e a alegria, com
pessoas que se considerassem queer,
feministas, negras, lésbicas e imigrantes
ou filhas de imigrantes. Nesse evento,
a Solange voltou à vida. Lá eu entendi
coisas que me faltavam e percebi qual o
caminho da Solange por aqui. Então eu
mantenho a Solange, mas sem novidades
e sem expectativa nenhuma de músicas
novas ou novo show. Se eu receber um
convite e perceber que Solange poderá
trocar experiências afetivas e políticas,
eu vou.
Ricardo Lima
Caco Ishak
aluga-se
mártires
[sic]
quem é esse garoto, de onde ele veio? é impressionante o
estrago que ele vem fazendo na zaga adversária! e olha só, hein,
roubou de novo... lá vem ele, veloz pela lateral esquerda, dois
contra quatro, o companheiro pedindo a bola, mas o menino
não parece estar disposto a dividi-la com ninguém, já passou
por um, vem se aproximando da grande área, marcado por
três... seu colega em posição de impedimento, chega um quarto
jogador pra marcá-lo, o quinto que ficou pra trás chegando, mas
ele não quer saber de largar a bola, tá gostando do jogo, hein...
começou a fazer gracinhas, agora virou festa, deixou dois no
chão, que imagem! fingiu que ia prum lado, foi pelo outro, meteu
por entre as canelas do zagueiro, entrou na grande área, olha
lá, olha lá, mas que chapéu! olha lá! matou no peito, chutou e
gol! goooool!!! mas que golaço! mas que go-laaaço! não estou
acreditando nisso! o goleiro nem viu nada, ficou paralisado do
pescoço pra baixo! todo o time corre pra abraçar sua mais nova
revelação, o salvador da pátria, quem fez o gol que pode dar
ao clube o título de campeão estadual pela primeira vez em sua
história, faltando apenas três minutos pro fim do jogo! só que
ele não quer saber de abraços, não, hein, sai correndo sozinho
pelo campo, em direção à torcida, com os dedos indicadores pra
cima como que dizendo “essa é pra vocês”, esse garoto ainda,
de apenas dezesseis anos de idade, uma promessa do futebol
brasileiro! e, olha lá, que bonito! é isso aí, menino, comemora, faz
tuas graças! parece mais malabarismo, de tanta cambalhota que
ele tá dando – acrobacias, né? e a torcida vibra, vai à loucura
com a nova estrela revelada pelo clube! que beleza, esse é o
futebol brasileiro! e ele não pára, hein, vai pulando de um lado
pro outr... opa, a queda foi feia. a queda foi feia, hein! acho que
ele se desequilibrou na hora de cair e bateu com a cabeça no
chão de mau jeito... tá caído, imóvel, sem se mexer, todo mundo
corre pra ver o que fazer... cadê a ambulância pra levar esse
jogador prum hospital, pelo amor de deus? momentos de muita
apreensão... ninguém sabe o que de fato aconteceu. a equipe
médica chegou, parece que a coisa foi feia, a situação é grave!
os médicos fazem sinais, a torcida em total silêncio, todos se
perguntando o que aconteceu com o herói de seu time... estão
imobilizando seu pescoço, vão colocá-lo numa maca, acho que
ele será retirado do campo... é nessas horas que eu me pergunto,
por que será que... clic.
– acabou?
– é, foi... acabou. vai pro quarto descansar, vai, tia.
daqui a pouco tem mais jogo... da seleção.
– ô, mas que beleza! quem foi escalado dessa vez?
– não sei, tia, sei não. a gente vê isso na hora... vai
dormir um pouco, vai.
– tudo bem, mas me acorda antes de começar, viu?
não posso perder esse jogo por nada nesta vida!
pode deixar, eu aviso. amanhã de manhã, bem cedinho, tão logo
eu acorde, antes do almoço. com o remédio que tomou, não vai
querer saber de jogo nenhum, mesmo. além do mais, oportunidades
não faltarão de assistir a todas as partidas de todas as seleções do
mundo, tudo gravado, um armário cheio de fitas de jogos de futebol,
vai poder se esbaldar à vontade com pernas e sabe deus o que
mais ela consegue enxergar nesses noventa minutos de chutes e
palavrões vindos de tudo quanto é lado, sem rumo certo, atingindo
o primeiro que se sentir no direito de acolhê-los e multiplicá-los.
como, no mais, qualquer coisa na vida. é a maior paixão de titia,
coitada. jogos de futebol. não digo a única, pois além do poodle
sem dentes, obeso e esquizofrênico que se mudou com ela pra cá,
bem sei que a pobre me ama também, aquela baboseira toda de o
filho que nunca teve, nem tanto por incompetência, quanto pela
falta de homem paciente o bastante pra aturar as esquisitices que
desde cedo a acompanham nesses oitenta e poucos anos de
loucura e dribles na solidão. dizendo minha mãe, que deus a tenha,
titia – na verdade, irmã de minha avó. titia-vó, portanto – já tinha
sido muito garbosa na juventude. mas, ninguém sabe por quê,
destrambelhou ainda moça, não dando chances às aproximações
dos pretendentes que meu bisavô lhe arrumava. foi envelhecendo,
o tempo a esclerosando ainda mais, coitada, passando de mão em
mão dos familiares até aterrissar na monotonia cotidiana do cidadão
desocupado aqui, à incompreensão de todos. como é fácil de se
lidar com a velha [botar gravação dum jogo qualquer no vídeo e
torcer pra que ela sonhe feliz em seu sono forçado], preferi não
arrumar confusão com os parentes, aceitando numa boa os surtos
de campeonatos mundiais por ela testemunhados em delírio e a
ajuda de custo oferecida pelos primos que a hospedavam antes. o
cachorro estava dando muitos problemas, afirmaram então,
avançando em tudo quanto era convidado da casa, chegando até
a morder o calcanhar da filha de não sei quem batistelli. bons
tempos que com os dentes se foram. já que titia não conseguiria
viver sem seu precioso, pensaram que talvez eu, sozinho na vida
e simpático por animais, pudesse acolhê-los sem problemas.
sem muito pensar, acabei por concluir que, depositando todo
mês em minha conta o dinheiro pra ração do infeliz, tudo bem,
sem problemas mesmo. não me importaria em caminhar até o
mercado pra comprar. com essa vida de jornalista desempregado
e escritor virtuose ainda não reconhecido pela crítica nem pelo
público, o que não falta é tempo pra ir na esquina de quando em
quando. problemas, teria no dia em que esse projeto de cão
morresse, aí sim, minha vida se tornaria um calvário. não
bastassem os traumas que já possuo quanto ao assunto – faz
alguns meses, ainda só e provavelmente por isso, comprei um
vira-lata, baratinho, com direito a uns tantos vermes de brinde,
que acabaram motivando a visita do perebento a um veterinário
recém-formado, cheirando a leite, baratinho também, que acabou
receitando ao animal uma quantidade de medicamentos tal que
não apenas matou todo e qualquer tipo de ser no intestino do
bicho, como o próprio, de overdose no meio da madrugada e eu
lá, sem saber o que fazer. cansado de me sentir um completo
inútil a observar aquela criatura estrebuchando no chão do
quarto, olhos esbugalhados e arfando língua afora, decidi ler um
romance até o momento em que ele enfim quebrou o pescoço,
tamanha a violência das convulsões, pra que, então, o dia já
amanhecendo, eu o depositasse numa caixa de sapatos e
deixasse o resto por conta do caminhão de lixo – não bastassem
meus traumas, seria obrigado a consolar titia por um bom tempo,
assistindo com ela a todas as finais dos campeonatos brasileiros
que temos aqui em casa, não poucas. isso, se ela durar até a final
de noventa e cinco. do jeito que as coisas vão, perigo acabar
consolando o banguela do poodle. coitada – não encontro outra
palavra pra melhor me referir a ela, coitada. o que, parando pra
pensar um tiquinho só, não lhe soa assim tão bem. antes fosse
descoitada, já que pela experiência do coito, até onde consta,
nunca passou. que não me julguem mal pelo trocadilho. mas ai,
os trocadilhos, diria com os dedos lambuzados de brigadeiro,
como os adoro, principalmente se são pra confundir a cabeça de
titia. se, nos tempos de redação, eram meu passatempo preferido
pra elaborar as manchetes do dia, quanta não é minha satisfação
ao oferecer uma dedada à titia, uma delícia, bem docinho. que
não me tomem por um monstro. no fundo, até gosto dela, gosto
sim. depois que meu vira-lata se foi, é bom ter um certo movimento
em casa, constante e que forneça algo próximo a uma espécie
de segurança ao equilíbrio mental que tento manter em sábados
como esse, dias em que tudo parece ser um pouco menos do
que realmente é. acredito que seja isso mesmo. não permitir que
eu perceba estar a situação bem pior do que venho imaginando,
eis o papel de titia em minha vida. que continue a dormir, então.
é quase noite e já tive minha cota de realidade por hoje. nada
mais de rezadeiras aos quarenta e seis do segundo tempo, nem
de beijos gosmentos enquanto o cão corre alucinado de um lado
pro outro com a gritaria e nos intervalos se esfrega em minha
perna com cara de quem acabou de sair duma cirurgia plástica.
quero mais é arriar as calças e chover mel. o cachorro, titia? sim,
sim, foi dar um passeio com seu osmerindo, o zelador, já deve
estar voltando, daqui a pouco tá por aí novamente, feliz da vida,
mordendo o pé da mesa e arrastando o saco pelo chão frio. não
se preocupe, titia, tá tudo bem, vá dormir. não dizem que cachorro
sempre volta pra casa do dono? ou são os gatos que voltam?
percebe a diferença? nem eu, nem ela. no fim, dá no mesmo e
acabo dando um gato de presente pra titia. certo que a
embocadura é um tanto menor e o poodle era desdentado, mas
dou um jeito pra que as coisas fluam naturais e titia aprenda a
ronronar seus prazeres, tão bem quanto os rosnava. tomara que
o cachorro volte [na toada de uma bisca em vias de lordose
crônica que lhe apavora a cauda e faz cantar o serelepe]. eu me
martirizar por causa disso, é que não vou. se resolveu pegar o
beco, tenho nada a ver com isso. a velha, coitada, que se entenda
com as ratazanas do vizinho. é uma santa e nem se dá conta
disso. numa hora dessas, já deve estar toda encharcada,
disputando a bola com três zagueiros baianos. ainda escrevo
sobre ela. assunto, não falta. falta é recuperar o tempo perdido
com a caderneta vermelha. preciso economizar nas conversas
por telefone. falar menos e foder mais, sacomé. continuar nessa
de passar o dia tomando um não dá, aquele papo nasalado de
me erra, garoto, vê se me erra, enquanto me estico um pouco
pra coçar o rabo suado de ficar sentado no sofá limpando o
umbigo, já está deprimindo a paisagem. pensar no trabalho que
tive pra completar essa lista. anotava tudo quanto era combinação
de números que conseguisse fazer com o que a sacana articulasse
depois de alguns minutos de declamações ao pé do ouvido.
geralmente, as dúvidas que me impediam de concluir o
preenchimento de sua ficha eram tiradas logo em seguida, ao
tempo em que enfiava besteiras em sua cabeça e chupava gelo
com chiclete empedrado pra, daí em diante, nunca mais. outro
truque que aprendi nas redações, contrariando o que imaginavam
as focas, doidas pra que alguém as amestrasse num pau-dearara. e assim vou levando. não reconheço estar mentindo
quando nego fazer idéia do que fez o quadro mudar
completamente. bem mais simples seria provocar a confissão
como se fosse em prol do delator. percebe? picadinho: se parasse
com embromação, talvez minha cama estivesse atulhada de
gente e cheirando mais a peixe. a caderneta vermelha. algumas
perguntas e as pistas iam todas pra lá. basicamente: nome,
telefone e o período de menstruação [salpicar-me no bafo quente
do teu paquete]. a conveniência ditava as regras e, como disse,
dúvidas nunca mais. até me esforçava pra que acreditassem no
que lhes dizia o momento, teso e entalhado em pedra – memórias
de uma mulher quase sempre desagradam. foi quando titia
chegou com o poodle e me deparei com o outro lado da força.
de repente, quarto vazio, tornou-se mais cômodo trocar pequenos
mimos por favores fraternais a ter de gastar com motel ou
convencer que valeria demais a pena se ela gastasse e acabei
relaxando. certa vez, quando mais moço, saí com uma putinha
coxa – leste europeu, como não – que ficava ao lado de minha
janela, aqui na esquina de casa. devia ter seus trinta e cinco ou
sete anos e me chamou de gostoso quando passei por ela. parei,
ela deu dois passos e abocanhou meu pau com os dedos.
apaixonei e viemos pra casa. ela se casaria comigo, contanto
que eu pagasse adiantado. paguei e, nos quarenta e cinco
minutos seguintes, fiquei planejando os detalhes da cerimônia.
ao perguntar o que ela achava, desabotoou minhas calças, bateu
umazinha e, serviço feito, disse que já era casada. quase um
conto de fadas, não tivesse me sentido um pouco indisposto por
ter sujado de porra a mão da única pessoa que realmente fazia
sentido no meio de tanta aberração. até o dia em que o cão
mordeu doído e saiu correndo pela porta. hoje. e me abandonou
nessa modorra. sem quarto, nem cachorro, a derrocada não
tarda. quase impossível resistir ao apelo da possibilidade que se
avoluma, questão de sobrevivência – dizem que dá câncer. pois
vejamos. alice... é das que quase vomitam, tamanho é o gosto
que tem por um cacete na goela, essas coisas de encarar a morte
de perto enquanto treina pra ser maratonista. uma vez, disse que
sonhava em ser triatleta e a convidei pra ir ao cinema. não
apareceu e, ingressos comprados, entrei sozinho. o dela, troquei
por jujubas. não dá pra dizer que me incomodei com o fato de
todos estarem acompanhados, o som das cadeiras rangendo até
me agradava, trilha sonora em harmonia com as cenas de ação.
o problema foi o sujeito ao lado ter me apalpado pra aliviar a dor.
o lanterna disse que nada podia fazer, cortesia do estabelecimento.
relaxei e acendi um cigarro. pois bem. era proibido fumar. a
bichinha começou a se contorcer e gemia por socorro. não me
restou opção, senão validar a impressão e apagar o cigarro em
seu rabo, indo embora sob o protesto de seus companheiros,
que me ameaçavam com giletes e preservativos empanturrados.
alice nunca ligou. acabei descobrindo que, de tanta seiva,
petrificou e parou de pedalar. soraia, menstruada. escritor bom,
pra ela, tinha de escrever sobre o miserê bucólico de vilarejos
minúsculos em países sul-americanos ou duendes que fabricam
suas próprias calças a partir do resto que sobrou do almoço.
talvez, jaqueline... vem cá meu tuiuiú, ao que lhe indaguei: meu o
quê, mulher? ela: meu tuiuiú, meu tuiuiúzinho, nunca viu um
tuiuiú, não? eu. não. ela. é aquela ave do pantanal que tem um
papão enorme que, quando dois machos brigam, infla, fica que
nem uma bolsa escrotal bem grandona e aquele bicão no meio
e eu aqui, com meu tuiuiúzinho. jaqueline tinha essa mania de ler
revistas científicas e assistir a documentários, destacar os
assuntos que mais lhe interessavam e colocá-los na rotina do dia
seguinte, cama principalmente. assim fica fácil economizar.
oitocentos e cinqüenta e nove reais de celular. dá quase pra
enrabar apresentadora de tevê com essa grana. tem lá suas
vantagens, como não? o bom e velho rasga as costas com os
dentes cravados na orelha deve ter seu valor ainda preservado
na tabela duma profissional. nada de divagações a respeito de
intrigas familiares ou do preço do açúcar. uma trepada sem
firulas, mormacenta, sem cremes hidratantes, posições que dão
nó na coluna ou preliminares. a imagem de minha porra na mão
da putinha coxa não devia ser um bloqueio. amanhã, sabe deus,
sou castrado e aí? vai doer o acumulado pro resto da vida, bagos
fora. bora parar com frescurite, então. ela brinca comigo e, caso
eu queira dar uma de doido, sai mais barato do que deitar num
divã e discutir futebol com o psicanalista. simples assim. pagou,
levou. quantas putas não foram dilaceradas nos clássicos? nem
quero tanto. sorrindo pra mim, já ganho o dia. como, despacho,
viro pro lado e durmo. segredo da felicidade. era o que o cachorro
proporcionava à titia, nada mais do que uma relação saudável
em que as partes se entendiam sem pronunciar uma só palavra.
não existia um coitado, nem um pobrezinho, as vítimas todas da
história ficavam do outro lado da tevê. exploração seria se ela
enfiasse o dedo no rabo do bichinho. ainda assim, sem ele querer.
acho que devo uma à titia. as pessoas têm uma certa necessidade
de escolher alguém à margem da sociedade que lhes sirva, por
uma cesta básica ao mês ou duas páginas numa revista, de
consolo à degradação moral em que estão, um cordeiro imolado
que todos redimiria perante os olhos de seu deus ou do público,
todo poderoso. e ai de quem não participe do espetáculo. titia
não participou, não ativamente, e deu bem dado no que deu.
isolado e sem perspectiva alguma, senão abanar o rabo em troca
de afagos e gratificações, não me aguarda outro destino. cansei
de ser mais um fracassado, ficar mendigando uma chance pra
quem só quer me enrabar, acenando pra platéia. que se foda a
ajuda de custo que os retardados dos primos dão; que comecem
a dar coisas mais folgadas em outra freguesia, titia não precisa
mais de gorjeta. vai ser minha secretária particular. se é um pobre
coitado que eles querem, pra que possam dormir com a
consciência tranquila embaixo de suas cobertas de seda de
trocentos fios emporcalhados com as cortesias golfadas nos
ouvidos da baixada, eis-me aqui pra saciar-lhes a fome de miséria.
amanhã, bem cedinho, tão logo titia nos acorde, penduro a placa
na porta de casa. aluga-se mártires. assim, errado mesmo, que é
pra não duvidarem de minhas boas intenções. ganho eu, ganham
eles. uma turba de menores prostituídas, mendigos, apostadores
e viciados em crack fazendo fila pra preencher cadastro. e quer
saber? no meio da história, largo tudo, jogo no pisão, desisto,
toco o foda-se. quero ver as expressões de frustração, o que vão
dizer. mas principalmente: como eu vou reagir. sempre em teste,
nem sempre alerta. melhor não complicar sempre que possível.
vou deixar a porta aberta, talvez o cachorro volte enquanto
assisto à eliminação de oitenta e dois.
(Francisco Conrado)