Baixe o PDF - Revista Rosa
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14 Todos Podem Ser Frida 8 INÉDITOS As Asas divórcio, uma 12 Um história verdadeira ou quase 10 ARTE Reynaldo Candia 24 João Gonçalves 54 Homo Riot 70 Ricardo Lima 86 Francisco Conrado 78 CONTO aluga-se mártires [sic] 40 62 MANIFESTOS Falo pela minha diferença Sou 46 DOSSIÊ GILDA Depoimento 20 ENTREVISTAS Laerte Samie Carvalho 49 Viado houve uma 51 Nunca mulher como Gilda 52 Gilda 30 64 Pedro Costa Revista Rosa Arte e literatura de temática queer Novembro 2013 Organização/ Execução Felipe Miguel Editores Felipe Miguel Thiago Barbalho Projeto Gráfico e Diagramação Liziane Sutile Capa Zé Otávio Arte Homo Riot João Gonçalves Reynaldo Candia Ricardo Lima Ilustrações Jéssica Albuquerque Zé Otávio Textos Alejandra Rojas Covalski Antonio Thadeu Wojciechowski Caco Ishak Ivan Justen Santana Jozias Benedicto Leco Vilela Lívia e os Piás de Prédio Marcelino Freire Pedro Lemebel Wilson Bueno Entrevistadores Felipe Miguel Thiago Barbalho Fotografia Camila Fontenele de Miranda Francisco Conrado Lex Mendes Website Juliano Luiz Fernandes Liziane Sutile Mande suas críticas e sugestões para [email protected] Editorial Felipe Miguel Chegamos à terceira edição. Porém, com algumas mudanças. Para começar, a Rosa deixa de ser trimestral e passa a ser publicada três vezes ao ano. Duas razões simples: conciliar melhor a revista com outras atividades dos organizadores e dar passos mais bem dados. O lançamento do site novo é um desses passos firmes, e deve acontecer dentro em breve. A mudança na periodicidade da Rosa também acaba sendo estratégica, já que ela será lançada, desta vez, no mês em que acontecem a Balada Literária, evento organizado anualmente pelo escritor Marcelino Freire, em São Paulo, e o Festival Mix Brasil, em SP e RJ. Neste número, você encontra pelo menos três nomes que estarão presentes nesses eventos: além de um trecho inédito do primeiro romance de Marcelino Freire, há também o forte poema-manifesto de Pedro Lemebel, “Falo pela minha diferença”. O poeta chileno participará do Mix Brasil com uma de suas famosas performances, no Centro Cultural São Paulo. Como se não bastasse, a Balada Literária deste ano homenageará Laerte, que está na capa desta edição – produzida pelo grande ilustrador Zé Otavio –, e também responde à Rosa algumas perguntas sobre quadrinhos, política e discussões de gênero e sexualidade. Além de Laerte, outra cartunista brasileira se destaca na terceira edição da Rosa, enviando suas respostas diretamente da Terra do Sol Nascente: Samie Carvalho, criadora de Sasha, a Leoa. E para provar que adoramos uma entrevista, Pedro Costa, do Solange Tô Aberta, conversou com Thiago Barbalho sobre funk, questões queer e sua vida na Alemanha. A matéria conta com fotografias de Lex Mendes. Juntam-se aos quadrinhos e às entrevistas as artes de Ricardo Lima, Reynaldo Candia, João Gonçalves, Francisco Conrado e do gringo Homo Riot. Tudo isso aliado ao sensível ensaio fotográfico do projeto “Todo podem ser Frida”, de Camila Fontenele de Miranda. Quem não dispensa as letras pode se deliciar com um conto inédito de Jozias Benedicto, que estará presente no livro “Estranhas criaturas noturnas”, a ser lançado ainda em novembro. O conto “aluga-se mártires (sic)”, de Caco Ishak, fecha a edição, precedido por uma espécie de manifesto escrito por Leco Vilela e ilustrado por Jéssica Albuquerque. Para completar o conteúdo textual da Rosa #3, há um mini dossiê sobre Gilda, figura sem teto, sem gênero e sem pudor que agitava Curitiba nas décadas de 70 e 80. De barba espessa, batom e vestido, Gilda ameaçava toda a normatividade machista dos transeuntes da Boca Maldita com uma única frase: um trocado ou um beijo? No dossiê você encontra Wilson Bueno (que prazer!), Thadeu Wojciechowski, Ivan Justen Santana e uma canção da banda curitibana Lívia e os Piás de Prédio. E que venha 2014! Colaboradores Essa galera mora em nossos corações róseos. Reynaldo Candia é paulistano, artista visual e trabalha com objetos e realiza colagens, recortes e desenhos. Esses objetos na maioria das vezes são descartados ou esquecidos pelos seus donos, na sua pesquisa se interessa pela memória afetiva, acumulação e repetição. Jozias Benedicto é escritor, editor e artista plástico. Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Seu livro de contos “Estranhas criaturas noturnas” foi finalista no Concurso SESC de Literatura 2012/2013 e será lançado pela Editora Apicuri, em novembro de 2013. Camila Fontenele de Miranda, vinte e poucos anos, fotógrafa de alma e coração. Gosta de cores, Bob Dylan e tem uma gata chamada Anita. Alejandra Rojas Covalski , Lex Zé Otávio nasceu em Olimpia interior de SP. Trabalha com ilustração. Faz parte do grupo SketchJazz, onde vende originais e gravuras, e da PLUS Galeria. Recentemente teve material incluído no volume “Illustration Now!, da Taschen. Ricardo Lima é médico, artista inquieto, sem saber o que não deseja, vive pelo que vê e é apaixonado pelo que está oculto. Mendes nasceu em Salvador e vive em São Paulo. É fotógrafo e jornalista e tem um trabalho voltado para o registro da vida noturna paulistana. Acesse lexmendes.tumblr.com Leco Vilela gosta de escrever, fotografar, ouvir música, devorar filmes e rabiscar livros. Já trabalhou na revista Dynamite, na MTV Brasil e é autor do blog literário Nome da Coisa. chilena, professora da UFFS (Universidade Federal da Fronteira Sul). Além da atividade docente, dedica-se ao estudo, tradução e divulgação da obra do escritor chileno Pedro Lemebel. Jéssica Albuquerque é designer gráfica e ilustradora. Adora estudar sobre novas tendências e cozinhar. Viciada em graphic novels e webcomics, gosta de criar trabalhos à mão. João Gonçalves é artista visual natural de Porto Alegre. Vive e trabalha em São Paulo há uma década e expõe regularmente desde 2011. Marcelino Freire nasceu em Sertânia (PE) e vive em São Paulo desde 1991. É autor, entre outros, dos livros “Angu de sangue” (Ateliê) e “Contos negreiros” (Record, Prêmio Jabuti 2006), além de criador da Balada Literária. Francisco Conrado Nascido em Porto Alegre em 1983, perdido em Curitiba desde 2013 e ansioso pelas surpresas do futuro. Apaixonado por música e fotografia. Cantor. Pedalador. Criador de unicórnios. Pedro Lemebel escritor, artista visual e fundador do coletivo Yeguas del Apocalipsis. Traduzido para inglês, alemão, italiano e francês, é vencedor da bolsa da Fundação Guggenheim, foi convidado para Harvard e homenageado em Havana. Possui livro de crônicas e a novela “Tengo miedo torero”. Caco Ishak é escritor, jornalista e tradutor. Nasceu em 1981, em Goiânia, e cresceu em Belém. Teve textos publicados em diversas coletâneas, revistas literárias e antologias. Publicou “Não precisa dizer eu também” (2013) e “Dos versos fandangos ou a má reputação de um estulto em polvorosa” (2006), ambos pela 7Letras. Lívia e os Piás de Prédio Ivan Justen Santana, poeta, tradutor e professor. Curitibano. foi criada por quatro amigos e jornalistas que tinham em comum o interesse pela música e por Curitiba. Lançaram dois discos de composições autorais. Wilson Bueno é autor, entre outros livros, de “Mar Paraguayo” (1992), novela publicada e antologizada em inúmeros países, dos bestiários “Manual de Zoofilia” (1991) e “Jardim Zoológico” (1999), e do romance “Amar-te a ti nem sei se com carícias” (2004). Antonio Thadeu Wojciechowski é poeta, compositor de mais de mil canções, publicitário e professor. Autor de 32 livros, entre eles: “Assim Até Eu”, “Koan do Como Onde”, “Crime”, “O dia em que matei Wilson Martins” e outros. Homo Riot é um artista de rua, ativista, punk e libertino residente em Los Angeles. Seu trabalho pode ser visto nas ruas de diversas cidades, como Los Angeles, Nova York, Londres e Paris. Siga seu instagram: @homoriot, ou twitter: @thehomoriot. Estrela quando entrou a boate inteira parou, todo mundo a chamava de Deusa, um grupo fez um círculo em torno dela, o palco ficava no chão, ela desfilava entre as mesas, boquiabertas, soltava a voz, não dublava, havia uma gravação apenas com os instrumentos, eram dela, ao vivo, os gritos e trejeitos de Carmen Miranda. [ As asas ] Por que as travestis se parecem comigo, pensei, Estrela era mais velha do que eu tinha imaginado, cheguei a apostar que fosse ela uma garota, sei lá, os peitos ainda estivessem no lugar, as roupas fossem mais modernas, no entanto ela era uma dama, uma cantora de rádio, enfeitada de plumas, subia as mãos ao céu, mostrava os anéis, os colares magníficos, as falsas pérolas. O show demorou uns quarenta minutos, depois ela retornou, esvoaçante, às mesas, pessoas puxavam cadeiras para ficar em sua companhia, outras enfiavam dinheiro entre seus seios, montados, ela agradecia com um beijo rápido nos lábios do público. Preparei o meu ataque, a mesa em que eu estava era embaixo da escada, a mais escondida, que é para onde vão os machos que não se assumem, os maridos infiéis, padres e coronéis, figurões, não era esse o meu caso, é que o meu assunto necessitava de sombra, como se estivéssemos embaixo de uma árvore, em um parque de diversões. Fiz um sinal, modesto, e Estrela veio, antes chegou até mim o seu cheiro de perfume, seguido do brilho do vestido, cafona, que a apertava por inteiro, pus em sua mão uma ótima quantia e fui logo, firme, direto na veia, sem arrodeios, eu sou amigo de Cícero. Cícero, o nome do boy morto fez um estrondo, paralisante, Estrela se sentou imediatamente à minha frente, mal deu tempo de agradecer a grana, você sabe que ele morreu, mataram ele, não sabe, alguém muito covarde, eu cansei de avisar para ele não se meter em coisa que não prestava, não era nenhum anjinho o capetinha, ela me encarou, ironicamente, esse mundo é assim, meu bem, e você, meu senhor, quem é que é? Marcelino Freire Eu sou Heleno, estou aqui para saber da família do rapaz, eu quero, eu tenho o dever de dar destino ao corpo, para isso preciso entrar em contato com alguém, daí fiquei sabendo que só você pode me ajudar, depende de quanto eu vou levar, ela me disse e repetiu, esse mundo é assim, meu bem, me procure amanhã, aqui mesmo, em cima da boate, viu, é onde eu vivo, é só chegar e perguntar por mim, no final da tarde, não me venha muito cedo, e se despediu, da mesma forma como veio, Estrela e Diva, sem nenhum beijo, sumiu. [Trecho de “Nossos Ossos”, o primeiro romance do contista pernambucano Marcelino Freire, com lançamento previsto ainda para este ano pela Editora Record, por onde o autor lançou, entre outros, o livro “Contos Negreiros”, Prêmio Jabuti 2006. Para saber mais, acesse: marcelinofreire.wordpress.com] Reynaldo Candia eucomeles eucomeles eucomeles eucomeles Jozias Benedicto Um divórcio, uma história verdadeira ou quase Eles casaram muito jovens, ela fez questão de deixar registrado nos autos. Ela casou virgem, e quando falou sobre isso enrubesceu. Ele quis deixar claro, bem claro, de que se dependesse dele, não se separariam, nunca. Nunca. Meu pai era muito rico e ele era apenas um engenheirinho, ela disse, e ele foi o meu primeiro e único homem e conquistou a confiança do meu pai e por isso ficou com a empresa e o dinheiro todo que era meu e de minha família, e por isso eu quero acabar com a vida dele, quero deixar ele sem nada. Nós casamos muito jovens, ele contou, ela uma menina mimada, e o pai um louco, gastava o que as empresas não rendiam, ia perder tudo com as amantes jovenzinhas se eu não tivesse ajudado a controlar, a diminuir as despesas e a investir, graças a meu trabalho é que os negócios foram pra frente, ela teve esta vida de perua, dondoca, Daslu, eu pagava todas as contas, e queria continuar assim, um divórcio é traumático, dividir os bens, fortuna nenhuma resiste. Ela falou, as mensagens no celular. Nunca tinha desconfiado até ler as mensagens, os torpedos, os e-mails, os WhatsApp, os Viber, sem contar outros aplicativos piores. Piores. Se fossem mulheres. O senhor sabe que existe um tal de Grindr, que mostra homens a fim de sacanagem, sacanagem entre homens, uma coisa nojenta, o que querem fazer e a distância que estão e eles então se trocam mensagens? mensagens sujas? fotos também, tudo isso no celular dele, foi fácil, só entrar, a senha é fácil, ele é bobo, um engenheiro, um empresário, mas é tão bobo, a senha do celular é o numero do telefone fixo de nossa casa, de minha casa, eu entrei no celular dele e vi as mensagens todas. Ele retrucou, ela está fazendo uma tempestade com as mensagens arquivadas no meu celular. Algumas poucas podem até ser de verdade, outras são brincadeiras. Brincadeiras, um celular hoje em dia é como um joguinho, relaxa a tensão e se diverte trocando. Mensagens. Eu digo que um homem precisa se divertir. Ela é fria. Ela só goza com uma bolsa Louis Vuitton entre as pernas. Casamos muito jovens. Um homem como eu precisa expandir as empresas, expandir os interesses, até os sexuais. Depois de uma certa idade. Não vou negar. Que tenho. Interesses. Por alguns. Rapazes. Mas isso nunca perturbou meu relacionamento com ela, minha mulher, esposa, mãe dos meus filhos, continuo o provedor de sempre. Tudo o mais é uma brincadeira, uma diversão, mas o casamento é sagrado. Ela diz, eu quero acabar com a vida dele. Ele diz, o casamento é sagrado. TODOS PODEM SER FRIDA Camila Fontenele de Miranda Comecei esse projeto no meio do ano passado e percebi, desde a primeira foto que postei no meu Facebook, que esse trabalho teria um rumo diferente. Então resolvi dividi-lo em cinco partes: FRIDA POR INTEIRO, O AMOR DE FRIDA, A DOR DE FRIDA, AS CORES DE FRIDA e O ABORTO DE FRIDA, que para mim são momentos muito profundos na vida da artista. Lembro-me do fragmento O AMOR DE FRIDA, onde sentei numa pracinha com o artista Fábio Florentino e com os modelos. Ficamos com os livros da Frida na mão, conversando. O céu que ficava preto porque ia cair um temporal e, certos minutos depois, estávamos correndo daquela água toda. No final, não tínhamos ideia de que o projeto ganharia esse rumo. Tudo foi feito com carinho, amor e simplicidade. Para cada fragmento eu convidei um artista plástico e uma pessoa do sexo masculino para posar. Cada artista teve todo o direito de se expressar e a sua própria maneira de trabalhar diante das referências trocadas durante a pré-produção e as reuniões. Tudo foi feito de forma colaborativa, e digo que tem muita alma em todo o processo. O universo de Frida Kahlo me inspira em todos os sentidos, como em ser uma mulher forte, sem medo do que a sociedade vai pensar, e também em como mostrar algum tipo de sentimento bom. Aprendi a fazer o meu trabalho de dentro pra fora, de forma visceral. Mais imagens e informações: https://facebook.com/ProjectTodosPodemSerFrida http://todospodemserfrida.tumblr.com ENTREVISTA Em 1956, Flávio de Carvalho desfilou pelo centro da cidade de São Paulo vestindo mini-saia e blusinha de mangas curtas e folgadas. O “New Look” da “Experiência #3”, como atestou o modernista, estava muito mais apropriado ao clima do verão brasileiro. Mas talvez o traje não estivesse pronto para a sociedade paulistana/brasileira, que seguiu absorta o arquiteto em sua polêmica caminhada. Mais recentemente, outra personalidade de São Paulo tem se apresentado - desta vez não como expressão artística, mas de gênero e de vida - com vestimentas consideradas femininas: Laerte, um dos principais nomes do quadrinho brasileiro. A expressão de gênero da quadrinista gerou uma série de discussões sobre o tema e inevitavelmente contribuiu para as atuais manifestações públicas a favor da liberdade individual. Aos poucos, parece mais aceitável a ideia de que a discussão em volta de gêneros busca uma sociedade ainda mais próxima do que se idealiza como uma vida livre. Em contrapartida, uma multidão anda por aí se dizendo não preconceituosa para, em seguida, bradar contra comportamentos públicos como o de Laerte, ou mesmo contra a troca de carinhos entre pessoas do mesmo gênero – práticas antes confortavelmente escondidas. Se, no incício, as primeiras entrevistas e notas sobre Laerte atribuíam à sua pessoa o título de crossdresser, agora não há mais o que discutir: “sou travesti, ou uma mulher experimental”, disse em entrevista para O Globo, neste ano. Coincidentemente, uma personagem de seus quadrinhos tem ganhado bastante simpatia: a Gata. Trata-se de uma gata doméstica que, além de paraplégica, fala e se comporta como uma mulher jovem e independente. Uma personagem inevitavelmente queer, se entendermos isso como “o estranho”, o não aceito, o desviado. O que será que Laerte pensa desse estremecimento de preconceitos e morais que anda acontecendo no Brasil? E como ele se vê, enquanto figura pública, no meio desse momento histórico? LAERTE Nesta terceira edição, a Rosa aproveitou para conversar sobre esse e outros assuntos com Laerte. E antes de prosseguir a leitura, saiba que a quadrinista também será a homenageada da Balada Literária, evento que acontece entre os dias de 20 a 24 de novembro, em São Paulo. Não perca! Como é a produção de séries como a da Gata, publicada recentemente no “Manual do Minotauro”? Você já tem a história pronta antes de começar? Haverá novas histórias da Gata? Algumas vezes já tenho uma pré-ideia, outras não. No caso da série da gata, essa de agora, comecei sem grandes planos. Só queria lidar com algumas emoções conflitantes presentes na relação humano/bicho. Daí comecei a lidar com experiências pessoais e memórias mais doloridas. Não penso em estabelecer uma série da gata. Só se pintarem ideias que valham a pena. Como você vê o mercado digital de quadrinhos? Você tem vontade de lançar seus livros nessas plataformas? Sim, estou com projetos nessa direção. Ainda está na fase secreta, mas andando… No início deste ano você resenhou o livro “Judith Butler e a Teoria Queer”. Os livros que debatem as questões de gênero estão entre suas leituras? O que você está lendo atualmente? Como confessei na própria resenha, tenho dificuldade com textos de fiolosofia, ou de algum modo acadêmicos. Apesar da aceitação, poucas pessoas falam de você como Sônia, nome que você adotou junto com o visual. Por que mudar também o nome? Você se considera completamente Sônia, às vezes? Sônia cria tirinhas também? O pessoal (nos circuitos trans) adota nome feminino em parte como exploração de uma identidade que, além de gênero, envolve a própria identidade; e em parte como segurança. No meu caso, achei que não fazia muito sentido, uma vez que eu já sou conhecida como Laerte, gosto do nome e achei pelo menos um registro desse nome em uma mulher — a senhora Laerte Soares de Oliveira. É verdade que você tem se vestido de mulher em caráter experimental? Não é definitivo pra você? É definitivo, sim. O que eu disse, em algum lugar, foi que era uma “mulher experimental”. Trata-se de uma gracinha, assim como dizer que sou uma mulher, “categoria aspirante” ou que tenho “dupla cidadania” etc.. Estou tentando desajustar os conceitos de “mulher”, de “homem”, de “masculino” e “feminino” — só isso. Quando você começou a aparecer como transgênero, alguns jornais e revistas se referiam ao seu comportamento como crossdresser. Mas antes da questão visual se tornar pública, imagino que você já tivesse vontade de expressar sua “feminilidade”. Você conseguia fazer isso de algum modo? Hoje, não me afirmo mais “crossdresser”, gostaria de deixar claro. Sim, muitas vezes cortejei elementos do que é tido como a parte feminina da cultura, ao longo da vida. Em alguns contextos, esse desejo foi mais agudo e perturbador - o que me fez fugir dele. Agora, finalmente, acho que todas as pontas estão se encontrando. E não acredito que esteja expressando minha feminilidade, porque não levo esse conceito muito a sério. Na primeira edição da Rosa, Glauco Mattoso escreveu um soneto falando sobre como é comum que intelectuais gays por alguma razão escondam sua sexualidade, e que depois de “imortalizados” a eventual homossexualidade deles vira uma curiosidade, uma espécie de charme biográfico que, enquanto vivos, eles não assumem por muitas questões. Você concorda? Glauco Mattoso é genial — e grande sonetista. Nem sempre o que está expresso num poema é uma tese para debate — muitas vezes, é uma construção ideológica mais esquiva e rica. Não sei se concordo com essa forma de ler o poema, assim como uma lei geral. O que posso dizer, da minha experiência, é que tanto a questão de gênero quanto a orientação sexual — assuntos diferentes — foram bem difíceis, para aceitá-los e para vivê-los. São até hoje. Temos uma questão sobre os banheiros. Eles são lugares que incitam práticas muitas vezes liberais e até ilegais, como a masturbação e o sexo casual em local público. Ao mesmo tempo, eles reforçam a ideia de que a sociedade está dividida em apenas dois gêneros. Muita gente sugere, por isso, a criação de um terceiro banheiro, mas a medida também pode ser vista como segregação. Como seria o banheiro ideal? Nem todo banheiro público é de pegação. Os que o são costumam estar bem demarcados dentro do roteiro erótico de um lugar. Outro aspecto é o da divisão por gênero. É fato, sim - tanto nas instalações “de bem” quanto nas de pegação. A criação de um terceiro banheiro só serve pra separar das pessoas consideradas normais a população considerada bizarra, diferente, anormal. O que parece ser, na mente liberal, uma “solução justa” é a consagração definitiva da segregação. A prova disso é que os projetos apresentados em geral mencionam que tais banheiros não devem ser frequentados por “crianças desacompanhadas”. Mais descaramento é impossível. Já soube de alguns professores de Ensino Médio usarem suas tirinhas em aulas. Pensando nesse ambiente de cobrança social constante que é a escola, você, como figura pública, acha que tem algum recado que gostaria de dar em especial pra adolescentes que sentem vontade de se comportar como o sexo oposto? Minhas tiras são bastante usadas em livros didáticos — vendo direto para as editoras. Nem todas elas (tiras) fazem o discurso da liberdade de gênero, claro. O que eu diria para adolescentes? Diria que não existe “sexo oposto”. Não são opostos, isso precisa ser entendido. Diria que os comportamentos de gênero são construções culturais, que variam conforme o lugar e a época — e que o nosso lugar e época já estão super prontos para uma mudança que acabe com o sufoco! “O que eu diria para adolescentes? Diria que não existe ‘sexo oposto’. Não são opostos, isso precisa ser entendido. Diria que os comportamentos de gênero variam conforme o lugar e a época — e que o nosso lugar e época já estão super prontos para uma mudança que acabe com o sufoco!” João Gonçalves [email protected] | gonssa.tumblr.com ENTREVISTA SAMIE CARVALHO Como você começou a divulgar seu trabalho? O trabalho da Sasha era divulgado pelo endereço http://sashalioness. tumblr.com/. Por sugestão de uma amiga, resolvi fazer uma página no Facebook e um blog no Blogger. A página no Facebook resiste, mas o blog foi retirado do ar pelo Google inexplicavelmente. Geralmente, o público no Tumblr é mais internacional e de falantes da língua inglesa (antes, a Sasha era publicada só em inglês). Já no Facebook, a maioria dos leitores é composta por brasileiros. A fanpage da personagem Sasha tem mais de 5 mil likes. Como você chegou a tanta gente? Sinceramente, eu não sei. A Sasha começou como uma forma de eu botar pra fora alguma das minhas frustrações. Achei que não ia passar da #03, mas nesta semana já estou planejando a #30! Tive o apoio dos amigos que estão sempre compartilhando as tirinhas e isso ajuda bastante. Sem eles, nada disso seria possível. Além dos meus leitores, é claro! Cada compartilhada faz com que no mínimo mais 50~100 pessoas vejam o meu trabalho. Acho que se não fosse a política restritiva de divulgação do Facebook, a Sasha já estaria nos 10 mil. Aquela HQ do Dash Shaw, “Umbigo sem fundo”, é bem queer também, né? Mas de uma maneira que não passa por sexualidade. Ele é só um personagem esquisitão, um cara com cabeça de sapo, no meio de uma família comum. Tem a ver com sua personagem Sasha? Na verdade eu não conhecia o Dash Shaw até começar a me envolver mais com o universo queer e trans. Preciso conferir. A personagem Sasha tem mais a ver com o Marco “Porco Rosso”, da animação “Porco Rosso”, de Hayao Miyazaki, no sentido de que a Sasha não é exatamente uma leoa “de verdade”. O “ser leoa”, se ver como leoa e ser vista como tal é apenas uma metáfora para a forma desumanizadora como ela é vista pela sociedade e por si mesma. Tanto por questões de transfobia e preconceito, quanto dificuldade de auto-aceitação. Além de ser também um eufemismo para termos como “transexual/travesti/queer”. É uma forma de representar metaforicamente a dificuldade e, às vezes, impossibilidade das pessoas que não são cisnormativas passarem despercebidas na sociedade. Gays, lésbicas e bissexuais podem, na maioria esmagadora dos casos, viver seu dia a dia sem que as pessoas necessariamente saibam que eles o são, e assim sofrem quantitativamente menos situações constrangedoras e de preconceito. Mas ser trans, queer ou mesmo cis, mas sem se encaixar nos padrões cisnormativos, é algo que não se “omite” da mesma maneira. Você tem que estar pronta pra dar a cara a tapa todo dia a partir do momento que põe o pé pra fora de casa. E pra aguentar isso, tem que ser forte, corajoso e valente. Nesse sentido tem que ser como um leão (leoa, no caso da Sasha). Fora isso, tem a jogada da juba, que é uma brincadeira com o fato de que nos leões o cabelo comprido é símbolo de “masculino”, enquanto que o cabelo curto seria “feminino”. Exatamente o oposto do que acontece com nós, humanos. Sendo a Sasha uma leoahumana, a coisa fica bem interessante. Quem são os artistas que você admira que também mexem com gênero? A primeira artista que eu curti por conta de brincar com a coisa de gênero foi a Takahashi Rumiko, autora do mangá Ranma 1/2, do qual sou super fã. Curto demais também os trabalhos do Hayao Miyazaki, Togashi Yoshihiro (Yu Yu Hakusho), Watsuki Nobuhiro (Rurouni Kenshin) e CLAMP (Rayearth). Isso só pra citar os japoneses. Gosto muito da forma como eles encaram os conceitos de gênero e a quebra deles. Apesar de passar a impressão de ser uma sociedade conservadora (e são), os japoneses paradoxalmente são bem mais livres em relação a isso, e encaram com muito mais naturalidade questões como travestismo e transição entre gêneros. Curto também alguns mangás independentes do gênero Seitenkan (性 転換), ou gender bender. Rola uma troca com outros artistas com inquietações parecidas? Tem uma menina em São Paulo, a July “GLS Rocker” Albuquerque, que é trans e também faz um mangá trans, já viu? Bem, eu sou meio “autista-social” no sentido de que saio pouco de casa. Levando em consideração que ainda moro do outro lado do mundo. Não tive a oportunidade de conhecer o trabalho da July, mas fiquei curiosa. July, onde está você? Você participa de discussões políticas sobre esses assuntos? Participo em grupos e fóruns pela internet. Às vezes escrevo um artigo aqui e ali e me envolvo na medida do possível, mesmo estando tão longe. Muita gente tem a impressão de que o Japão é um país mais severo do que o Brasil. Porém, você disse, em seu Tumblr, que sente menos preconceito de gênero nesse país do que no Brasil. Como é a sua vida por aí? O Japão tem políticas ou costumes mais avançados do que o Brasil em relação à transexualidade? Dizer que o Japão é um país “severo” é um termo complicado. Sim, eles são mais rígidos que os brasileiros em relação a leis, respeito à individualidade e ao espaço do outro, sem abrir mão do senso de coletividade. Sim, os japoneses são “conservadores”, mas você deve se perguntar: conservadores em relação ao quê? A cultura deles tem uma origem completamente diferente da brasileira. Ao contrário do Brasil, aqui não existem os famosos “valores cristãos” com todos seus tabus relativos à sexualidade. É uma mecânica social bem diferente. Infelizmente — e especialmente depois da Segunda Guerra, por influência norte americana —, os japoneses assimilaram alguns aspectos “ocidentais”, principalmente em relação a certas visões políticas e seus reflexos na sociedade. Isso faz com que, apesar de tudo, quando tenho que lidar com assuntos “oficiais” que envolvam documentos, as coisas não são tão simples, visto o legalismo dos burocratas japoneses. Ser conservador com valores japoneses e ser conservador com valores brasileiros não é exatamente a mesma coisa. As pessoas têm tendência de “medir” o Japão usando uma “régua brasileira”, o que não funciona. Eles têm uma cultura milenar e que às vezes parece até ser paradoxal. Mas, com o tempo, você percebe que faz sentido. Eu mesma só comecei a entender o Japão como cultura depois de uns 4 ou 5 anos morando aqui. Isso porque eu falo, leio e escrevo japonês com fluência. O que infelizmente é a exceção para a maioria dos brasileiros que vivem aqui. A maior parte deles vive alienada em comunidades fechadas de brasileiros, assistindo à Globo pela TV a cabo e frequentando apenas espaços brasileiros, usando um japonês básico, apenas pra dar conta das coisas triviais. Isso contrubuiu para o desentendimento entre as partes. Não diria que os japoneses tem costumes “mais avançados” por que, de novo, é um termo complicado. Mas digo sim que eles são infinitamente mais educados e respeitosos em relação ao outro do que a maioria dos brasileiros. Aqui existe uma coisa chamada “meiwaku no bunka (迷惑の文化)”, ou “Cultura do Estorvo”, que nada mais é que você respeitar o espaço alheio e evitar ao máximo incomodar o outro. O famoso “minha liberdade termina quando começa a do outro”. Eles levam isso muito a sério por aqui e isso faz com que as pessoas tenham uma liberdade enorme dentro do espaço delas. Por exemplo, falar ao telefone ou escutar música alta (mesmo com fones de ouvido) dentro de trens e ônibus são ações terminantemente proibidas, e eles chamam sua atenção de forma rígida e ríspida se você o faz. Mas, em contrapartida, você vai ver em Tokyo homens barbado vestidos de Lolita andando pela rua, fazendo compras ou comendo em restaurante sem que ninguém o incomode por isso, afinal é o espaço dele. Se ele quer usar um vestido e não está incomodando ninguém, eu não tenho direito de ditar o que ele deve ou não deve fazer. E se intrometer na vida alheia — seja com xingamentos, brincadeiras ou gozações — em público é algo muito mal visto. Além disso, existem outras questões em paralelos, como eu disse. As leis aqui são bem rígidas e a polícia extremamente eficiente. Violência física dá de 10 a 15 anos de prisão. Assassinatos levam à prisão perpétua ou pena de morte. E as prisões japonesas não são brincadeira. Logo, casos como vemos no Brasil de agressões físicas e até assassinatos contra homossexuais e transexuais são inimagináveis aqui. Existe também o fato de que o travestismo é algo muito presente na cultura japonesa antiga, desde os “onnagata”, do teatro Kabuki, até as famosas atrizes do grupo de teatro “Takarazuka”. Aqui existem travestis e transexuais na TV como apresentadoras, cantoras, comentaristas políticos... Os japoneses encaram o transexualismo da seguinte forma: contanto que você respeite as regras sociais convencionadas pra determinado sexo, não há problema em transicionar. O que faz com que às vezes seja menos problemático ser transexual que homossexual. As leis japonesas, por exemplo, aceitam que transexuais façam a mudança de nome e sexo nos registros oficiais, mas o casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda é um tabu que eu não vejo se tornar realidade tão cedo, infelizmente. Talvez depois que todos os países de primeiro mundo, principalmente os EUA, legalizarem o casamento homossexual por completo, os políticos japoneses resolvam fazer algo a respeito. Enquanto trocávamos mensagem eu te chamei, sem querer, de Sasha. Você nem se importou, aparentemente, mas eu senti que pisei na bola. Pergunta: isso aontece com frequência? Você se incomoda? No que Samie difere da Sasha,além do fato de que uma delas é ficcional? Se estou conversando pelo site da Sasha, não há problema nenhum em me chamar de “Sasha”. Gosto de brincar com o fato da Sasha ser uma personagem “real” com a qual as pssoas possam interagir. Até por que, no fundo, a Sasha sou eu e eu sou a Sasha. A personagem foi criada e é construída a partir da minha personalidade, das minhas experiências e reações frente às coisas que eu encaro por aí. Nessa medida, a Sasha ainda é uma personagem muito crua e ainda está “verde”. Tem muito o que amadurecer até que eu possa deixá-la ir por conta própria. Todo esse processo das tirinhas curtas é uma forma de amadurecer a personagem, experimentar narrativas, criar outros personagens e assentar as bases pra um projeto maior envolvendo a Sasha e seus amigos. Espero que eu consiga! MANIFESTO (Falo pela minha diferença) Pedro Lemebel (Tradução: Alejandra Rojas C.) Não sou Pasolini pedindo explicações Não sou Ginsberg expulso de Cuba Não sou uma bicha fantasiada de poeta Não preciso de fantasia Aqui está a minha cara Falo pela minha diferença Defendo o que sou E não sou tão estranho Me aborrece a injustiça E suspeito desta lenga-lenga democrática Mas não me fale do proletariado Porque ser bicha e pobre é pior É preciso ser ácido para suportá-lo É dar a volta nos machões da esquina É um pai que te odeia Porque o filho requebra o pezinho É ter uma mãe com as mãos rachadas pela água sanitária Envelhecidas de limpeza Embalando-me no colo quando doente Por maus costumes Pela má sorte Como a ditadura Pior que a ditadura Porque a ditadura passa E vem a democracia E logo atrás vem o socialismo E então? O que farão conosco companheiro? Nos amarrarão pelas tranças em fardos Com destino a um sanatório de aidéticos em Cuba? Nos enfiarão em algum trem a lugar nenhum Como no navio do General Ibañez1 Onde aprendemos a nadar Mas ninguém chegou à praia Por isso Valparaíso apagou suas luzes vermelhas 1 Referência à persecução aos homossexuais durante a ditadura de Carlos Ibañez del Campo, na década de 30, no Chile. Do “Barco do general” eram lançados amarrados ao mar (nota da tradutora). Por isso as casas de tolerância brindaram uma lágrima negra Às bichas devoradas pelos caranguejos Esse ano que Comissão dos Direitos Humanos não quer lembrar Por isso, companheiro, lhe pergunto Existe ainda o trem siberiano da propaganda reacionária? Esse trem que passa por suas pupilas Quando a minha voz fica doce demais E você? O que fará com a lembrança dessas crianças Batendo punheta e mais outras coisas nas férias em Cartagena2? O futuro será preto e branco? O tempo em noite e o dia de trabalho sem ambiguidades? Não haverá uma bicha em alguma esquina Desequilibrando o futuro do seu homem? Nos deixarão bordar de pássaros as bandeiras da pátria livre? O fuzil fica com você Que tem sangue frio E não é medo não O medo foi passando De tanto esquivar facas Nos porões sexuais por onde andei E não se sinta agredido Se lhe falo dessas coisas E olho para seu volume dentro da calça Não sou hipócrita Acaso as tetas de uma mulher não desviam seu olhar? Você não acha que sozinhos na serra alguma coisa haveria de nos ocorrer? Mesmo que depois sinta ódio de mim Por corromper sua moral revolucionária Você tem medo de que se homossexualize a vida? E não falo apenas de enfiar e tirar Tirar e enfiar Falo de ternura, companheiro Você não sabe O quanto custa encontrar o amor Nestas condições Você não sabe O que é carregar esta lepra As pessoas guardam distância As pessoas compreendem e dizem: É bicha, mas escreve bem É bicha, mas é um bom amigo É um cara legal Eu não sou um cara legal Eu aceito o mundo Sem pedir que seja legal Mesmo assim eles riem Tenho cicatrizes de risos nas costas Você acha que penso com a bunda E que no primeiro ‘pau de arara’ da CNI3 Entregaria os meus amigos Você sabe que a hombridade Não a aprendi nos quartéis Foi a noite quem me ensinou a hombridade Atrás de um poste Essa hombridade da qual você se gaba Você a aprendeu no quartel De um ‘milico’ assassino Desses que ainda estão no poder A minha hombridade não a recebi do partido Porque fui rejeitado com risadinhas Muitas vezes Aprendi a minha hombridade participando Na dureza desses anos E riram da minha voz de bichinha que gritava: já vai cair, já vai cair 4 E mesmo que você grite como homem Ainda não conseguiu mandá-lo embora Minha hombridade foi a mordaça Não foi ir ao estádio 2 Praia popular do litoral central do Chile (nota da tradutora) Pinochet (nota da tradutora) 3 Central Nacional de Informaciones (órgão de inteligência que funcionou durante a ditadura de Pinochet) 4 Jargão entoado pela multidão de chilenos nas passeatas aludindo à queda do ditador Augusto E brigar a socos por causa do Colo-Colo5 O futebol é outra homossexualidade velada Assim como o boxe, a política e o vinho A minha hombridade foi morder as zombarias Comer raiva para não matar todo mundo Minha hombridade é me aceitar diferente Ser covarde é muito mais duro Não ofereço a outra face Ofereço a bunda, companheiro E essa é a minha vingança Minha hombridade espera paciente Que os machos fiquem velhos Porque a essa altura do partido A esquerda negocia sua bunda murcha No parlamento Minha hombridade foi difícil Por isso nesse trem não embarco Sem saber para onde vai Não vou mudar pelo marxismo Que tantas vezes me rejeitou Não preciso mudar Sou mais subversivo que você Se dá conta? Não vou mudar apenas Porque os pobres e os ricos… Não me venha com essa Nem porque o capitalismo é injusto Em Nova Iorque as bichas se beijam nas ruas Mas essa parte fica para você Que tanto lhe interessa Que a revolução não apodreça totalmente Para você vai esta mensagem E não é por mim Eu estou velho E sua utopia é para as futuras gerações Há tantas crianças que nascerão com uma asinha quebrada 5 Time de futebol chileno (nota da tradutora) E eu quero que elas voem, companheiro Que sua revolução Lhes dê um pedaço de céu vermelho Para que possam voar. NOTA: Este texto foi lido como intervenção em um ato político da esquerda chilena, em setembro de 1986, ao cumprirem-se 13 anos do golpe militar, em Santiago do Chile. Tradução: Alejandra Rojas C. TODOS SOMOS GILDA “Vi Gilda pessoalmente poucas vezes na Boca Maldita. Eu era criança, achava estranho, tinha medo: um homem de barba e de vestido colorido, abordando as pessoas, pedindo beijos... Depois, ouvi do poeta Marcos Prado o testemunho da noite de glória de Gilda. Era estreia de uma peça de fora, no grande auditório do Guaíra. Gilda conseguiu entrar no teatro, e passou desfilando pela frente do palco. Um cidadão levantou, gritou “Aê, Gilda!” e puxou aplausos. Quase que por reflexo, o teatro todo veio abaixo numa salva de palmas. Foi um breve momento em que a babaquice curitibana se rendeu à coragem e à atitude de Gilda. Enfim, ela morreria espancada, ou de frio, conforme queiram eufemizar o seu destino. Em seu tempo, em sua cidade, em sua boca maldita, nunca houve uma pessoa como Gilda.” Ivan Justen Santana, poeta, tradutor e professor. Curitibano. VIADO* Wilson Bueno Viado. Gilda está na Boca vestido de mulher. A barba de uma semana, os trapos, os andrajos. No pescoço de homem faíscam, bijuteria, duas voltas de colar rubi. O cabelo grosso, oleoso, sujo de mês, prende uma grande flor de papel amarela. Gilda vai rir com os clientes dentes podres um riso que há muitos anos Curitiba não vê. Gilda não dissimula; ri e isto chocará o esgar com que o bacharel vem rindo desde que se formou na Federal. Viado. O riso podre de Gilda é o de uma boca arreganhada pintada a batom. Sobre as calças imundas, não menos imundo vestido tubinho de tafetá rosa. Escardidos os dedos se enfiam na havaiana, embora o frio de Curitiba. Na canela perebenta os pêlos — duros, agressivos. Não se ouse supor o que pode o músculo de seu braço. Mas não é só com ele que arranca ao bacharel trêmulo uma nota de cinquenta; há o insuportável escândalo do beijo à força com que a chantagem se consuma. Viado. Impossível chamar a polícia. Suprema humilhação para o bacharel da Federal é publicar em plena Boca que — não se aventure — pode apanhar, e feio, de uma bicha. Teme também o beijo mas este se perderá entre tantas, data vênia, chacotas. Duro é ser posto ao chão de terno e gravata. Terrível tentar levantar-se e levar, de novo, uma pernada. Acontecesse assim nunca mais Curitiba. Quem sabe o exílio em Catanduva ou a morte arrepiada a arsênico no quintal do Juvevê. Para não imprssionar as crianças — no galpão —, de onde só a mulher tem uma cópia da chave. Este o maior trunfo de Gilda, e o seu maior blefe. Viado. Um grupo de cinco, meu Deus!, os homens da Fundação. Um deve ser o chefe, justo o mais magro e velho e que ri de lado, escondendo o riso com os dedos muito juntos de uma das mãos. Aos ademanes, forenses, cheios de dedos, caras e bocas, gestos, Gilda tem que eles é que parecem mulher. “Ói lá, chegou a patroa e as puxa-saco dela reunida...” Excessivo açúcar, o puxa-saco põe no cafezinho do chefe que, de novo, não esconde o riso de lado e os dedos juntos no canto da boca. Só que, agora ri mais alto, para insuflar o ódio dos demais. Frágil presa, Gilda avança e pega o adulador por trás, no conspícuo ridículo do mimo explícito — curvo sobre o balcão ele tenta alcançar a pia para esvaziar do excesso de açúcar a xícara do chefe. Então é que Gilda é a mendiga-pantera de Curitiba: agarrando o puxa-saco, aplica-lhe uma chave-de-coxa e com a grande língua lambe dele a nuca, em sudorese e espasmo, e mobilizando-lhe os braços, como aprendeu na Queirós Filho, beija o homem na boca — longa e demoradamente. O chefe, num frouxo riso, desarma-se e o que insistente escondia, no canto do lábio, era a falta — provisória — de um canino. Os demais uivam e ganem já mexendo nos bolsos o pedágio de Gilda para existir em Curitiba. Ainda uma vez escaparam. Viado. * Texto originalmente publicado no livro “Diário Vagau” (2007) e gentilmente cedido pela Travessa dos Editores. Nunca houve uma mulher como Gilda (Lívia e os Piás de Prédio) quinze pras três e quinze na praça osório o movimento é normal senhoras de família vão às matinês quinze pras três e quinze senhores de boina e as manchetes do jornal quinze de março de oitenta e três do alto da glória das causas perdidas ela fala a mão estendida, um chute na cara e nunca houve uma mulher como gilda um trocado ou um beijo na boca maldita nunca houve uma mulher como gilda morando no sapato de salto alto musa dos poetas de bar rainha esquecida do carnaval a calçada é um palco por onde o pública hesita em passar bolso vazio, vida real do alto da glória das causas perdidas ela fala a mão estendida, um chute na cara e nunca houve uma mulher como gilda um trocado ou um beijo na boca maldita nunca houve uma mulher como gilda filhas da gilda nas ruas do centro mandam alô pra loira fantasma quebrando vidro, chutando vento filhas da gilda cuidando da casa e nunca houve uma mulher como gilda um trocado ou um beijo na boca maldita nunca houve uma mulher como gilda Gilda Thadeu Wojciechowski Vi gilda rindo Chorando Não sei onde Não lembro quando Gilda não é homem E nem mulher Gilda é gilda Porque pode ser o que quiser Bailarina Rainha Messalina Mendiga boa de briga Comam sua bunda Chupem seu pau Chutem sua cara No carnaval Gilda viva Curitiba morta Gilda é um pecado atrás da porta Gilda mal falada Gilda bendita Ainda te mordem Os dentes da boca maldita E eu que nunca a amei De verdade Hoje sei o quanto dói uma saudade UM TROCADO OU UM BEIJO STREET ARTE DE VIADO Por Thiago Barbalho Em Los Angeles, escondido entre arquiteturas moderníssimas e publicidades megalomaníacas, um lambe-lambe mostra dois caras se beijando. Por cima da imagem, as palavras HOMO RIOT. O que é isso? Em outra parte da cidade, numa caixa de luz, uma bunda estampada. Um bundão peludo. Eita. Num banheiro público, entre paus e mictórios, a imagem na parede de um cara mascarado, feito um lutador mexicano, pegando no pau. Convidativamente. Que doideira. O nome do cara que fez isso, alguém sabe? Procura aí na internet. Eu googlo, tu googlas, eles googlam. Digita aí “homo riot” pra ver se aparece alguma coisa. Aparece sim: um site, um tumblr, uma fanpage no Facebook, uma entrevista, outra entrevista. Várias entrevistas. O cara se intitula B. Homo. Mantém o anonimato. Não mostra a cara. Intervém na metrópole em que vive. Trabalhou por uns anos na indústria fashion de lá, conta ele, mas sempre fez street art. Só que nunca com uma pegada política sobre gênero. Nunquinha. Até que pisaram no seu calo: uma votação local pra liberar o casamento gay foi um fiasco. Pode não, disseram: homem com homem: pode não. Mulher com mulher: nem pensar. Senvergonhas. Que audácia. B. Homo ficou puto. Se viu em casa à noite com uma raiva que dizia pra ele mesmo: faz alguma coisa, cara, reage. Ecoava na mente: você não vai fazer nada? Então ele esboçou uns desenhos furiosos. Traçou sua revolta pensando que tinha que explodir um motim gay naquela cidade. Uma reação, uma violência, uma contracorrente que pulsasse a sexualidade proibida. O amor impedido. Preparou lambe-lambes em cores chapadas de homens pelados, de homens se beijando, de homens mostrando o pau. A expressão HOMO RIOT veio naturalmente: como uma base: MOTIM GAY. Em maiúsculas. Em inglês. Vamos à guerra. Vamos ofender. O cara foi lá e colou. Colou mesmo. Em vários locais públicos. A internet, essa bênção anarquista, começou a espalhar as fotos que os transeuntes tiravam. Facebook, Tumblr, Instagram: #queer, #streetart, #homoriot, #losangelesqueer. Pô, que legal. Vou mandar um e-mail pra esse cara. Vou pedir pra ele enviar fotos pra ROSA. Título do e-mail: ROSA PINK HOMO RIOT. Hi Homo, sou seu fã e faço uma revista queer no Brasil. Vi que tem uns estênceis seus no Rio. Vi no seu Instagram. Hi Thiago! Obrigado. Já fui ao Brasil, sim. Mas também tenho amigos por lá e às vezes mando material pra eles colarem. E o que você anda fazendo agora? Pra onde tá indo sua arte? Eu tenho criado novos estênceis. Fui convidado pra várias exposições em galerias também. Sobre street art, queer art. Aceito. Não tem razão pra não levar isso aonde houver espaço, né? Dentro ou fora dos muros. É. Eu já tive várias mostras em galerias. E estou espalhando uns cinco ou seis tipos diferentes de estênceis e adesivos pelas ruas. Massa! Manda alguma coisa inédita pra gente colocar na ROSA? Alguns registros de sua arte pelas ruas de L.A. Claro, Thiago, será um prazer. Curti a revista! Que bom, Homo! Vou preparar um texto que fale um pouco sobre suas paradas. Here are the pictures. Thanks a lot. We’re all a big riot now. Sou Sou aquele que não chora e que não pode chorar. Sou aquele que te entrega a rosa, mas nunca recebe. Sou aquele que assim como outros milhares, apenas fornece o pão. Sou aquele que quando o pau falha tem a identidade roubada. Sou aquele que sempre precisa estar ereto, mesmo quando não tenho vontade. Sou o mágico ser que está sempre pronto para te atender nos seus anseios e desejos, mesmo quando eu não tenho vontade. Sou o ser que só goza, mesmo quando eu não tenho vontade. Eu sou um homem que como outros homens fui limitado. Você veste minhas roupas enquanto eu só posso ficar nu. Sou o sexo forte, que supostamente deveria arcar com a vida de uma família, mesmo ainda sendo um menino. Sou o forte que viu milhares de iguais morrerem nas trincheiras. Sou aquele que diante da morte deve entalar as lágrimas e cavar a fossa. Sou a pessoa que há 2013 anos está presa a convenções que me incitam a digladiar. Sou aquele que é medido por números, posses e centímetros. Sou apenas um velho rico, um garanhão jovem e uma conta corrente ativa. Sou eu que mesmo sofrendo com a vida que levo, devo engolir o choro e nunca!... NUNCA! Mostrar-me frágil, correndo o risco de ser exposto ao ridículo julgamento social e ser tomado como fraco, não importa quantos leões eu tenha matado. Leco Vilela Ilustração: Jéssica Albuquerque Texto: Sou pai, filho, avó, primo, tio, estranho, homem do saco, palhaço, bandido, marido, neto, padrinho, afilhado, sobrinho, puto, vadio, viado e bicho. Carrego na minha garganta o sinal da minha maldição, osso do meu antepassado, que pra não ficar sozinho, cedeu até uma costela. Sou o deus de uma sociedade hipócrita, que não aguenta mais os espinhos. SOLANGE TÔ ABERTA Por Thiago Barbalho Fotos: Lex Mendes Na capital do Rio Grande do Norte, uma balada gay abriga dois caras no palco. É noite de um sábado de 2007. Na pista de dança circula o hálito de homens que, saturados e sem saída, vieram parar aqui farejando um escape. Salivam de tédio. Os dois caras no palco enfrentam a plateia seminus. Um deles é bastante peludo e veste apenas uma calcinha. O outro tem as coxas cercadas por cinta-liga. Ambos usam uma maquiagem malfeita. A batida de funk vem do fundo do palco e é recebida em dança pelo corpo a que chamamos de plateia. A comunicação entre palco e público cria aqui uma mecânica primitiva impossível em outro estilo musical. Sob luzes histéricas, os dois sujeitos rebolam com tamanha entrega que mesmo aqueles acostumados a espetáculos de travestismo ficariam intrigados. O rebolado e a seminudez contrastam com os corpos sujos e imperfeitos que os exercem. Um dos sujeitos no palco começa a falar - é o de cinta-liga. São palavras que se apoiam no ritmo e deslizam para dentro da escuridão local. Das caixas de som começam a sair versos berrantes que sugerem sodomizar os mestres da psicanálise - é a voz do sujeito em ação. A canção fala de sexo sem disfarce e põe no meio do ato nomes como Lacan, Freud e Jung. Os gritos da plateia parecem compor, com a letra cantada, uma espécie de protesto uma deslocada contracorrente, em plena balada gay, à sede de explicação típica dos estudos da psiquê. Os sujeitos no palco são Pedro Costa e Paulo Fraga. Têm seus corpos fincados na rotina corajosa dos que não vivem sob a divisão entre masculino e feminino. Ambos são pesquisadores da arte da performance e têm interesses em questões políticas de gênero e aceitação. Os dois se juntaram e criaram, em 2006, a experiência visual e musical chamada Solange Tô Aberta. Dizem-se apologistas do travestismo. Desde que começaram a se apresentar em Salvador, Pedro e Paulo dividiram opiniões. Por manter como estética o sujo, o defeituoso e o marginal, Solange Tô Aberta se sabe dada mais a tapas que a beijos. Pedro, antropólogo e mestre em artes cênicas, diz que o público de balada gay às vezes não gosta dos seus shows porque o que Solange faz é música de protesto, algo que passa longe da diversão ali buscada. Aceitos ou não por frequentadores de casas noturnas, os dois rapazes começaram a receber convites para se apresentar em festivais queer. A partir desses eventos, a visibilidade cresceu. Eles fizeram uma temporada em São Paulo. Participaram do festival Trangendler, em Berlim. Surgiu um convite do Itaú Cultural, e em 2011 se apresentaram na exposição Caos e Efeito, organizada pela instituição. Recentemente, a canção que ataca a psicanálise ganhou versão acústica de Barbara Browning, professora de estudos da performance na Universidade de Nova York. A estranheza da STA parecia avançar, mas Paulo tomou a decisão de fazer um trabalho próprio: criou o personagem Paulo Belzebitchy e começou a se apresentar sozinho, distanciando-se ainda mais da sua origem como percussionista. Ficou para Pedro a tarefa de manter a STA ativa - o que não tem sido difícil, já que Solange Tô Aberta não tem a ambição de atingir o pop. Sete anos depois dos primeiros esboços da Solange, Pedro, que agora mora em Berlim, diz só se apresentar quando recebe convites que lhe propiciem uma troca artística válida. Sem intenção de criar novas músicas, como faria um grupo musical padrão em atividade, ele conversou comigo via gmail sobre STA e arte queer. Quando eu comecei a ouvir Solange Tô Aberta, minha sensação era de que aquilo que vocês faziam era um negócio espontâneo – meio caseiro, mas ao mesmo tempo minucioso. As músicas que falam de travestis, por exemplo, são tão diretas que parecem ter sido feitas por alguém que convive com a realidade trans, sem nenhum tom exótico nas letras. Você tem mesmo uma proximidade com esse mundo? Tenho, sim. Eu não acredito num conhecimento que não seja através da vida ou não esteja conectado às experiências de vida. As letras do projeto foram todas escritas a partir de experiências de vida, tanto as que vivemos como as que observamos perto da gente, indiretamente. Como você e Paulo chegaram a esse formato de dupla funk? Existe essa linha do funk chamada “proibidão”, que canta a questão sexual direta. No início rolou um desejo de ter uma banda, mas não deu certo. E aí pensamos numa forma de ter um projeto de música em que pudéssemos expressar as questões das sexualidades não-heteronormativas. Vimos essa possibilidade a partir do proibidão e de projetos que começavam a misturar funk com outros ritmos. E a gente já gostava muito de funk. Já existiam umas paradas musicais meio queer antigamente, mas no Brasil eu não sei de nada antes que tivesse escracho e contestação ao mesmo tempo. Como vocês chegaram nesse formato? Pois é, existiam projetos queer no Brasil há muito tempo, o que não existia era a denominação “queer”. As artes na Cultura LGBT são conhecidas pelo escracho, pela comédia e pela criatividade. A contestação anarquista é da ação direta, de enfrentamento. E o funk carioca tem isso de falar abertamente sobre questões cotidianas, relacionadas às vivências nas favelas. Essas vertentes formam a base musical/ vivencial da Solange. Uma coisa que sempre me instigava também, por ter lido o livro “Problemas de Gênero” (de Judith Butler), era a parte em que a autora fala sobre a questão das drag queens e de como poderíamos ir além do riso fácil e transformar esse riso num riso nervoso, um riso político, onde não mais a artista seria o alvo do riso, mas o público. O riso seria um incômodo político, deslocando as pessoas de suas certezas e preconceitos sobre o tema. Por isso, geralmente as pessoas que frequentavam boates LGBTs não gostavam da Solange. Muitas pessoas têm preguiça de pensar. Pensar implica em mudar. Mudar implica em dor, em pesquisar, em se tornar uma chata. A música da STA é pra um público trans, queer e LGBT ou vocês fazem música sobre isso mas pra todo mundo? Olha, no começo eu pensava que nosso público seria o LGBT. Ledo engano. O projeto é mais amplo, e há pessoas de várias sexualidades que curtem. Quero todo mundo junto. O movimento queer tem essa coisa do estranho, por isso às vezes eu me pergunto sobre o quanto a cultura queer poderia se popularizar? A coisa queer, mais do que a coisa do estranho, é a questão política. Entendo como queer pessoas que conscientemente não querem se enquadrar numa estrutura limitada e excludente, cheia de regras historicamente inventadas, de viver os desejos. “Queer” só existe porque as pessoas e os movimentos foram e são absorvidas pelo modelo patriarcal/ considero a simples luta de se expor como uma impactante luta política diária. Então não podemos comparar. Ao mesmo tempo em que na Europa existe uma maior liberdade, existe um não-reconhecimento de corpos e vidas que não estão em conexão com a cultura queer europeia, branca, cheia de privilégios. Falo principalmente de Berlim. colonial/capitalista em suas vidas e desejos. E tem também essa galerinha acadêmica que usa a teoria queer para se sentir pós-alguma coisa. A questão queer nada mais é que as vivências nãointeressantes, não-absorvidas e nãotransformadas pelo sistema. Queers são pessoas que sabem que isso é extremamente político. Então queer é ter consciência disso. Desse ponto de vista, existem pessoas que vivem isso, sem se denominarem queer. A denominação e estruturação enquanto conceito serve tanto para pôr em crise essa estrutura como para criar “donos desse território”. Há sempre esse risco, e é muito disso que eu observo atualmente. Me fala um pouco de como você acha que tá a cena queer no Brasil. Esse ano fui a um festival em SP, o Queers and Queens, e achei demais. Eu não fui ao evento, mas apoiei virtualmente. Apoio eventos queer, mas tenho minha opinião. Atualmente tem muita coisa com essa temática, o que acho super importante, mas não são DIY (Do It Yourself), não são eventos autônomos. Acho que se deve tentar descobrir novas formas autônomas de realizar um evento queer. As discussões são super importantes e acho que não houve algo assim nesse evento. O que as pessoas que se entendem como queer tentam, de todas as formas, é descobrir novos caminhos de solidariedade. Os shows lá fora deram alguma perspectiva pra Solange se desenvolver e pra você continuar com um trabalho queer? Sim. Aqui na Europa as discussões queer e de gênero são bem avançadas, por uma história específica que envolve varias questões. Isso não significa que é melhor ou pior do que na América Latina. O que as pessoas LGBT e feministas têm que enfrentar no cotidiano no Brasil é muito mais pesado que na Europa, de forma geral. Nesse sentido, eu já Como são essas coisas por aí? Existe muita solidariedade, muitas festas, eventos, discussões, mas também ha um lado de exclusões e violências. Tanto que acabei por reconhecer o valor do que chamo de “afetos políticos”, que considero como as afetividades cotidianas, onde a questão de saber falar a mesma língua, de se vestir de forma diferente, de se movimentar e dançar de outra forma, não seja vista como sexista ou qualquer outra coisa. Aqui, por exemplo, numa festa solidária para a campanha contra a transpatologização, num espaço de esquerda, fui classificado como homem e sofri agressão por causa disso no show da Solange. Há pouco tempo aqui em Berlim houve uma ruptura no movimento queer. Agora existe o QTIBPoC (Queer*Trans*Inter*Black and People of Colour). Um grupo que cansou de sofrer certas exclusões por causa de experiências diferenciadas das pessoas queer brancas e se uniu para fazer suas próprias coisas. O que você anda fazendo além da STA? Por que foi parar em Berlim? Estou desenvolvendo um novo projeto de música eletrônica. Ao total são quatro pessoas, dois DJs/ produtores de música eletrônica e dois cantores. As músicas que estamos produzindo até o momento falam sobre nossas experiências como imigrantes, mas também vai demorar um pouco até lançarmos esse projeto. Fiz uma performance que tratou da questão dos corpos invisíveis imigrantes baseado nas minhas experiências aqui em Berlim e no que eu conheço sobre a experiência de amigas. Fiz dois seminários na universidade como ouvinte sobre os temas da imigração, racismo e póscolonização. Eu vim morar em Berlim porque queria ter experiências como imigrante e queria viver a cena queer da Europa. Qual sua ideia de manter a Solange aberta e ativa hoje? Solange estava em off, mas fui convidada para um evento na Áustria, na cidade de Linz, que aconteceu há pouco tempo. O Evento se chamou “Festa do riso: Quem ri de quem?” e realizado pelo “maiz kultur”, um organização de mulheres imigrantes. A proposta era justamente expor formas de fazer política através da arte de uma forma lúdica, que promovesse o riso e a alegria, com pessoas que se considerassem queer, feministas, negras, lésbicas e imigrantes ou filhas de imigrantes. Nesse evento, a Solange voltou à vida. Lá eu entendi coisas que me faltavam e percebi qual o caminho da Solange por aqui. Então eu mantenho a Solange, mas sem novidades e sem expectativa nenhuma de músicas novas ou novo show. Se eu receber um convite e perceber que Solange poderá trocar experiências afetivas e políticas, eu vou. Ricardo Lima Caco Ishak aluga-se mártires [sic] quem é esse garoto, de onde ele veio? é impressionante o estrago que ele vem fazendo na zaga adversária! e olha só, hein, roubou de novo... lá vem ele, veloz pela lateral esquerda, dois contra quatro, o companheiro pedindo a bola, mas o menino não parece estar disposto a dividi-la com ninguém, já passou por um, vem se aproximando da grande área, marcado por três... seu colega em posição de impedimento, chega um quarto jogador pra marcá-lo, o quinto que ficou pra trás chegando, mas ele não quer saber de largar a bola, tá gostando do jogo, hein... começou a fazer gracinhas, agora virou festa, deixou dois no chão, que imagem! fingiu que ia prum lado, foi pelo outro, meteu por entre as canelas do zagueiro, entrou na grande área, olha lá, olha lá, mas que chapéu! olha lá! matou no peito, chutou e gol! goooool!!! mas que golaço! mas que go-laaaço! não estou acreditando nisso! o goleiro nem viu nada, ficou paralisado do pescoço pra baixo! todo o time corre pra abraçar sua mais nova revelação, o salvador da pátria, quem fez o gol que pode dar ao clube o título de campeão estadual pela primeira vez em sua história, faltando apenas três minutos pro fim do jogo! só que ele não quer saber de abraços, não, hein, sai correndo sozinho pelo campo, em direção à torcida, com os dedos indicadores pra cima como que dizendo “essa é pra vocês”, esse garoto ainda, de apenas dezesseis anos de idade, uma promessa do futebol brasileiro! e, olha lá, que bonito! é isso aí, menino, comemora, faz tuas graças! parece mais malabarismo, de tanta cambalhota que ele tá dando – acrobacias, né? e a torcida vibra, vai à loucura com a nova estrela revelada pelo clube! que beleza, esse é o futebol brasileiro! e ele não pára, hein, vai pulando de um lado pro outr... opa, a queda foi feia. a queda foi feia, hein! acho que ele se desequilibrou na hora de cair e bateu com a cabeça no chão de mau jeito... tá caído, imóvel, sem se mexer, todo mundo corre pra ver o que fazer... cadê a ambulância pra levar esse jogador prum hospital, pelo amor de deus? momentos de muita apreensão... ninguém sabe o que de fato aconteceu. a equipe médica chegou, parece que a coisa foi feia, a situação é grave! os médicos fazem sinais, a torcida em total silêncio, todos se perguntando o que aconteceu com o herói de seu time... estão imobilizando seu pescoço, vão colocá-lo numa maca, acho que ele será retirado do campo... é nessas horas que eu me pergunto, por que será que... clic. – acabou? – é, foi... acabou. vai pro quarto descansar, vai, tia. daqui a pouco tem mais jogo... da seleção. – ô, mas que beleza! quem foi escalado dessa vez? – não sei, tia, sei não. a gente vê isso na hora... vai dormir um pouco, vai. – tudo bem, mas me acorda antes de começar, viu? não posso perder esse jogo por nada nesta vida! pode deixar, eu aviso. amanhã de manhã, bem cedinho, tão logo eu acorde, antes do almoço. com o remédio que tomou, não vai querer saber de jogo nenhum, mesmo. além do mais, oportunidades não faltarão de assistir a todas as partidas de todas as seleções do mundo, tudo gravado, um armário cheio de fitas de jogos de futebol, vai poder se esbaldar à vontade com pernas e sabe deus o que mais ela consegue enxergar nesses noventa minutos de chutes e palavrões vindos de tudo quanto é lado, sem rumo certo, atingindo o primeiro que se sentir no direito de acolhê-los e multiplicá-los. como, no mais, qualquer coisa na vida. é a maior paixão de titia, coitada. jogos de futebol. não digo a única, pois além do poodle sem dentes, obeso e esquizofrênico que se mudou com ela pra cá, bem sei que a pobre me ama também, aquela baboseira toda de o filho que nunca teve, nem tanto por incompetência, quanto pela falta de homem paciente o bastante pra aturar as esquisitices que desde cedo a acompanham nesses oitenta e poucos anos de loucura e dribles na solidão. dizendo minha mãe, que deus a tenha, titia – na verdade, irmã de minha avó. titia-vó, portanto – já tinha sido muito garbosa na juventude. mas, ninguém sabe por quê, destrambelhou ainda moça, não dando chances às aproximações dos pretendentes que meu bisavô lhe arrumava. foi envelhecendo, o tempo a esclerosando ainda mais, coitada, passando de mão em mão dos familiares até aterrissar na monotonia cotidiana do cidadão desocupado aqui, à incompreensão de todos. como é fácil de se lidar com a velha [botar gravação dum jogo qualquer no vídeo e torcer pra que ela sonhe feliz em seu sono forçado], preferi não arrumar confusão com os parentes, aceitando numa boa os surtos de campeonatos mundiais por ela testemunhados em delírio e a ajuda de custo oferecida pelos primos que a hospedavam antes. o cachorro estava dando muitos problemas, afirmaram então, avançando em tudo quanto era convidado da casa, chegando até a morder o calcanhar da filha de não sei quem batistelli. bons tempos que com os dentes se foram. já que titia não conseguiria viver sem seu precioso, pensaram que talvez eu, sozinho na vida e simpático por animais, pudesse acolhê-los sem problemas. sem muito pensar, acabei por concluir que, depositando todo mês em minha conta o dinheiro pra ração do infeliz, tudo bem, sem problemas mesmo. não me importaria em caminhar até o mercado pra comprar. com essa vida de jornalista desempregado e escritor virtuose ainda não reconhecido pela crítica nem pelo público, o que não falta é tempo pra ir na esquina de quando em quando. problemas, teria no dia em que esse projeto de cão morresse, aí sim, minha vida se tornaria um calvário. não bastassem os traumas que já possuo quanto ao assunto – faz alguns meses, ainda só e provavelmente por isso, comprei um vira-lata, baratinho, com direito a uns tantos vermes de brinde, que acabaram motivando a visita do perebento a um veterinário recém-formado, cheirando a leite, baratinho também, que acabou receitando ao animal uma quantidade de medicamentos tal que não apenas matou todo e qualquer tipo de ser no intestino do bicho, como o próprio, de overdose no meio da madrugada e eu lá, sem saber o que fazer. cansado de me sentir um completo inútil a observar aquela criatura estrebuchando no chão do quarto, olhos esbugalhados e arfando língua afora, decidi ler um romance até o momento em que ele enfim quebrou o pescoço, tamanha a violência das convulsões, pra que, então, o dia já amanhecendo, eu o depositasse numa caixa de sapatos e deixasse o resto por conta do caminhão de lixo – não bastassem meus traumas, seria obrigado a consolar titia por um bom tempo, assistindo com ela a todas as finais dos campeonatos brasileiros que temos aqui em casa, não poucas. isso, se ela durar até a final de noventa e cinco. do jeito que as coisas vão, perigo acabar consolando o banguela do poodle. coitada – não encontro outra palavra pra melhor me referir a ela, coitada. o que, parando pra pensar um tiquinho só, não lhe soa assim tão bem. antes fosse descoitada, já que pela experiência do coito, até onde consta, nunca passou. que não me julguem mal pelo trocadilho. mas ai, os trocadilhos, diria com os dedos lambuzados de brigadeiro, como os adoro, principalmente se são pra confundir a cabeça de titia. se, nos tempos de redação, eram meu passatempo preferido pra elaborar as manchetes do dia, quanta não é minha satisfação ao oferecer uma dedada à titia, uma delícia, bem docinho. que não me tomem por um monstro. no fundo, até gosto dela, gosto sim. depois que meu vira-lata se foi, é bom ter um certo movimento em casa, constante e que forneça algo próximo a uma espécie de segurança ao equilíbrio mental que tento manter em sábados como esse, dias em que tudo parece ser um pouco menos do que realmente é. acredito que seja isso mesmo. não permitir que eu perceba estar a situação bem pior do que venho imaginando, eis o papel de titia em minha vida. que continue a dormir, então. é quase noite e já tive minha cota de realidade por hoje. nada mais de rezadeiras aos quarenta e seis do segundo tempo, nem de beijos gosmentos enquanto o cão corre alucinado de um lado pro outro com a gritaria e nos intervalos se esfrega em minha perna com cara de quem acabou de sair duma cirurgia plástica. quero mais é arriar as calças e chover mel. o cachorro, titia? sim, sim, foi dar um passeio com seu osmerindo, o zelador, já deve estar voltando, daqui a pouco tá por aí novamente, feliz da vida, mordendo o pé da mesa e arrastando o saco pelo chão frio. não se preocupe, titia, tá tudo bem, vá dormir. não dizem que cachorro sempre volta pra casa do dono? ou são os gatos que voltam? percebe a diferença? nem eu, nem ela. no fim, dá no mesmo e acabo dando um gato de presente pra titia. certo que a embocadura é um tanto menor e o poodle era desdentado, mas dou um jeito pra que as coisas fluam naturais e titia aprenda a ronronar seus prazeres, tão bem quanto os rosnava. tomara que o cachorro volte [na toada de uma bisca em vias de lordose crônica que lhe apavora a cauda e faz cantar o serelepe]. eu me martirizar por causa disso, é que não vou. se resolveu pegar o beco, tenho nada a ver com isso. a velha, coitada, que se entenda com as ratazanas do vizinho. é uma santa e nem se dá conta disso. numa hora dessas, já deve estar toda encharcada, disputando a bola com três zagueiros baianos. ainda escrevo sobre ela. assunto, não falta. falta é recuperar o tempo perdido com a caderneta vermelha. preciso economizar nas conversas por telefone. falar menos e foder mais, sacomé. continuar nessa de passar o dia tomando um não dá, aquele papo nasalado de me erra, garoto, vê se me erra, enquanto me estico um pouco pra coçar o rabo suado de ficar sentado no sofá limpando o umbigo, já está deprimindo a paisagem. pensar no trabalho que tive pra completar essa lista. anotava tudo quanto era combinação de números que conseguisse fazer com o que a sacana articulasse depois de alguns minutos de declamações ao pé do ouvido. geralmente, as dúvidas que me impediam de concluir o preenchimento de sua ficha eram tiradas logo em seguida, ao tempo em que enfiava besteiras em sua cabeça e chupava gelo com chiclete empedrado pra, daí em diante, nunca mais. outro truque que aprendi nas redações, contrariando o que imaginavam as focas, doidas pra que alguém as amestrasse num pau-dearara. e assim vou levando. não reconheço estar mentindo quando nego fazer idéia do que fez o quadro mudar completamente. bem mais simples seria provocar a confissão como se fosse em prol do delator. percebe? picadinho: se parasse com embromação, talvez minha cama estivesse atulhada de gente e cheirando mais a peixe. a caderneta vermelha. algumas perguntas e as pistas iam todas pra lá. basicamente: nome, telefone e o período de menstruação [salpicar-me no bafo quente do teu paquete]. a conveniência ditava as regras e, como disse, dúvidas nunca mais. até me esforçava pra que acreditassem no que lhes dizia o momento, teso e entalhado em pedra – memórias de uma mulher quase sempre desagradam. foi quando titia chegou com o poodle e me deparei com o outro lado da força. de repente, quarto vazio, tornou-se mais cômodo trocar pequenos mimos por favores fraternais a ter de gastar com motel ou convencer que valeria demais a pena se ela gastasse e acabei relaxando. certa vez, quando mais moço, saí com uma putinha coxa – leste europeu, como não – que ficava ao lado de minha janela, aqui na esquina de casa. devia ter seus trinta e cinco ou sete anos e me chamou de gostoso quando passei por ela. parei, ela deu dois passos e abocanhou meu pau com os dedos. apaixonei e viemos pra casa. ela se casaria comigo, contanto que eu pagasse adiantado. paguei e, nos quarenta e cinco minutos seguintes, fiquei planejando os detalhes da cerimônia. ao perguntar o que ela achava, desabotoou minhas calças, bateu umazinha e, serviço feito, disse que já era casada. quase um conto de fadas, não tivesse me sentido um pouco indisposto por ter sujado de porra a mão da única pessoa que realmente fazia sentido no meio de tanta aberração. até o dia em que o cão mordeu doído e saiu correndo pela porta. hoje. e me abandonou nessa modorra. sem quarto, nem cachorro, a derrocada não tarda. quase impossível resistir ao apelo da possibilidade que se avoluma, questão de sobrevivência – dizem que dá câncer. pois vejamos. alice... é das que quase vomitam, tamanho é o gosto que tem por um cacete na goela, essas coisas de encarar a morte de perto enquanto treina pra ser maratonista. uma vez, disse que sonhava em ser triatleta e a convidei pra ir ao cinema. não apareceu e, ingressos comprados, entrei sozinho. o dela, troquei por jujubas. não dá pra dizer que me incomodei com o fato de todos estarem acompanhados, o som das cadeiras rangendo até me agradava, trilha sonora em harmonia com as cenas de ação. o problema foi o sujeito ao lado ter me apalpado pra aliviar a dor. o lanterna disse que nada podia fazer, cortesia do estabelecimento. relaxei e acendi um cigarro. pois bem. era proibido fumar. a bichinha começou a se contorcer e gemia por socorro. não me restou opção, senão validar a impressão e apagar o cigarro em seu rabo, indo embora sob o protesto de seus companheiros, que me ameaçavam com giletes e preservativos empanturrados. alice nunca ligou. acabei descobrindo que, de tanta seiva, petrificou e parou de pedalar. soraia, menstruada. escritor bom, pra ela, tinha de escrever sobre o miserê bucólico de vilarejos minúsculos em países sul-americanos ou duendes que fabricam suas próprias calças a partir do resto que sobrou do almoço. talvez, jaqueline... vem cá meu tuiuiú, ao que lhe indaguei: meu o quê, mulher? ela: meu tuiuiú, meu tuiuiúzinho, nunca viu um tuiuiú, não? eu. não. ela. é aquela ave do pantanal que tem um papão enorme que, quando dois machos brigam, infla, fica que nem uma bolsa escrotal bem grandona e aquele bicão no meio e eu aqui, com meu tuiuiúzinho. jaqueline tinha essa mania de ler revistas científicas e assistir a documentários, destacar os assuntos que mais lhe interessavam e colocá-los na rotina do dia seguinte, cama principalmente. assim fica fácil economizar. oitocentos e cinqüenta e nove reais de celular. dá quase pra enrabar apresentadora de tevê com essa grana. tem lá suas vantagens, como não? o bom e velho rasga as costas com os dentes cravados na orelha deve ter seu valor ainda preservado na tabela duma profissional. nada de divagações a respeito de intrigas familiares ou do preço do açúcar. uma trepada sem firulas, mormacenta, sem cremes hidratantes, posições que dão nó na coluna ou preliminares. a imagem de minha porra na mão da putinha coxa não devia ser um bloqueio. amanhã, sabe deus, sou castrado e aí? vai doer o acumulado pro resto da vida, bagos fora. bora parar com frescurite, então. ela brinca comigo e, caso eu queira dar uma de doido, sai mais barato do que deitar num divã e discutir futebol com o psicanalista. simples assim. pagou, levou. quantas putas não foram dilaceradas nos clássicos? nem quero tanto. sorrindo pra mim, já ganho o dia. como, despacho, viro pro lado e durmo. segredo da felicidade. era o que o cachorro proporcionava à titia, nada mais do que uma relação saudável em que as partes se entendiam sem pronunciar uma só palavra. não existia um coitado, nem um pobrezinho, as vítimas todas da história ficavam do outro lado da tevê. exploração seria se ela enfiasse o dedo no rabo do bichinho. ainda assim, sem ele querer. acho que devo uma à titia. as pessoas têm uma certa necessidade de escolher alguém à margem da sociedade que lhes sirva, por uma cesta básica ao mês ou duas páginas numa revista, de consolo à degradação moral em que estão, um cordeiro imolado que todos redimiria perante os olhos de seu deus ou do público, todo poderoso. e ai de quem não participe do espetáculo. titia não participou, não ativamente, e deu bem dado no que deu. isolado e sem perspectiva alguma, senão abanar o rabo em troca de afagos e gratificações, não me aguarda outro destino. cansei de ser mais um fracassado, ficar mendigando uma chance pra quem só quer me enrabar, acenando pra platéia. que se foda a ajuda de custo que os retardados dos primos dão; que comecem a dar coisas mais folgadas em outra freguesia, titia não precisa mais de gorjeta. vai ser minha secretária particular. se é um pobre coitado que eles querem, pra que possam dormir com a consciência tranquila embaixo de suas cobertas de seda de trocentos fios emporcalhados com as cortesias golfadas nos ouvidos da baixada, eis-me aqui pra saciar-lhes a fome de miséria. amanhã, bem cedinho, tão logo titia nos acorde, penduro a placa na porta de casa. aluga-se mártires. assim, errado mesmo, que é pra não duvidarem de minhas boas intenções. ganho eu, ganham eles. uma turba de menores prostituídas, mendigos, apostadores e viciados em crack fazendo fila pra preencher cadastro. e quer saber? no meio da história, largo tudo, jogo no pisão, desisto, toco o foda-se. quero ver as expressões de frustração, o que vão dizer. mas principalmente: como eu vou reagir. sempre em teste, nem sempre alerta. melhor não complicar sempre que possível. vou deixar a porta aberta, talvez o cachorro volte enquanto assisto à eliminação de oitenta e dois. (Francisco Conrado)